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Salvador Dalí, Pintor & Escritor - Rubem Daniel Méndez Castiglioni

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Salvador Dalí: pintor e escritor

Ruben Daniel Méndez Castiglioni

Submetido em 9 de outubro de 2012.


Aceito para publicação em 18 de janeiro de 2013.

Cadernos do IL, Porto Alegre, n.º 45, dezembro de 2012. p. 123-140.

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Quarta-feira, 27 de março de 2013
23:59:59
Salvador Dalí: pintor e escritor 123

SALVADOR DALÍ: PINTOR E ESCRITOR

Ruben Daniel Méndez Castiglioni

RESUMO: Neste trabalho se pretende abordar alguns aspectos da obra do pintor e escritor catalão
Salvador Dalí. Serão comentados seus escritos juvenis, incluindo seu romance prematuro, suas
apreciações sobre arte e política e seu afã por buscar transformações sociais. Far-se-á referência a sua
atração pelo surrealismo e aos primeiros poemas que publicou (nos quais já aparecem algumas das
técnicas surrealistas), e os que viriam a ser os elementos dalinianos característicos. Também será
abordada sua conversão ao movimento surrealista ocorrida em 1928.

PALAVRAS-CHAVE: Salvador Dalí; literatura; surrealismo.

Não será o medo à loucura o que nos obrigará


a pôr a meia haste a bandeira da imaginação.
André Breton

Com a publicação da Obra literaria completa, em 2004, pela Fundació Gala-


Salvador Dalí, vieram a público novos textos do autor catalão, ampliando sua já extensa
e variada obra literária conhecida e analisada até o momento. Conforme Agustín
Sanchez Vidal, na introdução do volume III “Poesia, Prosa, Teatro e Cinema”, a
organização cronológica das obras de Dalí em poema e prosa estaria marcada pela
semente literária plantada durante sua adolescência, a partir de 1919; o impacto de seu
traslado a Madri em 1922-1923; a experimentação rupturista entre 1927 e 1929 com
suas colaborações nas revistas L’Amics de les Arts e La Gaceta Literaria; o ciclo de
poemas surrealistas que iriam de 1930 a 1937, datas de seus dois autorretratos em verso
O grande masturbador e A metamorfose de Narciso; e perto do fim de sua vida, quando
volta a escrever em forma de verso, com homenagens à monarquia e a sua falecida
esposa. Deve-se acrescentar à lista de obras narrativas seus romances Tardes d’estiu e
Rostos Ocultos; seus roteiros para cinema (com destaque para o filme O cão andaluz) e
os projetos de cenografia, como Tristão louco (espetáculo paranoico), entre tantos
outros textos, alguns pseudoautobiográficos, ensaios, correspondências e entrevistas.
“O salvador da arte moderna”, como ele gostava de ser reconhecido, nasceu em
Figueres, Espanha, em 1904. Realizou seus primeiros estudos em uma humilde escola
municipal da região, aonde seu pai, Dalí Cusí, naquela época simpatizante do
anarquismo, preferiu levá-lo evitando os colégios católicos1. Posteriormente, ingressou
no Instituto de Figueres, sendo aluno do professor de desenho Juan Núñez Fernández,
que teria sido aquele que “teve fé no seu talento” (segundo diz em Vida Secreta - DALÍ,
1993, p. 140). Nessa época, o jovem Dalí, que já tinha o desejo de publicar seus textos,


Professor na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutor em Letras pela PUCRS, bolsista de
produtividade CNPq. E-mail: rdcastiglioni@pesquisador.cnpq
1
O bem documentado, completo e anedótico livro do hispanista Ian Gibson (2004) tem vários detalhes
sobre a trajetória de Salvador Dalí, constituindo para os pesquisadores consulta obrigatória e atualizada.
124 CADERNOS DO IL, n.º 45, dezembro de 2012 EISSN:2236-6385

em colaboração com quatro colegas do Instituto, lançou a revista Studium, redigida em


castelhano (e não em catalão que seria a primeira opção), com a pretensão de fazê-la
chegar a todos os estudantes do país. Essa revista com desenhos, comentários sobre
pintura e alguns poemas, era portadora da paixão pela arte, a chamada do desejo erótico
e o afã de "mudar o mundo". Dalí, que tinha 15 anos, participou como ilustrador, mas
também chegou a analisar obras de Velázquez e Michelangelo. O filósofo e poeta de
Palma de Mallorca Gabriel Alomar, também professor do Instituto de Figueres (famoso
por alcunhar o termo futurismo), via em Dalí "talento literário" (GIBSON, 2004, p. 68-
75), o que é possível comprovar com sua obra (entre outras) Crepúsculo e
Divagaciones. Cuando los ruidos se adormecen. Na realidade, como bem observa
Fernández (2005, p. 66), a vocação literária de Dalí correu parelha com a pictórica e,
provavelmente, sua afeição à literatura surgiu das conversas com seu tio Anselm
Doménech, dono de uma livraria em Barcelona.

1. DALÍ ROMANCISTA

Dalí escreveu a primeira composição literária de sua vida aos 8 anos. Era um
breve conto que foi considerado por seu surpreso e orgulhoso pai como superior ao
Príncipe Feliz, de Oscar Wilde. Dalí, em Diario de un gênio, reproduz um fragmento:

Uma noite no fim do mês de junho, um menino passeia com sua mãe.
Chovem estrelas fugazes. O menino recolhe uma e a leva na palma de sua
mão. Chega na sua casa, e a deposita sobre a mesa e a prende dentro de um
copo virado. Pela manhã, ao acordar, deixa escapar um grito de horror: uma
lesma, durante a noite, roeu sua estrela! (Dalí, 1996, p. 38).

Aos 15 anos, o jovem Dalí se aventurou com um romance adolescente e


autobiográfico intitulado Tardes d'estiu - 1921 - 1922. Nesse romance, que seria o
primeiro de muitos escritos publicados ou não, o personagem protagonista Lluís é o
Dalí adolescente de seus diários íntimos:

Desfrutava com o sofrimento da criação. Esforçava-se por expressar os


movimentos de seu coração, as coisas que a natureza lhe sussurrava, o que
lhe dizia a esplêndida cerejeira banhada pelo sol. Incansavelmente sedento de
arte, ébrio de beleza, olhava com seus olhos claros a sorridente natureza,
inundada de sol e de alegria, e caía em breves momentos de êxtase e voltava
a mover suas mãos ossudas e nervosas sobre a tela machucada seguindo os
impulsos de sua alma (DALÍ, 2004, p. 289, tradução livre).

“De seus pulmões cavernosos nasceu uma tosse seca”, diz o narrador poucas
linhas adiante. Esse protagonista, solitário e boêmio, era "un d´aquests poetes romàntics
que viuen al cor de París, d´eixos que s´enamoren als 12 anys i que en una nit de lluna
es tiren al Sena cansats de no ser compresos”2. Pelas tardes o personagem atravessava
campos, repousava sob um pinheiro e tinha o coração feliz. A chegada de Isabel na sua
2
Um desses poetas românticos que vivem no coração de Paris, desses que se apaixonam aos 12 anos e
que numa noite de lua se lançam ao Sena cansados de não serem compreendidos.
Salvador Dalí: pintor e escritor 125

vida, moça de “lábios vermelhos e ardentes”, “fecundamente bela, de olhos graves e


melancólicos e tranças douradas”, vai fazer surgir nele um estranho sentimento de
culpa. A cada passeio, a sensação de um grande pecado. Quer saber o que lhe impede de
ser feliz, e “De seus pulmões cavernosos surgiu a tosse característica”. E mais adiante se
pergunta: “Era um amor imprevisível? – gemeu pela boca rouca de choro. O amargor
das lágrimas lhe fechava a garganta e caiu na cama, abatido por acesso de tosse... E
chorou, chorou por um longo tempo” (DALÍ, 2004, p. 303-304, tradução livre).
O romance Tardes d'estiu também alude à preocupação social do jovem Dalí (ou
pelo menos do personagem chamado o Exaltado):

[…] - o capitalismo nos explora miseravelmente, dizia levantando os braços e


gritando com toda a força de seus pulmões -. A burguesia nos tem como
escravos, tiranizados como bestas, como seres inferiores. Porém todas estas
baixezas, humilhações e injustiças sociais, se acabarão logo. Em todas as
partes do mundo o proletariado, consciente de seus direitos, cansado de tantas
vergonhas e baixezas, se arma e se organiza sob a bandeira vermelha dos
Soviets, dispostos a todo o momento a conquistar pela força, pela violência, o
que de bom grado, o que por justiça lhes corresponde e não lhes querem dar.
(DALÍ, 2004, p. 299-300, tradução livre)

O trecho serve de amostra do Dalí escritor em sua primeira etapa e fica clara sua
simpatia com a recém criada União Soviética (FERNÁNDEZ, 2005, p. 68) e com a
Revolução Comunista. A comparação dos poemas com o diário que escrevia na época
permite comprovar características autobiográficas, principalmente no que diz respeito à
sensibilidade pela paisagem, à pintura, à angustia pela morte (SANCHEZ, 2004, p. 46)
e às dificuldades com as mulheres e com o amor.
Depois que terminou o ensino médio, Dalí viajou a Madri e ingressou na Escola
Especial de Pintura, Escultura e Gravura da Real Academia de Belas Artes de São
Fernando. Salvador Dalí já sabia que seu futuro como pintor seria um sucesso porque,
com dezoito anos, havia vendido nada menos que oitenta quadros.

2. DALÍ NA RESIDÊNCIA DE ESTUDANTES

Em 1922 Dalí passou a fazer parte do grupo de estudantes da prestigiosa


Residência de Estudantes de Madri, onde conheceu e se relacionou estreitamente com
Pepín Bello, Luís Buñuel e Federico García Lorca. O pintor e escritor era visto pelos
seus companheiros como um sujeito tímido e envergonhado. No entanto, quando eles
souberam que pesquisava o cubismo, passaram a admirá-lo. E, segundo Dalí, eles
pensavam: “Bom! Nosso amigo parece, sem dúvida alguma, um rato de bueiro, porém é
o personagem mais importante que vocês já viram” (DALÍ, 1981, p. 539-540).
Em 1923 se realizou na Residência a eleição de um novo catedrático para a
Escola São Fernando. Houve tumulto e Dalí e outros cinco estudantes foram suspensos
por um ano. Dalí foi descrito pelo diretor da escola São Fernando, Miguel Blay, como
“um bolchevique da arte” (GIBSON, 2004, p. 123). Em março de 1924, a influente
revista cultural de Madri España publicou um artigo assinado por Rivas Cherif cujo
título é “El caso Salvador Dalí”. O artigo afirma que o catalão provocou a ira dos
inimigos da renovação, e que possivelmente lhe fizeram um favor com a suspensão.
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Desde esse momento, “Dalí se esforçará mais do que nunca para ser... Dalí” (GIBSON,
2004, p. 126), com tudo o que isso implicaria em matéria de inovação e revolução no
pensamento e nas artes.
A crítica apoiava as atitudes de Dalí e, de certa maneira, o incentivava. Ainda
nessa época, Dalí vivia o ambiente carregado das ideias de Sigmund Freud e do Conde de
Lautréamont. Era o momento da conferência sobre o surrealismo de Louis Aragon na
Espanha, Federico García Lorca escrevia sua Oda a Salvador Dalí, os elogios da crítica
de Madri a seus quadros aumentavam e imediatamente fizeram eco na Catalunha graças
ao êxito na exposição das importantes Galerías Dalmau. Era um período de glória pessoal.
Justamente foi Josep Dalmau quem lhe entregou duas cartas para se apresentar
em Paris: uma era para Max Jacob, a outra para André Breton. Depois desses encontros
programados, na volta a Madri em junho de 1926, Dalí foi expulso de São Fernando por
comparecer bêbado aos exames. Assim, passou a ser o verdadeiro e revolucionário
pintor de Figueres.
Seus quadros encantaram ao jovem crítico de arte barcelonês Sebastià Gash, que
era um colaborador assíduo da importante revista L´Amic de les Arts. Gasch (que entre
outras coisas tem o mérito de ter levado a sério o trabalho de Federico García Lorca e de
Joan Miró quando ainda não se falava deles) manteve durante muito tempo uma grande
amizade com Dalí, além de uma posição de defesa de suas obras artísticas. Há que
considerar o que diz a respeito o pesquisador Minguet (2003):

Esta vindicação de Miró e de Dalí pode parecer, desde uma perspectiva


histórica, lógica e inclusive obrigatória. E, no entanto, situados nos sistemas
culturais do momento na Catalunha e na Espanha, converte-se num feito
extraordinário. Não exagero: houve muitos críticos de arte catalães e
espanhóis que, em seu momento, não se deram conta da importância e da
força criativa daqueles dois artistas, e, se se deram conta, não o refletiram
com a suficiente contundência em seus textos, o que vem a ser o mesmo.
Nem Carles Capdevila, nem Rafael Benet, nem Màrius Gifreda, nem Enric
Gual, nem evidentemente Joan Sacs (Feliu Elias), todos eles exercendo a
crítica de arte contemporaneamente a Gasch na Catalunha, não tiveram sua
lucidez, sua perspicácia ou, talvez faro como tabeliões da atualidade artística.
(MINGUET, 2003, p. 194)

Gasch defendia tanto Miró como Dalí sem temer as consequências. Foi ele quem
publicou uma resenha da primeira exposição parisiense de Dalí, onde colocava em
destaque o valor emotivo de sua obra pictórica e cinematográfica. Dalí e Gasch
publicaram o famoso Manifesto Groc (Manifesto Amarelo), em Barcelona, em março de
1928, e nele suprimiram toda cortesia porque consideravam que as discussões com os
representantes da cultura catalã eram inúteis (DALÍ, 1994, p. 42).

3. DALÍ POETA SURREALISTA

Breton havia publicado no Manifesto Surrealista, em 1924, que o surrealismo era:

Automatismo, s. m. psíquico em estado puro mediante o qual se propõe


exprimir, verbalmente, por escrito ou por qualquer outro meio, o
funcionamento do pensamento. Ditado do pensamento, suspenso qualquer
Salvador Dalí: pintor e escritor 127

controle exercido pela razão, alheio a qualquer preocupação estética ou moral


(BRETON, 2001, p. 40).

Breton explicou no Primeiro Manifesto de que maneira surgiu a escritura


automática:

Uma noite, portanto, antes de adormecer, eu ouvi, tão claramente articulada


que era impossível mudar-lhe uma só palavra, mas distante do som de
qualquer voz, uma frase estranha que chegava a mim sem qualquer vestígio
dos acontecimentos em que, de acordo com o testemunho de minha
consciência, eu andava envolvido, uma frase que me pareceu insistente, uma
frase - como direi? – que se chocava contra a vidraça. Registrei o fato
rapidamente e dispunha-me a pensar em outra coisa quando seu caráter
orgânico me chamou a atenção. Em verdade, era uma frase surpreendente;
infelizmente até hoje não consigo recordá-la, mas era qualquer coisa como
“Há um homem cortado em dois pela janela”, e não pode haver dúvida
quanto a isto, uma vez que a acompanhava uma débil representação visual de
um homem que andava mas que fora truncado a meia altura por uma janela
perpendicular ao eixo de seu corpo. [...] Como, naquela época, eu ainda
andava muito interessado em Freud e familiarizado com seus métodos de
exame, que tivera oportunidade de empregar em alguns pacientes durante a
guerra, decidi obter de mim mesmo o que se tenta obter deles, vale dizer, um
monólogo enunciado o mais depressa possível, sobre o qual o espírito crítico
de quem o faz se abstém de emitir qualquer juízo, que não se atrapalha com
nenhuma inibição e corresponde, tanto quanto possível, ao pensamento
falado (BRETON, 2001, p. 36-37).

Será assim que a nova forma de expressão passará a ser denominada


surrealismo:

Em homenagem a Guillaume Apollinaire, que acabara de morrer e que, em


diversas ocasiões parecia-nos ter obedecido a um impulso desta ordem, sem
contudo sacrificar-lhe recursos literários medíocres, Soupault e eu demos o
nome de SURREALISMO ao novo modo de expressão pura que tínhamos a
nossa disposição e que estávamos impacientes por pôr ao alcance de nossos
amigos (BRETON, 2001, p. 39).

O automatismo era o foco da criação poética surrealista e sua função consistia


em abrir as portas do inconsciente para permitir sua expressão direta sem a censura da
razão, como bem diz Aldo Pellegrini (1981). E acrescenta:

O que é realmente importante em um texto automático não é o documento em


si, nem a possibilidade de ser interpretado, mas sim o fato de constituir uma
paisagem total, com seu clima, os acidentes, as tormentas, as explosões dessa
região do espírito que nenhum mecanismo especulativo pode mostrar em toda
sua beleza e violência primitiva, em sua grandeza e esplendor original. A
forma como se dá o jato verbal, a torrente de imagens, por meio do
automatismo (mecanismo semelhante ao que os antigos chamavam
inspiração), parece o resultado de potências centrífugas que partem do
profundo do espírito onde estariam submetidas a intensa pressão.
(PELLEGRINI, 1981, p.25)
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Dalí se interessou profundamente pelo movimento surrealista e o autor do


Manifesto Amarelo tomou um caminho diferente. Essa atração de Dalí por Paris e pelo
movimento surrealista remonta a 1927-1928, como podemos verificar pelos artigos
publicados nas revistas catalãs L’Amic de les Arts e La Gaceta Literaria. Em janeiro de
1928, em La Gaceta Literária, publicava um dos seus primeiros poemas surrealistas:

POEMA
A Lydia de Cadaqués

Uma orelha quieta em cima de uma pequena fumaça direita


indicando chuva de formigas sobre o mar.
Ao lado da rocha fria há um pelo de pestana.
Um pedaço de carne desgarrada assinalando o mau tempo.
Há seis peitos extraviados dentro da água quadrada.
Um burro podre zunindo de pequenas minuteiras representando o
princípio da primavera.
Há um umbigo posto num lugar com sua pequeníssima dentadura branca
de espinha de peixe
Um caranguejo seco sobre uma cortiça indicando a subida
do
mar.
Há um despido cor de lua e carrega seu nariz.
Uma garrafa de anis do macaco horizontal sobre a ma-
deira
vazia, simulando o sonho.
Há uma sombra de azeitona numa ruga.
(DALÍ, 2004, p.180, tradução livre)3

Está presente no poema o que poderíamos chamar de técnicas surrealistas, e os


que viriam a ser os elementos dalinianos característicos (a putrefação, as formigas, etc.).
Dalí procura a imagem surrealista que, como querem Breton e Éluard (2003, p. 51), é
aquela imagem que apresenta o grau mais elevado de arbitrariedade, que custa mais
tempo a ser traduzida à linguagem prática devido à sua contradição aparente, que é
alucinatória ou que nega as propriedades físicas. Exemplos podem ser observados em
“uma pequena fumaça direita indicando chuva de formigas sobre o mar” ou “seis peitos
extraviados dentro da água quadrada”, ou ainda, “Uma garrafa de anis do macaco
horizontal sobre a madeira vazia, simulando o sonho”.
O material onírico, as imagens produzidas nos sonhos, também são importantes
na poética surrealista, já que representam um contato com o mundo profundo que
investigam. Essas imagens seriam portadoras de uma energia criadora que não estaria
deformada, que é plástica, pura e autêntica. E vinculados com as imagens oníricas
estariam os mecanismos delirantes de criação (que foram muito bem trabalhados por
Dalí com seu método paranoico-crítico), presentes no livro de André Breton e Paul
Éluard intitulado A imaculada concepção. O poema também pode ser associado ao
humor surrealista, que se preocupa em quebrar normas, princípios e leis naturais, e que
se alimenta de todas as formas do arbitrário e do absurdo (PELLEGRINI, 1981, p. 25).

3
Neste poema e nos seguintes, segue-se a formatação publicada.
Salvador Dalí: pintor e escritor 129

4. “AO FILHO DO TABELIÃO FALTA-LHE UM PARAFUSO”

Salvador Dalí pensava que Pablo Picasso e Joan Miró (que também escreviam
poesia) eram, junto com ele, os únicos inovadores (SÁNCHEZ VIDAL, 2004). Pintores
e poetas seriam a verdadeira vanguarda. Convencido disso, em agosto de 1928, publicou
na revista L’Amic de les Arts o “Poema das coisinhas”, que foi o estopim de uma
“guerra literária”, com ataques a seu estilo literário, a sua família e a sua moral.

Os ataques da imprensa de Barcelona foram ferozes, e algum crítico


lamentou que o respeitável tabelião de Figueres tivesse um filho sem um
parafuso. Que pena - dizia -, porque tinha ouvido falar que o rapaz pintava
bem quando imitava os primitivos flamencos e italianos. A mesma coisa
aconteceria em La Gaceta Literária (1-5-1929) como registrou seu diretor:
“Que indignação levanta Dalí! Seus poemas têm trazido protestos
desesperados” (SÁNCHEZ VIDAL, 2004, p. 20-21).

O poema que tanto escandalizava era este:

Há uma coisinha pequena depositada no alto em algum lugar.


Estou contente, estou contente, estou contente, estou
contente.
[...]
Minha amiga tem a mão de cortiça e cheia de pontas de
Paris.
Um seio de minha amiga é um tranqüilo ouriço do mar, o
outro um vespeiro inquieto.
Minha amiga tem um joelho de fumaça.
Os pequenos encantos, os pequenos encantos,
os pequenos encantos, os pequenos encantos, os
pequenos encantos, os peque-
nos encantos, os pequenos encantos... OS PEQUENOS EN-
CANTOS FINCAM.
O olho da perdiz é vermelho.
Coisinhas, coisinhas, coisinhas, coisinhas, coisinhas, coisinhas, coisinhas,
coisinhas, coisinhas, coisinhas, coisinhas, coisinhas...
HÁ COISINHAS QUIETAS COMO UM PÃO
(DALÍ, 2004, p. 181)

Os comentários dos pesquisadores da obra de Dalí (e aqui se inclui o próprio


citado Sánchez Vidal, 2004) concordam que o “Poema das coisinhas” foi um passo
dado pelo pintor e escritor catalão que pode ser considerado definitivo no seu rumo ao
surrealismo. Nesse poema, as peças estão “dispersas” da mesma forma que estão na sua
pintura da época. Dalí procura a mutilação, o collage, o estranhamento; o mundo está
mudando, ele e a arte devem acompanhar essa mudança.

5. SURREALISTA SOB SUSPEITA

Entre os surrealistas os elogios a Dalí não foram muitos e muito menos unânimes.
Para José Pierre (1994, p. 58-60), reconhecido pesquisador do surrealismo e especialista
130 CADERNOS DO IL, n.º 45, dezembro de 2012 EISSN:2236-6385

em Salvador Dalí, o primeiro mérito do pintor espanhol, a quem considera (como muitos
surrealistas e pesquisadores do surrealismo) apenas um “narcisista e exibicionista”, que se
incorporou na segunda leva do movimento “cinco anos depois de Joan Miró”, é
simplesmente o de ter aparecido quando o grupo se concentrava na luta contra a religião,
o capitalismo e o colonialismo, esquecendo-se das “experiências da vida interior”.
Para Pierre, a conversão de Dalí ao surrealismo se deu quando este pôde estudar
tudo o que se fazia em Paris no âmbito artístico, sendo que sua produção surrealista se
localizaria entre a publicação, em 1930, de A mulher visível e Metamorfose de Narciso,
de 1937. José Pierre é enfático ao afirmar que Dalí teria pretendido rivalizar com os
poetas surrealistas de língua francesa, e sua obra estaria escrita num francês fantasioso
que Louis Aragon, André Breton e Paul Éluard haviam se esforçado em fazer mais
ortodoxo, com o risco de perder seu sabor.
No grupo surrealista, Dalí inicialmente foi disciplinado e teve uma clara adesão
pela filosofia do movimento, incluindo o automatismo. No entanto, propôs paralelamente
a atividade produtiva de um pensamento voluntário, isto é, o pensamento paranoico-
crítico. Esse pensamento voluntário exploraria de forma sistemática o irracional. A razão
posta dialeticamente a serviço do irracional teria sido a grande contribuição teórica de
Dalí ao surrealismo, e essa união dialética entre o racional e o irracional passaria a ser a
fonte de sua atividade poética (SANTAMARÍA, 2005, p. 94-97).
Pierre (1994) comenta que André Breton, na época mencionada, fez referência a
Dalí como aquele que “encarnou o espírito surrealista”4, certamente buscando sua
própria glória, mas também a glória do surrealismo com colaborações como o método
paranoico-crítico, que não deveria nada a Lacan (como creem alguns teóricos), que seria
uma elaboração minuciosa e pessoal de Giorgio de Chirico, Max Ernst, Yves Tanguy e
de seu próprio personagem. O livro de Dalí El mito trágico del Angelus de Millet é uma
excelente demonstração desse “método”, e foi apresentado no Instituto das Espanhas em
janeiro de 1935 e publicado em Minotaure n° 1 com o título “Interpretação paranoico-
crítica da imagem obsessiva do ‘Angelus de Millet’”.
Ainda que este sistema paranoico-crítico se opusesse ao automatismo, Breton o
teria acolhido com indulgência. Porém, não aconteceu o mesmo com suas pinturas que
foram consideradas “lambidas”, ou “fotográficas”, nem com as imagens duplas. Não
obstante, as palavras de Dalí foram escutadas seriamente e foi publicada em Paris uma
grande quantidade de seus trabalhos:

1930 – “O grande masturbador”, poema de La femme visible;


1931 – “Objetos surrealistas” (Le Surréalisme au service de la Révolution, nº
3);
1933 – “Novas considerações sobre o mecanismo do fenômeno paranóico do
ponto de vista surrealista” (Minotaure, nº 1), “Objetos psico-
atmosféricosanamórficos” (Le Surréalisme au service de la Révolution, nº 5),
“O fenômeno do êxtase” (Minotaure, nº 3-4), “Da beleza terrível e
comestível da arquitetura Modern Style” (Minotaure, nº 3-4, 12);
1934 – “As novas cores espectrais do sex-appeal espectral” (Minotaure, nº5);
1935 – “A conquista do irracional” (Ed. Surréalistes), “Aparições
aerodinâmicas dos seresobjetos” (Minotaure, nº 6), “Psicologia não-
euclidiana de uma fotografía” (Minotaure, nº 7);

4
Além de André Breton, um dos mais politizados do grupo surrealista, René Crevel, se sensibilizará com
a proposta de Dalí, como bem podemos ver sem seu livro Dalí o El antioscurantismo (2003).
Salvador Dalí: pintor e escritor 131

1936 – “Primeira lei morfológica sobre os pelos nas estruturas brandas”


(Minotaure, nº 9), “Honra ao objeto” (Cahiers d´Art, XI,nº 1- 2), “O
surrealismo espectral do eterno feminino prerrafaelista” (Minotaure, nº 8).
(PIERRE, 1994, p. 58-60)

Também é importante considerar a contribuição “do príncipe da inteligência


catalã” (conforme Breton e Éluard o definiam em 1938 em seu Dicionário abreviado do
surrealismo) ao movimento surrealista com seus “objetos de funcionamento simbólico”,
derivados dos “ready-mades” e dos “ready-mades assistidos”, de Marcel Duchamp.
Breton havia proposto em sua obra Introduction au Discours sur le peu de réalité, 1924,
fabricar “objetos que só se percebem em sonhos” – objetos oníricos. Dalí criou os
“objetos que se prestam a um funcionamento mecânico mínimo e que se baseiam nos
fantasmas e nas representações suscetíveis de serem provocadas pela realidade de atos
inconscientes” (BRETON; ÉLUARD, 1991, p. 71).
No entanto, para Pierre e para muitos outros autores, é possível que se tenha que
considerar que a maior contribuição de Dalí não foi o sistema paranoico-crítico, mas
sim a exaltação sistemática do erotismo, de sua personalidade erótica sobre todas as
coisas, sua eterna busca pelo prazer. Em um manuscrito para a conferência “O
Surrealismo e a pintura”, Dalí escrevia em 1394, opondo o que denominava o princípio
da realidade – prático e racional – e o princípio do prazer:

O princípio da realidade contra o princípio do prazer. O princípio da


realidade está constituído por todos os sistemas de coerção intelectual do
mundo prático-racional. Os sórdidos mecanismos da lógica, os sistemas
estéticos e intelectuais de todas as sortes. O princípio do prazer está
constituído pelo mundo dos desejos subconscientes, o sonho, os mecanismos
das tendências irracionais da imaginação. O prazer é a aspiração mais
legítima do homem. Nós, os surrealistas, pretendemos liberar a imaginação e
o subconsciente do princípio da realidade e da lógica. Liberdade que depende
unicamente da nossa vontade e à qual ainda nos opusemos vergonhosamente.
A liberação da imaginação, a destruição do princípio da realidade, a nova
consciência das deslumbrantes imagens de nossos mais subterrâneos desejos,
supõem uma iminente crise de consciência, que eu afirmo que nós, os
surrealistas, provocamos já em muitos importantes setores intelectuais e de
opinião. O surrealismo não é uma brincadeira, como o esnobismo
internacional supôs. O surrealismo é um verdadeiro veneno. O surrealismo é
o tóxico imaginativo mais violento e perigoso que até nossos dias se tenha
descoberto. O surrealismo é terrivelmente contagioso. Atenção! Eu trago o
surrealismo. (DALÍ apud SANTOS, s/d, p.146, tradução livre).

José Pierre (1990, p. 49-72) diz que não se deve situar toda a poesia de Dalí sob
o signo do sexual, da escatologia ou do prazer, mas é importante considerar sua afeição
profunda pelas ideias da primeira infância. O formato de seus poemas é geralmente
muito extenso, são redigidos de uma tirada e se desenvolvem como um breve conto de
fadas. Exemplo disso é o poema intitulado “O grande masturbador”. Poema de amor,
erotismo e escatologia, que tem um “orador” que quer convencer o leitor por seus
argumentos e por suas provocações, e como pano de fundo, o humor derivado da
repetição de imagens inusitadas. Vejamos um trecho:
132 CADERNOS DO IL, n.º 45, dezembro de 2012 EISSN:2236-6385

[…]

Caía a tarde
a toda velocidade sobre a paisagem.
No horizonte
a grande silhueta da fábrica de chocolate se perdia
na névoa do crepúsculo.

Mesmo com a escuridão que reinava


não havia ainda acabado a tarde
sobre as grandes escadarias de ágata
onde
fatigado pela luz do dia
que durava desde o amanhecer
o grande Masturbador
apoiava seu imenso nariz no chão de ônix
fechadas suas pálpebras
na testa comida por horrendas rugas
e inchado o pescoço pelo célebre furúnculo onde
fervem as formigas
se imobilizava
conservando nessa hora da tarde ainda demasiado lu-
minosa
enquanto que a membrana que cobre inteiramente sua boca
se endurece ao longo da angustiosa do enorme gafa-
nhoto
segurado imóvel e grudado nela
há cinco dias e cinco noites.
Todo o amor
e toda a embriaguez
do grande Masturbador
residia
nos cruéis adornos de ouro falso
que cobrem suas testas delicadas e brandas
[…]

O segundo rosto do grande Masturbador


era de tamanho mais reduzido que o primeiro
mas sua expressão era orgulhosa e mais doce.
Barbeado há cinco dias
levava o bigode recém-nascido
ruído chamuscado ligeiramente merdoso
de verdadeira merda.

[…]

Os dois rostos dos grandes Masturbadores, o


enorme quadro e as esculturas de Guilherme Tell guar-
davam entre si tal relação e estavam postos de tal
maneira que provocavam uma crise mental similar à
que pode produzir no espírito a assimetria que
origina a confusão culpável entre o topázio que
substitui o olhar nos rostos esculpidos que re-
presentam o momento de prazer e um monte excremental.

[…]
(DALÍ, 2004, p. 202-217, tradução livre)
Salvador Dalí: pintor e escritor 133

Como foi dito, o escatológico é uma obsessão de Dalí e, além disso, ele é o
único pintor que fez da masturbação um dos assuntos centrais de sua obra (GIBSON,
2004, p. 81). Mais exemplos podem ser encontrados em quadros que provocaram
escândalos na época, como El juego lúgubre (1929) e Mano (Remordimientos) (1930),
pinturas turbadoras e notoriamente associadas à temática.
Evidentemente, deve-se considerar a época na busca de Dalí por escandalizar a
sociedade e exorcizar seus fantasmas da juventude. Como é sabido, um quadro ou um
poema como estes hoje (pelo menos na Espanha) não teria o efeito desejado, uma vez
que o próprio governo incentiva a prática autoerótica para adolescentes, a partir dos
doze anos de idade, em oficinas financiadas por impostos municipais com a campanha
“o prazer está nas tuas mãos”, como bem comenta Vargas Llosa (2012). Os detratores
de tal procedimento (os políticos da oposição) lançaram a campanha “mãos limpas”
(LLOSA, 2012, p. 105). Como se vê, o humor e o surrealismo são eternos.
Voltando a Dalí e aos anos 30, alguns dos seus poemas estão relacionados com
seus quadros e foram classificados como livres, vulgarmente eróticos, cheios de
imagens e com um final sem lógica aparente. Outro exemplo de poema do pintor e
escritor com versão pictórica é “A metamorfose de Narciso”, escrito em 1937
aplicando-se o método paranoico-crítico. Dalí primeiramente informa como o quadro
deve ser apreciado:

A METAMORFOSE DE NARCISO

Poema paranoico

MODO DE OBSERVAR VISUALMENTE O


TRANSCURSO DA METAMORFOSE DE NARCISO
REPRESENTADA NO MEU QUADRO

Se se contempla durante algum tempo, com uma breve


distância e certa “fixação distraída” a figura hipnotica-
mente imóvel de Narciso, ela desaparece gradualmen-
te, até tornar-se absolutamente invisível.
A metamorfose do mito acontece nesse exato
momento, porque a imagem de Narciso se transforma su-
bitamente na imagem de uma mão que surge de seu
próprio reflexo. Essa mão segura com a ponta dos de-
dos um ovo, uma semente, o bulbo de onde nasce o
novo Narciso, a flor. Ao lado, pode-se observar a es-
cultura calcária da mão, mão fóssil da água que se-
gura a flor aberta.
(DALÍ, 2004, p. 261, tradução livre)

O quadro apresenta a imagem dupla de um adolescente curvado diante de um


reflexo de água amarelada, que se transforma numa mão cinza petrificada que segura
um ovo, e desse ovo surge a flor de narciso. Entre as imagens, há um grupo nu de
homens e mulheres. Como pano de fundo da paisagem, há montanhas e nuvens pretas.
Um galgo devora um pedaço de carne. Mais ao fundo, a figura de um esbelto
adolescente sobre um pedestal apoiado em um piso xadrez. A pintura remete a um
soneto de Federico García Lorca intitulado “Narciso” (SANCHEZ, 2004, p. 39).
134 CADERNOS DO IL, n.º 45, dezembro de 2012 EISSN:2236-6385

Salvador Dalí também explica como foram feitos o quadro e o poema usando-se
o método criado por ele:

O PRIMEIRO POEMA E O PRIMEIRO QUADRO OBTIDO


COMPLETAMENTE SEGUNDO A APLICAÇÃO
ÍNTEGRA DO MÉTODO PARANOICO-CRÍTICO
(DALÍ, 2004, p. 261, tradução livre)

O título do poema refere-se ao conceito de Dalí já comentado e que teve grande


influência em seu trabalho e no surrealismo. Breton, como líder do grupo surrealista,
reconheceu a contribuição de Dalí com seu método paranoico-crítico quando as
experiências com o automatismo estavam esgotando-se. Talvez seja necessário
mencionar que a técnica proposta por Dalí não é relacionada com a paranoia entendida
como mania de perseguição de forças incontroláveis ou delírio de grandeza. É sim uma
ideia bastante desenvolvida nas análises psicológicas e psicanalíticas da época, e se
refere a uma condição mental na qual o sujeito interpreta seu entorno de acordo com
uma obsessão dominante, em “um delírio de interpretação” que cria uma “realidade”
virtual alternativa (ADES, 2008, p. 24). O texto continua ressaltando a originalidade:

Pela primeira vez, um quadro e um poema surrealistas


implicam objetivamente a interpretação coerente de
um tema irracional desenvolvido. O método paranoico-
crítico começa a constituir o conglomerado indes-
trutível dos “detalhes exatos” que reclamava Sten-
dhal para a descrição da arquitetura de São Pedro
de Roma, isso no âmbito da mais paralisante poesia
surrealista.

O lirismo das imagens poéticas só é filosofi-


camente importante quando consegue, na sua ação, a
mesma exatidão que obtêm os matemáticos na
sua.
O poeta deve, sobretudo, demonstrar o que diz.
(DALÍ, 2004, p. 261-262, tradução livre)

Com uma boa dose de humor, aproxima o popular e a psicanálise:

Primeiro Pescador de Port Lligat: “Que tem


esse rapaz, passa o dia inteiro olhando-se no es-
pelho?”.
Segundo Pescador: “Se quer que o diga (baixando
o tom de voz): tem uma cebola na cabeça”.

“Cebola na cabeça”, em catalão, corresponde exa-


tamente à ideia psicanalítica de “complexo”.
Se a gente tem uma cebola na cabeça, ela pode flores-
cer a qualquer momento, oh Narciso!
(DALÍ, 2004, p. 262, tradução livre)
Salvador Dalí: pintor e escritor 135

Ao final do poema, a metamorfose:

[…]

Quando a anatomia clara e divina de Narciso


se inclina
sobre o espelho escuro do lago,

quando seu branco torso encurvado para a frente


se paralisa, gelado,
na curva argentada e hipnótica de seu desejo,
quando passa o tempo
sobre o relógio de flores da areia de sua própria carne.

Narciso se aniquila na vertigem cósmica


no mais profundo do qual
canta
a sereia fria e dionisíaca de sua própria imagem.
O corpo de Narciso se esvazia e se perde
no abismo de seu reflexo,
como o relógio de areia que não será virado.

Narciso, perdes teu corpo,


arrebatado e confuso pelo reflexo milenário de tua
desaparição,
teu corpo ferido mortalmente
desce ao precipício de topázios dos restos
amarelos do amor,
teu branco corpo engolido,
segue a pendente do torrente ferozmente mineral
de negras pedreiras de perfumes acres,
teu corpo…
[…]

Narciso,
compreendes?
A simetria, divina hipnose da geometria do espírito,
preenche tua cabeça com
esse sonho incurável, vegetal, atávico e lento
que resseca o cérebro
na substância apergaminhada
do núcleo da tua próxima metamorfose.

A semente de tua cabeça acaba de cair na água.


O homem retorna ao vegetal
e os deuses
pelo pesado sonho da fadiga
pela transparente hipnose de suas paixões.
Narciso, estás tão imóvel
que parece que dormes.
[…]
Agora se aproxima o grande mistério
agora acontecerá a metamorfose.
Narciso, na sua imobilidade, absorto em seu reflexo
com a lentidão digestiva das plantas carnívoras,
se torna invisível.
(DALÍ, 2004, p. 265-267, tradução livre)
136 CADERNOS DO IL, n.º 45, dezembro de 2012 EISSN:2236-6385

Após a metamorfose, aparece a figura de Gala, a esposa de Dalí:

Nada mais fica dele


que o óvalo alucinante da brancura de sua cabeça,
sua cabeça novamente mais tenra,
sua cabeça, crisálida de segundas intenções biológicas,
sua cabeça segurada com a ponta dos dedos da água,
com a ponta dos dedos,
da mão insensata,
da mão terrível,
da mão coprofágica,
da mão mortal
de seu próprio reflexo.
Quando essa cabeça se parta,
quando essa cabeça estale,
será a flor,
o novo Narciso,
Gala,
meu narciso.
(DALÍ, 2004, p. 267, tradução livre)

A linguagem desse poema é mais aprimorada que a do poema anterior, “O


grande masturbador”. “A metamorfose de Narciso” é um poema mais culto, possui
imagens mais surrealistas e carregadas de significado (CIRLOT, 2005, p. 46-47). Há um
“eu” em fabricação perpétua, cuja identidade se constrói e destrói com as metamorfoses
de Narciso por meio da relação dialética que o sujeito mantém com sua imagem. A
identidade está sujeita às leis do método paranoico-crítico e a metamorfose acaba
criando Gala, mulher e musa inspiradora, que será seu contrário e seu complemento
(FERNÁNDEZ, s/d). Fica, assim, registrado em texto o reflexo “num escuro lago” de
um Dalí apaixonado por si mesmo, em constante transformação, mas indissociável de
sua mulher. Como afirma Gibson (2004, p. 39), Dalí e Gala são parte de quadro e
poema, ocupando um posto de honra no surrealismo até, pelo menos, 1937, data da
nova e total transformação de Dalí-Narciso em algo que Breton batizou, talvez não sem
razão, de “Avida Dollars”.
Conforme Sanchez Vidal (2004, p. 41), Dalí continuou escrevendo poemas
depois de 1937, mas “nunca foi a mesma coisa”. Inclusive não se repetiram roteiros de
cinema de grande êxito, como os elaborados conjuntamente com Luis Buñuel: Um cão
andaluz e A idade de ouro. Entre seus manuscritos, conservam-se rascunhos não
publicados e datados por volta de 1940. Foram escritos em papel timbrado do Hotel
Metrópole de Lisboa, cidade da qual Dalí e Gala viajaram para os Estados Unidos,
fugindo da ocupação alemã em Burdeos, onde eles estavam refugiados. Dalí costumava
escrever em francês e catalão, mas esses textos foram redigidos em espanhol e isso pode
ter um motivo: passando por Madri, Dalí tinha se reunido com falangistas que o
convidaram para ingressar nas suas fileiras. Ele declinou essa suposta honra. Uma das
composições é “Sonata da ressureição da carne”, provável correlato de seu quadro “A
ressurreição da carne”, iniciado em 1940 e finalizado em 1945. Entre as notas para a
“Sonata” se lê premonitoriamente: “A fogueira da Santa Inquisição voltará a iluminar o
mundo por cima de todas as sonatas da história material” (Sanchez, 2004, p. 42).
Salvador Dalí: pintor e escritor 137

***

A obra de Salvador Dalí é muito extensa e dispersa (acredita-se que há muito


material que não consta das Obras completas). Evidentemente não tivemos a pretensão
de abordar todas as fases e experimentações de Dalí com a escrita literária. O catalão foi
um autor prolífico, famoso no mundo inteiro e considerado gênio das artes. Fez
romances, poemas, roteiros, peças, quadros, esculturas, filmes. Sua vida foi de
produção, teatro e exibição. Este personagem único faleceu em 1989 aos 84 anos e,
mesmo numa lenta e penosa agonia, nunca deixou de analisar a vida e o mundo e de
buscar uma explicação e representação. Uma de suas preocupações mais importantes era
saber a respeito dos avanços da ciência e vinculá-los com as artes. Estava fascinado pela
Veronese Surface e pela Teoria das Catástrofes, de René Thom, cujas curvas de
equações aparecem em suas últimas pinturas. Inclusive, imaginava que Erwin
Schrödinger tinha razão e que seria possível a representação pictórica da realidade em
nível elementar subatômico profundo. Quando faleceu, tinha na sua mesa de cabeceira
livros de Schrödinger, Matila Ghyka e Stephen Hawking. Promovia acalorados e
pitorescos debates entre os cientistas e chamava para si, como sempre, a atenção do
mundo.

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Recebido em: 9/10/2012


Aceito em: 18/01/2013
Publicado em: 27/03/2013

SALVADOR DALÍ: PAINTER AND WRITER


ABSTRACT: This article aims to approach some of the works of the Catalan painter and writer Salvador
Dali. Notes about his youth, including his early romance, his opinion about art and politics and his
eagerness to search for social changes will be commented. References to his attraction to the surrealism
and to his first published poems (in which some of the surrealist techniques already appear) will be
mentioned as well as the elements that would become the characteristic Dalinian elements. References to
Dali's conversion to the surrealism movement (1928) will be made.

KEYWORDS: Salvador Dalí; literature; surrealism.

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