Salvador Dalí, Pintor & Escritor - Rubem Daniel Méndez Castiglioni
Salvador Dalí, Pintor & Escritor - Rubem Daniel Méndez Castiglioni
Salvador Dalí, Pintor & Escritor - Rubem Daniel Méndez Castiglioni
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Quarta-feira, 27 de março de 2013
23:59:59
Salvador Dalí: pintor e escritor 123
RESUMO: Neste trabalho se pretende abordar alguns aspectos da obra do pintor e escritor catalão
Salvador Dalí. Serão comentados seus escritos juvenis, incluindo seu romance prematuro, suas
apreciações sobre arte e política e seu afã por buscar transformações sociais. Far-se-á referência a sua
atração pelo surrealismo e aos primeiros poemas que publicou (nos quais já aparecem algumas das
técnicas surrealistas), e os que viriam a ser os elementos dalinianos característicos. Também será
abordada sua conversão ao movimento surrealista ocorrida em 1928.
Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutor em Letras pela PUCRS, bolsista de
produtividade CNPq. E-mail: rdcastiglioni@pesquisador.cnpq
1
O bem documentado, completo e anedótico livro do hispanista Ian Gibson (2004) tem vários detalhes
sobre a trajetória de Salvador Dalí, constituindo para os pesquisadores consulta obrigatória e atualizada.
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1. DALÍ ROMANCISTA
Dalí escreveu a primeira composição literária de sua vida aos 8 anos. Era um
breve conto que foi considerado por seu surpreso e orgulhoso pai como superior ao
Príncipe Feliz, de Oscar Wilde. Dalí, em Diario de un gênio, reproduz um fragmento:
Uma noite no fim do mês de junho, um menino passeia com sua mãe.
Chovem estrelas fugazes. O menino recolhe uma e a leva na palma de sua
mão. Chega na sua casa, e a deposita sobre a mesa e a prende dentro de um
copo virado. Pela manhã, ao acordar, deixa escapar um grito de horror: uma
lesma, durante a noite, roeu sua estrela! (Dalí, 1996, p. 38).
“De seus pulmões cavernosos nasceu uma tosse seca”, diz o narrador poucas
linhas adiante. Esse protagonista, solitário e boêmio, era "un d´aquests poetes romàntics
que viuen al cor de París, d´eixos que s´enamoren als 12 anys i que en una nit de lluna
es tiren al Sena cansats de no ser compresos”2. Pelas tardes o personagem atravessava
campos, repousava sob um pinheiro e tinha o coração feliz. A chegada de Isabel na sua
2
Um desses poetas românticos que vivem no coração de Paris, desses que se apaixonam aos 12 anos e
que numa noite de lua se lançam ao Sena cansados de não serem compreendidos.
Salvador Dalí: pintor e escritor 125
O trecho serve de amostra do Dalí escritor em sua primeira etapa e fica clara sua
simpatia com a recém criada União Soviética (FERNÁNDEZ, 2005, p. 68) e com a
Revolução Comunista. A comparação dos poemas com o diário que escrevia na época
permite comprovar características autobiográficas, principalmente no que diz respeito à
sensibilidade pela paisagem, à pintura, à angustia pela morte (SANCHEZ, 2004, p. 46)
e às dificuldades com as mulheres e com o amor.
Depois que terminou o ensino médio, Dalí viajou a Madri e ingressou na Escola
Especial de Pintura, Escultura e Gravura da Real Academia de Belas Artes de São
Fernando. Salvador Dalí já sabia que seu futuro como pintor seria um sucesso porque,
com dezoito anos, havia vendido nada menos que oitenta quadros.
Desde esse momento, “Dalí se esforçará mais do que nunca para ser... Dalí” (GIBSON,
2004, p. 126), com tudo o que isso implicaria em matéria de inovação e revolução no
pensamento e nas artes.
A crítica apoiava as atitudes de Dalí e, de certa maneira, o incentivava. Ainda
nessa época, Dalí vivia o ambiente carregado das ideias de Sigmund Freud e do Conde de
Lautréamont. Era o momento da conferência sobre o surrealismo de Louis Aragon na
Espanha, Federico García Lorca escrevia sua Oda a Salvador Dalí, os elogios da crítica
de Madri a seus quadros aumentavam e imediatamente fizeram eco na Catalunha graças
ao êxito na exposição das importantes Galerías Dalmau. Era um período de glória pessoal.
Justamente foi Josep Dalmau quem lhe entregou duas cartas para se apresentar
em Paris: uma era para Max Jacob, a outra para André Breton. Depois desses encontros
programados, na volta a Madri em junho de 1926, Dalí foi expulso de São Fernando por
comparecer bêbado aos exames. Assim, passou a ser o verdadeiro e revolucionário
pintor de Figueres.
Seus quadros encantaram ao jovem crítico de arte barcelonês Sebastià Gash, que
era um colaborador assíduo da importante revista L´Amic de les Arts. Gasch (que entre
outras coisas tem o mérito de ter levado a sério o trabalho de Federico García Lorca e de
Joan Miró quando ainda não se falava deles) manteve durante muito tempo uma grande
amizade com Dalí, além de uma posição de defesa de suas obras artísticas. Há que
considerar o que diz a respeito o pesquisador Minguet (2003):
Gasch defendia tanto Miró como Dalí sem temer as consequências. Foi ele quem
publicou uma resenha da primeira exposição parisiense de Dalí, onde colocava em
destaque o valor emotivo de sua obra pictórica e cinematográfica. Dalí e Gasch
publicaram o famoso Manifesto Groc (Manifesto Amarelo), em Barcelona, em março de
1928, e nele suprimiram toda cortesia porque consideravam que as discussões com os
representantes da cultura catalã eram inúteis (DALÍ, 1994, p. 42).
POEMA
A Lydia de Cadaqués
3
Neste poema e nos seguintes, segue-se a formatação publicada.
Salvador Dalí: pintor e escritor 129
Salvador Dalí pensava que Pablo Picasso e Joan Miró (que também escreviam
poesia) eram, junto com ele, os únicos inovadores (SÁNCHEZ VIDAL, 2004). Pintores
e poetas seriam a verdadeira vanguarda. Convencido disso, em agosto de 1928, publicou
na revista L’Amic de les Arts o “Poema das coisinhas”, que foi o estopim de uma
“guerra literária”, com ataques a seu estilo literário, a sua família e a sua moral.
Entre os surrealistas os elogios a Dalí não foram muitos e muito menos unânimes.
Para José Pierre (1994, p. 58-60), reconhecido pesquisador do surrealismo e especialista
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em Salvador Dalí, o primeiro mérito do pintor espanhol, a quem considera (como muitos
surrealistas e pesquisadores do surrealismo) apenas um “narcisista e exibicionista”, que se
incorporou na segunda leva do movimento “cinco anos depois de Joan Miró”, é
simplesmente o de ter aparecido quando o grupo se concentrava na luta contra a religião,
o capitalismo e o colonialismo, esquecendo-se das “experiências da vida interior”.
Para Pierre, a conversão de Dalí ao surrealismo se deu quando este pôde estudar
tudo o que se fazia em Paris no âmbito artístico, sendo que sua produção surrealista se
localizaria entre a publicação, em 1930, de A mulher visível e Metamorfose de Narciso,
de 1937. José Pierre é enfático ao afirmar que Dalí teria pretendido rivalizar com os
poetas surrealistas de língua francesa, e sua obra estaria escrita num francês fantasioso
que Louis Aragon, André Breton e Paul Éluard haviam se esforçado em fazer mais
ortodoxo, com o risco de perder seu sabor.
No grupo surrealista, Dalí inicialmente foi disciplinado e teve uma clara adesão
pela filosofia do movimento, incluindo o automatismo. No entanto, propôs paralelamente
a atividade produtiva de um pensamento voluntário, isto é, o pensamento paranoico-
crítico. Esse pensamento voluntário exploraria de forma sistemática o irracional. A razão
posta dialeticamente a serviço do irracional teria sido a grande contribuição teórica de
Dalí ao surrealismo, e essa união dialética entre o racional e o irracional passaria a ser a
fonte de sua atividade poética (SANTAMARÍA, 2005, p. 94-97).
Pierre (1994) comenta que André Breton, na época mencionada, fez referência a
Dalí como aquele que “encarnou o espírito surrealista”4, certamente buscando sua
própria glória, mas também a glória do surrealismo com colaborações como o método
paranoico-crítico, que não deveria nada a Lacan (como creem alguns teóricos), que seria
uma elaboração minuciosa e pessoal de Giorgio de Chirico, Max Ernst, Yves Tanguy e
de seu próprio personagem. O livro de Dalí El mito trágico del Angelus de Millet é uma
excelente demonstração desse “método”, e foi apresentado no Instituto das Espanhas em
janeiro de 1935 e publicado em Minotaure n° 1 com o título “Interpretação paranoico-
crítica da imagem obsessiva do ‘Angelus de Millet’”.
Ainda que este sistema paranoico-crítico se opusesse ao automatismo, Breton o
teria acolhido com indulgência. Porém, não aconteceu o mesmo com suas pinturas que
foram consideradas “lambidas”, ou “fotográficas”, nem com as imagens duplas. Não
obstante, as palavras de Dalí foram escutadas seriamente e foi publicada em Paris uma
grande quantidade de seus trabalhos:
4
Além de André Breton, um dos mais politizados do grupo surrealista, René Crevel, se sensibilizará com
a proposta de Dalí, como bem podemos ver sem seu livro Dalí o El antioscurantismo (2003).
Salvador Dalí: pintor e escritor 131
José Pierre (1990, p. 49-72) diz que não se deve situar toda a poesia de Dalí sob
o signo do sexual, da escatologia ou do prazer, mas é importante considerar sua afeição
profunda pelas ideias da primeira infância. O formato de seus poemas é geralmente
muito extenso, são redigidos de uma tirada e se desenvolvem como um breve conto de
fadas. Exemplo disso é o poema intitulado “O grande masturbador”. Poema de amor,
erotismo e escatologia, que tem um “orador” que quer convencer o leitor por seus
argumentos e por suas provocações, e como pano de fundo, o humor derivado da
repetição de imagens inusitadas. Vejamos um trecho:
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[…]
Caía a tarde
a toda velocidade sobre a paisagem.
No horizonte
a grande silhueta da fábrica de chocolate se perdia
na névoa do crepúsculo.
[…]
[…]
(DALÍ, 2004, p. 202-217, tradução livre)
Salvador Dalí: pintor e escritor 133
Como foi dito, o escatológico é uma obsessão de Dalí e, além disso, ele é o
único pintor que fez da masturbação um dos assuntos centrais de sua obra (GIBSON,
2004, p. 81). Mais exemplos podem ser encontrados em quadros que provocaram
escândalos na época, como El juego lúgubre (1929) e Mano (Remordimientos) (1930),
pinturas turbadoras e notoriamente associadas à temática.
Evidentemente, deve-se considerar a época na busca de Dalí por escandalizar a
sociedade e exorcizar seus fantasmas da juventude. Como é sabido, um quadro ou um
poema como estes hoje (pelo menos na Espanha) não teria o efeito desejado, uma vez
que o próprio governo incentiva a prática autoerótica para adolescentes, a partir dos
doze anos de idade, em oficinas financiadas por impostos municipais com a campanha
“o prazer está nas tuas mãos”, como bem comenta Vargas Llosa (2012). Os detratores
de tal procedimento (os políticos da oposição) lançaram a campanha “mãos limpas”
(LLOSA, 2012, p. 105). Como se vê, o humor e o surrealismo são eternos.
Voltando a Dalí e aos anos 30, alguns dos seus poemas estão relacionados com
seus quadros e foram classificados como livres, vulgarmente eróticos, cheios de
imagens e com um final sem lógica aparente. Outro exemplo de poema do pintor e
escritor com versão pictórica é “A metamorfose de Narciso”, escrito em 1937
aplicando-se o método paranoico-crítico. Dalí primeiramente informa como o quadro
deve ser apreciado:
A METAMORFOSE DE NARCISO
Poema paranoico
Salvador Dalí também explica como foram feitos o quadro e o poema usando-se
o método criado por ele:
[…]
Narciso,
compreendes?
A simetria, divina hipnose da geometria do espírito,
preenche tua cabeça com
esse sonho incurável, vegetal, atávico e lento
que resseca o cérebro
na substância apergaminhada
do núcleo da tua próxima metamorfose.
***
REFERÊNCIAS
Sobre o surrealismo
ALQUIÉ, Ferdinand. Filosofía del surrealismo. Traduzido por Benito Gómez.
Barcelona: Barral, 1972.
BENJAMIN, Walter. La última instantánea de la inteligencia europea. In:
Iluminaciones, Madri: Taurus, 1980.
BRETON, André. Conversaciones (1913-1952). Traduzido por Leticia Hulsz Piccone.
México: Fondo de Cultura Económica, 1987.
______. Manifiestos do Surrealismo. Tradução: Sergio Pachá. Rio de Janeiro: Nau,
2001.
______. Qu´est-ce que le surréalisme? Cognac: Le temp qu´il fait, 1986.
______. Arcane 17 enté d´Ajours. París: UGE, col. 10-18, 1965.
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Revistas
La Gaceta Literaria nº 1 al 123. Vaduz/Liechtenstein; Madri: Topos Verlag AG;
Turner, 1980.
Helix nº 1 a 10. Barcelona, Leteradura, 1977.
Art. Barcelona, Leteradura, 1977.
La Mà Trencada (1924-1925). Barcelona, Leteradura, 1977.
Troços (1917-18). Barcelona, Leteradura, 1977.
Un enemic del poble (1917-1919). Barcelona, Leteradura, 1977.
L´Amic de les Arts. Sietges, 1929.
Gaceta de Arte nº 1 a 36. (1932-1935).
Outras obras
LLOSA, Mario Vargas. La civilización del espectáculo. Buenos Aires: Santillana, 2012.