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1

Copyright © 2020 por Clara B. Alves Todos os direitos


reservados

Como se Fosse Verdade


Edição digital

2
Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida
sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito
do autor.

Capa: Genevieve Stonewell


Revisão: Clara B. Alves
Formato: PDF

Edição Digital | Criado no Brasil

Para Iana, minha soulmate para sempre;


Para Priscyla, uma amiga/irmã que Deus me deu;
Para os admiradores da literatura e de um bom rock
clássico.
Este livro é para vocês.

3
Parte
1
"Se o meu sorriso mostrasse o fundo da minha alma, muitas pessoas, ao
me verem sorrir, chorariam comigo." — Kurt Cobain.

Prólogo
O Sol está quase desaparecendo por completo. Aquele momento se tornou
o meu favorito do dia: quando o horizonte está manchado pelo laranja forte
e quente do entardecer; como se o Sol estivesse lutando, sangrando numa
batalha cruel e perdida para não desaparecer e a escuridão reinar. Mas
apesar disso... Nós sabemos que ele nascerá de novo, num novo dia. Esta é
minha inspiração, para continuar aguentando.

— Eu... eu não... — paro. Não sei o que estou tentando dizer. De repente,
senti uma necessidade de me abrir com Benjamin, mas não sei o que dizer
ou fazer.

Seus olhos demonstram que ele entende, no entanto.

— Ei! Está tudo bem não estar tudo bem, de vez em quando. — fala com a
voz tão suave e carinhosa que sinto vontade de chorar.

4
Como um cara assim se disponibiliza a me ajudar sem nem me conhecer?
Não pensei que isso acontecesse na vida real.

— E se... não for só... às vezes? — sussurro. — E se a dor não... for


embora? Ainda vai estar tudo bem?

— Há dores que nunca vão embora. — confessa.— Nós apenas


aprendemos a seguir em frente e a lidar com ela. Nunca fica mais fácil, só
não é mais estranha. — Há algo em sua voz... Algo como compreensão.
Como se ele tivesse passado por isso inúmeras vezes.

Viro a cabeça em sua direção. Benjamin ainda está olhando para frente.

— Você também está aqui por causa dessa dor?— pergunto baixinho.

Benjamin fica um minuto em silêncio, ainda olhando para o lago, até que dá
um pequeno aceno de cabeça.

— E-eu... — sua voz quebra e parece que ele está prestes a desmoronar

— Está tudo bem não estar tudo bem. — repito o que ele me disse, com um
meio sorriso.

Desta vez, seus lindos olhos azuis me encaram e compartilhamos um


momento de parceria. Duas almas partidas e silenciosas fingindo serem
lindas e alegres para os outros não verem quão obscuras são por dentro.
Nós entendemos o que isso significa. Nós nos entendemos.

Sorrimos como se nossa felicidade fosse verdade e nossas vidas perfeitas.

5
1

"É preciso viver o presente."

Fecho o livro descansando-o na barriga enquanto encaro o teto. Entre o


Agora e o Nunca está sempre na lista de releituras. Não consigo parar a
vontade de pegá-lo, sentir seu cheiro e ler as cenas que mais me
emocionaram, como se fosse a primeira vez.

Levanto-me da cama, arrastando meus pés para fora do quarto escuro e


sigo para o banheiro. A primeira coisa que vejo quando entro é o meu
reflexo no espelho. Definitivamente não era algo muito bonito de ver.
Minhas olheiras revelam que hoje foi mais uma noite de sono perdida para
a leitura. Ou para a insônia. De qualquer forma, tenho que dar um jeito de
arrumar a bagunça castanha em cima da minha cabeça.

Depois de pronta, desço as escadas em direção à cozinha. Pego uma maçã


em cima da mesa e escuto alguém bater na porta.

— Estou indo! — grito para a ruiva do lado de fora.

— Vamos lá, babe! Não quero chegar atrasada para a aula da Sra. Peterson.
Aquela mulher me dá arrepios.

Como imaginado, Rose acaba de chegar. Não a deixo esperar mais e abro a
porta.

— Você sabe que não chegaríamos atrasadas nem que você esperasse mais
15 minutos, certo?

6
— Talvez o problema esteja exatamente na palavra ―esperar‖. — Ela sorri.
Reviro os olhos para a espertinha ruiva.

Rose está usando um estiloso óculos de sol que cobre seus olhos verdes.
Ela gosta de estar na moda e ser o centro das atenções. Sou totalmente o
oposto, mas nossas personalidades diferentes combinam, de um jeito
estranho.

— Por que está usando óculos escuros? — pergunto enquanto desço as


escadas da entrada.

Hoje o sol resolveu se esconder da Carolina do Norte e estava um pouco


frio. Eu gosto do frio. É um ótimo tempo para ler.

— Eu o comprei este final de semana e planejei usá-lo hoje. Estas nuvens


não vão estragar meus planos. — Rose faz uma carranca para o céu.

— Com certeza as nuvens estão decepcionadas por não conseguirem fazer


você ser uma pessoa normal. — solto um bocejo involuntário e minha
amiga apenas ri.

Começamos nossa caminhada. Ao meu lado, Rose parece ser baixinha,


mesmo usando suas botas de salto fino. Ela está vestindo jeans e uma
camiseta preta. Eu apenas coloquei um moletom marrom, meu jeans
surrado e tênis.

— Passou a noite acordada lendo, de novo?

— Você me conhece bem demais. — respondo entre um bocejo.

— Não precisa ser Sherlock para saber disso. Sua cara está horrível. —
Mesmo com o insulto, a última parte saiu mais como um carinho.

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— Valeu por não me deixar esquecer, Rose.
— Às suas ordens! — Ela bate uma continência. Não consegui segurar a
risada.

— Qual o livro da vez?

— Não adivinhou essa? Estou decepcionada, detetive.

— Você é tão engraçada, Kate! — ironiza.

— Ei! Eu posso ser muito engraçada quando quero.

Rose bufa. — Sim, certo.

— E para a sua informação, eu estava lendo Entre o Agora e o Nunca.

— De novo? Sério?

— É meu preferido. — dou de ombros.

— Esquisita. — balança a cabeça. O vento frio acaricia meu rosto enquanto


atravessamos a rua. — Alguma notícia do Mike?

— Não. — Não consegui disfarçar a melancolia em meu rosto.

— Ele é um idiota. Fica viajando praticamente todos os Estados Unidos


naquela moto e deixa você aqui. — afirma revirando os olhos. — Bem,
pelo menos aqui você tem a mim e não vou te abandonar.

— Ele tem seus motivos. — olho para o chão.

Rose bufa.

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— Ele ao menos te liga para dar notícias!
Não queria ter que pensar muito em Mike e na saudade que ameaça rasgar
meu peito. Fazem 435 dias desde que o vi pela última vez aqui, em
Fayetteville. A última vez desde que o abracei e segurei sua mão. Mudo de
assunto para afastar esses pensamentos.

— Como vão as coisas com o Sean?

O olhar de Rose deixou claro que ela sabia o que eu estava fazendo, mas
resolveu deixar passar.

— Vão bem. Maravilhosamente, na verdade. Assistimos um filme na casa


dele ontem. — Rose fala com um olhar cheio de lembranças.

Viramos a esquina da padaria da senhora Flora. Ela não parece gostar


muito de mim e de Rose depois que quebramos uma das prateleiras de
doces alguns anos atrás.

— E aconteceu mais alguma coisa?

Não tenho certeza se quero ouvir a resposta.

— Claro que sim. Você me conhece há sete anos e ainda precisa perguntar
isso? Sempre acontece algo a mais quando Sean e eu estamos entre quatro
paredes, Kate. Além do mais, pensei que fosse um detetive melhor. — Ela
me olha sarcástica.

— Ah, não enche. — replico e Rose ri.

Bom. Era bom que Sean não estava sendo um idiota, provocando mais
brigas para o péssimo histórico deles.

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Avistando a escola, reprimo um suspiro. A primeira aula é de química,
como todos os dias.
— Não pareça que está indo para uma prisão, Kate. Carolina do Norte não
é o melhor estado do mundo, mas você bem que podia parecer mais
animada por vir as aulas do seu último ano. — viro-me para a ruiva que me
encara como se fosse minha mãe. — Então, vamos? — Ela prende meu
braço com o dela e começa a me puxar.

— Não.

Rose ri. — É só uma aula de química, Kate. O que de ruim pode acontecer?

— Kate? Você pode ficar por um instante, por favor? Eu gostaria de falar
com você.

O Sr. Murphy, meu professor de química, me chama quando estou a


caminho de sair da sua sala.

— Sim? — volto para dentro onde só restam ele e eu.

Sr. Murphy está sentado em sua cadeira, então fico em pé atrás de sua mesa.

— Eu queria falar um pouco com você. — começa com calma.

Meu coração acelera.

Não gosto de conversas que começam com "eu queria falar um pouco com
você." e que venham do meu professor de química. Matéria essa, que eu
sou péssima.
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— Certo...

Ele suspira e tira os óculos.

— Kate, suas notas não estão agradando muito. Você tem muita
dificuldade de aprender o assunto e costuma errar questões de nível fácil.
Sugiro que procure alguém para te ajudar nisso, rápido. Você sabe o que
acontece se continuar assim, não sabe?

Eu sabia. Seria um "Adeus faculdade!", em vez de "Olá, faculdade!".

Engulo em seco.

— Eu sei.

— Bom. — Sr. Murphy me observa. — Você tem capacidade, Kate. Eu sei


que tem. Apenas precisa encontrar o caminho certo para isso. — Ele sorri.
— Gostaria de acrescentar alguma coisa?

Balanço a cabeça.

— Não.

— Tudo bem, então. Você pode ir. Tenha um bom dia.

— Igualmente. — dou um sorriso amarelo. Caminhando até a porta, penso


na minha situação.

Merda!

Saio para o corredor até minha próxima aula. Como vou conseguir alguém
para me ajudar com isso? Como vou conseguir passar em química e ir para
a faculdade?

11
"Você apenas precisa encontrar o caminho certo para isso." Qual caminho?
Não conhecia ninguém, mesmo em quase 4 anos ali.

Eu definitivamente estou muito ferrada.

Estava terminando de ler Entre o Agora e o Nunca quando meu telefone


toca. O nome "Mike" aparece na tela.

Clico para atender o mais rápido possível, porque não sabia se no segundo
seguinte aquela chamada ainda estaria ali.

— Alô? — respondo esperançosa.

— Hey, irmãzinha!

Oh, meu Deus. Era um alívio ouvir a voz dele.

— Como você está? Onde você está? Tem ideia do tamanho da preocupação
que estava por você?

— Ei, ei! Calma, Kate. Estou bem, não se preocupe. Você sabe que eu fico
alguns períodos sem comunicação. É normal.

Normal?

— Não tem nada de normal ficar dias sem falar comigo. — respondo
asperamente.

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— Eu só tenho alguns minutos antes de sair para o trabalho. Você quer
mesmo gastar esse tempo brigando?

Eu não queria.

— Tudo bem. — respiro fundo e mordo o lábio inferior. — Quando você


volta para Fayetteville?

— Bem... É difícil dizer. Estou em Las Vegas agora e ainda não tenho
previsão de quanto tempo ficarei aqui. Depende do quão rápido vou ganhar
dinheiro suficiente para ir te ver.

Ele está em Las Vegas? Mesmo com essa informação excitante, meu
coração murchou com a resposta.

— Eu sinto a sua falta. — Lágrimas queimam em meus olhos. — E odeio


que toda essa situação separe a gente, que te leve para longe e me deixe
sem saber se você está vivo ou não.

— Ei! Eu não vou te deixar sozinha, ouviu bem? Você vai me ver milhares
de vezes até se cansar. Não pense que vai se livrar de mim tão fácil,
irmãzinha. Além do mais, fui eu quem escolhi essa vida.

E isso me entristecia mais ainda.

— Desculpe. — enxugo as malditas lágrimas que insistem em cair. — São


apenas crises idiotas.

— Não quero que se desculpe por isso. Nunca. Você está bem?

— Não vamos falar de mim. Você...

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— Nem comece. Prometi cuidar de você e é isso que estou fazendo, mesmo
que de longe.

— Só não queria perder o pouco tempo que temos falando sobre meus
problemas.

Ele suspira.

— Logo mais, teremos tempo de sobra para falar sobre o que quisermos, eu
prometo. Agora é hora de conversar sobre você. Pode começar
respondendo.

— Você é um chato, sabe disso, não sabe?

— Sim, e você me ama por isso.

Aquela era uma verdade e tanto.

— Tudo bem. — pigarreio. — Eu estou bem, quase nunca tenho insônia,


mas quando ela vem, uso um livro pra distrair. Mamãe não trouxe nenhum
outro cara para casa então, por enquanto, está tudo bem. Eu apenas… sinto
sua falta. — A linha fica muda por alguns instantes. — Mike?

— Eu nunca vou perdoá-lo pelo o que ele fez.

Sei exatamente de quem Mike está falando.

— Ele não foi o culpado por nada disso.

— É claro que ele foi. Tudo o que está acontecendo foi resultado da
decisão dele. Se não tivesse ido embora como o covarde que é, a nossa
família não teria se transformado no que se transformou. Eu ainda me

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lembro dos malditos pesadelos que você tinha todas as noites e me matava
ver como você estava sofrendo e não poder fazer nada! — grunhe.

— Não podemos culpar o papai pelos nossos problemas. Você mesmo


disse, foram escolhas nossas.

— A minha pode ter sido, mas não foi a sua. E não o considero mais como
pai. Para mim, ele está morto. — puxo uma respiração diante do ódio nas
palavras de Mike.

Era tão doloroso ver o que a minha família se tornou.

— Desculpe. Eu sei que você ainda o ama. Não devia ter falado essas
coisas. — Sua voz volta a ser gentil.

— Tudo bem. — forço-me a falar por entre o nó na minha garganta. Ouçoo


praguejar e murmurar algumas palavras.

— Eu preciso ir. Meu turno no bar irá começar. Fique bem, ok?

— Ok.

— Eu amo você, irmãzinha. Mais que tudo. — Ele ainda me chama assim,
mesmo sendo gêmeos.

— Também te amo. Mais que tudo.

O outro lado fica mudo e, mais uma vez, meu irmão vai embora.

Olho para o livro na minha cama por alguns segundos. Esta vai ser mais
uma noite sem dormir, pelo visto. Muitas emoções foram despertadas e não
terei uma boa noite de sono, com meus pensamentos viajando em minha
mente e em meu coração.

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Deito de costas para a cama e pego o livro, na esperança de me perder nas
linhas e esquecer todos os sentimentos que fazem meu coração quebrar.

Mais. Uma. Vez.

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2

"Meu coração é, e sempre vai ser seu."

Suspiro, olhando para o livro, enquanto penso em como seria maravilhoso


que um Edward Ferrars dissesse isso para mim. Apesar de me identificar
mais com Marianne do que com Elinor.

Termino mais um capítulo de Razão e Sensibilidade, da minha escritora


favorita, Jane Austen. Nunca me canso de ler as obras dela. Sempre trazem
uma reflexão e paixão em cada página, sendo uma mulher escritora do
século XVIII.

Vivo imaginando o meu final feliz, desde pequena. Talvez seja porque eu
leio muitos romances e sonho com o cara perfeito, mas gosto de pensar que
terei um bom futuro.

Faz uma semana desde a última vez que tentei entrar em contato com Mike
e já estou cansada de não ter notícias dele.

Levanto da cama, onde estava lendo, e caminho até a minha parede de


prateleiras à minha frente.

Meu quarto não é muito decorado. Tenho quatro prateleiras: uma para séries
de fantasia e drama, outra para os clássicos e duas para romances.

Na parede seguinte, que fica ao lado da porta, tem uma estante média onde
guardo os de suspense, terror, ficção e poesia. Minha mesa de escrivaninha

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fica abaixo das prateleiras e também tem livros em cima dela. Minha
mochila do colégio guarda mais três livros e meu Kindle.

Coloco Razão e Sensibilidade na segunda prateleira, entre Persuasão e


Orgulho e Preconceito, duas outras obras da Jane.

Olho a hora no relógio do celular. São 16:30. Tenho que ir para a casa de
Rose agora para ajudá-la com Inglês antes que fique tarde demais para o
jantar.

Ao descer as escadas em direção à cozinha, escuto sons que parecem...


Não. Não pode ser. De novo não. Me apresso nos últimos degraus,
praticamente correndo.

Chegando lá, encontro minha mãe sentada no balcão da cozinha, beijando


um cara, que está entre as pernas dela.

— Mãe? — Eu sabia que era ela, mas tinha que ver seu rosto para meu
cérebro acreditar que aquela era realmente a minha mãe.

As duas cabeças se viram na minha direção quando escutam minha voz. A


mulher que me deu a luz me olha com boca e olhos arregalados, enquanto
o homem teve a decência de parecer envergonhado.

Ele parece estar na casa dos 40, mas usa roupas mais jovens. Jeans rasgado
e as mangas de sua camisa azul marinho estavam nos cotovelos.

— Kate! — exclama ela.

— Mãe, quem é ele? — procuro conter a minha raiva e vergonha. Sua


postura vacila e o cara pigarreia, o que a lembra de descer do balcão e
ajeitar suas roupas. — Você fez de novo?

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— Kate, não faça assim. Não é como você está pensando. — Ela olha
nervosa de mim, para o homem mortificado, no canto da cozinha.

— Estou pensando que vocês estavam praticamente se comendo aqui na


cozinha enquanto eu estava em casa. E me parece que isso — aponto para
os dois. — é exatamente o que eu estou pensando.

Minha mãe suspira.

— Filha, eu…

— Você não me respondeu. Quem é ele? Ou é mais um que você não sabe o
nome? — cruzo os braços.

— Kate! — ralha, ao mesmo tempo que o sujeito diz "Richard".

— Não aja como se isso fosse algo anormal para você. — cuspo, ignorando
Richard.

— Pare com isso! — diz como se realmente agisse como minha mãe nos
últimos tempos.

— Judie. — Richard tenta acalmá-la. — Nós... Nós não sabíamos que você
estava em casa.

— É claro que não. — zombo. — Por acaso, você se deu o trabalho de me


perguntar? — encaro a minha mãe.

— Desculpe, Kate. Eu errei feio com isso, mas estou tentando. — Ela me
olha nervosa.

— Oh, sim, sim. — solto sarcástica. — Vejo que está pondo muito esforço
na sua tentativa com o Richard. — O nome do sujeito saiu em desgosto.

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Ele franziu a testa diante com o jeito que falei seu nome.

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Kate! — diz minha mãe perdendo a paciência. — Você não precisava
ter visto isso, eu sei, e peço desculpas por isso. Mas não perca seus modos
falando dessa maneira comigo e com Richard.

— Os modos? Você quer me dar lição de moral sobre modos?

Ela passa, novamente, as mãos pela roupa.

— Kate, não...

— Olha só, não quero ouvir mais nada. Mudei de ideia. Vou sair agora.
Assim vocês podem continuar a festinha que estavam fazendo antes de eu
interromper. — dou meia volta e sigo para a liberdade.

— Kate! Kate, ainda não terminei1 Volte aqui! Katherine! — Ele vem atrás
de mim, mas bato a porta da frente, deixando-a com seus gritos e Richard
para trás.

Ainda escuto quando ela pede perdão a Richard pelo meu comportamento.
O meu comportamento? Quase rio da hipocrisia.

Me apresso nas escadas da entrada e caminho até a casa de Rose.


Aproveito a caminhada para acalmar o sangue fervendo em minhas veias
depois da discussão com a minha mãe. Mais uma para a lista.

Não leva muito tempo até chegar no meu destino, já que Rose mora na
mesma rua que eu.

Antes mesmo que eu possa bater na porta, ela se abre.

— Kate.

— Ah, oi, Sean. — O namorado de Rose sai da casa.

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Ele é um cara bonito. Só vestia preto e couro, tem pele negra, olhos escuros
e o cabelo bem raspado. Não chegava a ser careca, apenas curto.

Só queria que, assim como a beleza exterior, sua personalidade também


fosse legal. Sean fumava, um hábito que eu odeio quando ele fazia por
perto, porque não suporto o cheiro do fumo. Havia também a parte de ele
desvalorizar a namorada incrível que tem. Essa, com certeza, é a pior de
todas.

Sinceramente, não sei o que Rose viu em Sean além da aparência.

— Ela está se arrumando. — Anuncia.

Sean deixa a porta aberta e passa por mim, com suas botas pretas fazendo
barulho, em direção ao seu jeep.

Como eu não o notei ali?

— Se arrumando? Vocês vão sair?

— É o que parece. — Ele se encosta-se à porta do motorista e pega um


cigarro e isqueiro do bolso.

Sério mesmo?

— E para onde vocês vão?— franzo a testa.

Rose não me disse nada sobre pular a nossa reunião.

— Por que quer saber? — sopra fumaça.

O desgraçado sabe que isso me irrita e faz mesmo assim.

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Bem, porque temos estudo marcado para esta mesma hora. — cruzo os
braços e olho com impaciência.

Não devia ter que explicar nada a ele.

— Bem, então você tem que falar com ela. — aponta para a casa.

— Vocês brigaram de novo? — semicerro os olhos em sua direção.

— Não é da sua conta, Kate. Mas para te deixar tranquila, — Ele sopra
mais fumaça. — Não tenho intenção de magoar minha namorada. — Sua
sobrancelha se ergue.

— Sim, é bom saber. — me aproximo devagar. —


Ela é minha melhor amiga. Machuque-a… e você morre.

A risada de Sean não melhorou em nada a situação.

— Claro que sim. — A fumaça chega até minha e faço o possível para
permanecer neutra. — Acho melhor você entrar. Rose já deve estar
terminando. — E volta a tragar o cigarro.

Respiro fundo e vou em direção à porta, deixando-o com seu cigarro


imundo e seu humor patético. Meu dia já não andava muito bem para ter
que lidar com Sean.

Passo pela sala estilosa e subo as escadas de madeira até seu quarto. Não
me incomodo em bater na porta, apenas abro e entro.

— Rose, que história é essa de que você e Sean vão sair no momento da
nossa hora do inglês?

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— Oi para você também, Kate. — ela estava terminando de prender o
longo cabelo num rabo de cavalo no seu espelho da penteadeira.

— Então, vai me dizer para onde vão que nem se incomodou de me avisar?
— cruzo os braços.

— Kate, me desculpe, ok? — passa a mão pela roupa. — Rose escolheu


uma blusa florida azul e jeans skinny. — Nós discutimos e vamos sair para
ficarmos bem.

— Você me implorou para fazermos essa reunião porque precisava de um


reforço em inglês e agora me diz que desmarcou porque brigou, de novo,
com Sean?

— Casais brigam, Kate. Isso é normal. Eu tenho que ir. Podemos marcar
para outro dia? Não quero ficar num clima chato com Sean, nem com você.

— Tudo bem. Faça o que quiser. — levanto minhas mãos.

— Kate. — ela suspira e caminha na minha direção. — Olha só, não era a
minha intenção furar com você, ok? Eu ia te mandar uma mensagem para
você não precisar vir aqui. Por favor, baby, não fique chateada. Eu estudo
mais do que o dobro se você quiser.

Examino-a com cuidado.

— Você gosta mesmo dele, não é?

— Muito. — Rose abre um sorriso brilhante. Seus olhos estavam cheios de


emoção apenas por mencionar o nome de seu namorado.

Deixo escapar um longo suspiro. Não tinha muito o que fazer mesmo. Não
podia acabar com a alegria dela.

24
Desde que ele se lembre de que você é a melhor pessoa do mundo, não
te faça sofrer e não te roube mais de mim nas horas de estudo, ok, eu não
vou ficar chateada. Apenas desta vez. — acrescento.

Rose dá gritinhos e me abraça.

— Você está bem? — pergunta.

Suspiro.

— Você percebeu?

— Você é minha melhor amiga. Nenhum detetive conseguiria ver melhor


do que eu. — Ela me aperta.

— Briguei com a minha mãe. — me separo do abraço. — Te conto os


detalhes mais tarde.

— Você sabe que eu te amo, não sabe? — Rose olha dentro dos meus
olhos, me lembrando de todos os sete anos de parceria.

— Eu sei. E também te amo. Agora vai logo antes que eu mude de ideia, te
prenda aqui e te faça comer todos os livros que eu te der.

Mal registrei quando ela me solta e corre até as escadas.

— Até amanhã!

Solto uma risada.

Aquela é a ruiva que me ilumina nos dias escuros. E eu lutaria para ser o
seu Sol, se ela um dia precisasse.

25

Carregar 6.000 tijolos cobrou seu preço. Mal sinto meus braços quando
levo o copo de água à boca. Até a água daqui é ruim.

Jogo o copo descartável no lixo e pego minha mochila do chão.

É sábado e não eu não tinha aula, então vim fazer trabalho extra nas
construções. Quase desisti quando vi o que tinha que fazer. Não que eu seja
preguiçoso, apenas querendo algo melhor que levantar tijolos e ganhar
pouco para isso.

— Até amanhã! — diz o meu supervisor, Adam.

Ele é jovem, porém mais velho que eu. Devia ter 22 anos. Um loiro de
olhos azuis, que trabalha na parte de finanças da construtora.

Retorno seu cumprimento com um aceno de cabeça, cansado até para falar.

Já está escuro. Deve passar das 20:00 horas.

Adam vai até sua moto, uma KTM 200 Duke, e liga o potente motor,
coloca o capacete e deixa o local.

Estávamos construindo um prédio de negócios. Não sei ao certo de que


tipo, mas não importa. Estou ganhando algum dinheiro para sustentar a
mim e ao meu pai. Quase não é o suficiente, mas não tem nada melhor que
isso, por enquanto.

26
Respiro fundo para me dar a coragem de caminhar até a minha casa.

27
Moro numa parte pobre de Fayeteville, uma cidadezinha da Carolina do
Norte.

Parando em frente a minha casa, velha e descascada, noto que muitas luzes
estão acesas no andar de baixo; sinal de que meu pai está em casa, com
outras pessoas. Seus companheiros de jogos, provavelmente.

Não estou no clima para lidar com nenhum deles, mas não tinha nenhum
outro lugar onde eu pudesse ficar. Com um suspiro, subo os degraus de
madeira velha e escuto a conversa alta dos bêbados. Coloco a chave na
fechadura. O que se mostrou uma tarefa desnecessária, pois ela não estava
trancada. Meu pai nunca a tranca. Isso era um problema enorme
considerando o lugar onde morávamos.

Entro em casa e fecho a porta.

— Phil? Acho que o Phil chegou. Phil, é você? — meu pai pergunta,
arrastando-se nas palavras. Algo muito comum. — Ah, Ben. Achei que já
estava em casa. — A figura baixinha e pesada aparece no pequeno hall de
entrada.

Ele não disse isso de forma receptiva. Sua voz profunda e arrastada, quase
como um rosnado, não facilitava.

Meu pai é um cara gordo, com barba que dava um certo nojo. Seus cabelos
estão perdendo a cor e não há nada feliz na aparência dele.

— Fui fazer trabalho extra hoje.

Tento esconder minha repugnância pelo seu cheiro de cerveja e suor.

— Sei. — resmunga. — Recebeu algum dinheiro?

28
Meu corpo tenciona com a pergunta. Eu não tinha o hábito de dizer quando
eu recebia e onde eu guardava o dinheiro. Meu pai não é uma pessoa
confiável se tratando do assunto.

— Não. Não sei quando vou receber. — Eu sabia. Era na segunda-feira.

Ele permaneceu ali, me encarando. Não sabia dizer se estava tentando se


manter são ou descobrir se eu estava mentindo.

— De qualquer forma, estamos ficando sem cerveja. Vá comprar mais


algumas caixas.

— Não tem nada aberto a essa hora.

— Então fabrique as malditas cervejas. — grunhe.

Ele está apenas tentando me irritar. Com os anos, aprendi a distinguir


quando ele falava sério e quando a bebida falava por ele. Na maior parte do
tempo, era a segunda parte.

— Tony, cadê você, cara? — Um homem grita da cozinha.

— O Phil está com você? — Outro pergunta.

— Não demore. — meu pai resmunga para mim e volta para seus amigos.
— Não era o Phil. Kurk, cara, o que está fazendo?

Subo as escadas a caminho do meu quarto. Lá, pego uma toalha e vou para
o pequeno e único banheiro, no final do corredor.

Tomo um longo banho ao som de I Wish You Were Here de Pink Floyd,
no celular. Não devia demorar tanto, porque a água poderia faltar, mas não
me importo com isso neste momento.

29
Deixo que a melodia da música acalme meu espírito.

Sempre canto o refrão "Como eu queria que você estivesse aqui" para a
minha mãe. Pensar nela é uma triste melancolia e constante lembrança da
minha culpa, mas também é consolo e paz. Um paradoxo muito estranho,
tipo as músicas do AC-DC.

Pego meu velho celular, que já está tocando Born To Be My Baby do Bon
Jovi, em cima do vaso e saio do banheiro. Tudo o que quero agora é
dormir, penso quando fecho a porta do meu quarto.

Desligo a música e deixo o aparelho em cima da cama e então procuro


minha calça xadrez na cesta de roupas. Faz muito tempo que eu não tinha
um guarda roupa. Depois de vestido, me deito na cama e abro o Google no
celular.

Já que não vou conseguir dormir tão cedo por causa do barulho lá embaixo,
decido continuar minha busca pela família da minha mãe, mesmo sabendo
que não vai dar em nada, depois de tanto tempo.

Suspiro e deixo o celular de lado. Estendo o braço para pegar o meu violão.

Ainda deitado, dedilho algumas notas. Apenas isso já me acalma e me traz


a sensação de não estar só.

Eu o chamo de Big Ben. Big Ben foi o amigo que nunca tive, o cara que
ficou comigo todas as horas da minha vida por 10 anos e não me deixou
cair no poço da insanidade. É estranho que um objeto assim possa salvar a
pessoa de se perder na própria cabeça, mas foi o que aconteceu comigo.

Alguns minutos depois, o cansaço me vence. Devolvo Big Ben para o seu
canto, ao lado da minha cama e ponho as mãos debaixo da cabeça.

30
— Boa noite, Mommy Cookie. Espero que eu sonhe com o seu sorriso
hoje.

Falar aquilo todas as noites antes de dormir, talvez, diminuísse o peso da


culpa pelo o que aconteceu.

Há um som ao longe.

Se prestar bem atenção, é Gimme Shelter do The Rolling Stones. Não para
de tocar e, apesar de amar muito essa banda, não quero escutar nada além
do silêncio agora.

Abro meus olhos e desligo o meu celular.

Suspiro.

Hoje é segunda, então acordo antes do Sol nascer. Alguém tem que deixar
a casa limpa e eu passo o dia inteiro fora na escola e depois no trabalho. O
único jeito é fazer tudo agora, porque quando chegar do trabalho estarei
cansado demais até para respirar.

Saio da cama. Pego meu celular e desço para o andar debaixo.

Como muitas vezes, meu pai estava bêbado demais para subir as escadas
para o próprio quarto, então ele dormiu no sofá. Queria que ele parasse
com isso antes que tivesse uma doença grave.

O sofá ficava no meio da pequena sala e tinha um móvel que sustentava a


velha tv. Não tinha uma boa qualidade de imagem, nem tv a cabo.
31
Passo pela sala, deixando meu pai e seus roncos para trás. Vou até a
cozinha e não consigo reprimir um suspiro. O cômodo estava uma
bagunça. Garrafas de cerveja na mesa e pelo chão e até mesmo comida por
todo o lugar. Vou levar um tempo apenas arrumando aqui.

Começo juntando as garrafas e os sacos plásticos. Depois, limpo a mesa e o


chão com a vassoura. O passo final é lavar a pilha de pratos na pia. Eu
gostaria de ter um lava louças.

Agora, vou até a lavanderia que fica do lado de fora e é composta por
apenas uma pia velha. Deixo que a água encha o tanque, então começo a
lavar a roupa. Uma máquina de lavar também economizaria muito do meu
tempo.

Entro em casa, já conseguindo ouvir os roncos dele. Ignoro-o e começo a


limpar a sala. Com isso, pego o balde que lavei a roupa, e encho-o com
água. Depois, vou até o banheiro, que fedia horrivelmente, e começo a
lavá-lo também. Aproveito e tomo um banho.

Depois de me arrumar vou ate a cozinha para ver se tem algo para comer
nos armários. Nada além de pratos velhos e copos. Fecho as portas. No
caminho eu compro algo.

Saio de casa, fechando com chave a porta da frente. Coloco os fones de


ouvido e aperto play para tocar a playlist de Guns N' Roses.

Sempre foi meu sonho ser um astro do rock. Ficar famoso para poder viver
sem se preocupar se vou conseguir comprar comida para o dia seguinte.
Um dia, eu vou conseguir. Apesar de às vezes achar que isso é algo
impossível para alguém como eu, me inspiro em outras histórias como a do
Mick Jagger, Kurt Cobain e Michael Jackson. Isso, e a minha paixão pela
música, me dão esperanças de que chegará a minha vez.

32
Depois de alguns minutos de caminhada, eu chego na padaria da Flora. Ela
é uma velha amiga e sempre passo para visitá-la, antes de ir para a escola.

— Bom dia, Fluflu! — Fluflu é um apelido que dei à Flora.

— Oh, bom dia, querido! — Ela estava arrumando os pães na vitrine


quando cheguei.

Assim que me viu, abriu um grande sorriso, o que me fez sentir um pouco
especial.

— O que vai querer hoje? — vem em minha direção e me abraça, como


sempre.

Fluflu está nos seus 60, mas ainda linda e com a alma jovem. Sempre tem
algo rosa com ela. Hoje era uma presilha na lateral do cabelo grisalho.

Seu óculos está pendurado na gola de sua camisa branca. Também usava
uma saia de tecido azul e saltinhos que faziam barulho quando ela andava.
Fofa.

— Hmmmm. — finjo pensar. — Você não viria junto com o pacote, não é?

Isso arranca uma gargalhada dela.

— Ora, seu galanteador. Estou muito velha para esse tipo de coisa.

— Não pense que porque tem a idade que tem, seu espírito não é jovem,
Fluflu. Amor não tem idade e nunca é tarde para ele.

— Você é sábio demais para a idade que tem, menino. Bem, você ainda
não me disse o que quer. Que tal um daqueles donuts com bastante
chocolate como você gosta? Ou os pretzels açucarados?

33
Meu estômago roncou com as palavras "donuts", "bastante ", "chocolate ",
"pretzels", e "açucarados".

— Você quer me engordar mesmo, não é?

Ela bufa. — Claro que sim! Não vê como está magro? Não tem se
alimentado direito? — Ela cerra os olhos para mim, fazendo seu rosto ficar
mais enrugado.

Bem, não tenho me alimentado direito, e também estava longe de estar


nessa classificação de magro, porém não vou dizer isso a ela.

— Eu não estou magro, Fluflu. São apenas seus olhos.

Flora revira os olhos e bufa novamente.

— Pare de enrolar, menino! Já não está atrasado para a escola?

Merda!

— Ok, uh... Vou querer 3 pretzels e um copo de café forte.

— Só isso? — Me olha com horror, como se eu tivesse me despido em sua


frente.

— Sim. Qual o problema?

— Meu bom Deus! Você acha que isso é o suficiente para sustentar um
homem do seu tamanho? Ah, Cristo! Eu pensei que você tinha algum juízo
nessa cabeça. Você não pode sair da minha loja levando somente isso. Tem
que comer alguma coisa para encher a barriga, senão pode acabar
desmaiando por aí.

34
Ela desapareceu, com seus saltos bonitinhos, atrás de uma cortina
murmurando estas palavras. Levou algum esforço para segurar a risada que
insistia em sair depois do discurso indignado de Fluflu.

Alguns minutos depois, ela reaparece com uma caixa e um copo de plástico
em mãos.

— Tome. — Fluflu entende as mãos.

— O que é isso?

— Mas que pergunta! É o seu café da manhã.

Quase engasgo.

— O que? Não, não, Fluflu. É muita coisa. Não posso aceitar.

Ela zomba. — Sim, sim, certo. Ande, garoto! Não tenho o dia todo e você
já está atrasado.

— Mas...

— Sem "mas".

— Mas...

— Benjamin Hunter! — me encolho quando ela fala meu nome completo.

Suspiro. — Tudo bem. Você venceu. Mas vou pagar por tudo.

Flora nunca me deixava pagar quando vinha aqui e disse que iria me
procurar com uma espingarda se deixasse de vir por isso.

35
— Você não vai me pagar nenhum centavo. Você vai, apenas, dar um beijo
na minha bochecha velha e sair por aquela porta em direção ao colégio.

Junto os lábios contra um sorriso.

— Mandona!

Vou até ela e estalo um beijo numa bochecha e mais um na outra. —


Obrigada, Fluflu.

— Não me agradeça por isso! — pude ver que escondia um sorriso. —


Tome. Agora, se apresse.

Pego a caixa e o copo de suas mãos. Isso era muito mais do que apenas
comida e nós dois sabíamos disso. Nunca poderei agradecê-la por tudo o
que fez por mim durante todos os 5 anos que a conheço.

— Ei, seu nome é Google?

— Não, por quê? — um sorriso surge em seus lábios.

— Porque você é tudo o que eu tenho procurado. — beijo sua bochecha


novamente. — Até mais, Fluflu.

Ela ri. — Galanteador.

Saio da loja e caminho até a escola, que não está tão longe. O último
período começou há 3 semanas e já estou ansioso para começar a
faculdade.

Me ponho a andar porque o dia de hoje vai ser difícil. Como todos os
outros.

36
4

— Pronta para a sua sessão de tortura?

— Uau, Rose! Você é tão engraçada!

— Sim, eu sei. Nasci com este dom.

Reviro os olhos enquanto saímos da minha casa em direção ao colégio.

É mais um dia nublado e fico feliz por usar meu casaco cinza de algodão.
Rose não parece se importar muito com o tempo, já que está vestindo saia
preta com uma blusa de manga curta rosa. Ela tinha seu próprio jeito de
ser, a sua identidade e não escondia de ninguém. Nem o clima consegue
pará-la.

— Eu estava aqui pensando...

— Não sabia que você era capaz de tamanha façanha. — interrompo.

— Ora, mas vejam só! Katherine Laurentis está sendo engraçadinha,


senhoras e senhores! Isto é um aviso dos céus? É por isso que o tempo está
nublado assim?

— Você é sempre tão dramática.

— Bem, alguém tinha que ser.


37
Eu não tinha tanta certeza disso.

— Sean e eu transamos ontem.

— Hey, Rose! Você se lembra de quando eu disse que não queria saber
sobre a vida sexual de vocês? Então, eu quis dizer exatamente isso.

— Não, Kate, você não está entendendo. Nós fizemos sexo, foi bom, mas
não parecia certo sabe? Eu tive uma sensação que tinha algo errado e isso
acaba comigo.

— E você já falou com ele sobre isso? — Viro meu rosto para Rose,
preocupação fazendo meu coração acelerar.

Ela estava com a testa franzida. Odiava ver que estava preocupada assim e
mais ainda se o motivo fosse o idiota do namorado dela.

— Sim, sim, claro. — falou rapidamente. — Bem, é besteira minha. Não se


preocupe com isso.

Paro de caminhar e seguro seu braço para que ela parasse também e olhasse
para mim.

— Isso não é besteira, Rose. Se você não está feliz no seu relacionamento,
fale com ele sobre isso. Se Sean não fizer nada a respeito, então ele não te
merece.

— Como assim, Kate? — pergunta incrédula. — De onde você tirou que eu


não estava feliz? E por que Sean não me merece?

— Não quis dizer...

38
— Olha só, para, ok? Eu sei que você não gosta muito do Sean, mas eu o
amo, Kate. Então, por favor, entenda isso e pare de ficar falando essas
coisas. — Rose volta a caminhar, rápido, desta vez.

Continuo no mesmo lugar, totalmente incrédula com o que Rose acabou de


falar. Ela não quis minha ajuda. Não quis nem me ouvir. Em vez disso, fez
as minhas palavras parecerem ofensas contra os dois.

Rose não... não é assim.

Mas o que diabos está acontecendo aqui?

O sinal toca avisando que a primeira aula vai começar. Saio do banheiro e
vou até a sala de química.

O sr. Murphy está vindo da direção oposta e chegamos ao mesmo tempo na


porta da sala.

— Bom dia, Kate! — abre a porta e me permite entrar primeiro.

— Bom dia, sr. Murphy! — sorri. Rose não faz aula de química comigo, o
que era um alívio. Não queria uma tensão sobre nós agora.

— Bom dia, pessoal! Hoje vamos fazer uma coisa diferente. — Eu gosto
do Sr. Murphy, mas odeio a matéria que ele ensina. Era pior quando ele
vinha com "algo diferente".

— Vocês farão um trabalho em dupla hoje. Eu decidirei os pares com base


nos seus desenvolvimentos acadêmicos. Pensei que pudesse ser de grande
39
ajuda para alguns que têm dificuldade na minha matéria, trocarem ideias
com quem tem mais domínio.

Os olhos do Sr. Murphy recaem sobre mim por alguns segundos a mais.
Ótimo. Serei obrigada a socializar e ser a responsável por este "algo
diferente".

— O que eu quero que vocês façam — continua ele. — é que respondam


alguns questionários e anotem como conseguiram chegar às respostas.
Depois compartilhem suas anotações com sua dupla. Fácil, não? Agora,
vamos lá. Diana, você fica com a Julia. Peter, você vai com a Nina. John,
você com o Daniel. Kate, você e Benjamin. Lucy...

Paro de ouvir o sr. Murphy, para procurar quem é o tal Benjamin. Acho
que já ouvi o professor chamar seu nome algumas vezes, mas não consigo
lembrar quem ele é. Não tenho o costume de prestar atenção nas pessoas ao
meu redor e não sabia o nome da maioria das pessoas que estudam na
mesma sala que eu.

— Kate?

— Sim? — volto meus olhos para o Sr. Murphy.

Ele sinaliza para o lugar em que devia ir. Balanço a cabeça para mostrar
que sabia onde Benjamin está. Na frente.

Pego a minha mochila caída do meu lado, para ir até ele, mas ele começa a
caminhar em minha direção. Alto. Ele é um cara alto.

— Oi. — cumprimenta antes de sentar na cadeira ao meu lado.

— Oi. — remexo-me no lugar.

40
Benjamin tem presença. Talvez fosse seu corpo enorme, comparado ao
meu.

O Sr. Murphy começa a distribuir os questionários entre as duplas até


chegar em nós.

— Boa sorte. — diz olhando para mim por cima dos óculos.

Evito suspirar ao olhar o conteúdo. Química orgânica.

— Você aprendeu bem a matéria, certo? — Murmuro ainda focada no


questionário à minha frente.

— Não se preocupe. — Sou atraída pelo sorriso em sua voz. Eu tenho que
confessar: Benjamin ainda é mais bonito quando sorri. — Você não?

— Odeio química — dou de ombros, sendo sincera.

— Então parece que o Sr. Murphy acertou na escolha das duplas. — diz
sorrindo mais ainda. Ele tinha algum senso de humor.

— Vamos ver. — resolvo descontrair também.

Benjamin sorri e começa a trabalhar no questionário. Espero que ele saiba


mesmo o que faz.

Eu tenho que admitir, ele é muito bom mesmo.

41
Nos últimos minutos, ele conseguiu fazer o trabalho praticamente sozinho e
até conseguiu me ajudar com algumas questões. Fiquei surpresa com a sua
inteligência e eficiência em resolver o questionário. O Sr. Murphy estava
muito contente quando nos deu nota máxima por isso. Eu mesma estou
contente com isso.

Obrigada, Deus, por colocar este anjo de cabelos negros para me salvar do
monstro chamado Química Orgânica!

— Você realmente aprendeu, não é? — pergunto quando o sinal toca.

— Eu poderia dizer um "Eu te falei", mas sou muito bonzinho para isso.
— diz fechando a mochila.

— Oh, sim. — zombo, rindo.

Ainda estou olhando para o grande 'A' na borda superior do papel. Me


pergunto se Benjamin gostaria de me ensinar a matéria, já ele é tão
inteligente e soube me ensinar bem. Mas então, desisto, pois a ideia parece
ridícula já que acabei de conhecê-lo e a possibilidade de ser rejeitada é
grande demais para lidar.

— Te vejo por aí. — Se despede.

— Igualmente. — Sigo-o para fora da sala. Acompanho Benjamin com os


olhos.

Devia ser crime ser tão bonito e inteligente assim. As costas de Benjamin
são largas e a pele um pouco bronzeada, o que indica que fica no sol por
bastante tempo. Os cabelos pretos parecem que não tiveram um bom corte
há um tempo, mas isso não o deixa menos bonito.

42
Suas roupas são bem simples: camisa preta e outra xadrez por cima, com os
botões abertos, jeans surrados e… uma bela bunda. Mas porque eu estou
me importando com isso?

Em vez de ficar pensando nessas coisas inúteis, lembro-me de quando ele


estava fazendo os cálculos e respondendo às questões. Arrasto os pés para
a próxima aula. Ele seria mesmo de grande ajuda.
5

Acabei de receber uma ligação do instrutor de obras, dizendo que não


íamos trabalhar nesta tarde. O que é uma droga, porque eu ia receber o
dinheiro justamente hoje.

Depois da escola, volto para casa com um péssimo humor. Ainda tenho
algum dinheiro na carteira, então vou ao pequeno mercado perto de casa e
compro o necessário para fazer o jantar.

Estou me aproximando de casa e vejo que o Sr. Finlay está no seu lugar
habitual, na sua varanda.

— Hey, Sr. Finlay! — cumprimento-o quando passo por sua casa. Quase
sempre ele está na varanda, em sua cadeira de balanço. Às vezes, até
parece que está esperando alguém.

— Olá, garoto. — responde com sua voz danificada pelo tempo.

— Como está hoje?

43
Me aproximo da sua velha casa, como sempre faço, para ele não ter que
forçar muito a voz. Está vestindo um suéter azul marinho e um cobertor
nas pernas. A pele negra parecia mais ressecada que o normal.

— Anda tomando sua dose de insulina?

— Sim, garoto. Eu estou bem. O melhor que a idade me permite.

— Ah, mas o senhor está em forma. Talvez até consiga sair para dançar
com uma bela moça, não?

O velho Finlay riu.

— Não existe outra mulher para mim desde que minha esposa se foi.

Seu rosto assume a expressão que mais vejo nele: saudade.

O amor que o Sr. Finlay tem por essa mulher é algo que eu quero ter um
dia. Ele está sozinho naquela casa por muito tempo, mas não parece se
sentir assim. É como se ela estivesse sempre com ele, em seu coração.

Eu duvidava que teria tal coisa na minha vida.

— Ela com certeza está feliz com isso.

Ele faz um movimento de dispensa com a mão, porém eu sei que, em seu
coração, aquelas palavras o fortaleceram.

— Bom, eu preciso de um banho e preparar o jantar. — levanto a mão com


as sacolas de comida.

Sr. Finlay bufa.

44
— Você sabe o que eu acho sobre isso. Não era você quem devia estar
fazendo o papel de pai.

— Sim, sim. Mas eu realmente preciso fazer esse jantar. — abro um


sorriso.

Ele bufa novamente.

45
Vá, garoto! Antes que eu me levante daqui dar uns bons socos em seu
pai. — Minha risada é alta.

— Tenho certeza de que seriam os piores que ele já levou. Tchau, Sr.
Finlay!

— Até mais, garoto.

Sorri mais uma vez antes de ir embora.

Chegando em casa, destranco a porta e entro. Meu pai ainda está jogado no
sofá e roncando como um trator.

Levo um tempo preparando o jantar: pão com geleia de frutas e


refrigerante. Deixo no balcão da pia e cubro com um pano. Subo para
tomar banho.

Desta vez, não gasto muita água, apenas o necessário para tirar o suor e
ficar limpo. Enrolo a toalha na cintura, quando termino e vou para o
quarto. Visto uma calça moletom cinza e uma camisa preta. Eu tinha muito
preto em minhas roupas. Algumas eram manchas.

Pego Big Ben e começo a dedilhar. Algumas vezes, só preciso escutar o


som das cordas quando meus dedos se movem sobre elas. Fecho os olhos e
penso na minha mãe.

Sempre foi assim.

É como se minha cabeça já estivesse programada para pensar nela


automaticamente quando eu toco ou escuto música sozinho. Me pergunto
se isso é uma coisa boa ou ruim.

— I'm so sick and tired. Try to turn the tide. So I'll say my goodbyes.

46

Laugh, laugh, I nearly died.

Canto o refrão de Laugh I Nearly Died baixinho.

Há dias que é muito difícil pensar na minha mãe. Apenas murmuro o resto
da canção enquanto dedilho os acordes.

A música termina e coloco meu violão de volta no lugar.

Vou para as escadas, mas antes de pisar em um degrau, ouço resmungos na


cozinha e sei que meu pai está acordado.

— Pai? — chamo quando chego na cozinha.

— Ah, você está aí! Onde está a cerveja que deixei guardada aqui? —
pergunta e aponta para geladeira quase sem nada dentro.

Preciso trabalhar mais horas extras para conseguir fazer as compras esse
mês e pagar as contas, penso com um suspiro.

Coloco dois dedos na ponte do nariz.

— Você bebeu todas ontem, pai.

— Como assim eu bebi? Eu lembro muito bem de ter deixado algumas


latas aqui. Vai ver que foi você quem bebeu e tá escondendo o jogo. — diz
ele ficando irritado.

Lá vamos nós, de novo.

47
Não pai, eu não bebi. Você sabe que eu não bebo essas coisas. Ontem
você estava com seus amigos e acabaram com toda a cerveja e comida que
tinham aqui. — começo a ficar irritado também. Encaro com raiva aquele
rosto velho e mal cuidado do meu pai.

Hoje não é um bom dia. Raramente era.

— Isso é o que você diz. — resmunga — Como você fez naquele dia em
que sua mãe morreu. — diz amargamente e eu prendo a respiração.

Ele sabe como eu odeio que traga esse assunto a tona em momentos como
este, mas ainda assim, trás para me machucar. O problema é que ele
consegue.

Cada. Droga. De. Vez

— Não foi minha culpa — murmuro, mesmo sabendo que, no fundo, eu sei
que foi.

— Você também disso isso! — grita, batendo a mão no balcão e


derrubando uns copos de plástico no chão. — Você disse muitas coisas
Ben, mas eu não acredito em nenhuma delas. Nenhuma, entendeu? Eu não
sei porque ainda estou com você. — Os lados de sua boca descem em
desgosto.

— Eu também não sei! — explodo. — Não sei porque me deixa ficar aqui
já que me odeia tanto. Não sei porque ainda me vê todos os dias debaixo da
mesma porcaria de casa. — Lágrimas começam a queimar nos meus olhos
mas não vou dar a satisfação pra ele me chamar de fraco.

Não hoje.

48

— Eu acho que sei sim. É porque você quer alguém para culpar pelo que
aconteceu e não admitir sua parcela de culpa nisso, porque você também
foi culpado! Podia fazer alguma coisa e não fez então agora fica
descontando todas as suas frustrações no seu próprio filho!

Meu pai me olha com fúria.

— Abaixe esse tom, seu moleque ingrato. Você não pode falar comigo
dessa maneira. — ele se enrola em algumas palavras. — Você, seu
bastardo, não faz nada além de sentar essa sua bunda idiota no quarto e
toca aquela merda de violão.

Ouvir meu pai me chamar daqueles nomes era difícil. Eu já devia estar
acostumado, já que é a bebida tomando o lugar das palavras dele, mas só
estou cansado de tudo isso.

Respiro fundo.

— Aquela merda de violão? Aquela merda de violão foi a única coisa que
ela me deixou. É a única lembrança que eu tenho dela. E não fico apenas
"sentado por aí tocando violão". Sou eu quem trabalha duro para colocar o
mínimo de comida nessa casa enquanto você gasta seu dinheiro com
bebidas de jogos. Sou eu quem limpa suas roupas e deixa a casa arrumada,
então não fale mais comigo dessa maneira porque você perdeu esse direito
no momento em que deu as costas pra mim para ficar com a bebida. —
minha garganta se fecha.

— Quem você acha...

— Eu também a perdi! — Meus olhos ardem e minha vista começa a


borrar. — Eu também sofri e ainda sofro por não ter a droga de uma
fotografia para me lembrar. Eu me esqueci do rosto da minha mãe, pai,
porque você queimou tudo o que tinha dela!

49
— Você não entende nada. — cospe.

Você não quer se lembrar dela!

— Eu lembro toda merda de dia!

— MAS EU NÃO! — berro, segurando as lágrimas. — Não me lembro do


seu rosto, da sua voz, do seu cheiro, de nada! A merda de um nada.

— Isso tudo é culpa sua! A culpa é sua, droga! — Ele começa a tropeçar.

— Eu sei.

Só queria que você mentisse para mim uma vez sobre isso. Saio de casa
deixando-o com seus gritos e me permito chorar um pouco.

Estou tão cansado disso. Cansado de sentir culpa, cansado dele, cansado de
ter que sempre trabalhar como um burro de carga e ganhar tão pouco.

Eu apenas cansei da minha vida. Às vezes fico pensando se irei fazer como
ela fez; se eu aguentarei mais do que ela aguentou.

Enxugo minhas lágrimas, ponho os fones de ouvido, coloco Laugh I Nearly


Died e faço uma corrida até o Mazarick. Ignoro o Sr, Finlay na varanda.
Sei que ele ouviu tudo e sei que deve estar se contorcendo de raiva, mas a
última coisa que eu quero é ver ou falar com alguém.

Eu preciso ir para o Mazarick.. Preciso, desesperadamente, daquele banco,


daquela... Paz.

50

Estou a caminho do Mazarick, perdida nos meus pensamentos. Olho para o


céu.

É de tardezinha, o sol está quase se pondo. Me abraço e continuo andando


até conseguir ver o lago. Olho para o banco e percebo que alguém, um
homem, já está sentado lá. Hesito em seguir em frente.

Venho aqui para ter paz, sozinha. Não sei se quero companhia agora e
talvez ele também não queira. Além disso, parece ser algo... Íntimo. Um
silêncio que diz muitas coisas, que revela suas preocupações e problemas.
Não é algo para se compartilhar com um estranho. Mas… ele não parecia
ser tão estranho.

Caminho até a lateral do banco, para ver o perfil da pessoa, procurando


reconhecê-lo. Quando chego perto o suficiente para visualizar quem está
sentado, percebo que é o mesmo cara que fez dupla comigo na aula de
química, mais cedo. Benjamin. Quase rio da coincidência. Parece ser coisa
de livro.

Ele não percebe minha presença se aproximando e tiro este tempo para
observá-lo.

Sua expressão parece… triste, cansada. Os ombros largos estão curvados e


os olhos estão distantes. A melancolia em seu rosto... Não sei como é
possível, mas ele lembra a mim mesma.

51
Benjamin está murmurando uma canção que eu não reconhecia. É triste e
lamentosa. Exatamente como ele agora. Isso fez com que meus pés dessem
mais alguns passos até estar de pé ao lado do banco.

— Oi. — cumprimento-o pela segunda vez hoje.

Benjamin se vira pra mim e pisca, como se voltasse do lugar onde sua
mente estava. Quando olha para mim, percebo que ele me reconheceu e...
Todo o ar do parque se esvai.

Os olhos dele... Os olhos de Benjamin são tão lindos. Os azuis mais


bonitos que já vi. Não sei porque não havia percebido antes. Talvez seja
porque agora eles estão mais vibrantes, como se estivessem implorando por
alguma paz.

Ele pisca novamente e me dá um sorriso torto.

— Oi — responde. — Quer sentar?

Eu devia ter dito não. Devia ter inventado alguma desculpa e o deixado
com sua privacidade. Talvez fosse o efeito do sol poente nesses olhos
azuis, mas apenas me sentei ao seu lado.

— Então, — começo. — você vem sempre aqui?

Aquela, com certeza, era uma pergunta estúpida, mas não consegui pensar
em nada melhor. Ele ri e eu queria costurar minha boca. Pelo menos
alguém está se divertindo.

— Qual a graça? — murmuro.

— Essa é a cantada mais velha que conheço.

52
— Você entendeu o que quis dizer, espertinho. Isso não foi uma cantada.
— Acabo sorrindo involuntariamente.

Benjamin suspira, como se estivesse finalmente respirando melhor.

— Eu sei. E respondendo a sua pergunta, venho aqui toda vez que preciso
de paz.

Me surpreendeu o fato de o motivo dele ser igual ao meu. E justamente


neste banco.

Ficamos um tempo em um silêncio confortável, apenas olhando o sol,


beijando o horizonte e refletindo no lago. Inspiro fundo, sentindo a
atmosfera do parque.

— Do quê precisa de paz?

Não sei bem o que me levou a fazer aquela pergunta.

Alguns segundos depois, ele responde: — De tudo. — levanta os ombros,


como se aquilo acontecesse com frequência.

Assenti, porque eu realmente entendia.

— Do quê precisa de paz? — ele pergunta.

Hesito em responder, decidindo entre falar as mentiras habituais ou a


verdade. Nós estamos aqui e mesmo ainda sendo desconhecidos, algo
familiar se passa entre nós.

— De tudo. — deixo a verdade sair.

Voltamos ao silêncio. Nós conversávamos sem olhar um para o outro.

53
Nossas cabeças estavam voltadas para a obra prima à nossa frente.

O Sol está quase desaparecendo por completo. Aquele momento se tornou


o meu favorito do dia: quando o horizonte está manchado pelo laranja forte
e quente do entardecer; como se o Sol estivesse lutando, sangrando numa
batalha cruel e perdida para não desaparecer e a escuridão reinar. Mas
apesar disso... Nós sabemos que ele nascerá de novo, num novo dia. Esta é
minha inspiração, para continuar aguentando.

— Eu... eu não... — paro. Não sei o que estou tentando dizer. De repente,
senti uma necessidade de me abrir com Benjamin, mas não sei o que dizer
ou fazer.

Seus olhos demonstram que ele entende, no entanto.

— Ei! Está tudo bem não estar tudo bem, de vez em quando. — fala com a
voz tão suave e carinhosa que sinto vontade de chorar.

Como um cara assim se disponibiliza a me ajudar sem nem me conhecer?


Não pensei que isso acontecesse na vida real.

— E se... não for só... às vezes? — sussurro. — E se a dor não... for


embora? Ainda vai estar tudo bem?

— Há dores que nunca vão embora. — confessa.— Nós apenas


aprendemos a seguir em frente e a lidar com ela. Nunca fica mais fácil, só
não é mais estranha. — Há algo em sua voz... Algo como compreensão.
Como se ele tivesse passado por isso inúmeras vezes.

Viro a cabeça em sua direção. Benjamin ainda está olhando para frente.

— Você também está aqui por causa dessa dor?— pergunto baixinho.

54
Benjamin fica um minuto em silêncio, ainda olhando para o lago, até que
dá um pequeno aceno de cabeça.
— E-eu... — sua voz quebra e parece que ele está prestes a desmoronar

— Está tudo bem não estar tudo bem. — repito o que ele me disse, com um
meio sorriso.

Desta vez, seus lindos olhos azuis me encaram e compartilhamos um


momento de parceria. Duas almas partidas e silenciosas fingindo serem
lindas e alegres para os outros não verem quão obscuras são por dentro.
Nós entendemos o que isso significa. Nós nos entendemos.

Sorrimos como se nossa felicidade fosse verdade e nossas vidas perfeitas.


.

Depois do que pareceram horas, sendo apenas alguns segundos, eu lembro


que preciso ir para casa. Já estava ficando escuro, agora que o Sol se foi.

— Eu tenho que voltar. — me levanto.

— Ok. Vou ficar mais um pouco. — Benjamin me acompanha com os


olhos.

— Te vejo na escola. — sorrio, meio sem graça.

— Até amanhã. — Seus dedos fazem o gesto da continência e devolve o


sorriso, suas safiras azuis olhando diretamente em meus olhos.

Aquela atenção me fez dobrar os dedos do pé e me pôr a andar. Mas


lembro de algo e dou meia-volta.
55
— Ei! — eu chamo.
Ele vira a cabeça na minha direção, com a testa franzida. — Está tudo
bem?

— Está sim. Apenas queria saber o nome da canção que você estava
murmurando antes de eu chegar.

— Quer dizer que você estava bisbilhotando. — Ele sorri, com uma
sobrancelha arqueada.

E, simples assim, Benjamin volta a ser brincalhão. Gostaria de ser melhor


em sorrir quando só quero chorar.

— Não tinha como não ouvir.

Ele dá uma pequena risada. — Sim, sim. Era Hurt, do Johnny Cash.

— Era tão triste. — penso alto.

— É, ela era sim. — responde com um sorriso torto.

"O homem não foi feito para a derrota. Um homem pode ser destruído, mas
não derrotado." As palavras de Hemingway em O Velho e o Mar me vêm à
mente.

Encaro seus olhos e sinto que fiquei presa a eles. Eu não queria ir embora.
Queria conhecer mais dele, do que sua alma falava através dos olhos azuis.

Isso já está ficando constrangedor.

— Bom, — pigarreio, voltando a mim. — Eu vou indo. Tchau, Benjamin.

56
— Por favor, me chame de Ben. Benjamin é um nome muito longo e
impessoal.
Eu bem que gostei da liberdade de chamá-lo pelo apelido.

— Tudo bem, então. E você pode me chamar apenas de Kate.

— Era o que eu tinha em mente. — Seus ombros sobem, e Ben sorri de


novo.

Fico alguns segundos olhando-o, e depois abaixo a cabeça para esconder


um sorrisinho. Estou sendo idiota novamente.

— Certo. Hmm. Tchau, Ben.

— Tchau, Kate.

Vou me afastando, ainda com o maldito sorriso, mas antes de ir muito


longe, consigo ouvi-lo murmurar:

— "Se o meu sorriso mostrasse o fundo da minha alma, muitas pessoas, ao


me verem sorrir, chorariam comigo."

"Nós precisamos conversar."

A mensagem que Rose me enviou continha apenas essas três palavras.


Fazem três dias desde que não andávamos juntas para a escola. E me
matava cada segundo deles.

57
Interrompendo minha leitura de Misto Quente de Charles Bukowski, digito
uma resposta.

"É, eu acho que sim."

A resposta de Rose veio quase que imediatamente.

"Posso ir na sua casa?"

Era tão estranho perguntar isso. Nós não tínhamos nem o costume de avisar
que estávamos indo à casa da outra.

"Sim."

"Tudo bem. Então abre a porta."

O que?

"Como assim?"

"Eu estou em frente a sua casa, Kat".

Meu coração se aquece pelo apelido. Rose costumava me chamar assim


porque a pronúncia é a mesma que "gato" e ela ama gatos.

Levanto da minha cama e olho para a rua pela janela. Rose estava parada
olhando para o celular, mas percebe minha presença e acena com o braço.
Não deixo de sorrir.

Saio do quarto e desço as escadas em direção à porta.

— Oi. — cumprimenta, assim que abro a porta.

58
Ela está... Hesitante.

— Oi.

É um clima constrangedor. Não me lembro de ficarmos tão hesitantes uma


com a outra e isso me entristece.

— Entra. — Me afasto para dar espaço para ela entrar.

— Sua mãe está em casa? — pergunta atrás de mim enquanto eu fecho a


porta.

— Não. Vamos subir.

Tomo a frente e caminho até as escadas. No silêncio gritante entre nós,


apenas nossos passos ecoam. Chego à porta, deixando a ruiva entrar
primeiro. Ela vai até a cama e se senta na ponta. Fecho a porta, mas não me
movo.

— Seria melhor se você se sentasse.

Nego com a cabeça e cruzo os braços.

— Estou bem assim, obrigada.

Rose suspira. Seus dedos começam a brincar entre si. Ela está nervosa.

— Kate, eu sinto muito. Esses dias que não estamos indo juntas para a
escola, nem nos falando, me mata por dentro.

— Não foi eu quem escolheu estar nesta situação.

— Eu sei. — fala quase exaltada.

59
Me dói vê-la desse jeito, mas não consigo esquecer a decepção que foi
quando ela escolheu Sean, que é um babaca, ao invés de mim, que sempre
estive com ela.

— Eu não estou feliz com isso, Kate. Acredite em mim.

— Então não entendo porque não falou comigo antes, porque não tentou
resolver as coisas conversando comigo.

Ela abaixa a cabeça.

— Eu fiquei com vergonha e não sabia como falar com você.

— Somos amigas há 7 anos, Rose. Um pedido de desculpas seria um bom


início.

— Ok, eu entendo que errei. Me desculpe, tá?

Exalo uma respiração. Vou até minha cama e me sento ao seu lado.

— Sinto muito por ter sido tão dura com você. — olho para ela.

— Não, não. Você estava certa. Eu que fui uma idiota com isso tudo.

Não discordo.

— Vocês estão bem?

Rose dá de ombros.

60
— Estamos bem. Não discutimos nos últimos dias e Sean tem sido bastante
atencioso. Até me trouxe flores e chocolate outro dia. — Um sorriso surge
em seus lábios.

Apesar de não gostar nada de Sean, fico feliz em saber que ele tem cuidado
de Rose como ela merece. Ou pelo menos tenta.

— Bem, então fico feliz que estão se entendendo. —estico a lateral da


minha boca num sorriso torto.

— Eu amo você, Kat. Sinto muito pelas besteiras que fiz.

— Eu perdoo você, Rose. E eu também te amo, mas não faça isso


novamente. Você não vai gostar das consequências.

Ela gargalha e me dá um abraço apertado, do tipo que amo receber.

— Senti sua falta, babe. — murmura em meu ouvido.

— Eu também senti a sua. — aperto meus braços ao seu redor.

E então, estamos bem de novo.

— Ok, quais são as novidades?

Solto uma risada.

— Foram apenas três dias, Rose. Você fala como se fossem três anos.

— Bem, muita coisa pode acontecer em três dias. Além do mais, pareceram
três anos para mim. — calor inunda meu coração quando ela diz isso.

61
— Não aconteceu nada de importante. Aulas, estudos e minha mãe
discutindo comigo sobre conhecer melhor o tal de Richard.

— Sério? O mesmo de sempre.

— Minha vida não é uma das mais interessantes. Sempre o mesmo de


sempre, é o meu lema.

Ela bufa.

— Você precisa sair mais.

Reviro os olhos para a típica frase de Rose.

— Na verdade, eu conheci um cara. Fiz uma atividade de química com ele


em umas das aulas do Sr. Murphy.

— E como você não me contou sobre isso logo? Kate, estou decepcionada.
Essa é a melhor notícia dos tempos. Katherine Laurentis conheceu um cara,
senhoras e senhores!

— Dramática. — Murmuro.

— Anda. Me conte sobre esse cara misterioso. Nome, altura, cor dos olhos,
cabelo, corpo, nome dos pais, onde mora...

— Para quê tudo isso? — engasgo com uma risada.

— Nunca se sabe quando se depara com um psicopata ou serial killer. —


responde, levantando os ombros como se fosse a coisa mais normal do
mundo.

62
— Tudo bem, Sherlock, mas sinto informar que não tenho todas essas
informações pessoais sobre o cara. O nome dele é Benjamin. A única
matéria que fazemos juntos é química.

— E vocês nunca conversaram ou flertaram?

— Falando assim, até parece que você não me conhece há sete anos.

— Às vezes esqueço que você não gosta de pessoas. Mas chega de papo
furado. Vamos para o que é realmente importante: ele é gostoso?

Começo a tossir.

— Isso é mesmo necessário?

— Você não é uma garotinha, Kate. Você tem 18 anos e eu quero saber se
o tal de Benjamin é gato ou não.

— Bem, eu acho que sim.

— Terá que fazer melhor que isso, querida.

— Eu não sou sua querida.

— Kate, eu estou interessada em coisas que não sei. — geme. Ela já está
cansada das referências que faço ao livro A Seleção.

— Ok, hmmm. Ele é mais alto que eu, tem um corpo bem malhado e
grande, os cabelos pretos e olhos azuis. — Aqueles olhos me enfeitiçaram.
— Nós nos demos muito bem. Ele parece ser um cara legal.

E intenso. Muito intenso.

63
— É, ele parece servir. — Rose parece pensativa.

— Servir para quê? — sinto que já sei a resposta.

— Para te dar as melhores aventuras da sua vida.

Engasgo.

— Rose!

— Qual é, Kate. Toda mulher precisa de cuidados.

— Você é tão pervertida. — ponho as mãos nas bochechas. Agora estou


pensando em Ben fazendo exatamente o que ela disse. Maldita Rose. — Eu
odeio você.

— De nada. Agora você terá os melhores sonhos.

A idiota sorri como se tivesse me dado o melhor presente de Natal.

Temo que isso seja verdade.

64
7

O sol está quente.

É um daqueles dias em que você gostaria de estar numa praia e não


trabalhando para derreter até os órgãos.

— Ei, Ben! — Adam grita de sua sala que, na verdade, era uma tenda.

— Estou indo! — grito de volta.

Deixo cair a pá que usava para colocar o entulho no carro de mão, e tiro os
óculos de proteção. Caminho até a tenda que serve de secretaria. Há muito
barulho de máquinas, além de homens trabalhando com equipamentos de
construção.

Tenho quase certeza de que hoje vou receber o pagamento. Finalmente.

— Hey, aí está você! — diz quando me vê passar pela entrada da tenda.

Ele está sentado atrás de uma mesa cheia de papéis e envelopes. Adam tem
um dos envelopes na mão.

— Isto é seu. — ele estende o braço com uma tatuagem de tigre.

Pego o envelope de sua mão e abro. Eu já imaginava que seria o dinheiro,


mas não fazia ideia que seria menos do que eu ganhava.

— Está faltando $50 aqui. — comento, olhando nos olhos dele.


65
— Sim, eu sei. Veja bem, não é nada pessoal. Todos os empregados da
nossa empresa tiveram juros.

— Juros? — levanto uma sobrancelha.

— Sim, bem, você sabe, por não terem trabalhado nos últimos 3 dias.

— Desculpe, o que? Você está dizendo que não vamos receber porque não
trabalhamos os 3 dias que vocês nos disseram para não trabalhar? É isso
mesmo?

— Olha só, não foi nossa culpa também. Entenda, alguns investidores
marcaram uma reunião de urgência e tivemos que sair às pressas, sem ter
como deixar alguém para supervisionar as obras.

— E o que isso tem haver com a gente? — cruzo os braços.

— Ben, nós tivemos prejuízos com esse período. É por isso que o
pagamento de todos diminuiu desta vez.

— Eu ainda não entendo como isso tem haver comigo e com os outros.

Adam suspira.

— Cara, eu até te acho legal. Você trabalha bem e tudo o mais, mas isso
aqui é uma questão maior que eu, ok? Só estou seguindo ordens. Agora, se
não tem mais nada a tratar, tenho muita papelada para atualizar e mais
pagamentos para entregar.

Levei alguns instantes para controlar minha raiva. "Violência não é a


resposta", repito a frase da minha mãe e finalmente saio da maldita tenda.

66
Sei que Adam apenas estava seguindo ordens como todo mundo, mas isso
não me impediu de querer bater naquele rostinho de boneca dele.

Ando por entre barro e concreto, máquinas e homens, até chegar numa
tenda onde guardávamos nossas mochilas. A minha tinha um bolso falso
que Fluflu fez, então eu escondia dinheiro e meu celular ali.

Ainda frustrado pela conversa com Adam, volto para o trabalho, debaixo
do sol escaldante.

É finalzinho de tarde e estou no meu lugar favorito, que, coincidentemente,


também era o de Kate.

Hoje não trouxe meu violão, mas, geralmente, ele está comigo. Em vez
disso, Dust in the wind do Kansas está tocando no meu celular. Ponho os
fones de ouvido, fecho os olhos e inspiro fundo.

Essa música me lembra que não somos eternos e devemos aproveitar cada
segundo das nossas vidas, porque o tempo passa voando. Num momento,
estamos aqui, no outro, não.

"Somos poeira no vento. Tudo o que somos é apenas poeira no vento."

Gostaria de poder ficar aqui para sempre. É difícil saber que, quando eu
abrir os olhos, a minha realidade vai cair sobre mim. Vou ter que lidar com
meu pai bêbado, meu trabalho cansativo e mal pago e meus estudos.

Abro meus olhos e pisco para a luz alaranjada do pôr do Sol. É tão lindo
que arranca um pequeno sorriso meu.
67
— Essa vista me lembra você. — começo a conversar com a minha mãe.
Um hábito frequente que me ajuda a não esquecê-la.

— Quando isso vai acabar, mãe? Eu estou tão cansado. Já perdi as


esperanças para o papai. Não acho que ele vai mudar, que vai me amar de
novo. — levanto a cabeça para o céu, deixando que os últimos acordes da
música preenchessem os meus ouvidos.

— Queria que estivesse aqui. Sei que digo isso todos os dias, mas sinto sua
falta. Mesmo não lembrando do seu toque, do seu cheio, da sua voz. Eu
sinto sua falta.

Tristeza me abate e, rapidamente, deixo os pensamentos de lado.

— Eu amo você, Mommy Cookie.

É a última coisa que digo antes de me levantar e seguir para casa. A música
acaba e o sentimento de perda fica.

Depois de caminhar alguns metros, olho novamente para o lago e noto que
tem alguém sentado no banco. Sorri com o pensamento de que pudesse ser
Kate.

Desejo que a pessoa, seja ela quem for, encontrasse o que procurava, se
estivesse procurando por algo. Acho que todos nós estamos, apenas não
sabemos o quê, na maior parte do tempo.

Somos vagantes procurando nosso destino, nosso sentido de viver. É


estranho como somos tão diferentes e ao mesmo tempo tão iguais.

68
Tiro os fones e os guardo no outro bolso da minha jeans surrada e suja.
Ainda estou com a minha roupa de trabalho. Quando chego perto de casa,
vejo que o Sr. Finlay está sentado numa cadeira de balanço na sua varanda.

— Boa tarde, Sr. Finlay! — aceno com a mão.

— Oh! Ei, menino! Aí está você! — fala o mais alto que sua voz rouca
permite.

Chego mais perto para que não precise se esforçar muito.

— Aconteceu algo?

Ele bufa.

— Apenas o inútil do seu pai que saiu há pouco, muito bêbado para
lembrar seu próprio nome.

Merda! Meu pai fez de novo.

— O senhor viu para onde ele foi?

Parece que meus planos de descansar assim que chegar em casa, foram
para o ralo.

— Deve ter ido para aquele bar imundo.

— O Burdurick's?

— Sim, isso. — resmunga.

— Bem, eu vou procurá-lo. Obrigado, Sr. Finlay. — Me viro para ir em


direção ao bar favorito do meu pai.

69
— Não! Não faça isso! — tenta gritar.

— Por que não? — me aproximo novamente.

Ele toma fôlego.

— Você se mata por aquele velho ingrato e ele só sabe se perder por aí e
dormir no próprio vômito. Deixe-o com sua bebida e vá descansar. Estou
velho, mas ainda enxergo o cansaço no seu rosto, rapaz.

Suspiro.

— Bem, ele é meu pai. Eu sei que ele é difícil às vezes, mas não deixa de
ser o único parente que eu tenho.

— Era para ele estar cuidando de você e não o contrário. — cospe. É


verdade, mas não queria admitir isso em voz alta, então apenas dei de
ombros.

— Vá para casa, Benjamin. Seu pai vai voltar para ela quando se lembrar
onde fica. Não ouse negar o pedido de um velho, rapaz.

Meus lábios se contraem para impedir um sorriso diante dos olhos


semicerrados do Sr. Finlay.

— Jamais faria isso. — digo em tom de brincadeira, mas a verdade é


totalmente o oposto.

Não posso simplesmente abandonar meu pai lá.

70
— Vá. — sua cabeça se vira na direção da minha casa, ao lado da sua. —
Tome um banho e descanse. Amanhã será mais um dia para enfrentar e
você precisa estar com suas energias renovadas.

— Tudo bem. Não esqueça sua dose de insulina.

Um pequeno sorriso se abre nos cantos da boca dele. — Eu sei meu dever,
garoto. Não vou morrer tão cedo, como espera.

Sorri.

— Tchau, Sr. Finlay.

Ele apenas acena com a cabeça e eu sigo para casa.

Quando fecho a porta da frente, solto um suspiro. O Sr. Finlay vai ter que
me desculpar, mas não consigo ficar tranquilo sabendo que meu pai está
bêbado e pode ter caído em algum lugar.

Vou para o único banheiro da casa e tomo uma ducha rápida. A água está
fria, como sempre. Quando termino, visto a primeira roupa que encontro e
pego um casaco para meu pai. Está anoitecendo então vai fazer bastante
frio. Pego meu celular, as chaves e saio.

Por sorte, o Sr. Finlay não estava à vista. Sigo em direção ao Burdurick's,
que fica alguns quarteirões da minha casa.

Depois de 30 minutos de caminhada, sem nenhuma pista do meu pai, chego


ao bar. Não se podia chamar aquilo de bar decente.

A pintura está velha e com pichações. Uma janela está quebrada. Essa é
uma área deprimente que cheirava a mijo e esgoto. Engolindo minha ânsia,
ando para a porta da frente.

71
Já se ouvia a ladainha dos bêbados de longe. Eu tinha medo de entrar ali.
Algumas pessoas podem ser perigosamente fatais quando estão bêbadas.
Eu tinha uma cicatriz nas costas para provar isso.

Dou apenas 3 passos antes de ouvir resmungos. Parei e escutei. Parecia vir
do beco escuro ao lado do bar. Devagar, me aproximo da pessoa,
esperando que seja meu pai e que não esteja machucado.

Quando chego perto o suficiente para saber quem era, solto um suspiro de
alívio por ver que era meu pai e que parecia intacto. O único problema é
que estava bêbado demais para voltar para casa andando. Vou ter que
gastar 7 dólares num táxi.

— Pai? — resmungos incoerentes são a minha resposta. — Eu vou te levar


para casa, ok? — mais resmungos.

Suspirando, ligo para um táxi. Tenho que sair logo deste lugar. Aqui não é
seguro e tem todo tipo de gente ruim.

Estou preocupado com o fato de que a qualquer momento pode aparecer


alguém e querer entrar numa briga. Não seria de todo ruim se eu estivesse
sozinho, mas o problema é meu pai desmaiado atrás de mim.

Depois de alguns minutos, que pareceram horas, o táxi chega. O motorista


me ajuda a colocar meu pai para dentro, o que se mostrou uma tarefa
desafiadora. Entramos e seguimos para casa.

Graças a Deus saímos de lá sem problemas. Quero acreditar que não vai
haver próxima vez, mas sei que vai ser uma mentira. Rezo para que ele não
se meta em encrencas. Não gosto nem de lembrar das últimas vezes.

Depois que deixei meu pai no sofá, subi para meu quarto. Estou me
sentindo um peso morto sobre a terra, mas antes de fechar os olhos, dou
72
uma olhada na matéria de amanhã e faço minha pesquisa diária sobre
minha família em Toronto. Não deu em nada, como sabia que não daria,
mas fazer isso todas as vezes, me dava um pouco de esperança.

Coloco o celular embaixo do travesseiro e ponho as duas mãos sob a


cabeça. Olho para a janela aberta, sentindo a brisa da noite entrar no quarto.

— Boa noite, Mommy Cookie. Espero que eu sonhe com o seu sorriso.

Acordei com uma animação incomum.

Eram 4:00 quando levantei da cama e escovei meus dentes. Fiz comida,
arrumei a casa, lavei as roupas e as louças, limpei a área onde ficava o
jardim, arrumei meu quarto e tomei banho. Faço isso praticamente todos os
dias, mas hoje, era diferente. Eu estava... Inspirado.

Até mesmo o episódio de ontem com meu pai apagou-se da minha mente.
Saí de casa e logo dei de cara com meu vizinho favorito.

— Bom dia, Sr. Finlay! — Desço os degraus da minha casa e vou até a
dele.

— Bom dia, garoto! Parece que está muito bem hoje. — Está tão
perceptível assim? — Qual o nome da garota?

Engasguei.

73
— O que?

— Não foi uma garota que fez isso com você? — pergunta com a voz
rouca pela idade, mas com tom de inocência.

— Claro que não, Sr. Finlay! — Ele me olha por tempo suficiente para me
deixar desconfortável.

— Se você diz. Bem, e como vai seu pai? Você foi buscá-lo ontem, não
foi?

— Como sabe disso?

— Porque você é um bom garoto.

Não sei reagir a essa resposta.

Pigarreio.

— Ele está dormindo. Encontrei-o no beco do Burdurick's. Por sorte, não


estava ferido, apenas desmaiado.

O velho Finlay bufa.

— Você faz demais por ele, garoto. O inútil devia ao menos parar de lhe
fazer mal.

Já estava acostumado com meu vizinho chamando meu pai de inútil e


outras coisas. Eu não me importava porque ele realmente era tudo aquilo,
mas jamais diria isso, então é legal ter alguém que diga.

— Eu sei. Bem, eu tenho que ir. Até mais.

74
— Eu ainda quero saber o nome da garota! — fala o mais alto que sua voz
permite.

— Er... Tudo bem. — digo obedientemente e me viro, começando a


caminhar. Ainda consigo ouvir a risada do meu vizinho.

É claro que não foi uma garota. A última com quem falei foi Kate. Eu senti
algo quando estávamos juntos, mas não creio que tenha algo a ver. Isso não
acontece desde dois anos atrás, e não acho que voltará a acontecer tão
cedo.
Deixo o assunto do meu humor de lado e ponho os fones de ouvido. Desta
vez, coloco na playlist aleatória que começa com Smell Like a Teen Spirit,
do Nirvana.

Quando chego à padaria, tiro os fones e entro no estabelecimento.

— Bom dia, Fluflu! — beijo sua bochecha direita, enquanto ela arrumava o
balcão com alguns doces.

— Olá, querido! Como vai?

Hoje Flora vestia uma saia rosa e um suéter da mesma cor, mas de um tom
mais claro.

— Estou bem. E como vai minha encantadora Fluflu?

Ela dá risada.

— Ora, eu estou radiante. — abre um sorriso.

— Ah, é? Por que toda essa radiosidade?

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— Primeiro, essa palavra não existe. — balança o dedo minúsculo na
minha direção. — E segundo, eu fiz uma surpresa para você.

— Você fez?

— Sim, e tenho certeza que você vai adorar. Só um momentinho, querido.


— Fluflu some por trás da cortina que separa a loja da sua casa. Ela mora
na parte superior da padaria. — Aqui! — volta com uma embalagem de
isopor para encomenda.

— O que é isso? — junto minhas sobrancelhas em curiosidade.

76

Olhe você mesmo. — ela estende a embalagem para mim.

— Fluflu, você sabe que venho aqui só para te ver, porque você é uma
pessoa especial para mim. Não quero que fique me dando presentes toda
vez que vier te visitar.

— É claro que eu sei de tudo isso! Mas isso não me impede de mimar
você um pouquinho. Ben, você é tão gentil e carinhoso. Merece ser
retribuído à altura.

— Olha, eu não quero parecer ingrato. Na verdade, agradeço todos os dias


porque sem você, eu teria morrido de fome.

— Não fale assim!

— Mas é verdade. Eu sou grato a você por ter me ensinado muito sobre a
vida e ter me alimentado. Mesmo que hoje eu ainda não tenha um bom
emprego e o dinheiro seja pouco, agora consigo comprar minha própria
comida. Não sou mais aquele menino assustado que passava fome. Você
não precisa fazer mais isso por mim, Fluflu.

A doce e gentil mulher à minha frente, se aproxima e põe uma mão em


minha bochecha, olhando dentro dos meus olhos. Preciso fazer um esforço
para controlar minhas emoções.

— A questão não é precisar, querido. Nunca foi. Você vem aqui todos os
dias para me ver e me dar um bom dia gostoso de receber; arranca sorrisos
e até gargalhadas minhas com naturalidade. Eu vi você crescer e se tornar
o homem generoso e forte que é hoje. Você não é mais aquele menino
assustado, mas continua sendo o meu menino. Por favor, não me prive de
presentes que eu faço com carinho para você.

77

Isso me faz sentir culpado e mesquinho.
Tudo bem. Eu vou aceitar. Desculpe se te ofendi, Fluflu.

Ela balança a cabeça.

— Não ofendeu. Tome.

Desta vez, pego o presente.

— Obrigado. — dou um sorriso torto.

— Não me agradeça ainda! Olhe o que tem dentro. — Ela parece estar bem
ansiosa sobre o assunto, então trato de fazer como ordenado.

Ao abrir a embalagem, sinto uma pontada no coração e sou levado de


volta à infância, onde minha mãe cozinhava o meu doce favorito.

— Cookies. — consegui dizer em meio ao nó em minha garganta.

Aquilo eram mais do que cookies e Fluflu sabia disso. Olho para ela e com
todo o meu coração, eu digo:

— Obrigado.

Ela balança a cabeça.

— Você merece.

Eu não merecia.

— Obrigado. — repito.

78

Vou até ela e a abraço, lutando bravamente contra as lágrimas. Fluflu
retribui com tapinhas carinhosos nas minhas costas.
Tudo bem. Já chega, porque faltam poucos minutos para eu abrir a
padaria. — ela tenta disfarçar, mas pego suas mãos enxugando as lágrimas
quando se vira para arrumar a bancada de pães.

— Certo. — Eu fungo. Olhamos um para o outro e... rimos. — Eu vou


indo.

— Se cuide, querido.

Estalo um beijo em sua bochecha.

— Até mais, Fluflu. Amo você. — abro a porta com a placa "aberto" do
lado de dentro e saio, mas não sem antes ouvir:

— Também amo você, querido.

Fecho a porta e com um suspiro, volto a colocar os fones. Pego um dos


cookies enquanto caminho para a escola. Flora tem mãos de anjo. Isso está
divino. Vou comendo até acabar e Gimme Shelter soar nos meus ouvidos.
Não demora muito e me junto a Mick Jagger cantando a letra. Essa música
reflete um pouco da minha infância. É triste, mas é como se cantar a sua
desgraça a fizesse ser menos... desgraça.

Na escola, vou direto para a lixeira mais próxima e jogo a embalagem que
guardava os cookies. Ajeito a mochila nas costas e ando pelo corredor,
mas ao virar a esquina, esbarro em alguém.

— Desculpe! — dizemos em uníssono.

Quando a garota levanta os olhos para os meus, descubro que é Kate.

79

— Olá, Kate! — dou um sorriso sincero. Ela está vestindo um moletom


cinza e calça skinny. O cabelo castanho ondulado num emaranhado

80
naquele coque baixo. Ela é simples o que me fez ter uma simpatia maior
por ela.

É estranho e confuso. Eu já queria estar perto de Kate quando nos


conhecíamos há apenas um dia.

81
9

Sempre me perguntei se viveria um clichê, romance sombrio ou romance


adulto; se conheceria um playboy rico, cavalheiro, bruxo ou feérico. Talvez
até mesmo aqueles clichês que todo mundo está enjoado.

Mas olhando para aqueles olhos incrivelmente azuis, fiquei tentada a dizer
que o amor da minha vida era um cara que estudava na minha escola, dono
de lindos olhos azuis e incrivelmente bom em química. Eu sou uma idiota.

— Kate?

Droga!

Enquanto sonhava com meu felizes para sempre, esqueci de responder o


cumprimento. Uma completa idiota, de fato.

— Ah, oi. Como você está? — odeio como fico abobalhada perto de
pessoas bonitas.

— Ótimo. — Ele abre um daqueles sorrisos de arrasar o coração. — E


você, está bem? Não querendo ser rude, mas você parece um pouco
assustada. Sou tão feio assim?

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Nem em outro planeta, cheio de alienígenas bonitos, você seria
considerado feio.

— Não, não. Desculpe, é que eu... Eu estava pensando num filme de terror
que assisti.

Bem, eu tenho medo de filmes de terror. Isso conta como verdade, certo?

— Entendo. Bom, sorte a minha te encontrar porque eu realmente estava


querendo falar com você.

O que?

— Queria? — Merda! Falei alto demais. — Quero dizer, sobre o que você
queria falar... Comigo?

Ben dá risada. Até a risada dele é bonita, droga!

— Gosto de pensar que sou uma pessoa que ajuda a quem precisa. E você
precisa de ajuda em química. Então, pensei que podia, não sei, te dar um
auxílio para passar na matéria?

Fico boquiaberta.

Não é possível que Ben tivesse adivinhado meu desejo e ainda se oferecido
para realizá-lo. É perfeito demais para ser verdade.

— E... Por que você quer me ajudar?

Seus ombros levantam. Parece que nem ele sabia.

83
— Acho que porque você parece uma pessoa muito legal. E gostaria de te
conhecer melhor. — seus lábios se juntam e os olhos vão para outra
direção.

O que está acontecendo?

O-Ok então. — respire. — Quanto você quer pela ajuda?

84

O que? — É como se eu tivesse falado alguma obscenidade ou
ofendido a mãe dele.

— Perguntei quanto você quer pela... Ajuda.

Ben balança a cabeça.

— Não, não, Kate. Não quero te ajudar com segundas intenções. Quero
ajudar por simplesmente querer. Não se preocupe com nada disso. Você
apenas precisa aceitar.

Ah, droga! Não se apaixone por ele, Kate. Não se apaixone por ele!

— Ok. Isso foi muito legal da sua parte, mas eu realmente não posso
aceitar isso assim. Quer dizer, não somos nem próximos. — Não que eu
não quisesse ser mais que isso. — Te dou 10 dólares por cada aula.

Vi nos olhos dele a batalha que estava travando entre aceitar ou não.
Talvez ele estivesse precisando muito. Não parei para pensar muito nessa
possibilidade, mas olhando para suas botas e calça gastas... Ele
definitivamente teria que aceitar.

— Vamos lá, Ben. Nós dois vamos sair ganhando. Além do mais, não
aceito sua ajuda se eu não pagar por ela. — decido colocar um pouco de
pressão.

— Tudo bem. — suspira, desistindo.

85

— Isso aí! — abro um sorriso e não perdi o segundo em que seus olhos
foram parar nele. — Quando podemos ter nossa primeira aula?

Estou livre hoje, se você também estiver.


Claro. Hoje está ótimo. — continuo sorrindo. O sinal toca. Quase
suspiro de alívio.

Ele sorri e põe as mãos dentro dos bolsos da calça. — Bem, er... — coça a
cabeça. — Vamos?

— Pode ir na frente. Estou indo daqui a pouco. — forço um sorriso que


contrasta com as batidas erráticas do meu coração.

Ele ainda me olha por alguns segundos e depois se vai. Solto um gemido
sofrido e encosto a cabeça na parede. Eu estava encrencada se tivesse que
lidar com aquele cara lindo e inteligente, na minha casa, me ensinando
química.

— Então, aquele era o tal Benjamin? — Meu coração quase decide parar
de bater e me levar direto para o céu.

— Meu Deus, Rose! Você me assustou! — ponho a mão no coração


acelerado.

— Baby, sinto muito, mas estou mais interessada naquele cara gostoso ali
do que com a sua saúde. Quero dizer, você viu o tamanho daqueles braços?

Obrigada por me lembrar que estou com sérios problemas.

86

— Falando assim, até parece que você não namora. — saio da parede e
caminho até a sala de química. — E sim, aquele era o Ben.

— Ben, é? Já estão tão íntimos assim? — vejo um vulto ruivo pelo canto
do olho. Ela está acompanhando meus passos, que estão rápidos.

Nem começa, Rose.


Começar o quê? Eu apenas perguntei. — Seu tom é de inocência, mas
sei que a desgraçada está sorrindo.

— Sei muito bem quais são as suas intenções com isso. — viro um
corredor e já consigo ver a sala de química... Graças a Deus.

— Não sei do que você está falando. Ele te chamou para sair. — Não foi
uma pergunta.

Finalmente a sala de química. Abro a porta.

— Até mais, baby. — fecho-a rapidamente.

— Você sabe que não vai escapar, querida. — cantarola.

Eu estava muito, muito encrencada.

— Errado. — É a vigésima vez que ele fala isso.

Estamos lado a lado na minha escrivaninha, que parece bem menor com
Ben aqui. Estou lutando para terminar o exercício que ele fez para mim.

87

O encontrei me esperando no portão da escola e, juntos, viemos até minha
casa. Foi uma caminhada constrangedora. Sou péssima em puxar assunto e,
na maior parte do tempo, queria achar um buraco para enfiar a cabeça.
Rose estava comigo na hora que saímos do colégio e abriu um sorriso
cúmplice quando deu mais uma boa checada em Ben. Mal sabe ela que
estou prestes a estrangular o cara se ele disser "errado" mais uma vez.

— O que eu errei agora? — choramingo.

88
Ainda bem que o homem que inventou esse assunto estava morto, senão eu
mesma mataria o desgraçado.

— Você deveria ter, primeiro, usado a fórmula que ensinei no início para
encontrar as massas molares. E na hora de relacionar as massas, deve
convertê-las para gramas. — diz tranquilamente. Não parece que estava
falando quase a mesma coisa desde que começamos a uma hora.

— Odeio química.

— Sorte sua que eu não. — e sorri. — Agora, pare de choramingar e


termine esse exercício para começarmos química orgânica. — Ele volta a
se concentrar no próprio caderno com anotações químicas.

— Como você consegue? — pergunto um pouco incrédula.

— Consegue o quê? — Ben vira-se para mim confuso.

— Ser tão bom em química e paciente comigo.

— Ah, isso não é nada. — Ele parece ter corado... — Anda, termina. Quero
pelo menos fazer um exercício de química orgânica e deixar mais dois para
você fazer e me entregar amanhã.

— Você é um professor exigente. — reviro os olhos, mas volto minha


atenção para o exercício.

— Está reclamando? — posso jurar, pelo seu tom, que ele levantou uma
sobrancelha.

— Bom, não. Ah, não enche. — Ben dá risada.

89
É tão gostoso ouvi-lo rir. Uau. Preciso ocupar minha mente com exercícios.
Ela não é um lugar seguro, principalmente para Ben, que está sendo muito
legal me ajudando em química.

Ficamos um pouco mais próximos e confortáveis um ao redor do outro


depois de algumas risadas. Ele se mostrou ser um cara bastante paciente e
engraçado, o que me ajudou a relaxar e prestar mais atenção no assunto.

Em certos momentos, eu o escutei batucar ou murmurar uma canção. O


ritmo me lembrava o rock, mas não tinha certeza. Notei que ele tinha calos
nos dedos, talvez por tocar violão. Parece que ele é um cara da música
também. Ben não parava de me surpreender sendo cada vez mais...
Interessante.

Nas duas horas que se passaram, aprendi dois assuntos, o que com os
professores da escola não leva menos que duas semanas e, às vezes, nem
aprendia.

— Cara, eu ainda não acredito que você conseguiu mesmo. — comento


ainda atordoada enquanto o acompanho até a porta.

— Você precisa confiar mais em mim, Kate. — meu nome saindo dos
lábios de Ben faz cócegas nos meus ouvidos.

Foco, Katherine!

— Aprenda, "um momento não é tudo mas você é tudo no momento". —


sinto as bochechas queimarem.

90
Droga.

— Ãn, obrigada?

— De nada. Para cada dia de lição aprendida, uma cantada de presente. —


Fico sem reação por um tempo. — Você é péssima nos dois jeitos, então
vou te ajudar a ser a melhor neles. Cada vitória em química, uma cantada
para você conquistar quem quiser. Dois coelhos numa cajadada. — ele
pisca um olho.

Dou um soco em seu braço.

— Ei! Te ensino química mais uma cantada infalível e é assim que me


agradece? — Ben afaga o braço como se estivesse doendo e finge uma cara
de magoado. Não consegui conter um sorriso diante da expressão. — Pode
tirar esse sorrisinho do rosto. Não doeu.

Faço um movimento para bater nele novamente, mas Ben consegue ser
mais rápido abrindo a porta e correndo para fora.

Desgraçado.

— Até amanhã, Kate. — bate e volta dois dedos na testa. Queria que ele
me chamasse de Kate mais vezes. Sendo sincera, gostaria que ele não fosse
embora tão cedo.

— Até amanhã Ben. E obrigada. Pela ajuda, quero dizer.

Ele me dá um sorriso conhecedor. — Mas não pela cantada?

— Por isso também. — o sorriso dele se alarga. Ben tem um sorriso muito
bonito.

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Bonito até demais.

— De nada. — Então se vira e caminha em direção a sua própria casa.

Fecho a porta. Fico um momento olhando para o nada, tentando entender


tudo o que acabou de acontecer nas últimas três horas e decidi que é
melhor não pensar. Principalmente no fato de que queria que a cantada
fosse verdade.

92
10

— Merda!

Mais uma vez, não consegui nenhum acorde legal para a minha nova
música. Faz um tempo que estou trabalhando nela e sem nenhum
progresso.

Eram 22:00 horas, mas não consigo dormir.

Desisto de tentar por hoje e coloco Big Ben no seu lugar de sempre. Meus
pensamentos vão para a minha mãe, como de costume.

Quando estou feliz ou triste, acabo tendo um lembrete de que ela está lá
comigo. Mamãe era uma pessoa tão linda e gentil. Ainda consigo me
lembrar, vagamente, das vezes em que me orientava para cuidar bem das
mulheres, porque elas eram como as lindas flores do nosso antigo jardim.
Dizia que eu devia ser carinhoso e romântico.

— Você tem que ser gentil, ok? — Não me lembro do som da sua voz.
Apenas sei que era um suave muito gostoso de ouvir.

— Sim, mamãe.

— As mulheres se apaixonam pela forma com que são tratadas. —


continuou enquanto alisava meu cabelo grande, na época. — Trate-as
como uma flor. Regue-as com carinho para vê-las crescer e poder sentir o
doce cheiro de suas pétalas. Lembre-se disso, certo?

93
— Sim, mamãe.

Ela beijou minha cabeça.

— E não se esqueça de ser fiel a pessoa que você escolher. Quando a


mulher certa chegar para você, ela vai ser a sua única. Entende?

— Entendi.

Mamãe riu.

— Você ainda é muito jovem para entender as coisas do coração. — Ela


me abraçou e me deu um beijo na cabeça. — Eu te amo, Ben.

— Também te amo, Mommy Cookie. — abracei-a de volta.

Pensar nela é um paradoxo. Às vezes é doloroso, às vezes é cura. No


momento, não consigo levar adiante.

Ficar sozinho pode ser perigoso. A nossa mente brinca com a gente e nos
leva a ter pensamentos que não nos fazem bem.

Hoje foi mais um dia de busca pela família dela, mas como todas as outras
vezes, sem sucesso. Não faço ideia se algum dia vou encontrá-los ou se
essa procura vale mesmo a pena.

Às vezes, a esperança é um saco.

Saio da cama para ir até a janela. Ponho os braços no peitoril e inclino a


cabeça para cima. É uma noite fria, então estou vestindo camisa de manga
longa, algo incomum considerando que sempre durmo apenas com minha
calça xadrez.

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Olho para as poucas estrelas no céu, me perguntando se minha mãe me
observa lá de cima. Era um pouco triste não poder ver o céu cheio delas.
Algum dia, vou viajar para um lugar longe da cidade e assim, poderei me
deitar sob milhares de estrelas.

Meu olhar desce para a figura sentada na varanda da casa ao lado. O Sr.
Finlay também observava as estrelas e percebi que ambos estávamos
sozinhos. Provavelmente, eu deveria ir fazer companhia. Ele passa a maior
parte do tempo em sua própria presença.

Pego um cobertor e visto um casaco. Antes de sair, olho para Big Ben.
Talvez o Sr. Finlay também esteja precisando de você, penso enquanto
pego meu violão.

Ao descer as escadas, escuto o ronco do meu pai. Ignoro seu corpo jogado
no sofá e abro a porta.

— Olá, Sr. Finlay! — deixo ele saber da minha presença se aproximando


da sua varanda, com o violão nas costas e o cobertor na mão.

— Olá, garoto. — Sua resposta foi baixa, por causa de sua voz rouca, mas
eu percebi o tom distante nela.

Havia algo de mais profundo ali.

— Como vai hoje? — Era a minha pergunta habitual, porém nunca vazia.
Eu sempre perguntava por querer realmente saber.

Me sento nas escadas, enquanto ele fica na cadeira um pouco atrás de mim.

Meu vizinho suspira. — Uma pergunta difícil para este momento. Tente
amanhã e talvez eu saiba a resposta.

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Não sei o que dizer.

— Posso ficar aqui, um pouco?

Segundos depois, ele responde: — Por favor.

Essas duas palavras falam mais que discursos. Há uma cicatriz dentro do
Sr. Finlay que ele ainda sentia doer. Eu entendia isso.

— Costumava me perguntar se era possível o tempo levar todas as coisas.


Tanto as boas, quanto as ruins. Me parece que só as boas se vão.

Posso sentir o peso daquelas palavras.

— Por que o senhor diz isso? — ajeito o cobertor nas pernas dele.

— Há muitos anos, eu tinha uma esposa. Éramos muito próximos, nos


amávamos como ninguém mais. Às vezes eu venho aqui fora e lembro
desses momentos. É doloroso lembrar que, um dia, eu tive tudo isso, e
hoje, nada.

Meu coração doeu ao ouvir aquilo.

— O que aconteceu? — Chego mais perto da sua cadeira de balanço.

Sr. Finlay toma seu tempo lembrando dos tempos felizes.

— Eu fiz escolhas erradas, garoto. Muito erradas. Elas me trouxeram para


onde estou agora.

Sozinho.

96
— É por isso que reclamo tanto do seu pai. — Sr. Finlay olha para mim. —
Eu me vejo nele, Ben. Todas as escolhas e atitudes. Eu fui aquele homem
um dia. A diferença é que seu pai ainda tem a sorte de ter você. Mesmo
depois de tanto tempo, você não o deixou. Ele não valoriza a sorte que tem
e eu fico muito indignado com tanta burrice. Você é um anjo, garoto. Seu
pai devia pedir perdão de joelhos por todo o sofrimento desnecessário que
fez você passar.

Nunca neguei que meu pai não era minha pessoa favorita e nem que isso
me entristecia mais que tudo.

— Quem sabe algum dia isso aconteça. O perdão, quero dizer.

Sr. Finlay bufa. — Me responda uma coisa, garoto: Você realmente


acredita nisso?

Não, eu não acreditava. Meu coração doeu. Eu apenas queria que aquilo
fosse verdade, mas sabia que era algo impossível.

Meu silêncio parece ser resposta suficiente para ele.

— Foi o que eu pensei. Chega um ponto em que a esperança parece ser


algo inútil e apenas o que resta é o casco do que um dia foi ser aquela
pessoa que acredita na mudança das outras.

— É triste se tornar aquele que não tem mais esperança. É como se não
tivéssemos mais nada.

— Sim. Mas você ainda pode ser salvo. Aproveite enquanto é jovem.
Ainda há tempo para você.

Havia?

97
— Eu acho que sim.

— Você tem sonhos, não tem?

— Sim.

— E pretende realizá-los?

— É tudo o que eu mais quero.

— Bom. E se vier alguma dificuldade no caminho, você pretende desistir


ou lutar?

— Eu vou lutar.

— Então você ainda tem esperança. Ainda pode ser muito feliz e eu sei que
será.

A lateral da minha boca sobre um pouco. Uma brisa noturna passou entre
nós e olhei para o rosto cor de ébano do meu vizinho.

— Obrigado, Sr. Finlay.

Ele tosse um pouco. — O caminho não é fácil. É tortuoso e cheio de


buracos, mas você conseguirá. Sua força e esperança vão te levar para o
melhor que a vida reserva. — Balanço a cabeça, sem saber como responder
a isso. — Vi que você trouxe seu amigo. Vai tocar?

Olho para o meu violão. — Achei que poderia ajudar. Cantar sua desgraça
torna-a menos desgraça. — sorrindo, levanto meus olhos para o Sr. Finlay
e o encontro sorrindo também.

— Talvez isso traga alguma paz.

98
Pego Big Ben.

— Que música o senhor gostaria que eu tocasse?

— Você não era nascido para conhecer os tipos de músicas que eu


costumava ouvir. Toque qualquer uma que queira. Confio que você não vai
me fazer ouvir nenhuma porcaria.

Dou risada. — Esse não é o meu estilo, Sr. Finlay.

— Bom. Vamos lá, então. Mostre-me o que sabe. — Sr. Finlay tosse
novamente.

— Pode deixar. — vou dedilhando alguns acordes até achar a música certa.
— Ok, vamos nessa.

Canto a primeira parte da música com o tom em sol e depois, apenas deixo-
a me levar.

When all the salt is taken from the sea


Quando o sal é retirado do mar

I stand dethroned
Eu permaneço destronado

I'm naked and I bleed


Estou nu e sangrando

99
But when your finger points so savagely,
Mas quando seu dedo apontar tão selvagem

Is anybody there to believe in me


Terá alguém para acreditar em mim

To hear my plea and take care of me?


Para ouvir meu apelo e cuidar de mim?

How can I go on
Como posso continuar

From day to day


Dia após dia

Who can make me strong in every way


Quem pode me fortalecer em todas as maneiras

Where can I be safe


Onde posso estar seguro

Where can I belong


Onde posso pertencer

In this great big world of sadness


Neste grande mundo de tristeza

How can I forget


Como posso esquecer

Those beautiful dreams that we shared


Aqueles lindos sonhos que compartilhamos

100
They're lost and they're no where to be found
Eles estão perdidos e não estão onde podem ser encontrados.

How can I go on?


Como posso continuar?

Sometimes I tremble in the dark


Às vezes estremeço no escuro

I cannot see
Não consigo ver

When people frighten me


Quando as pessoas me assustam

I try to hide myself so far from the crowd


Tenho me esconder para longe da multidão

Is anybody there to comfort me


Terá alguém para me confortar

Lord, take care of me.


Senhor, toma conta de mim.

How can I go on
Como posso continuar

From day to day


Dia após dia

Who can make me strong in every way


Quem pode me fortalecer de todas as maneiras

101
Where can I be safe
Onde posso estar seguro

Where can I belong


Onde posso pertencer

In this great big world of sadness


Neste grande mundo de tristeza

How can I forget


Como eu posso esquecer

Those beautiful dreams that we shared


Aqueles lindos sonhos que compartilhamos

They're lost and they're no where to be found


Eles estão perdidos e não estão onde podem ser encontrados

How can I go on?


Como posso continuar?

Abro os olhos.

Sr. Finlay parece perdido em pensamentos, tão... Distante.

— Sr. Finlay? Sr. Finlay?

— Sim? — responde com a voz baixa, como se tivesse acordado de um


transe.
102
— Acho melhor o senhor entrar. Ainda vai ficar mais frio e é melhor não
estar aqui quando isso acontecer.

— Oh, sim. Tudo bem.

Deixo Big Ben encostado no pilar da varanda e me levanto para ajudar o


Sr. Finlay a fazer o mesmo.

— Sempre cuidando de todo mundo. — resmunga, mas aceita a minha


ajuda.

— É preciso ajudar os idosos, certo? — fico ao seu redor, dando suporte


para que ele caminhe melhor.

— Quem você está chamando de velho? — grunhe, mostrando os dentes.

— Meu erro. Desculpe, Sr. Finlay. — dou risada enquanto ele murmura
algumas palavras.

Abro a porta e deixo-o entrar primeiro. Passamos pela sala com poucos
móveis e seguimos em direção ao quarto. Lá, ajudo-o a deitar na cama e
ajeito o seu cobertor.

— Pronto. Agora o senhor pode descansar.

— Obrigado, garoto. — Ele se ajeita debaixo do lençol.

— Disponha. Agora, eu vou indo. Tem certeza de que não precisa de nada?

— Tenho certeza. Não se preocupe. Vá. — Me entristece ver que meu


amigo aparentava ser tão frágil e perto de partir, daquela forma. — Garoto?

103
— Sim?

— Você tem talento. Obrigado pela música.

Meu coração se aquece ao ouvir aquilo.

— Obrigado, Sr. Finlay. — dou um pequeno sorriso. — Até amanhã. —


Me viro para ir embora.

— Benjamin!

— O que foi? — Imediatamente me preocupo. — Está sentindo alguma


dor?

— Não, não. — ele ri fraco. — Só quero saber qual o nome da garota.

— Mas que…

A nossa conversa hoje de manhã me vem à mente e não consigo esconder


um sorriso. Por alguns instantes pensei se existe realmente uma garota e
então, a conclusão vem quase que imediatamente.

— O nome da garota é Kate.

104
11

— E então ele morreu.

— Não!

— Sim.

— Não, Rose, você me deu spoiler.

— Não!

— Sim.

— Oh, merda!

Suspiro. Estava no telefone com Rose falando sobre o episódio de Grey's


Anatomy que ela assistiu há algumas horas atrás.

— Quão ruim foi? — pergunto mordendo minhas cutículas.

— Sinceridade?

— Sempre.

— Péssimo.

Gemo.

105
— Ele não podia morrer.

Lágrimas queimam minha visão. Aquele era um personagem que eu amava


muito.

— Eu sei. — Ela funga. — Ainda não superei. Não sei se um dia vou
conseguir. — escuto o barulho de comida sendo mastigada.

Quando Rose fica nervosa ou triste, começa a comer muito carboidrato,


geralmente pizza.

— Eles eram tão perfeitos juntos. — Me recordo dos episódios e


temporadas anteriores, onde ele era feliz com a personagem, e as lágrimas
caem.

— Sim. Produtores de merda. O roteirista deveria ser demitido. Idiota. —


Reclama com a boca cheia.

— Agora não quero mais terminar.

— O que?! — afasto o celular da orelha após o grito ensurdecedor que veio


dele. Posso jurar que a comida voou da boca de Rose.

— Ai! Caramba, Rose, eu ainda quero escutar com meus dois ouvidos.

— Katherine Laurentis, se você repetir não vai continuar a série, vai ficar
surda não só de um, mas dos dois ouvidos, entendeu?

— E como é que você quer que eu assista se o....

— Não repita esse nome. Ainda não suporto ouvir ou vou me acabar de
chorar.

106
— Ok. Como você quer que eu assista, sabendo que ele morre?
— A culpa foi sua se não quis maratonar a 11° temporada comigo numa
noite de garotas. Por favor, Kate. Você não pode me deixar surtar sozinha.
Somos melhores amigas e melhores amigas surtam juntas.

Ela tem um ponto. Merda!

— É, eu acho que te devo essa pela vez que você aceitou maratonar
crepúsculo comigo.

Rose bufa. — Você com certeza me deve essa. Foi um pesadelo.

— Ah, ok. Vou fingir que não me lembro de você torcendo para a Bella
ficar com o Jacob só porque ele era mais "gostoso" que o Edward.

— E não é verdade? Quem liga para imortalidade vampírica quando se tem


um lobo muito grande e quente?

Balanço a cabeça. Ela não entendia que o Edward é o sonho de todo mundo
e o par perfeito da Bella. Eu sim, porque li os livros.

— Sabe de uma coisa? Vou fazer curso de enfermagem.

— O que?! — começo a tossir.

Ela ficou louca?

— Ouch! Agora eu que fiquei surda. — Ainda não sabia se Rose estava
brincando ou não. — Na verdade, eu já sou formada nisso. Quero dizer, eu
assisti as 16 temporadas de Grey's Anatomy, posso muito bem ser uma
chefe de cirurgia geral, assim como a Meredith, certo?

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— Errado. Rose, você não consegue ver sangue, senão começa a surtar. Da
última vez você desmaiou porque o vizinho machucou a mão no trinco da
porta.

— Aquilo foi horrível mesmo. — Rose faz um som como se estivesse


estremecendo.

— Você me lembra o Gilbert Blythe. — sorrio quando lembro da cena em


que ele desmaia quando vê sangue na boca do amigo.

— Droga, Kate. Se ele não fosse tão novo...

— E fictício...

— Sim, isso também. — suspira. — A propósito, já que estamos


agraciando nossas mentes com personagens das séries...

— Nós, não. Você.

— … Que tal agraciá-las com um homem real? Tipo, o seu homem.


Caramba, Kate, que sorte você teve! Era miragem ou aquela bunda tem
aquele tamanho mesmo?

Gemo. — Rose! — cubro meu rosto com a minha mão livre.

Mesmo ela não podendo me ver, estou mortificada só de pensar no corpo


de Ben. Sim, ele é bonito, mas não acho que queria mais nada comigo além
de uma boa amizade.

— Não, não, não. Você vai me contar tudo. Eu te conto tudo sobre Sean e
eu.

— Inclusive as partes que eu preferia que não contasse. — murmuro.

108
— Você vai me agradecer um dia por te ensinar tudo o que precisa saber.
Mas me fala, o que você e o Benjamin estavam conversando?
— Nada demais. Ele só queria me oferecer ajuda em química. — Uma
sequência assustadora de tosse soa no telefone. — Rose? — mais tosses.
— Rose, você está bem?

— Estou. — responde engasgada. — Só um segundo. — A linha fica muda


por alguns instantes e aguardo pacientemente até ela voltar. — Por favor,
me diz que eu não ouvi errado.

— Você não ouviu errado. — Um "sim" ensurdecedor do outro lado da


linha, me faz saltar.

— Ele quer algo com você! — A garota ri como uma criança que acaba de
receber o presente dos sonhos.

— Sim, e eu definitivamente estou surda. — massageio minha orelha.

— Não, Kate, é sério. Quem se ofereceria para dar aulas de química, a


matéria mais chata do mundo, se não estivesse interessado?

— Ele disse que queria apenas me ajudar porque me achava uma pessoa
legal.

— Oh, sim! — bufa. — Ah, Kate, que sorte você teve. Quem mais pode
dizer que está tendo aulas particulares com um professor como Ben?

— Você é tão exagerada... — esfrego a testa com o polegar e o indicador.

— Ok, sobre o que você e o Benjamin conversaram no Mazza... Oh, meu


Deus! Kate, esse é o seu lugar favorito. Caramba, isso está ficando cada
vez melhor. Quero. Todos. Os. Detalhes.

109
Sorri quando relembrei daquele momento especial com Ben no banco em
frente ao lago.
Não sei explicar, mas acho que aconteceu algo diferente lá, uma conexão.
Ou talvez seja reflexo dos romances que amo e minha vontade desesperada
de viver algo como o que leio.

Começo a narrar os acontecimentos para Rose. O encontro no Mazarick e a


esbarrada que dei nele no corredor da escola, no dia seguinte.

— Uau, isso foi... Intenso. Parece coisa de filme romântico.

— Conte-me sobre isso. — resmungo. Era bom saber que eu não era a
única com esse pensamento.

— Só não espere que ele faça qualquer coisa. Se quer que algo aconteça,
faça voc... Amor, é você? — ouço uma voz abafada no fundo. Parece que
Sean chegou. — Ok, babe. Estou aí em segundos. Deixe a cama bem
quente para mim.

— Oh, Deus. Ok, não preciso ouvir suas obscenidades com seu namorado.
Tenho que terminar o trabalho de literatura e ir dormir.

— Acho que não vou dormir hoje. — Rose ri.

Desgraçada.

— Rose, só... Boa noite, ok? Te vejo amanhã?

— Às 7:00 na sua porta, como sempre.

— Até amanhã.

110
— Até, babe. E vá fundo nesse lance com o Benjamin.

— Eu te odeio.
Rimos e desligamos.

Suspirando, pego meu caderno e caneta, que estavam jogados na cama e


trago-os para mim. Enquanto respondo a atividade de literatura, vou
curtindo a minha playlist de One Direction pelo notebook.

Estava quase terminando quando meu celular vibra com uma mensagem.
Verifico quem era.

"Prepare-se para uma surpresa, irmãzinha."

O que ele quis dizer com aquilo? Será que estava vindo me ver, ou era
outra coisa? Se tratando de Mike, não dava para saber.

"O que quer dizer com isso?" envio para ele.

Espero vários minutos, mas Mike não me responde. O que ele estava
aprontando?

12

Nos fones de ouvido, está tocando Send me an Angel, do Scorpions.

111
A partir do momento em que os colocava, nada mais no mundo importava.
Era só eu e a música, a música e eu. A letra dizia para fechar os olhos que
eu encontraria a saída para o escuro. Foi o que eu fiz. ―Aqui estou. Você
vai me enviar um anjo?‖ Canto o refrão baixinho e quando me encosto no
corredor da escola.

Abro os olhos para ir até a sala e encontro Kate caminhando em minha


direção. Ela não tinha me visto. Está conversando com uma garota ruiva.

Tiro meus fones e a observo. Será esse o meu anjo? Assim que o
pensamento passa pela minha cabeça, sinto vontade de rir de mim mesmo.
O que Kate está fazendo comigo?

— Ben! Oi. — Ela me cumprimenta assim que percebe que estou me


aproximando.

— Olá, meninas! — sorri para as duas.

— Oi, sou Rose. — A ruiva estende a mão.

— Ben. É um prazer. — aperto a mão estendida.

— Bela camisa. — Ela aponta para meu peito. Estou vestindo uma camisa
do Guns N‘ Roses.

— Valeu. — olho para a camisa dela. — A sua também não está nada mal.
Rose veste uma do Nirvana.

— Essa aqui é minha favorita.

— Sim, Rose dorme com ela todas as noites.

112
— Vejam só! Não sabia que você tinha um humor sarcástico, Kate. —
provoco, enquanto ela ruboriza.

— Você não viu nada. — Rose bufa.

Dou risada.

— Bem, fico feliz por descobrir esse lado seu, mas tenho uma péssima
notícia para você.

— O que foi? — Seu rosto assume uma expressão preocupada.

— Não posso te dar aulas hoje. Sim, sim, eu sei. Não precisa ficar com essa
cara de cachorrinho molhado. Podemos tirar suas dúvidas por telefone
quando eu chegar do trabalho. — Kate luta contra um sorriso.

— Sim, claro. — gruda os lábios um no outro — Não sabia que trabalhava.

— Há muito o que você não sabe. — O que eu estou fazendo? Era verdade
o que eu disse, mas aquilo saiu como um flerte.

Rose prende o riso e olha para o chão enquanto Kate parece tímida. Bom
trabalho, Benjamin, seu idiota!

— Sei. E em quê você trabalha? — Kate pergunta.

— Construção civil. — Ela ergue as duas sobrancelhas.


— Tá explicado o porquê do seu corpo ser desse tamanho. — Rose
comenta enquanto Kate arregala os olhos e vira-se para a amiga.

— Meu Deus, Rose! — Ela parece querer um buraco para se esconder.

113
— Está tudo bem. — tranquilizo Kate. — Não acho que o trabalho nas
construções me fez assim, mas com certeza ajudou. — digo a Rose.

— Vou indicar esse trabalho para Sean.

— Rose!

— O que? O cara está em boa forma. — Ela pisca os olhos para mim e não
evito uma risada.

Pego os olhos de Kate me analisando rapidamente. Percebi que gostei de


Rose rapidamente.

— Eu suponho. — murmura. — A propósito, Sean é namorado de Rose.

— A gente devia se encontrar fora daqui. Eu poderia apresentar Sean a


Ben. — Rose propõe.

Kate lança um olhar mortal à amiga, enquanto eu passo a mão na nuca.


Não posso me dar ao luxo de sair com amigos, quando tenho que trabalhar
duro para não deixar faltar o que comer em casa.

— Quem sabe um dia. — sorrio sem jeito.

— Ótimo! — Rose bate palmas.

— Não dá corda, cara. — Kate me alerta. —É sério, uma hora você vai se
perguntar como ainda consegue se manter são.
—Ah, mas acho que você gosta um pouco de viver na loucura. — puxo um
sorriso de lado e noto quando seus olhos vão parar brevemente nele.

— É, talvez sim. — murmura.

114
Ouço um pigarreio.

— O sinal já vai tocar. Vamos? — anuncia Rose.

— Certo. Vamos. — Kate passa as mãos pela calça jeans.

— Até mais tarde, então. — digo para ela. — Foi um prazer te conhecer,
Rose.

— Igualmente, Rock Boy. — solto uma risada alta e faço meu caminho
para a turma de matemática.

Das pouquíssimas vezes que falei com Kate, eu ia embora com uma
pontada no coração. Seria isso esperança? Ou eu estava apenas sendo um
completo idiota, de novo?

Enquanto observo meu pai bêbado à minha frente, me pergunto como


podia ainda estar com ele depois de tanta merda ao longo dos anos.

— Você é um idiota, que só liga para si mesmo. Não vê que preciso de


mais dinheiro? Olhe para mim. Estou velho e não posso mais trabalhar.
Você é jovem e tem um emprego, mas ainda assim não se importa comigo.
— bate a mão no balcão da cozinha.

Você ainda era jovem quando abandonou o título de pai. Guardo meus
pensamentos para mim mesmo.

Não vale a pena discutir com ele. Mesmo que às vezes seja difícil lidar com
suas reclamações, meu pai é apenas um velho bêbado que se esqueceu de
115
como é ser feliz e amado. Eu temia, mais do que tudo, estar nessa situação
também.

— Ok, pai. Amanhã te dou dinheiro para o que você quiser. — Era um
blefe, claro. Não podia deixá-lo se matar com bebidas e jogos às minhas
custas.

Não ia cometer o mesmo erro novamente.

— Não dá, preciso do dinheiro hoje.

— Só recebo amanhã. — dou de ombros.

— Não me importa. Dê um jeito. — aponta um dedo para mim.

— Tudo bem. Tudo bem. — suspiro e tiro uma nota de 10 dólares do


bolso.

— Só isso?

— É tudo o que eu tenho agora.

Mentira. Mentira. Mentira.

Meu pai resmunga algumas palavras, mas pega o dinheiro da minha mão.

— Amanhã. Vou esperar até amanhã. — E sai, como se estivesse andando


por um caminho torto.
Escuto a porta da frente bater e suspiro. Faz anos, mas ainda me dói ver o
que ele se tornou. Às vezes penso no pai que ele poderia ter sido se tivesse
feito escolhas melhores, se não tivesse praticamente me abandonado.

116
Dust in the Wind toca no meu celular. Tiro-o do bolso e vejo que o nome
―Kate‖ aparece na tela. Automaticamente, um sorriso se forma em meu
rosto, antes de atender.

— Hey, Kate!

— Oi, Ben. — Algo na voz dela me faz querer ouvi-la mais e mais.

— Então, pronta para aprender alguns assuntos de química? — vou até as


escadas.

— Uhul! — diz com falta de animação.

— Acho que você daria uma ótima atriz. — ouço uma risada. — Não, é
sério. Todo esse carisma e talento está sendo desperdiçado aqui. Você
deveria investir na sua carreira de atriz. — entro no quarto e pego o
material na minha mochila.

— Sim, certo. — mais risadas.

— Ok. Hoje vamos complementar o que vimos na última aula sobre Massa
Atômica e Abundância Atômica. — abro o meu caderno de anotações.

— Sim. Algo que, de fato, não aprendi.

— Não se preocupe. Você vai dormir tranquila sabendo que conseguiu


aprender esse assunto. Confie em mim.

— Eu confio. — A pontada no meu coração me rendeu mais um sorriso.


Graças a Deus estávamos fazendo isso por telefone.

— Ótimo. Esse é um conteúdo melhor para se dar pessoalmente, mas


vamos conseguir adiantar algumas coisas. Na verdade, não tem muito que

117
falar sobre. Vamos apenas calcular de uma para a outra. Em química, como
você sabe, muitas vezes é preciso calcular diferentes formas de medição.
Neste exemplo, que te mandei mais cedo, calculamos a abundância
atômica da massa atômica. Está com o material aí?

— Estou.

— Ótimo. Agora, observe: o elemento boro consiste em dois isótopos,


105B e 115B. Suas massas, baseadas na escala de carbono, são 10,01 e
11,01, respectivamente. A abundância de 105B é de 20,0%. A pergunta é,
qual a abundância atômica de 115B?

— Bem, é nesta parte em que eu me confundo. Já entendi o resto.

— Certo, vejamos. — começo a rabiscar o caderno. — Os percentuais de


isótopos múltiplos devem somar até 100%, certo? Como o boro só tem dois
isótopos, a abundância de um deve ser de 100,0 menos a abundância do
outro. Então fica assim: Abundância de 115B é igual a 100,0 menos 1105;
Abundância de 115B é igual a 100,0 menos 20,0, que é a abundância do
outro. Por fim, temos o resultado: Abundância de 115B igual a 80,0.
Entendeu?

— Hmm... Eu acho que sim. Então quer dizer que se quisermos calcular a
abundância de um elemento, que tenham dois isótopos, temos que fazer
100 de um menos a abundância de outro?

— É exatamente isso.

— Uau. Como isso pode ser assim tão fácil?


— Eu te disse que química não é tão ruim.

— Sim, mas apesar de não ser tão difícil quanto imaginei, continuo não
gostando da matéria.

118
— Até o final do semestre vou te fazer mudar de ideia.

— Veremos. — sorri para o telefone.

— Tem algo mais que você tem dificuldade e queira falar sobre? — evito
soltar um bocejo. Estou bastante cansado.

— Não, não. Era só isso. Ei, você está bem?

— Estou, por quê?

— Não sei. Sua voz está estranha. — Kate tinha... Notado?

— Deve ser apenas impressão.

— Talvez... Mas se precisar de alguma coisa, pode falar comigo, ok? Eu


estou aqui.

Me deu vontade de falar com ela. De verdade. Eu queria, mas não estou
pronto para me abrir novamente. Não por enquanto. Ainda tínhamos muito
o que conhecer um do outro antes disso.

— Obrigado. O aviso é recíproco.

— Obrigada.

Alguns segundos se passam.

— Bem, eu tenho que ir. Te vejo amanhã na escola? — Ela pergunta.

— Conte com isso.

119
Kate dá risada. Gostava de saber que a fazia rir facilmente e com
frequência.

— Boa noite, Ben.

— Boa noite, Kate. — Segundos depois, desligamos.

Suspiro e me deito na cama, olhando para o teto. É apavorante a ideia de se


apaixonar de novo, mas se eu tentar, talvez valha a pena. Certo?

— Boa noite, Mommy Cookie. Espero que eu sonhe com o seu sorriso
hoje.

12

— Rose? Rose, você está me ouvindo?

Minha amiga estava no pequeno sofá do meu quarto, distraída passando a


mão pelo braço.

— Sim? Desculpe, o que disse? — Ela volta de seu estado de estupor, mas
ainda parecia estranha.

— Você está bem?

120
— Sim, claro. Sobre o que estávamos falando? — se ajeita no sofá e parece
pronta para ouvir o que eu disser.

— Tem certeza de que está tudo bem? Você parece estranha.

— Estranha? O que você quer dizer? — remexe-se desconfortável.

— Digo, você não parece ser você.

Ela bufa.

— Bobagem. Não estou estranha coisa nenhuma.

Talvez fosse coisa da minha cabeça, mesmo.

— Se você diz. Eu estava falando sobre minha aula com Ben, no Mazarick.
— Sim, sim, disso eu lembro. A aula no seu banco de praça favorito. Por
falar nisso, qual é a do banco? Nunca entendi porque você o considera tão
especial.

— Bem, nas primeiras vezes que eu ia ao Mazarick, notava que aquele


banco estava sempre vazio. Isso me chamou a atenção porque tinha uma
vista tão linda para o lago, mas parecia que ninguém notava a presença
dele ali. Não me lembro exatamente quando, porém decidi sentar naquele
banco e assistir ao pôr do sol. Foi a coisa mais linda que já presenciei.
Aquele lugar tem uma atmosfera tão cheia de paz e tranquilidade, que até
hoje busco refúgio ali.

— Eu não sabia que você gostava do banco tanto assim. É bizarro, mas
legal. — dou risada. Rose volta a acariciar o braço. — E o que aconteceu
entre vocês?

121
— Nada demais. Nós conversamos e foi bom. Ben me contou um pouco
sobre a vida dele, mas não demais. Acho que tem muito mais se passando
naquele coração e o cara apenas não fala sobre isso. Talvez com ninguém.
Ele nunca mencionou outras amizades, apenas o seu vizinho e a sra. Flora.

— A velha chata da padaria?

Balanço a cabeça. — Essa mesmo.

— Puxa! Quem diria?

— Pois é. Sei lá, talvez ele precise de alguém da idade dele com quem
possa conversar. Não sei se é algo da minha cabeça, mas, às vezes, é como
se eu sentisse que Ben esconde uma dor profunda. Quando olho em seus
olhos por tempo suficiente, vejo tristeza e a barreira que ele construiu para
esconder isso.

— Talvez todos nós façamos o mesmo. — diz ela passando, novamente, a


mão pelo braço.

Penso um pouco sobre a questão que Rose levantou e percebi que aquela
era uma grande verdade. Eu fazia aquilo o tempo todo e às vezes nem
percebo que faço. Que hipócrita eu era.

— Eu tenho que ir. — diz se levantando.

— Ok. Te vejo amanhã?

— Na verdade, acho que não vou amanhã.

— O que? Por que?

— Eu... Preciso fazer umas coisas.

122
— Que tipo de coisas, Rose?

— Nada demais. Vejo você depois.

— Espera! — Mas ela já havia fechado a porta.

O que está acontecendo com Rose? Sem pensar, me levanto da cama e vou
atrás dela.

— Rose! —chamo enquanto desço as escadas.

— Ela já foi. Está tudo bem? — Minha mãe aparece no corredor da porta
de entrada.

— Não sei. Ela estava estranha.

— Bom, eu... Eu queria falar com você. — Ela parecia nervosa.

Seja lá o que for, não acho que quero saber do que se trata.

— Mãe, tenho que ir agora. Eu...

— É rápido. Só queria avisar que o Richard vai jantar com a gente amanhã.

— O que?

— Vamos lá, filha. Se você o conhecesse, saberia que ele é um cara legal.

— Legal como todos os outros?

123
— Kate, não comece. Apenas vim avisar sobre o jantar. Você querendo ou
não, ele vai acontecer e você estará presente. — Ela se vira e caminha até a
cozinha.

— Espera aí. Então quer dizer que não tenho escolha? Onde está a porcaria
do livre arbítrio? — sigo-a.

— Olhe como fala. — vira-se para mim. — Está combinado, Kate. Você
vai jantar conosco amanhã e fim da história.

— E se eu não quiser conhecê-lo? E se ele fosse um idiota que...

— JÁ CHEGA! — Me assusto com sua raiva. Dou um passo para trás. —


Não vou tolerar seus insultos. Richard é um bom homem e muito gentil.
Conheça-o e poderá dizer alguma coisa sobre ele. Eu sei que errei, Kate,
mas também mereço uma chance. Você não irá estragar isso para mim. Te
espero no jantar de amanhã. — Ela dá meia-volta e segue para o jardim
atrás da casa.

Quando a porta da cozinha bate, solto minha respiração. Desta vez, passei
dos limites. Não sei o que acontece, mas ficar com minha mãe, por mais de
2 minutos, me relembra dos maus momentos e perco o controle.

Eu irei ficar para este jantar. Espero, de verdade, que tudo dê certo e que
esse Richard seja uma boa escolha. Senão... Suspirando, volto para o meu
quarto. Senão não sei se um dia poderei perdoar minha mãe por tudo o que
já me fez passar.

124
13

Eu não fazia ideia de como encontrar pessoas pela internet sem ao menos
saber o primeiro nome delas. Na verdade, não sei porque ainda fico
insistindo nisso. Como vou achar a família da minha mãe assim?

Depois de mais algumas olhadas no Facebook por pessoas com o


sobrenome West e que moram em Toronto, desligo o celular e pego Big
Ben.

É noite, mas não achei que conseguiria dormir, então peguei um casaco,
calcei minhas botas e saí do quarto. Meu destino é o Mazzarick Park.

Andando pela rua, naquela noite fria, algumas melodias me vieram à


cabeça. Então, letras foram aparecendo, assim como acordes.

Quando cheguei no banco em frente ao lago, apoiei Big Ben em meus


braços e comecei a fazer música. 1, 2, 3. Um compasso de três tempos. O
ritmo era semelhante ao blues.

Fazer música não era tão difícil como a maioria das pessoas pensam. É só
se entregar a ela, deixar que ela te envolva mais e mais fundo, até que o seu
coração esteja nisso também.

Música é bem mais que apenas letras e sons. É fervor pela harmonia, é
surfar nas ondas sonoras e deixar que elas te levem para fora de si. São
coisas loucas de um louco apaixonado por música.

125
Meus dedos calejados passeiam por entre as cordas, como se ali fosse um
lugar familiar, um lar. Era uma pena eu não ter trazido meu caderno de
canções. Aquilo estava ficando bom.

Depois de tocar mais algumas autorais, dedilho os acordes de Stairway to


Heaven de Led Zeppelin. Canto a letra com a alma e isso acalma meu
espírito. É quase mágico. Ou talvez seja isso mesmo. Termino de cantar e a
última nota ainda soarem meus ouvidos.

Suspiro. Aqui, neste banco, eu pareço um homem sozinho. Um louco que


toca violão no parque de madrugada. Mas não estou sozinho. Olhando para
Big Ben, em meu colo, vejo um amigo. É ilógico, fantasioso dizer que um
violão é amigo de um homem. Mas essa é a minha realidade desde que
minha mãe morreu. Não parece que ela se foi totalmente. Uma parte dela
está comigo.

Passando a mão pela madeira do violão, eu lembro de todos aqueles


momentos que precisei desabafar, sair um pouco da minha vida e Big Ben
me oferecia essa saída. Quando precisava me lembrar que minha mãe
estava comigo, ele fazia isso.

Nunca estive sozinho, pois sempre tive Big Ben. E sou grato por isso. Um
dia, chegaremos em cima de um palco, onde milhares de pessoas estarão
nos vendo, e lá, faremos nossa música brilhar. Sorrio diante do
pensamento.

— Um dia, Big Ben. Um dia.

Acordei sobressaltado, com suor por todo corpo.

126
Tive um pesadelo envolvendo minha mãe. Eu raramente tinha um desses,
mas quando tinha, era ruim o bastante para que eu ficasse perturbado e não
conseguisse dormir. Pelo menos estava sem camisa.

Saio da cama e vou direto para o chuveiro, levando o celular. Coloco na


playlist aleatória e me livro de todo aquele sentimento debaixo da água.

Envolto numa toalha, peguei uma calça moletom no quarto e desci as


escadas para começar a limpeza do dia. Eu queria que o sabão e a escova
pudessem limpar a minha mente também.

127
14

— Ele chegou.

A frase que eu rezava para não sair da boca da minha mãe.

— Ótimo! — respondo com falsa animação.

Ela me dá um olhar de reprovação.

— Você prometeu.

— Sim, sim. Não vou fazer ou falar nada estúpido. Não sou tão mesquinha
quanto pensa.

— Então comece a agir de acordo.

Segurei a língua para não piorar a situação.

O tal Richard bate na porta e minha mãe vai correndo abrir. Reviro os
olhos. Com certeza eu não seria assim com ele se todos os outros
namorados dela não fossem babacas nojentos.

Estamos arrumadas demais para um jantar em casa. Ela me fez vestir um


vestido azul floral e arrumar meu cabelo em rabo de cavalo. Até de salto
alto eu estou. Minha mãe escolheu um vestido vermelho e saltos pretos.
Os cabelos, iguais aos meus, estavam escovados e soltos, caindo atrás das
costas. Está linda, de fato.

128

Ei! — ela diz para ele, com uma voz que revelava que estava caidinha
pelo cara. Eu apenas escutava da sala de jantar, enquanto eles estavam na
porta.

— São para você. — Com certeza ele trouxe flores. Quem faz isso hoje em
dia? Talvez ele não seja tão babaca nojento quanto os outros. Só... Talvez.

— Elas são lindas! — Não lembro da minha mãe fazendo uma exclamação
de felicidade genuína há tempos.

— Não mais que você, com certeza. — Consigo visualizar a cena. Ele
olhando para ela de cima a baixo e minha mãe ficando vermelha... Bem,
até eu fiquei com as bochechas quentes.

Há um silêncio. Constrangedor apenas para mim, sem dúvida, mas não


queria ficar imaginando o que eles estariam fazendo na porta de casa.
Faço um pouco de barulho com meus saltos para eles lembrarem que estou
aqui.

— Vamos. Entre. — Minha mãe o chama.

Finalmente!

— Depois de você.

De que época é esse cara?

— Oh, tudo bem.

Há um som de passos e depois a porta se fecha.

129

— Vou pôr essas flores num jarro. — ela sai do corredor com os saltos
batendo ao chão e passa por mim para ir até a cozinha. Seu olhar de
advertência não passou despercebido.

Olá, Kate! — Richard aparece na sala de jantar e sorri para mim.

— Oi, Richard. — tento dar o meu melhor sorriso.

— Você está bonita.

Ah, merda. Aquele comentário me deixa mais sem graça do que qualquer
coisa. Principalmente vindo dele.

— Obrigado. Você também não está nada mal. —Olho-o com atenção. Não
pude fazer isso no nosso primeiro encontro, porque estava ocupada demais
tentando engolir aquela cena dos dois na cozinha.

Richard é um cara em forma. Não está de terno, como achei que estaria,
mas com uma calça social preta e uma camisa branca. Até que ele era
estiloso. Com certeza, um bom partido, mas isso não significa que eu
ainda goste dele. Apesar de eu ter que admitir que ele não me parece tão
ruim agora.

— Bom, o jantar está pronto. Vamos comer? — Minha mãe volta alisando
as mãos umas nas outras. Ela está nervosa.

— Vamos. — responde Richard, sorrindo para ela.

Mamãe senta na ponta e Richard e eu ocupamos os lados.

— Eu preparei risotos de Milão, macarrão à bolonhesa, bisteca Fiorentina


e seu prato preferido, tortellini de Bolonha. — São todas comidas típicas
da Itália, já que Richard é de lá.

130

Ela sabe até o prato preferido dele. Eu não sei o prato preferido de Ben. E
não vejo qual a importância disso.

Ah, querida. Não precisava fazer tudo isso. — Richard parecia


genuinamente feliz.

— Você gostou?

— Se eu gostei? — Ele pega na mão da minha mãe e olha em seus olhos.


— Esta será a melhor janta desde que vim morar aqui. — Ela sorri para ele.
Isso já estava ficando meloso demais, para eu assistir sozinha.

Limpo a garganta. Os dois largaram as mãos e voltaram suas atenções para


os pratos ainda vazios. Não perco tempo e faço o meu.

— Então, Kate. Como anda a escola? — Ele pergunta enquanto põe risoto
em seu prato.

— Bem.

— Para qual faculdade deseja ir quando se formar?

— Boston.

— Ah, uma ótima escolha. Vejo que é uma aluna esforçada, então. Para
entrar na faculdade de Boston você precisa ter uma mistura de A‘s e B‘s.
Mais A do que B.

— Sim, eu sei. — minha mãe me olha com advertência e aponta para


Richard com a cabeça. Suspiro. — Bom, em que você trabalha? — mamãe
parece se engasgar.

131

— Kate!

— Não, querida. Tudo bem. — Ele a tranquiliza. — Eu tenho o meu


próprio bar. Não fica muito longe daqui. É perto do Mazzarick.

Um bar? Perto do Mazzarick?

— Isso. É o Buck‘s Pub.

— Espera, o Buck, é você?

Ele ri. — Sim, sou eu.

— Como? — Não faz sentido. Ele se chama Buck Richard? Richard


Buck?

— Na verdade, — coça a cabeça. — não sei bem como as pessoas


começaram a me chamar assim... Acho que foi um cara bêbado que me
confundiu com o amante de sua mulher e quis brigar comigo. Meus amigos
começaram a brincar com isso e o apelido ficou. — ele dá de ombros. Uau!

Buck‘s Pub é um lugar que eu sempre quis visitar. Não por ser um bar,
mas todo mundo ia lá e é perto do Mazzarick. Não sei ao certo porque
nunca fui. Até Rose foi com Sean.

— Legal. — Volto minha atenção para a minha comida. Até que a bisteca
Fiorentina não é ruim.

— Querido, talvez possamos ir todos juntos para lá. — minha mãe sugere.

— Essa é uma ótima ideia. Não estarei trabalhando neste domingo. Bob,
Cynthia e Marcos estarão cuidando do bar então você pode tirar o dia de
folga também.

132

— Espera aí, vocês trabalham juntos? — coloquei a taça de volta na mesa.


Ia beber suco, mas achei mais seguro deixar para lá depois do que ouvi.

— Eu não te falei?

Tento lembrar se alguma vez ela mencionou esse detalhe.

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— Não, mãe. Você com certeza não falou sobre isso.

— Ah, bem. Eu devo ter esquecido. — Ela fala meio desconcertada.


Típico!

— Bom, não tem problema. Domingo iremos ao bar e vamos nos divertir
um pouco. O que acha? Você vem conosco? — Richard pergunta.

Penso um pouco. Eu queria ir? Sim. Queria ir com eles? Talvez. Olho para
a minha mãe e seu olhar me implorava para que eu vá. Olho para Richard e
ele parecia animado com a ideia. Suspirei.

— Tudo bem. — falo simplesmente.

— Ah, que maravilha! Vou mandar os meninos prepararem algo especial


para você.

Sorri, agradecendo. Eu esperava que tudo saísse bem, porque Richard não
parece um cara ruim. Mas eu ainda estaria de olho nele.

Ao fim do jantar, eu descobri que Richard é divorciado, a ex-esposa mora


com o filho em Milão e que ele é um amante do basquete e do blues. O
novo namorado da minha mãe não é uma pessoa de todo ruim. Ele se
mostrou bem relaxado e fácil de conversar. Queria vê-lo mais uma vez.

— Obrigado por me convidar para jantar. Gostei de passar tempo com duas
mulheres lindas e uma comida bastante saborosa. — o sorriso de Richard
era caloroso, quando se virou para nos olhar da escada em frente a casa.
134
— Nos vemos amanhã, querido. — Minha mãe segurava a porta, com um
sorriso calmo. O lado dela que presenciei hoje, eu não tinha visto em muito
tempo. Talvez... Em dois anos...

— Com certeza sim. Vejo você no domingo, Kate. Vamos ver quem vence
no jogo de dardos. — Me desafia.

— Você está acabado.

Ele gargalha, o que me fez sorrir também. — Até mais, garotas! — Richard
entra em seu volvo branco e deixa o local.

— Bem, foi melhor do que eu esperava. — diz minha mãe quando fecha a
porta e olha para mim.

— Talvez... Talvez ele não seja uma má pessoa. — murmuro, desviando


meu olhar do dela.

A relação com a minha mãe tinha se desfigurado com o tempo desde que
meu pai foi embora, e ainda acho difícil dizer certas coisas para ela. Fazia
tempo desde que eu disse 'eu te amo' ou a abracei pela última vez.

— Obrigada. Você verá. Richard é... Bom. Ele se importa comigo e... Eu
estou feliz. — Ela passa por mim e vai arrumar os pratos da mesa.

Fiquei na porta, ainda digerindo as palavras da minha mãe. Ela está... Feliz.
Não percebi que minha família estava tão carente disso, até que o
incômodo no meu coração ficou mais forte enquanto ajudava minha mãe a
arrumar a mesa.

135
15

— Isso. Muito bom! Agora, refaça aqueles cálculos que corrigi do início e
estamos livres. — disse a Kate que estava sentada do meu lado no nosso
branco de praça favorito.

— Pode deixar!

Gosto de ensinar química a ela. Kate é tão esforçada e se prontifica a


aprender mais. Posso parecer um idiota, mas estudar química ao lado de
uma garota no seu banco de praça preferido, é a minha ideia de diversão
entre um casal.

— É assim? — Me pergunta depois de alguns minutos rabiscando o


caderno.

— Vamos ver. — passo os olhos pelo caderno e um sorriso se abre em


minha boca quando vejo que tudo estava correto. Bem, quase tudo. —
Olha, aqui está errado. — aponto para o cálculo. — Você converteu para
gramas, quando devia ter convertido para quilos.

— Merda! — solta um suspiro de frustração.

— Ei! Considerando que você fez tudo certo, isso é um erro quase
irrelevante. Não se preocupe com isso. Da próxima, tenho certeza de que
você fará tudo certo.

136
— E como você pode ter certeza disso? — seus cabelos adquiriram um tom
mais vivo com a luz do sol poente. Qualquer um que visse, poderia dizer
que era uma obra de arte.

— Porque eu acredito em você. — Sua boca abriu-se ligeiramente, tirando


uma risada minha. — Vem cá. Quero te mostrar uma coisa. — me levanto
e estendo a mão.

Quando estamos os dois em pé, viro o corpo de Kate de frente para o lago.
Pego meu celular colocando-o para tocar You Were Born to be My Baby
do Bon Jovi e deixo o aparelho no banco.

— Fecha os olhos. — ela fecha. — Isso mesmo. Agora, sinta a música,


sinta a batida. Está sentindo? Essa vibração dentro de você quer estar em
sintonia com a batida da canção. Apenas… Se deixe sentir. — ela começou
a balançar a cabeça e um sorriso puxou seus lábios.

— Isso é... Incrível. É como se as batidas da música e do meu coração


conversassem entre si, como se fossem um só. — Kate estava em sintonia
com a canção e isso causou uma sensação ardente no meu peito. Eu estava
queimando. Por ela. Era uma sensação única.

Nos últimos acordes, pego o celular. — E… é isto. Pode abrir os olhos. —


fico de frente para Kate, de costas para o lado.

Suas pálpebras levantam devagar e imediatamente seu foco sou eu. Não sei
para onde todo o ar do parque foi quando encarei aqueles olhos. A beleza
de Kate era tão... Eu nem sabia explicar. Não havia nada carnal ali. Não.
Era algo natural, puro. Sua beleza era a sua alma. Tão... Triste e
melancólica, que me fazia querer ser o único a fazê-la sorrir.

—Ben?

137
— Sim?

— Eu tenho que ir.

138

Ok. — Mas nenhum de nós fez nada, a não ser olhar um para o outro.

— Te vejo amanhã?

— Com certeza.

— Ok.

Ainda ficamos algum tempo assim, até que uma criança passa correndo ao
nosso lado e nos assustamos. Começamos a rir enquanto a mãe do menino
corre atrás dele gritando seu nome.

— Tchau. — diz, caminho para o banco, pegar o material.

— Eu acompanho você. — digo quase rápido demais.

— Tudo bem. — ela olha pra mim e sorri.

Não pude deixar de sorrir também. Eu podia parecer um idiota naquele


momento, mas isso não importava. Eu estava feliz que meu coração estava
bem e queria ter uma chance com Kate.

Pegamos nossos materiais e seguimos para a saída.

— Você está bem? — pergunto.

— Estou. Por que?

Dou de ombros. — Você parecia um pouco distante na aula. Não sei,


talvez... Triste. Pode ter sido somente uma impressão errada, mas queria
saber se você está bem.

139
— Ah... — ela fica calada alguns segundos. — Eu... Só estou preocupada
com uma amiga.

— Rose? — Kate confirma com a cabeça.

Não ia perguntar o que houve, porque estava na cara que era algo entre ela
e a amiga, e que me contaria, se quisesse. Então apenas apertei seu ombro
para mostrar que eu estava ali. Kate sorriu, agradecendo.

— Você não acha estranho gostarmos do mesmo lugar?

— O que você quer dizer com estranho? — viro minha cabeça para ela.

— Eu não sei. Íamos diversas vezes, mas nunca nos encontramos. Só não
parece ser verdade, entende?

Olho para ela alguns segundos. — É, eu sei exatamente o que você quer
dizer. Uma coisa que aprendi é que as coisas acontecem no tempo que elas
tem que acontecer. Talvez nós precisássemos nos conhecer exatamente
naquele dia. — refleti.

Lembro-me do dia em que nos conhecemos. Tive uma briga feia com meu
pai, que me deixou muito mal. Kate foi como uma luz para a escuridão
dentro de mim naquele dia. Poderia jurar que não sorriria mais, mas ela
tirou uma risada de mim com apenas segundos de conversa.

— Sim, talvez. — sua expressão se torna pensativa.— Mas fico feliz por
ter te conhecido. — caminha tranquilamente com um pequeno sorriso no
rosto.

— Ah, é? Poderia me explicar o porquê de tamanha felicidade?

Kate ri.

140

Bom, porque agora eu tenho um amigo que me ensina química e


minhas preocupações sobre isso acabaram. Cara, nos conhecermos
praticamente salvou a minha vida.

Ser chamado de amigo não me causou uma boa sensação, apesar de ser
exatamente isso que somos... Amigos.

— Fico feliz por estar sendo útil para você. Pode continuar me usando. —
tentei, mas não consegui falar isso sem ambiguidade. Se Kate notou, não
demonstrou.

— Você é bem mais que isso, sabe. — murmura.

— Sou é?

Kate arregala os olhos e olha para os lados. Não consegui segurar um


sorriso. — Sim, sim. Você é inteligente, um amigo muito legal também e...

— Você não é pescoço, mas mexeu com a minha cabeça. — abro um


sorriso.

— Como é? — Kate dá risada.

— A sua cantada.

— A minha... Mas eu não acertei o cálculo todo.

— Não importa. Você acertou a maior parte e isso já vale. É um presente


pelo seu esforço.— Ou talvez eu apenas queira cantar você.

— Certo. — zomba. — Pode repetir, por favor? — era visível o esforço


que ela fazia para segurar a risada.

141
142

Você não é pescoço, mas mexeu com a minha cabeça. — balanço as
duas sobrancelhas. De repente, uma luz cega a minha visão e ouço Kate
cair na gargalhada. — Você realmente tirou uma foto minha?

— Desculpe. — diz entre risos. Ela Ainda segura o celular em frente ao


corpo e com certeza não sente remorso nenhum. — Mas foi tão ruim que
tive que fazer isso. — Preciso guardar esse momento para sempre. — Sua
gargalhada fica ainda mais alta.

Não pude deixar de rir também.

— Isso não vai ficar assim. — semicerro os olhos.

— O-o que você vai fazer? — pergunta tentando recuperar o fôlego.

— Você realmente não acredita que eu vá contar, não é?

— Não custava tentar. — dá de ombros.

— Sei. — caminhamos em silêncio por um tempo. — Posso fazer uma


pergunta?

— Claro.

— Por que você gosta tanto de livros?

— Bom, porque... Porque eles me dão esperança. Mesmo que o presente


seja uma merda, quando estou lendo, ele não fica tão ruim assim.
Basicamente, de acordo com Max Frisch, "a literatura pode ser uma boa
terapia pessoal, uma espécie de psicanálise na qual não se paga um
psicanalista." — Os olhos dela brilham.

— Isso é bem legal.

143
Não é? É muito louco também. Quer dizer, você se apaixona, chora,
sofre e torce por pessoas que sequer existem. Mas Stephen King disse que
"a ficção é a verdade dentro da mentira, e a verdade desta ficção é bem
simples: a magia existe." E eu concordo com ele.

Ver a paixão que ela te m pela leitura, me lembrou da minha própria paixão
pela música.

— Isso despertou o meu desejo de ler alguns livros também. — confesso,


colocando as mãos nos bolsos.

— Jura? — seus olhos brilham mais uma vez.

Na verdade, eu não tinha vontade de ler os livros, mas de ser os


personagens que faziam os olhos dela brilhar daquele jeito.

— Sim. — dou risada. — Posso ler um livro sob sua recomendação, mas...
Você terá que escutar um álbum de uma banda sob a minha.

— São muitas músicas!

— E um livro são muitas páginas. — pisco para ela.

— Espertinho. — murmura e olha para frente.

— E aí? Combinado? — estendo minha mão.

— Ok. Combinado. — Kate aperta-a. — Já tem alguma ideia? — quis


saber depois que solta a minha mão.

— Ainda não, mas amanhã já vou tê-la pronta para você.

144

— Vou fazer uma pesquisa pela minha estante e ver qual você poderia
odiar.

— Ah, Katherine, você é muito má. Também não facilitarei para você.

— Quem não cumprir com o combinado vai ter que fazer um desafio. —
Então ela gostava de jogar.

— Vou escolher 5 músicas da banda e não vou dizer quais são. Você terá
que ter escutado todos os álbuns para saber quais e então vai me dizer o
refrão de cada uma delas.

— Vou escolher 5 acontecimentos do livro e você vai me dizer os trechos


onde eles se encontram.

— E vamos ter uma semana para fazer isso.

— Tudo certo. — estende a mão

— Tudo certo. — sorri de lado, apertando a mão de Kate.

Apenas quando cheguei no meu quarto, e me sentei na cama, percebi o


que tinha feito. Uma semana? Eu queria me bater repetidamente durante
horas por essa estupidez. Como eu iria ler um livro em uma semana com
tudo o que tenho para fazer? Eu teria que me desdobrar em dois, mas de
jeito nenhum eu estava perdendo essa aposta. Eu iria vencer.

145
16

Eu não aguento mais. Estava escutando pela terceira vez Woke Up This
Morning, do álbum Siver Side Up de 2001 do Nickelback. Eu não gostei
nenhum pouco das músicas, mas também não facilitei para Ben.

Há uma semana atrás, enquanto Ben, Rose e eu comíamos no refeitório, eu


entreguei a Ben um dos meus livros menos favoritos de ficção científica, O
Doador de Memórias, por Lois Lowry. Eu duvidava que ele conseguisse ler
o livro todo em uma semana. Apesar de ele ser pequeno, para os meus
padrões, eu demorei um mês para conseguir terminar a leitura.
Definitivamente um dos piores que já li.

"Pronta para perder?" Era uma mensagem de Ben. Eu estava terminando de


me arrumar para a escola.

"Essa palavra não faz parte do meu vocabulário."

"Veremos."

Como resposta, apenas mandei uns emoji's sarcásticos e peguei minha


mochila para esperar Rose.

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Você acha mesmo que a Daenerys vai subir de volta ao trono? —
pergunta Rose.

— Claro. Vai demorar um pouco, talvez a série toda, porque precisa do


drama e do conflito, mas acho que ela vai conseguir.

— É, tomara. Só de pensar naquele irmão dela, me dá vontade de bater no


desgraçado.

— Nem me fale. Viserys só sabe ser babaca. — estávamos andando lado a


lado pelo corredor da escola, falando sobre Game of Thrones.

Já tinha lido os livros, mas Rose e eu apenas começamos a assistir a série


de TV há poucos dias e estou tentando me livrar de falar spoilers, mas a
garota é boa em arrancá-los de você. Ela ama spoilers. Eu os odeio.

Mais cedo, quando ela apareceu na minha porta de óculos escuros, blusa
rosa e jeans rasgado, se desculpou pela maneira que saiu da minha casa no
outro dia. Disse que foi uma emergência com a mãe dela, mas que estava
tudo bem. Achei estranho, mas não questionei. Apenas a abracei e disse
que poderia contar comigo para qualquer coisa.

— Olha só o seu Drogo vindo aí. — Rose sorri maliciosamente para mim e
aponta para a frente com o queixo.

Não entendi de imediato, mas quando viro minha cabeça na direção que ela
queria, vi Ben andando até mim. Suspirei. Não me julguem, é difícil
controlar as emoções quando esse cara está por perto. Ou neste caso,
caminhando despreocupado até mim.

Ponho a mão na parte da minha bolsa onde o livro está. Passei horas
relendo os livros que eu achei que Ben poderia odiar até finalmente
encontrar um para emprestá-lo. Eu não vou perder esse desafio.

147

Hey, garotas! — nos cumprimenta sorrindo. Ah... Aquele sorriso...
Droga.

— Oi, Ben. — Rose deu ênfase no nome dele, olhando indiscretamente


para mim. Desgraçada.

— Hey! — aceno para ele.

— Rose, faz um tempo que não vejo você. Como vai?

— É, eu andei ocupada, mas estou maravilhosamente bem. — ela sorri para


Ben.

— Legal. Ainda quero te mostrar umas músicas que acho que você vai
gostar.

— Se eu não conhecer todas...

Ben ri. — Acho que você é das minhas. E você, Kate? Como está? — meu
coração deu um salto com sua atenção em mim

— Estou muito bem. — sorri.

— Que bom. — ele passou alguns segundos me observando. — Bem, será


que posso passar o almoço com vocês? Kate e eu precisamos acertar
algumas coisas.

Ben parece pronto para responder às perguntas. Eu, por outro lado…

— Claro que você pode vir com a gente. Não é, Kate? — Rose não foi
nada discreta no seu tom sugestivo.

Um dia. Algum dia eu iria matá-la.

148

É, vai ser legal. — Se Rose não abrisse a boca.

— Ótimo. Vejo vocês no almoço, então. — sorri e olha para mim antes de
ir embora.

— Nenhuma palavra sobre isso. — aviso a minha amiga engraçadinha. —


Mas eu não ia dizer nada. — seu sorriso cínico provava o contrário. — Só
achei que...

— Nada. Você não achou nada. É isto.

Ela começa a rir.

— Relaxa, Kat. Prometo que não vou falar nada que envergonhe você.

O sinal toca.

— Que Deus me ajude. — murmuro e sigo caminho para a próxima aula.

— Vai dar tudo certo. Você verá.

Pelo bem da minha dignidade, eu esperava que sim.

— Não. É. Possível! Você trapaceou, não foi? — aponto um dedo para


Ben.

— Eu não fiz isso. — Ele levanta dos braços, se divertindo com a minha
reação.

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Você não pode ter acertado todas as perguntas! Deve ter alguma escuta
escondida por aí. — cruzo os braços.

Estamos no refeitório da escola. Rose tinha ido ao banheiro e ainda não


voltou.

— Não estou, e você sabe disso. Talvez essas sombras abaixo dos meus
olhos expliquem melhor para você.

Eu bufo. Ele se encosta na cadeira, desafio brilhando em seus olhos azuis.

— Qual o refrão de Hollywood?

Começo a murmurar a canção.

— E o de Too Bad?

Faço o que ele pede.

— Good Time Gone?

Essa fluiu sem problemas.

— Never Again.

Hesito. Essa foi a primeira música que escutei, e é por isso que não consigo
lembrar direito da letra.

— Er... Eu vou lembrar. Era...

Ben parecia estar se deliciando não só com sua comida, mas com toda a
situação.

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— Sabe, mais 5 minutos e você terá que desistir.

151
Eu me recusei a desistir antes dos 5 minutos, porém eu não consegui me
lembrar da maldita letra.

Rose já estava de volta e parecia estar do lado de Benjamin nessa história.


Traidora.

— E parece que eu venci. Foi bom jogar com você, Kate. — Ele diz
vitorioso.

— Que seja! — resmungo e cruzo os braços. Ele e Rose riem do meu


comportamento. — O que eu tenho que fazer?

Já que perdi, preciso cumprir algo que Ben me pedir. Pensar nisso, me fez
perceber o quão crianças fomos em fazer essa aposta, em primeiro lugar.

— Saia comigo.

Engasguei. Percebi que Rose fez o mesmo e acabou espalhando respingos


da bebida que tomava.

— Desculpe? — pergunto abobalhada.

— Vamos fazer um programa fora da escola. Só eu e você.

"Só eu e você." Caramba, eu gostei daquilo.

— Tudo bem. — minha voz saiu rouca.

Rose ainda não parece recobrar a consciência.

Ben sorri. — Estarei às 20h na sua casa.

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São 20:05 e estou completamente nervosa andando de um lado para o outro
no meu quarto, com o celular na mão e indo para a janela. Nada. Tudo
bem. Não devia ser nada demais. Talvez Ben não seja um cara tão pontual
assim. Eu não ia ficar esperando a noite toda com meu vestido preto de
manga longa novo e de maquiagem. E se... Não.

Parei de andar. Tentei parar a minha cabeça também. Respire! Se controle!


Eu não contei a Ben, mas esse era o meu primeiro encontro. E eu estava
uma pilha de nervos sobre isso.

Faço algumas respirações profundas, tentando pensar positivo. Além do


mais, era só meu primeiro encontro e meu par da noite era um cara legal e
lindo. Eu não tinha nada para me preocupar.

Comecei a pensar em coisas boas. Ou pelo menos tentei. Lembrei dos


livros que queria ler e de suas capas maravilhosas. Nos personagens
literários e até no Bruno Mars.

Pensei também no almoço que tivemos. Foi um tempo muito legal juntos.
Ben parecia querer ouvir tudo o que eu tinha para dizer e, mais assustador,
o que não dizer.

São 20:45, ouço uma batida na porta. O alívio que senti era indescritível.
Peguei minha pequena bolsa e desci correndo as escadas. Estava de
sapatilha, então foi fácil.

Chegando à porta, arrumei os cabelos, chequei se a roupa estava amassada,


mas era preta então não tinha muito o que ver. Com tudo pronto, o sorriso
foi difícil de segurar quando abri a porta.

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— Oi, Be... — mas quando abri a porta, não era Ben. Era alguém que não
esperava ver nem tão cedo.

— Olá, irmãzinha!

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17

— Tudo bem, ok? O senhor vai ficar bem. Aguente firme! — Foram
minhas últimas palavras antes de soltar a mão de um Sr. Finlay
desacordado e deixar que os médicos o levassem para a sala de exames.

Passei a mão pelo rosto, preocupado. Só podia esperar que ele ficasse bem.
Sentei-me numa das cadeiras da sala de espera e pus os braços nos joelhos.
Foi muito rápido. Apenas fechei a porta da frente da minha casa para me
encontrar com Kate e acenei para o Sr. Finlay.

Ele não parecia bem, mas retribuiu o cumprimento mais lento que o
normal. Cheguei mais perto para me certificar de que não tinha nada de
errado, mas quando perguntei sobre o que estava acontecendo, ele não
falou. Comecei a me preocupar e fui chegando mais perto. O Sr. Finlay não
reagia. Meu coração acelerou. Até que chegou um ponto em que ele
desmaiou em sua cadeira de balanço.

Chame-o diversas vezes, mas nada acontecia. Peguei o telefone e liguei


para a emergência. Só deu tempo de falar o endereço e qual era o caso,
antes do meu celular descarregar.

Vim com ele na ambulância, segurando sua mão, como se aquilo fosse
mantê-lo comigo. Sem comunicação, eu só podia esperar que Kate
entendesse quando eu lhe explicasse amanhã.

Agora, eu só podia pensar que meu amigo, de tantos anos, está em uma
dessas salas de hospital com o risco de não sobreviver. Não. Eu não posso

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pensar nisso. Ele é velho, eu sei, mas é um velho forte, teimoso. Não pode
simplesmente partir assim. Não pode.
Pela primeira vez na vida, eu estava sentindo o pavor de ver alguém que
você ama indo embora para sempre. Ou ao menos, a enorme possibilidade
disso. Não tive esse sentimento com a minha mãe. Ela estava comigo em
um momento e no outro... Se foi. Não tive tempo de pensar direto, de ficar
angustiado com a possibilidade de sua partida. Estou sentindo isso agora e
quero que pare.

De repente, penso em sua família. O Sr. Finlay não tinha uma. Ele havia
falado sobre uma mulher e seu filho, mas nada de localização ou nomes.
Tudo tão vago. Meu vizinho vivia num mundo de solidão e dor. Talvez sua
única saída não fosse sair daquela sala, ou deste hospital. Talvez eu
estivesse sendo egoísta querendo que ele ficasse, sendo que a paz que ele
merece, não está aqui.

Comecei a chorar naquela sala de espera, com outras duas pessoas sérias.
Não havia motivo para sorrir, ou para querer isso. Minhas lágrimas nada
mais eram do que tristeza. Não por mim, mas pelo Sr. Finlay. Se ele partir
agora, não terá ninguém para chorar sua morte. Ninguém além de mim.
Nenhuma pessoa merece isso. Mesmo depois de todos os erros que
cometeu, ele está arrependido e não merece morrer sozinho.

— Por favor! Por favor! Eu preciso saber como uma pessoa está. Ele
entrou aqui há pouco... — Eu conhecia aquela voz.

— Fluflu? — tirei a mão do rosto e olhei para a mulher desesperada que


estava na recepção.

— Por favor, eu preciso saber como ele está. — Flora estava diferente. Seu
semblante repleto de apreensão e seu visual sem nada rosa, me deixaram ao
mesmo tempo preocupado e confuso. Quem ela estava procurando

156
— Calma, senhora. Preciso que me diga qual o nome do paciente para que
eu possa lhe dar mais informações.
— Eu... Ele... E-eu... — Ela estava tão nervosa que fiquei com medo que
desmaiasse ali mesmo.

— Ei, Fluflu!

— B-Ben?

— Se acalme. Ei. Calma. Vamos sentar ali. — passo meu braço sobre seu
ombro e a acompanho até uma das cadeiras da sala. — Você quer um copo
de água? — me abaixo num joelho para ficar do mesmo tamanho que ela.

Sua respiração era curta e rápida. Ela balança a cabeça em sinal de


afirmação.

— Volto logo, está bem? — beijo sua testa e me levanto para buscar água.
Olho para os lados até ver um bebedouro no fim do corredor.

Pego um copo descartável no dispenser e encho-o de água. Ainda estou


tentando entender o que diabos aconteceu ali. Volto para onde deixei
Fluflu e a encontrei chorando. Aquela imagem fez meu coração doer ainda
mais. Ela estava sofrendo e não era pouco.

— Ei! Eu estou aqui. Shhh. Shhh. — deixo o copo no chão e a abraço


firme. — Estou aqui com você. — ela começou a soluçar. Nunca a vi
naquele estado.

— Eu devia ter voltado. Fui uma idiota egoísta. Eu devia tê-lo dito que o
amava mais que tudo. — Se meu coração não estivesse quebrado, ali seria
o momento em que ele quebraria.

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— Ele está aqui? — acariciei suas costas. Senti apenas o balançar de sua
cabeça. Brevemente me separei do abraço e peguei o copo de água. —
Aqui. Beba devagar. — assisti enquanto Flora esvaziava o copo.
— Eu fui tão burra!

— Não diga isso, Flulfu! Você é uma das pessoas mais sábias que eu
conheço.

— Idade. — zomba. — Idade não define a sabedoria de ninguém. São


apenas números que contam quanto tempo estamos aqui na Terra. As
escolhas sim, definem a se você é sábio ou não. E eu escolhi errado.

— Não estou entendendo.

— A pessoa que procuro... Ela... Você a trouxe.

Levo um tempo para compreender o que ela queria dizer. E meus olhos se
arregalaram quando percebi de quem se tratava.

— O nome dessa pessoa é Oliver.

Oliver Finlay.

18

— Ah meu Deus!
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— Oi para você também. — diz sorrindo.

— Ah, meu Deus! Ah, meu Deus! Ah, meu Deus! — me jogo nos braços
do meu irmão e quase nos faço cair no chão.

— Wow! Parece que alguém estava com saudades. — Saudades? Aquilo


era pouco comparado ao que eu sentia.

— Só cala a boca e me aperta. — Tentei segurar as lágrimas, mas aquilo


era uma tarefa difícil.

— Ei! Você está chorando? — ele afaga meus cabelos.

— Não. — eu fungo.

— Mentirosa. — sabia que ele estava sorrindo, mas continuou me


abraçando e alisando meus cabelos.

— Quando você chegou? Por que não me avisou? — me separo dele e


enxugo minhas lágrimas.

— Agora mesmo. Queria que fosse surpresa. — dá de ombros.

— Venha. Vamos entrar. — deixo que ele entre primeiro e fecho a porta.

— Parece que nada mudou aqui. — comenta olhando ao redor da casa.

— Já você pelo visto… — Mike estava diferente. Usava um novo corte no


cabelo loiro, mais estiloso que o antigo. Parecia mais moderno e bonito.
Ele estava deixando a barba crescer, o que era uma surpresa. Ficou mais
forte também. Mas o que não mudou foi o brilho em seus olhos castanhos,

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como os meus e seu sorriso igual ao da nossa mãe. Apesar de gêmeos, não
éramos idênticos.

— É, bem… Talvez eu tenha mudado um pouco. — ele senta-se no sofá e


ergue um braço sob o móvel.

Vou para bem perto dele. Estou cansada de distância. A partir de hoje,
distância é minha palavra mais odiada depois de química.

— Na nossa última vídeo chamada você não estava assim.

— É, foi uma decisão repentina. Nada demais. — ele coloca um braço em


torno de mim, enquanto me aconchego ao seu lado.

— Então, como é Las Vegas? — começo minha série de perguntas.

— É… Não muita coisa. — diz como se estivesse entediado.

— O que? Está mesmo me dizendo que Las Vegas não é grande coisa? Las
Vegas, a cidade do pecado, onde tudo acontece? — Me separo o suficiente
para olhar nos olhos castanhos dele.

— Falando assim, até parece que é de outro mundo. — Levanto a


sobrancelha, como se estivesse dizendo exatamente isso.

Eu bufo. — Anda, me conta como foi lá. — cutuco sua lateral com meu
cotovelo.

— OK. — Volto a me encaixar na dobra de seu braço. — Hmm… Lá é


tipo Nova York, uma cidade que não dorme. A qualquer hora do dia você
encontra muitas lojas abertas e pessoas na rua. É bem louco, mas gostei da
adrenalina que emana do lugar. Parece que sempre tem algo novo para ver
e você meio que fica perdido com tudo o que tem lá.

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— Você já foi num cassino?

— O que?

— Perguntei se você já foi num cassino.

— Sim, eu entendi isso, mas eu quero saber o porquê.

Dou de ombros. — Vegas é conhecida pelos cassinos também. Você já foi


a um?

Mike coça a cabeça e parece um pouco desconfortável.

— Não!

— É, bem…

— Você já foi num cassino! — me libero de novo e aponto para ele.

— Kate, olha só não é nada demais…

— Como você vai a um cassino e não me leva junto? — eu realmente


fiquei chateada com isso. Sempre quis visitar lugares exóticos e cassinos
pareciam ser ótimos.

— Como é? — inclina a cabeça, como se estivesse me vendo pela primeira


vez.

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Estou muito chateada com você, Michael Laurentis. — balanço a
cabeça.

— Você não pode estar falando sério! — suas sobrancelhas sobem.

— Claro que estou falando sério. — cruzo os braços na defensiva, olhando


diretamente para ele.

— Cassinos não são lugares apropriados para você, irmãzinha. — Ele


não…

— Então quer dizer que você, homem e irmão mais velho, pode ir e eu,
mulher e irmã mais nova, não? — semicerro os olhos à espera de uma
resposta.

— Não são lugares para mim, também, Kate. Não se preocupe.

— Como assim?

— Bem, cassinos são chatos, na verdade. Não tem muito o que fazer a não
ser ver pessoas podres de ricas apostarem fichas que valem mais do que 3
vezes a nossa casa e perderem tudo.

— Então você não foi jogar?

— Claro que não. As apostas eram muito altas e eu não tenho tanta
estabilidade financeira para isso, maninha.

— Você é tão sem graça, bebezão. — reviro os olhos.

— Faz um tempo que não sou chamado assim. — imediatamente viro meu
rosto para ele. Dava para sentir a saudade em suas palavras.

— É…
162
Por algum tempo, ficamos presos em nossas lembranças. Ainda dói. Essa
desconstrução de um passado feliz. No entanto, acho que estamos
conseguindo superar.

— Bem, o que tem para jantar? Estou morrendo de fome. — Mike quis
saber.

Oh merda! O jantar! Ben! E agora? Não posso simplesmente abandonar


meu irmão aqui. Ele acabou de chegar e por semanas sonhei com o
momento que poderia estar com ele outra vez. Por outro lado, Ben é um
cara maravilhoso e eu detestaria dar um bolo no nosso encontro. Meu
primeiro encontro!

— Kate?

— Ah, então… Er… vou ver o que tem na geladeira. — salto do sofá.

— Você está bem? — me encara com a testa franzida.

— Sim, sim. Estou bem. — sorri, sem encarar seus olhos. Me ponho a
andar.

— Ok… Espere. Você ia sair? — parei no meio do caminho e virei para o


meu irmão. — Não me diga que atrapalhei sua noite. — ele parece
preocupado.

— Não, não. Eu não ia. De onde você tirou isso?

— Você está muito bem arrumada, irmãzinha. — ele levanta uma


sobrancelha, indicando minha roupa com a mão.

— Ah. Ah! Isso aqui? — faço descaso de sua observação sobre minha
roupa. — Não, não é nada de importante.

163

Então você se arrumou para ficar em casa? — Mike diz irônico. E ele
está certo. Já é bem difícil eu me arrumar para sair, imagine para ficar em
casa. Simplesmente, não é meu estilo e todos sabem disso.

— Sim. Às vezes faço isso. — Não queria que ele se sentisse culpado por
vir e, talvez, eu também estivesse com medo de falar que estava indo a um
encontro. Não sei. Apenas é muito constrangedor falar essas coisas para o
seu irmão mais velho.

— Está zoando comigo? — sim.

— Não.

— Você realmente se arrumou apenas para ficar em casa? — não.

— Sim. — Então ele começa a rir, o que me deixou com raiva. — Qual é a
graça?

— É que… É que… — Mike gargalha outra vez. — Isso parece uma piada.
— sua risada continua.

— Então quer dizer que eu sou uma piada para você? Francamente, Mike.
Não posso me arrumar para mim mesma? — cruzo os braços.

— Claro que pode, irmãzinha. O negócio é, você não faria isso.

— E por que não? — desafio-o.

— Porque, mesmo que tenhamos ficado separados por algumas semanas,


eu ainda conheço você, Kate. Anda, me conta, o que houve? — Maldição!
Às vezes, acho que ele me conhecer tão bem é mais um problema do que
ajuda.

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Devo eu contar para meu irmão que iria ter um encontro com Ben? Parecia
tão embaraçoso. Além do mais, Mike iria querer conhecê-lo e não acho que
isso seria uma boa ideia. Pelo menos não tão cedo.

— Kate?

— Eu levei um bolo. — disse rapidamente, sem ao menos pensar no que


estava fazendo. — Ou pelo menos eu acho que sim.

— Um bolo? De quem? — sua voz prometia morte. Ótimo! Mike estava


com raiva. Bom trabalho, Kate! Agora seu irmão quer matar aquele com
quem você quer sair.

— Não foi exatamente um bolo, ok? Ele teve um imprevisto e não pôde
vir. — Eu acho. Ben não parece ser o tipo de cara que faz isso, mas ele
também não deixou nenhuma mensagem.

— Quem é ele? — seus olhos formam uma fenda.

— Você não conhece. Não vai fazer diferença se eu contar.

— Kate…

— Mike, escuta. Isso é coisa minha. Pode, por favor, não se meter? —
tentei não soar tão seca, mas não creio que foi possível.

Meu irmão apenas me olha por um tempo. — Tudo bem. Você está certa.
Já não é mais criança para que eu cuide de assuntos como este. Apenas
tome cuidado, ok? E me avise se algum idiota fizer algo de errado com
você. — o olhar assassino dele era um aviso bem claro.

— Tudo bem. — sorri, sabendo que ele me deixaria em paz. Por enquanto.

165

Ótimo. — ele relaxa no sofá. — Mas ainda quero saber quem é esse
cara que te deu um bolo.

— Vou fazer seu jantar. — sigo caminho até a cozinha.

— Kate!

— Sim? — viro nos calcanhares, impaciente, de volta para Mike.

— Você está linda. — seus lábios se puxam para cima. Meu coração se
aqueceu ao ouvir aquilo.

— Obrigada. — dei um sorriso de gratidão. — Senti sua falta, bebezão.

— E eu senti a sua, irmãzinha.

Vou para a cozinha numa batalha feroz contra as lágrimas. Preparei o jantar
e alguns lanches. Queria falar sobre tudo ou sobre nada. Apenas têlo
comigo ali, naquele momento, já era o suficiente. Meu irmão estava de
volta e eu não podia estar mais feliz.

19

Nunca tinha percebido o quanto os cabelos de Fluflu eram macios até estar
acariciando-os hoje.
Apenas era triste que a situação tenha sido esta.

166
Ainda é um pouco difícil de acreditar que ela e o Sr. Finlay foram casados
e quase tiveram um filho. Era algo quase surreal. Uma história triste que
foi contada entre lágrimas e muita dor.

Flora me contou que os dois se conheceram aqui, na Carolina do Norte. Ela


vinha de uma família rica que se apaixonou por um homem negro
vendedor de jornais. Como esperado, a família não aceitou o
relacionamento então ela cortou os laços com eles, e foi viver com o seu
grande amor.

Fluflu e Sr. Finlay viveram muito bem na casinha deles em Raleigh até que
ela descobriu que estava grávida. Eles ficaram preocupados com a situação
financeira, Sr. Finlay mais ainda e acabou começando a mergulhar na
jogatina.

Houve então, um dia em que Fluflu sentiu dores muito fortes na barriga e
começou a sangrar. Porém ela estava sozinha em casa enquanto Sr. Finlay
estava em algum lugar, jogando. Quando ele voltou para casa, descobriu
que ela perdeu o bebê e cometeu o erro de dizer que talvez aquilo fosse
uma benção. Os dois brigaram feio e o relacionamento terminou ali.
Segundo Flora, ele já vinha definhando há meses.

Ela conseguiu sair de Raleigh e veio morar em Fayetteville. Fluflu nunca


procurou saber do Sr. Finlay. Até ouvir as coisas que eu falava sobre ele

167
quando criança. Ela me pedia para que eu me referisse a si mesma como
Fluflu. Então quando eu falava dela para o Sr. Finlay, ele nunca poderia
imaginar que fosse sua ex esposa.

— Fluflu. — chamo enquanto continuo acariciando seus cabelos. — Como


você sabia que o Sr. Finlay estava aqui, no hospital?

— Eu tinha decidido falar com ele. Você já tinha me dito onde ele morava.
Amanhã será seu aniversário de 63 anos e queria… — sua voz quebra. Ela
põe as mãos entre os cabelos. Meu coração apertava tanto que doía.

— Shhh. — massageio suas costas.

— Fazem 35 anos, Ben. 35 anos e nunca esqueci esse homem. Nunca


consegui amar outro além dele. Mesmo o odiando, meu coração nunca
voltou para mim para que eu pudesse dá-lo a outra pessoa. — um soluço
escapa de seus lábios.

Aperto meus braços ao redor de Flora. Lágrimas eram inevitáveis. Tanto as


dela quanto as minhas.

— Eu já cheguei a ir até a rua onde vocês moram, algumas vezes, apenas


para vê-lo. Mas em nenhuma delas tive a coragem de aparecer para Oliver.
— Nunca tinha visto Fluflu tão abalada quanto hoje. A dor de suas
palavras era quase insuportável até mesmo para quem as escutava.

— Mas… — tento controlar minhas emoções. — Ainda assim, você veio.


Isso é algo bom, não é?

— Eu… Eu vi a ambulância saindo da casa dele. Eu… Pensei que fosse


tarde demais. — ela chora mais um pouco.

168
Estava começando a ficar preocupado com a situação de Fluflu, mas não
interrompi sua fala. Ela precisava daquilo.

— Uma dor como essa só senti no dia que perdi meu bebê e no dia que nos
separamos. — Os olhos de Fluflu vão para um ponto distante, enquanto
lágrimas silenciosas escorrem por sua bochecha flácida. — Rezei o
caminho todo para que ainda pudesse ter a chance de dizê-lo que apesar de
tudo, nunca deixei de amá-lo com todo o meu ser. Apenas isso já seria o
suficiente para que o meu amor pudesse ficar em paz com isso... Mas
talvez não seja isso o que o destino quer. — ela tenta rir, mas saiu mais
como um choro.

— Ei, ei! — seguro seu rosto com ambas as mãos.

Os olhos de Fluflu continham uma escuridão, uma dor tão profunda que
nunca tinha visto antes. Reuni toda a minha força para não desabar com
ela, ali.

— Quem se importa com o destino? Você está aqui, por ele, Fluflu. O
destino não pode impedir alguém de ir aonde quer que for, se entre todo o
caos tiver amor. Seu amor pelo Sr. Finlay e sua decisão de estar aqui são
mais importantes do que qualquer destino, ok?

Olho para minha Fluflu, tão triste e despedaçada. Ela assente com um
movimento sutil de cabeça e vejo lágrimas se acumularem novamente em
seus olhos.

— Desculpe, querido. — ela chora, cobrindo o rosto com as mãos. Abraçoa


fortemente, porque nós dois estávamos precisando disso.

— Tudo bem. Eu estou aqui com você. — sussurro em seu ouvido. Sinto
suas lágrimas quentes molharem minha camisa enquanto seu corpo treme
com os soluços. — Você não está sozinha.

169
Imagino se fosse comigo. Se minha mãe tivesse numa cama de hospital e
não morrido num piscar de olhos. Imagino como seria ter a chance de ter
tempo para sofrer com isso. Não sei se é uma benção ou maldição o fato de
que não tive tempo para processar tudo.

Fluflu se liberta do abraço para tentar se recompor. A questão da sua idade


me preocupa também. Ela era uma mulher em seus 60 anos. Tinha medo
que todo aquele sofrimento pudesse causar sérios danos à sua saúde física.
As coisas sempre ficam sérias com assuntos do coração.

— Sabe o que eu faço quando estou muito triste? — pergunto tentando


fazê-la esquecer um pouco a dor.

— Você canta ou toca ou ouve música. — responde fraco, mas ainda


forçando-se a sorrir. Pelo menos um pouco.

— Você me conhece bem demais. — toco-a com meu ombro.

— Você age como se eu não tivesse te visto crescer e ter sido sua
confidente esse tempo todo. — bufa e limpa uma bochecha.

— Certo, você tem um ponto. — sorri, na tentativa de aliviar o clima


dentro de mim, também.

— Que música você vai cantar? — ela olha para mim. Penso sobre isso.

Não queria algo muito melancólico para não piorar a situação, mas também
algo muito alegre estava fora de questão.

— Everybody Hurts, do R. E. M.

— Parece ser interessante. Vamos ouvir. — sua cabeça descansa em meu


ombro.

170
Respiro fundo, me preparando para me conectar com a música e sua
melodia. Fecho meus olhos e abro meu coração.

―When your day is long


(Quando seu dia é longo)

And the night


(E a noite)

The night is yours alone


(A noite é só sua)

When you‘re sure you‘ve had enough


(Quando você tem certeza de que já teve o suficiente)

Of this life
(Desta vida)

Well hang on
(Bem, aguente firme)

Pego a mão de Fluflu e seguro firme.

Don‘t let yourself go


(Não se deixe ir)

‗Cause everybody cries

171
(Porque todo mundo chora)

And everybody hurts sometimes


(Todo mundo se machuca às vezes)

Sometimes everything is wrong


(Às vezes tudo está errado)

Now it‘s time to sing along


(Agora é tempo de cantar sozinho)

When your day is night alone


(Quando seu dia é só noite)

if you feel like letting go (Se


você quiser deixar ir)

If you think you‘ve had too much


(Se você acha que teve muito)

Of this life
(Desta vida)

Well, hang on
(Bem, aguente firme)

Coloco um pouco de pressão no aperto.

‗Cause everybody hurts


(Porque todo mundo se machuca)

Take comfort in your friends


( Conforte-se em seus amigos)
172
Mais um aperto.

Everybody hurts
(Todo mundo se machuca)

Don‘t throw your hand


(Não jogue sua mão)

Oh, no

Don‘t throw your hand


(Não jogue sua mão)

If you feel like you‘re alone


(Se você se sente como se estivesse sozinho)

No, no, no, you‘re not alone.


(Não, não, não, você não está sozinho)

Acaricio a palma de sua mão com meu polegar.

If you‘re on your own


(Se você está por conta própria)

In this life
(Nesta vida)

The days and nights are long


(Os dias e noites são longos)

When you think you‘ve had too much


(Quando você pensar que já teve muito)
173
Of this life
(Desta vida)

To hang on
(Para aguentar firme)

Well, everybody hurts sometimes


(Bem, todo mundo se machuca às vezes)

Everybody cries
(Todo mundo chora)

And everybody hurts sometimes


(E todo mundo se machuca às vezes)

And everybody hurts sometimes


( E todo mundo se machuca às vezes)

So, hold on, hold on


(Então aguente firme, aguente firme)

Hold on, hold on


(Aguente firme, aguente firme)

Hold on, hold on


(Aguente firme, aguente firme)

Hold on, hold on


(Aguente firme, aguente firme)

Em cada frase, eu torcia para que ela entendesse. Cantei com toda a minha
alma para que ela sentisse.

174
Everybody hurts
(Todo mundo se machuca)

You are not alone‖


(Você não está sozinho)

Prolongo a última frase. Foi algo que tinha dito a Fluflu, pouco antes. Eu só
esperava que ela soubesse.

— Com licença. Vocês são parentes do Sr. Oliver Finlay? — uma


enfermeira chama a nossa atenção.

— Sim. — Fluflu responde, ficando rapidamente em pé. — Como ele está?


Podemos vê-lo?

Me levanto também, ansioso pela resposta da enfermeira.

— Vocês podem vê-lo. Vou levá-los ao quarto onde o Sr. Oliver está. O
doutor está esperando para falar com vocês. — A jovem sorri.

Flora toma uma respiração profunda. Seguro seus ombros por trás.

— Vamos lá.

Ela acena com a cabeça. A enfermeira nos lidera por entre os corredores do
hospital. Sinceramente, eu odiava esse lugar. Era uma atmosfera tão para
baixo, que me fazia ficar doente.

175
Entramos num corredor e vimos um homem negro parado em frente à
porta.

— Obrigado, Leyla. — se dirige a enfermeira que logo se vai. — Olá, eu


sou o doutor Jordan. — ele estende sua mão e aperta as nossas. — Bem,
suponho que sejam a família do Sr. Oliver Finlay, certo?

— Sim, nós... Você pode dizer isso. — Flora responde novamente a


pergunta.

— Muito bem, pelo que vi nos resultados dos exames, o Sr. Oliver, que é
diabético, parou de tomar suas doses de insulina. Isso causou o aumento do
açúcar, o que o levou a ter um derrame.

— Oh, meu Deus! — Fluflu leva a mão trêmula à boca. Aperto seus
ombros.

— Ele sofreu um acidente vascular cerebral isquêmico. Houve uma


redução brusca do fluxo de sangue em uma artéria no cérebro, o que causa
a falta de circulação sanguínea na região. Com isso, ele pode ter problemas
com suas faculdades mentais e dificuldades de realizar certas tarefas como
falar, ver, andar e sentir.

Merda!

— E como ele está agora? — pergunto sem me conter.

— Estável. O caso do Sr. Oliver é muito crítico e delicado. Para alguém da


idade dele, esse tipo de situação é perigosa ao extremo. No entanto, o
atendimento foi rápido e vamos dar início ao tratamento para evitar que ele
fique com sequelas. Vamos fazer tudo o mais rápido possível para evitar
quaisquer problemas.

176
Sem "Ele está fora de perigo." ou "Não se preocupem, ele vai ficar bem.".
Nenhuma garantia.

— Obrigada, doutor. — diz Fluflu.

— Obrigado.

Ele assente. — Não há de quê. Vocês podem entrar. Vou sair para dar mais
privacidade, mas caso necessitem, há um botão perto da cama que, se
apertarem, uma enfermeira virá ao seu auxílio. Daqui a pouco voltarei com
uma equipe para darmos início ao tratamento do Sr. Oliver.

— Ok. Obrigado, doutor. — agradeço novamente.

Com um movimento de cabeça, ele se vai.

— Você quer entrar primeiro? — pergunto a Fluflu que estava olhando


diretamente para a porta do quarto em que Sr. Finlay estava.

Ela solta uma respiração trêmula.

— Ei. — massageio seus ombros. — Ele está bem, ok? Você consegue.

Um aceno.

— Quer que eu vá com você?

Ela balança a cabeça. — Tudo bem. — funga. — Eu estou bem. Não vou
demorar muito, querido.

— Não se preocupe comigo. Leve o tempo que precisar. — sorri para


mostrar que estava tudo bem para mim que ela tomasse todo o tempo com
ele antes dos médicos chegarem.

177
Fluflu sorri de volta e me dá mais um aceno com a cabeça antes de girar a
maçaneta e entrar no quarto.

Me encosto na parede e solto uma longa respiração. Ainda é difícil de


acreditar que o Sr. Finlay está mesmo desacordado atrás dessa porta numa
cama de hospital.

De repente, lembro-me do compromisso que marquei com Kate hoje.


Droga! Meu telefone tinha descarregado e já estou há algumas horas
atrasado. Ela deve estar querendo arrancar minha cabeça fora por isso. Se
eu ao menos soubesse seu número de cor… Espero que ela entenda quando
lhe contar sobre isso.

Passaram-se uns poucos minutos até que Fluflu finalmente sai do quarto…
Chorando.

— Eu… Eu estou indo ao banheiro. Você pode entrar enquanto isso. — Ela
nem espera uma resposta. Vira-se e sai caminhando pelo corredor. Respiro
fundo e controlo minhas emoções. Não sei se consigo segurar a barra
quando vê-lo deitado naquela maca.

Seguro a maçaneta. Tenho que ser forte, pois o Sr. Finlay já passou muito
tempo sozinho. Mesmo desacordado, talvez ele precise de alguém para
confortá-lo. Trincando os dentes, entro no quarto.
A primeira coisa que vejo é o corpo imóvel do meu vizinho coberto por
lençóis, do tronco para baixo. Fecho os olhos um momento, para afastar
pensamentos ruins. Ele não é minha mãe. O Sr. Finlay terá um final
melhor. Ainda não pode ter chegado a vez dele.
178
Abro os olhos e me aproximo da cama.

— Hey, Sr. Finlay! — digo com a animação de sempre. Imagino que sua
resposta seria ―Olá, garoto‖, como sempre e não o ―bip‖ daqueles
aparelhos. — O senhor nos deu um baita susto. — sem resposta. Pego sua
mão e acaricio-a.

— Viu que a Flora veio? Ela ainda te ama muito e se arrepende de ter
perdido tantos anos longe de você. Se tem algo que aprendi com vocês
dois, é que quando a gente ama, a gente doa a nossa alma e coração para a
outra pessoa. Você tem a alma e o coração dela. Acredito que ela tem a sua
alma e coração também.

Mais uma vez, aquele ―bip‖ é quem me responde.

— Sabe, Sr. Finlay, acho que não nos encontramos por acaso. Você perdeu
seu filho e eu perdi meu pai. Você… Você tem sido um pai para mim, tem
me ensinado coisas sobre a vida e o coração. Eu… E-eu não quero que
você vá. — aperto os lábios um no outro. Desvio meu olhar para a parede.

— É claro que essa é uma declaração egoísta, mas… — uma lágrima


escapa. — Não sei se poderei aguentar de novo. Sim, você terá de ir, algum
dia, mas poderia não ser assim? Não agora? Talvez em sua casa, tranquilo,
sem nenhuma preocupação ou arrependimento. Você ainda tem um amor
para reconquistar, Sr. Finlay. Quem diria, não? — tentei dar risada, mas
saiu um barulho estranho. — Ela está esperando você. E quer pedir perdão.
Por favor, não vá sem antes falar com ela. — mais daqueles
―bip‘s‖ como resposta.

De repente, a porta do quarto se abre.

179
— Com licença. — pede o médico com a sua equipe atrás. — Precisamos
preparar o Sr. Oliver para começar o tratamento.

— Claro, claro. — Olho novamente para o meu velho amigo. — Eu amo


você, Sr. Finlay — sussurro e em seguida beijo sua testa. Não tentei
segurar as milhares de lágrimas que caiam enquanto isso.
Acho que uma das coisas mais difíceis que já fiz foi me separar do Sr.
Finlay naquele momento.

— Bom trabalho. — disse para o médico e sua equipe antes de sair.

Mas o que eu queria dizer mesmo era: Por favor, salve-o.

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20

Abro a porta da frente e encontro Rose me esperando.

— Hey, Kat! — Ela vestia uma blusa azul com uma jaqueta, saia de couro
preta e botas da mesma cor. — Que cara é essa?

— Terminei de assistir a série. — murmuro enquanto desço as escadas.


Minha cara não deve ser das melhores mesmo, visto que passei a
madrugada toda maratonando.

Hoje decidi vestir uma camisa branca que dizia "No reading, no life", jeans
skinny e meus usuais tênis surrados.

— Okay… Mas de qual série estamos falando, exatamente? — Rose se


apressa em me acompanhar na caminhada até a escola.

— Grey 's Anatomy. — Dizer aquele nome em voz alta me causava certo
sofrimento.

— Não! — Ela leva as duas mãos à boca. — Ah, Kat! Como você está se
sentindo? — uma das mãos vai ao meu ombro.

Olho para Rose com desdém. — Eu preciso mesmo responder a essa


pergunta?

Rose estuda meu rosto. — Nah! Deixa para lá. Enfim, sei como se sente.
Mesmo tendo terminado há 3 dias atrás, ainda não superei. — suas
sobrancelhas se unem.
181
182
Não acho que estarei muito melhor daqui a três dias. — Encaro o
asfalto à minha frente.

— Talvez, mas apesar de tudo, é uma série incrível. Sou fã da Shonda. Até
quero fazer faculdade de enfermagem ou algo assim. — Só Rose mesmo
para dizer que quer fazer faculdade de enfermagem "ou algo assim."

— É, a Shonda fez um ótimo trabalho. — estávamos chegando perto da


padaria quando notei que o estabelecimento estava fechado. — Que
estranho. A essa hora a padaria costuma estar aberta.

— Pois é… Não deve ser nada demais. Além disso, você pode perguntar ao
seu homem bonitão sobre isso, já que ele e a dona são velhos amigos. —
sinto seu ombro encostar no meu. Resisto a vontade de revirar os olhos.

— Você sabe o quão ridícula é, não sabe?

— As duas únicas coisas que eu sei é que sou muito hot e Benjamin está
caidinho por você.

Não consigo reprimir e solto uma risada. — Você devia comprar óculos.
Seus olhos estão enxergando demais.

— E você devia abrir mais os seus. — Rose cutuca meu rosto. — Se toca,
baby, e pega logo o que está sendo dado de bom grado para você.

— Acha mesmo que não está exagerando? Talvez ele só seja gentil. — Eu
não tinha certeza se acreditava nisso.

— Você realmente acredita nisso? — Ela arqueia uma sobrancelha.

— Eu não sei…

183

— Olha só, é normal se sentir insegura, ok? Só não deixe isso atrasar você.
Eu realmente gostei do cara. Parece ser decente. Mas se estivermos
enganadas e ele for um babaca desgraçado, vou chutar a bunda dele e
destroçar aquele rostinho lindo. — Ela faz movimentos de garra no ar.

— Ele que se cuide então. — dou risada. — Talvez você esteja certa… —
penso alto.

— Eu sempre estou. A propósito, como foi o encontro de vocês ontem?


Fiquei a noite toda esperando uma mensagem sua dizendo que deu o
melhor beijo da sua vida, mas nem um emoji eu recebi.

— Isso foi porque nós não saímos.

— O que? Ele deu um bolo em você? — Rose estanca no lugar. — Eu não


acredito que acabei de chamá-lo de decente.

— Não foi nada disso. — paro e olho para ela. — Pelo menos eu acho que
não.

— Explique. — exige, cruzando os braços.

Suspiro. — Mike chegou ontem.

— O que? — O rosto de Rose revela seu choque. — Como assim "Mike


chegou ontem"? — ela me olha com os olhos quase saltando das órbitas.

— Ele simplesmente chegou, sem aviso prévio. — dou de ombros. — Eu já


estava pronta para sair, quando ele chegou e decidi não ir mais. Afinal, eu
estava esperando muito tempo por isso. Além disso, Ben não me contatou.
Mandei uma mensagem, mas ele não recebeu. Talvez estivesse com
problemas. — pensei.

184
Acho bom ele ter uma ótima explicação para isso. Mas como foi com
seu irmão?

— Foi maravilhoso. — abro um sorriso. — Conversamos sobre os lugares


que ele visitou, as experiências dele e sobre muitas outras coisas. Ficamos
boa parte da noite comendo e conversando.

— E onde ele está ficando? Suponho que seu irmão não queira ficar na
mesma casa que sua mãe, certo? — três carros passam por nós e me
lembram que temos que ir.

— Sim. Ele disse que alugou um apartamento pequeno aqui perto. — volto
a andar.

— Uau. Não sei se fico chateada com Mike por quase ter te impedido de
sair com Ben ou se fico feliz porque ele voltou e não te deixou sozinha
ontem.

— Eu realmente estou feliz. Só não sei como contar sobre Ben para ele.
Não que tenhamos algo.

— Está vendo? Eu te disse. — Rose me abraça de lado enquanto


caminhamos. — Minha menina está apaixonada.

— Menos, Rose. Menos — seguro seus braços ao meu redor, enquanto


caminhamos tortamente.

— Você vai negar que não fica pensando nele 24h por dia? — levanta a
cabeça para me dar um olhar de desafio.

— Talvez 12h por dia? — Finjo dúvida.

185

— Eu sabia! — ela praticamente grita e começa a dar pulinhos. Viramos a
esquina, onde consigo ver o prédio da escola.

— Meu Deus, Rose! Ser um pouco mais discreta seria bom. — aperto seus
braços para me segurar e me impedir de cair.

— Eu estou feliz e é assim que expresso minha felicidade. — murmura


com a cabeça em meu ombro.

— Certo. — sorri.

Na aula de química, Ben parecia estranho. Ele que costumava ser bem
animado e brincalhão, hoje estava mais sério e triste. Apesar de ter me
dado alguns sorrisos e se desculpado por ontem à noite, percebi que sua
voz estava distante.

Decidi esperar até a hora do almoço para falar com ele. Enquanto isso, mal
consegui prestar atenção nas aulas. E se o problema for eu? Será que ele
iria mesmo me dar um bolo ontem? É claro que poderia ser algo totalmente
diferente de mim, mas a pequena possibilidade de ser eu, já era o suficiente
para me deixar inquieta e desatenta. Mais de um professor chamou minha
atenção por isso. Eu precisava que a hora do almoço chegasse. Assim eu
poderia falar com Ben e esclarecer isso de uma vez por todas.

— Então, se a mulher está em seu período fértil e realiza o ato sexual, as


chances de que ela engravide aumentam 25%. No entanto, é possível… —
o sinal toca interrompendo a fala da Sra. Smith, professora de biologia. —
Tudo bem, pessoal. Liberados. Não se esqueçam da atividade de casa. Ela
vai ser útil para o… — Mal ouvi o resto da frase, pois eu já estava fora da
sala à procura de Ben.
186
— Hey! Para onde vai com tanta pressa? — Rose me intercala no corredor.
Estou procurando o Ben. Você o viu? — mexo a cabeça na esperança
de encontrá-lo no meio da fila do refeitório.

— Vi sim. Ele está no gramado da frente. Sabe, notei que ele está diferente
hoje. — Rose franze a testa.

— Diferente como? — olho para ela.

— Não sei. Triste, talvez. O que é realmente estranho já que ele vive
sempre sorrindo e fazendo piadas. — Então ela também percebeu. — Não
notou?

— Sim, notei. É por isso que quero vê-lo. Talvez eu possa ajudar.

— Ok. Espero que você consiga animá-lo. — ela me dá um sorriso


encorajador.

— Pode deixar. — aceno com um sorriso e vou a procura de Ben.

Como Rose havia dito, ele estava sentado no gramado na entrada do


colégio, de costas para mim, com os braços envolta dos joelhos. Tão
sozinho. Tão distante. Me lembrou o dia que o encontrei no Mazarick pela
primeira vez. Respiro fundo, antes de andar em sua direção.

Consegui visualizar o fone de ouvido branco na sua orelha e hesito em


seguir em frente. Talvez ele não queira conversar… Mas pensando bem,
nenhum de nós precisaria falar nada. Eu apenas queria que ele soubesse
que não estava sozinho.

187

Me aproximo por trás e me sento ao seu lado, chamando sua atenção para
mim. Ben olha em minha direção, com um sorriso fraco. Devolvo o
sorriso.

— Posso ficar aqui? — pergunto sem fazer nenhum som.

188

Claro. — diz, dando de ombros.

Tiro a mochila das costas e coloco do meu lado. Imito a posição que ele
estava, colocando meus braços ao redor dos meus joelhos.

Sinto uma mão no meu rosto e me sobressaltei. Olho para Ben e o vejo
segurando um dos lados do fone. Com um sorriso, pego-o de sua mão e
coloco no ouvido. Era um rock. Não conhecia aquela música ou de quem
era e não gostava muito do estilo também, mas naquele momento eu não
me importava. Estava entrando no mundo de Ben.

Durante todo o intervalo do almoço ficamos ali. Era intrigante a quantidade


de vezes que passamos juntos sem ao menos dizer uma palavra com tão
pouco tempo que nos conhecemos. Mas eram aqueles momentos de
silêncio que os nossos sentimentos gritavam e nós dois conseguimos sentir
isso. Não necessariamente sabíamos o que se passava com o outro, mas
entendemos e compartilhamos essa necessidade de ter alguém para ouvir o
seu silêncio. Eu torcia para que Ben soubesse que eu estava ali para ele.

Sua expressão não mudou desde que cheguei e não queria forçar nada.
Então apenas continuei escutando a playlist do lado dele. Percebi que
estava na pasta aleatória. Algumas músicas eram de gêneros diferentes.
Tinha rock, folk, blues e até indie. Comecei a conhecer um pouco mais de
Ben ouvindo sua playlist enquanto estávamos os dois sentados no
gramado da escola, olhando as pessoas passarem.

Era estranho, mas ao mesmo tempo especial. Me fazia querer passar mais
tempo com ele, conhecer mais dele, ter mais dele. Tinha medo de que
pudesse estar me apaixonando tão rápido por Ben sem saber se ele sentia
isso também.

O sinal toca. Começamos a nos levantar e pegar nossas mochilas.

Então, você sempre vem aqui? — Devolvo a metade do fone.

189

Ben ri e pega o fone da minha mão. Eu não sei o que senti na hora, mas
deixou meu coração mais leve. Ouvi-lo rir foi um alívio.

— Parece que voltamos no tempo. — olha para mim, com um sorriso de


lembranças.

— Pois é. — ajeito minha mochila no ombro e piagarreio. — Então… você


está bem? — Olho-o com atenção.

Ben suspira pesado. — Meu vizinho está no hospital. — dá de ombros e


começa a caminhar para entrar no prédio. Então foi por isso que não tive
notícias suas ontem.

— Aquele de quem você gosta muito? O Sr. Finlay? — acompanho os


passos dele.

— É… Eu só… não sei lidar. — o tom de derrota na sua voz, fez com que
eu colocasse minha mão em seu braço, fazendo-o parar.

Seu olhar vai para a minha mão e depois para mim. Eu não sabia o que
dizer. "Sinto muito" parecia tão idiota assim como "vai ficar tudo bem".
Naquela hora, isso não parecia ajudar muito.

— Você quer conversar?

Ele vira a cabeça para frente enquanto decide.

— Não… Eu acho que não. Por enquanto. — confessa baixinho.

— Tudo bem. Você pode me contar quando quiser. — movo o polegar sem
tirar a mão de seu braço. — Eu… Você não está sozinho, ok?

190
Ben me encara com aquelas esferas azuis. Sempre fico sem ar quando elas
me encaram. Era tão intenso. Tudo era intenso em relação a Ben. Desde
conversas à trocas de olhares.

— Obrigado. — sussurra. Por um instante vi suas barreiras fraquejarem.


Ele quase desmoronou ali mesmo. Talvez Ben estivesse muito pior do que
demonstrava.

Tinha a impressão de que ele era uma pessoa muito solitária, carente de
alguém que o ouça de vez em quando. Por um instante, aquilo fez meu
sangue ferver, pois todo mundo merece ter alguém para dividir os
problemas da vida, não carregar certos fardos sozinho. Então por que Ben
não tinha?

— A partir de agora, você tem uma amiga, Benjamin Hunter. — digo com
firmeza. Podíamos nos considerar amigos antes, mas senti a necessidade de
falar oficialmente em voz alta pra ele.

— A partir de agora você tem um amigo, Katherine Laurentis. — devolve


baixinho.

191
21

Eu não sei bem como lidar com tudo isso. Dava para levar quando eram
apenas problemas com meu pai e com o trabalho. Mas agora… Há dias que
eu não sei como respirar. Há dias que só quero ficar na cama ouvindo
música. Há dias que eu queria viver outra vida. Está ficando difícil de
aguentar.

Quando Kate me disse que ela estava lá para mim, há alguns dias atrás,
pensei que podia dar certo. Eu finalmente poderia ter alguém para me
segurar quando a merda ficasse tão insuportável que minhas pernas
cederiam. O problema era… Eu não queria falar sobre isso, levar essas
frustrações para outra pessoa, especialmente para Kate.

Eu podia lidar com aquilo também. Eu ficaria bem de novo como em todas
as outras vezes e ninguém precisaria saber de todo esse problema que é a
minha vida. Eu conseguiria.

Sr. Finlay ainda não deu nenhum sinal de melhora. Os médicos ainda estão
supervisionando o estado dele e Fluflu não sai do seu lado. Estou tão
preocupado com os dois. Toda essa preocupação está resultando em
broncas do meu chefe e dos professores. "Você não é assim, Benjamin!"
"O que está acontecendo com você?" "Estou decepcionado, Benjamin."
"Você era tão esforçado!" "Nunca pensei que você fosse assim." Essas são
as frases que mais escuto deles. E estou cansado delas.

Vai ficar tudo bem.

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Volto para casa depois de levar mais uma advertência de Adam, no
trabalho. Acabei saindo mais cedo por causa disso. Ele me disse para botar
minha cabeça no lugar e voltar no dia seguinte focado para fazer um bom
trabalho. Como se valesse a pena, quase disse. Eles pagam tão mal que
quase não se nota a diferença entre trabalhar de graça e isso.

Bon Jovi, em Living on a Prayer, disse: Nós temos que aguentar,


preparados ou não. Você vive para lutar quando é tudo o que resta.

Subo direto para o meu quarto, ignorando totalmente meu pai jogado no
sofá com suas garrafas de cerveja baratas vazias.

Depois de um longo banho, me sinto exausto de até mesmo pegar Big Ben.
Só me deixo cair na cama com meus fones. Olho para o teto.

— Mãe, o dia hoje foi difícil. Tem sido uma semana difícil e preciso que
me ajude… Que me dê alguma força porque… porque não sei onde
encontrar mais. — O som das cigarras, junto com a brisa fria da noite,
atravessam a janela aberta. Suspiro. — Boa noite, Mommy Cookie. Espero
que eu sonhe com seu sorriso hoje.

E eu esperava, desesperadamente, sonhar com aquele sorriso.

Fiz todas as minhas tarefas hoje. Acordei um pouco mais tarde, então tive
que me apressar.

Toda vez que saio de casa e olho para a varanda adjacente à minha, sinto
meu peito doer. Ele não está mais lá, porém me agarro na esperança de que
seja temporário. Passo pela padaria e a placa "fechado" produz um
sentimento semelhante. Eles vão voltar.

Na escola, fica difícil manter a concentração. Faço o melhor que posso para
que nenhum professor chame minha atenção novamente.
193
— Hey, garoto do rock! — Rose chama, atrás de mim.

— Hey, Rose! — forcei um sorriso para a ruiva. Ela vestia um moletom do


Guns'n'roses e uma calça jeans preta, rasgada nos joelhos.

— Por que não vêm almoçar com a gente? — sua cabeça inclina em
direção ao refeitório.

— Valeu. Preciso fazer uma ligação antes. Encontro vocês lá.

— OK. Até mais! — se despede com um aceno de mão aberta e caminha


para fora da minha vista.

Pego o celular e digito o número de Fluflu.

— Bom dia, Fluflu! Como vai hoje? — mantive um tom alegre, do jeito
que ela gosta de ouvir. Creio que ela precisava, ao menos, disso.

— Bom dia, querido. — A voz dela parecia cansada. — Estamos bem, não
se preocupe. Oliver não teve nenhuma melhora, mas também nenhuma
piora. O Dr. Jordan está confiante por ele não ter piorado nesses dias.

— Ah, isso é incrível, Fluflu! Com certeza ele vai sair dessa. — disse mais
para mim do que para ela. Flora parece perceber.

— E como você está indo? Espero que não tenha se preocupado demais. Eu
disse que ligaria ao menor sinal de mudança.

— Eu sei. Mas não posso evitar. — dou um sorriso triste e encosto numa
parede próxima enquanto alunos passam por mim. — Hoje à noite estou
indo visitá-los.

194
— Mas você não trabalha hoje? Como vai vir para aqui?

— Depois do trabalho.

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Ah, querido. Eu sei que não é fácil para você também, mas tente
descansar. Não ajudará em nada se você acabar ficando doente.

— Não se preocupe. Sou jovem e tenho boa saúde.

— Não brinque com isso! — posso imaginar a testa dela franzindo.

— Não estou brincando. Eu… Eu preciso mesmo ver vocês dois, Fluflu. —
confesso baixinho.

Ela suspira. — Entendo. Bom, venha quando puder. Faremos companhia


um ao outro. Mas você irá para casa cedo. — adverte. — Ainda não é fim
de semana e você tem aula pela manhã.

— Combinado. — Um sorriso surge em meus lábios. — Sinto sua falta,


Fluflu.

— Eu também sinto, querido. — diz com suavidade.

Desligamos.

Faço meu caminho até o refeitório. Pego meu almoço na cantina e procuro
por Kate e Rose. Encontro-as numa conversa animada, não longe de onde
eu estava.

— Qual o assunto da vez? — coloco a bandeja na mesa e sento ao lado de


Kate.

— Sobre Breaking Bad. — Rose adianta.

— É uma série, não é?

196

Sim. — Kate confirma com a cabeça. — Li a menção dela num livro.
Dois personagens resolveram assistir e acabaram maratonando algumas
temporadas. Rose e eu estamos decidindo se vamos assistir.

— É. Eu não vi um conteúdo tão bom. — Rose dá de ombros.

— E por conteúdo, você diz homens musculosos e sem camisa. — Kate


revira os olhos.

— Bem, são meus olhos que irão assistir, não? — A ruiva levanta uma
sobrancelha.

Faço o possível para conter uma risada. Coloco um pouco de comida na


boca.

— Quer se juntar a nós? — Kate pergunta olhando para mim.

— Obrigado, mas já tenho planos. — Dei um sorriso de desculpas,


enquanto mastigava.

— Tudo bem. — sorri compreensiva e dá um gole da própria bebida.

— Podíamos ir ao cinema este fim de semana. Consegui ingressos para


todos. — Rose propõe..

— Todos? — Kate limpa a boca.

— Eu, você, Ben e Sean.

Kate parece se engasgar.

— Está tudo bem? — pergunto, subindo e descendo minha mão em suas


costas. — Respira.

197

Eu estou bem. — responde com dificuldade. Ela pega o copo e toma


mais uns goles. Depois, tosse um pouco e finalmente parece se recompor.

Tiro a mão de suas costas.

— Algum problema? — pergunta Rose.

— Isso… Isso parece um encontro de casais. — Kate murmura.

— Bem, mas não é. Obviamente, o único casal que irá será Sean e eu. —
Rose olha para Kate como se a estivesse desafiando a dizer alguma coisa.
— O que você diz? — pergunta para mim.

— Por mim, tudo bem. — dou de ombros. Eu estava mesmo devendo um


encontro a Kate.

— Ótimo! Então está combinado. Acertaremos os detalhes mais tarde. —


Rose bateu palmas, animada.

Conversamos sobre outros assuntos e nesse tempo, esqueci das minhas


preocupações. Era bom rir com sinceridade quando a vida estava envolta
de problemas.

Saindo da escola, estava caminhando para o trabalho, quando meu celular


toca.

— Alô?

— Ben? Ben! É o Oliver! Ele teve uma parada cardíaca! — Fluflu grita
desesperada na outra linha.

— O que? — meus pés já estão regredindo.

198

Eu não sei o que aconteceu. Ele… Ele apenas… — Ela chora


descontrolavelmente.

— Aguente firme, Fluflu. Eu já estou indo. Me ouviu? Estou indo! —


guardo o celular e corro até o hospital.

Ficava há 8 quadras de onde eu trabalhava. Então corri até meus pulmões


gritarem.

— Ele está estável, agora. Conseguimos fazê-lo voltar. Ele está lutando,
vocês podem ter certeza. — o Dr. Jordan, nos informou.

— Graças a Deus! — Fluflu relaxa em meus braços.

Deito sua cabeça em meu ombro, compartilhando o mesmo sentimento.

Sr. Finlay está bem.

— Obrigado, Doutor. — digo para o homem.

Ele inclina a cabeça e volta ao trabalho.

— Ele vai ficar bem. — murmuro e dou um beijo na cabeça grisalha de


Fluflu. Ouço-a respirar fundo.

Meu telefone toca novamente. Pego, com cuidado para não nos tirar
daquela posição, e atendo.

199

— Alô?

Benjamin, onde você está? — Era Adam. E parecia furioso.

— Olha só, cara, — tentei falar o mais baixo, para que Fluflu não
escutasse. — Eu não pude ir hoje. Tive um contratempo e…

— Quer saber? Eu cansei de suas desculpas. Eu te falei ontem, cara. Você


devia colocar sua cabeça no lugar, mas como parece que você não está nem
aí para o seu trabalho, nem precisa voltar. Está demitido. Mando o seu
dinheiro direto para a sua conta. — Então ele… desliga.

— O que foi? — Fluflu pergunta, ainda encostada no meu ombro.

— Nada. Era engano. — tranquilizo-a passando a mão em seu braço.

Ela não fazia ideia do quanto eu queria que aquilo fosse verdade. Eu tinha
acabado de ser demitido.

200
22

— O que? Como assim 'demitido'?

— Do tipo que seu chefe fala para você não trabalhar mais para ele. — Ben
tenta fazer piada. O negócio é que não estou achando graça.

Estamos juntos no Mazarick, em mais uma aula de química e ele acaba de


me confessar que foi demitido ontem.

— Mas porquê ele demitiu você? — Isso ainda era muito ilógico para mim.
Ben não parecia ser do tipo que faria algo grave para causar uma demissão.

Tiro o caderno e livros do meu colo e coloco-os no banco, ao meu lado,


para me virar diretamente para Ben. Ele me parecia bem tranquilo. Seus
braços estavam cruzados, mas suas feições estavam relaxadas, não
demonstravam qualquer preocupação. Em relação àquilo, pelo menos.

— Adam estava na minha cola essa semana, por eu estar um pouco menos
produtivo do que eu costumo ser. Veja bem, com o Sr. Finlay no hospital e
Fluflu com ele, eu realmente não consigo dar tudo de mim, preocupado que
algo possa acontecer a qualquer momento.

— Mas — ele continua. — apesar disso, eu nunca dei motivo para que
Adam desconfiasse da minha capacidade de fazer tudo correto. Sempre fiz
todo o trabalho do jeito que tem que ser feito, agora, apenas, com um
pouco menos de ritmo.

— Então, ele te demitiu por isso? — pergunto, sem querer acreditar.


201
— O gatilho — ele me olha com uma sobrancelha levantada. — foi eu ter
ido para o hospital ontem, sem avisar que ia faltar o trabalho. Erro meu,
admito, mas o Sr. Finlay teve uma parada cardíaca e fui correndo ficar com
Fluflu. Adam me ligou furioso e não me deixou explicar. Simplesmente me
demitiu.

Mas. Que. Filho. Da. Mãe.

— O que aconteceu com o Sr. Finlay? Ele está bem? — Meu coração está
batendo muito forte.

Um aceno. A brisa do fim de tarde passeia entre nós, bagunçando os


cabelos de Ben. — Ele está fora de perigo agora.

Meu peito se alivia.

— Isso é bom. — respiro. — Mas agora você está desempregado. — olhoo


com atenção em busca de alguma emoção. — Você está bem com isso?

Ele suspira, olhando para o lago à nossa frente.

— Eu não devia. Sabe, não sou rico e está difícil arranjar um emprego de
meio período. Mas eu não aguentava mais. Era como se fôssemos animais.
Mal tínhamos folga e o pagamento era horrível. Provavelmente isso não
acontece em grandes empresas, mas eu não tinha condições de me dar o
luxo de escolher.

Não sabia o que fazer quanto a isso. Eu queria, desesperadamente, ajudálo,


mas ele está certo. Não é fácil arranjar um emprego de meio período aqui
por perto.

— Vou ficar de olho caso uma oportunidade chegue. — Foi o melhor que
consegui fazer para consolá-lo.

202
Ben vira a cabeça para mim e dá um sorriso de gratidão.
— Obrigado. Mas, por enquanto, você será minha chefe.

Inclino a cabeça, com uma pergunta nos olhos. Algumas pessoas riem e
conversam em algum lugar perto dali.

— Bem, você está me pagando por essas aulas, não? Foi você quem
insistiu. — esclarece.

— Ah. Sim, certo.

— Agora, chefe, que tal voltarmos de onde paramos? — inclina o queixo


na direção do meu caderno e livros. — Você ainda tem que terminar… —
olha para cima, fazendo a contagem. — 8 questões, se não estou enganado.

Resmungando, pego o material novamente e volto ao trabalho.

— Chefe, é? — murmuro, olhando-o de soslaio.

Ben ri.

— Apenas faça os exercícios.

— Uau. Aqui é… Diferente do que eu imaginava.

Realmente, a casa alugada de Mike não era nada do que eu esperava. Era
muito pequena e a sala era diretamente conectada com a cozinha, como se
fosse para economizar o espaço.
203
Havia apenas um sofá, perto da porta, a tv antiga em cima de uma pequena
mesa; os móveis da cozinha eram velhos e gastos também. Haviam mais
duas portas, que eu suponho serem um quarto e um banheiro. Como já
estava escuro, as luzes estavam ligadas, mas não demonstraram fazer um
bom trabalho.

— O que esperava? Uma casa de três andares com piscina e TV de tela


plana? — Mike passa por mim e se joga no sofá.

Ele não se deu ao trabalho de tirar as botas de couro pretas. Eu raramente


via meu irmão usar qualquer cor que não fosse preto.

— Claro que não. Só achei que estivesse em melhores condições. — Ando


até ele e sento no sofá também.

— É o único lugar mais perto de você e com um bom preço que consegui
encontrar.

Segurei a vontade de dizer que ele podia voltar a morar em casa, que o
quarto dele está do mesmo jeito que deixou há 3 anos atrás. Tivemos
longas discussões sobre isso e não quero voltar a tê-las agora.

— Então, o que vamos fazer? — Olha para mim curioso.

— Bem, pensei que você tinha algo em mente quando decidiu me trazer
aqui. — Levanto uma sobrancelha. — Eu estava muito bem lendo Guerra e
Paz na minha cama.

— Você ainda não se acostumou a andar de moto, não é? — Era visível o


esforço que ele fazia para não rir.

— Não vi a necessidade de usar aquela coisa. — cruzo os braços,


lembrando de quando Mike disse que eu não precisava apertá-lo tanto
204
enquanto ele dirigia em 40km/h. — Podíamos muito bem ter caminhado.
Não é longe de casa.

O desgraçado acaba por soltar uma risada.

— Isso tudo foi para me irritar, não foi? — Meus olhos são como fendas na
direção do Mike. Quando ele não nega, eu bufo. — Bebezão.

— Qual é irmãzinha! — me cutuca com o maior dos sorrisos. — Uma hora


você vai ter que se acostumar, sabe.

— Nos seus sonhos, eu vou. — Me levanto do sofá e vou até a geladeira.

Não tinha muita opção do que comer, então apenas peguei um pote de
pasta de amendoim.

— Você tem pão?

— No armário à sua esquerda. — ele aponta com o indicador.

Olho para a esquerda da geladeira, para o pequeno armário na parede. Abro


uma porta e imediatamente vejo a sacola com os pães. Pego e coloco na
mesa. Procuro por uma faca e encontro uma na pia. Lavo e então volto para
a mesa.

— Nós podíamos pedir comida. — Mike aparece na cozinha e senta-se


numa das quatro cadeiras.

— Eu sei. Mas não consigo resistir a isso. — começo a trabalhar nos pães.
— São meus preferidos.

— Eu me lembro. — os olhos de Mike estão olhando diretamente para os


pães, como se eles estivessem mostrando imagens do passado.

205
— Você quer?

Ele apenas acena e me assiste fazer 4 pães melados com pasta de


amendoim para cada. Me sento na cadeira em frente a ele.

— Faz um tempo desde que comi um desses. — diz com a boca cheia.

Eu podia ver novamente o menino que amava comer essas coisas no jantar,
na cozinha de casa. Aquilo produziu uma ligeira dor no meu peito.

— Então, quando vai voltar à escola? — pergunto, tentando parecer


indiferente.

Mike para de mastigar por alguns segundos.

— Não sei. — volta a comer como se este fosse o assunto mais chato do
mundo

— Presumo que você saiba que precisa do ensino médio para entrar na
faculdade. — Deixo claro o sarcasmo em minha voz enquanto encaro o
meu gêmeo.

— Jura? Eu não fazia ideia, irmãzinha. — devolve o no mesmo tom.

Suspiro pesado.

— Por quanto tempo mais terá que ser assim? Você vai mesmo desistir dos
seus sonhos por cau…

— Que droga, Kate! Eu não estou a fim de falar sobre isso, ok? Vamos
parar por aí.— sua testa se franze em irritação.

206
— Suponho que você não queria falar sobre a mamãe também. —
murmuro, olhando com uma esperança morta.

— Não tenho nada para falar sobre ela. — diz ríspido. — Você está
passando dos limites.

Eu estava? Levanto minhas sobrancelhas, incrédula.

— Mike, você…

Ele me lança um olhar hostil. Um som de irritação sai de minha garganta.


Desisto de falar com ele sobre isso. Mike era tão teimoso.

Termino de comer e começo a guardar tudo.

— Na verdade, eu… Estava pensando em voltar. À escola, quero dizer. —


ele confessa num murmuro.

— Pensei que você não estivesse a fim de falar sobre isso. — retruco um
pouco magoada e me viro para guardar o pão e o pote de pasta de
amendoim.

— Eu sei. Fui um babaca, me desculpe.

Me viro para olhar para ele. Mike não estava olhando para mim, mas para a
mesa à sua frente, com a testa franzida. Respiro fundo.

— Então por que me disse que não sabia? — deixo minha voz suave e me
encosto no balcão da pia.

— Não sei bem. Ainda tenho um… Receio de voltar, sabe. É como se eu
esquecesse quem eu era e não soubesse mais o que eu quero. — ele diz a
última frase num sussurro.
207
Vou até ele e o abraço de lado.

— Seu passado não é o seu futuro, Mike. Você pode começar de novo.
Ainda não é tarde.

Ele suspira.

— Talvez. — a voz dele ainda é um sussurro.

Beijo sua cabeça teimosa. — Eu te amo, bebezão.

— Também te amo, irmãzinha. — Mike segura minhas mãos, que estão


unidas em seu peito. — Vou te levar mais cedo hoje. — solta de repente.

— Por que? — libero o abraço e volto a me sentar na cadeira.

— Quero acordar cedo amanhã para procurar um emprego.

— Pensei que já tinha um. — minhas sobrancelhas se unem.

Mike balança a cabeça. — Ainda não. Sabe algum lugar onde precisem de
funcionários?

Primeiro Ben, agora Mike. Gostaria que as oportunidades de emprego em


Fayetteville fossem melhores.

— Não, mas ficarei de olho. — prometo.

— Valeu. — ele me dá um sorriso lindo.

Senti falta de ver esse sorriso. Senti falta dele e ainda não acredito que ele
está de volta.

208
— Pare de me olhar assim.

— Assim como?
— Como se você fosse me pegar no colo e falar coisas com voz de neném.

— Bem, você é o bebezão, não?

— Tenho a mesma idade que você. — Mike semicerra os olhos.

— E, ainda assim, você me chama de 'irmãzinha'. — arqueio uma


sobrancelha.

— Você não sabe, mas foi achada num lixão.

— Tenho certeza de que você perdeu o completo juízo num daqueles


cassinos em Las Vegas.

Por um bom tempo, ficamos trocando insultos, mas depois rimos e


conversamos sobre as viagens dele e sobre meus planos de ser professora
de literatura. Mike me apoiava 100% no meu sonho e era mais um motivo
para eu amá-lo tanto.

Enquanto voltava para casa na garupa da moto dele, algo me incomodava.


Mike não ficava muito tempo quando voltava de suas viagens. Algo aqui o
lembrava do passado e ele simplesmente não suportava passar mais que 2
meses. Me perguntava quando ele iria embora novamente e quando isso
iria acabar.

23

209
— Você acha que essa roupa está legal? — pergunto virando a câmera do
celular para o espelho.

— Finalmente você parou de ser tão esquisita usando só cinza, marrom e


flores. — Rose fala me deixando ver apenas sua testa e seus olhos. —
Acho que agora você parece um ser humano de verdade e não um zumbi.

— Tão carinhosa. — zombo.

Depois de me olhar no espelho por tempo o suficiente para ficar satisfeita,


volto para a cama.

Optei por vestir uma calça jogger verde escuro, camisa branca com
mangas, enrolada com um nó, e um tênis branco. Deixei meus cabelos
soltos. Aquelas ondas mereciam um pouco de paz.

— Como você está? Nervosa com o jantar? — Rose finalmente mostra seu
rosto e se deita na cama, na mesma posição que eu.

— Não… Não estou. Da última vez correu tudo bem. Agora teremos mais
pessoas para prestarmos atenção além de nós mesmos. Vai ser legal.

— Bem, é o que queremos. Que horas você tem que sair?

— Daqui a alguns minutos. Richard disse que vem nos pegar às 19h. —
Meu braço começa a doer naquela posição.

210
— Cara, que louco. Você tem um padrasto agora. Minha mãe ainda não
conseguiu achar ninguém desde que meu pai morreu e isso foi há 16 anos.
Judith encontrou Richard em 3 anos. Acho que elas precisam conversar.

Eu rio.

— Talvez você pudesse dar uma de cupido. Você parece gostar do


emprego.

— Não é que eu goste. O negócio é que parece que vocês vivem precisando
de um. — Ela revira os olhos. — Mas eu já falei. Vou ser enfermeira.

— Deus ajude seus pacientes. — murmuro.

— Seu senso de humor é terrível, Kat. — Ouço um barulho do outro lado


da linha. Acho que vi Rose ficar tensa.

— O que foi?

— Nada. Acho que Sean chegou. — sorri forçado.

Eu não gostei disso.

— Rose…

— Eu preciso desligar. Você não quer ver o que nós iremos fazer, não é?
Se cuida no jantar. Vejo você amanhã. — desliga.

Estou preocupada com Rose. Não apenas pelo fato do relacionamento dela,
mas porque ela simplesmente não fala sobre isso. Sonho com o dia em que
ela finalmente se livre de Sean.

211
Uma buzina me avisa que Richard chegou. Pulo da cama. Olho no espelho
apenas mais uma vez e vou para as escadas.

— Kate!

— Estou indo!

Encontro-os na entrada de casa. Minha mãe estava bastante arrumada.


Deixou os cabelos castanhos lisos, correndo por suas costas e usou um
macacão pantacourt vinho, com saltos pretos. O batom era da mesma cor
que a roupa.

— Ah, mas eu sou um homem de sorte. Tenho certeza que não terei
sossego na companhia de duas lindas mulheres. — Richard pisca para nós.

Minhas bochechas esquentam. O homem tinha uma facilidade de conversar


e fazer as pessoas ficarem à vontade ao seu redor.

Ele também não está nada mal hoje. Como no jantar anterior, Richard não
precisa fazer muita coisa para ficar bonito, mas ele certamente gosta de
estar bem apresentável. Assim como eu, usava uma camisa branca, porém
com um blazer preto por cima. Sua calça jeans parecia da melhor
qualidade, assim como seu tênis azul escuro.

— Vamos? — ele aponta para o volvo branco.

O Buck's Pub era um lugar incrível. Bem rústico, mas moderno. Eu


gostaria de trabalhar aqui só pela ambientação.

212
As luzes, davam um clima alaranjado ao lugar. As paredes de tijolos eram
decoradas com quadros com frases e objetos como alvo para dardos, discos
de vinil e algumas luzes. Havia um lugar para tirar foto onde tinha um arco
e a frase "É aqui que eu me divirto."

Tinha um karaokê adjacente ao bar. Algumas pessoas cantavam ali, rindo e


errando a maior parte da letra. Consegui perceber uma jukebox perto do
palco. No bar, uma atendente recebia os pedidos. Todas aquelas bebidas,
categoricamente organizadas, davam um ar de modernidade ao lugar.
Embaixo do balcão, tinha a logo do Pub.

Havia muita gente ali. Muitos queriam passar o domingo de uma forma
legal e parece que o Buck's era perfeito para isso.

— Então, o que acha? — Richard me pergunta com um pouco de ansiedade


em seus olhos. Ao meu lado, minha mãe também parecia ansiosa pela
minha resposta.

— É incrível! — De fato, era e isso ficou claro no meu tom de admiração


enquanto dava mais uma olhada ao redor. — Não sei como não vim aqui
antes. — Começo a sorrir.

— Fico muito feliz que pense assim. — Ele parecia aliviado, como se
esperasse que eu dissesse algo ruim. A culpa enche meu coração. —
Venha, vamos nos sentar. Separei a mesa especialmente para hoje.

Percebi que Richard não estava tentando impressionar ninguém além de


mim. Minha mãe já conhecia o lugar, trabalhava aqui. Acho que ele fez
todo esse esforço para que pudesse aceitá-lo numa boa na minha vida. Ele
estava tentando, tenho que dar crédito a isso.

Nós sentamos numa mesa perto da parede, com uma boa visão do palco.

213
— Como não estou trabalhando hoje, — Richard se senta na ponta e eu e
minha mãe ocupamos os lados. — Bob ficará com a cozinha para ele hoje.

— Não posso dizer que não é o que ele queria. — Mamãe ri.

— Sim. — Richard solta uma risada. — Aquele velho espera por toda
oportunidade de ficar com o lugar só para ele.

— Você é o chef? — pergunto com as sobrancelhas levantadas.

Ele ri.

— Bem, sim. O que esperava?

— Não sei. Algo como Contabilidade.

— Eu faço os dois. — Richard sorri, pegando o cardápio. — Sou o dono,


então preciso comandar o lugar. Além disso, eu gosto de cozinhar. Minha
família é muito tradicional e caseira, então quando estava na Itália, aprendi
a fazer diversas coisas e a criar pratos também.

Incrível.

Pego o segundo cardápio na mesa. Minha mãe parecia me observar com


atenção. Foco nos pratos disponíveis. Tinha a sessão de Massas, de
Entradas, Principal, Sobremesas, Petiscos e a maior variedade de bebidas.
Muitos dos pratos e bebidas tinham nomes em italiano.

— Então, o que vamos pedir? — Minha mãe olha de mim, para Richard.

— Vamos deixar Kate escolher. — Buck… Quero dizer, Richard, junta as


mãos sob o queixo e olha para mim.

214
Eu não sabia o que fazer.

— Bem, eu… Não conheço muita coisa… Então vou deixar que o chef
escolha. Como mais uma introdução ao lugar. — Dou um sorriso.

Richard gargalha.

— Excelente!

— Vamos esperar que Marcos termine com suas mesas. Ele parece
ocupado hoje. — a cabeça da minha mãe se vira para onde um jovem
garçom negro, que entra, apressado, numa porta. Suponho ser a cozinha.

Ouço um suspiro.

— Ele tem trabalhado muito nos últimos dias. Preciso encontrar alguém
para ajudá-lo. O Buck's cresceu ultimamente e preciso aumentar a equipe.
— Richard diz olhando para porta onde Roy entrou.

— E você precisa que alguém tome meu lugar também. — Minha mãe
coloca a mão sobre a dele.

— Espere aí! — interrompo, com as mãos para cima. — Você vai se


demitir? — olho, incrédula para a minha mãe.

— Não é isso, Kate. Recebi outra proposta de emprego, uma que envolve
um trabalho na minha área. — Veterinária. Minha mãe era veterinária até
ser demitida por aparecer bêbada no trabalho. Irônico ela ter vindo
trabalhar num bar.

— Bem, que seja. — passo meus olhos através das pessoas. Encontrei
rostos familiares de pessoas da escola.

215
— Espero que não esteja chateada. — Ela diz com cuidado.

— Não estou. — E fui sincera. Eu também não contava as coisas para ela,
então não fazia sentido ficar brava com isso.

Minha mãe balança a cabeça em confirmação.

— Aí vem ele! — Richard abre um sorriso quando vê Marcos caminhando


em nossa direção.

— Boa noite, pessoal! O que gostariam de pedir hoje? — ele disse com um
sotaque que não reconheço. Sua boca formava o mesmo sorriso que o vi
dar aos outros clientes. Parecia alguém que gostava de fazer seu trabalho.

— Vamos querer uma porção de ravioli de carne, Jambalaya e uma torta de


maçã. Para beber, eu vou querer um tinto Santa Carolina reservado. Kate?
— Richard olha para mim.

— Apenas um suco de laranja. — observo enquanto Marcos digita nossos


pedidos em seu tablet.

— Pronto. É só aguardar. Desejam mais alguma coisa?

— Que você pare de ser tão formal comigo. Já falei que vou demitir você
por isso, garoto.

Marcos ri.

— Desculpe, chefe.

Richard bufa enquanto observa o jovem ir.

216
— Então, — ele começa, olhando para mim. — enquanto nossos pedidos
não chegam, que tal aquela partida de dardos?

Eu era muito, muito boa com os dardos e não fazia ideia.

— Você devia ter sido atiradora de elite na outra vida. Isso não é possível.
— Richard disse para mim, quando acertei meu primeiro dardo no alvo.

Ele, por outro lado, era surpreendentemente ruim. Em 20 minutos de jogo,


o homem só conseguiu acertar nas áreas pretas e amarelas externas.
Apenas uma vez Richard acertou o dardo no ponto vermelho interno. Já eu,
consegui uma mosca dupla duas vezes, e estou na frente com 554 pontos,
enquanto Richard está com 218.

— Não sei o que você está fazendo, Kate, mas com certeza não é justo. —
Ele diz enquanto arremessa seu último dardo. 18 pontos.

— Mau perdedor? — sorri diante da minha vitória. O jogo acabou e eu o


venci

— Eu costumava ser bom nisso, sabia? — resmunga e vai até a parede tirar
os dardos de lá.

— Então… — pigarreio, sem saber como começar. — Já que eu venci…


Gostaria de fazer um pedido.

Uma música folk começa a tocar na jukebox, que reconheci por ser Handy
Man do James Taylor.

217
— Vejo que temos uma garota esperta aqui. — Richard olha de soslaio
para mim e ri.

— "Não existe nada mais poderoso no mundo do que a ideia que chega na
hora certa." — Citei uma frase de Vitor Hugo.

— Certo. Bem, me diga o que posso fazer por você. — Ele já tinha
colocado os dados no lugar, ao lado do alvo. Agora, seu corpo está
totalmente virado para mim e tenho sua atenção.

— Não é nada demais. É que… Tenho dois amigos que estão procurando
um emprego e queria saber se posso recomendar o Buck's, já que você
disse que estava precisando aumentar a equipe. — Tomei o cuidado de não
citar Mike como meu irmão. Não tenho certeza de que ele aceitaria o
trabalho se soubesse que o chefe seria o namorado da mamãe.

Richard parece pensar. Mordo o lábio, ansiosa.

— Eles têm experiência com servir mesas ou contabilidade?

— Bem, não sei. Mas garanto que eles são inteligentes e dispostos a fazer
um bom trabalho. — Olho-o, esperançosa.

— Traga-os na quarta. Farei isso por você. — diz sorrindo, fazendo-o ficar
mais charmoso do que ele é.

Resisto ao impulso de soltar um gritinho e vou até Richard. Paro, antes de


fazer o que eu estava prestes a fazer. Ainda não estou pronta para um
abraço, mas, em vez disso, estendo minha mão. Ele sorri e a aperta, como
se estivéssemos chegando a um acordo.

218
— Vamos voltar. Deixamos sua mãe sozinha tempo demais para os outros
homens pensarem que ela está solteira e tenho quase certeza de que a nossa
comida está chegando.

Ele abre caminho para que eu passe primeiro.

— Parece que estão se dando bem. — Minha mãe comenta com um sorriso
enorme no rosto.

— Sua filha tem muitos talentos escondidos — Ele olha para mim e me dá
uma piscadela, como se fosse meu cúmplice.

Sorri, feliz porque agora talvez Ben e Mike pudessem ter um emprego para
se manterem. O único detalhe, é que provavelmente iriam trabalhar juntos
e eu não sabia como diabos eu iria apresentá-los.

219
24

— Eu estou nervosa. — confesso.

— Não fique nervosa, babe. É apenas um encontro duplo. Nada demais.

— Você não está ajudando, Rose. — olho duro para a ruiva espertinha.

Estamos em frente ao cinema, para assistir A Ilha da Fantasia, enquanto


Ben e Sean não aparecem. De início, Rose e eu iríamos com Sean no carro
dele, mas preferi ficar com a minha só para mim por alguns momentos para
poder ficar confortável em jogar meus sentimentos para fora.

— Não se preocupe, Kat. Seu homem vai aparecer e quando te ver... — Ela
assobia. — Vai precisar de um caixão.

Reviro os olhos.

— Estou vestida como qualquer um. — Meu moletom branco da Corvinal,


jeans claro e meus tênis brancos, são a prova disso. — E ele não é meu
homem.

— Não sei porque você ainda nega. Está na cara que estão destinados. —
Ela move a cabeleireira ruiva à procura de algum dos garotos.

Suspiro.

— Não podíamos ter feito isso na casa de alguém? É mais confortável. —


cruzo os braços, olhando para as pessoas entrando e saindo do prédio.
220
— Não seja tão caseira, Kat! Olhe, ali vem o Sean! — diz com a voz
estridente.

Ele está caminhando. Suponho que o carro estava estacionado em um lugar


próximo. Suas roupas sempre casuais, mas estilos as, numa combinação de
couro e jeans. A pele negra vibrando à luz dos postes, com seu caminhar
elegante. Sean era mesmo um homem bonito, não é atoa que Rose vive
suspirando por ele.

Mantenho a boca fechada para o comentário sarcástico. Apenas suporto o


cara porque minha melhor amiga é apaixonada por ele.

— Hey, gata! — Sean agarra Rose pela cintura e os dois fazem uma
demonstração, íntima demais, de afeto no meio da calçada.

Não que eu não tivesse passado pela mesma coisa diversas vezes durante
os dois anos que eles estão juntos, mas nunca me acostumei.

— Oi, amor! — Rose dá o sorriso mais apaixonado quando interrompe o


beijo e se agarra ao pescoço dele. — Estava com saudades.

— A faculdade me prendeu a semana toda. — levanta um ombro. —


Então, vamos?

— Estamos esperando o acompanhante Kate.

Agora o foco dos pombinhos sou eu.

— Oi, Sean. — tento dar um sorriso legal.

— Kate. — inclina o queixo em minha direção. — Não sabia que estava


namorando.

221
— Ainda não. — Rose me olha, sugestiva. — Mas esperamos que
aconteça, logo, não é?

— Eu não estou desesperada. — replico seca.

— Claro que não, babe. Eu só...

— Espero que eu não esteja muito atrasado.

Dou meia volta, surpresa pela voz que veio atrás de mim.

— Ben. — Não pude evitar o sorriso que saiu dos meus lábios.

Ele está tão bonito. Sua camisa branca, um pouco justa, com jeans rasgado
e botas marrom, dava uma vista de tirar o fôlego. Ben está simples – ele é
simples –, mas, ao mesmo tempo, acima da média.

— Maravilha! Ben, quero que conheça Sean, meu namorado. Sean, este é
Ben, o acompanhante de Kate hoje. — Rose sorri e pisca rapidamente para
mim.

— É um prazer. — Ben sorri gentil para Sean, que não devolve a gentileza.
Ele parece não gostar do meu 'acompanhante'.

— Aqui estão seus tickets. — Rose entrega os três ingressos para cada um.

— Então, vamos nessa? Gosto de pegar os trailers. — digo.

— Estamos indo comprar as pipocas. — Rose puxa Sean para irem à


frente.

— Você está bonita hoje. — Ben se inclina para o meu ouvido.

222
Apesar do arrepio, forço a minha voz sair calma, enquanto caminhamos
atrás deles.

— Sim. Corvinal tem essa influência nas pessoas.

A risada de Ben ecoa fazendo Rose e Sean virarem para nós.

— Qual é a dele? — Seu queixo aponta na direção de Sean quando ele e


Rose voltam à conversa. — Acho que o namorado de Rose não gosta muito
de mim.

— Ignore-o. — Controlo a vontade de revirar os olhos. — Sean não é


minha pessoa favorita também e ele provavelmente deve te achar uma
ameaça.

— O que? — Ben franze a testa em confusão.

Você é bonito demais para o ego dele.

— Sean é ciumento. — Não quis falar mais nada sobre isso. Não é justo
com Rose, falar mal do namorado dela para os outros.

— Certo. Vou manter em mente, obrigado. — Ben pisca para mim.

Sorri para ele enquanto o casal volta com dois baldes de pipoca. Rose
coloca um na minha mão.

— Divirtam-se. — ela olha de mim para Ben e sai com o namorado.

— Eles não vão com a gente? — Ben pergunta confuso.

223
— Sim e não. Vamos assistir ao mesmo filme, na mesma sala, mas Rose
escolheu cadeiras diferentes para nós. — coloco duas pipocas na boca e
noto quando Sean agarra novamente a cintura de Rose. — Considere-se
sortudo. Eles raramente assistem filmes quando estão juntos, mesmo
quando este é o propósito da noite.

Ouço a risada de Ben.

— Parece que você virou profissional quando se trata deles.

— Dois anos. — respondo mastigando mais pipoca.

— Ok. Vamos lá, antes que você acabe com a pipoca sem ao menos
chegarmos a ver os trailers. — Ele estende o braço.

Pensei em devolver o sarcasmo, mas quando olhei para seu braço


estendido, imaginei que estivesse no meu próprio conto de fadas. Decidi
que queria aquele conto, mesmo quando estou com um balde de pipoca na
mão e vestindo um moletom da Corvinal.

Não me importo com o sorriso estampado no meu rosto quando enrolo meu
braço no dele. O que importava era o sorriso que eu recebi de volta; aquele
que eliminava tudo ao meu redor.

Então entrei no cinema com o melhor dos acompanhantes.

Nós apenas assistimos o filme. E foi bom. Mais que bom. Eu gostava de
apreciar um filme e fiquei agradecida por Ben não ser do tipo que tagarela
enquanto assisto.
224
Estávamos esperando Rose e Sean fora do cinema, numa conversa animada
sobre o filme.

— Sabe, fico feliz por Rose ter escolhido um thriller, em vez de drama. Eu
poderia sair do cinema como o próprio lago do Mazarick.

— Você chora com filmes de drama? — pergunta com os olhos divertidos.

— Com mais frequência do que gostaria, sim. — resmungo.

Era quase vergonhoso uma pessoa chorar tanto por uma história fictícia,
mas não posso evitar quando me apego fácil aos personagens.

— Agora fiquei curioso. Precisamos marcar de novo. Desta vez, para


assistir um drama.

Meu coração dá um salto com a possibilidade de sair com Ben novamente.


Apenas nós dois...

— Como foi o filme? — Rose volta, com Sean no seu encalço.

Eles pareciam decentes, tirando as roupas amassadas e os cabelos um


pouco fora do lugar.

— Bem mais interessante do que eu esperava. — responde Ben, claramente


tentando não rir do estado dos dois.

Posso dizer que Sean não gostou nenhum pouco disso.

— Gostaria de saber o que aconteceu. Vamos à uma lanchonete aqui perto.


Estou faminta. — Rose suspira. — Podemos ir no seu carro, não é, amor?

225
O namorado dela não fez mais do que um aceno tenso. Não sei qual o
problema dele. É desnecessária essa quantidade de ciúme. Não é saudável.

— Ótimo. — Ela bate palmas. — Vamos, então.

Mais uma vez, seguimos os dois a uma certa distância.

— Qual a probabilidade disso acabar com Sean me matando? — Ben


sussurra ao meu lado.

— Primeiro, ele vai ter que passar por mim.

Fiquei surpresa pelo tom ríspido que respondi. Era apenas uma brincadeira.
Sean não ia matar Ben. Mas se tentasse...

— Eu quis dizer... — Interrompi minha fala quando virei a cabeça a tempo


de ver Ben engolir em seco. Seus olhos estavam grudados em mim e seus
passos mais lentos.

Estaria mentindo horrivelmente se dissesse que aquele olhar não fez a


minha pele arder e a minha respiração parar.

Meus olhos descem para a sua boca e fico cogitando quanta distância eu
tenho que encurtar até que a minha esteja colada na dele.

— Vocês dois! Venham logo!

Provavelmente, o único homicídio que aconteceria seria no momento em


que eu pusesse as mãos em Rose.

— Eu vou matá-la. — murmuro emburrada.

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— Talvez seja melhor virmos sozinhos, da próxima vez... — a expressão
de Ben não é diferente da minha. Ele está igualmente infeliz com a
interrupção.

— Grande ideia! — concordo.

Começamos a nos aproximar do carro de Sean. Os dois já estavam dentro


do veículo.

— A propósito — Ben murmura com a voz profunda ao pé do meu ouvido,


segundos antes de eu abrir a porta. — Gostei de saber que você me
defenderia. É sexy.

Então o desgraçado me deixou como uma idiota, absorvendo aquelas


palavras, enquanto uma luz me cega.

— Ei! — protesto, cobrindo os olhos. Tarde demais.

— Eu disse que você me pagaria quando tirou aquela foto minha depois
que te fiz uma cantada — Revela pretensioso.

— Aquela depois dos estudos no Mazarick? Achei que tivesse esquecido


daquilo!

— Não me esqueço tão fácil de promessas que eu mesmo faço. Além do


mais — aponta o telefone em minha direção. — Não quero nunca esquecer
como foi a expressão no seu rosto. Fica registrado o nosso primeiro
encontro. — Então ele me dá um sorriso lindo e entra no carro.

Oh, meu Deus. Eu estou perdida. Não consigo frear o sentimento que
cresce e ameaça esmagar o meu coração até não sobrar um átomo. Mas até
que morrer por isso, não me pareceu tão ruim.

227
Fiquei pensando qual seria a sensação de sua boca na minha todo o trajeto
até a lanchonete e depois, quando deitei a cabeça no travesseiro. Isso
estava consumindo meus pensamentos e decidi então que precisava fazer
algo a respeito.

Eu queria beijá-lo, provar um pouco de sua alma, tanto que me deixava


ansiosa. E podia ver que ele queria também. Então por que esperar mais,
certo?

228
25

Faz um tempo que não escuto o álbum Nevermind de 1991, do Nirvana. O


melhor de Kurt Cobain, na minha opinião.

Fazia tempo, também, que não vinha no Mazarick pelo prazer de vir. Não
por precisar da atmosfera, mas por simplesmente gostar. Isso se torna mais
fácil, já que estou sem trabalhar. Mas essa realidade pode ser mudada mais
rápido do que pensei.

Na escola, Kate me disse que encontrou um lugar onde estavam precisando


de um garçom e um administrador e que pagam bem. Quase não acreditei
quando eu ouvi. Parecia que a oportunidade tinha caído do céu.

Respiro fundo e olho para o horizonte alaranjado.

— Foi você, não foi? — meus olhos varrem toda aquela área acima. –
Você mandou um anjo para me ajudar?

O sussurro do vento é minha resposta. Fecho os olhos e aproveito toda


aquela paz e a voz de Kurt Cobain nos ouvidos.

— Obrigado, Mommy Cookie.

229
— Não, pai. Eu não irei lhe dar mais dinheiro. — Pego meu celular em
cima do sofá, pronto para sair. — Você sabe que estou desempregado e não
podemos gastar com coisas assim.

— Você não serve para nada mesmo. Nem para manter um emprego idiota
como aquele. — diz ele, enrolando nas palavras.

— Eu preciso ir agora. Não saia de casa e deixe a porta trancada.

— Quem é você para dizer o que devo fazer, seu moleque? — grita, se
desequilibrando um pouco.

Faço menção de ajudar, mas ele ficaria mais nervoso.

— Tchau, pai. — Murmuro antes de fechar a porta atrás de mim.

Coloco os fones e faço uma caminhada até o hospital. Agora que tinha
mais tempo livre, ia ficar junto com Fluflu e nós tentávamos encontrar
motivos para sorrir em meio a toda preocupação. O lugar não ajudava. O
hospital tinha uma atmosfera melancólica, triste, mas Fluflu não queria sair
daqui, mesmo quando eu disse que ficaria de olho nele, por ela.

— Mas você tem que comer uma comida decente e dormir num lugar
decente. Além disso, tomar banho e usar o banheiro de casa faz muito bem
para os nervos, ouvi dizer. — digo à Fluflu enquanto ela se acomoda ao
meu lado, na sala de espera.

O Sr. Finlay ainda não recebeu um quarto. O estado dele é delicado e


precisa ficar em observação por alguns dias. Enquanto isso, estamos nas
cadeiras desconfortáveis desta sala.

— Meus nervos estão bem, obrigada. — me olha com impaciência. — Eu


já disse que ficarei aqui. Não posso abandoná-lo, Ben. Não posso não estar

230
aqui se algo acontecer. — Seus olhos estão suplicantes agora. Imagino que
não são para me pedir para não forçá-la a sair daqui.

Suspiro e a abraço de lado, colocando sua cabeça em meu ombro..

— Eu apenas quero que você esteja bem, saudável. Me preocupo com a sua
saúde também, sabe. Vejo o que essas noites mal dormidas e a má
alimentação estão fazendo com você. Não é a Fluflu que eu conheço.
Apenas me prometa que não vai esquecer do seu próprio bem-estar.

— Eu prometo, querido. — sussurra.

— Bom. Você precisa de energia para quando o Sr. Finlay se recuperar,


vocês dois fazerem tudo o que quiserem. — Dou um leve aperto em meu
abraço.

— Você é uma criança. — Ela ri.

Senti que Fluflu estava cansada, sonolenta.

— Durma um pouco. Prometo te acordar se algo acontecer.

Fluflu não responde. Apenas confirma com a cabeça que me ouviu e deixa
o corpo pesar contra o meu.

Começo a murmurar Midnight Healing do Gene Deer. Quando comecei a


segunda parte, meu telefone tocou. Atendo-o rápido para que o toque não
acorde Fluflu. Por sorte, ela apenas se mexeu.

— Alô? — Mantenho o tom de voz baixo.

— Ben? — É Kate. E eu estou muito surpreso por ela ter ligado.

231
De repente, lembro de algo que queria falar para ela no encontro, mas não
consegui.

— Ei, Kate! Você é um empréstimo bancário?

— Ahn, não.

— Porque você conseguiu meu interesse. — seguro o riso. Essa foi


horrível, mas ela com certeza tinha todo o meu interesse.

Desde que ela me olhou daquele jeito ontem, como se quisesse me atacar
no meio da rua, não consegui ter paz de espírito. Era verdade que
sentíamos atração um pelo outro e, arrisco dizer, que um pouco além disso
também.

— O que? — Kate ri com vontade da minha cantada horrível.

Aquela velha e estranha sensação no coração volta ao ouvi-la rir e,


principalmente, por saber que eu sou o motivo. Era muito bom ouvir a
risada dela.

— Gostou da cantada?

— É muito ruim. — diz rindo. — Mas ao mesmo tempo muito boa.

Deixo meu próprio sorriso estampado no rosto.

— Tem razão. Mas me diga, qual o problema de química temos aqui, desta
vez?

— Ah. Hmm… Nenhum. Eu só…

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— Não brinca! Eu te fiz perder a fala? Saiba que isso alimenta muito meu
ego, Kate-Kate, mas gostaria saber o motivo da ligação. — Sorri, mesmo
que ela não pudesse ver e as enfermeiras me achassem um idiota.

— Eu… Kate-Kate?

— Um novo apelido. — Dou de ombros, mesmo que ela não possa me ver.

— Legal. — um pigarreio — Eu só queria ligar para você.

E ela não faz ideia do quanto gostei daquilo. Não percebi que estava
sorrindo até ver uma enfermeira parada me olhando estranho. Estava
sorrindo para ela, como um idiota. Coloco uma expressão de desculpas no
meu rosto.

— Er… desculpe. Eu acho que não devia ter ligado. — Kate começa a se
desculpar.

— Não. Eu… eu gostei disso. — confesso.

— Você… gostou? — a voz dela soa esperançosa.

— Sabe, gosto de tudo que se relaciona a você, Kate-Kate.

A linha fica muda por um instante.

— Uau. — Essa foi a minha resposta.

— Eu te digo que gosto de tudo que se relaciona a você e você me


responde com "uau"? — Dou risada.

— Bem… Eu não estava esperando isso. — murmura, sua voz ficando


mais baixa.
233
234

Esqueça isso. Além do mais, somos amigos. Não é nada estranho você
me ligar do nada só para ouvir minha voz.

Kate suspira.

— Você e Rose são iguaizinhos, sabia?

Deixo uma risada sair.

— Levarei isso como um elogio. A propósito, como está o simpático


namorado dela? — tratando-a bem, espero.

O namorado de Rose se mostrou bastante ameaçado pela minha simples


presença no nosso "encontro" duplo, no cinema. Esse comportamento não
me pareceu saudável, principalmente quando mal falei com Rose. Não vou
me meter em assuntos que não são meus, mas quero me certificar de que
Rose está bem.

— Até onde eu sei, muito bem. Só, por favor, não vamos mais sair com
eles. Pelo menos não num futuro próximo.

— Você leu minha mente.

— Então… Quando podemos sair novamente? Só… nós dois. — foi uma
pergunta hesitante, percebo.

— Hm… — Esse é um dos meus maiores desejos, mas um que não é de


graça. Estou sem trabalho e sem garantia de que vou conseguir a vaga no
Buck's. — Sinto muito, Kate-Kate, mas até que eu encontre um emprego
que me garanta bônus para curtir uma noite, nosso encontro terá que ser
adiado.

235
Odeio ter que fazer isso, mas eu não posso gastar dinheiro com
trivialidades. Ainda mais agora que estou em emprego. Apenas fui da
outra vez porque Rose comprou nossos bilhetes e eu estava devendo um
encontro a Kate.

— Ah, tudo bem. — Uma pausa. — Está tão ruim assim?

Eu sei que ela disse isso com preocupação evidente na voz, mas não gosto
de falar da minha situação financeira com ninguém. Não quero que
sintam pena do garoto maltratado pelo pai que começou a trabalhar desde
pequeno para sustentar ambos.

— Nada que eu não possa lidar. — respondo e é verdade. — Diga-me, o


que estava fazendo antes de ligar? — Mudo de assunto.

— Eu estava lendo. — Pude imaginá-la sorrindo. Esse era um tópico que


Kate amava.

— Qual livro?

— Entre o Agora e o Nunca.

— E você está gostando da leitura?

— Eu amo, na verdade. Já reli diversas vezes.

— Releu? Mas qual a graça de reler um livro que você sabe o que
aconteceu? — Parecia tedioso reler o mesmo livro várias vezes.

— Da mesma forma que uma pessoa escuta uma música diversas vezes até
aprender a letra de trás para frente.

— Touché. — Dou uma risada.

236

— Você devia ler, sabia?

Eu? Não sou do tipo leitor. Já li alguns livros sim, mas… Nunca achei
um livro que me prendesse.

— Acho que você iria gostar desse.

— Hm… Do que se trata a história?

— Bem, podemos dizer que você e o personagem se dariam muito bem.

— Ah, é? E por que?

— Vocês dois amam rock clássico.

— Não brinca! — Me levanto para frente rápido demais, esquecendo que


Fluflu estava encostada em mim. Ela acabou acordando com o susto.
Droga.

— Desculpe, Fluflu. Não queria acordar você. — Afago os cabelos


grisalhos dela.

— Não se preocupe, eu não estava dormindo. — O olhar conhecedor que


Fluflu me deu, foi o suficiente para saber que ela tinha ouvido toda a
minha conversa com Kate.

— Ahn… Kate, eu tenho que desligar, mas ainda quero saber sobre o tal
livro. Falo com você depois, okay? — Fluflu não tira os olhos de mim, o
que me deixa desconfortável.

— Okay. Até mais!

237
Desligo e guardo o celular.

— Então quer dizer que a senhorita estava bisbilhotando minha conversa?


— Levanto uma sobrancelha para a mulher ao meu lado.
Ela bufa.

— Não tive culpa. Talvez você tenha esquecido que tenho sono leve.
Depois que seu celular tocou, não consegui me concentrar em dormir com
você conversando. — arqueia uma sobrancelha.

Acabei me sentindo um pouco culpado.

— Tudo bem, desculpe. Você pode dormir agora…

— Quem era a garota?

Fiquei sem reação diante do jeito espontâneo que ela trouxe o assunto à
tona. Durante alguns segundos Fluflu ficou apenas piscando para mim e
eu para ela.

— Certo… — pirgarreio. Parecia que estava prestes a falar para minha


mãe que eu iria ser pai. — O nome dela é Kate.

— Isso eu sei, querido. Ouvi vocês dois conversando. — Um pequeno


sorriso surge nos lábios dela. Seu tom suave parecia que queria me
acalmar num estado nervoso.

— … E ela estuda no mesmo ano que eu.

— Deu para perceber isso também.

Respiro, frustrado.

238

— Então não sei o que quer que eu diga. — digo, exasperado.

— Quero que me diga porque não me contou isso antes. — revela


simplesmente. — "Eu gosto de tudo que se relaciona a você." Quando isso
aconteceu? E por que não fiquei sabendo? — Agora ela parece zangada.
Eu… — suspiro, desviando o olhar dos olhos dela. Acho que nunca
mencionei Kate para Fluflu porque tinha receio que ela reagiria na
defensiva. — É uma longa história.

— Então é melhor você começar a falar antes que essa história fique mais
longa. — Encaro Fluflu. Ela levanta as sobrancelhas. — Tenho tempo o
suficiente. —E cruza os braços, esperando que eu comece.

Respiro fundo, então começo a contar de como conheci Kate naquele dia,
na aula de química e nosso segundo encontro do dia, no Mazarick. Conto
também um pouco das nossas conversas, sobre as nossas aulas e sobre o
encontro que devíamos ter no dia que o Sr. Finlay foi internado.

— Então foi isso. — olho para ela, esperando uma resposta.

Fluflu fica quieta uns instantes.

— Estou desapontada por não ter sabido disso antes. — Ela franze o cenho.
— Enfim, quero conhecer essa Kate.

— E como você pretende fazer isso? Você insiste em não sair daqui. —
Talvez, essa fosse uma oportunidade de ela dar uma pausa deste lugar. E eu
estava topando tudo. Mesmo que seja por isso.

— Bem, há um café aqui perto. Podemos nos encontrar lá. Quero conhecer
a garota que fisgou seu coração. — Fluflu diz um ar de indiferença.

— Não é bem assim, Fluflu. — gemo. Era por isso que não tinha contado
a ela ainda. — Kate não é…
239
— Sim, sim, eu sei. Mas não repita o nome daquela… jovem, novamente.
Já lhe disse para não mencioná-la em nossas conversas. — O seu tom de
voz mudou drasticamente. Ela ainda não superou essa história.

— Promete que não vai assustá-la?

— Eu não sou um animal selvagem para assustá-la, Benjamin. — Ela me


olha com raiva.

Eu apenas levanto uma sobrancelha. Fluflu bufa.

— Bem, talvez eu dê um incentivo para que ela não o machuque…

Acabo por dar risada, o que não melhora o humor de Fluflu.

— Eu não vou quebrar se ela me machucar, sabe… Além do mais, não é


nada definitivo, só estamos flertando, eu acho. — O olhar dela não mudou.
— Mas eu amo que você cuide de mim e por isso vou arrumar um encontro
para vocês duas neste café.

— Quarta-feira, às 14h.

— Mas é o horário em que eu vou estar na entrevista no bar…

— E é exatamente por este motivo, querido. — Ela cantarola. Essa


mulher… Se Kate corresse risco de vida, eu não estaria perto para fazer
qualquer coisa por ela.

Diante daquele olhar decidido, eu só poderia esperar que Fluflu visse que
Kate não tinha intenção de me magoar.

240

— Certo, certo. — pego Fluflu e a abraço. — Não precisa se preocupar,
querida. — beijo sua cabeça. — Eu não sou tão fácil de se abalar agora.

— Com licença. — A enfermeira, Keyla, chama nossa atenção. — O Dr.


Jordan gostaria de vê-los.

Excerto por aquilo, talvez, eu não me abalasse tão facilmente.

241
26

— Papai, Mike me bateu!

— Não seja dramática! Eu mal encostei em você. — Meu irmão chato fala
atrás de mim.

— Não quero mais falar com você. — Me afasto dele pisando forte. Eu
odiava ele ser mais alto e mais rápido, mesmo quando éramos gêmeos.

Fui até o homem sentado na poltrona da sala, lendo um jornal com o


auxílio de óculos. Ainda usava uma parte da roupa de trabalho: camisa
branca, calça social e sapatos. A gravata e o terno não estavam à vista.
Ainda parecia um advogado.

— Ei, garotinha! — Ele me chama pelo apelido, me colocando em seu


colo. — O que houve desta vez?

— Mike me bateu.

— Como se isso fosse verdade! Eu não fiz isso, pai! Eu não bati nela. Você
sabe que eu nunca faria uma coisa dessas. Foi apenas um peteleco porque
ela estava me irritando.

Papai olha para mim.

— Isso é verdade?

Abaixo os olhos e remexo as mãos no colo.


242
— Talvez.

Os dedos do meu pai pegam o meu queixo e erguem-no para que eu olhe
em seus olhos.

— Talvez não é uma resposta para esta pergunta. Sim ou não?

— Sim — desvio o olhar. Papai tira os óculos e deixa na mesa ao lado da


poltrona.

— Então por que mentiu, garotinha?

— Eu tenho 7 anos, pai. — murmuro ainda olhando para o chão.

Não era mais criança e não gostava quando ele me chamava como uma.
Ouço Mike bufar.

— Tenho a mesma idade e mamãe ainda me chama de bebêzão.

— É porque você é, querido! — minha mãe grita de algum lugar fora da


casa. Mike geme.

— Kate, você pode ter a idade que for, mas vai ser sempre minha
garotinha. — Papai sorri. — Agora, me conte porque mentiu sobre seu
irmão ter batido em você.

Suspiro.

— Eu só queria que ele brincasse de casinha comigo. Eu consigo brincar


sozinha, mas com ele é mais divertido. Só que ele não parava de ficar com
aquele aparelho idiota.

243
— Aquele aparelho idiota é um Xbox 360. — Resmunga. Olho feio para
Mike.

Ele era uma criança alta para sua idade. Os cabelos macios e grandes,
faziam invejas às meninas. Incluindo a mim.

— Ei, vocês dois! Olhem a boca.

— Desculpe. — dizemos em uníssono.

— Eu quero que parem de brigar agora. Mike, você não deve dar mais
atenção a um objeto do que a sua irmã, mesmo que ele seja o mais legal de
todos. Ela é mais importante, sempre. Lembre-se de que Kate é nossa
garotinha e é o nosso dever protegê-la e fazê-la feliz. Ok?

Mike acena cabisbaixo.

— Sim, papai.

Eu tinha o maior dos sorriso até meu pai voltar seus olhos para mim,
ainda em seu colo.

— E, Kate, eu quero que me prometa não mentir mais para mim. Não é
certo você fingir algo para conseguir o que quer. Não gostei do que você
fez.
— Eu prometo, papai. — odiava que meu pai estava decepcionado comigo

Eu fui burra em mentir. Nunca mais farei isso. Nunca. Lágrimas de


frustração e raiva borram minha visão.

— Garotinha, seu irmão ama você. Mesmo quando ele age como um
bebêzão. — comecei a rir, esquecendo-me das lágrimas.

244
— Ei! — Mike protesta quando papai ri. Meu irmão bufa. — Você só fala
isso comigo porque ela é uma garota.
— Não porque ela é uma garota, mas porque ela é nossa garotinha. Tem
uma diferença.

— Acho que sim. — Murmura.

Abro um sorriso para o meu irmão carrancudo. Demorou um pouco, mas


ele retornou o sorriso.

— Você vai brincar comigo agora?

Mike choraminga. — Kate, eu estava acabando uma fase... — Papai


pigarreia. — Sim, sim. Está bem. Vamos — resmunga virando-se para as
escadas.

Salto do colo do meu pai e vou atrás de Mike. Antes de subir, dou meia
volta e corro até papai dando um beijo em sua bochecha.

— Eu te amo.

Ele sorri.

— Eu também te amo garotinha.

Fiquei alguns segundos a mais olhando para o rosto bonito do meu pai.

— Kate, você vem ou não? — grita Mike.

— Estou indo! — grito de volta e saio em disparada até as escadas, onde


ele estava.

— Você demorou.

245
— Pare de reclamar!
— O que foi que o bebêzão fez agora? — ouvimos mamãe perguntar ao
papai.

— Isso é tudo culpa sua. — resmunga.

Eu apenas sorri. Mike era tão mal humorado. Abro a porta do meu quatro
e deixo ele entrar primeiro.

Naquele dia, brincamos e brincamos até chegar a hora do jantar, onde


estávamos todos rindo e, mais importante, juntos.

Abro os meus olhos e encaro o teto escuro.

Meu peito começa a doer e sinto que terei uma crise de choro. A dor me faz
pegar o celular e ligar para Mike. Quando a chamada quase entra na caixa
postal, ele atende.

— Hey, irmãzinha! Eu sei que você se preocupa comigo, mas não


precisava ser meu despertador. Ele só toca daqui a 3 horas. — diz ainda
sonolento.

Olho a hora. 4:45. Faltavam apenas 3:00 até eu ter que ir para a escola.

— Hey, bebezão! Talvez você precise acordar mais cedo.

Mike bufa.

— Certo. Você vai me dizer o que está acontecendo ou vai ficar brincando?

Eu invejava a facilidade que ele tinha de raciocinar quando acabara de


acordar.

— Sonhei com o papai. — engulo em seco.


246
A linha fica em silêncio.

— Mike? — sussurro.

Ouço um pigarreio.

— Sobre o que foi o sonho? — pergunta com a voz rouca.

— Éramos pequenos e tínhamos brigado por algo idiota. — Controlo a


emoção presa na garganta. — Papai nos acalmou e falou coisas legais. Eu
disse... Eu disse que o amava. — expiro.

Mike assobia baixo.

— Como você está?

— Eu não sei. — sussurro. Meus olhos começam a queimar. — De repente,


parece que esses 3 anos não existiram e estou de volta ao dia em que ele
saiu por aquela porta lá embaixo pela última vez.

O quarto está tão escuro que quase não faz diferença lágrimas borrarem
minha visão.

— Você quer que eu vá para aí?

Uma pergunta. Muitas coisas envolvidas.

— Mamãe está em casa.

— Não importa. Se você precisar, eu estarei aí num segundo.

247
Minha garganta se aperta enquanto as lágrimas caem. Fecho os olhos
inspirando fundo.

— Eu estou bem.

— Tem certeza?

— Eu... Eu só queria ligar para você.

Saio da cama e vou para a janela. Lá fora ainda está escuro e vazio. Tinha a
sensação de que aquilo refletia meu próprio interior. E eu temia que isso
fosse verdade.

— Bom, vamos conversar então. — Ele fala como se estivesse disposto,


mas sua voz ainda está rouca de sono.

— Eu preciso dormir. Tenho aula mais tarde.

— Você vai ficar bem?

Levanto os olhos para o céu. Parecia tão frio e cinza, mas todos sabemos
que, mesmo que não possamos vê-lo, o Sol irá nascer.

— Vou. Não se preocupe. — Sorri fraco.

Mike suspira.

— Eu amo você, irmãzinha. Mais que tudo.

— Amo você, bebezão. Mais que tudo.

27

248
— Ele está acordado. Ainda muito debilitado e suas funções sensitivas
lentas, mas acordado.

A única coisa que eu consegui fazer foi olhar para o rosto o médico negro e
segurar os ombros de Fluflu.

Ele estava acordado. Não ousei dizer a frase em voz alta. Talvez fosse um
sonho.

— Nós podemos vê-lo? — Fluflu pergunta. Sua voz não era mais que um
sussurro trêmulo.

Consigo ouvir meu coração bater em meus ouvidos. Ele estava acordado.

— A situação do Sr. Finlay ainda é muito crítica. — O Dr. Jordan nos olha
sério. — Termos que continuar a fazer exames e observá-lo a todo instante.
Ele está muito sensível agora e seu coração diretamente comprometido
com a situação. O sr. Finlay não pode se esforçar demais ou ter reações
extremas. Ele precisa de repouso 100%.

Uma visita de Fluflu enquanto ele está consciente poderia piorar muito a
situação. A tensão nos ombros dela me disseram que ela sabia disso
também. Massageio o local.

— No entanto, vocês podem fazer visitas curtas de 5 minutos, duas vezes


por dia. Se a situação dele for melhorando, o tempo e frequência de visitas
podem aumentar também.

249
— Ok. — expiro. — Você quer ir? — pergunto baixinho a mulher
pequenina à minha frente.

Fluflu começa a tremer.

— E-eu… não sei.

— Deixarei vocês à vontade, mas precisam ter o máximo de cuidado lá


dentro. Lembrem-se que o Sr. Finlay não pode se esforçar muito em
qualquer situação. Uma enfermeira virá para checar os sinais vitais dele,
que é quando vocês precisarão sair. — Os olhos do doutor pedem
confirmação de que entendemos tudo o que ele disse.

— Certo. Obrigado, doutor. — agradeço com a garganta cheia de emoção.

— Não se preocupem. Ele tem grandes chances de melhorar sua condição.


— Dr. Jordan acena com a cabeça e sai pelo corredor.

Fluflu continuava a tremer sob minhas mãos.

— Eu não posso entrar lá. — sua voz não passa de um sussurro.

Eu queria dizer que ela estava errada, que tudo isso não passava de uma
bobagem e que ele ficaria melhor ao vê-la. Mas seriam mentiras.

— Você vai. — sussurra, virando-se para mim. Os olhos cansados e tristes,


que acostumei a ver ultimamente.

— Fluflu…

— Tudo bem. — Me interrompe com uma mão levantada. — Eu ficarei


bem. Vá. Não o deixe sozinho.

250
— Eu vou. — suspiro, assentindo.

— Estarei esperando na sala de estar. — Fluflu luta bravamente para se


manter firme.

Sem esperar por uma resposta, ela sai batendo os saltinhos no chão e
desaparece no corredor.

Olho para a porta à minha frente, onde o meu vizinho está deitado numa
maca. Respiro fundo diversas vezes, procurando acalmar meu coração
acelerado e evitar que eu me acabe em lágrimas. Se o Sr. Finlay me visse
agora, com certeza iria me xingar e dizer para me recompor.

Dou um passo, dois. Luto contra o tremor no corpo. Três passos. Ele está
bem. Está acordado. Quatro passos. Estou em frente à porta. Levo a mão à
maçaneta. Fecho os olhos e engulo em seco. Sem pensar mais, eu abro a
porta e entro no quarto.

Por um tempo fiquei ali, piscando para o corpo do meu vizinho. Piscando
para os olhos dele. Acordado.

— Você vinha para perto, antigamente, para que eu não precisasse me


esforçar.

Um soluço escapa. Não consigo evitar.

— E-eu… eu…

— Eu sei, garoto. Eu também. — diz com um fantasma de um sorriso.

Encaro seu rosto cansado, os olhos pesados e simplesmente não consigo


mais. Com as mãos no rosto, eu choro.

251
Ele está acordado.
Soluços fazem meu corpo tremer até que caio de joelhos.

— Eu espero que essas lágrimas não sejam de tristeza, Benjamin. Não vou
morrer tão cedo. — sua voz rouca, um pouco mais arranhada e devagar do
que eu costumava ouvir, me repreende.

— Eu senti sua falta. — sussurro enquanto lágrimas silenciosas rolam pelo


meu rosto.

Era um alívio, uma benção ver que ele estava acordado, falando comigo.
Uma parte de mim achava que eu nunca mais falaria com ele de novo e,
por mais que eu rezasse, não conseguia afastar a agonia de que a qualquer
momento receberia a notícia de que o Sr. Finlay tinha partido.

Levanto-me do chão, tentando me recompor, e me aproximo da cama.

— Como está se sentindo? — sento numa cadeira ao lado da cama e me


inclino para pegar a mão flácida dele.

— Acho que você precisa mais desta pergunta do que eu. — brinca. Seus
olhos estão tão pesados, a respiração tão irregular, mas ele está vivo. Está
aqui e é real.

— Talvez nós dois precisamos dela. — consigo sorrir. Com a minha mãe
livre, limpo meu rosto molhado pelas lágrimas.

Falhei em parecer forte para ele. Me quebrei no momento em que o vi


olhando para mim.

— Mas o senhor não pode se esforçar demais. Não fale muito. Apenas
descanse. — Faço círculos em sua mão com o meu polegar.

Sr. Finlay bufa. Ou tenta.


252
— Eu não sou um inválido ainda.

Eu ri e mais algumas lágrimas caem. Ele está mesmo de volta.

— Claro que não. Mas precisa seguir as recomendações do médico se


quiser sair logo daqui.

— Eu odeio os hospitais. — Seus olhos pareciam ficar mais pesados a cada


instante.

— Sim, eu também. — com a mão livre, ajeito o seu cobertor. — Agora


descanse.

— Cante para mim. — pede num sussurro com os olhos fechados.

Minha garganta se aperta e preciso engolir várias vezes até conseguir falar
de novo.

— Claro. — Me concentro nas nossas mãos unidas enquanto canto um


trecho de Dust in the wind baixinho.

"A mesma velha música.

Apenas uma gota d'água em um mar infinito.

Tudo o que fazemos

Cai em pedaços embora nós nos recusemos a enxergar.

Poeira ao vento.

253
Tudo o que somos é poeira no vento. "
28

Acho que vou vomitar.

Não sei porque estou tão nervosa. Não é como se eu estivesse indo
conhecer a mãe do meu namorado… Mesmo quando esse é o meu desejo.

Quando Ben me falou que Flora queria me conhecer, pensei que tinha
escutado errado. Ele falava de mim para ela? Bem, não é estranho que
comentasse sobre sua nova amiga. Então por que não conseguia me livrar
da sensação que estaria sendo testada pela mulher que nunca gostou de
mim por um acontecimento de anos atrás?

De repente, me arrependi de ter aceitado vir aqui hoje. O problema eram


aqueles olhos azuis cravados em mim, me impossibilitando de dizer
qualquer coisa que não seja "sim" para eles.

Já estava na porta da frente, quando minha mãe me chama.

— O que foi? — viro-me para ela.

— Vim avisar que Richard queria o próximo final de semana na casa de


praia dele. Ele quer aproveitar enquanto pode antes da chegada do inverno.
— Mamãe cruza os braços na altura dos seios e encosta-se na parede. —
Você vem com a gente?

— Ah, isso é... — Se fosse com outro, eu diria que aquilo era uma
completa loucura, mas Richard tem se mostrado um cara legal e minha mãe
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tem se esforçado para compensar o passado. E fazia tempo que eu não ia à
praia. — Legal. Acho que um pouco de sol e maresia vão me fazer bem. —
Dou de ombros.

Ela fica visivelmente surpresa com a minha resposta.

— Certo. Bom. — um sorriso começa a crescer em seu rosto. Mamãe fica


linda quando sorri. — Vou avisá-lo que você também vai.

— Ok. — assinto. — Bem, eu tenho que ir. — aponto para a porta atrás de
mim.

— Aonde vai? — Surpreendentemente, curiosidade brilha em seus olhos.


Minha mãe não costumava se interessar pelo o que eu fazia ou deixava de
fazer.

— A um café. — Não quis dar mais detalhes, pois aquilo exigia tempo.

— Ah! — Acompanho o movimento que sua mão fez para colocar o cabelo
castanho ondulado, parecido com o meu, atrás da orelha.

— Por que? — pergunto com igual curiosidade.

— Nada demais. Eu queria apenas… conversar. Atualizar, sabe. Mas não


quero atrapalhar… o que quer que você esteja fazendo. Vá. — ela indica a
porta com o queixo.

Eu não tinha muita vontade de conversar com ela, não sobre as coisas que
conversávamos antes. Essa relação entre nós… quebrou. Não é fácil
resgatar sentimentos perdidos como aqueles, mas se ela estava disposta a
tentar…

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— Bem, eu preciso resolver uma coisa, mas… talvez… possamos
conversar qualquer dia. — Acho que precisamos mesmo atualizar.
O rosto da minha mãe se ilumina um pouco. Aquilo fez eu me sentir
culpada por precisar sair.

— Claro, claro. Quando quiser, estarei esperando.

Assinto, me virando para sair.

— Só mais uma coisa!

Volto meu rosto para ela.

— Sim?

— Como o Mike está? Você tem falado com ele?

Fico tensa. Mike me pediu para não contar para mamãe que ele já estava de
volta a Fayetteville. Ele não queria ter que lidar com ela, mas vendo a
preocupação estampada no rosto da minha mãe para saber se o filho está
bem… eu tinha que dar ao menos alguma coisa.

— Sim. Ele está bem e feliz pelo que sei. Não se preocupe.

Percebi que ela ficou aliviada, mas ao mesmo tempo triste, por não ter
ouvido isso do próprio Mike.

— Bem, já vou indo.

Mamãe dá um sorriso amarelo e acena para mim. Saio de casa com um


aperto no coração.

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O aperto não passa enquanto chego perto do meu destino. Cada passo
parecia mais pesado que o outro. Olho para a construção moderna do café
que Flora escolheu para nos encontrarmos. Respiro fundo antes de abrir a
porta de sininho.

O estabelecimento rústico não está cheio. Não é um horário que as pessoas


costumam vir com frequência, então não preciso olhar mais do que 3
segundos ao redor para saber onde ela está sentada.

Esqueço tudo. Esqueço o dia que quebrei aquela prateleira de doces junto
com Rose há anos atrás. Esqueço que há pouco estava preocupada com que
roupa iria usar para esse encontro, com medo de que ela pudesse me achar
inapropriada - para Ben. Minha mente estava focada na mulher sentada à
janela, olhando para a rua.

Uma linda presilha de pedras rosas, presa aos cabelos brancos, dava um ar
de graça ao rosto pálido e melancólico de Flora. Ela estava longe de ser a
pessoa ranzinza e assustadora que eu esperava.

Caminho em sua direção com passos lentos, ignorando as poucas pessoas


que estavam na lanchonete, até o momento que ela percebe minha
presença.

Sustento o peso de seu olhar, fechando minhas mãos em punho. Sorri fraco,
forçando meus pés a caminharem. É isso. Vamos lá.

— Olá, Sra. Flora. — Paro em frente a ela e estendo minha mão. — Sou
Kate.

Não queria pensar no esforço que estava fazendo para não tremer a mão. E
também no fato de que ela não hesitou em apertá-la. Com suavidade.

Limpo a garganta e escorrego para a cadeira oposta à dela.

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Flora ainda não tinha pedido muita coisa. Um café com leite para ela, um
cappuccino para mim e alguns biscoitos. Parecia um gracioso chá da tarde
que eu lia nos livros da Julia Quinn.
— Espero que não se incomode. Tomei a liberdade de escolher o nosso
lanche.

Levanto os meus olhos para ela. Flora tinha uma voz tão suave e gostosa de
ouvir, que penso que, talvez, eu tenha me enganado sobre ela todos esses
anos. Não vejo nada além de curiosidade genuína naqueles olhos cinzentos
e isso tira um pouco do meu nervosismo.

— Tudo bem. — Um sorriso verdadeiro ocupa meu rosto. — Eu gostei. —


Passeio os olhos pelos pratos distribuídos na mesa e volto para Flora.

— Esses são os cookies preferidos de Ben.

Fico paralisada. Esses eram os preferidos de Ben. Agora eu sabia. O jeito


que ela estava olhando para os biscoitos, com carinho, me disse que Flora
estava pensando nele, que aquela afirmação era totalmente inocente. Mas
ainda assim, eu senti. Senti que tinha alguma história por trás. Os olhos de
Flora estavam tão melancólicos.

— Ele era apenas um menino. Tão lindo, tão… — Sua garganta trabalha
para engolir em seco. — Ele provavelmente vai querer contar a história de
sua vida ele mesmo. — Ela me dá um sorriso amarelo. — Só quero que
saiba que me preocupo muito com Ben. Ele é o garoto mais incrível e
gentil que você irá encontrar, não importa onde vá. Ele é… é como um
filho para mim. O filho que nunca tive.

Não sabia o que dizer ou o que fazer quando os olhos dela começaram a
brilhar com lágrimas, mas ela permaneceu firme. Uma mulher acostumada
a lutar. De repente, eu queria abraçá-la.

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— Tenho meus motivos para querer saber quem você é, para garantir que
ninguém o fará sofrer novamente.

Novamente. Sem dúvidas, essa palavra ecoaria na minha mente por muito
mais tempo do que gostaria.

— Eu espero que possamos nos dar bem. Não tenho intenção nenhuma de
assustar você. — Flora sorri para mim, parecendo uma madrinha carinhosa.
— Se vocês dois ficarem juntos, espero que sejam felizes.

Sem sombra de dúvida, a minha pele estava mais vermelha do que os


cabelos de Rose.

— Eu não tenho intenção nenhuma de… — pigarreio. — fazê-lo sofrer.

Aquilo era estranho, por mais verdadeiro que fosse. Era como se eu
estivesse confirmando algo que nem sabia que iria acontecer, mesmo que
eu quisesse muito.

— Não se preocupe. Não sei o que aconteceu antes, mas eu só quero vê-lo
feliz. — Espero que Flora veja a sinceridade nos meus olhos.

— Sim. Eu também quero. — Ela me olha por alguns instantes e então


pega um cookie. — Mas eu vou dar-lhe um aviso, Kate. — Fico tensa. —
Não faça nada que saiba que vai machucá-lo. Não. Ben já teve demais.

O que eu poderia dizer depois daquilo? Quem fez Ben sofrer tanto ao ponto
de Flora se sentir tão insegura assim? Eram muitas perguntas, mas só ele
podia me dar as respostas.

— Estou indo à casa de praia do… namorado da minha mãe, na semana


que vem. — solto de repente. — Ainda não falei com Ben sobre isso e

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pensei que poderia aproveitar o momento e pedir sua permissão. — Levo o
copo de cappuccino à boca.

Flora ri. Ela realmente ri.


— Não é como se vocês fossem se casar. — Quase engasgo com o líquido.
— Não precisa pedir minha permissão. Eu apoiarei tudo o que fizer meu
menino feliz. Se você o faz feliz, Kate, então não teremos problemas por
aqui.

Meu coração se aquece ao pensar que eu poderia ser o motivo da felicidade


de Ben. Um desejo ardente de fazer isso acontecer começa a correr em
minhas veias.

— Prometo não decepcioná-la. — Coloco o copo de volta à mesa.

Flora balança a cabeça e leva o cookie à boca.

— Então acho que posso esquecer o incidente de anos atrás. — diz após
ficar satisfeita com o sabor.

— Pensei que já tivesse esquecido disso. — murmuro olhando para baixo.

Na verdade, eu só esperava que ela não trouxesse o assunto à tona.

— Eu sempre me lembrei de vocês duas. Kate e Rose. Vejo-as todos os


dias quando vão à escola.

Isso despertou meu interesse.

— Você vê?

Ela confirma com a cabeça.

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— Mas vocês nunca tiveram coragem de voltar lá novamente. — Um
pequeno sorriso surge nos lábios dela.

— Bem, ficamos muito assustadas quando crianças. Pensávamos que você


iria nos atacar se nos visse novamente. — Pego um cookie e como.
Entendo porque Ben gosta tanto deles.

— Não foi o fato de vocês terem quebrado minha prateleira que me


aborreceu mas o que tinha nela.

— O que tinha na prateleira? — inclino minha cabeça, tentando lembrar


dos detalhes daquele dia.

— Presentes. Uma prateleira inteira de guloseimas, incluindo cookies, para


dar a uma pessoa especial que estava passando por um momento muito,
muito ruim. — Flora suspira. — Passei a noite toda trabalhando neles.

Observo enquanto ela pega o café e dá pequenos goles. Assim que a xícara
retorna à mesa, eu pergunto:

— A pessoa especial… é… ele?

Flora balança a cabeça.

— Eu já falei demais. Se quiser saber de algo, pergunte diretamente a ele,


querida. Ele irá contar tudo o que quer saber se achar que você é especial.
— Seu olhar cheio de sabedoria parece revirar meu ser de dentro para fora.

Ben iria me contar… se achasse que eu fosse boa o suficiente para saber o
lado sombrio de sua vida. Se… confiasse em mim.

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Uma vez, ele me disse que sabia que eu podia terminar certo cálculo
porque acreditava em mim. Aquilo valeu mais do que um dia ele pudesse
imaginar. E eu queria ser a pessoa a acreditar nele também.

Acho que talvez eu esteja perto de ser o que Flora mencionou. Talvez eu
possa ser… alguém especial para Ben. Repentinamente, comecei a sentir
saudades dele, comecei a desejar que estivesse aqui, comigo. Me pergunto
como ele está indo na entrevista.

— Já que você não pode me contar sobre essas coisas — Pego o


cappuccino. —, pode me contar como era Ben quando criança?

Flora solta uma risada gostosa e pega seu café também.

— Precisaremos de mais de uma tarde num Café, querida. — Ela toma um


gole.

— Eu adoraria isso. — Sorri, aliviada por esse encontro ter dado certo.

Até mesmo o gosto do cappuccino pareceu mais delicioso enquanto ouvia


Flora falar sobre o lindo menino de cabelos negros que a vistiva todos os
dias na padaria.

Aquele era Ben. O cara altruísta e gentil que entrou na minha vida e
invadiu meus pensamentos. A cada sorriso, a cada cantada, a cada
momento silencioso ao lado dele, eu o sentia. Sentia-o entrando por entre
as brechas do meu coração machucado, fazendo-me sentir cuidada,
especial. Eu nunca ia cansar disso. Dele.

Não tinha nenhuma dúvida de que o queria e acho que chegou a hora de
saber se Ben queria o mesmo.

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— E você tem alguma experiência com servir mesas? — Richard cruza os


braços depois de colocar meu currículo na mesa.

— Ainda não, mas eu aprendo rápido. — garanto.

Estava sentado à frente dele numa das mesas do bar. É cedo, então o Buck's
está fechado, mas há funcionários trabalhando nos fundos.

— Preciso que entenda que o Buck's está virando um lugar mais influente
na região, — Ele põe as mãos juntas sob a mesa. — então preciso de
profissionais que saibam lidar com as pessoas, mesmo que servir mesas
não seja um emprego que precise de uma formação.

— Entendo. Eu posso fazer isso, apenas preciso de uma oportunidade.

Richard olha para mim alguns segundos. Ele deve estar na casa dos 40 e
parece muito bem para a idade. Não é o cara gordo, barbudo e de maus
modos que achei que fosse. Na verdade, é um cara muito profissional e até
brincou comigo no início da entrevista, para me deixar mais relaxado. Com
certeza mil vezes melhor do que meu patrão anterior.

— Bem, podemos fazer uma semana de teste e ver no que dá. Vou te passar
um contrato contendo o que esperamos de você nesse período de teste e
tudo o que você precisa saber sobre o local e clientes. Assim que terminar

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de ler, pode vir trabalhar no dia seguinte. Se tiver alguma dúvida, meu
número estará no verso da página.

Empolgação toma conta das minhas veias. Eu poderia chorar de alívio por
isso.

— Sim, claro. Obrigado. — Não fiz muito para controlar o sorriso em meu
rosto.

— Espero que possamos nos dar bem. — Richard se levanta e estende a


mão.

— Com certeza. — Aperto-a firme, me levantando também.

No que dependesse de mim, iria fazer de tudo para fazer isso funcionar.

— Excelente! — Ele se aproxima. — Venha. Vou te apresentar aos outros


membros da equipe. Quero vocês já familiarizados antes de trabalharem
juntos.

Uma coisa que Richard me falou no início da entrevista foi que, o que ele
mais prezava nesse meio, era o trabalho em equipe. Para ele, todos aqui
eram uma família cooperando juntos. Raramente usavam o sistema
hierárquico no trabalho pois raramente precisavam.

Era com isso que eu sonhava. E eu estava prestes a conseguir.

— Vítor, Jenna, Bob e Mike, também um novato. Pessoal, este é Ben. Ele
será o nosso mais novo garçom.
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— Ah, finalmente. Já estava na hora do reforço chegar. — Vítor , o
garçom de pele negra e muito simpático, me abraça como se eu fosse sua
salvação. Ele tinha um sotaque diferente, provavelmente por não ser desta
parte do país.

Richard me levou ao seu escritório, nos fundos do bar e reuniu toda a


equipe ali. Eram poucas pessoas e acho que será fácil me familiarizar com
todos.

— Sempre tão dramático. — Jenna, a barwoman morena, revira os olhos o


que faz Vítor voltar-se para ela com um olhar de tédio. Jenna o ignora. —
Seja bem-vindo, Ben. — Ela abre um sorriso gentil.

— Obrigado. — Retribuo o sorriso com um aceno de cabeça.

O homem mais velho, Bob, bufa.

— Vocês são umas crianças. Espero que você não seja influenciado por
eles, rapaz. Este lugar precisa de um pouco de experiência madura. —
resmunga com a voz rouca, olhando para Vítor e Jenna. Ele,
definitivamente, era mais velho que Richard.

— Bob quis dizer que está muito feliz por ter você conosco. — Richard,
que estava atrás de mim, segura meus ombros. — Não é, Bob?

O homem em questão desdenha dando de ombros.

— Você não aguentaria uma semana sem a gente, Bob. — diz Vítor com
indiferença e Jenna concorda com a cabeça.

Bob apenas bufa.

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— Parece que somos os recrutas deste batalhão. — Mike aperta minha
mão. Estranhamente, aqueles cabelos e olhos castanhos traziam a sensação
de familiaridade.

— Com certeza. — Eu ri

— Buck, já falei que você é o melhor chefe do mundo? Primeiro Vítor,


agora esses dois. Meus olhos certamente apreciarão a vista, obrigada. —
Jenna suspira e olha de mim, para Mike.

A expressão de deleite no rosto dela me fez segurar o riso.

— Eu concordo com você. Quer dizer, sei que sou uma beldade e tudo o
mais, mas esses dois… Com certeza teremos mais clientes por aqui e
duvido que seja pela comida. — Vítor comenta.

— Está insultando minha comida, seu moleque? — Bob cruza os braços,


fulminando o garçom com o olhar.

— Bem, já que vocês já se conheceram, quero que voltem ao trabalho


enquanto termino de acertar algumas coisas com Ben e Mike. — Richard
aponta elegantemente para a porta atrás dele com uma mão aberta.

— Entendido, chefe. — Vítor se despede com um aceno de dois dedos e sai


primeiro.

Jenna mostra os dois polegares para Richard com uma expressão 'muito
bem' e vai atrás de Vítor. Bob… apenas olha para mim e Mike mais uma
vez antes de sair sem dizer uma palavra.

— Então, — Richard começa quando a porta é fechada. — Bem vindos à


família. — Ele abre os braços sorrindo caloroso.

E eu posso jurar que senti aquele calor inundar meu coração.


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— Então, você conseguiu? — Ela me olha ansiosa, preparada para sair
pulando, caso a resposta seja 'sim'.

Decidi contar a novidade no nosso banco, no Mazarick. A tarde está


especialmente linda hoje.

— Você está olhando para o mais novo garçom do Bu…

Sou interrompido quando Kate pula com exultação. Eu esperava por essa
reação. O que me pegou de surpresa foram seus braços ao redor de mim.
Sim, Kate pulou, mas pulou no meu pescoço. E eu não vou fingir que não
gostei disso.

Passo os braços ao redor de sua cintura, sorrindo enquanto sua risada se


junta à brisa do parque. Seu cheio rouba o ar dos meus pulmões e, por um
segundo, só existe ela.

— Eu estou tão feliz por você, Ben! — A felicidade genuína de Kate pela
minha conquista, fez meu coração falhar.

— Eu também estou, Kate-Kate. — Murmuro contra seus cabelos antes de


me forçar a soltá-la. — A propósito — Tiro uma mecha caída em seu rosto.
— Obrigado por ter me indicado para o Richard. Você, definitivamente,
salvou a minha vida.

O lindo sorriso que se abriu naquele lindo rosto me aqueceu por dentro.

— Não foi nada. Príncipes precisam ser salvos, de vez em quando. — Kate
dá de ombros e se senta no banco.
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Por um momento, apenas olho para ela.

— Bem, fico feliz em ter sido salvo por você, princesa. — Sento ao seu
lado.

Kate ri.

— E como são seus colegas? — Ela descansa o braço na parte alta do


banco, virando o corpo para mim, pronta para ouvir tudo o que eu disser.

— São… divertidos. — olho para o lago à frente. — Eles parecem ser parte
de uma família de verdade, o que deixa o ambiente mais confortável. Estou
tão ansioso para começar a trabalhar lá, Kate-Kate.

— Aposto que vão se dar muito bem. Você tem essa coisa de fazer todo
mundo gostar de você.

— Isso é uma confissão, Kate-Kate? Está dizendo que gosta de mim? —


Tentei fazer soar como uma brincadeira, mas meu coração estava batendo
tão rápido que temia não conseguir ouvir sua resposta.

Encarei aqueles olhos castanhos à espera de uma resposta.

— Não é como se eu pudesse controlar. — Ela me olha com urgência. —


Há algum tempo, Ben, você começou ocupar tanto espaço na minha vida
que não paro de pensar em você. — sussurra, me deixando sem palavras.

Minha boca fica seca, meus pensamentos disparam, meu sangue corre
descontrolavelmente e meu coração… Kate fazia coisas comigo que nem
imaginava só pelo fato de estar perto, mas aquilo era diferente, outro nível.
Me fazia arder.

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— Você se tornou uma pessoa muito importante para mim, Ben, e passei a
sentir saudades suas quando você não está por perto; passei a ansiar pelos
momentos que estarei com você, mesmo que nada saia de nossa boca.
Apenas estar com você é o suficiente. — Ela passa a língua pelos lábios,
controlando o nervosismo.

Isso é mesmo uma confissão. É inacreditável.

— Eu tenho esperado para ter certeza de que você sente o mesmo, se você
se importa como eu me importo, mas não consigo mais. Sei que isso pode
acabar com a nossa amizade, estou bem ciente disso, porém está me
matando e eu preciso saber, Ben. — Seus olhos invadem os meus à procura
de uma resposta para a pergunta silenciosa. — Eu quero que você me
queira. Você não tem ideia do quanto eu quero. — A brisa suave leva o
sussurro da confissão de Kate.

Ali, naquele banco em frente ao lago, naquela tarde majestosa, eu soube


que não tinha mais volta. Não podia voltar atrás com o sentimento que me
fazia sentir tudo ao mesmo tempo só de olhar para ela. E eu não me
importava.

Kate tinha um poder sobre mim. Eu sabia que faria qualquer coisa para
manter aquele lindo sorriso no seu rosto, para ter o prazer de ouvir a risada
dela ecoar pelo lugar, de ver a luz reluzir naqueles olhos castanhos. O rosto
de Kate adquiria um brilho - ela brilhava quando sorria e eu não queria
nunca, nunca perder a forma como ela me olhava e eu tinha certeza de que
a tinha feito feliz.

Eu queria aquilo. Me assustava com a intensidade dos meus sentimentos,


sabia que precisava ir devagar, mas não tinha medo de mostrar para ela,
porque ela era Kate. E eu sentia que podia compartilhar tudo, ser tudo o
que quisesse com aquela garota. Eu confiava em Kate. Isso valia muito
mais do que algum dia ela pudesse imaginar.

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— Como não me importar com você, Kate-Kate? — sussurro e levanto a
mão para pôr uma mecha atrás do cabelo dela. — Como?

— Então… — Ela respira. — Você gosta de mim?

Eu quase ri. Ela estava brincando?


— Receio que gostar não comece a descrever. Acho que estou me
apaixonando por você da mesma forma que estaria pulando de cabeça num
precipício. Não há volta, e a queda é alta demais. — Seguro seu gosto com
minhas duas mãos e olho para dentro dos olhos de Kate. Para a alma dela.
— Sabe, você é a pessoa com a alma mais linda que eu conheci.

— Ben… — Ela respira. — Eu não consigo resistir a você.

— Nem mesmo tente. — Murmuro.

Os olhos de Kate estavam escuros como a noite estrelada, contrastando


com a aura laranja que o pôr do sol produzia nos cabelos soltos. Era uma
visão e tanto. Tudo o que eu queria fazer era…

Um grito ensurdecedor nos assusta. A mesma criança de umas semanas


atrás, uma menininha, passa correndo por nós, feliz por fazer a mãe
'brincar' de pega-pega com ela.

Kate e eu rimos. Nada como uma garotinha aos berros para quebrar o clima
intenso de segundos atrás.

Beijo sua testa e sinto seus braços se enrolarem em mim.

— Isso é bom. — Kate murmura.

Apoio meu queixo em cima de sua cabeça e passo meus braços ao redor
dela também.

270
— É perfeito.

— Podemos ficar assim para sempre? — ouço seu sussurro. — Tenho


medo de que isso não seja verdade. Que, quando o sol se pôr, todo o
encanto vai embora como em Cinderela.

Minha testa se franze.

— Não precisa ter medo, Kate-Kate. Confie em mim. Prometo que o que
sinto por você é mais sólido que isso e você sabe muito bem que cumpro
minhas promessas.

Minha camisa abafa a risada dela. Sabia que Kate lembrou de quando tirei
uma foto sua depois do cinema.

— Faremos isso funcionar. — digo segurando-a mais firme.

— Eu e você? — sussurra.

— Eu e você, Kate-Kate. — Passeio meus dedos pelas costas dela,


imaginando que apenas uma boa música de fundo poderia deixar o
momento mais perfeito. — Eu e você.

30

— Deseje-me sorte.
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— Boa sorte. Você vai se sair bem, não se preocupe.

— Não é bem com isso que estou preocupada, Rose. — Suspiro para o
telefone. — Se ela não aceitar Ben, não sei como eu e ele ficaremos. —
Mordo a cutícula do meu polegar.

— Oh, babe. Todos sabem o jeito que você olha para ele. Não vai ser isso a
impedi-los, tenho certeza. Demorou séculos para vocês acontecerem e me
recuso a simplesmente aceitar que isso não não vai funcionar. — Acabo
sorrindo. — Além disso, quem não gosta do Ben?

Podemos começar com o seu namorado. Guardo o comentário.

— Você está certa. Vou acabar logo com isso.

— Me deixe saber de tudo mais tarde.

— Pode deixar. Amo você.

— Amo você, babe.

Desligamos. É hora de falar sobre Ben para a minha mãe.

— Mãe? — Desço as escadas à sua procura.

— Estou aqui! — Ela responde da cozinha.

Em passos incertos, caminho em direção a sua voz.

— Oi. — digo assim que chego.

272
— Ei, querida. Aconteceu alguma coisa? — pergunta com as sobrancelhas
unidas e com uma xícara na mão.

Minha mãe ainda está vestindo roupas de trabalho. O jaleco deixado numa
das cadeiras do cômodo, me diz que não havia muito, ela chegou do
consultório veterinário.

Os cabelos castanhos estão presos com uma caneta. Seu rosto parece
cansado e linhas de expressão começam a nascer em sua testa, o que me
fazem hesitar em começar a conversar.

— Não. Não aconteceu nada. — abro um sorriso amarelo. — Só queria


saber se podíamos ter…. aquela… conversa. — desvio o olhar para o chão.
Era muito difícil fazer isso.

— Oh! — Mamãe exclama surpresa. — É claro, meu amor. Claro que


podemos. Espere… só uns minutos. Vou tomar um banho para me livrar do
dia no consultório e já volto, ok?

Ela pega seu jaleco e passa por mim a passos rápidos na direção das
escadas. De repente, não vi mais o cansaço visível em seu rosto. Agora
mamãe parecia mais jovem.

Suspiro e caminho até o sofá da sala. Eu preciso contar a ela sobre Ben. Se
ela não aceitá-lo, não só meus planos de levá-lo nessa viagem vão dar
errado, como também, meu coração vai ficar despedaçado. Não quero que
minha história com ele vire uma tragédia romântica tipo Romeu e Julieta
onde as famílias não aceitam o relacionamento. Apenas pensar nisso, me
dá calafrios.
Então eu espero, pacientemente, minha mãe voltar do banho. Quando ela o
faz, fico surpresa pois seus cabelos estão molhados, sendo que geralmente
ela gosta de secá-los.

— Você já comeu? — Pergunta, assim que chega no cômodo.


273
Balanço a cabeça.

— Já.

Ela me olha um segundo a mais antes de vir sentar ao meu lado.

— Então, sobre o que quer conversar? — Percebo, pelo canto do olho, que
ela está olhando para mim.

Respiro fundo e faço um esforço para encará-la também.

— As coisas vão bem no novo consultório? — Tento sorrir.

Mamãe parece não acreditar que eu estou perguntando algo relacionado ao


trabalho, mas decide responder:

— Estou feliz por voltar a cuidar dos bichinhos. — Um genuíno sorriso


nasce no canto de sua boca. — Felizmente, não temos muitos casos graves
chegando ultimamente.

— É um alívio. — digo com sinceridade, olhando em seus olhos.

— E você? Como anda a escola?

Repasso os acontecimentos na minha mente.

— Não aconteceu nada de muita relevância, além de que melhorei minhas


notas em química e agora isso não é mais um problema para entrar na
faculdade.

— Suas notas não eram boas? — Ela franze a testa.

274
— Eu nunca fui boa em química. — Esclareço.

Talvez esses 3 anos tenham destruído mais do que pensávamos.

— Certo. Bom, fico feliz em saber que isso não é mais um problema para
você. Estou orgulhosa. — E, de novo, aquele sorriso radiante aparece em
seu rosto, fazendo com que meu coração se aperte.

— Obrigada. — Limpo a garganta. — Tem… uma coisa que quero falar


com você. — Expiro.

Mamãe se remexe no lugar.

— Certo. Continue.

— Nós não temos nos falado muito desde há 3 anos atrás… então espero
que não fique chateada.

Ela me olha pacientemente, esperando que eu comece. Respiro fundo e


mordo o lábio inferior, não ousando olhá-la nos olhos.

— Eu estou… Estou meio que… namorando um cara e… queria saber se…


posso levá-lo… na viagem neste fim de semana. — Recupero o fôlego.

Arrisco uma olhada rápida de segundos e descubro que minha mãe está
com as sobrancelhas levantadas.

— Você… está namorando?

Confirmo com a cabeça, desejando não estar mais ali. Me abrir com ela era
tão difícil, mas eu tinha que tentar.

— Há quanto tempo você namora? — Surpresa. Ela está surpresa.

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— Bem, há algumas horas. — Brinco com meus dedos no colo.

— Oh! Então fui a primeira a saber?

— Na verdade, foi Rose. — Ainda não ouso encará-la.

— Bem, mas ainda assim. — Noto algo estranho em sua voz e quando olho
para o rosto da minha mãe, encontro-a sorrindo. — Fico feliz por ter me
contado.

— Você não se importa? — Minha vez de ficar surpresa.

— Querida, não me importo que você namore, desde que me conte. Estou
feliz por saber disso com antecedência.

— Ok. — pisco algumas vezes, processando o que acabei de ouvir. — E


quanto a parte de levá-lo na viagem?

— Bem… — Ela hesita e meu coração acelera. — Eu teria que conhecê-lo


antes. Não que eu não confie em você para achar alguém bom. Eu apenas
não quero ser pega de surpresa. — Mamãe sorri amarelo.

— Claro. — Digo rapidamente. — Claro, sem problemas. — Um sorriso


involuntário alarga meu rosto.

— Então está combinado. Ligarei para o Richard avisando sobre o nosso


novo convidado.
Solto um gritinho de euforia e abraço a minha mãe.

Eu. Abraço. A. Minha. Mãe.

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Nós duas ficamos tensas com o ato. Ela, esperando que eu me afaste e eu
decidindo se o faço ou não. Suavemente, deito minha cabeça em seu ombro
com a mente turbilhando em pensamentos.

Ela suspira e abraça minhas costas. O ar começa a ter cheiro de infância; a


nostalgia fazendo meu coração se apertar.

— Obrigada, mãe. — Digo entre o nó que se formou em minha garganta.

— Eu estou aqui, querida. — sussurra.

Essa foi a primeira vez, em 3 anos, em que tive certeza de que aquelas
palavras eram verdadeiras. Eu realmente senti que minha mãe estava aqui,
para mim.

Não fazia ideia de que sentia falta desse contato, que sentia falta dela.
Minha mãe. Tantas coisas passam pela minha cabeça, mas é apenas quando
meus olhos começam a queimar que desfaço o abraço.

— Eu… Preciso avisá-lo da viagem e que você quer conhecê-lo antes. —


Me levanto e limpo as mãos no short.

— Tudo bem. — Ela sorri, mas seus olhos estão brilhando com lágrimas.
Era demais por hoje.

— Ok.

Subo rapidamente as escadas e entro no quarto. Encostada à porta, coloco


meus pensamentos em ordem, respirando fundo para acalmar minhas
emoções. Um passo mais perto. Mamãe e eu estamos um passo mais perto
de uma reconstrução.

277
Me sentindo mais tranquila, pego o celular em cima da cama e ligo para
Ben. Três toques depois, ele atende.

— Hey, Kate-Kate! Já está com saudades?

Sorri.

— Você gostaria, não é?

— É incrível como você já me conhece tão bem. — Seu tom brincalhão me


faz rir.

— Ben, eu tenho uma proposta para você. — Mordo o lábio inferior pela
milésima vez hoje.

— Uma proposta?

— Sim.

— Estou ouvindo.

— O que acha de uma viagem à praia neste fim de semana?

— Uma completa loucura.

Concordo com um aceno.

278
— Acho que é uma loucura boa, se você estiver descansando e comendo
nos horários corretos. — olho em volta do pequeno apartamento de Mike.

Diversos livros e folhas de anotações estavam espalhados por toda sala e na


mesa da cozinha. Parecia que um furacão tinha tirado férias dentro do
apartamento. De fato, uma completa loucura.

— Mais ou menos. — Meu irmão coça a nuca. — Estudar para entrar na


faculdade de medicina sem o ensino médio é mais complicado que pensei.
— Ele vai arrumar um lugar no sofá para sentarmos. — Desculpe. Não
sabia que estava vindo.

— Não se preocupe comigo. Está tarde e só vim saber como você está e te
entregar isto. — Estendo a mão que carregava uma sacola.

Mike para o que estava fazendo para pegar o que estou segurando.

— O que é? Tem um cheiro bom.

— Comida decente. — Vou para a cozinha pegar um prato e talheres. Na


pia, vejo uma caixa de pizza vazia. — Algo que seu estômago irá me
agradecer por variar sua refeição de pizza diária.

Ele tira os papéis e livros da mesa.

— Meu estômago fica muito contente quando eu como pizza. — Retruca,


sentindo o cheiro do conteúdo que eu trouxe. — Bife com purê de batata e
molho. — geme, enquanto sua barriga reclama alto

— Você ainda não jantou, não é? — coloco o prato e os talheres na mesa,


para ele se sirva.

279

Eu ia pedir pizza, mas fiquei enrolado com algumas questões e queria
resolvê-las primeiro. Acabei esquecendo que precisava comer. — Mike
coloca toda comida do pote no prato e começa a devorá-la.

— Você conseguiu resolver? — olho novamente para o caos na sala. —


Isso certamente tomou bastante seu tempo.

— Quase. — responde com a boca cheia. — A maldita química é muito


complicada. Não consigo achar o resultado certo, droga.

Conte-me sobre isso, resmungo mentalmente.

— Posso dar uma olhada?

— Claro. — Ele se levanta e vai à procura da folha na mesa de centro da


sala.

Pego um lápis que vi no chão, perto da TV.

— Achei! — anuncia e me entrega o papel rasurado. — Esse negócio vai


te deixar doida. — Mike volta para seu banquete.

Me sento na cadeira adjacente à dele. Levo meu tempo lendo a questão até
encontrar o erro.

— Esta aqui é um pouco complicada mesmo. O cálculo está certo, mas…


Aqui. — viro a folha para ele e aponto para o lugar onde erro estava. — O
segredo é converter para quilos, não gramas.

— O que? — Murmura com a boca cheia de purê. — Me dê aqui.

280

Passo o papel e caneta e observo enquanto ele refaz o cálculo. Mike
pragueja.
Boca!

— Desculpe. — Ele abre um sorriso envergonhado. — Caramba, Kate.


Você é uma gênia. Estou me sentindo um idiota. Todo esse tempo era
apenas esse mínimo detalhe que faltava.

— Eu tive um bom professor. — Sorri pensando no ótimo professor que


tinha.

— O que é este sorriso no seu rosto? — Mike cerra os olhos para mim.

— Sobre isso, — pigarreio. — eu quero te contar a mais nova novidade.

— Continue. — Ele cruza os braços e se recosta na cadeira.

Suspiro pensando que vou ter que lidar com o comportamento ciumento e
teimoso de Mike.

— Estou namorando.

Meu irmão não reage.

— Então?

— Estou esperando você dizer que é brincadeira. — Responde


simplesmente. Ele é inacreditável.

— E o que te faz pensar que não estou falando sério? — pergunto um


pouco ofendida.

281

Sei que não tenho atrativos fisicos suficientes para ter a atenção de muitas
pessoas do sexo oposto - e estou bem com isso - , mas ainda tenho um
pouco de orgulho próprio.
Porque, irmãzinha, você não pode estar namorando. Não a sério. —
Apenas levanto as sobrancelhas. — Qual é, Kate. Eu nunca ouvi falar no
cara, como você quer que eu acredite que está namorando alguém?

— Não preciso explicar nada da minha vida, Mike. Você, mais do que
ninguém, devia entender isso.

Ele fica tenso.

— Isso não é justo, Kate.

— Não, Mike. Definitivamente não é justo. — Me levanto irritada. — Por


muitas vezes, fiquei sem ter notícias suas. Eu morria de preocupação até o
dia em que você me ligava, mesmo sem me dar muitos detalhes. E estava
tudo bem, porque aparentemente você estava bem. Mas você está certo.
Não é justo que eu tenha que me explicar para você, quando mal sei sobre
sua vida. — Contorno a mesa e caminho até a porta.

— Kate. Kate!

Eu paro com a mão na maçaneta.

— O nome dele é Ben. Você já o conhece, será seu colega de trabalho.

— O que?

— Nem pense, Mike, nem pense em prejudicá-lo por estar comigo. Ele não
é esse tipo de pessoa. Eu espero, de verdade, que você pare com esse

282

territorialismo idiota e comece a agir como meu irmão, me apoiando.
Então talvez mereça a minha confidencialidade novamente.

Saio do apartamento o mais rápido possível. Eu merecia ser feliz, então por
que ele não podia simplesmente ficar do meu lado?

283
31

Decidi que não gosto de sorrisinhos. Sorrisinhos são maléficos e traiçoeiros


exatamente como os das duas mulheres sentadas à minha frente.

— Ele estava tão nervoso, Fluflu. — Kate ri.

— Não, Kate-kate, eu não estava nervoso. Quantas vezes preciso repetir?

— Ah, amor. Qual é! — Ela dá risada. — Estava, sim. Sua mão estava toda
molhada.

— Eu acredito nela. — Fluflu toma, inocentemente, seu chá. — Mas


preciso dizer que estou surpresa. Não pensei que você ficaria tão ansioso
para conhecer a mãe da sua namorada.

— Sério, Fluflu? Depois de tantos anos você vai ficar do lado de quem
conheceu há dias atrás?

— Sororidade, querido. — Ela dá de ombros e Kate concorda com a


cabeça.

Suspiro, derrotado, pensando se foi uma boa ideia ter juntado essas duas.
Certamente não o teria feito se soubesse que se voltariam contra mim dessa
maneira.

Pego um cookie e observo enquanto mais pessoas entram no Café. Ele está
especialmente cheio hoje.

284
— Então, o que mais aconteceu no jantar?

Gemo.

— Podemos não falar neste assunto, por favor?

— Quieto, Ben. Você não pode achar que não vou querer saber dos
detalhes. — Fluflu me repreende.

Olho para Kate e ali está. De novo, o maldito sorrisinho.

— Ele não parava de limpar a mão na calça. Estávamos no sofá e, quando


minha mãe chegou, Ben pulou do lugar e ficou todo tenso.

— E você, como uma ótima pessoa que é, nem disfarçou que estava
curtindo às minhas custas.

— Desculpe, amor. — Ela ri, sem o mínimo de remorso. — Mas a melhor


parte foi quando minha mãe subiu para se arrumar e, quando voltou, nos
encontrou muito próximos.

Foi horrível. Jurei ter morrido por alguns segundos. Nada em mim
funcionava quando escutei um pigarreio atrás de mim e sabia que a mãe de
Kate tinha nos pegado.

— Ele estava perto de beijá-la? — Fluflu fica boquiaberta.

— Uhum.

— Benjamin Hunter! O que deu em você? Como pôde fazer isso quando
foi conhecer a mãe da sua namorada? Que será que ela pensa de você
agora? — Fluflu praticamente grita e quero me enterrar no buraco mais
próximo.

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— Na verdade, Fluflu, minha mãe amou conhecê-lo. — Kate me olha com
um sorriso. Não o sorrisinho, mas o sorriso que amo.

É fácil esquecer que eu estava carrancudo há segundos atrás. Essa garota


não faz ideia de que basta apenas um sorriso dela para ter o mundo aos
seus pés.

— É um alívio. — Fluflu se acalma. — Foram os olhos azuis, não foram?

— Eu acho que sim.

— E, no fim, Judie mal podia esperar para passarmos mais tempo juntos
neste final de semana. — digo antes que elas continuassem a falar de mim
como se eu não estivesse ali.

— Detesto admitir, mas você está certo.

— Estou sempre certo, amor. — Pisco um olho para ela e dou uma
mordida em mais um cookie. Estes são deliciosos.

— Bem, eu espero que vocês se comportem nessa viagem. Não quero que
me apareçam com um netinho tão cedo.

As migalhas erram o canal para o meu estômago, me fazendo tossir como


um louco. Kate corre para o meu lado e começa a massagear as minhas
costas.

— Que diabos, Fluflu? — volto a tossir.

As pessoas começam a olhar para nós. Para mim. Pego meu milk-shake e
tomo goles generosos.

286
— Isso foi golpe baixo. — Sibilo para ela com a voz rouca.

— Estava brincando com você, querido. — Fluflu toma seu chá,


olhandonos sobre a xícara. — Confio no seu senso de responsabilidade e
em que Kate é uma menina de juízo. Estou tranquila.

— Fico feliz por isso. — Murmuro.

— Você está bem? — Kate se agacha para olhar bem para o meu rosto.

— Estou, Kate-Kate. — Pego sua cabeça com as duas mãos e beijo sua
testa.

À nossa frente, Fluflu suspira. Olhamos para ela ao mesmo tempo.

— Eu definitivamente estou muito tranquila. — Diz com uma expressão


fofa.

Kate e eu rimos. Ela se levanta e volta para o lugar.

— Então, quando vocês voltam de viagem mesmo?

— Domingo à noite. — Respondo. — Não vamos ficar fora tanto tempo.


Não serão nem dois dias inteiros.

— Não se preocupe, Ben. Aproveite em paz. Ligarei acaso alguma coisa


acontecer, mas nada vai acontecer. — Fluflu enfatiza bem o 'nada'.

— Estou apenas pensando se o Sr. Finlay não irá se senti solitário lá


dentro.

Ela não podia entrar no quarto, já que era arriscado causar emoções fortes
nele. E ainda tinha meu pai.

287
— Você pode curtir algumas horas num bom lugar, querido. Nada vai
mudar por aqui enquanto estiver fora. Estarei de olho em seu pai também.

Fluflu agora saia do hospital para casa e até contratou alguém para cuidar
da padaria. Então, todos os dias, ela saia para tomar um banho e
supervisionar seu estabelecimento enquanto eu ficava ao lado do Sr.
Finlay.

— É um pouco perigoso, Fluflu. Não quero que se arrisque indo até lá.

— Deixe de besteira! E não sou eu quem vai, fique tranquilo.

— Mas…

— Você não precisa ir. — Kate interrompe, conseguindo a nossa atenção.


— Sabe, você não precisa ir só porque te convidei ou porque minha mãe
espera que você vá. Não irá decepcionar ninguém se ficar e cuidar de quem
é mais importante para você.

Se eu já não estivesse apaixonado por Kate, este seria o momento em que


eu me apaixonaria. Ela estava mais que animada por essa viagem, falando
de coisas que podíamos fazer, que livros ela iria levar e quanta saudade ela
estava da praia. E eu vejo agora, em seus lindos olhos castanhos, a batalha
que ela está fazendo para não deixar suas emoções transparecerem
enquanto me diz para ficar.

Meu coração bate forte no peito porque essa garota, minha namorada,
escolheu sacrificar sua vontade e seus planos para me dar livre escolha.

— Fluflu? — Ainda não tiro os olhos de Kate. Ela também não desvia dos
meus.

288
— Sim, querido? — A voz dela parece mais suave.

— Você irá me ligar se algo acontecer, certo? Tanto com meu pai, quanto
com o Sr. Finlay.

— Eu irei.

— E irá me manter informado enquanto eu estiver lá.

— Vou.

Ótimo.

— Amor?

— Sim?

Ainda estamos conectados. Nenhum de nós olhou para qualquer outra coisa
a não ser um para o outro.

— Estou indo com você nessa viagem.

— Tem certeza?

O fato de ela ainda me perguntar isso, me faz querer atravessar essa mesa e
beijá-la com tudo o que tenho.

— Sim.

— Você não precisa.

— Eu sei.

289
Kate me dava uma sensação de paz e segurança. E, droga, como eu
confiava nela.

— Podemos voltar a qualquer instante que quiser.

A lateral da minha boca sobe.

— Eu e você?

— Eu e você. — Ela sussurra.

Uma olhada para Fluflu me confirma aquilo que eu já sabia: Eu encontrei a


garota certa.

290
32

Senti o cheiro do mar antes mesmo de conseguir vê-lo.

— Depois que nos instalarmos na casa, podemos ir para o mar. O sol está
sorrindo para nós hoje. — diz Richard do banco do motorista, abaixando o
volume do som.

Ele e Ben tem gostos musicais muito parecidos e vieram discutindo sobre
as melhores bandas britânicas de 1973 e se Mick Jagger era melhor que
Freddie Mercury.

Preciso confessar que a atmosfera do carro ficou muito prazerosa enquanto


eles decidiam nossa playlist. Quando todo mundo cantou Can't Help
Falling in Love with You, com partes erradas e performances bobas,
parecíamos uma família de verdade. Eu estava feliz. Mesmo sentindo a
falta do meu gêmeo.

— Estamos quase lá. — Anuncia nosso motorista.

Nos aproximamos de pequenos condomínios de casas, que eu sabia que


ficavam em frente à praia. Mal podia esperar para sentir a areia debaixo
dos meus pés.

— Qual delas é a sua? — pergunto.

— A última desta rua. Gosto de locais mais reservados e calmos. Aquela


área não tem muitas pessoas na praia então, posso aproveitar com uma
certa paz.
291
— Acredite quando eu digo que sei o que você quer dizer.

— Você são tão antissociais. — Mamãe ri do banco da frente.

— Não somos contra pessoas, querida. Apenas não gostamos de estar no


mesmo espaço que muitas delas. É desconcertante.

— Exato. — concordo.

— Estou bem com qualquer um dos lados. — Ben comenta ao meu lado.

Ficamos a viagem toda de mãos dadas, comigo aninhada na curvatura de


seu braço, brincando com seus dedos. Algumas vezes ele beijava minha
cabeça e murmurava em meu ouvido, me fazendo rir até ficar com dor. Eu
gostava dessa proximidade entre a gente. Gostava muito.

— Chegamos. — Richard para o carro.

Olho para a janela, para a casa de vidro de dois andares.

Ao meu lado, Ben assobia.

— Pensei que gostasse de privacidade.

— Sim e também tenho gostos exóticos. — Diz Richard, tirando algumas


coisas no porta-luvas. — A casa foi construída para vermos o mar de,
praticamente, todos os cômodos. Além disso, a casa fica num local distante
das outras e tem cortinas por toda parte.

— Mas não é arriscado alguém vir e roubar algo? — Pergunto e solto meu
cinto.

292
— Richard deixa um casal amigo cuidando da casa enquanto ele não está. O
casal mora pelas redondezas e a área é cercada por câmeras. — Mamãe
esclarece.

— Sim. Há alguns meses instalei um sistema de segurança, então se


alguém entrar na propriedade e não desligar o alarme, que só é possível se
tiver com o meu celular ou com o de meu amigo, então toda a vizinhança
saberá que tem alguém fazendo o que não devia aqui. — Richard sorri para
nós e sai do carro.

— Ele é bastante precavido. — comento para ninguém em especial.

— Lembre-me de jamais irritá-lo. — diz Ben.

— Não se preocupem. Richard não se irrita facilmente. — Mamãe olha


para nós e abre a porta do carro. — Vamos, crianças. Temos muita coisa
para fazer hoje.

As cortinas pareciam grandes vendas, que, quando abertas, a luz e todo um


mundo se revelava.

O mar era simplesmente incrível. Talvez fosse o efeito de estar dentro de


uma casa, mas sentir, ao mesmo tempo, como se estivesse lá, na praia. Eu
passaria horas aproveitando um bom livro, se não tivéssemos tão pouco
tempo em Carolina Beach.

Richard tinha razão quando disse que podíamos ver o mar da maior parte
dos cômodos. É uma área retangular e a sala e cozinha ficam opostas uma à

293
outra. A tinta branca e as decorações em mármore dão uma classe ao lugar,
que se assemelham muito com o dono.

No andar de cima, ficavam apenas os 3 quartos - que tinham uma parede


inteira de vidro em frente ao mar - e um banheiro. Ben e Richard ficaram
com um dos quartos, mamãe e eu com outro. Decidimos que seriam melhor
para os hormônios. Bem, Richard quem falou com essas palavras. Nós
apenas concordamos, sabendo exatamente onde ele queria chegar.

Mamãe e eu mudamos nossas roupas para outras mais leves e colocamos


biquínis. Me sinto uma criança eufórica, pronta para entrar no mar pela
primeira vez.

— Vamos? — Mamãe chama, enquanto coloca seu chapéu de palha.

Ela está usando um vestido branco solto que transparece seu lindo maiô
preto, e um óculos de sol quadrado grande.

— Vamos.

Não me preocupei em me vestir mais do que um short jeans por cima do


biquíni branco. Eu queria sentir o sol bater na minha pele, quente, mas
prazeroso.

Olho mais uma vez para a paisagem através da parede de vidro, antes de
dar meia volta e descer as escadas.

— Não ouse! — aviso ao espertinho de expressão travessa.

294
— Vamos lá, Kate-Kate! É só água. — Ele se aproxima devagar, me
fazendo retroceder meus passos na areia.

— Está gelada. — afirmo o óbvio.

— Você estava mais do que animada para entrar lá. Vai mesmo fazer seu
namorado entrar naquela água sozinho?

— E que diferença faria se eu entrasse junto? — ainda estou andando para


trás.

— Assim estaríamos sofrendo juntos. Isso faz uma grande diferença nos
relacionamentos. — Seus passos ficam mais largos.

— Sinto muito, amor, mas hoje não é o seu dia de sorte.

Estou quase na casa. Só mais alguns passos…

— Katherine Laurentis, nem pense em entrar lá! – Ben para e põe as mãos
na cintura. — Não me obrigue a fazer isso.

— Definitivamente, não estou obrigando você a nada. — Continuo


andando.

Ele suspira.

— Eu avisei.

— O que..

Mal registro quando Ben encurta a distância entre nós em 3 passos e me


coloca no seu ombro.

295
— Me põe no chão, Benjamin! — grito me esperneando.

O desgraçado é forte como uma rocha. Não consigo mover quase nada.

— Você irá me agradecer por isso. Não quero ouvir seus lamentos por não
ter aproveitado o quanto podia, na viagem de volta.

O mar está de cabeça para baixo e se aproximando. Escuto a risada de


mamãe e Richard ao longe. Estão em cadeiras de praia, perto da casa e
certamente achando a situação toda muito divertida.

— Ben…

A areia já está molhada.

— Ben, me põe no chão!

— Não mesmo, princesa.

Ele já está na água. Uma onde bate em na parte inferior de suas pernas,
esguichando água para o meu corpo. Solto um grito involuntário. Gelada.

Ben dá risada.

— Por favor, me perdoe. — diz antes de me jogar na água.

Não tenho tempo de xingá-lo, pois o mar cobre tudo em mim. Gelado.
Subo para a superfície o mais rápido possível. Eu vou matar o meu
namorado.

Já respirando oxigênio, encontro o engradinho sorrindo para mim.

— Gostou?

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— Vou gostar das minhas mãos em seu pescoço. — forço minhas pernas a
andarem contra a pressão da água.

Ben nem se dá ao trabalho de sair do lugar, o que me deixa mais brava.


— Você é um idiota. — empurro seu peito, mas ele não se mexe.

— E ainda assim, você escolheu namorar comigo. — Sua mãos prendem as


minhas contra seu peitoral grande e molhado.

— Bem, péssima escolha a minha então. — retruco, me recusando a ceder


ao efeito que o corpo dele, sob as minhas mãos, faz em mim.

Ben ri.

— Sabe, eu me divirto muito com você.

Ondas nos fazem balançar no lugar.

— Bom saber que sou sua fonte de diversão favorita. — ironizo.

— Espertinha. — Ele puxa meu corpo e me abraça. — Não é só esse tipo


de diversão. Eu me sinto feliz quando estou com você, como há muito
tempo não me sentia.

Isso faz meu coração parar.

— É?

— Uhum. — murmura. — Não sei exatamente porque, mas você parece ser
a paz que venho procurando por um longo tempo.

297
Encostada em seu peito, ouvir aquelas palavras e seu coração batendo,
produz uma sensação estranha e boa ao mesmo tempo. Ben despertava
coisas em mim, que não sabia que existiam.

— Você também é o que venho procurando há muito tempo. — ajeito-me


nos seus braços.
Fecho os olhos aproveitando a sensação do sol em minha pele, o barulho
das ondas e os braços de Ben ao meu redor.

— Kate?

— Sim?

— Ainda está brava?

— Talvez. — sorrio ainda de olhos fechados.

— Então… — Ele me afasta pelos ombros para olhar nos meus olhos. — O
que acha de pegar aquele livro que você trouxe e ler para mim?

Esse homem será a minha perdição se continuar a falar desse jeito.

— Você disse que não gosta de ler. — Lembro.

— Eu disse que nunca achei um livro que me prendesse. Talvez você possa
me ajudar com isso. — E então ele sorri. O maldito sorriso que deixa meu
coração derretido dentro do peito.

— Sabe, não precisa sorrir assim. — começo a caminhar de volta à praia.


— Eu não tenho chances. — Murmuro.

— Então quer dizer que não está mais brava comigo? — Ben me alcança e
enlaça nossas mãos.

298
— Não, seu idiota. — sorrio.

— Prefiro quando você me chama de "amor".

Gargalho inclinando a cabeça para trás.


Voltamos de mãos dadas à praia e Ben não largou quando fui buscar o
livro. Ficamos o tempo todo assim até ele arrumar a toalha e colocar o
guarda-sol na areia para que pudéssemos sentar.

Ben deita em minhas pernas, de olhos fechados, apenas me ouvindo


proferir as palavras escritas em Entre o Agora e o Nunca. Um sorriso nasce
em seu rosto enquanto acompanha minha voz.

Não consigo deixar de acreditar quão bonito ele é. Meu namorado. Cada
vez que olho para Ben, uma parte de mim vai involuntariamente para ele. E
eu estava bem com isso. Muito, muito bem.

— Espere aí! Então quer dizer que a Camryn simplesmente viu as batatas
que a mulher estava comendo e decidiu que o destino dela seria Idaho,
porque lá é a terra das batatas? — Ben abre os olhos em confusão e franze
a testa de um jeito fofo.

— Sim. — dou risada. — Ela não tinha muita coisa em mente. Então optou
por qualquer lugar, desde que a levasse para longe de seu passado. —
passo os dedos entre os fios de seu cabelo preto.

— Ela devia estar bem perdida. — Murmura. — Bem, ela com certeza
estava, considerando toda merda que ela teve que aguentar, mas acho que
não seria má ideia sair viajando de vez em quando, quando as coisas
ficarem ruins. Gostaria de um Road trip, algum dia. — Ben volta a fechar
os olhos, como se estivesse sonhando com isso.

299
A ideia de reproduzir, com Ben, algo marcante num dos meus livros
favoritos, me faz querer agarrá-lo com tudo o que tenho. Mas não queria
fazer uma cena com mamãe e Richard tão perto de nós.

— Sim. Eu também gostaria. — Noto o sorriso que se forma em seu rosto


quando me ouve dizer isso.
— Eu e você, Kate-Kate.

Os cantos da minha boca também erguem.

— Mas, me diz, — Ele abre os olhos. — quando é que o... Andrew vai
aparecer? Você está lendo há tempos e a coitada da Camryn está
depressiva e ninguém está nem aí. Já estamos na página… Em que página
estamos?

— 42. — Junto meus lábios contra um sorriso.

—… Página 42 e nada do cara aparecer.

— Calma, caubói! Para quê a pressa?

— Bem, você disse que ele é super parecido comigo e gostaria que ele
ajudasse a Camryn a sair dessa. Sabe, que ele fosse alguém que se
importasse, que não a deixasse sozinha.

Eu podia ver claramente o espírito de Andrew em Ben. Os dois tinham esse


fervor por ajudar as pessoas e mostrar uma visão de mundo melhor, mesmo
que suas vidas sejam um caos.

— Bom, se você esperar mais duas páginas, verá que Andrew faz sua
primeira aparição. Mas é na página 48 que você o descobre escutando Bad
Company e aí vem a primeira semelhança entre vocês dois.

300
— Kate-Kate, você sabe como conquistar um cara. Continue lendo. — Ele
cruza os braços em frente ao peito e fecha os olhos novamente. — Estou
ansioso para conhecer esse Andrew e seu maravilhoso gosto musical. —
Dou risada. — Além do mais, quero ver a Camryn sorrir de verdade.

A versão leitora de Ben é melhor do que eu imaginava. Ele seria um ótimo


parceiro leitura, com certeza.

Leio mais umas 40 páginas antes de Richard nos chamar para tomar banho
para jantarmos. Ele e Ben serão os chefs hoje e mal posso esperar para
provar de sua comida.

— Não acredito que paramos! Eles estão começando a sentir algo pelo
outro, mesmo sem perceber. — Meu namorado resmungão pega a toalha
em que estávamos sentados e fecha o guarda-sol. — Você viu, ele está
sorrindo pensativo, contemplando o fato de que Camryn não é uma garota
previsível. Ele está gostando dela, certeza.

— Os dois estão. — Limpo a areia das minhas pernas com uma mão. — Eu
amo a forma como eles começam a se conhecer e isso vai gerando um laço
forte entre os dois. Percebeu como a conversa deles é fácil?

— Total. — Ben põe a toalha dobrada e o guarda-sol fechado numa mão e


segura a minha com a outra. — Uma pena que a viagem de ônibus está
chegando ao fim.

Começamos a caminhar de volta para a linda casa de Richard.

— Talvez, seja apenas o início da viagem deles. — Sorrio para a areia.

Esse livro deixa meu interior aquecido.

— Por favor, Kate-Kate, temos que continuar lendo. Preciso saber como
eles ficam juntos.
301
— Acredite, não tenho nenhum plano de fazer o contrário.

— Você é demais. — Ele passa o braço sob meus ombros e beija a lateral
da minha cabeça.

— Sim, sim. — Eu rio. — Agora, vamos logo porque estou ansiosa para
ver do que você é capaz de fazer na cozinha.

— Você sabe que se me desafiar, eu irei cumprir, não sabe? — Ben levanta
uma sobrancelha para mim.

— Ainda lembro da nossa última aposta, sim. — Meus lábios descem em


desgosto pela minha derrota.

Desta vez, não seria tão fácil.

— Então, amor, prepare-se para a melhor comida que você já provou. —


diz ele todo convencido.

— Não é tão fácil me agradar. — Olho-o com superioridade.

— Eu acharei uma forma, acredite. — Sorri para mim, como uma


promessa, e volta a olhar para frente.

O problema é que acredito nele. E, droga, como eu acredito nele!

33

302
— Tem certeza de que está tudo certo por aí? — me sento nas escadas dos
fundos da casa, em frente ao mar.

— Tenho, querido. Já lhe disse. Oliver está dormindo enquanto seu pai está
em casa e bem alimentado.

— Não acho uma boa ideia qualquer pessoa, que não seja eu, ir até lá e
visitá-lo. — Encaro o reflexo da lua no oceano escuro.

— Pare de se preocupar! Seu pai nem perceberá que não é você cuidando
dele. — Fluflu me repreende. — Agora me diga, como estão indo as coisas
em Carolina Beach?

Faço um esforço para deixar de lado as preocupações com aqueles dois


homens.

— Hoje foi incrível, Fluflu. Não lembro de ter ficado tão relaxado, de ter
rido o dia todo e me divertido com pessoas legais, até agora. Começo a
pensar que tipo de vida infeliz eu tinha. — Rio sem humor.

— Você sempre mereceu mais do que isso, Ben. — Ela diz baixinho.

Não queria que a conversa tomasse esse rumo.

— Primeiro — limpo a garganta. — fomos à praia. Kate ficou brava


comigo porque a joguei dentro da água — dei risada. — mas depois pedi
que ela lesse um de seus libros favoritos para mim e então ela me perdoou.
— Espertinho. — Fluflu ri.

— Mas eu juro, Fluflu, nunca imaginei que aquelas páginas podiam mexer
tanto com as minhas emoções. Estou ansioso para saber o que acontece
com os personagens.

303
— Nunca podemos julgar aquilo que não conhecemos. É ótimo que Kate
tenha despertado isso em você.

Os cantos da minha boca se erguem involuntariamente.

— Ela é incrível. — Antes que meus sentimentos esmagassem meu peito,


continuo a contar sobre meu dia. — Ficamos a tarde toda na praia e quando
a hora do jantar chegou, Richard e eu preparamos um Cioppino, que
demorou duas horas para ficar pronto.

— Ah, quer dizer que agora você virou um chef? Talvez não precise mais
de mim para isso.

— Sim, minhas mãos fazem uma comida muito saborosa, mas ainda
preciso das guloseimas que você faz. Alguém tem que me manter saudável.

Fluflu gargalha.

— É bom saber. E o que fizeram depois do jantar?

— Bem, jogamos dardos em duplas. Richard é incrivelmente ruim nisso e


tive o azar de fazer dupla com ele. Kate, por outro lado, é a melhor. Ela fez
tantos pontos que minha cabeça não consegue processar.

Minha amiga ri.

— Tenho certeza de que sim. Já amo essa menina.

— Ei! Você não pode me esquecer! Sou seu garoto desde muitos anos.

— Ora, você sabe que eu jamais faria isso. Não lhe ensinei nada sobre ser
egoísta?

304
— Sim, sim. Desculpe. — abro um sorriso, feliz apenas por estar falando
com Fluflu.

Ouço um bocejo do outro lado da linha.

— Você precisa dormir. — digo.

— Eu acho que sim. — Ela suspira. — Boa noite, querido.

— Boa noite, Fluflu. Amo você. — sorrio para a areia à minha frente.

— Também amo você, Ben.

E se encerra a nossa ligação.

Observando as ondas quebrando na praia, as estrelas no céu e sentindo a


brisa noturna bagunçar meus cabelos, a única coisa que falta é a música.

" I've been travelling... but I don't know where (Estive viajando, mas não
sei para onde)"

Comecei a cantar Laugh I Nearly Died de The Rolling Stones.

"I've been missing you... but you just don't care.


(Eu sinto sua falta, mas você simplesmente não se importa)

And I've been wandering... I've seen Greece and Rome


(E venho vagando. Eu vi a Grécia e a Roma)

Lost in the wilderness... so far from home. (Perdido no deserto, tão longe
de casa)

Laugh, laugh I Nearly Died.

305
(Ria, ria que eu quase morri)"

Não percebi que estava tão distraído até abrir os olhos e ver Kate sentada
ao meu lado, com duas canecas na mão. Ela está me olhando estranho.

— Não sabia que tinha pedido serviço de quarto. — digo com um sorriso.

Kate ri.

— Aqui não é um quarto, espertinho. — Ela estende uma das canecas para
mim.

— Obrigado. — pego o objeto de sua mão e olho o conteúdo. — O que é?

— Chocolate quente com marshmallows. Richard quem fez.

Balanço a cabeça.

— Está chegando mesmo o inverno, não é? — tomo um gole da bebida.


Quente e gostoso.

— Sim.

Olho para ela. Kate está vestindo um moletom cinza, calças xadrez e
prendeu o cabelo num coque rápido.

— Então, o que faz aqui fora, nesse vento frio e cantando Laugh I Nearly
Died?

— Você conhece essa música? — levanto as sobrancelhas.

— É uma das músicas que o Andrew canta no livro. — revela


simplesmente, levando a caneca à boca.

306
— Jura? — Kate acena. — Eu acho que estou me apaixonando pelo cara,
Kate-Kate. E isso é preocupante.

Ela dá risada.

— Eu não me importo se for pelo Andrew. É compreensível.

Sorrio.

— Você tem as ideias mais estranhas, princesa.

— Obrigada. — ela dá de ombros.

Balanço a cabeça e volto a olhar para longe, para a escuridão além do mar.
Abraço minhas pernas.

— Essa era a música preferida da minha mãe.

Sinto a atenção de Kate em mim, mas não olho de volta. A única coisa que
eu consigo encarar agora é o horizonte negro. Ela coloca a caneca no chão,
com cuidado.

— E a sua também?

Assinto devagar.

— O que ela me deixou de herança, foram meu violão e a paixão pelo rock.
Desde então, é a música que me mantém de pé. — Queria que isso a
tivesse mantido de pé também.

— Como ela era?


Rio sem humor.

307
— Essa é a questão, não é? — posso sentir a confusão de Kate. Viro a
cabeça em sua direção. — Não tenho nenhuma lembrança da minha mãe.

Dizer isso em voz alta é o equivalente a levar um choque. O rosto de Kate


demonstra isso.

— Você… não se lembra?

— Não. — olho para frente. — Não tenho nada para me lembrar. Sua voz,
seu rosto, seu cheiro… estão todos perdidos na minha mente. Eu só… Só
consigo me lembrar de como me sentia com ela e de algumas coisas que
me ensinava quando estávamos juntos.

Sinto Kate hesitar ao meu lado.

— O que… — um pigarreio. — O que aconteceu com ela?

Será que Kate estava preparada para saber? Talvez, essa fosse a
oportunidade de mais alguém me culpar. Talvez ela fosse embora e nunca
mais olharia para mim novamente.

Eu não sabia se estava pronto para perder tudo novamente.

34

Ele parece pensar, como se estivesse se conectando com alguma parte


dentro de si, uma parte escondida. Seu olhar distante diz que ele não
gostaria de se aproximar dela.
308
Talvez eu devesse ter ficado calada. Talvez eu não devesse ter quebrado o
clima calmo e harmonioso em que estávamos, do mesmo jeito que as ondas
estão se quebrando a distância. Me arrependo de ter feito aquela pergunta e
aberto qualquer que seja a ferida que Ben ainda tem.

— O nome dela era Mia. — revela e meu coração para. — Eu lembro… —


ele respira. — Eu lembro que minha mãe gostava de brincar de se esconder
comigo… Nós… Nós fazíamos isso sempre. Meu pai trabalhava muito e
mal ficava conosco. Então, éramos só eu e ela, na maior parte do tempo.

Um sorriso triste nasce naqueles lindos lábios. O vento passa por nós como
se também quisesse varrer aquele sentimento para longe dele.

— Eu tenho medo de esquecê-la por completo, Kate-Kate. — sussurra.

Oh, Ben!

Me quebra ver a dor que vejo em seus olhos e, mesmo com os dedos
trêmulos, pouso minha mão em seu ombro, esperando que eu possa de
alguma forma, mostrar que não quero que ele esconda nada, mas que me
mostre seus demônios e medos.

— Numa noite em que papai se atrasou para o jantar, mamãe e eu fomos


brincar de se esconder. Já fazia duas semanas que ele não aparecia para
jantar e eu percebi o que isso fazia com ela. Meu pai a amava, mas o
trabalho vinha em primeiro lugar, sempre.

"Naquela noite, antes da brincadeira, ela disse que me amava e me pediu


perdão várias vezes. Também disse para eu cuidar com carinho do seu
violão. Fiquei confuso com suas lágrimas e não lembro o que ela disse para
me acalmar. Eu só queria brincar. Estava tão feliz que não vi o quanto
mamãe estava infeliz. Eu fui um estúpido. — Ben solta um suspiro trêmulo
e brinca com a xícara em sua mão.
309
Na minha mente, discordei dele, mas deixei-o continuar. Ele precisava
continuar.

— Então, ela me mandou me esconder. Lembro de ter ficado muito tempo


escondido até eu ir procurá-la.

As mãos de Ben começam a tremer e meu coração martela no peito. O


barulho das ondas parece ficar mais alto, como se o mar estivesse se
solidarizando com a dor daquelas palavras.

— Eu a encontrei… no banheiro de seu quarto. Era tanto sangue. De início,


eu não me mexi. Apenas fiquei olhando para a cena da minha mãe morta
no chão do banheiro.

A voz dele embarga. Meus olhos começam a arder e aperto minha mão em
seu ombro. Não, não, não, não, não.

— Ela se matou com uma lâmina que perfurou os pulsos e o pescoço. A


lâmina… que meu pai procurava há tempos. — Lágrimas silenciosas rolam
pelo rosto de Ben.

— Eu a chamei. Pensei que era mais uma brincadeira nossa, que eu devia
ressuscitar-lá, mesmo vendo todo o sangue, mas ela… Ela não acordou.
Minha mãe estava morta na minha frente e não pude fazer nada! — Ele
fecha suas mãos em punho enquanto mais lágrimas caem.

Horror. Eu não posso acreditar que Ben tenha passado por esse horror, que
tenha acreditado que a morte da mãe foi sua culpa.

— Quando a ficha caiu, não me mexi. — diz ele sem emoção na voz. —
Não gritei. Apenas fiquei lá, em choque, tentando entender porquê ela
tinha feito aquilo. Eu me odiei naquele instante. Me odiei e odiei a meu pai

310
por não termos percebido que ela estava assim. Nós… — ele soluça.—
Nós devíamos saber! — fala exasperado.

Tento controlar as minhas próprias emoções. Tento ser forte para ele, mas a
dor de Ben é tão profunda, tão intensa que atravessa as minhas barreiras,
me fazendo sentir seu sofrimento, sua perda, sua raiva. Suas lágrimas
ecoam em mim.

Ben funga e mexe nas mãos.

— Eu sempre peço perdão a ela por ter deixado que isso acontecesse. A
culpa também foi minha, sabe?

Balanço a cabeça pra discordar, mas ele não olhou pra mim uma só vez
desde que começou. Seus olhos focam o chão da escada de madeira.

— Eu nem pude dizer adeus. — sussurra, fazendo meu coração quebrar


mais uma vez. — Não pude dizer que a amava também. Isso me
aterrorizou quando criança e, às vezes, ainda aterroriza.

"Meu pai ainda me culpa pela morte dela. Diz que eu merecia ir para o
inferno pelo que fiz. Sei que ele está certo, mas queria que mentisse para
mim como mamãe mentiu. Que me dissesse que não sou o culpado e que
ainda me ama. — Uma risada de escárnio sai de sua boca. — Mas a
verdade é que ele virou um alcoólico, que quase nos matou de fome porque
desistiu de tudo depois que ela se foi.

Demais. Ben já sofreu demais.

— Estou cansado de sempre ser o vilão da história. — Ele olha para mim.
Ben finalmente olha para mim. Dor pura mancha seus olhos. — Você
também me culpa, Kate-Kate? Você também acha que eu mereço ir para o
inferno?

311
Não consigo mais. Puxo seu corpo para um abraço, e ele me aperta de
volta, como se estivesse desesperado, esperando que eu o culpasse
também. Ele não devia nem considerar isso.

— Você jamais mereceu essa sentença. — Digo firme. — Você não é o


culpado, Ben. — Aperto os lábios para me controlar. Torço para que ele
sinta a verdade em minhas palavras.

Ben chora com mais intensidade. Seguro firme suas costas enquanto elas
tremem violentamente contra as minhas mãos. Ele aperta o tecido na minha
roupa enquanto desaba, garantindo que isso é real, que estou com ele.

Ninguém esteve lá para dizer que não foi sua culpa e não entendo o porquê.
Ben, mais do que ninguém, merece ser feliz.

Seus soluços sofridos são marcas de anos carregando esse fardo. Eu queria
que isso nunca tivesse acontecido com Ben. Ele não merecia. Nunca
mereceu.

— Obrigado. — diz com a voz rouca. — Por mentir como ele não fez.

— Ben. — Afasto-me dele para olhar em seus olhos. — Eu fui sincera. O


que aconteceu nunca foi sua culpa.

Ben olha para o lado, negando minha afirmação, mas não vou deixar que
ele se martirize ainda mais. Coloco minha mão em sua bochecha e,
delicadamente, o faço olhar para mim.

— Ei. — Ele direciona seu olhar para o meu. — Você não tem culpa das
atitudes dos seus pais. Sua mãe te amava, e esse amor continua, ele vive
através de você. — Posiciono minha outra mão em seu peito,
especificamente em cima de seu coração. — Sua mãe está aqui. E ela
nunca culparia você. Eu duvido que ela não tenha sentido uma paz ao seu
redor como sinto quando você
312
Aqueles olhos, aqueles mesmo olhos que me fazem sentir arrepiada e viva,
agora me encaram, como se pudessem ver cada centímetro da minha alma,
como se tivessem me conhecido a vida inteira ou muito mais do que isso.

Trêmulo, Ben coloca sua mão sobre a minha, que está em seu rosto. Ele me
olha durante longos e dolorosos segundos.

— Onde você estava durante todo esse tempo? — Sussurra com a voz
despedaçada.

— Esperando o momento certo para encontrar você. — faço um carinho


em seu rosto.

— Sabe, eu queria ser feliz. — Seu polegar limpa as minhas lágrimas,


quando eu que devia fazer isso por ele. — Costumo dizer que se você
cantar sua desgraça, ela se torna menos desgraça. Mas, no fundo, eu sei
que… — ponho meu indicador entre os lábios dele.

Encaro seus olhos. Os olhos azuis que eram tão lindos e vibrantes, agora
estavam cheios de dor. Nenhuma cor, nenhum brilho se passava ali. Eu me
pergunto se conseguiria ajudá-lo a curar essa ferida.

— Cante. — sussurro. — Cante para mim, Ben. Mostre-me suas desgraças


e seus demônios. — Sem pensar em mais nada, puxo sua nuca até que sua
boca cubra a minha.

É nesse momento, nesse exato momento que tenho certeza de que nunca
mais serei a mesma.

Beijo-o com urgência. Errático e desesperado. Nossos lábios dançam sem


ritmo e sincronia, desejando algo que não conseguimos encontrar.

313
Ben alcança minha nuca com uma mão e a outra encontra as minhas costas,
me puxando para perto. Lágrimas, dor e necessidade. Esse é o gosto do
beijo. Mas ainda assim, sinto que devia ser desse jeito.

Tiro calmamente minha mão de sua bochecha e faço algo que queria há
muito tempo: coloco meus dedos em seus cabelos, que são tão macios
quanto eu achava que seriam. Seu cheiro, seu gosto me invadem, me
fazendo sentir tudo intensamente, enquanto unimos nossas almas.

Sua dor vira a minha dor, suas lágrimas se misturam as minhas, e sua luta
para achar a cura, se torna a minha. Encontrei uma necessidade gritante de
fazer com que a dor dele diminua.

Enquanto meus lábios se chocam contra os seus, quero que ele entenda
isso. Quero que saiba que ele não é culpado pela morte da mãe. Quero
que… Que ele saiba que sou completamente dele. E eu não permitiria que
Ben sofresse assim novamente.

Terminamos o beijo, sem fôlego, mas não nos afastamos. Ben encosta sua
testa na minha, de olhos fechados. Nossas respirações ofegantes ocupam os
centímetros que nos separam. Com a voz trêmula, ele fala algo que jamais
esquecerei, nem em 500 anos.

— Talvez… Talvez eu não mereça você, Kate, mas não estou disposto a
abrir mão da coisa mais linda que já entrou na minha vida. Vou lutar para
merecê-la, para tê-la ao meu lado. Não quero… não consigo ficar longe de
você. — Seu hálito encontra a pele sensível acima do meu nariz. — Não
tem ideia do que significa ter você aqui, nos meus braços, depois de tudo o
que compartilhei. Nunca tive tanta certeza como tenho de você agora.
Quero você para mim, Kate. Por favor — sua voz abaixa, provocando-me
arrepios. — seja minha.

314
— Estou com você, amor. Eu já sou sua. — digo numa carícia suave, me
afastando para olhar em seus olhos. Eu já era dele antes mesmo de
conhecê-lo. — Não sofra sozinho.

Ele abaixa a cabeça, emocionado e aliviado.

— Eu e você, Kate-Kate.

Devagar, Ben se aproxima e cola os lábios nos meus, me fazendo perder os


sentidos num beijo lento e delicado. Isso é certo. As batidas do meu
coração cantam que nunca haverá outro em minha vida como esse homem.

Enquanto ele me faz viajar nos seus lábios, que se abrem de boa vontade
para os meus, o mar parece celebrar este momento.

E assim, selamos a nossa parceria.

35

Não preguei o olho a noite toda. Planejava estar totalmente descansada


para aproveitar ao máximo o meu último dia em Carolina Beach, mas o
que se passou entre mim e Ben ontem à noite foi o suficiente para me tirar
o sono.

Aquele beijo… O gosto dos lábios dele é melhor do que eu imaginava.


Parecia um sonho beijá-lo, passar a mão pelos cabelos dele e sentir suas

315
mãos em mim. Mas o que mais me deixou inquieta foi saber das coisas
horríveis pelas quais Ben teve que passar.

Termino de me arrumar e dou uma olhada no mar, através da parede de


vidro do quarto. Como será que está o coração dele agora? Ben sofreu de
culpa por anos, e me pergunto como ele está depois que trouxe tudo aquilo
à tona, se está mais tranquilo ou perturbado.

Ainda não posso acreditar que o cara mais incrível que conheço, sofreu
tanto na infância e carrega esse trauma como seu fardo. Meu coração se
parte em mil pedaços por ele. Aquele homem generoso não merecia sentir
tanta dor.

De qualquer forma, irei me certificar de que Ben jamais sofra sozinho


novamente.

"Talvez… Talvez eu não mereça você, Kate, mas não estou disposto a abrir
mão da coisa mais linda que já entrou na minha vida. Vou lutar para
merecê-la, para tê-la ao meu lado."

Se ele ao menos soubesse que eu é quem teria que lutar contra todo o
mundo para merecer um terço daquele coração quebrado.

Respiro fundo e saio do quarto. Do alto das escadas de mármore, escuto a


risada dos dois homens e sinto o cheiro do meu café da manhã favorito:
panqueca, ovos e bacon. Desço rapidamente os degraus, guiada pela minha
barriga.

— Eu me sinto muito sortuda por ter vocês dois cozinhando para mim. —
digo como bom dia.

Gemo quando vejo as delícias da mesa. Tudo tão bonito e colorido que
quase me dá pena de comer. Quase.

316
— É um prazer servi-la, princesa. — Ben, com uma camisa regata preta e
um pano sobre o ombro, pisca para mim.

A imagem dele segurando a frigideira, com minha panqueca favorita, fez


mais do que meu estômago roncar. Eu provavelmente estou babando e não
é só pela comida.

— Espero que goste do cardápio de hoje, Kate. — Richard diz, confeitando


o que parece ser a massa de um pão. — Estamos fazendo algo especial para
o nosso último dia aqui.

De avental azul, Richard parece realmente um chef.

— Por falar nisso, que horas teremos que voltar para Fayetteville? — Passo
pela grande mesa de vidro, cheia do café da manhã, e ocupo um dos bancos
do balcão, em frente aos dois chefs.

Ao notar minha presença, Ben ergue o olhar do fogão e sorri lindamente


para mim. Ele parece relaxado, o que deixa meu coração mais leve.

— Infelizmente, logo após o almoço, querida. — Richard passa por mim


com o pão nas mãos e me dá um olhar de desculpas. — Recebi um
telefonema de Vítor, dizendo que importantes críticos fizeram uma reserva
para hoje, então terei que chegar cedo para ajudar a equipe com os detalhes
e receber os clientes especiais. — Ele termina de arrumar os pratos na
mesa. — E, Ben, você vai comigo. Será o seu primeiro dia no Buck's.

— Maravilha, chefe! — Ben bate uma continência de dois dedos e desliga o


fogo. Ele coloca a panqueca num prato, junto a outras, para levar pôr na
mesa.

— Desculpe, crianças. Não queria ter que acabar tão cedo com o passeio.
— Richard aparenta estar decepcionado consigo mesmo.

317
— Sem problemas.

— Nós entendemos. — Tranquilizo-o e sigo Ben até a minha felicidade: a


mesa do café da manhã. — Onde está mamãe?

— Foi atender um telefonema e já volta. — Richard responde.

Aceno.

— Bem, sentem-se. Comeremos quando Judie voltar. — Ele aponta para a


mesa.

Ben e eu nos sentamos lado a lado. Imediatamente sinto o calor de sua


proximidade, me deixando relaxada.

— Ora, vejo que todos já estão prontos. — Mamãe chega com radiosidade
no seu macacão floral.

— Estávamos te esperando, querida. — Richard segura a cadeira em frente


à minha até que minha mãe sente-se nela.

— Obrigada. — Ela sorri quando o namorado beija sua bochecha.

Ben e eu nos entreolhamos, com sorrisos discretos.

— Agora podemos nos servir. — diz Richard ao sentar-se ao lado da minha


mãe.

Começamos a encher nossos pratos. Ao provar cada comida disposta, senti


que ia ao paraíso e voltava.

— Esse pão está divino, Richard. — elogio de boca cheia.

318
Ele dá risada do meu comentário.

— É pane dolce al cioccolato. — diz com um sotaque italiano perfeito.

— Delicioso. — Murmuro e ponho mais uma fatia na boca.

— Você parece uma criança, amor. — Ben ri.

— Amor? — Richard e mamãe param de comer e erguem as sobrancelhas,


alternando os olhares entre nós.

De repente, o pão desce seco na garganta e bebo meu suco.

— Sim. — Ben pigarreia, endireitando as costas. — Íamos contar


oficialmente depois do café da manhã, mas acabou que este se tornou o
momento.

— E quando decidiram que estão namorando a sério? — Mamãe pergunta


desconfiada.

— Ontem à noite. — Ben responde sem hesitação.

— O que exatamente aconteceu ontem à noite? — Ela semicerra os olhos.

Richard tosse um pouco. Oh, Deus!

— Querida…

— Nada com o que precise se preocupar, eu lhe asseguro. — Ele diz sem
vacilar. — Kate apenas me fez perceber que não há nenhuma outra como
ela e que eu seria um idiota se a deixasse ir.

Meu coração para. Bate. Para de novo.

319
Olho para a minha mãe e ela parece satisfeita com o que ouviu. Não mais
que eu, com certeza.

Aperto a mão de Ben por debaixo da mesa para mostrá-lo que eu peguei
suas palavras.

— Kate? — Mamãe chama.

— Sim?

— Nada a declarar?

— Eu gosto dele, mãe. — Seguro a mão dele com força. — Ben me


respeita e também gosta de mim, então não vejo nenhum problema em
ficarmos juntos, quando é isso o que nós dois queremos.

Minha mãe sorri.

— Fico feliz que vocês tenham decidido isso juntos. Gosto muito de você,
Ben, e é bom tê-lo como genro agora.

Todos rimos.

— Obrigado, Judie. Prometo fazê-la feliz. — Ele olha para mim e meu
coração se enche de amor.

— Não tenho dúvidas. — diz ela. — Você é bem-vindo quando quiser ir lá


em casa.

— Obrigado. — repete.

320
— Bom, este é um ótimo momento para comemorar. — Richard se levanta.
— Vou pegar um rosé Miraval 2016. Vamos brindar a ocasião! — Ele vai
até a cozinha e volta com uma garrafa elegante de vinho e 4 taças.

— Você e seus vinhos. — Mamãe ri.

— Sou um grande apreciador dos vinhais, querida. O sangue italiano corre


em minhas veias, não posso evitar.

Me assusto quando a rolha sai da garrafa e Ben acha graça. Ignoro sua
risada trazendo borboletas ao meu estômago e estendo minha taça para
Richard.

— Eu não bebo, obrigado. — Ben recusa gentilmente.

— Nem ocasiões especiais? — Richard levanta as sobrancelhas.

Ben balança a cabeça.

— Ficarei com o suco. — Ele levanta o copo com suco de laranja.

Mamãe olha para mim como se dissesse "Bom trabalho, filha!" enquanto
Richard enche sua taça

— Venham! Aqui. — Ele chama estendendo sua taça.

Nos levantamos e estendemos as nossas também.

— Desejo que sejam muito felizes e que a união de vocês dois signifique o
início de uma fase especial. — Richard sorri. — Espero que possam
conhecer o amor um no outro e vivê-lo dia após dia, sem nunca se
cansarem. — Ele olha para mamãe por um momento. — Um brinde. À
vocês dois.

321
— À todos nós. — diz Ben.

Então juntamos nossas taças. E o tintilar do vidro sela o brinde. À nós.

— Eu preciso te contar uma coisa.

— Mal começamos a namorar e você já é cheia de segredos, Kate-Kate?


— ele se apoia nos cotovelos para me olhar.

— Não é tão ruim como parece. — Tiro os óculos de sol e me viro para ele,
cruzando as pernas.

Estamos em espreguiçadeiras, aproveitando nossas últimas horas no sol de


Carolina Beach. A varanda de Richard é grande e sem coberta, o que torna
mais fácil tomar banho de sol sem precisar sair de casa.

— Ok. Estou ouvindo. — Ben também se senta e vira-se para mim.

Quase peço para que ele ponha uma camisa para que eu possa me
concentrar no assunto e não em sua pele bronzeada, mas percebo que isso
seria idiotice.

— Tem algo que eu ainda não comentei com você. É sobre o meu irmão.
— brinco com meus dedos.

— Seu irmão… Mike, não é? Você me falou que ele viajava muito e que
quase nunca o vê.

322
— Sim. — concordo com a cabeça. — A questão é que Mike está de volta
e será seu colega de trabalho. — jogo tudo de uma vez.

Ben fica em silêncio por alguns segundos.

— Wow. — assobia. — Você pode me explicar como isso aconteceu?

Eu suspiro.

— Ele chegou no dia em que íamos sair pela primeira vez, e o Sr. Finlay
acabou sendo internado. — olho para o mar. — Sabe, ele é um cara
teimoso e ciumento. Gosta de agir como o irmão mais velho, mesmo sendo
meu gêmeo. Eu não sabia como falar de um para o outro.

"Então houve um dia em que vocês estavam desempregados e vi uma


oportunidade de mudar isso. Richard falou que queria contratar mais gente
para a equipe, aí falei de vocês para ele. Desculpe não ter contado antes. —
Encaro o rosto de Ben.

Ele parece calmo, pensativo.

— Então seu irmão e eu iremos trabalhar juntos? — confirmo com a


cabeça. — Ele já sabe sobre mim?

— Contei antes de virmos para cá.

— E porque você parece tão triste agora?

Me surpreendo com a percepção de Ben. Estava me esforçando para que


isso não fosse visível.

323
— Porque ele agiu como eu esperava que agisse. — olho para o chão. —
Mas não se preocupe. Alertei Mike de que não faça nada que prejudique
você.

— Não é com isso que estou preocupado. — Ben se aproxima e se agacha


à minha frente. Uma de suas mãos levanta a minha cabeça pelo queixo. —
Você sabe que eu acho sexy quando me defende assim, mas estou
preocupado com você. — Seus olhos estudam os meus. — Por que não me
contou, amor?

— Eu… não sei. Acho que fiquei com medo de que vocês não se dessem
bem, mas vejo que isso soa mais estúpido em voz alta.

Ben coloca meu cabelo atrás da orelha.

— Não precisa ter medo comigo. Somos um time agora. Eu e você,


lembra?

— Eu e você.

— Bem, — ele continua mexendo no meu cabelo. — Farei o possível para


que seu irmão e eu possamos ficar bem. Da minha parte, não haverá
problemas. Mas — seu olhar encontra o meu. — quero que sejamos
sinceros um com o outro agora. Sem segredos ou mentiras. A menos que
seja para dizer que ganhei na loteria, ou que Mick Jagger está esperando
por mim em sua limousine, quero que você me conte como vão as coisas;
sua história; seus problemas. Não deixei de ser seu amigo, Kate-Kate. E
não quero deixar de ser.

Levo minha mão à sua bochecha e estudo seu rosto.

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— Você vai ser sempre meu amigo. — abaixo a cabeça até encostar minha
testa na dele. — Desculpe por ter escondido isso de você. Às vezes tenho
dificuldades em falar o que estou sentindo, mas tentarei por nós dois.

Ben respira fundo.

— Eu quero você, Kate-Kate. Como problemas é tudo. Estarei do seu lado,


mesmo quando as palavras faltarem. Só não me deixe de fora. Não consigo
ficar longe de você.

— Não vou. — sussurro.

— Estamos resolvidos?

— Sim.

— Ótimo. — posso senti-lo sorrir.

Passo meus braços por seus ombros e agarro seu pescoço. Ben não hesita
em abraçar minhas costas.

— Você é um sonho, sabia? — Murmuro contra sua pele quente pelo sol.

— Sabia, mas ouvir você dizer torna tudo melhor ainda.

Dou risada. Eu devia ter previsto isso.

— O que acha de ler mais um pouco de Entre o Agora e o Nunca antes de


partimos?

— Como você sempre sabe o que eu quero? — Ele beija meu ombro. —
Fique aqui que vou pegá-lo.

325
— Espera. — Seguro seu braço.

— O que foi? — sua testa se franze.

— Só quero saber se você está bem. Depois de ontem.

Ben suaviza o rosto e sorri. Seus lábios encontram a minha testa.

— Estou bem. É… difícil falar dela e fiquei com medo de que você não
aceitaria um cara cheio de problemas como eu, mas aqui está você.

— Aqui estou eu. — sorrio. — E você não é um cara problemático, Ben.


Sei que vai levar tempo, mas um dia você verá que é mais do que pensa
ser.

Ele me olha por alguns segundos antes de me puxar para um beijo lento e
apaixonado. É inebriante a sensação dos seus lábios com os meus. O
mundo parece certo, assim como entregar meu coração a este homem.

Ele é como uma música boa, difícil de achar e que você não quer deixar de
ouvir. Quando ela não está tocando, sua cabeça não para de cantá-la a todo
instante, praticamente implorando para que você aperte o play no seu
celular e a deixe invadir seus ouvidos.

O sol parece mais quente, o mar mais agitado e os braços dele mais fortes.
Me sinto segura, em casa. O beijo fica cada vez mais lento até que nossas
bocas se separam ofegantes.

— Você é a minha música preferida, Ben. — confesso ainda ofegante.

— E você é a minha, princesa. — sussurra de volta.

Não precisamos de mais nada.

326
327
Parte 2
"O passado é um lugar excelente e não quero apagá-lo nem me
arrepender, mas também não quero ser seu prisioneiro." — Mick Jagger.

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