Henriques 2017
Henriques 2017
Henriques 2017
Júri
Presidente: Doutora Maria Paula Pires dos Santos Diogo, Professora Catedrática da Faculdade de
Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.
Arguentes: Doutora Maria José de Sousa Magalhães, Professora Auxiliar da Faculdade de Psicologia
e Ciências da Educação da Universidade do Porto.
Doutora Maria do Carmo Pereira de Campos Vieira da Silva, Professora Auxiliar da
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Vogais: Doutora Maria Margarida D´Orey Alves Martins, Professora Catedrática do Instituto
Universitário de Ciências Psicológicas, Sociais e da Vida.
Doutora Maria Eugénia Miranda Afonso Vasques, Professora Coordenadora da Escola
Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa.
Doutora Mariana Teresa Gaio Alves, Professora Auxiliar com Agregação da Faculdade de
Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.
Doutora Teresa Paula Nico Rego Gonçalves, Professora Adjunta da Faculdade de Educação
da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Doutora Elisabete Maria Xavier Vieira Gomes, Professora Adjunta da Escola Superior de
Educadores de Infância Maria Ulrich.
Setembro de 2017
A educação de quem educa:
Interseccionalidade e Teatro do Oprimido
na formação de professoras/es
ii
AGRADECIMENTOS
À orientadora Professora Doutora Teresa Paula Nico Rego Gonçalves pelo seu acompanhamento,
orientações e total disponibilidade ao longo de todo o processo de investigação.
Ao Diretor Domingos Grilo e ao Subdiretor Orlando Mendonça, em exercício nos respetivos cargos no
período correspondente à fase de pedido de equiparação a bolseira ao Ministério da Educação, pelo
seu apoio e estímulos necessários à realização desta investigação.
À Diretora do Grupo de Teatro Improviso, Teresa Teixeira Coutinho, por ter assumido e concretizado,
individualmente, as atividades e os projetos de teatro, no período correspondente à duração da minha
equiparação a bolseira.
À Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), pela atribuição de uma bolsa de doutoramento, que
possibilitou a realização desta investigação.
À Universidade de São Francisco, CA, EUA, pelo seu acolhimento como pesquisadora visitante,
particularmente, à professora Cecília MacDowell Santos, do Departamento de Sociologia, ao professor
Roberto Varea, do Departamento de Artes Performativas para a Justiça Social e do Centro de Estudos
Latinos nas Américas e à professora Shabnam Koirala-Azad, da Escola Superior de Educação.
À Cooperativa Educacional Casa do Zézinho, São Paulo, Brasil, particularmente à sua presidente, e
minha Mestre, Dagmar Garroux, na aprendizagem da Pedagogia do Arco-Íris.
Às/aos Mestres Ana Cláudia Barbosa, pedagoga teatral, ao Blanco Gil, Diretor e fundador do Teatro
Ibérico, ao João Mota, Diretor do Teatro da Comuna, à professora Eugénia Vasques, da Escola
Superior de Teatro e Cinema de Lisboa.
Às amigas Belinha Costa e Sissi Simão, pelo seu apoio incondicional ao longo de todo este caminho
de investigação e a todas/os as/os amigas/os que sempre me apoiaram.
À minha tia Adelaide Sousa, à minha sobrinha Ingrid Henriques e ao meu sobrinho João Faim, pelo
seu carinho incondicional.
À minha tia, Maria dos Santos, à minha mãe, Alice Henriques e ao meu pai, Manuel Henriques, pela
forma como me ensinaram o valor da Educação.
À Cecília Santos, um agradecimento especial, pela forma como me recebeu e apoiou na cidade de São
Francisco, e pelas suas orientações, sugestões, partilha de conhecimentos e acompanhamento ao longo
de todo o processo de pesquisa e de escrita, que conduziu à realização da presente investigação.
iii
iv
RESUMO
Ao longo das duas últimas décadas, as políticas públicas portuguesas têm adotado as
recomendações da Organização das Nações Unidas (ONU) e da União Europeia (EU) para a eliminação
de discursos e práticas discriminatórias em função de eixos intersetados de diferenciação e desigualdade,
como o género, raça, etnia e, mais recentemente, a identidade e orientação sexual. A implementação
dessas políticas no campo da educação exige, entre outras medidas, uma política de formação contínua
de professoras/es. As ofertas de ações de formação, para além de serem insuficientes, não abordam, por
um lado, essas temáticas a partir de uma perspetiva interseccional, ou seja, não abordam o modo como
essas categorias se intersetam para configurar experiências únicas de opressão e/ou privilégio e, por
outro lado, não desenvolvem ferramentas pedagógicas de intervenção no contexto escolar.
Neste sentido, a presente investigação pretende preencher essa lacuna, ao propor uma
metodologia de investigação-ação-formação para abordar o racismo, o sexismo e a homofobia na escola,
a partir de uma perspetiva interseccional e das técnicas do Teatro do Oprimido, nomeadamente, o Teatro-
Imagem. A pesquisa foi realizada numa escola secundária, no ano letivo de 2012-2013, com um grupo
de professoras/es que lecionavam diferentes áreas disciplinares, no contexto de uma oficina de
formação. Deste modo, a presente investigação enquadra-se no domínio da formação contínua de
professoras/es do ensino secundário e tem os seguintes objetivos gerais: (1) identificar e questionar os
discursos sobre posições sociais de privilégio e/ou discriminação do grupo de professoras/es em estudo;
(2) refletir sobre as relações desiguais de poder e de desigualdade, na sociedade e na escola, em função
das categorias sociais de género, raça, etnia e orientação sexual; (3) promover a responsabilidade e a
atuação das/os professoras/es na transformação de discursos e práticas racistas, sexistas e homofóbicas
na escola; (4) desenvolver ferramentas pedagógicas para uma educação para os direitos humanos e a
não discriminação.
v
vi
ABSTRACT
In the past two decades, Portuguese public policies have incorporated the recommendations by
the United Nations and the European Union towards the elimination of discriminatory discourses and
practices based on intersected axes of differentiation and inequality, such as gender, race, ethnicity and,
more recently, sexual orientation. The implementation of these policies in the field of education requires,
among other measures, an appropriate in-service training program for teachers. The existing models of
in-service teacher training are insufficient. On the one hand, they do not focus on these themes from an
intersectional perspective, that is, they do not approach the way in which these social categories intersect
to constitute unique experiences of oppression and/or privilege. On the other hand, they do not develop
pedagogical tools to intervene in the schools from such perspective.
The present dissertation intends to fill this gap by proposing a methodology of action-research
and in-service teacher training that focuses on the themes of racism, sexism and homophobia in the
context of schools, using an intersectional approach and the techniques of the Theater of the Oppressed,
especially Image-Theater. The research was conducted at one secondary school in the academic year of
2012-2013, in the context of an in-service teacher training, including a group of teachers from different
disciplines. Therefore, the present research is situated within the domain of in-service teacher training
for secondary school teachers. The general objectives of this research are the following: (1) identify and
discuss the involved teachers’ discourses on their own social positions of privilege and/or
discrimination; (2) reflect on the unequal relations of power and inequality in society at large and at the
school based on social categories such as gender, race, ethnicity and sexual orientation; (3) promote the
teachers’ responsibility and action towards the transformation of racist, sexist and homophobic attitudes
at school; (4) develop pedagogical tools for a human rights and non-discriminatory education.
vii
viii
ÍNDICE TEMÁTICO
INTRODUÇÃO 1
CAPÍTULO 1
Referenciais de políticas antidiscriminação para a formação de professoras/es 9
Introdução 9
1.1 Normas e medidas legislativas das Nações Unidas 10
1.2 Normas e medidas legislativas das instituições europeias 18
1.3 Normas e medidas legislativas em Portugal 22
1.3.1 Políticas e medidas educativas 26
1.3.2 Referenciais de competências e de formação de professoras/es 30
1.3.3 Formação de professoras/es: Lacunas e recomendações 33
CAPÍTULO 2
Paradigma da interseccionalidade e modelos de formação de professoras/es 41
Introdução 41
2.1 Teorias feministas e polémicas do género 42
2.2 Teoria crítica da raça 50
2.3 Complexidades e possibilidades do paradigma da interseccionalidade 55
2.3.1 Uma “nova” abordagem para um velho problema 56
2.3.2 Complexidades e debates 58
2.3.2.1 Categorias sociais e/ou anti-categorias 59
2.3.2.2 Sujeitos de análise: oprimidos e/ou privilegiados 61
2.3.2.3 (Anti)categorias e/ou níveis de análise interseccional 62
2.3.2.4 Sobre a globalização da interseccionalidade 66
2.4 O paradigma da interseccionalidade no campo da educação 68
2.5 Modelos de formação contínua de professoras/es 75
2.5.1 Re-instrumentação 77
2.5.2 Remodelação 79
2.5.3 Revitalização 80
2.5.4 Re-imaginação 82
CAPÍTULO 3
Fundamentação epistemológica e metodológica 87
3.1 Problemática e objetivos do estudo 87
3.2. Natureza do estudo 88
3.3 Métodos e procedimentos 93
3.3.1 Estudo de caso 93
3.3.2 Teatro-Imagem 97
3.3.3 Interseccionalidade 100
3.3.4 Análise crítica do discurso 104
3.4 Confiabilidade e autenticidade do estudo 104
3.5 Desenho da investigação 111
ix
CAPÍTULO 4
Etapas do processo de investigação-ação I 115
Introdução 115
4.1 Etapa 1 – Recolha de dados 115
4.1.1 Objetivos 115
4.1.2 Participantes 116
4.1.3 Procedimento e recolha de dados 117
4.2 Etapa 2 – Análise e feedback 119
4.2.1 Procedimentos de análise e interpretação dos dados 119
4.2.2 Apresentação dos resultados da análise 122
4.2.2.1 Tema 1 – Autoidentificação 122
4.2.2.2 Tema 2 – Identificação de terceiros/as 125
4.2.2.3 Tema 3 – Reconhecimento de sistemas de dominação/opressão 127
4.2.2.4 Tema 4 –Autorreconhecimento de privilégios/opressões 137
4.2.2.5 Tema 5 – Responsabilidade perante os sistemas de dominação/opressão 141
4.2.3. Conclusões sobre os resultados da análise 144
4.3 Etapa 3 – Planificação da Ação 144
4.3.1 Etapas descritivas do roteiro da formação 146
4.3.2 Modelo de formação 148
CAPÍTULO 5
Etapas do processo de investigação-ação II 149
Introdução 149
5.1 Etapa 4 – Implementação da ação 149
5.1.1 Objetivos 149
5.1.2 Procedimentos de recolha e análise de dados 149
5.1.3 Descrição das atividades com os jogos de Teatro-Imagem 150
5.1.3.1 Sessões 1 e 2 – Introdução à dinâmica dos jogos teatrais 151
5.1.3.2 Sessão 3 – Jogos teatrais 151
5.1.3.2.1 Jogo do “Onde, Quem, O Quê” 153
5.1.3.2.2 Jogo de Imagem - Ritual 1 155
5.1.3.2.3 Jogo de Imagem cinética 158
5.1.3.3 Sessão 4 – Jogo de Imagem – Ritualização de culturas 160
5.1.3.4 Sessão 5 – Jogo de Imagem – Ritual 2 166
5.1.3.5 Sessão 6 – Jogos de Imagem 174
5.1.3.5.1 Imagem de transição 174
5.1.3.5.2 Ritual 3 175
5.1.3.6 Sessão 7 – Jogo das Imagens do Poder e da Desigualdade 185
5.2 Etapa 5 – Avaliação e acompanhamento 189
5.2.1 Objetivos 189
5.2.2 Procedimentos de recolha e análise de dados 189
5.2.3 Apresentação dos resultados da análise 191
5.2.3.1 Tema 1 - Contributos da oficina de formação 191
5.2.3.2 Tema 2 - Avaliação do modelo de formação 196
5.2.3.3 Tema 3 - Projeto de trabalho autónomo 198
x
CONCLUSÕES FINAIS 201
REFERÊNCIAS 209
xi
xii
ÍNDICE DE TABELAS
xiii
xiv
ÍNDICE DE QUADROS
xv
xvi
ÍNDICE DE FIGURAS
xvii
Maria Teresa dos Santos Henriques
RESUMO
Ao longo das duas últimas décadas, as políticas públicas portuguesas têm adotado as
recomendações da Organização das Nações Unidas (ONU) e da União Europeia (EU) para a
eliminação de discursos e práticas discriminatórias em função de eixos intersetados de
diferenciação e desigualdade, como o género, raça, etnia e, mais recentemente, a identidade e
orientação sexual. A implementação dessas políticas no campo da educação exige, entre outras
medidas, uma política de formação contínua de professoras/es. As ofertas de ações de formação,
para além de serem insuficientes, não abordam, por um lado, essas temáticas a partir de uma
perspetiva interseccional, ou seja, não abordam o modo como essas categorias se intersetam para
configurar experiências únicas de opressão e/ou privilégio e, por outro lado, não desenvolvem
ferramentas pedagógicas de intervenção no contexto escolar.
Neste sentido, a presente investigação pretende preencher essa lacuna, ao propor uma
metodologia de investigação-ação-formação para abordar o racismo, o sexismo e a homofobia na
escola, a partir de uma perspetiva interseccional e das técnicas do Teatro do Oprimido,
nomeadamente, o Teatro-Imagem. A pesquisa foi realizada numa escola secundária, no ano letivo
de 2012-2013, com um grupo de professoras/es que lecionavam diferentes áreas disciplinares, no
contexto de uma oficina de formação. Deste modo, a presente investigação enquadra-se no
domínio da formação contínua de professoras/es do ensino secundário e tem os seguintes
objetivos gerais: (1) identificar e questionar os discursos sobre posições sociais de privilégio e/ou
discriminação do grupo de professoras/es em estudo; (2) refletir sobre as relações desiguais de
poder e de desigualdade, na sociedade e na escola, em função das categorias sociais de género,
raça, etnia e orientação sexual; (3) promover a responsabilidade e a atuação das/os professoras/es
na transformação de discursos e práticas racistas, sexistas e homofóbicas na escola; (4)
desenvolver ferramentas pedagógicas para uma educação para os direitos humanos e a não
discriminação.
Nas últimas duas décadas, a União Europeia (UE) tem adotado diferentes orientações políticas
para lidar com várias formas de discriminação baseadas no género, raça, etnia e orientação sexual (CE,
1997; 2000). Não obstante as tentativas de mudanças ao nível das políticas para a igualdade, os Estados
Membros confrontam-se com desafios que se prendem com a implementação das políticas públicas
antidiscriminatórias. Portugal exemplifica a discrepância entre as orientações das políticas públicas para
a igualdade e as práticas sociais de discriminação. O último relatório da Comissão Europeia contra o
Racismo e a Intolerância (ECRI, 2013) denuncia a discriminação de que são alvo, em Portugal, a
população de etnia cigana e a população afrodescendente. Embora a ECRI (2013) tenha feito
recomendações a Portugal para adotar medidas que reduzissem os índices de racismo ao nível estrutural,
nomeadamente, a publicação de leis que simplificassem e acelerassem os procedimentos relativos à
apresentação de queixas ao Alto Comissariado para as Migrações (ACM), só recentemente (a 1 de
setembro de 2017) entrou em vigor a Lei n.º 93/2007 de 23 de agosto, que estabelece, finalmente, o
regime jurídico da prevenção, da proibição e do combate à discriminação, em razão da origem racial e
étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem.
Para além das denúncias feitas, quer ao nível das organizações internacionais, quer ao nível das
organizações não governamentais portuguesas, a crescente visibilidade do “racismo em português”
(Henriques, 2015) tem contado com o mundo dos media, nomeadamente, através de uma série de
reportagens divulgadas pelo jornal Público da autoria da jornalista Joana Gorjão Henriques (2017a,
2017b, 2017c, 2017d, 2017e). De uma prática “quase” silenciada pela invisibilidade e negação do
racismo estrutural que caracteriza a nossa cultura (Araújo, 2007; van Dijk, 1992), o racismo vai-se
tornando progressivamente visível para aqueles e aquelas que não sofrem as suas consequências. A série
de reportagens divulgadas pelo Público mostram como as populações negras e de etnia cigana são alvo
de um racismo estrutural no acesso à justiça, à habitação, ao emprego, à educação, assim como estão
sujeitas a índices elevados de violência que é exercida, quer sobre os seus corpos, quer sobre as suas
culturas.
1
casais homossexuais1. Não obstante, as lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgénero, queer e
intersexuais (LGBTTQI) continuam a recear a discriminação da família, no emprego e nas escolas 2 e
raramente assumem publicamente a sua orientação sexual 3 (Carneiro, 2009; Nogueira, Oliveira,
Almeida, Costa, Rodrigues & Pereira, 2010).
Num contexto de atitudes e práticas discriminatórias baseadas no género, raça, etnia e orientação
sexual, as políticas e as práticas educativas deveriam ser uma das áreas prioritárias de intervenção e
transformação das múltiplas desigualdades e discriminações (Araújo, 2007, 2008; Silva, M. C., 2008;
Silva, M. J. et al. 2011). No entanto, de acordo com inúmeros estudos realizados, as escolas continuam
a reproduzir as ideologias e as práticas sociais dominantes (Bourdieu, 1984; Apple, 1996a). Uma das
lacunas da educação para a não discriminação em Portugal, apontadas por alguns estudos e relatórios
nacionais e internacionais, prende-se com os seguintes fatores, entre outros: (1) a inexistência de uma
política de formação de professoras/es dirigida aos temas e questões do sexismo, do racismo e da
homofobia; (2) a forma de organização do sistema educativo em termos de definição de áreas
curriculares que não contemplam os saberes e as práticas necessárias a uma educação para os direitos
humanos e a não discriminação; e (3) a não promoção da pesquisa educacional sobre estas questões.
1
Aprovada pela Assembleia da República em 19 de fevereiro de 2016 e regulamentada pela Lei n.º 2/2016 de 29
de fevereiro.
2
Como exemplo, o caso mediático que ocorreu no dia 24 de abril de 2017 na Escola Secundária de Vagos. De
acordo com a informação divulgada pelo Diário de Notícias, perante a repreensão de uma funcionária da escola
a um casal de alunas lésbicas que estavam a namorar no recinto escolar, outros/as alunos/as protestaram contra
uma atitude que consideraram discriminatória, uma vez que os casais heterossexuais que namoram na escola
não são alvo deste tipo de discriminação.
3
Veja-se os comentários homofóbicos e machistas da caixa de comentários do Diário de Notícias, ou noutros
espaços de comentário, sobre a entrevista de Fernanda Câncio (2017) à Secretária de Estado da Modernização
Administrativa, Graça Fonseca, onde esta assume a sua homossexualidade como um ato político necessário
numa sociedade que que as leis não mudam mentalidades.
4
Este interesse resulta da introdução do Artigo 13.º do Tratado de Amesterdão (CE, 1997) de seis eixos
diferenciados de discriminação, nomeadamente, o sexo, raça/etnia, deficiência, idade, religião/crenças e
orientação sexual.
2
questão da interseccionalidade como uma proposta de abordagem das estruturas de opressão e
discriminação social. O termo interseccionalidade foi cunhado pela jurista norte-americana Kimberlé
Crenshaw no final da década de 1980, como uma metáfora que ilustrasse, por um lado, a forma como
os sistemas estruturais de opressão (racismo e sexismo) se interseccionavam na configuração das
experiências das mulheres negras e, por outro lado, como um desafio às políticas feministas e às políticas
antirracistas a incorporarem a abordagem interseccional nas suas análises e práticas (Berger & Guidroz,
2009; Crenshaw, 1989). No entanto, desde a década de 1960 que os movimentos das mulheres negras e
de cor, principalmente nos Estados Unidos e em Inglaterra, mas também no Brasil, reivindicavam, sem
usar o termo interseccionalidade, o reconhecimento de múltiplas e intersetadas discriminações sociais
de que eram vítimas, em função da raça, género e classe (Collins, 1990; Crenshaw, 2011; hooks, 1981,
2003; Santos, M. C. M.,1995, 2007; Yuval-Davis, 2006).
Não sendo uma ideia nova, foi a partir da formulação do termo “interseccionalidade” (Crenshaw,
1989) que o paradigma se tornou uma referência epistemológica para os estudos feministas de diversas
áreas (Direito, Filosofia, Sociologia, Economia, Artes, Educação), perspetivas teóricas (fenomenologia,
psicanálise, desconstrutivismo) e mobilizações sociais e políticas (feminismo, antirracismo,
multiculturalismo e queer), principalmente, nos Estados Unidos e na Europa (Davis, 2008, p. 74).
No entanto, se, por um lado, a maioria dos artigos publicados sobre o paradigma da
interseccionalidade aborda a situação das mulheres negras ou as categorias de raça, género e classe, por
outro, têm surgido outros trabalhos que abordam outras categorias sociais, assim como outros processos
sociais complexos para além do racismo e do sexismo, como, por exemplo, a homofobia, a xenofobia,
a transfobia, islamofobia, entre outras. Por sua vez, o(s) sujeito(s) de análise podem enquadrar-se quer
em posições sociais de privilégio, quer em posições sociais de opressão/subordinação, ou na interseção
de ambas (Carbado, 2013).
3
nova Lei n.º 93/2017 sobre o regime jurídico da prevenção, da proibição e do combate à discriminação,
em razão da origem racial e étnica, cor, nacionalidade, ascendência e território de origem, estende-se ao
âmbito da educação e abre o caminho para a inclusão da interseccionalidade na formação de
professoras/es. Neste documento reconhece-se a discriminação múltipla, ou seja, “aquela que resultar
de uma combinação de dois ou mais fatores de discriminação, devendo, neste caso, a justificação
objetiva (…) verificar-se em relação a todos os fatores em causa” (alínea c) do Artigo 3.º). Embora não
se refira à interseccionalidade, o reconhecimento da discriminação múltipla abre possibilidades para
essa abordagem. Neste sentido, considera-se que, para além da abertura que é dada nas leis para uma
abordagem interseccional das múltiplas discriminações, é necessário que essas medidas legislativas
sejam acompanhadas de uma política de formação contínua de agentes educativos, a partir de uma
perspetiva interseccional dos sistemas de privilégio e de desigualdades sociais que se reproduzem no
sistema educativo e no espaço escolar.
O Teatro do Oprimido (TO) tem sido aplicado, com sucesso, no campo da educação, da justiça,
da saúde pública, nas políticas públicas municipais e estaduais, e nos movimentos sociais, entre outros,
em vários países do mundo, sempre com o objetivo de transformar as estruturas opressivas da sociedade
de que as pessoas, singulares ou coletivas, são vítimas (Boal, 1973/2005). A revisão da literatura sobre
a utilização do TO como método de pesquisa e de formação de professores/as mostrou que o impacto é
positivo, mas que há necessidade de mais estudos nessa área (Cahnmann-Taylor, Wooten, Souto-
Manning, & Dice, 2009; Powers & Duffy, 2016; Souto-Manning, 2011; Wooten & Cahnmann-Taylor,
4
2014). De acordo com Powers & Duffy (2016), os/as formadores/as de professores/as, em geral, não
incluem ou adaptam metodologias artísticas à sua prática pedagógica. O mesmo pode ser observado ao
nível da pesquisa educacional, particularmente em Portugal, onde o método do TO é praticamente
desconhecido, mesmo no campo das artes performativas.
5
do trabalho do Grupo de Teatro Improviso, quer na disciplina de Técnicas de Expressão e Comunicação
do Curso de Técnico Profissional de Acção Social. Os conhecimentos e as experiências que adquiri
motivaram-me a realizar a presente investigação, dentro de um outro contexto, a formação contínua de
professoras/es, mas utilizando os mesmos métodos e as mesmas teorias e metodologias de referência.
Tratando-se de um grupo de professoras/es que, pelas categorias que as/os definem (brancos/as,
classe média, heterossexuais, autóctones, entre outras) se enquadram em posições de maior privilégio,
a abordagem interseccional do estudo foi aplicada não só à análise de posições de desigualdade e
discriminação de pessoas ou grupos em função do género, raça, etnia e orientação sexual, mas, também,
à análise da interseção das categorias de branquitude e heteronormatividade como posições de privilégio
que reproduzem e sustentam sistemas de opressão e de dominação como o racismo e o heterossexismo.
6
essas categorias se intersetam e operam ao nível micro, da experiência pessoal e intersubjetiva, e ao
nível macro, das representações sociais e organizacionais (Anthias, 2013). Por último, argumenta-se que
o Teatro do Oprimido, enquanto método de pesquisa e de formação configura-se, quer como um espaço
e um instrumento estético e ético de investigação-ação, quer como uma ferramenta pedagógica de
educação.
A análise dos resultados obtidos nas primeiras entrevistas permite concluir que a maioria das/os
participantes não se identificava em termos raciais ou étnicos, mas identificava estudantes em função
dessas categorias, como, por exemplo, “pretos”, para se referirem a estudantes afrodescendentes, ou
“ciganos”, para se referirem a estudantes de etnia cigana. Estes resultados estão de acordo com a revisão
da literatura sobre o tema, o que permite compreender que o discurso da negação da existência de raças
só se aplica às pessoas que são brancas.
A maioria também não reconhecia que os sistemas de opressão e de privilégio, como o sexismo,
o racismo e o heterossexismo, são sistemas estruturais, que são reproduzidos nas atitudes e nos
comportamentos individuais e interpessoais do dia a dia. Embora algumas e alguns participantes
admitissem que existe discriminação racial, sexismo e homofobia na escola, esses atos discriminatórios
ou preconceitos são considerados como casos pontuais. Por último, a maioria não reconhecia que o facto
de serem marcadas/os socialmente como “mulheres e homens, brancas e brancos e heterossexuais”, lhes
permite ocupar posições de poder e de privilégio, quer na sociedade, quer na escola.
Em relação aos dados obtidos nas segundas entrevistas, a maioria considera que a oficina de
formação contribuiu, por um lado, para tomar consciência, desafiar e procurar transformar os seus
estereótipos e, por outro, para adquirir uma “ferramenta de trabalho” que aplicaram, posteriormente, nas
suas aulas.
Por último, na avaliação que as/os participantes fizeram deste modelo de formação, destaca-se
a “interação de grupo”, “a descoberta e partilha do conhecimento” e a “reflexão na e pela prática”,
considerando que os modelos mais tradicionais de formação não oferecem essa oportunidade.
O Capítulo 4 está dividido em três partes que correspondem, respetivamente, às três primeiras
etapas (empíricas) da investigação-ação. Na primeira apresentam-se os métodos e os procedimentos de
recolha de dados através de entrevistas individuais. Na segunda apresenta-se a análise dos resultados
obtidos nessas entrevistas realizadas com as/os participantes do estudo. Na terceira é apresentado o
roteiro de planificação da oficina de formação.
O Capítulo 5 está dividido em duas partes que correspondem, respetivamente, às últimas etapas
de uma investigação ação. Na primeira faz-se uma descrição e uma análise das atividades desenvolvidas
pelas/os participantes no contexto da componente presencial da oficina de formação. Na segunda
apresenta-se a análise dos resultados das entrevistas individuais que foram realizadas com as/os
participantes após o término da oficina de formação.
8
CAPÍTULO 1 – REFERENCIAIS DE POLÍTICAS ANTIDISCRIMINAÇÃO PARA A
FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES5
Introdução
Este capítulo tem como objetivo contextualizar o tema em estudo através da análise de um
conjunto significativo de documentos legislativos, relatórios e recomendações sobre a igualdade de
direitos e a não discriminação, produzidos ao nível da ONU, UE e Portugal. Recorrendo ao modelo
concetual proposto pela cientista política Ange-Marie Hancock (2007), pretende-se compreender (1) se
as políticas para a igualdade de organismos internacionais, da UE e de Portugal abordam as
desigualdades numa perspetiva unitária, múltipla ou interseccional e (2) o modo como as políticas de
educação e formação de professoras/es incorporam essas diretrizes, seja a partir de uma abordagem
unitária, múltipla ou interseccional.
Hancock (2007) propõe três abordagens concetuais de análise das políticas públicas. Na
abordagem unitária (unitary approach) considera-se apenas uma categoria de diferença (género, raça,
classe ou outra). Esta categoria é concetualizada de uma forma essencialista, uma vez que a abordagem
a partir de uma só categoria de análise (e.g. género) ignora as diferenças intragrupo (e.g. raça, etnia,
classe, entre outras) e estática, porque não reconhece que a forma como os indivíduos estão posicionados
socialmente pode variar em função do contexto político e social em que se inserem. Na abordagem
múltipla (multiple approach) reconhece-se a importância de concetualizar várias categorias de diferença
(género e raça, ou raça e classe, entre outras), embora como mutuamente independentes, mantendo,
assim, o seu estatuto essencialista e estático.
5
Este capítulo foi parcialmente publicado num artigo da minha autoria na Revista Interacções: Henriques, T.
(2015). Desafios da interseccionalidade às políticas de formação contínua de professor@s em Portugal. Revista
Interacções, 11(17), 100-123.
9
themselves” (p. 67).
A Carta das Nações Unidas (1945) e a aprovação da Declaração Universal de Direitos Humanos
(1948) configuram-se como instrumentos normativos fundamentais no desenvolvimento do Direito
Internacional dos Direitos Humanos, promovendo e garantindo a elaboração de tratados internacionais
de proteção dos direitos e liberdades fundamentais. Pode-se considerar a Carta das Nações Unidas
(1945) como sendo um documento decisivo na constituição da visibilidade jurídica dos sujeitos de
direitos humanos, principalmente na reafirmação 6 dos direitos das mulheres, quando, explicitamente, os
povos das Nações Unidas declaram a sua determinação em “reafirmar a (...) fé nos direitos humanos
fundamentais, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das
mulheres (...)” (Preâmbulo, segundo parágrafo). No sentido de concretizar esta determinação, propõe-
se, entre outros, os seguintes objetivos: “(...) promover e estimular o respeito aos direitos humanos e as
liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião” (artigo 1.º, terceiro
parágrafo), fomentando “a cooperação internacional no domínio económico, social, cultural,
educacional e da saúde (...) (artigo 6.º, alínea b)).
No sentido de dar prosseguimento às disposições da Carta das Nações Unidas, é criada, ainda
no ano de 1945, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) com
a missão de contribuir “(…) to the building of a culture of peace, the eradication of poverty, sustainable
development and intercultural dialogue through education, the sciences, culture, communication and
information” (UNESCO, 2010, p. 2). Uma das prioridades globais da Organização foca-se na promoção
da igualdade de género no acesso à educação como condição necessária para a criação de um
desenvolvimento sustentável à escala local e global.
6
O reconhecimento jurídico dos direitos das mulheres data de 1919, com a criação da Organização Internacional
do Trabalho (OIT) e, posteriormente, na Declaração de Filadélfia (1944), particularmente no contexto do
trabalho (Cf. Rocha, 2008).
10
educação e pela adoção de medidas progressivas para garantir o reconhecimento e implementação desses
princípios. O artigo 26.º, segundo parágrafo, confirma o valor que é atribuído à educação na promoção
dos direitos humanos ao determinar o seguinte princípio:
A expressão “discriminação racial” utilizada na Convenção inclui outras categorias para além
da raça e da etnia. De acordo com a definição que é apresentada no artigo 1.º, primeiro parágrafo, é
considerada discriminação racial:
[T]oda a distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência, origem nacional
ou étnica que tenha por objetivo ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício
em igualdade de condições de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político,
económico, social, cultural, ou em qualquer outro campo da vida pública.
Uma das contribuições fundamentais da Convenção para garantir a proteção dos direitos
fundamentais e a não discriminação foi a criação de um Comité (artigo 8.º, primeiro parágrafo) sobre a
Eliminação da Discriminação Racial (CERD) que tem como função monotorizar o cumprimento pelos
Estados Partes signatários dos princípios e das normas convencionadas. Para além de se estabelecer a
7
A Convenção surge na linha de intenções da Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as
Formas de Discriminação Racial de 1963.
8
Importa referir que as Nações Unidas se posicionaram contra o colonialismo e todas as práticas de segregação e
discriminação que o caracterizam através da Declaração sobre a Concessão da Independência aos Países e aos
Povos Coloniais, de 14 de dezembro de 1960.
11
obrigatoriedade destes países apresentarem um relatório sobre as medidas adotadas contra a
discriminação racial que deem efeito às disposições da Convenção (artigo 9.º, primeiro parágrafo), cria-
se a possibilidade de reconhecer a competência ao Comité para receber e analisar petições de pessoas
singulares ou de grupos de pessoas que tenham sido vítimas, ou que se sintam vítimas, de discriminação
racial (artigo 14.º, primeiro parágrafo). Das medidas que os Estados Partes se obrigam a adotar para
lutar contra os preconceitos que levam à discriminação racial, destacam-se os domínios do ensino, da
educação, da cultura e da informação. Nestes domínios, particularmente, deve-se promover “a
compreensão, a tolerância e a amizade entre nações e grupos raciais ou étnicos, bem como (...) promover
os objectivos e princípios da Carta das Nações Unidas, da Declaração Universal dos Direitos Humanos
(…) e da presente Convenção” (artigo 7.º).
Em maio de 1968, designado pela ONU como o Ano dos Direitos Humanos, a Assembleia
Geral das Nações Unidas organiza a I Conferência Mundial de Direitos Humanos 9 com o objetivo
de refletir sobre os progressos alcançados desde a adoção da Declaração Universal dos Direitos
humanos e propor um plano de ação para o futuro. Desta conferência, saiu a Proclamação de Teerão
(1968) que reconhece que as nações unidas “fizeram progressos consideráveis na definição de
normas com vista ao gozo e à protecção dos direitos humanos e liberdades fundamentais ”, mas que
“muito continua por fazer quanto à realização desses direitos e liberdades” (quarto parágrafo). De
acordo com a assembleia geral, os Estados Partes devem incluir a temática dos direitos humanos
nas suas agendas políticas e ratificar convenções e tratados ainda pendentes 10. Para além destes
aspetos, reafirma-se a necessidade de lutar contra todas as formas de discriminação baseadas na
raça, cor, sexo, língua, religião, opiniões políticas ou outras (ponto 1); reconhece -se que os direitos
humanos e as liberdades fundamentais são indivisíveis, isto é, “[o] alcançar de um progresso
duradouro na realização dos direitos humanos depende de políticas de desenvolvimento económico
e social acertadas e eficazes, a nível nacional e internacional” (ponto 13); destaca-se, de entre os
grupos sociais discriminados, “a discriminação de que as mulheres ainda são vítimas em várias
regiões do mundo [e que] tem de ser eliminada (...) para o progresso da humanidade ” (ponto 15);
incentiva-se o encorajamento das “aspirações da geração mais jovem a um mundo melhor, no qual
os direitos humanos e liberdades fundamentais sejam uma realidade plena [que] devem ser
encorajadas ao máximo” (ponto 17).
9
A segunda e a mais recente Conferência Mundial de Direitos Humanos teve lugar em Viena, em 1993. Esta
conferência representou um momento importante de reafirmação da universalidade dos direitos humanos, de
avaliação do progresso realizado desde a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 e da
identificação dos obstáculos e respetivas formas de superação dos mesmos. Nesta Conferência aprovou-se, por
maioria consensual, a Declaração e Programa de Ação de Viena.
10
Destacam-se a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, de
1965, a Convenção dos Direitos Políticos das Mulheres, de 1952, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis
e Políticos e o Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, ambos de 1966.
12
Como já foi referido anteriormente, embora as mulheres tenham sido o primeiro grupo social a
ser reconhecido, legalmente, como sujeitos de direitos, só em 1979, as Nações Unidas adotaram a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres 11 (CEDAW,
1979). Neste documento legal (seguidamente designado por Convenção) reconhece-se que a
discriminação contra as mulheres viola os princípios da igualdade de direitos e do respeito à dignidade
humana constituindo-se como um obstáculo ao desenvolvimento social dos países e à paz no mundo.
Neste sentido, a ONU considera que existe discriminação contra as mulheres quando se verifica:
(...) qualquer distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo que tenha como efeito ou como objectivo
comprometer ou destruir o reconhecimento, o gozo ou o exercício pelas mulheres, seja qual for o seu
estado civil, com base na igualdade dos homens e das mulheres, dos direitos do homem e das liberdades
fundamentais nos domínios, político, económico, social, cultural e civil ou em qualquer outro domínio
(artigo 1.º).
Saliente-se que os termos “mulheres” e “homens” são utilizados neste documento, tal como
noutros que foram apresentados anteriormente, num sentido universalista e essencialista, isto é, como
grupos homogéneos que estão sujeitos aos mesmos tipos de opressão e/ou privilégio, só pelo facto de
serem mulheres, ou homens. O não reconhecimento das diferenças, hierarquias e desigualdades sociais
intragrupos enquadra-se numa política de igualdade assente num modelo essencialmente unitário
(Hanckok, 2007b). Reconhece-se, assim, o direito à igualdade entre os “sexos”, mas não o direito à
igualdade e à não discriminação das mulheres que vivem múltiplas e intersetadas formas de opressão,
como reivindicavam as feministas negras norte-americanas e europeias desde os finais da década de
sessenta (Anthias & Yuval-Davis, 1992; Collins, 2002; Crenshaw, 1989; Yuval-Davis, 2006).
11
Essa Convenção foi fruto do esforço do movimento feminista internacional em comprometer os Estados
Membros das Nações Unidas na condenação da discriminação contra a mulher em todas as suas formas e
manifestações. Em grande parte, a Convenção resultou da I Conferência Mundial da Mulher, realizada pelas
Nações Unidas na Cidade do México, em 1975. Note-se que a Convenção foi, de entre as Convenções da ONU,
a que mais recebeu reservas por parte dos países que a ratificaram. Ressalta-se que esta Convenção foi, e
continua a ser, reforçada por inúmeros documentos das Nações Unidas, incluindo protocolos, declarações,
recomendações e planos de ação do ciclo de conferências mundiais sobre direitos humanos e sobre mulheres,
nomeadamente, o Protocolo Opcional (1999) da Convenção, bem como a Recomendação Geral n.º 19 e n.º 28
do CEDAW (que abordam, respetivamente, a violência contra as mulheres e os eixos de discriminação em
função do sexo e do género), a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (1989) e os
respetivos Protocolos Facultativos (2000) e a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência (2006).
13
mulheres das zonas rurais.
Apesar das reivindicações dos movimentos feministas das mulheres negras, mulheres de cor,
mulheres rurais, mulheres migrantes e mulheres lésbicas e mulheres transexuais, foi necessário esperar
até 2010 para que o Comité para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
(CEDAW, 2010)14, através da Recomendação Geral n.º 28 (a seguir designado como Recomendação),
faça um apelo aos Estados Partes para fazerem uma interpretação mais inclusiva e interseccional do
artigo 2.º da Convenção (1979). Embora a Convenção só faça referência à discriminação em função do
“sexo”, o Comité esclarece (quinto parágrafo) que uma leitura interrelacionada do artigo 1.º, do artigo
2.º, alínea f), e do artigo 5.º, alínea a), “não deixa dúvidas em relação ao facto de que a Convenção se
refere, igualmente, à discriminação baseada no ‘género’”. O Comité entende que o termo “sexo” diz
respeito às diferenças biológicas entre homens e mulheres, enquanto que o termo género “refers to
socially constructed identities, attributes and roles for women and men and society’s social and cultural
meaning for these biological differences resulting in hierarchical relationships between women and men
12
Em 1970 a ONU já tinha lançado um programa de ação internacional para o desenvolvimento das mulheres no
trabalho intitulado Women in Development Program Unit – WID e em 1973, como resultado deste, o Banco
Interamericano de Desenvolvimento, apresentou o programa Gender Equality in Development Unit – GED,
com o objetivo de promover políticas de género para as mulheres que incluam uma melhor integração e
produtividade no mercado de trabalho e na criação de microempresas (Cf. Rocha, 2008, p. 146).
13
Os direitos das mulheres só são reconhecidos como direitos humanos na Declaração e Programa de Ação de
Viena (ONU,1993), uma vez mais, em virtude da grande pressão das entidades não governamentais e dos
movimentos feministas. Assim, declara-se, que “[os] Direitos Humanos das mulheres e das crianças do sexo
feminino constituem uma parte inalienável, integral e indivisível dos Direitos Humanos universais” (décimo
oitavo parágrafo).
14
O CEDAW tem a função de examinar os progressos realizados na aplicação da Convenção e foi estabelecido
pela mesma (Cf. Convenção, artigo 17.º).
14
and in the distribution of power and rights favouring men and disadvantaging women” (quinto
parágrafo).
Para além de reconhecer que as desigualdades sociais, culturais e económicas entre homens e
mulheres resultam de relações desiguais de poder e direitos que favorecem os homens em detrimento
das mulheres (Scott, 1986), o Comité reconhece, igualmente, que a interseccionalidade é um conceito
fundamental para se compreender que “the discrimination of women based on sex and gender is
inextricably linked with other factors that affect women, such as race, ethnicity, religion or belief, health,
status, age, class, caste, and sexual orientation and gender identity” (CEDAW, Rec. Geral 28, 2010,
décimo oitavo parágrafo). Neste sentido, os Estados Partes devem reconhecer e proibir as várias e
intersetadas formas de discriminação de que as mulheres são alvo, quer a discriminação direta, quando
se verifica um tratamento explicitamente diferente em função do sexo ou do género, quer a
discriminação indireta, que ocorre quando uma lei, um discurso político ou uma prática parecem ser
neutros em relação ao sexo e ao género, mas que, na prática, tem um efeito discriminatório sobre a
mulher, porque, sob a aparente neutralidade de uma medida política, não são levadas em conta as
desigualdades estruturais que historicamente colocaram as mulheres em situação de desvantagem em
relação aos homens (décimo sexto parágrafo).
Ao contrário da legislação europeia que, a partir dos anos 2000, tem incorporado algumas
recomendações para abordar as discriminações múltiplas e a própria interseccionalidade (Alonso, 2010,
2012; Burri & Schiek, 2009; Verloo & Walby 2002; Squires, 2009), como será apresentado mais à frente,
as Nações Unidas sempre mostraram uma maior resistência em reconhecer legalmente, por um lado,
outros eixos de discriminação para além do “sexo”, no caso da discriminação contra as mulheres e, por
outro, os direitos fundamentais das pessoas LGBTTQI.
Por exemplo, atualmente, ainda não existe uma Convenção que proteja e garanta os direitos
fundamentais das pessoas LGBTTQI. Contudo, o Conselho das Nações Unidas para os Direitos
Humanos, na sequência da I Declaração sobre Direitos Humanos, orientação sexual e identidade de
género15 de 22 de junho (ONU, 2008) adotou, dois anos mais tarde, a Resolução 17/19 de14 de julho
(ONU, 2011). Esta iniciativa abriu caminho para a elaboração do primeiro Relatório 16 oficial das Nações
15
As Nações Unidas aprovaram a adoção da resolução AG/RES. 2435 (XXXVIII-O/08), em 3 de junho de 2008,
sobre “Direitos Humanos, Orientação Sexual e Identidade de Género” por parte da Assembleia Geral da
Organização dos Estados Americanos.
16
Relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, “Leis Discriminatórias, Práticas
e Atos de Violência contra Indivíduos em Razão de sua Orientação Sexual e Identidade de Género”
(A/HCR/19/41). Neste relatório apresenta-se evidência de um padrão de violência sistemática e de
discriminação, dirigidas às pessoas de todas as regiões do mundo em função da sua orientação sexual e
identidade de género. A discriminação verifica-se no emprego, nos cuidados de saúde, na educação, na justiça
e na violência, sob a forma de ataques físicos e assassinatos. O relatório incluiu, igualmente, um conjunto de
recomendações dirigidas aos Estados Partes para fortalecer a proteção dos direitos das pessoas LGBT (Cf.
ONU, 2012, p. 9).
15
Unidas sobre o tema. Com base neste Relatório, foi publicado o guião Born free and equal: Sexual
orientation and gender identity in international human rights law (ONU, 2012), que define as seguintes
obrigações legais dos Estados Partes em relação à proteção dos direitos humanos fundamentais das
pessoas LGBTI: (1) Proteger as pessoas da violência homofóbica e transfóbica; (2) Prevenir tortura e
tratamento cruel, desumano e degradante de pessoas LGBTI; (3) Descriminalizar a homossexualidade;
(4) Proibir a discriminação baseada em orientação sexual e identidade de género; (5) Respeitar as
liberdades de expressão, de associação e de reunião pacífica.
Ao nível internacional, a UNESCO tem contribuído para que o direito à educação universal,
consagrado na Carta das Nações Unidas (1945) e na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948),
seja promovido e implementado por todos os Estados Partes, através de políticas públicas regionais e
nacionais que garantam o acesso de todas e todos a uma educação de qualidade. Na viragem do milénio,
a UNESCO (2000) conduziu a maior e a mais extensa avaliação sobre o estado da educação básica ao
nível mundial. Os resultados dessa avaliação mostraram que (1) numa população de 800 milhões de
crianças com menos de 6 anos de idade, menos de um terço tem acesso à educação pré-escolar, (2) 60%
das raparigas, num universo de 113 milhões de crianças, não tem acesso ao ensino básico e (3) cerca de
880 milhões de adultos são analfabetos, sendo a maioria mulheres (UNESCO, 2000, p. 12).
De acordo com o Relatório sobre os ODM (ONU, 2015), embora se tenham alcançado resultados
significativos em relação às metas estabelecidas para a consecução dos ODM, os objetivos propostos
para o período de 2000-2015 ainda estão aquém de serem concretizados na sua totalidade, uma vez que,
como se refere no Relatório, “(…) [m]illions of people are being left behind, especially the poorest and
those disadvantaged because of their sex, age, disability, ethnicity or geographic location. Targeted
efforts will be needed to reach the most vulnerable people” (p. 8). No caso de Portugal, como será
desenvolvido mais à frente, os ODM foram incorporados nas políticas públicas, principalmente na
16
promoção da igualdade de género em todas as esferas sociais e políticas, embora ainda não se tenham
concretizado muitas das metas propostas.
Tendo como referência os resultados do Relatório mencionado acima, a ONU (2015) toma a
resolução de lançar uma agenda mais ambiciosa para o período de 2015-2030, “Transformar o nosso
mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável” (A/RES/70/1), no dia 25 de setembro de
2015. De âmbito universal, a Agenda 2030, propõe 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável
(ODS) e 169 metas que devem ser implementados nas agendas políticas de todos os países. A grande
novidade nesta Agenda, e que deveria ter sido incorporada logo nos ODM (ONU, 2000) é o facto do
desenvolvimento sustentável integrar não só a dimensão económica e ambiental, mas, também, a
dimensão social. Neste sentido, os ODS reforçam e alargam os objetivos relativos à eliminação das
desigualdades sociais e da promoção dos Direitos Humanos como áreas transversais a todos os ODS.
Em linha com os ODS da Agenda 2030 e com outros instrumentos, como o EFA (UNESCO,
2000), o plano de Ação Prioritário para a Igualdade de Género – 2014-2021 (UNESCO, 2014), o
Relatório mundial sobre a violência contra as crianças (ONU, 2006), a UNESCO (2015) lançou uma
nova agenda com um programa educativo mais ambicioso para o período de 2015-2030, intitulada
“Sustainable Development Goal 4: Ensure inclusive and equitable quality education and promote
lifelong learning opportunities for all”. Este Plano de Ação apresenta estratégias inovadoras não só para
garantir o direito fundamental de acesso à educação, mas garantir, igualmente, o direito a uma educação
de qualidade, que promova não apenas um desenvolvimento sustentável, mas, também estilos de vida
sustentáveis. Neste documento reconhece-se, pela primeira vez, ao nível da UNESCO, “(…) the danger
of concentrating on access to education without paying enough attention to whether students are learning
and acquiring relevant skills once they are in school” (p. 25).
(…) giving everyone an equal opportunity, and leaving no one behind signals another lesson: the need for
increased efforts especially aimed at reaching those marginalized or in vulnerable situations. All people,
irrespective of sex, age, race, colour, ethnicity, language, religion, political or other opinion, national or
social origin, property or birth, as well as persons with disabilities, migrants, indigenous peoples, and
children and youth, especially those in vulnerable situations or other status, should have access to
inclusive, equitable quality education and lifelong learning opportunities (p. 25)
17
exige, necessariamente, uma abordagem interseccional de diferentes categorias de forma a que a
educação possa ser ainda mais equitativa e inclusiva.
that all learners acquire knowledge and skills needed to promote sustainable development, including,
among others, through education for sustainable development and sustainable lifestyles, human rights,
gender equality, promotion of a culture of peace and non-violence, global citizenship and appreciation of
cultural diversity and of culture’s contribution to sustainable development (UNESCO, 2015, p. 48)
Para alcançar estes objetivos é necessário que essas temáticas sejam incluídas nas políticas
educativas nacionais, nos currículos, na formação das/os professoras/es e na avaliação dos/as alunos/as,
ou seja, a nova agenda para a educação inclusiva e equitativa constitui-se como o maior desafio às
políticas públicas educativas, nomeadamente, no países em que a formação para a cidadania, numa
perspetiva de direitos humanos e de não discriminação não faz parte da formação inicial ou contínua de
professoras/es.
Na EU, a implementação dos ODS já está em curso. No caso de Portugal, numa primeira fase,
foram priorizados 6 ODS na implementação da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável. Três
desses ODS contemplam de forma direta (ODS4-Educação de Qualidade) ou indireta (ODS5 –
Igualdade de Género e o ODS10 – Reduzir as Desigualdades) o campo da educação (MNE, 2017). O
impacto da concretização destes objetivos ao nível do sistema educativo será apresentado na secção
correspondente.
Tendo como referência a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o CoE (1950), através
da Convenção de Salvaguarda dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais 17 (em seguida
17
Em Portugal, a Convenção só foi aprovada para ratificação pela Lei n.º 65/78, de 13 de outubro, publicada no
Diário da República, I Série, n.º 236/78 (retificada por Declaração da Assembleia da República publicada no
Diário da República, I Série, n.º 286/78, de 14 de dezembro). Também nesse mesmo ano, e mediante aviso do
Ministério dos Negócios Estrangeiros, é publicada no Diário da República, I Série A, n.º 57/78, de 9 de março
18
denominada Convenção), adotada em Roma, a 4 de novembro de 1950, propõe-se proteger e
desenvolver os direitos humanos e as liberdades fundamentais como condição fundamental para realizar
o projeto democrático europeu. Partindo desta convicção, o artigo 14.º, sobre a proibição de
discriminação, estabelece:
O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Convenção deve ser assegurado sem quaisquer
distinções, tais como as fundadas no sexo, raça, cor, língua, religião, opiniões políticas ou outras, a origem
nacional ou social, a pertença a uma minoria nacional, a riqueza, o nascimento ou qualquer outra situação.
de 1978, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) das Nações Unidas (Cf. Rocha, 2008).
18
O caso Salgueiro Silva Mouta é um exemplo paradigmático dessa linha de atuação (Cf. Santos C. M., Santos
A.C., Lima & Duarte, 2012). O Tribunal julgou que ao pai homossexual não pode ser negada a guarda da
criança com base na sua orientação sexual, uma vez que a matéria viola o direito do pai à vida familiar
estabelecida no artigo 8.º da Convenção. O Tribunal considerou ainda que o artigo 14.º da Convenção, sobre a
“Proibição de Discriminação”, deve (sub)entender o direito à não discriminação com base na orientação sexual.
19
O Conselho da Europa tem feito algumas recomendações em matéria de proteção dos direitos humanos das
pessoas LGBT: Recomendação 924/1981, sobre o direito de autodeterminação sexual das mulheres e homens;
Recomendação 1470 de 30 de junho de 2000 sobre a imigração e asilo para gays e lésbicas e seus parceiros;
Recomendação 1474 de 26 de setembro de 2000 sobre a situação de gays e lésbicas na Europa e a
Recomendação 1635 de 25 de novembro 2003, sobre gays e lésbicas no desporto e a Recomendação 211 sobre
a liberdade de expressão e de reunião das lésbicas, homossexuais, bissexuais e transexuais, em 2007 (Bezerra,
2008, pp. 78-79).
20
Posteriormente alterado pelo Tratado de Nice, 2001, e pelo Tratado de Lisboa, 2009.
21
O Parlamento Europeu (PE) já tinha aprovado algumas resoluções, de caráter não impositivo, sobre direitos
humanos e orientação sexual. A primeira, foi adotada em 1984 e proclamava a luta pelo fim da discriminação
com base na orientação sexual. Dez anos mais tarde, em 1994, a partir do Relatório “Roth”, que revelava os
índices e os tipos de discriminações contra lésbicas e gays na UE, o PE adotou a recomendação sobre a abolição
19
assinalar é o estabelecimento da garantia do direito à não discriminação em função da raça ou origem
étnica através da consagração das competências das instituições da UE para executar as políticas
antirracistas (artigo 13.º e artigo 21.º).
de todas as formas de discriminação por orientação sexual. Ainda antes da entrada em vigor do Tratado de
Amesterdão, e preocupado com o crescimento da União Europeia, o PE adotou, em 1998, uma resolução
afirmando que “não consentirá a associação de nenhum país que por meio de sua legislação ou política viole
os direitos humanos de lésbicas e homens gays”. Cf. página eletrónica da HREA em
http://www.hrea.net/learn/guides/lgbt_pt.html).
22
Segundo essa diretiva (artigo 2.º, n.º 2), “a) [c]onsidera-se que existe discriminação direta sempre que, em razão
da origem racial ou étnica, uma pessoa seja objeto de tratamento menos favorável que aquele que é, tenha sido
ou possa vir a ser dado a outra pessoa em situação comparável; b) Considera-se que existe discriminação
indireta sempre que uma disposição, critério ou prática aparentemente neutra coloque pessoas de uma dada
origem racial ou étnica numa situação de desvantagem comparativamente com outras pessoas, a não ser que
essa disposição, critério ou prática seja objetivamente justificada por um objetivo legítimo e que os meios
utilizados para o alcançar sejam adequados e necessários”.
23
A discriminação em função do “sexo” não é considerada em nenhuma das diretrizes mencionadas, pelo facto de
já existir, à época, jurisdição sobre o princípio de igualdade entre homens e mulheres no emprego e na atividade
profissional. Em relação à proteção dos direitos das mulheres fora do meio do trabalho, a Decisão 2001/51/EC
do Conselho, de 20 dezembro de 2000, estabeleceu um programa de Ação Estratégia para a Igualdade de
Género (2001-2005) onde já se contemplava, embora sem força de lei, o princípio de igualdade de tratamento
entre homens e mulheres no acesso a bens e a serviços. No entanto, só em 13 de dezembro de 2004, foi adotada
a Diretiva 2004/113/EC que implementou e garantiu esse direito. Dois anos mais tarde, esses domínios de
proteção são alargados e consagrados pela Directiva 2006/54/EC.
24
Note-se que nesta proposta o género ainda surge como o único eixo tranversal de abordagem intersecional das
discriminações múltiplas.
20
No entanto, a consagração na lei comunitária da obrigação dos Estados Membros em garantir
uma abordagem das discriminações múltiplas só foi estabelecida pelo PE (2009), através da Resolução
(P6_TA(2009)0211) de 2 de abril de 2009, relativa à igualdade de tratamento de pessoas
independentemente da sua religião ou crença, deficiência, idade ou orientação sexual 25. Enquanto nos
documentos anteriores a perspetiva da discriminação múltipla e/ou da interseccionalidade era abordada
a partir da categoria de género (numa perspetiva hierárquica), argumentando-se que as mulheres são
frequentemente vítimas de discriminação múltipla 26, neste documento surge, pela primeira vez, um
discurso que considera todas as possíveis combinações de eixos de discriminação:
(...) the Community should, in accordance with Articles 3(2) and 13 of the EC Treaty, aim to eliminate
inequalities relating to sex, race or ethnic origin, disability, sexual orientation, religion or belief, or age
or a combination of these, and to promote equality, whatever combination of characteristics relating to
the above-mentioned factors a person may have (...) (Emendas 10.ª e 23.ª).
Este entendimento das múltiplas desigualdades constitui-se, de acordo com Hanckok (2007b)
numa questão empírica em aberto, condição fundamental para uma abordagem interseccional das
categorias sociais.
Através do estabelecido no artigo 16.º da Resolução (PE, 2009), o Relatório da Comissão sobre
a aplicação da legislação pelos Estados Membros deve incluir informação relativa à discriminação
múltipla, que, por sua vez, deve abranger todos os eixos de discriminação (descritos no artigo 1.º), em
razão da religião ou crença, orientação sexual, idade, deficiência, sexo, raça e origem étnica. O relatório
deve incluir, igualmente, e sempre que necessário, propostas de revisão e atualização da Diretiva.
25
Na ausência de uma Diretiva específica sobre essa matéria, o Parlamento Europeu adotou um conjunto de
emendas à primeira Proposta da Comissão Europeia (COM(2008) 426) de 2 de julho de 2008.
26
O texto do Considerando n.º 13 da Proposta COM(2008)426 tem a seguinte redação: “In implementing the
principle of equal treatment irrespective of religion or belief, disability, age or sexual orientation, the
Community should, in accordance with Article 3(2) of the EC Treaty, aim to eliminate inequalities, and to
promote equality between men and women, especially since women are often the victims of multiple
discrimination”.
21
transição de uma perspetiva puramente unitária para uma perspetiva de abordagem múltipla e
interseccional das discriminações múltiplas.
No que respeita aos direitos e deveres, declara-se que ninguém pode ser privado dos seus direitos
ou isento dos seus deveres em função da “(...) ascendência, sexo, raça, língua, território de origem,
religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou
orientação sexual”29 (artigo 13.º, n.º 2). A Constituição confere, ainda, um tratamento igual para cidadãos
27
Versão da Lei n.º 7/2009 de 12 fevereiro, da responsabilidade da Autoridade para as condições do Trabalho
(ACT), que aprova o Código de Trabalho.
28
A inclusão de uma alínea específica em relação à responsabilidade do Estado português em promover a igualdade
entre homens e mulheres resulta, por um lado, da influência da conjuntura internacional que se intensificou em
1975, com a proclamação do Ano Internacional da Mulher das Nações Unidas, a I Conferência Mundial sobre
as Mulheres na Cidade do México, onde se institui a Década das Nações Unidas para as Mulheres (1976-1985)
e se aprovou o respetivo Plano de Ação Mundial, e, por outro, das recomendações feitas pelo Grupo de trabalho
para a Participação da Mulher na Vida Económica e Social, criado em 1970, que foi seguido em 1973 pela
criação da Comissão para a Política Social relativa à Mulher. Com uma atribuição meramente consultiva, este
grupo de trabalho fazia o levantamento das discriminações legais contra as mulheres e elaborava propostas de
alteração no direito da família e do trabalho (Cf. Página oficial da CIG online, http://www.cig.gov.pt/a-
cig/historia-da-cig/). Importa referir ainda dois importantes contributos para promover as políticas para a
igualdade e não discriminação no nosso país na década de 1970 e 1980, o primeiro, adesão de Portugal ao
Conselho da Europa, em 1976, e a representação de Portugal, atribuída à Comissão da Condição Feminina
(criada em 1975 e institucionalizada em Novembro de 1977 pelo Decreto-Lei nº 485/77 de 17 de Novembro,
que substitui a anterior Comissão para a Política Social relativa à Mulher) no Comité criado em 1979, para
abordar as questões da desigualdade de género, e o segundo, a ratificação, em 1983, da Convenção sobre a
Eliminação Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres da Nações Unidas (1979) que obriga os
Estados Membros signatários a apresentar, periodicamente, relatórios de avaliação sobre a elaboração e
execução de medidas legislativas nessa matéria ao Comité (CEDAW).
29
A proteção à não discriminação em função da orientação sexual foi consagrada na Constituição em 2004,
22
nacionais, estrangeiros e apátridas, com exceção dos direitos políticos, o exercício de funções públicas
não técnicas, e os direitos e deveres que por lei são exclusivamente reservados aos portugueses (artigo
15.º, n.º 1 e n.º 2).
convertendo Portugal num dos primeiros países, a par com a África do Sul, Canadá e Equador, a garantir
constitucionalmente este direito.
30
O projeto de lei para a inclusão da não discriminação em função da identidade de género no acesso ao emprego
e no trabalho foi aprovado pela Assembleia da República no dia 6 de março de 2015.
31
A Lei n.º 392/1979, de 20 setembro, relativa à garantia de igualdade de oportunidades e de tratamento para as
mulheres no emprego e no trabalho.
32
Ver, por exemplo, a Lei n.º 6/1971, de 8 novembro, relativa à reabilitação e integração social dos indíviduos
portadores de deficiências.
33
A Lei n.º 134/1999, designada por Lei de Defesa contra a Discriminação Racial, foi aprovada antes da adoção
da Diretiva 2000/43/CE.
34
O Secretariado Nacional para a Reabilitação (SNR) deu origem ao atual Instituto Nacional para a Reabilitação
(INR), o Alto Comissariado para a Imigração e as Minorias Étnicas (ACIME) deu origem, em 2007, ao Alto
Comissariado para a Imigração e o Diálogo Intercultural (ACIDI) que, por sua vez, deu origem (Decreto-Lei
n.º 31/2014 de 27 de fevereiro) ao Alto Comissariado para as Migrações (ACM), e a Comissão para a
Igualdade e os Direitos das Mulheres (CIDM), que deu origem à atual Comissão para a Cidadania e a Igualdade
de Género (CIG).
23
nos Planos Nacionais para a Igualdade35.
Neste sentido, o III Plano Nacional para a Igualdade - Cidadania e Género (2007-2010)36 (III
PNI) (GIG, 2007) estabelece que “as situações de discriminação múltipla exigem uma particular atenção
atendendo às situações de desigualdade de oportunidades e discriminação que as mulheres enfrentam
cumulativamente em função da raça, território de origem, religião, deficiência, idade ou orientação
sexual”. De acordo com a classificação proposta por Squires37 (2009) a utilização do termo
“cumulativamente”, no texto, revela uma forma de abordagem dos vários eixos de desigualdade que se
enquadra mais numa perspetiva de sobreposição (cumulative) do que de interseção (combined) dos
mesmos. Por outro lado, a perspetiva múltipla privilegia uma categoria específica, as mulheres, tal como
acontecia nos planos de igualdade e nos documentos legislativos anteriores. Para além destas limitações,
é de salientar, como fatores positivos e invovadores, a substuituição do termo “mulher” pelo termo
“género”, evidenciando a natureza estrutural das desigualdades (superando o binómio mulher-homem),
e a inclusão do termo “cidadania” que revela o interesse em abordar as múltiplas desigualdades vividas
pelas mulheres (Alonso, 2012).
O IV Plano Nacional para a Igualdade, Género, Cidadania e não Discriminação (2011 -2013)38
(IV PNI) (GIG, 2011) introduz uma política mais inclusiva e explicitamente direccionada para a
eliminação de vários eixos de discriminação. As linhas de orientação deste Plano enquadram-se nos
compromissos assumidos por Portugal nas várias instâncias internacionais e europeias, com destaque
para a ONU, o CoE e a UE. Seguindo as orientações contidas na I Declaração sobre Direitos Humanos,
Orientação Sexual e Identidade de Género das Nações Unidas (ONU, 2008), o IV PNI contempla, pela
primeira vez, um conjunto de medidas destinadas a eliminar a não discriminação em função da
orientação sexual e da identidade de género 39. A inclusão do termo “não discriminação” no título do
Plano revela, igualmente, a intenção de integrar os valores da não discriminação nas políticas da
igualdade de género, como princípios estruturantes de uma política nacional virada para a justiça social.
Para além de outros fatores, contribuíram para esta viragem, a coincidência do Ano Europeu da
35
Os Planos Nacionais para a Igualdade são instrumentos de políticas públicas nacionais de promoção da igualdade
e da não discriminação. A coordenação destes Planos é da responsabilidade dos organismos nacionais de
promoção da igualdade, mas a execução das acções depende da participação de outros parceiros envolvidos.
36
Aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 82/2007, publicada em Diário da República, 1.ª série,
N.º 119 de 22 de junho de 2007.
37
Para Squires (2009) existem três potenciais formas de abordagem dos eixos de discriminação: “(...) competing
(where separate strands vie à vie against one another), cumulative (where separate strands are understood to
overlap) and combined (where intersectional discrimination is recognized as qualitatively distinct from the sum
of its discriminatory parts)” (p. 497).
38
Aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 5/2011, publicada em Diário da República, 1.ª série, n.º
12 de 18 de janeiro de 2011.
39
Este eixo de discriminação foi reconhecido pela Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, que altera o Código Penal
incluindo agravamentos penais para crimes de ódio motivados pela transfobia. De acordo com a ILGA Portugal,
a inclusão da categoria "identidade de género" no Código Penal era uma reivindicação antiga da ILGA Portugal,
a par da inclusão da mesma categoria no Código do Trabalho e no artigo 13.º (Princípio da Igualdade) da
Constituição da República Portuguesa (Cf. ILGA Portugal em http://ilga-portugal.pt/noticias/441.php).
24
Igualdade de Oportunidades para Todos, em 2007, com a Presidência Portuguesa do Conselho da União
Europeia e, na linha da eliminação da discriminação em função da orientação sexual, a aprovação da
Lei n.º 9/2010, de 31 de maio (2010) que permite o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. A
inclusão da orientação sexual e da identidade de género no discurso político para a igualdade e a não
discriminação veio contribuir para uma maior abertura à abordagem das desigualdades múltiplas.
O V Plano Nacional para a Igualdade de Género, Cidadania e Não discriminação (2014 -2017)40
(V PNI) (CIG, 2013b) dá continuidade aos objetivos e à concretização das medidas previstas nas áreas
de intervenção para a igualdade e a não discriminação em função do género, da orientação sexual e da
identidade de género. Estas medidas enquadram-se nas linhas metodológicas de ação do V PNI que
aponta para a transversalização da dimensão da igualdade de género nas políticas sectoriais e
intersectoriais e a abordagem dos fenómenos de discriminação múltipla.
Para além dos PNI, importa fazer uma breve referência aos Planos para a Integração dos
Imigrantes (PII), da responsabilidade do ACIDI (2007, 2010), que têm adotado, igualmente, uma
perspetiva múltipla na abordagem das desigualdades e discriminações. O II PII (2010-2013) ampliou
consideravelmente o campo das discriminações múltiplas. Ao introduzir uma nova área de intervenção
para o combate à vulnerabilidade sócio-económica dos idosos imigrantes, o II PII passa a contemplar,
para além do género (já contemplado no PII anterior), a interseção de outras categorias de análise, como
a raça, etnia, cor, religião, classe e idade, na abordagem da promoção da igualdade e da não
discriminação dos/as imigrantes e descendentes.
40
Aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 5/2011, publicada em Diário da República, 1.ª série, n.º
12 de 18 de janeiro de 2011.
41
Cf. Alonso (2010, pp. 34-40) sobre o processo de participação da sociedade civil nos órgãos consultivos dos
vários organismos para a igualdade.
25
1.3.1 Políticas e medidas educativas
Ao longo dos últimos trinta anos a legislação portuguesa tem incorporado gradualmente as
políticas educativas europeias42 e de outras organizações internacionais, como a UNESCO, para a
promoção de uma educação orientada para o respeito pelas diferenças entre pessoas e pela eliminação
de comportamentos discriminatórios e de qualquer forma de violência. Os princípios básicos da
democracia, igualdade de oportunidades e não discriminação, defendidos na Constituição da República
Portuguesa, foram transpostos para as normas que regulam o sistema educativo nacional através da Lei
de Bases do Sistema Educativo 43 (LBSE), de 14 de outubro de 1986. Nesse documento reconhece-se
que a educação deve acolher um espírito de democracia no qual os outros indivíduos e as suas ideias
sejam respeitados. A promoção de um diálogo aberto e a livre troca de ideias é um requisito fundamental
quando se pretende formar “cidadãos capazes de julgarem com espírito crítico e criativo o meio social
em que se integram e de se empenharem na sua transformação progressiva” (artigo 2.º, n.º 5). De acordo
com o estipulado no artigo 3.º, o sistema educativo deve ser organizado de modo a “[a]ssegurar o direito
à diferença, mercê do respeito pelas personalidades e pelos projectos individuais da existência, bem
como da consideração e valorização dos diferentes saberes e culturas” (alínea d)) e “[a]ssegurar a
igualdade de oportunidades para ambos os sexos (...)” (alínea j)).
As políticas educativas para a diversidade cultural surgiram no início dos anos de 1990, através
da criação, por iniciativa governamental, do Secretariado Coordenador dos Programas de Educação
Multicultural. O seu objetivo principal consistia em resolver o “problema”45 do insucesso escolar ao
nível do 1º Ciclo do Ensino Básico de alguns grupos sociais, dando particular atenção às crianças de
etnia cigana e cabo-verdianas. Para além da recolha e análise estatística de dados relativos ao (in)sucesso
42
Processo designado por Antunes (2005, p. 126) como “um processo de europeização das políticas
educativas”.
43
Lei n.º 46/86 de 14 de outubro 1986, com alterações introduzidas pela Lei n.º 115/97, de 19 de Setembro de
1997 e pela Lei n.º 49, de 30 de agosto de 2005.
44
A não referência direta à “raça” ou “etnia” enquadra-se, de acordo com Araújo e Pereira (2004) no processo de
“desracialização ilegítima” das políticas educativas (p. 10).
45
De acordo com Casa-Nova (2005) o projeto para uma educação multicultural foi elaborado no sentido de se dar
uma resposta para um “problema” da realidade multicultural, o insucesso escolar, “não se pensando o
multiculturalismo na escola a partir de referenciais positivos de troca de saberes e experiências entre grupos
socioculturais diferenciados” (p. 185). Cf. Santos & Nunes (2004) sobre as críticas ao conceito de
multiculturalidade.
26
escolar da população a frequentar o ensino básico e secundário, este organismo elaborou materiais
didático-pedagógicos para apoio em sala de aula. Uma das iniciativas deste organismo consistiu na
criação e desenvolvimento do “Projecto de Educação Intercultural”46 que envolveu 52 escolas do 1º
Ciclo, maioritariamente da zona de Lisboa, frequentadas, na sua maioria, por estudantes de várias
origens étnicas com um elevado insucesso escolar. Com o objetivo de diminuir o abandono escolar e as
taxas de reprovação foram definidas algumas áreas de intervenção que incluíram a criação de equipas
multidisciplinares, a construção de materiais pedagógicos e a dinamização de ações de formação para
professoras/es na área da educação multi/intercultural. Pode-se considerar que a criação deste organismo
governamental inaugurou uma política educativa sustentada em medidas de discriminação positiva
(Casa-Nova, 2005).
Contudo, um dos fatores que contribuíram para o fracasso desta medida no combate ao insucesso
escolar prende-se com a inexistência de uma abordagem múltipla e interseccional das diferenças
culturais. Embora sem se referir explicitamente à interseccionalidade, Casa-Nova (2005 p.197) tece duas
críticas à forma como a diversidade cultural tem sido abordada nas políticas e práticas educativas: (1) o
tratamento das diferenças culturais a partir de estereótipos; (2) uma linha de atuação baseada na premissa
de que cada etnia é um grupo homogéneo, não se reconhecendo as diferenças intra-grupo, ou seja, o
modo como outros fatores, baseados no género, classe, orientação sexual, etc., configuram diferentes
experiências de discriminação e de desigualdade.
Por sua vez, a educação para a igualdade de género é um projeto nacional em construção que, à
semelhança do que acontece com a educação inter/multicultural, ainda não está implementada no
sistema educativo. Contudo, por iniciativa governamental, os Planos Nacionais para a Igualdade (GIG,
2007, 2011, 2013) têm vindo a definir estratégicas de intervenção para a integração da perspetiva de
46
Despacho n.º 170/ME/93 e 78/ME/95. Este projeto desenvolveu-se entre 1993 e 1997.
47
Despacho n.º 22/SEEI/96, de 19 de junho.
48
Despacho n.º 147/B/ME/96, de 1 de agosto.
27
género na educação, investigação e formação ao longo da vida. Tendo como referência a principal linha
orientadora dos PNI, que consiste na integração da perspetiva de género em todos os domínios da
estrutura social e política (gender mainstreaming), a estratégia política para a integração da perspetiva
de género na educação tem como finalidade eliminar os estereótipos de género, que continuam presentes
nos curricula, nas práticas educativas, na formação de diversos agentes educativos, nos materiais
pedagógicos, na cultura organizacional e nos circuitos comunicacionais escolares (CIG, 2011).
Neste sentido, o III PNI (2007-2010) define quatro objetivos prioritários para a educação: (1)
promover a integração da dimensão de género na formação e qualificação profissional dos/as
responsáveis pela educação e formação; (2) promover a integração da perspetiva de género na educação
formal e não formal; (3) promover os Estudos de Género e a sua integração em todos os domínios; (4)
qualificar a formação em Igualdade de Género. Das medidas concretizadas para a consecução destes
objetivos, destaca-se a elaboração, publicação, divulgação online e distribuição dos Guiões Pedagógicos
sobre Género e Cidadania destinados ao ensino pré-escolar e ao 3º ciclo do ensino básico (Ferreira,
Silveirinha, Portugal, Vieira, Monteiro, Duarte & Lopes, 2011, p. 143).
Os objetivos e as respetivas medidas para a integração do género, como eixo estruturante das
políticas educativas, contempladas no III PNI mantêm-se praticamente inalterados nos Planos que lhe
sucederam (IV e V PNI, este último continua em vigor até 2017). Entretanto foram já publicados e
divulgados os Guiões Pedagógicos sobre Género e Cidadania destinados ao ensino pré-escolar, 1º e 2º
ciclos do ensino básico e ao ensino secundário, ao mesmo tempo que foram realizadas algumas ações
de formação para docentes sobre a utilização desses Guiões.
Embora as orientações gerais para uma política educativa de igualdade de género contemplem
a perspetiva das discriminações múltiplas, como já foi referido anteriormente, as medidas propostas não
têm incluído essa abordagem. A título de exemplo, os Guiões Pedagógicos sobre Género e Cidadania
estão organizados, em termos de conteúdos e metodologias, em função da categoria de género. Por outro
lado, não existe nenhuma medida, nos PNI, no âmbito da área estratégica da educação para a integração
da perspetiva de género e a não discriminação em função da orientação sexual e da identidade de
28
género49.
No que respeita às questões relacionadas com a educação sexual, o artigo 47.º da LBSE (1986),
que define o desenvolvimento curricular do ensino básico, cria uma “área de formação pessoal e social”
que pode ter como componente, entre outras, a educação sexual. De acordo com Santos, Fonseca e
Araújo (2012), a educação sexual passou de uma abordagem centrada nas questões relativas ao
planeamento familiar e à saúde reprodutiva (nas décadas de 1980 e 1990), para uma perspetiva focada
na saúde e no bem-estar individual a partir dos finais da década de 1990 (p. 31). Contribuíram para esta
mudança as Recomendações do CoE, organizações governamentais (particularmente a CIG), projetos
de profissionais da educação e da saúde e as mobilizações feministas e LGBT (Santos, 2006; Santos,
Fonseca & Araújo, 2012).
49
As medidas propostas nesta matéria foram incluidas na área estratégica n.º 11 - Orientação Sexual e Identidadede
de Género, do IV PNI (2011-2013) e na área estratégica n.º 4 - Orientação Sexual e Identidade de Género, do
V PNI (2014-2017).
50
Lei n.º 60/2009 de 6 de agosto, emendada pela Portaria n.º 196-A/2010 de 9 de abril que estabelece as orientações
curriculares e os conteúdos a abordar na Educação Sexual. Note-se que a Educação Sexual é considerada uma
área transversal a todos as áreas curriculares disciplinares e, complementarmente, nas áreas discipinares não
curriculares, mas os conteúdos definidos para a Educação Sexual devem ser trabalhados, obrigatoriamente, no
âmbito da Educação para a Saúde (Silva et al., 2011).
51
A única referência à identidade de género surge nos objetivos e conteúdos da Educação Sexual para o 3.º e 4.º
anos, estabelecidos pela Portaria n.º 196-A/2010 de 9 de abril, onde se recomenda que se aconselhe os/as
alunos/as a “caso se deparem com dúvidas ou problemas de identidade de género, se sintam no direito de pedir
ajuda às pessoas em quem confiam na família ou na escola”. Curiosamente, a abordagem da questão da
identidade sexual deve partir da iniciativa das/os alunas/os e não dos/as professoras/es.
29
Lei n.º 51/2012 de 5 de setembro, relativa ao Estatuto do Aluno e Ética Escolar.
Para além destas oito competências, a Recomendação refere, igualmente, que o pensamento
crítico, criatividade, espírito de iniciativa, resolução de problemas, avaliação de riscos, a tomada de
decisões e a gestão construtiva dos sentimentos são referenciais comuns às competências essenciais.
Este quadro de referência para a aprendizagem ao longo da vida coloca grandes desafios às/aos
professoras/es, principalmente àqueles/as que não tenham adquirido essas competências na formação
inicial. De acordo com o parecer do Conselho Nacional de Educação 52 (CNE, 2013), as demandas de
novas competências podem (e devem) constituir-se como um referencial para a formação contínua de
professoras/es. Neste sentido, é pertinente perceber, num primeiro momento, se o quadro jurídico que
define a política de formação contínua e o perfil de competências das/os professoras/es do ensino básico
e secundário contemplam, de alguma forma, as orientações propostas pelo quadro de referência para a
aprendizagem ao longo da vida.
Embora a apreciação global do novo ordenamento jurídico de formação contínua possa ser
considerada positiva, verificam-se, porém, algumas lacunas, nomeadamente, “a ambiguidade de que se
reveste o conceito de formação pessoal e das suas relações com a formação profissional” (Estrela, 2001,
p. 37). Se no preâmbulo do documento legislativo (Decreto-Lei n.º 207/96) a formação contínua
contempla quer a vertente pessoal, quer a vertente profissional, ao nível da definição dos objetivos da
formação apenas é considerado o aperfeiçoamento das competências profissionais, quer ao nível da
comunidade escolar, quer ao nível da sala de aula (artigo 3.º, alínea b)).
A indefinição do conceito de formação pessoal, assim como a sua total omissão na definição
dos objetivos da formação contínua, é mantida e reafirmada no Decreto-Lei n.º 15/2007. A atualização
e aperfeiçoamento dos conhecimentos, capacidades e competências de desenvolvimento pessoal e
52
Cf. Recomendação n.º 4/2013 de 24 de abril, sobre Formação Contínua de Educadores de Infância e Professores
dos Ensinos Básico e Secundário.
31
profissional são considerados deveres gerais dos/as docentes (artigo 10.º, alínea d)), no entanto, a
vertente pessoal não é contemplada nos objetivos da formação contínua. Reafirma-se, pelo contrário,
que “a formação deve ser planeada de forma a promover o desenvolvimento das competências
profissionais do docente” (artigo 15.º, n.º 2). Isto explica, por um lado, que a formação pessoal continue
a não possuir uma definição específica, em termos de prioridades, conteúdos e objetivos e, por outro, a
limitação, daí decorrente, da oferta de formação nessa área (Estrela, 2001).
Acresce que, nos últimos anos, as orientações oficiais têm vindo a acentuar a necessidade de
valorizar a atividade letiva e criar condições para que as escolas e as professoras/es concentrem as suas
atividades no ensino e na aprendizagem (cf. Preâmbulo do Decreto Regulamentar n.º 26/2012, de 21 de
fevereiro). Esta linha de orientação da prática educativa implica uma formação contínua essencialmente
voltada para o desenvolvimento profissional, isto é, “voltada para as dimensões científicas e técnicas e
as competências didáticas relativas a certas disciplinas e componentes curriculares em prejuízo de
outras” (CNE, 2013, p. 15762), como, por exemplo, a educação para os direitos humanos e não
discriminação.
Importa fazer aqui uma análise mais detalhada dos enunciados que constam do perfil de
desempenho profissional que remetem, direta ou indiretamente, para as questões da igualdade de direitos
e da não discriminação. Assim, no âmbito do disposto para a dimensão profissional, social e ética, o/a
professor/a “[p]romove a qualidade dos contextos de inserção do processo educativo, de modo a garantir
o bem-estar dos alunos e o desenvolvimento de todas as componentes da sua identidade individual e
32
cultural (ponto 2, alínea d), ênfase minha) e “[i]dentifica ponderadamente e respeita as diferenças
culturais e pessoais dos alunos e demais membros da comunidade educativa, valorizando os diferentes
saberes e culturas e combatendo processos de exclusão e discriminação (ponto 2, alínea e), ênfase
minha).
Repare-se que, embora haja uma referência às componentes da “identidade individual e cultural”
dos/as alunos/as, que os/as professores/as devem desenvolver, o conceito de “identidade” surge aqui
num sentido estático e essencialista, como uma entidade que existe a priori (e que deve, de acordo com
as normas, atualizar-se ou integrar-se) e não como um ato performativo, no sentido de Judith Butler
(1988). Também não fica claro o que se entende por “diferenças culturais” e “diferentes saberes e
culturas” e se os “processos de exclusão e discriminação” que os/as professores/as devem combater se
referem apenas a questões de ordem cultural.
Por sua vez, o último relatório sobre Portugal da Comissão Europeia contra o Racismo e a
Intolerância (ECRI, 2013) refere que, embora a taxa de abandono escolar dos/as alunos/as dos meios
33
imigrantes tenha recuado em relação a 2006, ainda continua a ser mais elevada do que a dos/as alunos/as
da população maioritária. Esta situação, de acordo com a ECRI, prende-se com o facto de as escolas não
terem um projeto pedagógico que inclua a diversidade cultural. Para além disso, os/as docentes não
possuem recursos que lhes permitam abordar as questões interculturais, nem estão preparados/as para
intervir junto de crianças ou adolescentes de origens étnicas diferentes.
Ao nível dos Planos Nacionais, as medidas educativas apresentadas no decurso do II Plano para
a Integração dos Imigrantes 2010-2013 (II PII) contemplavam o “[r]eforço da formação para o diálogo
intercultural na formação contínua docente” (medida 23, pp. 18-19) e a “[d]ivulgação dos recursos
pedagógicos interculturais junto das escolas (...) de suporte à educação intercultural e anti-racista”
(medida 29, p. 21). No entanto, de acordo com a ECRI (2013), nos últimos anos não houve um
investimento na formação contínua dos/as docentes no que respeita à educação intercultural,
nomeadamente, nas questões do racismo e da xenofobia.
34
discriminação 2014-2017 (V PNI) (CIG, 2013b), em matéria da discriminação em função da orientação
sexual e identidade de género, pretendem dar continuidade às medidas apresentadas no Plano anterior e
reforçar a formação inicial e contínua de profissionais da área da saúde, ensino, segurança social,
comunicação social, bem como as forças de segurança, as Forças Armadas e as magistraturas. No
entanto, das cinco medidas propostas no V PNI apenas uma (medida 52) visa “sensibilizar profissionais
e especialistas de áreas estratégicas para as questões da orientação sexual e identidade de género”,
através da realização de cinco ações de formação por ano em cada uma das áreas de intervenção: escolas,
hospitais, forças de segurança, forças armadas, tribunais, finanças e comunicação social.
30. Promover acções de formação sobre igualdade de género, incluindo as questões da violência de género
e do tráfico de seres humano (...).
31. Realizar o aperfeiçoamento, certificação e aplicação de referenciais de formação de formadores(as) e
de formação inicial e contínua em igualdade de género, bem como a certificação de aptidão profissional
de formadores(as) em igualdade de género.
32. Criar uma bolsa de formadoras(es) e peritos(as) em igualdade de género e não discriminação que
possam apoiar na formação de públicos estratégicos bem como no desenvolvimento, implementação e
avaliação de programas e projectos neste âmbito.
33. Produzir, divulgar e acompanhar a aplicação de instrumentos que promovam a igualdade de género e
a cidadania junto dos(as) alunos(as):
a) Implementar os guiões para igualdade no pré -escolar e 3.º ciclo;
b) Elaborar e implementar os guiões para os 1.º e 2.º ciclo.
34. Fomentar a incorporação do conhecimento científico produzido nos domínios dos estudos de género
e dos estudos sobre as mulheres nos currículos dos cursos de graduação e de pós-graduação do ensino
superior, no actual quadro do Acordo de Bolonha (p. 307).
Três destas medidas (30, 31, 32) são vocacionadas, respetivamente, para a área de formação,
certificação de competências e criação de uma bolsa de formadoras/es o que mostra, claramente, a
necessidade de colmatar um défice de formação nesta área. No entanto, de acordo com o Relatório
Intercalar do IV PNI (em seguida denominado Relatório) (CIG, 2012), apenas a medida 30 tinha sido
executada até à data de publicação do Relatório, através da realização de ações acreditadas para
profissionais de educação (6 ações, abrangendo 84 docentes, 71 mulheres e 13 homens), magistrados/as
e outros profissionais que trabalham na área da violência do género e doméstica e do tráfico humano de
pessoas (CIG, 2012, p. 15). Em relação a esta medida, o Relatório Final de Execução do IV PNI (GIG,
2013a) dá conta que o Ministério de Educação e Ciência, em articulação com a GIG, promoveu um
conjunto de ações de formação dirigido a docentes com o objetivo de “sensibilizar para o combate aos
estereótipos e para integração da dimensão de género na educação, em meio escolar” (p. 29).
35
Estas oficinas de formação 53, num total de 10, tinham como referência teórica e metodológica
os quatro Guiões Educação Género e Cidadania da autoria da GIG, contribuindo, assim, para a
divulgação e utilização dos mesmos em ambiente escolar. Em relação à medida 31, a CIG deu início ao
processo de certificação de pessoas e materiais em Igualdade de Género aguardando o parecer jurídico
do Centro Jurídico da Presidência do Conselho de Ministros (CEJUR). Por último, importa referir que
no âmbito da medida 32, foi criada uma bolsa de formadoras/es em igualdade de género e não
discriminação para apoiar ações de formação para formadoras/es, disponível online no site da GIG
(p. 30).
Do que foi exposto, constata-se que existe um défice de programas de formação contínua de
professas/es que abordem as temáticas do género, raça e etnia e orientação sexual e identidade de género
numa perspetiva de direitos humanos e não discriminação. A oferta de formação nestas matérias, assim
como a produção e distribuição de materiais didáticos, tem sido promovida de forma avulsa por
organizações não governamentais nacionais, destacando-se a Associação de Apoio à Vítima (APAV),
Ilga-Portugal e a Rede ex aequo e por organismos públicos governamentais (ACM e GIG). A título de
exemplo, refira-se o Projeto Educação LGBT54 da Rede ex aequo, que visa uma intervenção educacional
através da disseminação de informação junto de professoras/es, formadores/as de professores/as e
alunas/os de todos os ciclos de ensino, incluindo o ensino universitário, sobre os temas da
homossexualidade, bissexualidade e transgenerismo. Este projeto utiliza materiais pedagógicos
53
Estiveram envolvidos 10 agrupamentos de escolas (3 da região norte, 2 de região centro, 3 da região LVT, 1 da
região Alentejo e 1 da região Algarve). Inscreveram-se 196 docentes de todos os níveis de educação e ensino
(168 mulheres e 28 homens) e reuniram condições de certificação 162 docentes (138 mulheres e 24 homens)
(GIG, 2013, p. 29).
54
O Projeto Educação LGBT foi apoiado financeiramente pela Fundação Europeia da Juventude do Conselho da
Europa, entre janeiro a setembro de 2005, como projeto-piloto.
36
produzidos pela própria Rede ex aequo 55.
No âmbito destas questões, A ILGA Portugal é uma associação que tem contribuído para a
promoção de “uma educação para a diversidade, igualdade e tolerância através da prevenção de acções
discriminatórias através da informação, do esforço contínuo de esclarecimento público e combate à má
informação”56. Entre outros projetos, destaca-se o projeto de intervenção Porto Arco-Íris57 que tem como
objetivo educar para a não discriminação com base na orientação sexual e na identidade de género na
região do Porto, através da realização de ações de sensibilização e atividades de caráter formativo e
cultural. Estas ações são dirigidas, quer à população em geral, quer a públicos mais específicos, como,
por exemplo, a comunidade educativa, técnicas/os educativas/os de saúde, etc. O Secretariado
Entreculturas58 também tem organizado algumas atividades de sensibilização para a educação
multicultural (Cardoso, 1996). Atualmente integrado no ACM, o Secretariado Entreculturas continua a
produzir e a divulgar documentação pedagógica para as escolas (ECRI, 2013, p. 41).
Apesar das lacunas, referidas acima, quer em termos do enquadramento legal da formação
contínua de professoras/es, quer em termos da elaboração e concretização de programas e ações de
formação no terreno, o facto de já existirem orientações e recomendações políticas para a inclusão da
temática das desigualdades múltiplas e da perspetiva da interseccionalidade nos currículos e nas práticas
educativas, pode constituir-se como um novo referencial de pesquisa em educação, quer ao nível das
políticas educativas e das suas práticas, quer ao nível da formação contínua de professores/as.
A nova agenda política do Ministério da Educação (ME, 2017a), em linha com outros
55
Perguntas e respostas sobre orientação sexual e identidade de género (2011); Educar para a diversidade: Um
guia para professores sobre orientação sexual e igualdade de género (2009).
56
Página eletrónica da ILGA Portugal. Recuperado de http://ilga-portugal.pt/actividades/educacao.php
57
Página eletrónica da ILGA Portugal. http://ilga-portugal.pt/actividades/centro-lgbt.php
58
O Secretariado Entreculturas, foi criado em 1991 para ajudar as escolas a acolher um número crescente de alunos
estrangeiros e a fazer face à diversidade social, cultural e étnica.
37
instrumentos internacionais e regionais, apresenta-se como uma oportunidade para implementar, de
forma integrada, um conjunto de normas legislativas e recomendações já existentes, que garantam uma
educação para a igualdade e a não discriminação através de uma abordagem das desigualdades sociais
(re)produzidas pelo racismo, sexismo e heterossexismo institucionais, a partir de uma perspetiva
interseccional. O projeto de experiência pedagógica de autonomia e flexibilidade curricular dos ensinos
básico e secundário para o ano escolar de 2017-2018 (ME, 2017b) tem como objetivo operacionalizar o
novo perfil de competências do aluno à saída da escolaridade obrigatória (ME, 2017a). O conjunto de
competências inscritas nas propostas do novo perfil da/o aluna/o abarca competências transversais e
transdisciplinares que mobilizam um conjunto vasto de conhecimentos nas áreas das ciências e
tecnologias, das ciências sociais e humanas e das artes, que possa ser integrado na prática profissional e
social e do bem-estar dos/as alunos/as (ME, 2017a). Para além destas competências, reforçam-se as
competências de cidadania inscritas na LBSE (1986), no sentido de promover a participação ativa das/os
alunas/os em projetos que promovam e garantam a construção de sociedades sem racismo, homofobia,
sexismo, entre outros eixos de diferenciação e desigualdade, que estruturam as nossas comunidades
atuais.
Neste sentido, é criada a área curricular de “Cidadania e Desenvolvimento” para todos os ciclos
de ensino no ano letivo de 2017-2018, que integra as matrizes curriculares do ensino básico e secundário
inscritas na área das Ciências Sociais e Humanas, de acordo com o Despacho n.º 5908/2017, de 5 de
julho (ME, 2017b). A Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (GTEC, 2017) foi lançada no
dia 15 de setembro de 2017 pelo Ministério da Educação. Para além de algumas considerações gerais
sobre a implementação do projeto de autonomia e flexibilidade curricular e sobre os conteúdos gerais e
respetivos objetivos da área curricular da Cidadania e Desenvolvimento relativos aos vários níveis de
ensino, o documento é omisso em relação à estratégia de formação de professores/as para abordar os
conteúdos propostos.
Apesar das recomendações, nacionais e internacionais, que têm sido feitas a Portugal no sentido
de promover políticas de formação de professores/as na área dos direitos humanos e da não
discriminação em função de categorias sociais de género, raça, etnia, orientação sexual, entre outras, o
Ministério da Educação, em vésperas de se iniciar o ano letivo 2017-2018, apresenta como estratégia de
formação de professores/as o autodidatismo, através da consulta de referenciais que têm vindo a ser
produzidos pela Direção-Geral da Educação, em colaboração com outras entidades públicas e da
sociedade civil (GTEC, 2017, p. 3). Para além da complexidade dos temas, e tomando como referência
só o 1º Grupo da organização dos diferentes domínios da Educação para a Cidadania, que incluem temas
tão vastos como, Direitos Humanos; Igualdade de Género; Interculturalidade; Desenvolvimento
Sustentável; Educação Ambiental; Saúde, coloca-se, ainda, a questão da carga horária dos/as
professores/as que dificulta, ou impossibilita essa pesquisa pessoal autodidata ou autoformação.
Do que foi exposto, conclui-se que, embora haja um referencial constituído por normas
38
legislativas, internacionais e nacionais, para a formulação e implementação de políticas de
professoras/es que promovam uma educação para os direitos humanos e a não discriminação, incluindo
a perspetiva interseccional, continua a existir pouco investimento nessa área, mesmo quando, como é o
caso do estado da educação atual, se propõem projetos educativos inovadores que reconhecem a
importância, no presente contexto, da educação para a cidadania. Neste sentido, a presente investigação
tem como objetivo, por um lado, contribuir para preencher essa lacuna na formação de professoras/es e,
por outro, construir um referencial de formação a partir dos conhecimentos desenvolvidos no âmbito da
oficina da formação de professoras/es, que possa ser utilizado e/ou adaptado por outros/as
professores/as.
39
40
CAPÍTULO II – PARADIGMA DA INTERSECCIONALIDADE E MODELOS DE
FORMAÇÃO DE PROFESSORAS/ES
Introdução
Este Capítulo tem como objetivo enquadrar a presente investigação, quer nas teorias e nos
respetivos conceitos que a sustentam, quer nos modelos de formação de professoras/es que a
contextualizam. Paralelamente, é feita a revisão dos estudos que têm sido realizados sobre o tema.
Embora o paradigma59 da interseccionalidade se constitua como principal referência teórica neste
trabalho, considerou-se necessário abordar as teorias feministas e a teoria crítica da raça que estão na
origem, histórica e epistemológica, do paradigma da interseccionalidade.
O termo “interseccionalidade” foi introduzido pela jurista Kimberlé Crenshaw (1989,1991) nos
finais da década de 1980, para mostrar o impacto das várias formas de interação entre raça e género na
configuração da experiência de discriminação no emprego e de violência vivida pelas mulheres negras 60
e “mulheres de cor”61 nos Estados Unidos. A novidade do termo “interseccionalidade” não anula, no
entanto, a existência, ao longo das décadas de 1970 e 1980, de uma ampla discussão e teorização sobre
as experiências do racismo e do heterossexismo vivenciadas por “mulheres negras”, “mulheres de cor”,
“chicanas” e “mulheres lésbicas”, como ilustram as diversas antologias62 publicadas nos Estados Unidos
e em Inglaterra naquele período (Anthias & Yuval-Davis, 1983; Mayorga, Coura, Miralles & Cunha,
2013; Santos, M. C. M., 1995).
De acordo com Crenshaw (1991), “[b]ecause women of color experience racism in ways not
always the same as those experienced by men of color and sexism in ways not always parallel to
experiences of white women, antiracism and feminism are limited, even on their own terms” (p. 1252).
Enquanto as teorias feministas abordavam as desigualdades entre os homens e as mulheres do ponto de
vista do género, as teorias antirracistas abordavam a desigualdade entre brancos/as e negros/as do ponto
59
Não existe um consenso em relação à classificação da abordagem interseccional. A interseccionalidade é referida
na literatura como uma “teoria” (Davis, 2008), “a heuristic devise” (Anthias, 2013) ou um “paradigma”
(Crenshaw, 1989; Hancock, 2007b). Neste estudo optou-se pela designação de “paradigma”, tal como é
definido na filosofia da ciência, “a set of basic beliefs or a worldview that precedes any questions of empirical
investigation” (Hancock, 2007b, p. 64).
60
O termo “Negra/o” (Black) é utilizado ao longo deste trabalho, quer como uma auto-definição política de um
grupo de mulheres, quer como uma categoria de construção e reprodução de desigualdades sociais.
61
Nos Estados Unidos, este termo é utilizado para designar diferentes grupos identitários de mulheres que não
pertencem à categoria “anglo-americana”, nomeadamente, as mulheres negras, indígenas e de origem asiática,
latino-americana e africana (Santos, 1995).
62
Borderlands: The Mew mestiza, de Gloria Anzaldúa (1987/2007) é uma das obras mais conhecidas a teorizar,
através de diversos recursos narrativos como a autobiografia, poesia, história e mitologia, a complexidade e a
contradição da experiência simultânea de múltiplas formas de opressão e de privilégio. Uma outra obra de
referência é The Straight Mind and other Essays, de Monique Wittig (1992). Nesse conjunto de ensaios, a
autora propõe um novo sujeito do feminismo - “a lésbica” - como uma identidade política (e não uma identidade
constituída somente a partir da sua orientação sexual), cuja finalidade é acabar com as relações heterossexuais
compulsórias (Mayorga et al., 2013).
41
de vista da raça. Na interseção destas duas teorias situam-se as experiências das mulheres negras e de
cor, que, durante décadas, foram ignoradas pelos discursos académicos, políticos e sociais.
Falar de teorias feministas, no plural, implica reconhecer a pluralidade de discursos, umas vezes
antagónicos, outras complementares, que caracterizam as várias correntes do pensamento feminista
(Cameron, 1997). Desde os seus primórdios, no século XIX, considerada a primeira vaga feminista 63,
até aos nossos dias, as teóricas e ativistas feministas sempre se posicionaram em campos teóricos e
políticos diferenciados e controversos (Flax, 1987). Apesar das divergências e controvérsias entre as
ideologias e as práticas feministas, Flax (1987) considera que existe um objetivo comum a todas as
teorias feministas que consiste em “(…) to analyze how we think, or do not think, or avoid thinking
about gender” (p. 626). De acordo com a autora, o que distingue e configura as correntes do pensamento
feminista, principalmente a partir da década de 1970 (designado feminismo da segunda vaga), é a forma
como é abordada a distinção entre “sexo” e “género” ou, como questionam algumas teóricas feministas
(Cameron, 1997; Wittig, 1978/1992), se é útil recorrer a essas categorias para analisar as relações de
género. Um dos avanços mais importantes das teorias feministas, como reconhece Flax (1987), foi, sem
dúvida, a problematização das relações de género.
A distinção entre “sexo”, como fenómeno biológico, e “género” como construção social, foi
impulsionada a partir da constatação de Simone de Beauvoir (1949), segundo a qual, a “mulher” (ou o
“homem”) em que nos tornamos é definida pelas normas da sociedade em que nos inserimos (Cameron,
1997; Louro, 2001, 2007). No entanto, a crítica ao determinismo biológico já estava presente no
pensamento de algumas autoras, como Mary Wollstonecraft em A Vindication of the Rigths of Woman
(1792), Margaret Mead em Sex and Temperament in Three Primitive Societies (1935) e Simone de
Beauvoir, em Le deuxième Sexe, (1949) (Mayorga et al., 2013).
63
Esta designação está consagrada na literatura feminista. De acordo com Kaplan (1992, citada por Nogueira,
2001a), é possível identificar três vagas no movimento feminista: a primeira, com início em meados do século
XIX; a segunda, situada entre as décadas de 1960 e 1980 do século XX; e o feminismo de terceira vaga, a partir
de meados da década de 1980. Esta classificação por “vagas” tem frequentemente ignorado, por um lado, as
(des)continuidades entre teorias da segunda vaga e da terceira vaga e, por outro, tem criado uma imagem
homogeneizada de conhecimento, que subestima as diferenças e as divergências entre as feministas de cada
uma das vagas (Fernandes, 2010). A utilização desta designação no presente trabalho visa um enquadramento
histórico das teorias e dos movimentos feministas, reconhecendo as críticas que são feitas a este modelo de
classificação.
42
Nos finais da década de 1960, nos Estados Unidos e na Europa ocidental, os movimentos
feministas reemergentes vão apoiar-se na separação entre “sexo” e “género” para compreender e
contestar as desigualdades sociais entre homens e mulheres. Situar o género nos vários contextos
culturais tornou-se o prinicipal meio de desafiar a suposta inevitabilidade da subordinação das mulheres.
É neste contexto que o conceito de género emerge no discurso das ciências sociais a partir da publicação,
em 1971, da obra de Ann Oakley64, intitulada Sex, Gender and Society (Amâncio, 2003). Para Oakley,
o termo “sexo” designa as diferenças biológicas entre mulheres e homens e “género” refere-se à
classificação social masculino/feminino. O conceito de género, proposto por Oakley, abrange todas as
diferenças estabelecidas entre mulheres e homens no âmbito da psicologia, ao nível das diferenças
individuais, e no âmbito da sociologia e da antropologia, ao nível dos papéis sociais e das representações
culturais (Delphy, 1993). A emergência do termo “género” nas ciências sociais65 decorre, por um lado,
da necessidade de rejeitar o determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou
“diferença sexual” e, por outro, de afirmar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas
no sexo. De acordo com Amâncio (2003), o género possibilitava a análise das “condições históricas e
sociais de produção das crenças e dos saberes sobre os sexos e de legitimação das divisões sociais
baseadas no sexo” (p. 687).
No entanto, ao mesmo tempo que o ”género” contribuía para um aceso debate teórico sobre os
fatores determinantes da relação entre os sexos e o sistema patriarcal de opressão das mulheres, as
“feministas negras” (black feminist) e as “feministas radicais lésbicas” questionavam o modo como essa
categoria essencializava e universalizava o conceito de “mulher” e o de “heterossexualidade”
64
Como a própria autora reconhece, a primeira definição de género surgiu no âmbito das ciências médicas
(Amâncio, 2003) na obra de Robert Stoller, Sex and Gender: On the Development of Masculinity and
Femininity, publicada em 1968 (Glover & Kaplan, 2000). Partindo da obra The Psychogenesis of a Case of
Homosexuality in a Woman’ (1920), onde Freud argumenta que os atributos sexuais, as atitudes e os objetos de
desejo de um indivíduo são variáveis independentes umas das outras (Glove & Kaplan, 2000), Stoller utilizou
o termo “género” para se referir às “tremendous areas of behaviour, feelings, thoughts, and fantasies that are
related to the sexes and yet do not have primarily biological connotations” (Stoller, 1968, p. ix, cit. por Glover
& Kaplan, 2000, p. XX). A distinção entre sexo (estrutura biológica) e género (estrutura cultural) proposta por
Stoller foi apropriada pelo movimento feminista (norte-americano e europeu), nos finais da década de 1960,
para contestar as desigualdades sociais das mulheres a partir de uma crítica à dominação masculina (Glover &
Kaplan, 2000).
65
Em Portugal, o interesse das ciências sociais pelas questões do género, ao contrário do que aconteceu com outros
objetos de estudo, surge apenas na década de 1980. Amâncio (2003, pp. 691-693) aponta vários fatores que
poderão ter contribuído para esta particularidade: (1) o desaparecimento da experiência do feminismo da I
República, devido, por um lado, à exaltação de um modelo feminino passivo e familista por parte da ditadura
e, por outro lado, à mobilização das ativistas feministas para a luta contra a ditadura, teve como consequência
a invisibilidade das organizações de mulheres que foram surgindo na década de 1970; (2) o baixo nível de
instrução das mulheres ao longo do século XX e, ao contrário do que aconteceu noutras universidades
estrangeiras, que se constituiram como espaços de mobilização política das mulheres, em Portugal, a população
universitária foi essencialmente mobilizada para a luta contra a ditadura e a guerra colonial; (3) o
desenvolvimento tardio das ciências sociais em Portugal e a crise financeira das instituições universitárias que
impediu a investigação científica até à década de 1990, principalmente em áreas consideradas não prioritárias
como as questões do género.
43
invisibilizando as diferenças, as hierarquias e as desigualdades sociais existentes entre as próprias
mulheres (Mayorga et al., 2013).
44
Ao recusar o género como categoria social de análise da desigualdade entre os sexos (e o próprio
conceito de “sexo”, no caso de Monique Wittig), as feministas negras norte-americanas e as feministas
radicais lésbicas francesas assumiam uma postura crítica em relação ao discurso feminista hegemónico,
protagonizado pelas feministas “brancas”, heterossexuais e de classe média que lideravam, quer a
agenda política feminista, quer o meio académico (ainda bastante minoritáro) dos Estudos de Mulheres
(Women’s Studies).
Apesar das críticas tecidas ao conceito de género apresentadas acima, este conceito adquire um
alcance e uma aceitação mais ampla na década de 1980, legitimando a proliferação de cursos e
programas sobre género na academia (Gender Studies) e a participação das feministas nas instituições
governamentais. De acordo com a historiadora Joan Scott (1986), o uso do termo “género” constituiu
um dos aspetos de legitimidade académica para os estudos feministas da década de 1980. Na sua aceção
mais simples, o “género” é equivalente a “mulheres”, denunciando uma conotação menos politizada e
mais objetiva do que “mulheres”. Além disso, o caráter relacional do “género” sugere que o estudo das
mulheres implica, necessariamente, o estudo dos homens66 (Scott, 1986/1995, p. 75). Neste sentido, o
“género” passa a ser utilizado para designar as relações sociais entre os sexos, rejeitando-se assim
qualquer explicação biológica para justificar as diversas formas de opressão e de subordinação da
mulher.
Por sua vez, as teorias feministas hegemónicas confrontavam-se com as críticas dos filósofos
pós-modernos que questionavam a suposta universalidade da ciência e dos seus pressupostos (Santos,
M. C. M., 1995, p. 105). A crítica pós-moderna assenta numa lógica desconstrutiva dos princípios
herdados do Iluminismo: verdade, conhecimento, poder, sujeito e linguagem (Flax, 1987). Pensar o
género numa perspetiva desconstrutivista implica o desvio das causalidades gerais e universais e das
categorias totalitárias de “mulher” e “homem”, a partir de uma análise dos significados culturais das
66
Além do mais, permitiu a entrada, cada vez mais crescente, de estudos sobre os homens na academia (estudos
das masculinidades) com uma leitura que, de forma recorrente, escapa a uma perspetiva feminista, permitindo
afirmar que, no final da década de 1990, o género passe a ser interpretado como masculinidade em campos de
conhecimento como a antropologia e a psicologia social, por exemplo. (Mayorga et al., 2013, p. 469).
67
Nos Estados Unidos, as “mulheres de cor” produziram “teorias feministas marginais baseadas em múltiplas
formas de opressão que não se reduzem à questão de género” (Santos, M. C. M., 1995, p. 109).
45
relações de poder que se estabelecem entre os sujeitos. Neste sentido, a direção da causalidade
sexo/género é invertida, uma vez que não é o género que constrói o sexo, “mas é, ele próprio, um efeito
de relações de poder, da acção das instituições, das práticas e dos discursos que regulam as suas formas
e significados” (Amâncio, 2003, p. 706).
Uma das contribuições mais importantes para a teorização do género (como categoria de análise
social e política) foi a da historiadora Joan Scott num artigo publicado em 1986, intitulado “Gender: A
usefull category of historial analysis”. Influenciada pelas teorias de Michel Foucault, a autora interroga-
se sobre o modo como determinado conhecimento sobre a naturalização da diferença sexual foi
construído e o modo como e quando um “regime of truth” foi substituido por outro (Scott, 1986/1995,
p. 9). Como resultado dessa interrogação, a autora formula a sua definição de género a partir de duas
proposições interrelacionadas, (1) “o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas
nas diferenças percebidas entre os sexos” e (2) “o gênero é uma forma primária de dar significado às
relações de poder”. (Scott, 1986/1995, p. 86).
A primeira proposição contém quatro elementos que não podem ser separados: (1) os símbolos
sociais e culturais que expressam representações (normativas e contraditórias), como, por exemplo, Eva
e Maria como símbolos da mulher no cristianismo ocidental; (2) os conceitos normativos que traduzem
o significado dos símbolos reafirmando de forma categórica o significado da mulher e do homem dentro
de uma estrutura de oposição binária fixa. Estes conceitos estão presentes nos discursos religiosos,
educativos, científicos, políticos ou jurídicos. A hegemonia destes discursos não se deve à falta de
contestação dos mesmos, mas à rejeição e/ou repressão de outros discursos alternativos. Neste sentido,
o desafio da nova pesquisa histórica (e de outras ciências sociais), de acordo com Scott (1986/1995),
consiste em desconstruir a “noção de fixidez” que conduz a “uma permanência intemporal na
representação binária do género” (p. 86); (3) as concepções políticas e as referências às instituições e à
organização social são fundamentais para uma análise da constituição e mutabilidade das relações de
género. Scott propõe uma visão mais ampla do uso do género que não se limite ao espaço familiar, mas
que abarque outros campos como o mercado de trabalho, a educação e o sistema político; (4) a
construção da identidade subjetiva (individual ou coletiva) no contexto histórico e específico das
organizações e representações sociais. Contudo, estes quatro elementos não operam em simultâneo,
embora estejam estritamente relacionados. Compreender o modo como esses aspetos se relacionam é,
para a autora, um desafio para a própria pesquisa histórica 68.
A segunda proposição da definição de género pode ser entendida como uma consequência lógica
da primeira, no sentido em que se admitimos que o conceito de género, enquanto um conjunto objetivo
de referências, é um elemento estruturante da organização material e simbólica da vida social e, uma
68
De acordo com Scott (1988), estes quatro aspetos podem ser instrumentos de análise de outros processos sociais
como, por exemplo, raça, classe e etnicidade.
46
vez que essas referências estruturam distribuições de poder, o género é uma forma de dar significado a
essas relações de poder. A definição de género proposta por Scott permite compreender a relação de
reciprocidade entre género e sociedade e os vários contextos específicos pelos quais “a política69 constrói
o gênero e o gênero constrói a política” (Scott, 1986/1995, p. 87).
A definição de género apresentada por Scott contribuiu para uma visão mais histórica e
politizada das relações de género. Enquanto categoria de análise histórica, social e política, o género é
um convite a uma reflexão crítica sobre o modo como “the meanings of sexed bodies are produced,
deployed, and changed” (Scott, 2008, p. 1423). Para Scott, o sexo e o género têm de ser compreendidos
como um sistema de significados culturais e não como um sistema binário (sexo/género) que atribui um
significado biológico ao sexo e um significado cultural ao género. Assim, as categorias de “homem” e
“mulher” passam de meros termos descritivos a categorias concetuais de análise. Neste sentido, a
validade do género como categoria histórica de análise implica um questionamento aberto ao modo
como os significados de “sexo”, “corpo”, “diferença sexual”, “papéis de género”, entre outros, foram
estabelecidos, o que é que significam e em que contextos.
Na linha de Joan Scott (1986), a filósofa e feminista Judith Butler, publica, dois anos mais tarde,
“Performative acts and gender constitution: An essay in Phenomenology and Feminist Theory” (1988).
Neste artigo, Butler começa a desenvolver os seus argumentos sobre a performatividade do género70,
mostrando que o que chamamos de identidade de género é uma performance construída e constituída
através de “stylized repetition of acts” (p. 520). Pelo facto de estes “atos” serem protagonizados por
vários movimentos, gestos e encenações do corpo, cria-se a ilusão de que existe um “gendered self”,
uma substância ou entidade estável (a priori), a partir do qual os “atos” são produzidos. Não existindo
uma substância que pré-exista à performatividade do género, a sua possibilidade de transformação reside
na arbitrariedade das relações que se estabelecem entre esses “atos”, na possibilidade de diferentes
formas de repetição dos mesmos e na transgressão ou rompimento do estilo de repetição dessas formas.
Nesta abordagem de género, proposta por Butler (1988), está explícita a crítica a uma conceção
de género como um saber que se impõe sobre um corpo sexuado. A distinção entre sexo e género,
proposta por algumas feministas nas décadas de 1970 e 1980 para ultrapassar e desafiar o determinismo
biológico é, na perspetiva de Butler, inadequada para compreender a performatividade do género. Butler
apoia-se no pensamento de Michel Foucault e nas teorias de Jacques Lacan na sua crítica às categorias
identitárias de género, sexo, corpo e (hetero)sexualidade (Jagger, 2008).
Butler (1988) reconhece que entender o sexo, o género e a própria homossexualidade, como
69
“Política” significa, nesta frase, muito mais do que relações de poder. O termo refere-se a ao modo como, por
exemplo, noções de alma, universal, humano, razão, imaginação, ciência e desejo definem o que é ser mulher
e ser homem (Scott, 2008, p. 1425).
47
produtos culturais que se “naturalizaram” ao longo do tempo já tinha sido objeto de análise de outros/as
pensadores/as de várias áreas das ciências sociais. No entanto, como refere a autora, aquelas teorias não
delimitam e descrevem a forma como a sexualidade e os respetivos construtos sexuais são
(re)produzidos e mantidos no campo dos corpos (p. 525). Para a autora, o corpo “becomes its gender”
através de uma série de “atos” historicamente sedimentados (p. 523). Neste sentido, o que é considerado
como “sexo natural” e “mulher real” são apenas ficções culturais que resultam da sedimentação das
normas de género.
A performance do género é regulada pelas normas da sociedade, o que a define como uma
“estratégia de sobrevivência” numa cultura que tende a “humanizar” os individuos e a punir aqueles/as
que “fail to do their gender right” (p. 522). Por isso, os “atos” são uma experência partilhada e uma ação
coletiva. Embora haja espaço para uma certa individualidade de fazer o seu próprio género, Butler
sublinha que “one does it in accord with certain sanctions and proscriptions, is clearly not a fully
individual matter” (p. 525). A comparação entre a performance teatral e a performance do género
clarifica a natureza e a ação do “corpo generificado” em relação às normas culturais: “[j]ust as a script
may be enacted in various ways, and just as the play requires both text and interpretation, so the gendered
body acts its part in a culturally restricted corporeal space and enacts interpretations within the confines
of already existing directives” (p. 526).
Ao afirmar que o género só tem existência pela sua própria performatividade, Butler rejeita
qualquer teoria que defina o género como uma substância, espiritual ou psicológica, relacionada com o
sexo biológico. Se o género é performativo, então não existe nenhuma identidade a priori de género que
possibilite avaliar um “ato” ou um atributo do género. Logo, não existe um género verdadeiro ou falso,
ou atos de género reais ou falsos. Consequentemente, o género também não é um “papel” (role) que
expresse ou esconda um self interior. A identidade de género forma-se, de acordo com Butler, através do
discurso social e “the ascription of interiority is itself a publically regulated and sanctioned form of
essence fabrication” (p. 528). A ilusão de um essencialismo do género não concebe outras
performatividades de género para além da esfera da dominação masculina e da homossexualidade
compulsória.
48
As teorias do género propostas por Scott (1986) e Butler (1988,1990) contribuiram, como vimos
anteriormente, para ampliar as teorias feministas do género 71. No entanto, o conceito de género que é
proposto por Scott permanece circunscrito à relação entre homens e mulheres, entendido como uma
categoria dicotómica (feminino/masculino) que exclui, por um lado, outras identidades e expressões de
género72 (e.g. transexual, transgénero, intersexo, queer, entre outras) e, por outro, as desigualdades de
poder entre as próprias mulheres (e não apenas entre mulheres e homens). Embora Scott (1986)
reconheça que existem outras formas de opressão para além do género, ela não propõe, na sua análise,
uma abordagem interseccional de outras categorias sociais de diferenciação social. Por sua vez, ao
subverter todas as categorias identitárias do feminismo, nomeadamente o género, a raça, a classe e a
sexualidade, entre outras, Butler (1988, 1990) veio intensificar o debate sobre “as diferenças” entre
mulheres que colocava frente a frente as defensoras das políticas identitárias (Crenshaw, 1989; Collins,
1990) e as feministas pós-modernas (Butler, 1988), que questionavam os fundamentos epistemológicos
e políticos do feminismo (Knapp, 2005, p. 254).
Para M. C. M. Santos (1995), os escritos produzidos pelas “mulheres radicais de cor” durante
as décadas de 1980 e 1990 desafiavam as teorias feministas, então hegemónicas, nos Estados Unidos,
de duas maneiras: em primeiro lugar, questionavam a centralidade do género e a universalização da
experiência da “mulher branca e de classe média”, enquanto sujeito das teorias feministas; em segundo
lugar, desafiavam, através da arte e de diversas formas de escrita, as teorias feministas académicas,
propondo uma “redefinição do que podemos chamar de teoria” (p. 112). Para esta autora, as “mulheres
de cor” construiram uma identidade política inseparável de uma política de diferença, quer em relação
ao “sujeito feminista branco e de classe média”, quer em relação às próprias “mulheres de cor” e às
comunidades que estas integram (Santos, M. C. M., 1995). Este duplo desafio e redefinição da “teoria
feminista” será analisado à luz do paradigma da interseccionalidade na secção 2.3 deste capítulo.
71
Para além de contribuir para as teorias feministas do género, o trabalho de Butler contribuiu, igualmente, para a
teoria queer que começava a surgir em 1990, ano da publicação da sua obra Gender Trouble (Jagger, 2008).
72
Na última década o conceito binário de género (homem/mulher; feminino/masculino) tem sido desafiado pelos
estudos queer e por pessoas que não se identificam com essas categorias, quer em termos de identidade, quer
em termos de expressão de género. Por exemplo, em fevereiro de 2014, a rede social facebook ampliou as
opções no seu formulário, de modo a que os/as utilizadores/as possam personalizar o seu perfil a partir de,
aproximadamente, 50 categorias de género, que incluem, igualmente, as pessoas que não se identificam com
nenhum género. Em 2016, a Comissão de Direitos Humanos da Nova York reforçou a Lei n.º 3 de 2002, que
proibia a discriminação contra as pessoas transexuais e transgénero, alargando a proibição a outras identidades
e expressões de género (NYCHRL, 2016), nomeadamente, “bi-gendered, cross-dresser, drag king, drag queen
femme queen, female-to-male, ftm, gender bender genderqueer, male-to-female, mtf, non-op, hijra pangender,
transexual/transsexual, trans person woman, man, butch, two-spirit, trans, agender third sex, gender fluid, non-
binary transgender androgyne, gender gifted, gender blender, femme person of transgender experience,
androgynous” (NYCHRL, 2016).
49
2.2 Teoria crítica da raça
A Teoria Crítica da Raça (TCR) (critical race theory) surgiu em meados da década de 1970, nos
Estados Unidos73, como produto e resposta ao Movimento dos Direitos Civis (Civil Rights Movement)
da década de 1960 (Crenshaw, 2011; Delgado, 1995; Ladson-Billing, 1999; Möschel, 2011; Tate, 1997).
De acordo com Tate (1997), mais do que uma teoria, a teoria crítica da raça (TCR) define-se como um
movimento que surgiu dentro dos Estudos Críticos do Direito (Critical Legal Studies) “rooted in the
social missions and struggles of the 1960s that sought justice, liberation, and economic empowerment
(...)” (p. 197). Para além disso, o movimento pretendia ser uma resposta a um retrocesso nas conquistas
dos direitos sociais, numa era designada por pós-direitos sociais (post-civil rigths) (Crenshaw, 2011;
Tate, 1997). Os/as teóricos/as críticos/as da raça negros/as questionavam se a filosofia subjacente ao
discurso do movimento dos direitos civis – a invisibibidade da cor e da raça (colour-race-blindness) –
seria suficiente para promover a justiça social, num período de forte ataque ideológico da direita neo-
conservadora, que pretendia eliminar os ganhos obtidos com o movimento dos direitos civis (Tate,
1997).
Debaixo desta nova retórica (color-blindness), o princípio da igualdade significava tratar todos
os indivíduos da mesma forma, independentemente das diferenças resultantes de discriminações
passadas ou presentes (Collins, 1990/2003). Dentro desta lógica, o caminho para a igualdade implicava
a invisibilidade da raça (mas também do género e da classe, entre outras) como uma marca histórica de
discriminação que contribuía para apagar quaisquer diferenças que os indivíduos levavam para as
escolas, locais de emprego, ou outras instituições sociais (Collins, 1990/2003, p. 279).
De acordo com Crenshaw (2011, p. 1260), um dos principais objetivos da TCR consistia em
desafiar as instituições académicas e do Direito a redefinir as suas conceções sobre “neutralidade da
raça” (race neutrality). Segundo Tate (1997), aqueles/as que defendiam uma “discriminação positiva”
(affirmative action) contradiziam-se ao defender, simultaneamente, a invisibilidade da raça. Esta
contradição é, de acordo com Crenshaw (2011), o que caracteriza a sociedade pós-racial:
As post-racialism becomes the vehicle for a colorblind agenda, the material consequences of racial
exploitation and social violence – including the persistence of educational inequity, the disproportionate
racial patterns of criminalization and incarceration, and the deepening patterns of economic stratification
– slide further into obscurity (p. 1327).
Neste sentido, a TCR surge, enquanto movimento e postura intelectual, como uma nova
73
Creenshaw (2011) situa na origem da trajetória da TCR as lutas institucionais sobre questões de raça, pedagogia
e “affirmative action” que começaram em 1982 nas Escolas de Direito de elite norte-americanas. No entanto,
outros/as autores/as, como Ladson-Billings (1999) e Delgado (1995), situam a origem da TCR em meados da
década de 1970 com a publicação dos trabalhos pioneiros de Derrick Bell and Alan Freeman.
50
abordagem da raça, do racismo e do Direito no período pós-direitos sociais (Tate, 1997, p. 206). De
acordo com Delgado (1995), a TCR tem origem na constatação e contestação da negação da
normalização e naturalização do racismo na cultura norte-americana.
Numa revisão da literatura sobre a TCR, Möschel (2011, p. 1649) destaca cinco princípios que
caracterizam a TCR: (1) o racismo é um sistema endémico e não apenas um desvio do indivíduo à
norma; (2) a ideologia da invisibilidade da cor não erradica o racismo; (3) a necessidade de uma análise
histórica e contextualizada da lei que mostre os efeitos atuais da dominação racial do passado; (4) o
reconhecimento da experência e a consciência crítica das pessoas racializadas como uma mais valia para
compreender a lei e a sociedade; (5) um campo interdisciplinar que deriva das correntes de pensamento
feminista, marxista, pós-modernista, pós-estruturalista e pragmática, também refletindo a ideia de que
não se pode lutar contra o racismo sem uma abordagem do sexismo, homofobia, classe e outras formas
de opressão e desigualdade.
O teor crítico da TCR tem sido aplicado a outros contextos sociais, políticos e educacionais para
lá das fronteiras nacionais dos Estados Unidos (Ladson-Billings & Tate, 1995). Möschel, 2011; van
Dijk, 1992). De acordo com Möschel (2011), as questões sobre a justiça racial são tão relevantes na
Europa como nos Estados Unidos, embora a TCR tenha recebido pouca atenção da academia europeia.
No entanto, à semelhança dos Estados Unidos, a invisibilidade da cor e da raça é transversal a todos os
países europeus74, o que é problemático,
(...) [I]n a context where racism (…) continues to exist and ultimately reflects the white, Christian
majorities` positions and biases. Since continental European states and societies normatively shy away
from race they trivialize racial discrimination by failing to address the lived experience of racism by
people of colour. Thus maninstream society and political parties can continue denying their own
complicity in perpetuating structural, institutional and everyday racial discrimination” (Möschel, 2011, p.
1650).
A visão que na Europa se foi construindo sobre a ideia de raça e de racismo enquadra-se numa
abordagem ideológica que Möschel (2011) designa por “ceticismo racial” (racial scepticism) (p.1650),
ou seja, uma postura que recusa a existência de raças e, consequentemente, do racismo. A partir da II
Guerra Mundial, como reação ao regime Nazi, a Europa continental deixou de usar a raça como uma
categoria de análise social (Möschel, 2011, p.1651), substituindo-a por etnia (Araújo, 2008, p. 31). O
Holocausto e o reconhecimento científico de que não existe uma raça biológica constituem a única forma
de entender a raça e o racismo na maioria dos países europeus (Möschel, 2011, p. 1651).
74
À exceção da Inglaterra e da Irlanda, de acordo com o autor.
51
(van Dijk, 1992) mostrou que a negação do racismo é uma das formas mais expressivas do racismo
contemporâneo, quer ao nível individual, nas relações interpessoais do dia a dia, quer ao nível das
instituições e organizações em geral. Uma das razões apontadas no estudo para a existência da negação
do racismo na Europa e nos Estados Unidos é o facto destas sociedades terem abolido oficialmente o
racismo através de leis e normas legislativas, inibindo, assim, discursos e práticas ostensiva e
explicitamente racistas. Assim, atos discriminatórios ou preconceitos com base em desigualdades raciais
são tratados como incidentes esporádicos, desvios à norma, que devem ser punidos ao nível individual,
negando-se, deste modo, a permanência de um racismo institucional e sistémico (van Dijk, 1992, p. 95).
Outra razão que pode justificar a negação do racismo, de acordo com o autor, é entender-se ainda o
conceito de racismo “in the classical, ideological sense, of seeing other ethnic or racial groups as being
inferior, or as overt, official, institutional practices, as is the case for apartheid” (van Dijk, 1992, p. 93).
A negação do racismo é uma forma de racismo perpetuada por uma elite branca que recorre a
várias estratégias de negação do racismo (justificação, desculpa, mitigação) para manter um discurso e
uma prática coerente com as leis e as normas sociais, de modo a serem consideradas pessoas
politicamente corretas. O termo “racismo” tem sido substituido por termos como “discriminação”,
“preconceito”, “esterótipos”, “motivação racial” (van Dijk, 1992, p. 93), quer ao nível do discurso
individual, quer ao nível dos discursos das políticas públicas, nomeadamente, nas políticas educativas.
No entanto, o termo “racismo” continua a ser utilizado pelas pessoas, grupos e movimentos sociais que
são vítimas do racismo institucionalizado e/ou reivindicam políticas públicas que garantam uma
sociedade estruturalmente antirracista.
52
“(…) mais do que ser um país tolerante face ao ‘outro’, Portugal é um país com uma grande tolerância
ao racismo” (p. 26). Neste sentido, o mito do lusotropicalismo enquadra-se numa visão cética racial das
relações de poder e desigualdade económica, cultural e social que estruturam a sociedade portuguesa
desde o período colonial até aos nossos dias.
A historiadora e ativista guineense Joacine Katar Moreira, residente em Portugal desde os oito
anos de idade, é uma das vozes que denuncia o racismo estrutural da sociedade portuguesa. Para Moreira
(2017a), o racismo é um sistema de dominação e de opressão que foi sendo sustentado e solidificado
por práticas discursivas que se produziram no contexto de um sistema colonialista e esclavagista. De
acordo com a autora, o racismo, e a sua perpetuação, assenta em três pilares fundamentais: poder,
privilégio e presunção (“os três PPP”): (1) o poder de desvalorizar os negros como produtores de
conhecimento, inferiorizar e diabolizar o sujeito negro, erotizar a mulher negra. De acordo com Moreira
(2017a), “(…) o racismo é essencialmente estrutural, visto tratar-se não apenas do desejo de dominação
e rasuramento do ʻoutroʼ, mas também da sua história e cultura” (p. 47); (2) o privilégio do branco sobre
todos os que não se enquadram nessa categoria e a naturalização, mesmo que informal e invisibilizada,
desse privilégio, que se manifesta, de acordo com a autora, quer ao nível material, quer ao nível
simbólico “silenciando e menosprezando todas as outras vozes, corpos, histórias e experiências” (p. 47);
(3) a presunção que constitui a ideologia racista pressupõe a superioridade da “raça” branca com base
no fenótipo. A presunção esteve na base do desenvolvimento das sociedades capitalistas, colonialistas e
esclavagistas. O racismo português, de acordo com a autora, é um racismo histórico e estrutural que se
alimenta de três grandes mitos que sobreviveram ao fim do colonialismo: o mito de que a colonização
portuguesa foi mais branda do que a de outros povos, o mito de que o tráfico de escravos sempre existiu
e o mito do luso-tropicalismo, como se as relações interraciais não fossem baseadas em relações de
dominação e de opressão, principalmente, sobre os corpos das mulheres negras.
Contrária a uma visão cética que nega a existência de raças e do racismo, a TCR, embora
reconhecendo que a raça é um construto social, reconhece, igualmente, que esta categoria continua a
estruturar desigualdades sociais e, por isso, deve ser usada como estratégia para combater o racismo.
Esta postura ideológica é designada por “construcionismo racial”75 (racial construcionism) (Möschel,
2011, p. 1651).
Embora tenha surgido no campo dos Estudos Críticos do Direito, a TCR estendeu-se a outras
áreas disciplinares como a psicologia, os estudos culturais, as ciências políticas, a filosofia e a educação
(Creenshaw, 2011, p. 1256). O estudo de Ladson-Billings e Tate (1995) foi pioneiro na introdução da
TCR na literatura educacional, desafiando os paradigmas tradicionais da educação multicultural, ao
75
Existe ainda um outro grupo, dentro do “construcionismo racial”, que considera que a raça, sendo um construto
social, não tem um valor normativo e, por esse motivo, deve ser eliminada do discurso social e político (Cf.
Möschel, 2011, p. 1650).
53
propor uma análise interseccional das categorias de raça e classe, como um instrumento de análise para
compreender as desigualdades sociais no sistema educacional (Ladson-Billings, 1999, p. 215).
Posteriormente, Tate (1997) mostrou como, no campo da educação, a TCR pode desafiar os
discursos dominantes das políticas, da pesquisa e das práticas pedagógicas. Numa revisão da literatura
sobre a TRC, Tate (1997) considera que as teses defendidas pelos/as teóricos/as críticos/as da raça são
uma ferramenta de análise para o desenvolvimento de questões relacionadas com a pesquisa sobre as
dimensões das políticas de igualdade na educação. Tate (1997, pp. 234-235) destaca cinco elementos:
(1) A TCR reconhece a natureza endémica do racismo, o que significa que o racismo não é apenas uma
questão individual, mas estrutural, institucional e ideológica. Neste sentido, a TCR pode ser aplicada à
pesquisa em educação para perceber como é que os valores e interesses da cultura hegemónica branca
limitam e comprometem a “igualdade de oportunidades” das pessoas que não pertencem à classe branca;
(2) A TCR é uma teoria inter e transdisciplinar que deriva das correntes feminista, marxista, pós-
modernista, pós-estruturalista e pragmática. Este elemento da TCR pode servir para as/os
pesquisadoras/es da área da educação possam questionar o valor e o potencial do enquadramento teórico
e concetual de tais disciplinas relativamente à questão da “igualdade de oportunidades” na educação
para os grupos racializados; (3) A TCR analisa as limitações do discurso dos direitos civis, apontando
para o facto de que as leis promulgadas para garantir uma maior justiça racial foram, na maior parte das
vezes, minadas, antes de terem sido completamente implementadas. A mesma análise pode ser feita em
relação às políticas e às práticas para a promoção de uma educação intercultural: quais são as limitações
dessas políticas e como é que elas podem ser reavaliadas no sentido de se tornarem mais eficazes para
os/as alunos/as que não pertencem a uma maioria branca; (4) A TCR é crítica relativamente ao modo
como a neutralidade, a objetividade, a invisibilidade da raça e a meritocracia são usadas nos discursos
dominantes como camuflagem para defender os interesses dos grupos hegemónicos. No mesmo sentido,
podemos questionar se as/os pesquisadoras/es da área da educação abordam essas questões; (5) A TCR
propõe uma análise historicamente contextualizada da lei e o contributo da experência das pessoas
discriminadas em função da raça na análise da lei e da sociedade. Podemos interrogar-nos se na educação
desafiamos a abordagem ahistórica da educação, da igualdade e dos/as estudantes pertencentes a etnias
não hegemónicas.
É de referir que um dos temas em debate no âmbito da TCR relacionava-se com a interseção da
raça com outros sistemas de opressão (Creenshaw, 2011, p. 1301). Crenshaw observa que os discursos
doutrinais e políticos sobre género tendem a ignorar, ou a minimizar, a interseção entre género, raça e
classe. Esta prática emergente das políticas antirracistas (que priorizam a raça) e das políticas feministas
(que priorizam o género) invisibiliza as opressões das mulheres negras e de cor. Este debate deu origem
à formulação de teorias e metodologias de análise que, posteriormente, foram designadas pelo termo
“interseccionalidade”. As complexidades e as possibilidades do paradigma da interseccionalidade, quer
no campo das teorias e das práticas que a informam, quer no campo da sua aplicabilidade, do Direito à
54
Educação, vão ser abordadas no ponto seguinte.
Embora o termo interseccionalidade tenha sido cunhado pela jurista e feminista Kimberlé
Crenshaw (1989), a maioria das/os autoras/es do campo dos Estudos da Interseccionalidade
(Intersectionality Studies), incluindo a própria Crenshaw (1991), considera que a interseccionalidade é
um nome que foi dado a um conjunto de ideias e práticas que foram emergindo ao longo das décadas de
1970 e 1980 (Anthias, 2013; Collins, 1990/2002, 2009; Davis, 2008; Jones & Wijeyesinghe, 2011; Puar,
2013; Yuval-Davis, 2006). De facto, como já referimos anteriormente, o paradigma da
interseccionalidade emerge na obra de Creenshaw (1989, 1990) a partir das polémicas feministas da
segunda vaga (Puar, 2013), protagonizadas pelas feministas negras e as feministas de cor, que
denunciavam a tendência das políticas antirracistas e das políticas feministas hegemónicas em abordar
as categorias de raça e género como “mutually exclusive categories of experience and analysis”
(Crenshaw, 1989, p. 139). Antes da formulação do termo “interseccionalidade”, o livro de Patricia Hill
Collins, Black Feminist Thought (1990) teve um forte impacto na teoria feminista. Collins (1990)
referia-se à interseccionalidade (sem utilizar o termo) como um “interlocking system of oppression”
organizado através de uma “matrix of domination” (p. 276).
Também no princípio dos anos 1980, em Inglaterra, as sociólogas Anthias e Yuval-Davis (1983)
publicaram um artigo na revista Feminist Review onde abordavam a questão da interseccionalidade em
termos de “mutually constitutive social divisions” (Lee, 2009, p. 128). Neste artigo, as autoras contestam
a noção de “triple oppression” (Yuval-Davis, 2006, p. 195), a partir da qual as feministas negras
britânicas abordavam as multiplas opressões, baseadas na raça, género e classe, vividas pelas mulheres
negras. Para Anthias e Yuval-Davis (1983), esta abordagem sustentava-se num modelo aditivo das
divisões sociais, não reconhecendo que, ao nível das experiências concretas de opressão, não é possível
identificar/isolar uma única divisão social como causa dessa opressão. Por exemplo, ser oprimida/o
porque se é negra/o é sempre uma construção social (e não uma identidade a priori), que resulta da
interseção da “raça” com outras divisões sociais, como género, classe social, idade, orientação sexual,
entre outras.
76
Creshaw (1989) descreve essa metáfora do seguinte modo: “Discrimination, like traffic through an intersection,
may flow into one direction and it may flow into another. If an accident happens at an intersection, it can be
caused by cars travelling from any number of directions, and, sometimes, form all of them. Similarly, if a black
55
estruturais de opressão se intersetavam e, por outro, que desafiasse as políticas feministas e antirracistas
a incorporar a abordagem interseccional nas suas análises e práticas.
Situando-se numa tradição intelectual mais ampla dos Estudos Críticos do Direito, Crenshaw
(1989) analisa criticamente o modo como as políticas antidiscriminação norte-americanas determinam
a elegibilidade dos sujeitos e das identidades jurídicas e descrevem as categorias sociais. Crenshaw
(1989) reconhece que as mulheres negras podem viver situações de discriminação semelhantes àquelas
vividas pelas mulheres brancas e pelos homens negros, assim como podem viver uma dupla
discriminação, baseada na raça e no sexo77. No entanto, as mulheres negras também estão sujeitas a uma
discriminação por serem “mulheres negras”, não pela soma da discriminação baseada na raça e no sexo
(mulheres e negras), mas pelo facto de serem “mulheres negras” (p.149). A autora argumenta que as
experiências interseccionais das mulheres negras, em particular, são maiores do que a adição do racismo
e do sexismo.
Não sendo uma ideia nova, foi a partir da formulação do termo “interseccionalidade” (Crenshaw,
1989) que o paradigma se tornou uma referência 78 epistemológica para os estudos feministas de diversas
áreas (Direito, Filosofia, Sociologia, Economia, Artes, Educação), perspetivas teóricas (Fenomenologia,
Psicanálise, Desconstrutivismo) e mobilizações sociais e políticas (feminismo, antirracismo,
multiculturalismo, estudos queer), principalmente, nos Estados Unidos e na Europa. (Davis, 2008,
woman is harmed because she is in the intersection, her injury could result from sex discrimination or race
discrimination” (p. 145).
77
Embora Crenshaw (1989, 1991) explore apenas as interseções entre raça e género, a autora nota que o conceito
deve incluir outras categorias sociais de análise como a classe, a orientação sexual, a idade e a cor (Crenshaw,
1991, pp. 1244-1245).
78
Trinta anos após a publicação do seu artigo seminal (Crenshaw, 1989), a autora manifesta a sua surpresa com o
alcance e a projeção do paradigma da interseccionalidade: “I´m amazed at how it gets over and underused;
sometimes I can´t even recognized it in the literature anymore” (Guidroz & Berger, 2009, p. 65).
56
p. 74). No campo dos Estudos de Mulheres (Women’s Studies), a interseccionalidade é um tema central
nos cursos de licenciatura, pós-graduação e em conferências. Muitas revistas internacionais e antologias
dedicaram números especiais ao tema da interseccionalidade.
Num artigo intitulado “Interseccionality as a Buzzword”, Kathy Davis (2008) apresenta quatro
fatores que, na sua opinião, têm contribuido para o sucesso do paradigma da interseccionalidade desde
que foi formulado por Crenshaw (1989). Abordarei, aqui, apenas dois desses fatores que me parecem
fundamentais para situar o paradigma da interseccionalidade no contexto do presente estudo. De acordo
com Davis (2008), para que uma teoria tenha sucesso, ela tem de abordar um tema que seja,
simultaneamente, do interesse comum de um público alargado e que vá ao encontro de um problema
específico. O paradigma da interseccionalidade enquadra-se nestes dois requisitos ao abordar, por um
lado, uma questão central (teórica e normativa) do pensamento feminista: o reconhecimento das
diferenças entre as mulheres e, por outro, ao oferecer uma ferramenta de análise para abordar as
múltiplas e intersetadas opressões vividas pelas mulheres negras e de cor e as relações de poder que as
constituem.
A questão das “diferenças” entre mulheres agrega duas vertentes do pensamento feminista
contemporâneo. A primeira vertente é representada pelas feministas negras e de cor que, desde a década
de 1970, se posicionam contra a invisibilidade das múltiplas desigualdades e discriminações (baseadas
no género, raça e classe). Para esta vertente do feminismo, o paradigma da interseccionalidade é uma
ferramenta teórica e metodológica ideal para explorar o modo como a raça, a classe e o género se
intersetam e se constituem mutuamente em complexos sistemas de poder e de desigualdade. A segunda
vertente é representada pelas feministas pós-modernas que incorporaram o paradigma da
interseccionalidade no seu projeto de desconstrução das oposições binárias e das teorias universais,
inerentes ao paradigma moderno da filosofia e da ciência ocidental (Flax, 1987). O reconhecimento da
interseção de várias categorias ou posições sociais (como a raça, a classe, a sexualidade) na configuração
de diferentes experiências das mulheres, rompeu com a categoria homogénea e universal de “mulher”
(Brah & Phoenix, 2004). No entanto, se o foco nas diferenças e nas desigualdades substitui o sujeito do
feminismo (mulher), corre-se o risco de perder uma plataforma teórica e normativa comum que sustente
o projeto feminista no seu todo. De acordo com Davis (2008), uma das causas do sucesso do paradigma
da interseccionalidade consiste precisamente em abordar as diferenças e as desigualdades de forma a
que “[the] old feminist ideal of generating theories which can speak to the concerns of all women can
be sustained” (p.72).
57
Se é verdade que o paradigma da intersecionalidade aborda uma velha questão, como vimos
anteriormente, também é verdade que o paradigma contribuiu para superar algumas incompatibilidades
teóricas e metodológicas dentro do pensamento feminista, nomeadamente, entre as feministas negras e
de cor e as feministas pós-estruturalistas. Enquanto as últimas estavam interessadas em desconstruir o
conceito de género e em elaborar as suas críticas a conceitos (e.g. standpoint theory, experiência,
políticas identitárias) que eram utilizados pelas feministas negras e de cor (Butler, 1990/2006; Haraway,
1991), as primeiras, pelo contrário, focavam-se no modo como o género interseta com outras categorias
de diferença na configuração das experiências das mulheres. Embora reconhecendo a conexão entre
“categorização” e “exercício do poder” (Davis, 2008, p. 73), as feministas negras e as feministas de cor
notavam que, em determinados contextos históricos, as políticas identitárias continuavam a ser uma
estratégia de resistência fundamental para enfrentar o racismo e o sexismo. Por exemplo, para Crenshaw
(1991), o problema das políticas identitárias não reside na sua incapacidade para superar o discurso
sobre as diferenças, mas no modo como, frequentemente, elas ignoram ou convergem as diferenças
intragrupo.
O sucesso que o paradigma da interseccionalidade tem alcançado, quer nos meios académicos,
quer nas agendas políticas feministas, principalmente nos Estados Unidos e na Europa, não impediu,
contudo, o debate crítico sobre alguns pressupostos do paradigma. Nos últimos quinze anos, assistiu-se
a uma proliferação de estudos sobre o paradigma da interseccionalidade que apontam para os limites do
paradigma e procuram reconcetualizar os seus fundamentos teóricos e metodológicos (Anthias, 1998,
2013; Bowleg, 2008; Collins, 1990, 2009; Brah and Phoenix, 2004; Davis, 2008; Dill & Zambrana,
2009b; Hancock, 2007b; Knapp, 2005; Levine-Rasky, 2009; McCall, 2005; Taylor, Hines & Casey,
2011; Verloo & Walby, 2002; Winker and Degele, 2011; Yuval-Davis, 2006).
Das várias discussões em foco (ver Anthias, 2013; Davis, 2008), destacamos aquelas que
consideramos fundamentais para a análise e enquadramento teórico do presente estudo: (1) quais as
categorias sociais (e quantas) devem ser incluídas na análise interseccional (Carbado, 2013; Yuval-
Davis, 2006) ou, numa perspetiva pós-moderna, se tem sentido manter uma abordagem interseccional a
partir de categorias sociais; (2) se o paradigma da interseccionalidade pode ser aplicado a grupos
privilegiados, ou apenas a grupos marginalizados (Anthias & Yuval Davis, 1992; Carbado, 2013;
58
Levine-Rasky, 2009); (3) se o foco da abordagem interseccional deve limitar-se à análise das categorias
sociais e ao modo como elas se intersetam, ou deverá centrar-se nas estruturas sociais onde essas
categorias se produzem e localizam (Anthias, 2013; Collins, 1990/2003; Crenshaw, 1991; Yuval-Davis,
2006); (4) quais os desafios que se colocam à internacionalização e globalização do paradigma da
interseccionalidade (Carbado, 2013; Cho, Crenshaw & McCall, 2013; Knapp, 2005; Santos, C. M.,
2011, 2017); (5) quais as implicações sociais da inclusão da abordagem interseccional nas políticas
públicas europeias para a igualdade e a não discriminação (Alonso, 2010, 2012; Hancock, 2007b;
Kantola & Nousiainen, 2009; Lombardo & Verloo, 2009; Squires, 2009).
Embora as categorias de género, raça e classe tenham sido centrais nas primeiras abordagens da
interseccionalidade (Crenshaw, 1989, 1991; Collins, 1990), nas últimas duas décadas outras categorias
sociais como a sexualidade, deficiência, nacionalidade, religião, idade, entre outras, têm sido objeto de
uma análise interseccional. Na última década têm surgido trabalhos relevantes que se focam na
interseção do género e raça com a nacionalidade (Anthias, 1998, 2013; Collins, 1990/2003; Yuval-Davis,
2006), a sexualidade (Collins, 2002; Bowleg, 2008; Taylor, Hines & Casey, 2011), a orientação sexual
(Carbado, 2013) e a deficiência (Meekosha & Shuttleworth, 2009), só para citar alguns exemplos.
Partindo da questão colocada por Butler (1990/2006), Yuval-Davis (2006) interroga-se se, num
determinado contexto histórico, não existirá um número limitado de categorias sociais (não identidades)
que constroem redes de relações de poder nas quais diferentes membros da sociedade são posicionados.
Para a autora, existem duas respostas possíveis, e não mutamente exclusivas, para esta questão (p. 203).
A primeira resposta consiste em perceber que, numa determinada situação histórica, e em relação a
grupos específicos, algumas divisões sociais são mais importantes do que outras na configuração de
determinados posicionamentos. Ao mesmo tempo, existem certas divisões sociais, como o género, idade,
etnia e classe que abrangem um maior número de pessoas, enquanto outras, como as castas, ou o estatuto
das pessoas indígenas ou refugiadas, afetam um menor número de pessoas. Para além disso, as divisões
sociais são fundamentais para o reconhecimento de grupos e indivíduos que são discriminados com base
nessas mesmas categorias. Este último argumento situa-se na linha de pensamento das feministas negras
e de cor (Collins, 1990; Creenshaw, 1989; Yuval-Davis, 2006) que, embora rejeite a naturalização e
essencialização das categorias (género e raça), reconhece, no entanto, que o uso estratégico dessas
59
categorias é um recurso necessário e inevitável na mobilização política de vários grupos sociais. Para
além deste aspeto, o pensamento negro feminista também reconhece que apesar de o género, a raça e a
classe, entre outros, serem produtos de determinados discursos, eles produzem efeitos concretos na vida
das pessoas (Crenshaw, 1991; Ludvig, 2006). No entanto, para Crenshaw (1991), o problema não é a
existência das categorias em si mesmas, mas o valor que se atribuem às mesmas e o modo como esses
valores produzem hierarquias sociais (p. 1297).
Para Anthias (2013), as categorias sociais de género, etnia, raça e classe (e orientação sexual,
entre outras) são construtos sociais que têm como finalidade determinar os critérios pelos quais as
pessoas são classificadas e situadas em determinadas categorias. Cada uma dessas categorias prioriza
diferentes esferas das relações sociais. Por exemplo, a categoria de classe está ancorada nas relações
económicas de produção e consumo, enquanto a categoria de género deve ser compreendida como uma
forma de discurso que define o papel social dos sujeitos através das diferenças sexuais/biológicas
(Yuval-Davis, 2006). Neste sentido, as categorias possuem uma dimensão ontológica e histórica próprias
que as torna irredutíveis entre si 79. Isto não significa que elas se constituam como essências, pelo
contrário, o modo como as categorias surgem nos discursos e nas práticas sociais varia ao longo do
tempo e das localizações geográficas, dependendo do contexto social, político e económico que estrutura
as relações de poder. Contudo, a irredutabilidade das categorias não significa que elas operem
isoladamente ao nível das relações sociais concretas em que as pessoas vivem (Anthias, 2013; Yuval-
Davis, 2006).
Neste sentido, Anthias (2013) faz uma distinção entre “categorias sociais” e “relações sociais
concretas”. As primeiras, como vimos anteriormente, são analiticamente distintas 80, enquanto as
79
No sentido que é dado por Anthias (2013) “that they cannot be explained through a process of accretion (in the
sense of adding one on to the other, thereby reducing them to the sum of their parts) or reduction to other
categories (in the sense that race, for example, cannot be understood purely in terms of class) (p. 8)”.
80
Anthias (2013) defende que “The separation of the categories of gender, ethnicity, ‘race’ and class (amongst
60
segundas são um produto da interseção de várias categorias e o modo como elas se inserem numa
complexa rede de relações sociais, localizada em diferentes dimensões da vida social e em contextos
temporais e espaciais diferenciados (p. 8). Assim, ao nível das relações sociais concretas, as divisões
sociais (ou categorias) constituem-se, constroem-se e interligam-se mutuamente em sistemas de
opressão e de privilégio (Andersen, 2005; Collins, 1990/2003). Para evitar o risco de cair numa
abordagem essencialista e universalista das categorias, das relações sociais de poder e das posicões
sociais de opressão e privilégio é necessário partir da premissa de que todo o conhecimento é parcial e
historicamente situado (Collins, 1990/2003; Haraway, 1991; Kaptani & Yuval-Davis, 2008; Santos, C.
M., 2011; Yuval-Davis, 2006).
Uma das diferenças entre as várias abordagens da interseccionalidade consiste na escolha do(s)
sujeito(s) e/ou do(s) grupo(s) de análise. Algumas autoras centram a sua análise na situação de opressão
das mulheres negras e de cor (Collins, 1990/2003; Crenshaw, 1989, 1991; Harding, 1991), enquanto
outras estendem o seu objeto de análise a pessoas e grupos que podem ser privilegiados e/ou oprimidos
(Anthias & Yuval-Davis, 1983; Brah & Phoenix, 2004; Carbado, 2013; Ludvig, 2006). De acordo com
Yuval-Davis (2006), “(...)[t]his expands the arena of intersectionality to a major analytical tool that
challenges hegemonic approaches to the study of stratification as well as reified forms of identity
politics” (p. 201).
Embora Crenshaw (1989) e Collins (1990/2003) centrem a sua análise num sujeito
historicamente oprimido, as mulheres negras norte-americanas, elas reconhecem, no entanto, que todas
as pessoas e todos os grupos são simultaneamente oprimidos e opressores. Para Collins (1990/2003),
um sistema de complexas relações de poder “contains few pure victims or oppressors” (p. 287). Por
outro lado, essa posição (oprimido/opressor) não é estática, mas pode variar dependendo do espaço
(geográfico, social e político) em que nos situamos num determinado momento. Como a própria autora
refere, “depending on the context, an individual may be an oppressor, a member of an oppressed group,
or simultaneously oppressor and oppressed” (Collins, 1990/2003, p. 289). Apesar de reconhecer a
interdependência entre opressão e privilégio, a abordagem interseccional proposta pelas autoras
(Crenshaw, 1990; Collins, 2002) foca-se, essencialmente, nas múltiplas e intersetadas opressões vividas
pelas mulheres negras e de cor nos Estados Unidos.
No entanto, se, por um lado, a maioria dos artigos publicados sobre o paradigma da
interseccionalidade aborda a situação das mulheres negras ou as categorias de raça, género e classe, por
outro lado, têm surgido, como já foi referido anteriormente, outros trabalhos que abordam outras
categorias sociais, assim como outros processos sociais complexos para além do racismo e do sexismo,
others) is necessary as a first step towards a framing that attends to their articulation” (p. 8).
61
como, por exemplo, a homofobia, a xenofobia, a transfobia, islamofobia, entre outras. Por sua vez, o(s)
sujeito(s) de análise podem enquadrar-se quer em posições sociais de privilégio, quer em posições
sociais de opressão/subordinação, ou ambas.
Embora a relação entre categorias e estruturas continue a ser uma questão em aberto para a
investigação empírica (Hancock, 2007b), a maioria das/os teóricas/os e ativistas no campo de estudos
da interseccionalidade argumenta que o foco na interação de diferentes estruturas de desigualdade
81
Carbado (2013) introduz os conceitos “colorblind intersectionality” e “gender-blind intersectionality” para
mostrar como a branquitude (whiteness) e o género, são categorias sociais, reconhecidas e privilegiadas, mas
invisíveis ou não articuladas como categorias sociais intersetadas. Por exemplo, um “homem branco
heterossexual” é uma categoria social reconhecida e, no entanto, a branquitude raramente é vista ou expressa
em termos interseccionais (p. 818).
62
oferece um quadro mais completo e desenvolvido das opressões (e privilégios) e discriminações vividas
por diferentes grupos de pessoas (Knapp, 2005; kantola & Nousiainen, 2009). Knapp (2005) formula a
questão, do seguinte modo:
How are gender relations and heteronormative sexuality, class relations and configurations of ethnicity
and race/ism interwoven in the structural and institutional make-up of a given society and economy, in
national as well as transnational contexts? And what happens to these relationalities under conditions of
social, political and economic transformation? (p. 259).
Where systems of race, gender, and class domination converge, as they do in the experiences of battered
women of color, intervention strategies based solely on the experiences of women who do not share the
same class or race backgrounds will be of limited help to women who because of race and class face
different obstacles (p. 1246).
A partir do exemplo das mulheres vítimas de violência doméstica, percebe-se que as mulheres
de cor estão posicionadas em intersetadas estruturas sociais e económicas que as colocam em
desigualdade no acesso a recursos básicos, como a educação, a habitação e o emprego, entre outros.
Aiming to bring together the different aspects of an otherwise divided sensibility, an intersectional
analysis argues that racial and sexual subordination are mutually reinforcing, that Black women are
commonly marginalized by a politics of race alone or gender alone, and that a political response to each
63
form of subordination must at the same time be a political response to both (p. 1283).
A interseccionalidade política tem, assim, uma dupla finalidade, resistir aos poderes que
estruturam posições sociais de desigualdade e reconfigurar formas de resistência que se situem para
além de uma abordagem universal e essencialista dos sujeitos. Neste sentido, a interseccionalidade
política é uma ferramenta de contestação do poder e, por isso, uma ponte entre a teoria e as mobilizações
sociais e políticas (Cho et al., 2013, p. 801).
Na linha de Crenshaw (1991), Patricia Hill Collins (1990, 2002) examina o modo como as várias
formas de opressão se intersetam para produzir o que a autora designa por “matrix of domination”. Ao
contrário de Crenshaw (1991), Collins (2002) faz uma distinção entre interseccionalidade e matriz de
dominação. A primeira refere-se a formas particulares de interseção das opressões, como, por exemplo,
a interseção entre raça e género, ou entre sexualidade e nacionalidade, na produção de sistemas desiguais
de poder. A segunda refere-se ao modo como essas interseções estão organizadas (Collins, 1990/2003,
p. 18). Quer a análise recaia sobre um único sistema de poder, ou na interseção de várias opressões, cada
matriz de dominação está organizada em quatro domínios de poder interrelacionados: estrutural
(structural), disciplinar (disciplinary), hegemónico (hegemonic) e interpessoal (interpersonal). De
acordo com Collins (1990/2003), cada domínio tem uma finalidade própria: “(…) [t]he structural
domain organizes oppression, whereas the disciplinary domain manages it. The hegemonic domain
justifies oppression, and the interpersonal domain influences everyday lived experience and the
individual consciousness that ensues (pp. 276-277).
64
relações de poder no interior das organizações sociais. Influenciada pelo pensamento de Foucault,
Collins (1990/2003) afirma que “[b]ureaucracies, regardless of the policies they promote, remain
dedicated to disciplining and controlling their workforces and clientele” (p. 281).
Enquanto o domínio estrutural e o domínio disciplinar de poder operam, através das hierarquias
burocráticas, ao nível de todo o sistema de políticas sociais, o domínio hegemónico de poder (hegemonic
domain of power) opera através das ideologias, da cultura e da consciência (Collins, 1990/2003, p. 284).
Neste sentido, uma das finalidades deste domínio de poder consiste em justificar as práticas exercidas
por aqueles domínios de poder. Os currículos escolares, as doutrinas religiosas, os saberes e as práticas
culturais das comunidades e as histórias familiares, entre outros, constituem-se como espaços de
(re)produção de ideologias hegemónicas relativamente à raça, classe, género, sexualidade e
nacionalidade. No entanto, Collins (1990/2003) sustenta que a crescente sofisticação da cultura
mediática é a principal responsável pela manutenção dessas ideologias.
Para além do contexto norte-americano, as sociólogas europeias Floya Anthias e Nira Yuval-
Davis (1983, 1992) desenvolveram um modelo de abordagem interseccional das categorias de género,
etnia, classe e nacionalidade no contexto das relações de poder e do Estado (Anthias, 2013; Yuval-Davis,
2006). Para estas autoras, a abordagem interseccional consiste em analisar os diferentes modos de
interseção das categorias sociais (que as autoras designam como “social divisons”) e o modo como estas
se relacionam com a construção política e subjetiva das identidades (Yuval-Davis, 2006, p. 205)
De acordo com Yuval-Davis (2006), “(…) social divisions have organizational, intersubjective,
experiential and representational forms, and this affects the ways we theorize them as well as the ways
in which we theorize the connections between the different levels” (p. 198). O nível organizacional
engloba os níveis de análise estrutural e político propostos por Crenshaw (1991) e Collins (2002) e o
nível das representações é praticamente semelhante ao que foi proposto por Crenshaw (1991). A grande
65
contribuição de Anthias (2013) e Yuval-Davis (2006) consiste em introduzir o nível de análise
experiencial (micro). Para Yuval-Davis (2006), as divisões sociais localizadas em organizações e
instituições políticas e sociais envolvem, necessariamente, “(…) specific power and affective
relationships between actual people, acting informally and/or in their roles as agents of specific social
institutions and organizations” (p. 198). Para além das intersubjetividades que ocorrem dentro dos
espaços intitucionais, as divisões sociais existem ao nível experiencial, no modo como as pessoas:
(...) experience subjectively their daily lives in terms of inclusion and exclusion, discrimination and
disadvantage, specific aspirations and specific identities. Importantly, this includes not only what they
think about themselves and their communities but also their attitudes and prejudicies towards others
(Yuval-Davis, 2006, p. 198).
A imagem da “teoria em viagem” pode ser entendida como “a centrifugal process” (Cho et al.,
2013, p. 792), no sentido em que o paradigma da interseccionalidade viajou das suas raízes (o feminismo
das mulheres negras, estudos críticos do Direito e da raça no contexto norte-americano) para outras
disciplinas e outros continentes. Este processo implica, necessariamente, uma adaptação do paradigma
aos diferentes discursos e projetos de pesquisa nesses novos contextos, nomeadamente, a
reconcetualização das categorias sociais e das possíveis interações das mesmas, ou, como alternativa,
modificar o modo como os sujeitos e as categorias sociais são identificados numa perspetiva
interseccional. Deste modo, evita-se o que Cecília M. Santos (2011) designa por “imperialismo cultural”
que carateriza as teorias sociais produzidas, principalmente, no meio académico da Europa e dos Estados
Unidos. Na esteira de Donna Haraway (1991), C. M. Santos (2011, 2017) argumenta que os
66
conhecimentos são sempre “parciais”, porque produzidos em determinados contextos históricos, no
âmbito de “relações de poder” e de “contestação”.
A psicóloga feminista alemã Gudrun-Axeli Knapp (2005), no artigo intitulado “Race, class,
gender: Reclaiming baggage in fast travelling theories”, analisa o processo de transformação das
categorias sociais de raça, classe e género e os desafios teóricos relacionados com o paradigma da
interseccionalidade ao “viajarem” dos Estados Unidos para o contexto socio-político e linguístico da
Alemanha. De acordo com Knapp (2005) a categoria social de “classe”, no contexto norte-americano,
designa as diferenças de posição social, seja numa perspetiva estruturalista (weberiana ou marxista), ou
numa perspetiva classificatória ocupacional. No contexto alemão, a noção de “classe” (Klasse) é usada
quase exclusivamente no contexto da teoria marxista. Nos últimos anos, com a crise da teoria marxista,
os teóricos da sociologia das desigualdades preferem usar outros conceitos, como “estrato social”
(Schicht), “disparidades horizontais” e “inclusão/exclusão” (p. 256). Numa era marcada pelo
individualismo, existe a ideia de que não faz sentido falar de classe. Quando as feministas alemãs
abordam a questão da “classe” como uma das categorias centrais de análise social e interseccional, elas
reportam-se ao significado que era atribuído à “classe” nos debates da década de 1970. Segundo Knapp
(2005), embora a teoria feminista nunca tenha deixado de mencionar a “classe” como um eixo de
desigualdade social, esse conceito nunca foi reformulado. De acordo com a autora, a crença
generalizada, principalmente no meio académico, de que a “classe” é um conceito que perdeu o seu
significado está a ser posta em causa, por um lado, devido à crescente desigualdade económica e social,
mesmo nos países mais ricos da Europa e, por outro, ao reconhecimento de que os níveis e os
mecanismos de desigualdade não se alteraram tanto como as teorias sociais parecem sugerir, mesmo na
dita fase de prosperidade europeia (p. 257).
Segundo Knapp (2005) a “chegada” à Alemanha da categoria de “raça” (Rasse) é ainda mais
complicada do que a noção de “classe”, uma vez que aquela não pode ser usada num sentido positivo
(como no caso dos Estados Unidos), isto é, não é possível atribuir uma “raça” a alguém, assim como
não é aceitável usar a categoria como base de políticas identitárias. Mesmo as pessoas declaradamente
racistas evitam usar a palavra raça (p. 257). Como vimos anteriormente, o sentido negativo que é
atribuido à noção de raça na Alemanha está relacionado com a ideologia do regime Nazi e as suas
políticas genocídas. Por este motivo, os discursos académicos dificilmente utilizam a noção de raça
como uma categoria de análise social. Pelo contrário, raça é, em si mesma, um objeto de análise crítica.
No entanto, o facto da noção de “raça” não se enquadrar no contexto do pensamento alemão pode ser
um ponto de partida para desafiar o que Knapp (2005) designa por “(...) a subcutaneous and uncanny
continuity in the imaginary of an ethnically homogeneous nation” que parece ser “(...) a compromise
and a symptom of unresolved conflict with the past” (p. 258).
Numa entrevista sobre o tema da multiculturalidade (Gandin, Pereira & Hypolito, 2002), a
professora Gloria Ladson-Billings aborda a questão da complexidade das categorias de raça, género e
67
classe, dando como exemplo o contexto norte-americano onde os irlandeses nem sempre foram
considerados brancos (p. 280). Ser branco é um privilégio social (que não tem de ter necessariamente
uma ligação com a biologia) que pode ser atribuído a alguns grupos e negado a outros. Um exemplo
mais atual, é o caso da população branca da América do Sul e do México que é considerada “people of
color” nos Estados Unidos, enquanto na Europa é considerada “branca”.
Em relação à “classe”, um dos problemas que Ladson-Billings (Gandin, Pereira & Hypolito,
2002) enfrentou na sua pesquisa, ao olhar para as classes entre as comunidades afro-americanas e
brancas na Califórnia, foi o facto de a noção de “classe” ter significados diferentes para as duas
comunidades. Embora a maioria dos/as sociólogos/as defenda um sentido único para o conceito de
“classe”, a pesquisa de Ladson-Billings revelou que o que era “classe média” para os negros, era “classe
operária” para os brancos (p. 281).
Os resultados desta pesquisa mostram como a interseção de categorias sociais (raça e classe)
produz diferentes significados para uma mesma categoria. Esta análise é importante para compreender
que “uma teoria em viagem”, como o paradigma da interseccionalidade, já transporta na sua bagagem
um conjunto complexo de categorias sociais que, mesmo no seu contexto de origem, geram múltiplas e
controversas significações. Para além da questão do significado das categorias e do impacto das suas
interseções na (re)produção de desigualdades sociais, a literatura sobre o tema tem abordado a
necessidade de as políticas públicas da U E adoptarem uma perspetiva interseccional das múltiplas
desigualdades, como será apresentado na secção seguinte, no contexto da revisão da literatura sobre a
aplicação da teoria e da metodologia da interseccionalidade no campo da educação.
Em Portugal, as políticas para uma educação intercultural surgiram no início dos anos de 1990,
através da criação, por iniciativa governamental, do Secretariado Coordenador dos Programas de
Educação Multicultural82. Na linha das políticas internacionais para a inclusão social, o objetivo
principal do Programa consistia em diminuir o insucesso escolar ao nível do 1º Ciclo do Ensino Básico
de alguns grupos sociais, particularmente, das crianças de etnia cigana e cabo-verdianas.
Apesar do investimento que tem sido feito ao nível da educação intercultural, quer ao nível das
políticas públicas, quer ao nível da pesquisa e prática educacional, constata-se que os resultados não
tiveram um impacto significativo na transformação de atitudes e práticas discriminatórias em contexto
escolar (Araújo & Pereira, 2004; Cardoso, 1996; Casa-Nova, 2005; May, 1999; Stoer, 1993). Para além
disso, a prática da escola continua a estar fundamentada numa ideologia monoculturalista que se mantém
a partir de uma rede de relações de poder e de desigualdade que perpetuam o racismo, a homo/transfobia
e o sexismo, entre outros.
Na linha do que se define atualmente como “multiculturalismo crítico” (Mayo, 2010) tem-se
verificado uma maior inclusão e interseção de categorias de diferença no discurso e nas práticas
interculturais, incluindo aquela que parece oferecer maior resistência, a categoria da sexualidade (Banks
82
Despacho Normativo n.º 63/91, de 13 de março, sob dependência do Ministério da Educação. Este Secretariado
foi substituído pelo Secretariado Entreculturas em 2001, através do Despacho Normativo n.º 5/2001, de 1 de
fevereiro. Em 2004 este organismo passa a estar integrado no Alto Comissariado para a Imigração e Minorias
Étnicas (ACIME).
69
& Banks, 2010). De acordo com Mayo (2010), é necessário ir além do argumento de que a sexualidade
constitui uma cultura própria para perceber que as pessoas LGBTTQI pertencem a, e produzem, várias
formas de culturas, subculturas e comunidades.
Pelo que foi exposto, podemos concluir que a educação intercultural tem tido uma atuação pouco
relevante ao nível das pessoas e dos grupos que estão sujeitos a múltiplas e intersetadas formas de
desigualdade e de discriminação. Embora o "multiculturalismo crítico" inclua uma abordagem
interseccional das categorias/identidades sociais, a maioria desses estudos não analisa o modo como os
sistemas de poder e de privilégio estruturam essas categorias (Collins, 1990/2002; Núnez, 2014).
À semelhança do que acontece noutros países da Europa e nos Estados Unidos, a investigação
no campo das Ciências da Educação que tem sido realizada em Portugal sobre desigualdades raciais e
étnicas (Araújo, 2007, 2008; Vieira, 2008), as desigualdades de género (Amâncio, 2003; Cardona,
Nogueira, Uva & Tavares, 2010; Ferreira, A., 2002; Saavedra, 2005) não fazem uma abordagem
interseccional das categorias e dos grupos em análise. Alguns estudos apresentam uma análise descritiva
do cruzamento de dados relativos às desigualdades de género em função da etnia (Fonseca, 2009), classe
social (Saavedra, 2001), sexualidade (Nogueira, Saavedra, & Costa, 2008; Santos, Fonseca & Araújo,
2012) e orientação sexual (Ferreira, E., 2011; Silva, M. J., Abrantes, Dias & Magalhães, 2011). No
entanto, nenhum dos estudos mencionados anteriormente pode ser enquadrado, quer ao nível teórico,
quer ao nível metodológico, no paradigma da interseccionalidade, pelo facto de (1) as categorias em
análise serem abordadas a partir de um modelo "aditivo" das múltiplas identidades (Crenshaw, 1989;
Collins,1990) e (2) ignorarem as dinâmicas de poder das instituições na manutenção da reprodução
social das desigualdades (Anthias, 2013; Núñez, 2014). Pelo contrário, uma abordagem interseccional
das relações de poder implica, necessariamente, ir além de uma análise estática e essencialista das
categorias ou identidades sociais para identificar e desafiar as dinâmicas que perpetuam as desigualdades
nas instituições escolares (Anthias, 2013; Jones & Wijeyesinghe, 2011).
70
Por exemplo, Zambrana e MacDonald (2009) mostram como as representações estereotipadas
de género e raça colocam as mulheres mexicanas e as mulheres negras norte-americanas em situação de
desvantagem no sistema escolar em relação às mulheres brancas. Por sua vez, Dance (2009) faz uma
abordagem interseccional das estruturas económicas, sociais e políticas enquanto fatores determinantes
do elevado índice de abandono escolar da população indígena, negra e hispânica nas universidades
norte-americanas. A autora propõe quatro estratégias para promover a igualdade no sistema educativo
que designa por “4C’s” (p.193): (1) mais investimento em recursos (cash), (2) maior conhecimento e
cuidado por parte dos/as professores/as (care), (3) mais recursos tecnológicos (computers), (4) mais
participação e associações de mães e pais (coalitions).
Outro tema em foco nesta publicação diz respeito à produção de conhecimento e à forma como
se constroem saberes e instituições alternativos (Dill, 2009). A partir de uma série de entrevistas com
académicas/os da área dos Estudos Interseccionais de vários estados norte-americanos, a autora conclui
que qualquer transformação que se intente realizar ao nível de uma instituição implica, necessariamente,
a criação de “instituições” alternativas, e geralmente marginalizadas, no interior dessa “grande”
instituição. No sentido de enfrentar algumas resistências institucionais à inclusão da perspetiva
interseccional na pesquisa e na prática educativa, Dill (2009) descreve e discute um conjunto de
estratégias afirmativas que têm sido utilizadas em algumas universidades norte-americanas.
Em 2011, a revista norte-americana New Directions for Teaching and Learning, publicou um
número especial83 sobre práticas pedagógicas inovadoras a partir de uma abordagem interseccional,
também ao nível do ensino universitário. Particularmente útil nestes trabalhos, é a forma como os/as
autores/as descrevem o modo como o paradigma da interseccionalidade informou e desafiou a pesquisa
e o ensino-aprendizagem em várias áreas disciplinares, no sentido de fomentar uma maior compreensão
e avaliação dos sistemas de opressão e de privilégio em que os indivíduos se inserem, a partir de
múltiplas e intersetadas identidades/categorias sociais.
A maioria das/os autoras/es descreve as estratégias de ensino que desenvolveram nos seus cursos
(universitários) com estudantes predominantemente brancos/as, a partir de uma abordagem
interseccional das categorias/identidades baseadas na raça, género, etnia, orientação sexual, religião,
nacionalidade, entre outras. A avaliação do impacto destes estudos de caso revela que os/as estudantes
adquiriram um maior conhecimento sobre a complexa interseção de redes de poder que enquadram as
pessoas e os grupos em situações de privilégio e/ou de opressão (Carlin, 2011; Boucher, 2011; DiGrazia
& Stassinos, 2011; Jones & Wijeyesinghe, 2011; Longstreet, 2011).
83
An Integrative Analysis Approach to Diversity in the College Classroom, 125, 1-109.
71
estratégias que decorreram da abordagem crítica das questões relacionadas com as identidades sociais e
os sistemas de opressão e privilégio que criam e sustentam essas identidades. Um dos objetivos
principais do curso consistia em preparar os/as alunos/as para uma melhor interação e comunicação com
as pessoas que no futuro eles e elas teriam de proteger (p. 37).
A revisão da literatura sobre a forma como a interseccionalidade tem sido aplicada à educação
revela algumas limitações que importa referir. Em primeiro lugar, verifica-se que o enquadramento
interseccional desses estudos se limita a uma abordagem das categorias ou identidades sociais e o modo
como essas categorias se intersetam e configuram experiências individuais (ou de grupos) de opressão
e/ou de privilégio. De acordo com Núnez (2014), uma das principais críticas que têm sido feitas ao modo
como tem sido utilizado o paradigma da interseccionalidade é o facto de a maioria dos estudos que têm
sido realizados se situarem ao nível da micro-análise, ao invés de relacionar/intersetar este com outros
níveis (meso e macro) de análise que, por exemplo, mostrem como é que as estruturas de poder (nível
macro) determinam as condições de vida dos sujeitos.
72
identidades socialmente construídas, (2) na sua relação com as identidades socialmente construídas do/a
colaborador/a e (3) a partilha dessa consciencialização e compreensão da dimensão do impacto das suas
identidades e das identidades dos seus/suas estudantes no processo de ensino-aprendizagem (p. 44).
De acordo com as/os autoras/es do estudo, a abordagem interseccional das identidades sociais
implica, necessariamente, por um lado, uma atenção às questões relacionadas com identidade, poder e
privilégio no contexto do ensino colaborativo e, por outro, o reconhecimento do impacto das estruturas
sociais e culturais na configuração das formas como essas interações se (re)produzem e se relacionam
com as representações das identidades, como a raça, a classe, a sexualidade e o género (p. 46). O recurso
às autobiografias tornou possível uma reflexão sobre situações em que tenham enfrentado preconceitos
ou discriminações, ou tenham usado os seus privilégios. O impacto desta formação a partir de uma
perspetiva interseccional contribuiu para “(…) better understand each other as co-teachers, enhance our
patterns of communication and organization, and disrupt traditional patterns of power and privilege in
the classroom” (p. 47).
Por último, a revisão da literatura mostrou, igualmente, que existem poucos estudos que
abordem as possibilidades, os desafios e as estratégias da abordagem interseccional no campo da
pesquisa educacional (Jones & Wijeyesinghe, 2011; Museus & Griffin, 2011; Núnez, 2014). As/os
investigadoras/es interessadas/os em realizar uma pesquisa interseccional deparam-se, muitas vezes,
com uma série de questões de ordem teórica e metodológica (Bowleg, 2008) que não têm sido
suficientemente abordadas pelos estudos interseccionais. Embora, como foi exposto anteriormente,
algumas autoras (Anthias, 2013; Crenshaw, 1989; Collins, 1990/2002; Yuval-Davis, 2006) tenham
chamado a atenção para a necessidade de se abordarem as dinâmicas de poder das instituições que
perpetuam a reprodução social das desigualdades, a maioria dos estudos que têm sido publicados limita-
se a descrever as experiências de pessoas que se situam na interseção de várias categorias/identidades
sociais. Para ultrapassar esta limitação é necessário, de acordo com Anthias (2013), “[to] distinguish
different levels of analysis in terms of questions about what is being referred to (social categories or
concrete relations), arenas of investigation (organizational, representational, intersubjective, and
experiential), and historicity (processes and outcomes)” (p. 12, ênfase no original).
Recorrendo à tipologia proposta por Anthias (2013), Núnez (2014) desenvolveu um modelo de
pesquisa interseccional que designa por “multilevel model of intersectionality” (p. 87). O estudo incidiu
sobre as experiências dos estudantes latinos e i/migrantes da Califórnia que frequentam os cursos de
preparação para o acesso às universidades da Califórnia. O objetivo consiste em mostrar, por um lado,
como o paradigma da interseccionalidade constitui uma ferramenta teórica “to interrogate the
mechanisms creating and perpetuating educational inequities” (p. 87) e, por outro, as implicações da
abordagem interseccional na pesquisa e prática educativa. Em relação à pesquisa, Núnez (2014) afirma
a necessidade de especificar os diferentes níveis de análise, os tipos de práticas e as relações entre as
categorias sociais que, de uma forma intersetada, ou mesmo separada, afetam as oportunidades no
73
campo da educação. Em relação à prática educativa, o estudo revela que um grupo de estudantes latinos
i/migrantes que participaram na pesquisa começaram a identificar e a desafiar possíveis arenas de prática
que poderiam afetar o acesso ao ensino superior. De acordo com Núnez (2014), estes/as alunos/as
(a) read and wrote critically about their perspectives on school and college (organizational), (b)
interrogated the extent to which the sponsoring university’s claim that it served people from diverse
backgrounds was aligned with their own perceptions and experiences (representational), (c) built trusting
relationships with instructors (intersubjective), and (d) recast their own internal narratives about
educational merit from individualistic to more community-oriented perspectives (experiential) (p. 90).
Os autores dão como o exemplo as pesquisas que têm abordado as desigualdades raciais no
acesso e no desempenho dos/as estudantes do ensino superior. De uma forma geral, a população norte-
americana de origem asática é excluída destas pesquisas pelo facto de manifestarem elevadas taxa de
acesso, permanência e desempenho em relação a outros grupos, nomeadamente, a população negra
norte-americana. No entanto, uma abordagem interseccional do grupo em análise permite identificar
diferenças entre a população genericamente designada por “Asian American”. Por exemplo, a população
descendente do sudeste asiático e das ilhas pacíficas apresentam baixos níveis de desempenho e elevadas
taxas de abandono escolar baseadas em desigualdades raciais (pp. 9-11).
74
A revisão da literatura sobre as abordagens da interseccionalidade no campo da educação,
particularmente no que se refere à formação contínua de professores/as, constitui-se como um desafio
para analisar e repensar os modelos de formação vigentes. Assim, na secção seguinte, proponho-me
equacionar as potencialidades teóricas e metodológicas desses modelos no quadro de uma formação
para a igualdade e a não discriminação, a partir de uma perspetiva interseccional.
84
O trabalho de John Dewey (1934/1958) é pioneiro deste movimento de educação e formação críticas.
85
Ver, por exemplo, Joyce, B. (1975). Conceptions of man and their implications for teacher education. In K. Ryan
(Ed.), Teacher education (74th yearbook of the National Society for the Study of Education), pp.111-145.
Chicago: University of Chicago Press; Eraut, M. (1985). Inservice teacher education. In T. Husen e N.
Postlethwaite (org.), The International Encyclopedia of Education, Research and Studies. Oxford: Pergamon;
Zimpher, N., & Howey, K. (1987). Adapting supervisory practice to different orientations of teaching
competence. Journal of Curriculum and Supervision, 2(2), 101-127.
75
modelos de formação existentes. A diversidade de classificações que podemos encontrar atualmente
depende dos critérios adotados por cada autor/a. Por exemplo, Zeichner (1983) identifica quatro grandes
paradigmas de modalidades de formação profissional docente, o behaviorista, o personalista, o
tradicional-artesanal e a orientação para a investigação. Por sua vez, Feiman-Nemser (1990) identifica
cinco orientações conceptuais alternativas que ocorrem na formação de professores, que designa por
crítica/social, pessoal, tecnológica, prática e académica.
No entanto, ao mesmo tempo que continua a produzir-se uma vasta literatura sobre as
particularidades de cada modelo de formação contínua de professoras/es, são poucos os estudos que
abordam esses modelos em termos comparativos (Kennedy, 2005). Embora recorrendo a tipologias e
categorizações diferentes, os trabalhos de Aileen Kennedy (2005) e Judith Sachs (2007) visam colmatar
essa lacuna. Kennedy (2005) identifica nove modelos de formação organizados em três categorias:
“transmissão” (transmission), “transição” (transitional) e “transformação” (transformative) (p. 248).
Correspondem à primeira, os modelos “tecnocrático” (training), “award-bearing”, “défice” (deficit) e
“cascáta” (cascade); à segunda, os modelos “estandardizado” (standards-based), “coaching/tutoria”
(coaching/mentoring) e “comunidades de prática” (community of practice); à terceira, os modelos “ação-
investigação” (action-research) e “transformativo” (transformative) (idem). Esta tipologia permite, de
acordo com Kennedy (2005), identificar o potencial de cada modelo para a prática transformadora e a
autonomia profissional que, segundo o autor, aumenta à medida que percorremos o spectrum
transmissão-transição-transformação.
Na esteira de Kennedy, Judith Sachs (2007) propõe quatro categorias 86 para classificar os
modelos de formação contínua de professores/as que têm sido desenvolvidos e aplicados nas últimas
quatro décadas: “re-instrumentação” (retooling), “remodelação” (remodelling), “revitalização”
(revitalising) e “re-imaginação” (re-imagining) (p. 102). No presente trabalho optou-se por seguir esta
tipologia pelo facto de a mesma apresentar uma estrutura concetual mais concisa e objetiva. À
semelhança de Kennedy (2005), Sachs (2007) argumenta que a formação contínua de professoras/es
deve incorporar as quatro dimensões da formação (re-instrumentação, remodelação, revitalização e re-
imaginação) de modo a assegurar, por um lado, que o objetivo de melhorar a aprendizagem dos/as
alunos/as seja alcançado e, por outro, apoiar uma profissão docente, no sentido de esta se tornar mais
forte e autónoma.
86
Estas designações não devem ser entendidas como modelos de formação, mas como “metáforas” para descrever
as abordagens atuais da formação contínua de professores/as (Sachs, 2007, p. 10). Por exemplo, a metáfora da
re-imaginação não representa um modelo definido de formação em si mesma, mas, pelo contrário, ela
reconhece um conjunto de pré-requisitos para que a re-imaginação configure um determinado modelo de
formação.
76
2.5.1 Re-instrumentação
A conceção da formação como re-instrumentação tem sido dominante, quer ao nível das
políticas, quer ao nível do desenho e implementação de modelos de formação, desde os finais do século
XIX (Zeichner, 1983). No contexto português, esta metáfora foi aquela que mais influenciou, quer a
formação inicial, quer a formação contínua de professores/as, na segunda metade do século XX, gerando
um debate entre defensores/as e as/os críticas/os dos modelos re-instrumentados. Atualmente, no
contexto de uma sociedade neoliberal global, cada vez mais especializada, a re-instrumentação ocupa
um lugar de destaque nas políticas educativas, quer ao nível do desempenho das/os alunas/as, quer ao
nível do desempenho profissional dos/as professores/as (Esteves, 2007). Em relação ao primeiro, são
definidas metas de aprendizagem, através da aquisição de competências específicas, que estão sujeitas
a uma avaliação nacional através de testes estandardizados, em relação ao segundo, como observa
Gonçalves e Gomes (2014), “as suas carreiras têm sido reguladas pela política e administração
educacional, estudadas pela investigação em educação e potenciada por processos de formação e
desenvolvimento profissional” (p. 67).
Mirra e Morrell (2011) consideram que esta perspetiva de formação se sustenta, e é sustentada,
nas e pelas ideologias neoliberais das democracias atuais. De acordo com estes autores, o neoliberalismo
democrático assenta a sua ideologia em três princípios básicos, o individualismo, o consumismo e a
passividade (pp. 410-411). O individualismo expressa-se no modo como “[n]eoliberal ideology
characterizes democracy as a collection of atomized individuals striving for personal gain” (p. 410).
Neste contexto, as escolas públicas devem educar para o sucesso escolar e profissional dos/as alunos/as
através da aquisição de conhecimentos específicos e técnicas de aprendizagem que estão sujeitos a uma
avaliação estandardizada. Neste cenário, a formação contínua dos/as professores/as surge como um
77
modelo de re-instrumentação dos conhecimentos e destrezas necessários para satisfazer uma política
educativa que se orienta pelo sucesso escolar entendido numa perspetiva individualista.
Por sua vez, esta ideologia individualista é necessária para garantir e ampliar uma economia
capitalista global que fomenta a privatização, a competição e o consumo. A estreita relação que se
estabeleceu entre educação e competitividade económica tem-se refletido no investimento que tem sido
feito, ao nível da avaliação (inter)nacional, de competências através de testes estandardizados87. De
acordo com Mirra & Morrell (2011), “[t]he neoliberal education agenda also promotes unquestioning
consumption of what is considered ‘scientific’ or ‘objective’ knowledge” (p. 410), entendendo-se por
“conhecimento objetivo”, somente as teorias e os conhecimentos que resultam da investigação
científica. Neste sentido, os programas de formação contínua dos/as professores/as são desenhados a
partir de um conjunto de conhecimentos científicos (rigorosos, sistemáticos e objetivos), que devem ser
transmitidos por especialistas, transformando, assim, a prática profissional numa mera aplicação dos
resultados de algumas investigações, previamente validadas pela academia, de modo a conseguir obter
os efeitos e os resultados desejados.
A terceira, e última característica da democracia neoliberal, apontada por Mirra & Morrell
(2011), consiste na promoção e manutenção de uma cidadania passiva “in which complacency is
encouraged and neoliberal ideology is presented as natural or inevitable” (p. 410). Esta conceção de
cidadania é inerente a uma democracia essencialmente representativa, que limita a participação política
da grande maioria dos/as cidadãos/ãs ao exercício do voto. Os autores argumentam que a concepção
passiva de cidadania promovida pela ideologia neoliberal tem um impacto negativo na forma como a
educação e a formação abordam as questões da cidadania e da democracia nas escolas. Neste contexto,
os/as professores/as são sistematicamente submetidos/as a programas de formação contínua, que os/as
coloca numa situação de recetores passivos do conhecimento científico, ao invés de “active learners”
(p. 411).
A implementação das “ideologias instrumentalistas” (Sachs, 2007, p. 12) ao nível das políticas
de educação e formação contínua de professoras/es privilegia as abordagens tecnológicas dos modelos
de formação, quer daqueles/as que concebem os programas, quer das/os próprios/as consumidoras/es
dos mesmos. Neste sentido, a formação entendida como re-instrumentação assenta numa “organização
top-down” (Gonçalves & Gomes, 2014, p. 67) que deve executar as orientações das políticas educativas
dos governos vigentes.
De acordo com a maioria dos/as críticos deste modelo de formação (Freire, 1970; Shor, 1992;
Zeichner, 1983), a re-instrumentação reduz o ensino e a aprendizagem a uma mera transmissão acrítica
87
Por exemplo, o desenho e a implementação do Programme for International Student Assessment – PISA,
coordenado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), enquadra-se numa
conceção de educação e formação por re-instrumentação (OCDE, 2006).
78
de conhecimentos, numa determinada área científica, ignorando as relações de poder e de desigualdade
que se (re)produzem no contexto desse processo. Paulo Freire (1970) designa este modelo de formação
de “educação bancária”, porque se fundamenta no depósito, transferência e transmissão de valores e
conhecimentos, “em que os educandos são os depositários e o educador o depositante” (p. 33). De acordo
com Shor (1992), os conteúdos e as técnicas de ensino e aprendizem depositados pelas/as educadores/as
são emitidos pelo “banco central de conhecimento” (p. 31), uma metáfora utilizada pelo autor para
designar o repositório oficial do conhecimento que cada sociedade possui. Este conhecimento é tido
como universal, verdadeiro e neutro, mesmo quando exclui os temas, as representações e as
subjetividades de pessoas tradicionalmente marginalizadas, como as mulheres, as/os negras/os, os/as
estrangeiros/as, emigrantes, pessoas LGBTTQI, entre outras.
2.5.2 Remodelação
Para Kennedy (2005), este tipo de formação enquadra-se no modelo por défice (deficit model),
uma vez que é desenhado para superar défices de ensino e aprendizagem em determinadas áreas
consideradas prioritárias em determinados momentos, dependendo das agendas políticas e económicas
dos governos nacionais e de instituições internacionais. Uma das críticas apontadas por Kennedy (2005)
a este modelo de formação está relacionada com a total responsabilidade que recai sobre as/os
88
Disponível em http://www.dge.mec.pt/programa-nacional-da-educacao-estetica-e-artistica
79
professoras/es neste processo. O insucesso escolar recorrente em áreas consideradas nucleares, como a
Língua Portuguesa, a Matemática e as Línguas Estrangeiras não pode ser atribuído, exclusivamente, a
um défice de formação dos/as professores/as nessas matérias. De acordo com Kennedy (2005), existe
uma responsablidade coletiva que não é contabilizada, isto é, “(...) the system itself is not considered as
a possible reason for the perceived failure of a teacher to demonstrate the desired competence” (p. 239).
2.5.3 Revitalização
A metáfora da revitalização enquadra modelos que se situam na transição entre uma formação
tradicional, baseada na transmissão de conhecimentos, e uma formação para a mudança, baseada numa
formação para a transformação de discursos e práticas educativas (Kennedy, 2005). Ao contrário dos
modelos anteriores, este tipo de formação centra-se, principalmente, na aprendizagem dos/as
professores/as criando oportunidades para refletir sobre, e renovar, as suas práticas de ensino. Neste
sentido, de acordo com Sachs (2007), a revitalização da formação contínua exige que os/as
professores/as se transformem em “reflective practitioners” (p. 13) no sentido que lhe é atribuído por
Schön (1997). No terreno, este modelo de formação traduz-se numa reflexão “na” e “sobre” a prática
pedagógica que implica, respetivamente, a identificação e resolução de situações que requerem uma
ação imediata e uma planificação mais sistemática do ensino e da aprendizagem, que inclua objetivos,
atividades e avaliação dos mesmos, quer a curto, quer a longo prazo.
80
Kennedy (2005), podemos incluir como formas de revitalização os modelos coaching/tutoria e as
comunidades de prática (Sachs, 2007, p. 14). Embora o modelo coaching/tutoria corresponda ao
paradigma tradicional-artesanal da classificação de Zeichner (1983), o modo como Kennedy (2005)
aborda a relação que se estabelece entre formando/a e formador/a está para além de uma mera
transmissão de conhecimentos práticos baseados na experiência do/a formador/a. Como defende o autor,
o modelo coaching/tutoria “(...) can support either a transmission view of professional development,
where teachers are initiated into the status quo by their more experienced colleagues or a transformative
view where the relationship provides a supportive, but challenging forum for both intellectual and
affective interrogation of practice” (Kennedy, 2005, p. 243). Independentemente do tipo de relação que
se estabeleça entre formador/a e formanda/o (mais hierárquica ou mais interativa), o sucesso deste
modelo de formação reside na qualidade das relações que as/os participantes estabelecem entre si, sendo
necessário, para o efeito, que as/os participantes em formação possuam competências específicas que
lhes permitam trabalhar colaborativamente.
Por último, Sachs (2007) considera que, para além das formas já referidas acima, as “redes de
desenvolvimento profissional” (professional development networks) constituem uma forma de
revitalização da formação contínua de professores/as (p. 14). Corroborando o argumento de Morris,
Chrispeals e Burke (2003)90, a autora defende que uma formação externa direcionada
predominantemente para o desenvolvimento de competências pedagógicas, colaborativas e de liderança
numa determinada área do conhecimento “(…) can provide the transformative power to alter
89
Kennedy (2005) opõe as “comunidades de pesquisa” às “comunidades de prática”. As primeiras fazem uma
abordagem mais proativa e compreensiva das questões da educação e da formação (p. 246).
90
Morris, M., Chrispeels, J., & Burke, P. (2003). The power of two: Linking external with internal teachers’
professional development, Phi Delta Kappan 84(10), 764-767.
81
professional development and teacher learning in power and sustainable ways” (p.14), quando articulada
com um projeto interno de reforma escolar.
Podemos concluir que os modelos de formação por revitalização podem constituir-se como
espaços de aprendizagem para a transformação de discursos e práticas discriminatórias, ou como espaços
de aprendizagem que perpetuam discursos dominantes de uma forma acrítica. Mesmo no caso em que
as comunidades de aprendizagem são produtoras de conhecimento e transformadoras de práticas, há o
risco de não se questionar as estruturas educacionais e sociais onde esse conhecimento é produzido e
aplicado.
2.5.4 Re-imaginação
Esta abordagem reflete o que Zeichner (1983, p. 5) designa por paradigma da “orientação para
a investigação” (inquiry-oriented) ao priorizar, quer a investigação sobre o ensino, quer a investigação
sobre o contexto educacional em que o ensino e aprendizagem têm lugar. Os/as defensores/as deste
modelo reconhecem a importância do desenvolvimento de competências de intervenção crítica e de
hábitos de pesquisa (Kennedy, 2005; Sachs, 2000; 2007; Zeichner, 1983). Zeichner (1983) argumenta
que “[t]he teaching of technical skills assciated with inquiry (e.g., observations skills) and the fostering
of a disposition toward critical inquiry (a ‘critical spirit’) becomes the axis around which the preparation
revolves” (p. 6). As competências técnicas de ensino e os conhecimentos específicos a adquirir ao longo
da formação devem, necessariamente, enquadrar-se no quadro geral da pesquisa crítica e das técnicas
de observação.
82
conhecimentos, a “educação problematizadora coloca, desde logo, a exigência da superação da
contradição educador-educandos” (Freire, 1970, p. 39). Para que esta superação aconteça é necessário
promover a participação ativa dos/as formandos/as no seu processo de aprendizagem, através, sobretudo,
da investigação crítica apoiada numa relação dialógica entre formandas/os e formadores/as e entre
aqueles/as e os seus pares.
De acordo com Ira Shor (1992), o diálogo crítico que acompanha a investigação deve ser
pensado como um processo de “(des)socialização” (desocialization). Para este autor, “desocialization
refers to questioning the social behaviors and experiences in school and daily life that makes us into the
people we are” (p. 114). Assim, o processo de (des)socialização deve visar, por um lado, os
condicionalismos da educação tradicional que limitam o pensamento crítico e a autonomia das/os
formandas/os e, por outro, a cultura de massas e os valores vinculados pelos meios de comunicação,
como o racismo, sexismo, homofobia, transfobia, entre outros, que se (re)produzem nas instituições
escolares, quer ao nível dos currículos, quer ao nível das relações de poder e desigualdade nos espaços
de aprendizagem.
Neste contexto, Gonçalves e Gomes (2014) analisam e discutem o projeto piloto “10x10” do
programa Descobrir da Fundação Calouste Gulbenkian, como exemplo de uma “possibilidade
emergente” de modelo de formação e desenvolvimento profissional das/os professoras/es, no quadro da
metáfora da re-imaginação (p. 73). O projeto em análise resultou de uma experiência de formação de
professores/as do ensino secundário através da criação de parcerias entre professoras/es e artistas,
articulando na sua génese, implementação e divulgação, dimensões formais e informais da formação
contínua. A partir de diferentes pespetivas teóricas, as autoras mostram como este projeto de
desenvolvimento profissional questiona e desafia as conceções sobre o self e o conhecimento presentes
nos modelos tradicionais de formação contínua, correspondentes à re-instrumentação, remodelação e
83
revitalização (Sachs, 2007).
Nos últimos anos, a literatura sobre formação de professores/as tem reafirmado a ideia de que é
necessário combinar diferentes modelos de formação para alcançar determinados objetivos educacionais
(Hoban, 2002; Kennedy, 2005; Sachs, 2007). Por exemplo, Kennedy (2005) designa por “modelo
transformativo” (transformative model) um conjunto de práticas e condições que derivam de vários
modelos de formação, incluindo os mais tradicionais. Neste sentido, como reconhece o autor, o modelo
transformativo “is not a clearly definable model in itself; rather it recognises the range of different
conditions required for transformative practice” (p. 246). Embora se constitua a partir da integração de
vários modelos, o modelo transformativo caracteriza-se, essencialmente, pela atenção que dispensa às
questões de poder, seja através da seleção de conteúdos a serem abordados ao longo do processo, ou do
modo como esses conteúdos são abordados. Abordar as questões da educação e da formação a partir de
relações de poder gera conflitos que, de acordo com Kennedy (2005), devem constituir a base para que
um “(...) real debate be engaged in among the various stakeholders in education, which might lead to
84
transformative practice” (p. 247).
85
86
CAPÍTULO 3 – FUNDAMENTAÇÃO EPISTEMOLÓGICA E METODOLÓGICA
O problema, tal como foi referido na revisão da literatura sobre a formação continua de
professores/as, é a constatação de uma enorme lacuna, quer na pesquisa educacional sobre os
conhecimentos, os discursos e as práticas das/os professoras/es em relação às desigualdades sociais, em
função do género, da raça, etnia e orientação sexual, quer na oferta de programas de formação contínua
que abordem essas questões, seja a partir de uma perspetiva unitária, múltipla ou interseccional
(Hancock, 2007a). O presente estudo pretende contribuir para preencher essa lacuna, tendo como
objetivo identificar, questionar e transformar os discursos de um grupo de professoras/es sobre os
privilégios e as desigualdades sociais em função do género, raça, etnia e orientação sexual, a partir de
uma perspetiva interseccional.
Tendo presente as considerações apresentadas, a questão de partida que irá orientar todo o
processo de investigação pode ser formulada da seguinte forma: “Quais os discursos produzidos por um
grupo de professoras/es do ensino secundário, no contexto de uma oficina de formação contínua, sobre
os privilégios e as desigualdades sociais em função das categorias sociais de género, raça, etnia e
orientação sexual?”. Desta questão decorrem diversos objetivos e perguntas mais específicas que passo
a apresentar:
87
1. Identificar os discursos de um grupo de professoras/es, sobre si próprias/os e os/as “outros/as”, com
base em categorias sociais de género, raça, etnia, orientação sexual.
- Os/as professores/as consideram que têm algum tipo de responsabilidade perante as desigualdades
sociais?
- As categorias sociais de género, raça, etnia e orientação sexual aparecem nos discursos dos/as
professores/as de uma forma unitária, múltipla ou intersetada?
- De que forma os/as professores/as percebem os jogos de Teatro-Imagem como ferramentas que
os/as ajudam a reconhecer como as posições sociais que as pessoas ocupam as privilegiam e/ou as
oprimem?
91
Embora não exista uma opinião consensual quanto à integração da investigação-ação na metodologia qualitativa
(Coutinho, 2005), no presente trabalho, e dadas as semelhanças entre as características da investigação
qualitativa e a investigação-ação, optou-se por definir a metodologia do estudo como uma investigação-ação
qualitativa.
88
enquadra a pesquisa (Merriam,1998). Tomando em consideração estes aspetos, Denzin e Lincoln (2005)
avançam uma definição genérica de investigação qualitativa,
(...) a situated activity that locates the observer in the world. It consists of a set of interpretive, material
practices that make the world visible. These practices (…) turn the world into a series of representations,
including field notes, interviews, conversations, photographs, recordings, and memos to the self. At this
level, qualitative research involves a naturalistic approach to the world. This means that qualitative
researchers study things in their natural settings, attempting to make sense of, or interpret, phenomena in
terms of the meanings people bring to them” (p. 3).
A segunda característica remete para o papel central do/a investigador/a qualitativo/a na recolha
89
e análise de dados. Merriam (1998, p. 7) aponta algumas características que distinguem o investigador
humano (the human researcher) de outros instrumentos de recolha de dados (questionários, programas
de computador, etc.): o/a investigador/a valoriza o contexto em que se insere a pesquisa; esse contexto
pode ser alargado; pode adaptar as técnicas e os métodos de pesquisa a esse contexto; os aspetos não-
verbais podem ser captados pelo/a investigador/a e transformarem-se em dados que esclareçam os dados
já recolhidos ou analisados. Contudo, a/o investigador/a qualitativa, enquanto instrumento-humano,
comete erros, tal como outros instrumentos de pesquisa.
Para minimizar o impacto dessas limitações nos resultados da pesquisa, Merriam (1998) indica
algumas competências pessoais que o/a investigador/a deve possuir: ser tolerante à ambiguidade, uma
vez que na investigação qualitativa, desde o desenho da pesquisa até à análise dos dados, não existem
metodologias e procedimentos definidos para cada tipo de pesquisa que possam ser seguidos passo a
passo; ser sensível ou intuitiva/o, quer perante as variáveis do contexto, quer em relação à seleção e
relevância dos dados coletados.
Para além do contexto, a/o investigador/a deve estar atenta/o à forma como as suas posições
ideológicas podem influenciar a investigação; ser uma boa ou um bom comunicador/a, criando uma
empatia com as/os participantes envolvidas/os no estudo, possibilita um clima de maior confiança e
assegura uma recolha de dados mais fiável. A comunicação envolve também a capacidade de escutar o
que é dito, principalmente, “what is not explicitly stated but only implied, as well as noting the silences,
whether in interviews, observations, or documents (…)” (Merriam, 1998, p. 23). A boa comunicação é
igualmente necessária para a escrita ao longo de todo o processo da investigação, que envolve, por
exemplo, o registo das observações, reflexões e resultados, etc.
90
campo “natural” de pesquisa, pelo contrário, o campo é construído e constituído através do desenho de
pesquisa do/a investigador/a e, nalguns casos, das/os próprias/os participantes do estudo.
Embora este tenha sido o princípio orientador do presente estudo, não podemos ignorar que a/o
investigador/a qualitativa/o não parte para o terreno sem um enquadramento teórico e sem ter realizado
uma revisão da literatura sobre o tema. Este trabalho, prévio ao desenho da investigação da pesquisa,
contribui para, num primeiro momento, determinar o problema do estudo, as questões de pesquisa, os
métodos e os procedimentos de recolha e análise de dados e, ainda, o modo como serão interpretados os
resultados (Merriam, 1998). Assim, quando a/o investigador/a vai para o terreno, as teorias, os conceitos
e os modelos que constituem a sua opção teórica irão influenciar, necessariamente, o modo como vai
abordar os fenómenos em estudo (Stake, 2005). Por conseguinte, explicita ou implicitamente, os temas,
as categorias, os conceitos, as hipóteses, ou as teorias, também são estabelecidos a priori na investigação
qualitativa. No presente estudo, como apresentaremos na secção sobre os métodos e os procedimentos
do estudo, alguns temas e categorias foram construídos a priori, embora, na sua maioria, tivessem sido
construídas a partir dos dados recolhidos através de diversos métodos. Acrescente-se que o método do
Teatro-Imagem, como será analisado adiante, exige que sejam os/as participantes a analisar, interpretar
e a transformar as “imagens” que eles e elas próprios/as constroem.
Por último, a quinta característica da investigação qualitativa reside na natureza descritiva dos
seus resultados. A/O investigador/a investigativa/o procura registar ou transcrever, em forma de palavras
ou imagens e com a maior fidelidade possível, os dados que vai recolhendo ao longo de todo o processo
de pesquisa (Bogdan & Bliken, 1994), que pode incluir descrições pormenorizadas do contexto, dos/as
91
participantes envolvidos/as e das atividades que foram realizadas. Na maioria dos casos, a/o
investigador/a qualitativa/o inclui trechos de transcrições das entrevistas, citações diretas de
documentos, fotografias, excertos de gravações de vídeo, etc., na apresentação dos resultados finais da
pesquisa. Este procedimento contribui para fundamentar a validade dos resultados do estudo (Merriam,
1998, p. 8).
No processo de recolha e análise dos dados do presente estudo, procurou-se respeitar a forma
como os mesmos foram elaborados (quer pelas/os participantes, quer pela investigadora), registados e
transcritos (Bogdan & Bliken, 1994). A descrição dos dados foi realizada, fundamentalmente, a partir
do registo detalhado de cada atividade com os jogos teatrais, das “imagens” teatrais construídas pelos
grupos e das análises das/os participantes sobre os significados das imagens e das dinamizações das
mesmas. O facto de a pesquisa utilizar o método do Teatro-Imagem, como irá ser explicado adiante,
mais detalhadamente, permitiu que a recolha de dados e a sua análise se processassem no mesmo espaço
físico (a sala de teatro), em unidades de tempo específicas (quatro horas de formação) e, como já foi
referido, contou com a participação de todos/as as/os elementos do grupo de pesquisa. Este método de
pesquisa contribuiu para enriquecer a descrição dos dados, uma vez que cada participante construía a
sua “imagem”, fazia a análise das suas “imagens”, das “imagens” construídas por outros/as elementos
do grupo e fazia o registo detalhado das mesmas, quer individualmente, quer em grupo, oralmente, ou
por escrito. Posteriormente, este procedimento contribuiu para uma análise mais rica dos dados obtidos,
reforçando a validade interna do estudo.
Para concluir, o facto do presente estudo se configurar como uma investigação-ação qualitativa
implica referir algumas características específicas deste tipo de pesquisa que não foram abordadas nas
características gerais da investigação qualitativa. Primeira, a investigação-ação está mais direcionada
para a resolução de problemas do que para a pesquisa de informação detalhada sobre um determinado
campo de estudo, a partir de conclusões indutivas. Neste sentido, como refere Tomal (2003), “action
researchers rely less on scientific inquiry and inductive reasoning, and more on the practicality and
feasibility of solving a given issue” (p. 9). Segunda, a investigação-ação envolve um trabalho
colaborativo e participativo de todas/os as/os intervenientes no processo de pesquisa (Zuber-Skerrit,
2005). O/A investigador/a principal pode, inicialmente, identificar o problema de pesquisa, recolher
alguns dados para traçar um plano provisório de investigação-ação e escolher o grupo com quem vai
trabalhar. Contudo, a partir do momento em que o grupo está organizado, o/a investigador/a principal
trabalha colaborativamente com o grupo na planificação e implementação de estratégias para abordar o
problema da pesquisa. Terceira, a investigação-ação é um processo cíclico, em espiral, que implica uma
reavaliação constante das várias fases do processo de investigação, incluindo o problema em estudo e
as questões iniciais da pesquisa, que podem ser reformuladas de acordo com os resultados alcançados
através da implementação da ação. Considerando-se que a investigação-ação é, ao mesmo tempo, uma
metodologia e um processo de pesquisa, o processo envolve “(…) the systematic collecting of data,
92
which is analyzed and fed back to the subjects so that action plans can be systematically developed”
(Tomal, 2003, p. 9)
Por último, a investigação-ação utiliza várias formas de intervenção que Tomal (2003) designa
por “set of structured activities” (p. 9) e que constituem o mecanismo para a ação na investigação. Estas
técnicas ou métodos de intervenção podem ser mais formais, ou menos formais, de acordo com a
especificidade do problema de pesquisa e dos resultados que se querem alcançar. No presente estudo
optou-se por recorrer a métodos menos formais (jogos e técnicas do Teatro do Oprimido e a
Interseccionalidade), embora noutras fases da pesquisa se tenha optado por métodos mais formais, como
o estudo de caso e as entrevistas. Os métodos e os procedimentos adotados no presente estudo vão ser
apresentados na secção seguinte.
Os métodos escolhidos para abordar o problema em estudo neste trabalho configuram um design
de investigação constituído por vários procedimentos de recolha e análise de dados que, no seu conjunto,
procuram atingir os objetivos propostos no quadro de uma metodologia de investigação-ação qualitativa.
Neste sentido, a pesquisa empírica fundamentou-se em três métodos de investigação: o Estudo de Caso,
o método do Teatro do Oprimido e a Interseccionalidade. Os procedimentos de recolha e análise dos
dados, que inclui, respetivamente, as entrevistas individuais e as entrevistas de grupo (grupos de
discussão e grupos focais) e a análise crítica do discurso, serão apresentados no contexto dos métodos
utilizados.
92
Robert Yin (2005) define estudo de caso, ora como estratégia, ora como método de pesquisa.
93
(1998) considera que a característica que melhor define um estudo de caso “lies in delimiting the object
of study, the case” (p. 27).
A opção por um estudo de caso qualitativo como processo de pesquisa pode ser vista de dois
modos, de acordo com Merriam (1998): “monitoring” and “causal explanation” (p. 33). No presente
estudo, o primeiro modo, prendeu-se com a necessidade de explorar, individualmente, os discursos sobre
género, raça, etnia e orientação sexual do grupo que iria participar no estudo. Esta primeira abordagem
tinha como objetivo principal elaborar um plano de formação contínua de professores/as que abordasse
essas temáticas. O segundo modo está relacionado, por um lado, com a avaliação do método do Teatro-
Imagem na identificação, questionamento e transformação de discursos sobre as categorias sociais em
que incide o estudo e, por outro, na avaliação do impacto da oficina de formação na aquisição de uma
metodologia de formação que possa ser aplicada pelos/as participantes, a outros contextos escolares.
A pesquisa de estudo de caso inclui tanto estudos de caso único quanto estudos de caso múltiplos
(Bogdan & Bliken, 1994; Merriam; Yin, 2005), embora ambos sejam apenas variantes do estudo de caso
(Yin, 2005). Os estudos de caso múltiplos envolvem a recolha e análise de dados a partir de um
determinado número de casos, enquanto que os estudos de caso único, embora podendo englobar
subunidades de estudo, focam-se prioritariamente numa única unidade de análise (Merriam, 1998). Na
opinião de Yin (2005), a escolha de um estudo de caso único justifica-se quando o caso representa testar
uma teoria existente; compreender um fenómeno ou uma situação rara ou exclusiva; estudar um caso
representativo ou típico (podendo ou não servir um determinado propósito (pp. 62-63). No presente
estudo, optou-se por um estudo de caso único “representativo” ou “típico” – um grupo de professoras/es
de uma escola do ensino secundário - com subunidades de estudo (por exemplo, o modo como os/as
participantes do estudo aplicaram as metodologias desenvolvidas na oficina de formação). A opção pelo
estudo de caso “típico”, prende-se, igualmente, com possibilidades de generalização do estudo (Bogdan
& Bliken, 1994; Yin, 2005), como vai ser abordado mais adiante.
Para além dos motivos apresentados acima, o facto do presente estudo se enquadrar numa
metodologia de investigação-ação qualitativa, a opção pelo método do estudo de caso único configura
o desenho da própria pesquisa, uma vez que, de acordo com Yin (2005), “o estudo de caso como
estratégia de pesquisa compreende um método que abrange tudo – tratando da lógica de planejamento
das técnicas de coleta de dados e das abordagens específicas à análise dos mesmos” (p. 33). Acrescente-
se, ainda, que o método de estudo de caso, quando aplicado à compreensão de fenómenos do campo
educacional, como é o caso do presente estudo, pode influenciar, ou até modificar discursos e práticas
educativas. Em relação ao estudo de inovações pedagógicas, avaliação de programas de formação e
informação para formulação de políticas públicas, o estudo de caso tem se revelado particularmente útil
(Merriam, 1998).
94
Embora o processo seja o foco principal do presente estudo, segue-se, aqui, a definição de estudo
de caso proposta por Stake (2005), “a case study is both a process of inquiry about the case and the
product of that inquiry” (p. 443). Merriam (1998) considera que a falta de clareza que, por vezes, se
verifica na condução de um estudo de caso “(…) is that the process of conducting a case study is
conflated with both the unity of study (the case) and the product of this type of investigation” (p. 27).
Neste sentido, definir “o caso” é uma das condições necessárias para desenhar qualquer pesquisa que
utilize o estudo de caso como método de investigação.
“O caso” constitui aquilo que se quer estudar. Um caso pode ser uma criança, uma turma, um
grupo de professores/as, um programa de formação, uma escola, uma organização, etc.. O que
caracteriza um “caso” é a sua especificidade e exclusividade, entendido como um “system bounded”
(Stake, 2005, p. 444). Merriam (1998) define caso “(…) as a thing, a single entity, a unit around which
there are boundaries” (p. 27). Para a autora, se o fenómeno a estudar (o caso) não estiver intrinsecamente
delimitado, não é um caso. A título de exemplo, um critério para saber se “temos um caso” consiste em
nos interrogarmos se existe um limite para a recolha de dados, isto é, se existe um número determinado
de pessoas para serem entrevistadas e um tempo determinado para fazer as observações necessárias
(Merriam,1998).
O “caso” a ser analisado no presente estudo obedece às características descritas acima. Trata-se
de um grupo de professoras/es do ensino secundário, a exercer as suas atividades letivas num
Agrupamento de Escolas do Algarve. Os/As professores/as que constituem a amostra do estudo foram
“escolhidos/as” aleatoriamente, ou seja, fizeram parte do estudo todas/os as/os professoras/es que se
inscreveram na Oficina de Formação Contínua de Professores/as93 intitulada “O Teatro na mediação de
conflitos interculturais na escola: Uma ferramenta pedagógica”. As várias etapas de recolha e análise
dos dados empíricos decorreu entre 20 de setembro de 2012 e 5 de julho de 2013 na escola secundária
onde as/os participantes exerciam as suas funções docentes 94. As pré-entrevistas individuais foram
realizadas entre 2 e 16 de outubro de 2012. A componente presencial da oficina de formação teve início
no dia 1 de outubro de 2012 e terminou no dia 5 de dezembro de 2012. Esta componente corresponde a
25 horas de sessões presenciais conjuntas. Estas sessões foram realizadas na sala de teatro da escola
onde a pesquisa foi realizada. A componente “trabalho autónomo” da oficina de formação teve início
em janeiro de 2013 e terminou a 5 de julho de 2013. Esta componente corresponde a 25 horas de trabalho
93
A autora deste estudo apresentou a proposta desta formação ao Centro de Formação de Professores da Ria
Formosa, que ficou responsável pela divulgação da mesma, assim como pela seleção das/os candidatos/as. A
modalidade de oficina de formação corresponde a um total de 50 horas de formação, 25 horas são
obrigatoriamente presenciais e as restantes são ocupadas com trabalho autónomo. Esta formação corresponde
a 2 créditos e releva para efeitos de progressão na carreira docente, ao abrigo do artigo 5.º do Regime Jurídico
da Formação Contínua de Professores. A oficina de formação foi acreditada pelo Conselho Cientifico-
Pedagógico da Formação Contínua - CCPFC/ACC-70865/12.
94
A elaboração da proposta da oficina de formação, assim como os contactos com a administração da escola e
aprovação do Conselho Pedagógico decorreram entre março e junho de 2012.
95
individual e tem como objetivo aplicar as metodologias adquiridas nas sessões conjuntas de formação
no contexto de ensino e aprendizagem, em sala de aula ou noutro espaço educativo da escola.
Os critérios para a seleção desta escola estão relacionados com o facto de (1) a investigadora do
presente estudo pertencer ao quadro do Agrupamento de Escolas onde foi realizada a pesquisa, o que
lhe facilitou o acesso à administração da escola e à aprovação, em conselho pedagógico, da realização
da oficina de formação para fins de dissertação de doutoramento; (2) ser uma escola com uma
significativa diversidade étnica, racial e de expressão de género de alunos/as; (3) ter um projeto
educativo de escola que tem como finalidade última a educação para a cidadania ativa e os direitos
humanos; (4) a investigadora presenciar, quer entre alunas/os, entre professoras/es ou entre alunos/as e
professoras/es, discursos e práticas discriminatórias em função do género, raça, etnia e orientação
sexual. Acrescente-se que o facto da unidade de análise ser constituída por um grupo de professores/as
do ensino secundário de uma escola da rede pública pode ilustrar, tipificar e generalizar um sistema mais
alargado de situações vividas noutros contextos educacionais.
Para além desses aspetos, o recurso a entrevistas semiestruturadas permite ao/à investigador/a
adquirir um maior conhecimento sobre o tema em estudo e utilizar esses dados na formulação de
entrevistas futuras, que podem ser mais estruturadas. De acordo com Bogdan & Bliken (1994), podem-
se usar diferentes tipos de entrevista em diferentes fases da mesma pesquisa. No presente estudo optou-
se por usar três tipos de entrevista: a entrevista semiestruturada, individual e de grupo (grupos de
discussão e grupo focal.
96
formação, aplicou-se as entrevistas semiestruturadas, embora mais estruturadas do que as primeiras,
com o objetivo analisar o impacto da oficina de formação, particularmente, o método do Teatro-Imagem,
quer na identificação e questionamento dos discursos produzidos no âmbito da oficina pelas/os
participantes, quer no potencial do Teatro-Imagem como um método a ser utilizado no contexto de sala
de aula ou noutros contextos escolares.
A entrevista de grupo (grupo focal) foi utilizada na última fase da pesquisa e tinha como objetivo
fazer uma reflexão e uma avaliação de todo o processo de formação e pesquisa, que envolvia, quer a
componente presencial da oficina de formação, quer a componente de trabalho autónomo das/os
participantes. Este tipo de entrevista possibilitou, igualmente, a partilha de experiências entre o grupo,
relativamente às atividades que desenvolveram com as suas turmas a partir das metodologias
desenvolvidas na oficina de formação.
3.3.2 Teatro-Imagem
95
A aplicação das técnicas do Teatro-Imagem como método desta investigação enquadra-se num género de
pesquisa designada “arts-based educational research (ABER), desenvolvida na academia norte-americana na
década de 1990 pelos investigadores Barone (2001) e Eisner (1991), inspirados nos trabalhos de John Dewey
(1934/1958).
96
A designação de Teatro do Oprimido deriva da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire (1970), segundo
explicação do próprio autor (Boal, 2000).
97
Durante quinze anos (1956-1971) Boal dirigiu o elenco do Teatro de Arena de S. Paulo. A primeira técnica do
Teatro do Oprimido desenvolveu-se no auge da ditadura militar no Brasil, em 1971, e foi designada por “teatro-
Jornal. Durante o exílio em países da América Latina, também sob regimes ditatoriais, como a Argentina e o
Peru, Boal desenvolveu o Teatro-Fórum, o Teatro-Invisível e o Teatro-Imagem (1971-1976). Na Europa (1976-
1986) cria as Técnicas Introspectivas, também designadas por Arco-Íris do Desejo e funda o Centre du Théatre
de L’opprimé, em Paris. De regresso ao Brasil, Boal desenvolve a técnica do Teatro Legislativo no período em
que foi vereador na cidade do Rio de Janeiro (1993-1997) (Henriques, T., 2006).
97
Uma das condições para se praticar as técnicas do Teatro-Imagem é compreender um dos
princípios básicos do Teatro do Oprimido: “A imagem do real é real enquanto imagem” (Boal,
1973/1998, p. 233), por isso, não devemos trabalhar com a imagem da realidade, mas com a realidade
da imagem. Imagem não é sinónimo de símbolo, pelo contrário, ela é a própria realidade e, por isso,
pertence às linguagens sinaléticas, significado e significante são indissociáveis. Na perspetiva de
Foucault (1972), as “imagens” são “falas” que (re)produzem determinados discursos e práticas
discursivas no contexto de relações desiguais de poder/saber.
A imagem teatral representa “a primary speech genre” (Barone, 2001, p. 25). Neste sentido, ela
constitui-se como uma fonte primária de dados, mostrando através da expressão corporal aquilo que a
palavra muitas vezes confunde ou oculta (Marin, 2007). O poder comunicativo das imagens teatrais
torna difícil colocar a hipótese de compreender os discursos que elas revelam através de qualquer outra
forma mais convencional de pesquisa. Boal (1973/1998) enfatiza esta função maiêutica e criativa do
Teatro-Imagem, quer pela forma como traz à luz um pensamento ou emoção através de uma imagem
“real”, quer através da criação de uma imagem “ideal” mediante um processo de transição imagético e
transformador.
Na mesma linha de pensamento, Barone (2001) considera que a investigação através da arte
“(…) aim to disturb, to interrogate personal and cultural assumptions that have come to be taken for
granted. [It also aims] challenging (sometimes deeply held) beliefs and values” (p. 26). A filosofia do
Teatro do Oprimido, de inspiração Marxista e ancorada na Pedagogia do Oprimido (Paulo Freire) visa
não apenas interpretar a realidade, mas transformá-la. A prática desta forma de fazer teatro configura-se
como um espaço de “investigação-ação” social e político, cujo objetivo consiste em transformar o
espetador (ser passivo no espaço teatral) em ator (sujeito da ação teatral), ou seja, num “spect-ator”
(Boal, 1973/2005, pp. 181-182).
98
(dinamização das imagens teatrais). Essa pluralidade, como refere Barone (2001), “(…) is a plurality in
which no singular voice - none of the voices of the characters (i.e., research participants) nor, especially,
that of the researcher-author - is privileged over others” (p. 25). No espaço estético da investigação-
ação, as/os participantes agem como “spect-atores” e não como “espetadores” passivos do processo de
produção e/ou apresentação de conhecimento.
99
problema foi solucionado no “palco”. Deste modo, a plateia também deve observar em função do POC
de modo a evitar que se criem “modelos de comparação, critérios de qualidade, julgamentos de valor e
respostas subjectivas” (Spolin, 1963/1992). A constituição de uma “plateia” permite que todos/as os/as
participantes estejam envolvidas/os em cada atividade do processo de formação-investigação, incluindo
os momentos de avaliação. A “validade” de qualquer processo de avaliação depende, fundamentalmente,
da definição clara de objetivos a alcançar.
O sistema de avaliação do processo dos jogos teatrais decorre da utilização, ou não, das regras
do jogo e da função do POC no problema a ser solucionado. Para Spolin (1963/1992), ela deve ocorrer
depois de cada atuação (jogo) e ser realizada por todas/os as/os participantes. A avaliação deve ser
objetiva (no sentido de intersubjetiva) e apoiar-se nas regras definidas para o jogo. O ponto de partida
do momento de avaliação é a pergunta direta: “Eles solucionaram o problema?”, “Comunicaram ou
interpretaram?”, “Mostraram ou contaram?”, “Agiram ou reagiram?”, “Mantiveram o Ponto de
Concentração?” (p. 24). Este procedimento de avaliação revelou-se extremamente útil na presente
investigação-ação, uma vez que permitiu por um lado, que a recolha e a análise de dados fosse realizada
por todas/os as/os participantes e, por outro, que essa avaliação fosse contínua, uma vez que a avaliação
faz parte do próprio jogo teatral. Os diálogos que se desenvolveram nos momentos de avaliação foram
registados em áudio e transcritos posteriormente.
Por último, importa esclarecer que as técnicas do Teatro-Imagem foram adaptadas ao contexto
empírico do estudo, tendo como referência o paradigma da interseccionalidade, quer na sua vertente
teórica, quer no seu enfoque metodológico, com vai ser apresentado seguidamente. No entanto, as
adaptações realizadas salvaguardaram as recomendações de Boal (1973/1998): “Só não se podem pôr
em questão os princípios mesmos do Teatro do Oprimido, que é um método complexo e coerente. E
esses princípios são: a) a transformação do espectador em protagonista da ação teatral; b) a tentativa de,
através dessa transformação, modificar a sociedade, e não apenas interpretá-la” (p. 319).
3.3.3 Interseccionalidade
100
limites e as vantagens de três abordagens metodológicas distintas no campo da pesquisa da
interseccionalidade.
O segundo nível de análise opera, igualmente, ao nível da abstração. Aqui, as categorias socias
101
são entendidas como categorias produzidas pelas práticas discursivas e têm como função estabelecer
diferenças e hierarquias sociais98. A forma como as categorias sociais surgem nesses discursos difere ao
longo do tempo e depende das relações de poder que estão em jogo em determinados contextos. No
entanto, como sublinha Anthias (2013), neste nível de análise, as categorias sociais enquanto formas de
discurso são irredutíveis entre si, e, por essa razão, não correspondem às relações sociais concretas que
as pessoas vivem. Como bem ilustra Yuval-Davis (2006),
(...) gender should be understood not as a ‘real’ social difference between men and women, but as a mode
of discourse that relates to groups of subjects whose social roles are defined by their sexual/biological
difference while sexuality is yet another related discourse, relating to constructions of the body, sexual
pleasure and sexual intercourse. Ethnic and racial divisions relate to discourses of collectivities
constructed around exclusionary/inclusionary boundaries (Barth, 1969) that can be constructed as
permeable and mutable to different extents and that divide people into ‘us’ and ‘them’ (p. 201).
Assim, para abordar as relações sociais concretas que as pessoas vivem, é necessário um outro
nível de análise que, ao contrário dos níveis apresentados anteriormente, não faça uma distinção analítica
entre as categorias/ontologias sociais. De acordo com Anthias (2013), este nível de análise “(…) is where
the notion of intersectionality comes into its own, particularly with regard to the formation of complex
inequalities found in relations of hierarchisation and stratification” (p. 10). No mundo concreto das
relações sociais, as pessoas são/estão posicionadas em múltiplos e intersetados eixos sociais de
discriminação e/ou privilégio que, por sua vez, estão localizados em diferentes arenas sociais da vida
social e em diferentes contextos espaciais e temporais.
Para operacionalizar “o nível das relações sociais concretas”, Anthias (2013) e Yuval-Davis
(2006) propõem quatro “arenas sociais de investigação” (Anthias, 2013, p. 10) como uma ferramenta
heurística que auxilia a/o investigador/a a organizar os campos e os temas da pesquisa interseccional e
a estabelecer as respetivas comparações entre eles. Cada arena de investigação mobiliza um campo de
investigação próprio. Assim, a arena “organizacional” (organisational) foca-se na forma como as
categorias sociais se organizam ao nível das instituições como, por exemplo, os sistemas educativos, as
estruturas e redes familiares, etc; a arena “representacional” (representational) foca-se nas categorias
sociais mobilizadas pelos discursos (imagens, textos, documentos) em diferentes contextos
institucionais; a arena “intersubjetiva” (intersubjective) foca-se nas relações interpessoais, incluindo,
quer as relações entre pessoas civis, quer as relações entre as forças policiais e outros/as, por exemplo.
Pode incluir, também, a análise de padrões de identidade ou de alteridade (e.g. aproximação, amizade,
distanciamento). Por último, a arena “experiencial” (experiential) que se foca nas narrativas de
98
No presente estudo (Capítulo 1) utilizou-se este nível de análise para compreender o modo como as categorias
sociais de género, raça, etnia e orientação sexual se foram produzindo ao nível dos discursos políticos sobre a
igualdade e a não discriminação, no plano internacional, europeu e nacional. Nesta análise foi incluído o
discurso produzido sobre a interseccionalidade.
102
identificação e diferenciação relacionadas com a produção de significados e a sociabilidade (Anthias,
2013, p. 11). Yuval-Davis (2006) descreve esta arena de investigação situando a análise no modo como
as categorias sociais determinam a forma como as pessoas “(...) experience subjectively their daily lives
in terms of inclusion and exclusion, discrimination and disadvantage, specific aspirations and specific
identities. Importantly, this includes not only what they think about themselves and their communities
but also their attitudes and prejudices towards others” (p. 198).
Por último, importa referir que a interseccionalidade, para além de uma metodologia de
identificação e análise de estruturas intersetadas de poder e privilégio, tem como finalidade última
definir estratégias para desafiar e transformar as desigualdades sociais que resultam de várias formas de
exercício de poder. Neste sentido, para além dos pressupostos metodológicos da interseccionalidade se
articularem com o método de pesquisa investigação-ação, os princípios teóricos do paradigma da
interseccionalidade vão ao encontro das críticas que têm sido colocadas à forma como a investigação-
ação interroga os dados, principalmente na fase da análise e reflexão (Jennings & Graham, 2005). De
acordo com estes autores, “[b]ecause action research has been grounded in practitioner-oriented terms,
(…) theoretical perspectives have not been adequately explored” (p. 138).
103
3.3.4 Análise crítica do discurso
A “fala” dos sujeitos é (re)produzida através de discursos e transforma-se em ação (Young, K.,
2016), porque a forma como as pessoas são categorizadas num determinado contexto e momento
histórico muda a vida dessas pessoas, uma vez que as posiciona em diferentes estruturas sociais de poder
e de privilégio, quer ao nível simbólico, político, económico e institucional. Por isso, como acentua
Nogueira (2001b), o objetivo da análise crítica do discurso “(…) é essencialmente identificar padrões
de linguagem com práticas com eles relacionadas e mostrar como estas constituem aspectos importantes
da sociedade e das pessoas dentro dela” (p. 28).
Pelo que foi exposto, a opção pela técnica de análise crítica do discurso no presente estudo
justifica-se, por um lado, pelo facto de partilhar os mesmos pressupostos epistemológicos e
metodológicos das teorias que enquadram esta investigação, nomeadamente, o paradigma da
interseccionalidade, as teorias feministas, a teoria critica racial e a pedagogia crítica. Por outro lado, a
análise crítica do discurso revela-se uma técnica adequada, quer em relação à natureza qualitativa desta
investigação, quer em relação à análise e interpretação do objeto em estudo: os discursos de um grupo
de professoras/es sobre si próprias/os e sobre outros/as baseados em categorias de género, raça, etnia e
orientação sexual.
O terceiro resulta dos argumentos anteriores, destacando-se o modo como as interpretações são
sempre influenciadas por questões de ordem política e ética, uma vez que elas são produzidas num
contexto social estruturado por relações de poder. Neste sentido, como afirmam os autores, “(…)
interpretation is not simply an individual cognitive act but a social and political practice” (p. 12).
Os estudos de Egon Guba e Yvonna Lincoln (1985, 1986) têm como objetivo desafiar o modelo
de validade e fiabilidade positivista através da apresentação de um conjunto de critérios que ajudem
os/as investigadores/as qualitativos/as a demonstrar a credibilidade das suas interpretações. Os autores
desenvolvem duas abordagens distintas: “critérios paralelos de confiabilidade” (parallel criteria of
trustworthiness) e “critérios únicos de autenticidade) (unique criteria of authenticity (Schwandt et al.,
2007, p. 12). Embora com características e objetivos completamente distintos, estas duas formas de
105
abordar os critérios de validade são complementares, uma vez que colocam diferentes questões quanto
à validação da pesquisa qualitativa e exigem formas diferentes de operacionalização desses critérios.
A primeira abordagem, tal como sugere o modo como é designada, descreve os critérios de
validação de uma forma paralela aos critérios “científicos” mais conhecidos e utilizados, quer na
pesquisa quantitativa, quer na qualitativa: credibility (validade interna), transferability (validade
externa), dependability (fiabilidade) e confirmability (objetividade). Em relação ao modus operandi dos
“critérios paralelos de confiabilidade”, propostos por Guba e Lincoln (1985), não se verifica uma
diferença significativa em relação a outros/as autores/as que abordam estas questões. Sumariamente, e
usando os termos criados por estes autores, credibilidade (credibility) remete para a questão da
congruência entre os resultados da pesquisa e a realidade do fenómeno estudado. No caso da pesquisa
qualitativa, as/os investigadoras/es são os/as principais instrumentos de recolha e análise dos dados e as
suas interpretações sobre a realidade são realizadas a partir das suas observações, entrevistas, etc. Neste
sentido, como argumenta Merriam (1998), na investigação qualitativa, as/os investigadoras/es “(…) are
‘closer’ to reality than if a data collection instrument had been interjected between [them] and the
participants” (p. 203). As estratégias mais comuns para operacionalizar a credibilidade de um estudo
consistem na “triangulação” (de fontes, métodos e até mesmo de investigadores/as); “confirmação de
pares” (verificação da congruência das interpretações e dos resultados a realizar pelas pessoas
envolvidas no estudo); “observação prolongada” (no contexto da pesquisa); “modo colaborativo de
pesquisa” (envolvendo todas/os as/os participantes em todas as fases da investigação); “subjetividades
do/a investigador/a” (identificação das posições ideológicas da/o investigadora e o reconhecimento da
influência das mesmas nos resultados da pesquisa).
106
O terceiro critério, consistência (dependability), pretende ser uma alternativa à fiabilidade,
entendida, no contexto da pesquisa quantitativa, como a replicação dos resultados da pesquisa, ou seja,
se o estudo for repetido, irão obter-se os mesmos resultados? No contexto da pesquisa qualitativa, a
fiabilidade será o critério mais difícil, senão impossível, de operacionalizar. Merriam (1998) apresenta
três razões para essa impossibilidade no campo da pesquisa educacional: (1) o objeto em estudo é sempre
fluido, multifacetado e acentuadamente contextualizado; (2) a recolha dos dados depende de quem os
fornece e da competência interpretativa da/o investigador/a; (3) o desenho do estudo qualitativo não
pode ser controlado a priori, uma vez que depende de situações que vão emergindo ao longo do processo
(p. 206). Dada a impossibilidade de aplicar o critério da fiabilidade à pesquisa qualitativa, Guba &
Lincoln (2005) propõem o critério de “dependability” para validar os resultados obtidos através dos
dados. Neste sentido, a questão que se coloca não é a de averiguar se os resultados podem ser repetidos
por outros/as investigadores/as, no mesmo contexto, mas verificar se os resultados obtidos na pesquisa
são consistentes com os dados recolhidos (Merriam, 1998). Para além da triangulação (já requerida para
validar o critério da credibilidade), o/a investigador/a deve explicitar o design da investigação, a sua
posição em relação ao grupo que integra a pesquisa, a forma como selecionou os/as participantes, uma
descrição dos mesmos/as e do contexto social no qual os dados foram obtidos. Para além destas
estratégias, é recomendada uma auditoria externa que deve ser realizada, pelo menos, por dois/duas
auditores/as externos/as, que terão funções distintas, ou seja, um/a examina o processo e outro/a deve
examinar os resultados da pesquisa.
A segunda abordagem propõe uma alternativa, quer em relação ao paradigma positivista, quer
em relação aos critérios paralelos de confiabilidade. Os critérios de “justiça” (fairness), “autenticidade
ontológica” (ontological authenticity), “autenticidade educativa” (educative authenticity) e
“autenticidade catalítica” (catalytic authenticity) constituem o que os autores designam por critérios
únicos de autenticidade (p. 12). Segue-se uma explicação sumária de cada critério:
Fairness: O critério de justiça pressupõe que não há pesquisas neutras, ou seja, que toda a pesquisa
107
se confronta com um sistema plural de valores que é necessário ter em conta. Para os autores, “Fairness
may be defined as a balanced view that presents all constructions and the values that undergird them”
(p. 20). Para alcançar um nível significativo de justiça, é necessário (1) explorar e apresentar de uma
forma colaborativa, todos os diferentes sistemas de valores e crenças que sustentam os discursos dos/as
participantes, incluindo as perspetivas ideológicas das/os investigadoras/es. Este procedimento deve ser
realizado em todas as fases do processo de recolha e análise de dados; (2) o envolvimento e a
contribuição de todos/as os/as participantes da pesquisa, quer na avaliação final da mesma, quer na
recomendação para futuros planos de ação. Este momento deverá ocorrer depois de terminadas as fases
de recolha, análise e interpretação dos dados;
Educative Authentication: Este critério implica que cada participante da pesquisa compreenda, ao
mesmo tempo, as práticas discursivas das/os outras/os participantes e o modo como essas práticas são
(re) produzidas a partir de diferentes sistemas de valores. Para atingir este critério, pode ser necessária
a implementação de algumas estratégias específicas que envolvam todos/as os participantes;
Tactical Authenticity: A implementação da ação, por si só, não garante a sua efetividade. Este
critério só pode ser alcançado se através da avaliação dos resultados da pesquisa, se verificar que
todas/os as/os participantes desenvolveram as ferramentas necessárias para que a sua ação se torne
efetiva, ou seja, que promova a mudança. A verificação deste critério impede que “(…) respondents are
seen simply as “subjects” who must be “manipulated,” channeled through “treatments,” or even
deceived in the interest of some higher “good” or “objective” truth” (p. 24).
Apesar de existir, atualmente, uma literatura que oferece uma diversidade de critérios e de
operacionalização dos mesmos, para validar o processo e os resultados das pesquisas, a opção por
estratégias de validação de um estudo deve ser realizada de acordo com a natureza do estudo, os métodos
utilizados e as características específicas do contexto em que a pesquisa se insere. Deste modo, no
108
presente estudo procurou-se articular as estratégias de operacionalização dos critérios de avaliação com
a metodologia de investigação-ação qualitativa, os métodos utilizados e o contexto em que se
desenvolveu a pesquisa.
109
insights” (p. 16).
Para além do critério da cristalização, foram aplicados neste estudo os critérios únicos de
autenticidade (Schwandt, Guba & Lincoln, 2007). Estes critérios são, em parte, semelhantes, quer aos
princípios da cristalização, quer aos pressupostos teóricos e metodológicos da investigação-ação. O
critério de justiça (fairness) foi operacionalizado, por um lado, através da exploração, discussão e
apresentação das diferentes e contraditórias posições ideológicas de todos/as os/as participantes em
todas as fases do processo de investigação, através das técnicas do Teatro-Imagem e dos grupos de
discussão. Por outro, tratando-se de uma investigação-ação, o envolvimento e a contribuição de todas/os
participantes na pesquisa foi assegurado, quer na avaliação final do estudo, quer na recomendação para
futuros planos de ação, através das entrevistas individuais e coletivas e dos grupos de discussão. O
critério de autenticação ontológico (ontological authentication), assim como o critério de autenticação
educativa (educative authentication) foram aplicados na fase de questionamento dos discursos
identificados nas imagens teatrais construídas pelas/os participantes no contexto da oficina de formação,
contribuindo, deste modo, para um diálogo crítico entre as várias posições ideológicas e práticas
discursivas assumidas pelas/os participantes e o modo como essas práticas são (re)produzidas a partir
das mesmas. Um dos pressupostos metodológicos da investigação-ação consiste em orientar a pesquisa
para resultados abertos, em forma de diálogo, onde haverá lugar para refletir e questionar as várias
interpretações possíveis da experiência. Winter (2005) defende que a dimensão de validade dos
resultados da pesquisa reside na possibilidade de questionamento desses mesmos resultados.
110
para definir um tipo de pesquisa “(…) about changing practice, developing the understanding of the
practice, and also changing the situation in which the action or practice occurs” (Postholm, 2011, p.
231).
A investigação estudo de caso, como refere Yin (2005), reveste-se de uma particularidade
tecnicamente única em que surgem sempre mais variáveis de interesse do que pontos de dados. Como
resultado, beneficia-se, por um lado, de várias fontes de evidências, com os dados precisando convergir
em um formato de cristal (o autor usa o termo triangulação) e, por outro, do desenvolvimento prévio de
perspetivas teóricas para conduzir a recolha e a análise de dados. O desenho deste processo vai ser
apresentado no ponto seguinte.
Ainda nesta primeira fase, foi elaborada uma proposta de oficina de formação contínua de
professores/as - “O Teatro na mediação de conflitos interculturais na escola: Uma ferramenta
pedagógica” - e submetida à aprovação do conselho pedagógico da escola onde se iria realizar a pesquisa
e do Centro de Formação de Professores da Ria Formosa.
A terceira etapa consiste na “análise dos dados” obtidos através das entrevistas individuais. No
presente estudo, os dados foram analisados recorrendo à estratégia da análise crítica do discurso
(capítulo 5). Nalguns casos, recomenda-se uma sessão de feedback sobre a análise dos dados com o
grupo envolvido na pesquisa. De acordo com Tomal (2003), “The feedback session is a crucial stage in
an action research process that provides an element of collaboration” (Tomal, 2003, p. 14). No presente
estudo, optou-se por não fazer uma sessão de feedback99 sobre a análise dos dados recolhidos a partir
das entrevistas, uma vez que o conteúdo das entrevistas era confidencial. O objetivo principal desta
etapa consistiu em identificar os discursos que produziram a “fala” dos/as professoras sobre o tema das
(de)igualdades sociais de género, raça, etnia e orientação sexual.
A quarta etapa, “planificação da ação”, “is the decision-making segment of the process” (Tomal,
2003, p. 16). Esta fase do processo de investigação teve como foco a preparação da implementação da
oficina de formação. Neste sentido, foram revistos e reformulados alguns conteúdos do programa da
formação, tendo como base a análise preliminar dos dados obtidos com as entrevistas individuais. Para
além disso, houve uma reunião com todos/as participantes para aferir alguns aspetos relativos ao
calendário, objetivos, metodologia e avaliação da oficina de formação.
99
Na etapa da implementação da ação houve espaço para sessões de feedback sobre os dados obtidos através das
imagens teatrais construídas pelas/os próprias/os participantes.
112
acompanhamento foi realizado pela investigadora principal durante a etapa da implementação da ação
e, posteriormente, na fase de trabalho autónomo, que consistiu na aplicação das metodologias
desenvolvidas na oficina de formação a outros contextos escolares.
113
114
CAPÍTULO 4 – ETAPAS DO PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO-AÇÃO I
Introdução
Enquanto o objetivo principal das duas primeiras etapas consistia em identificar os discursos
dos/as professores/as sobre as (des)igualdades sociais, na sociedade e na escola, em função de eixos de
poder e desigualdades sociais, a terceira etapa tinha como objetivo elaborar um roteiro de formação-
ação-investigação para abordar essas temáticas. A explicitação dos objetivos específicos de cada etapa
e respetivos instrumentos de recolha e análise de dados será efetuada etapa a etapa, embora de uma
forma não linear, uma vez que, tratando-se de uma investigação-ação qualitativa, cada fase ou etapa da
pesquisa progride em forma de espiral no sentido de obter um conjunto de resultados “cristalizados” que
reflitam todas as fases do processo investigativo-ação-formação (Ellingson, 2009).
4.1.1 Objetivos
O objetivo principal desta primeira etapa consiste em proceder a uma primeira fase de recolha
de dados que permita criar um primeiro ponto de referência, como um mapa cognitivo de leitura, para
obter uma visão de conjunto, abrangente e macroscópica, do modo como as questões das (des)igualdades
de género, raça, etnia e orientação sexual emergem nos discursos das/os professoras/es que fazem parte
do nosso estudo de caso. Além deste objetivo geral, foram delimitados os seguintes objetivos mais
específicos: (1) Conhecer as variáveis que caracterizam o grupo de participantes, do ponto de vista
pessoal e demográfico; (2) Verificar até que ponto se reproduzem nesta amostra os principais resultados
das investigações já realizadas sobre o tema; (3) Diagnosticar os discursos normativos mais acentuados
para posterior intervenção no contexto da oficina de formação; (4) Obter um conjunto de dados de
referência para (a) uma posterior comparação entre os discursos produzidos através da entrevista e os
discursos produzidos no contexto da oficina de formação e (b) avaliar a oficina de formação no
100
A primeira etapa consistiu na “formulação do problema”, tal como foi apresentada no Capítulo 3.
115
questionamento e transformação desses discursos.
4.1.2 Participantes
101
A disparidade entre a representação de género na amostra (75% mulheres para 25% de homens) não deixa de
ser representativa, uma vez que, de acordo com os dados da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e
Ciência (DGEEC, 2005), relativos ao número de docentes do 3.º Ciclo do ensino básico e secundário a lecionar
no ano letivo de 2013/14, num total de 67.458 docentes, 48.066 são mulheres, correspondendo a uma “taxa de
feminidade” de 71% (p. 58).
102
Em Portugal estas categorias não existem em termos de “Censos”, por isso, não foram incluídas neste Quadro.
116
P6 F 54 Línguas e Literaturas modernas Quadro de Escola
P7 F 52 Escultura Pública Quadro de Escola
P8 F 49 Gestão de Empresas Quadro de Escola
P9 F 52 Filosofia Quadro de Escola
P10 M 46 Dança/Gestão Ambiental e Contratação anual
Intercultural de Escolas
P11 F 40 Filosofia/Educação Artística Contratação anual
P12 F 54 Secretariado e Relações Quadro de Escola
Públicas.
Quadro 4.1. Caracterização das/os participantes
O guião da entrevista, apresentado abaixo (Quadro 4.2), inclui um conjunto de temas abertos,
com objetivos e questões analíticas muito gerais, construídos a priori, ou seja, a partir dos temas
orientadores da presente investigação, tal como foram abordados na fundamentação teórica e na revisão
da literatura no Capítulo 1 e de acordo com os valores, as orientações teóricas e as experiências pessoais
e profissionais da investigadora principal (Ryan & Bernard, 2003; Nogueira, 2001b).
117
- A orientação sexual das pessoas que fazem
parte da comunidade escolar é um assunto
que só diz respeito à pessoa?
- Achas que existe discriminação na escola?
Quem discrimina? Quais os grupos mais
discriminados?
Responsabilidade Compreender o tipo de - Qual o grau de responsabilidade que
perante os sistemas de responsabilização e de temos, enquanto cidadãs/os, perante as
dominação/opressão intervenção dos/as desigualdades sociais? E como
participantes
professoras/es?
- Como ages perante situações que
envolvem racismo, homofobia, sexismo,
etc.?
Autorreconhecimento Identificar o nível de - Achas que há grupos socialmente mais
das posições sociais compreensão das privilegiados do que outros? Quais?
posições de poder e de - Socialmente, sentes que pertences aos
privilégio ao nível
grupos sociais mais privilegiados ou mais
(inter)pessoal,
profissional e desfavorecidos? E na escola?
institucional - Quais os fatores que contribuem para que
haja desigualdades sociais tão acentuadas?
Quadro 4.2. Guião da Entrevista (E1)
118
construtos sociais, histórica e geograficamente situados e, como tal, “(…) explain virtually nothing in
and of themselves” (p. 316).
119
classificação ou categorização “(…) reflecting the recurring regularities or patterns in [the] study”
(Merriam, 1998, p. 181). Posteriormente, estas categorias foram aplicadas às restantes entrevistas. No
final do processo de organização dos dados, algumas categorias iniciais foram reformuladas e outras
foram acrescentadas à lista matriz, de acordo com o critério de que as categorias devem responder às
questões da pesquisa e refletir os objetivos propostos pela mesma (Merriam, 1998). O conjunto final de
categorias que emergiu de todo o processo de análise das entrevistas está representado no quadro
seguinte.
120
Autorreconhecimento das Género
posições sociais Privilégio Raça
Etnia
Opressão Orientação sexual
Classe
Cultura
Responsabilidade Responsabilidade Sociedade
perante os sistemas de Intervenção Escola
dominação/opressão
Quadro 4.3. Temas, categorias e subcategorias (E1)
Posteriormente à aplicação das categorias foram elaborados quadros e matrizes dos dados
analisados para cada entrevista individual, por temas e respetivas categorias, no sentido de aprofundar
a análise, estabelecer comparações entre os dados e identificar padrões de discurso e os seus
significados. Depois de realizado este processo, foram elaboradas matrizes dos padrões de discurso
identificados na análise dos dados das entrevistas individuais, permitindo, desta forma, uma análise-
síntese e comparativa do significado dos padrões de discurso constituído através da “fala” (unidades de
registo) dos/as participantes, em relação a cada tema e respetivas categorias. Este procedimento
permitiu, por fim, identificar, num primeiro momento, os discursos dominantes sobre os temas que
foram abordados e, posteriormente, analisar as implicações desses discursos nas relações sociais
concretas, ou seja, os seus “efeitos discursivos” (Nogueira, 2001b, p. 41). A título de exemplo, no
presente estudo, colocámos a questão de saber quais as consequências entre reconhecer que o racismo,
o sexismo e a homofobia são comportamentos esporádicos, que acontecem ao nível das relações
interpessoais, ou, pelo contrário, reconhecer que essas práticas são estruturais, produzidas em vários
domínios de relações desiguais de poder. Procurar responder a questões deste género é uma forma de
identificar e alargar as implicações ou os efeitos discursivos a um nível macro.
121
determinam o modo como as/os participantes “falam” a partir das suas experiências pessoais e
profissionais, em termos de des(igualdades) sociais, sistemas de dominação e opressão, exclusão e
inclusão, responsabilidade e intervenção, quer em relação a si mesmos/as, quer em relação a outras/os
(Yuval-Davis, 2006). Numa segunda abordagem, utilizaram-se os níveis intersubjetivo, representacional
e organizacional para analisar e interpretar os potenciais efeitos discursivos ao nível da reprodução e
manutenção de sistemas desiguais de poder e de privilégio.
A apresentação dos resultados da análise dos dados está organizada de acordo com os temas
abordados na entrevista e com os discursos identificados para cada um desses temas. A apresentação dos
resultados e a sua interpretação será feita detalhadamente, recorrendo a excertos dos discursos das/os
participantes que parecem caracterizar os discursos normativos identificados pela investigadora. Serão
também apresentados os resultados do estudo das implicações desses discursos, ou seja, os seus efeitos
discursivos, que, na opinião de Nogueira (2001b), é um dos passos mais importantes da análise crítica
do discurso.
Este tema engloba as categorias de “género”, “raça”, “etnia” e “orientação sexual” e tem como
objetivo perceber o modo como as/os participantes se identificam, ou não se identificam, de acordo com
essas categorias sociais. A tabela 4.1, abaixo, é esclarecedora em relação à “naturalidade” com que as/os
participantes se identificam em função do “género” e da “orientação sexual”. No primeiro caso, os
homens identificaram-se como sendo do género masculino e as mulheres do género feminino (100% de
respostas). No segundo caso, a maioria identificou-se como heterossexual (n=9), exceto três
participantes que não referiram a sua orientação sexual. Em relação à autoidentificação em termos de
“raça” e pertença a um grupo étnico, dois terços das/os participantes (n=8) recusaram identificar-se com
122
uma “raça”, obtendo-se um resultado semelhante (n=7) para a identificação com uma determinada
“etnia”. Em relação à raça, as/os participantes identificaram-se como “brancas/os” (n=2) e
“caucasianos/as” (n=2) e em relação aos resultados relativos à identificação pela “etnia”,
autoidentificaram-se “branca/o” (n=1), “algarvia e farense” (n=1), “latina e portuguesa” (n=1), “latina”
(n=1) e “ocidental” (n=1).
Tabela 4.1. Distribuição da autoidentificação pelo “género”, “raça”, “etnia” e “orientação sexual”
Género (N=12) N Raça (N=12) N Etnia (N=12) N Orientação Sexual N
(N=12)
Feminino 9 Não se 8 Não se 7 Heterossexual 9
identificam identificam
Masculino 3 Branca/o 2 Branca 1 Não refere 3
Caucasiana/o 2 Algarvia e farense 1
Latina e 1
portuguesa
Latina 1
Ocidental 1
A partir da análise dos resultados obtidos foram identificados dois discursos que parecem
constituir o modo como as/os participantes se autoidentificaram. O primeiro foi designado como
discurso sobre o sistema binário de género e o segundo como discurso da negação da raça (branca). A
denominação e a caracterização desses discursos têm como suporte teórico e metodológico, quer a
revisão da literatura sobre os temas abordados, quer os excertos do texto das entrevistas realizadas.
No caso da autoidentificação pelo “género” e pela “orientação sexual” não existem unidades de
registo de texto, respetivamente, para além do “masculino” ou “feminino” e do “heterossexual”. A forma
como as/os participantes se identificaram em termos de “género” remete para uma conceção binária de
género que surgiu no contexto das Ciências Sociais no início da década de 1970, através da publicação
da obra da socióloga Ann Oakley, intitulada Sex, Gender and Society (Amâncio, 2003). Para Oakley, o
termo “sexo” designa as diferenças biológicas entre mulheres e homens e “género” refere-se à
classificação social masculino/feminino. Apesar das críticas que têm sido feitas ao sistema binário de
género, tal como foi apresentado no Capítulo 2, o conceito de género continua a estar associado à relação
entre mulheres e homens, transformando-se, assim, numa categoria dicotómica que faz corresponder o
género feminino à mulher e o género masculino ao homem. Nesta perspetiva, o discurso normativo
sobre o género não reconhece outras identidades de género (transsexual, transgénero, intersexual, entre
muitas outras), nem outras expressões de género para além do feminino e do masculino.
123
O efeito deste discurso poderá ser o não reconhecimento e a discriminação de outras identidades
e expressões de género, para além das naturezas fixas da feminilidade e da masculinidade associadas,
respetivamente, à mulher e ao homem. A título de exemplo, o concurso para Miss e Mister Escola, que
acontece uma vez por ano nas escolas secundárias de norte a sul de Portugal, reproduz a divisão binária
de género, recorrendo aos padrões estereotipados de feminilidade e masculinidade para selecionar as/os
candidatas/os ao concurso e validar o processo competitivo. Estas práticas discursivas em relação à
conformidade do corpo com os ideais de “beleza” feminina e masculina no cenário dos concursos
postulam “um jogo perigoso entre saber-poder, que nos induz a pensar que corpos dissonantes são vistos
ainda como corpos que precisam ser ʻconsertadosʼ e ʻreadequadosʼ para se realocarem no ʻpadrão de
excelênciaʼ dos corpos normativos” (Camargo & Kessler, 2017, p. 194).
“Todos somos seres humanos (…). Não me identifico com raça nenhuma.” (P12)
“Não sinto que pertenço a uma raça, porque eu acho que sou eu e não tenho de pertencer a raça nenhuma.”
(P2)
“(…) a questão da raça e das raças não foi uma questão que me preocupasse muito, até porque eu acho
que de racista nunca tive assim grande coisa, tal como de nacionalista também não.” (P3)
“Não sei se conseguia identificar-me com uma raça. Mas toda a minha cultura, o sítio onde nasci, a minha
educação foi completamente europeia, mediterrânica, portuguesa.” (P6)
“Só se for latino. Sou latino, sinto-me de pertença a este grupo humano .” (P4)
124
“(…) todos nós pertencemos a um grupo étnico. Sou algarvia, pertenço ao grupo de cidadãos de Faro.
Aquela etnia no sentido puro que a gente identifica com determinadas características culturais, cada vez
se vai mais perdendo.” (P2)
“Nem discrimino os outros, nem eu própria me identifico com um grupo restrito de etnia.” (P5)
“A única coisa que te posso dizer com franqueza, que realmente sinto, é que sou portuguesa, nesse
sentido do lusitano.” (P6)
O discurso da negação da raça (branca) e da etnia produz vários efeitos que é importante analisar
e diferenciar. Primeiro, é uma forma de se distanciar e diferenciar do/a “outro/a”, especificamente, das
pessoas portuguesas de ascendência “africana” e de “etnia” cigana, imigrantes “africanas/os”, dos
“países de Leste” ou “árabes” e “muçulmanos”. Segundo, a invisibilidade da raça (branca) perpetua o
sistema de relações desiguais de poder, através da manutenção de privilégios económicos, sociais,
culturais e políticos da “raça branca”. Terceiro, o não reconhecimento da categoria de “raça branca”
retira qualquer responsabilidade e intervenção dos/as brancos/a na luta contra o racismo institucional.
125
(cigana)
Origem (geográfica) 4 Cultura (cigana) 3
Etnia (cigana), cor da 1
pele e nacionalidade
Etnia (cigana) 1 Origem (geográfica) 1
Traços fisiológicos 1 Cor da pele 1
“(…) a [aluna] guineense, que era mesmo guineense, preta, preta, escura (…).” (P4)
“(…) tenho só raças [em relação a alunos e alunas]. Até costumo brincar com isso, brincar com a raça
para que os outros vejam que são todos iguais. Tenho negros, duas, não sei se são de Cabo Verde ou
não. Uma é mais escurinha do que outra (…)” (P12)
“Raça naquele sentido… raça, raça. Tenho um rapazinho do Senegal, depois acho que não tenho assim
mais ninguém.” (P2)
No que respeita à identificação das etnias predominam as referências à etnia cigana, quer como
“minoria étnica” (n=4), quer como “cultura cigana” (n=3):
“A etnia cigana, apesar de já haver uma mistura, também (…). Se calhar é o grupo mais evidente, em
termos étnicos.” (P2)
Num caso específico, a etnia é definida pela etnia cigana, cor da pele e nacionalidade:
“Tenho [alunos e alunas de] etnias de ciganos, negros, ucranianos, brasileiros, moldavos, romenos.”
(P8)
“Tenho imensos [alunos de etnias diferentes]. Por exemplo, naquela turma de receção que eu falei há
bocado, tenho um marroquino (…), tenho outro que é de… ou é angolano ou é guineense. Depois tenho
uma brasileira, eu tenho muitos alunos de várias nacionalidades. Até à data dão-se todos bem, não temos
tido assim problemas. E também tenho sempre alunos de Cabo Verde, tenho sempre muitos alunos de
Cabo Verde. Esses são muito faladores e muito comunicativos, mais que os outros” (P5).
126
discurso de cariz colonialista que naturaliza dois grupos de pessoas distintas: as que são e as que não
são categorizadas étnica e racialmente, considerando-se, no caso das primeiras, as pessoas brancas de
origem europeia.
As consequências deste discurso têm um forte impacto, quer ao nível das orientações das
políticas públicas europeias antidiscriminação, quer ao nível das relações interpessoais que se
estabelecem no contexto das instituições, no caso, as escolas. Partindo do pressuposto de que o aumento
dos movimentos imigratórios é responsável pelo aumento da diversidade cultural e, consequentemente,
do racismo, as instâncias europeias têm proposto medidas de integração dos/as das minorias étnicas e
raciais através de promoção do diálogo intercultural. No entanto, de acordo com Maeso e Araújo (2017),
“Integration is presented as a process of social engineering, that is, a realignment of ethnically marked
people and institutions/organizations in which the former become ‘problems’ to be managed by the latter
(…) (p. 40)”.
Este discurso sobre a necessidade de integração das minorias na cultura dominante emerge nos
discursos das/os participantes no estudo, quer no sentido de reduzir os conflitos interculturais, quer no
sentido de controlar os índices de criminalidade:
“(…) o facto de virem pessoas dos países do Magreb, por exemplo, para cá e… um bocado aquele choque
nosso, acho eu, eles no fundo deveriam vir minimamente preparados, porque eles é que vêm de fora, o
choque nosso por vermos coisas tão diferentes. E desculpa, mas eu não consigo engolir que determinadas
coisas sejam feitas em nome de uma cultura. A mutilação dos órgãos genitais femininos, por exemplo. E
tudo aquilo que tem a ver com o género feminino. O menosprezo que existe pelo género feminino.” (P1)
“Muitas vezes vê-se que são diferentes [os ciganos], porque a adaptação deles a outra etnia é mais difícil
do que a nossa para a deles. E, talvez, por isso, a pessoa tem muitas vezes certas relutâncias em aceitar
certas atitudes.” (P12)
“No caso concreto de Portugal, imigrantes brasileiros, países de Leste, etc., há muito boas pessoas, mas
aumentou, significativamente, a criminalidade.” (P2)
“Eles [imigrantes] deviam vir para Portugal integrados e ter a proteção social a que têm direito (…).” (P3)
“Eu não sou contra [a vinda de imigrantes para Portugal], mas nós, às vezes, deveríamos limitar este tipo
de entradas, porque vêm muitos ladrões e nota-se que aumentou o número de assaltos. A abertura das
fronteiras aumentou o número de assaltos.” (P5)
A análise dos resultados obtidos nos temas anteriores mostrou, por um lado, que as/os
participantes se autoidentificam em função do género (feminino/masculino; mulher/homem) e,
maioritariamente, com uma orientação heterossexual. Em relação à autoidentificação em função da
categoria de “raça” e de “etnia”, a maioria recusou identificar-se com essas categorias, embora tenha
identificado alunos/as de diferentes “raças” e “etnias”. A forma como as/os participantes se identificam
e identificam outros/as em função das categorias sociais em questão pode ter influência no modo como
127
“falam” sobre os sistemas de dominação e opressão (sexismo, racismo e heterossexismo), a partir da sua
condição de “mulher/homem/ branca/o/ heterossexual de origem europeia”.
O resultado da análise revela que a maioria das/os participantes não reconhece que os sistemas
de dominação e de opressão, referidos acima, não existem apenas ao nível individual (subjetivo) ou das
relações interpessoais, mas que se constituem como sistemas estruturantes de todas as esferas sociais,
políticas e culturais. Outro aspeto a salientar da análise consiste na necessidade que as/os participantes
sentiram em afirmar que não eram racistas, sexistas ou homofóbicos/as, ao contrário de outras pessoas
da comunidade escolar que mostravam, explicita ou implicitamente, atitudes e comportamentos
discriminatórios em relação a pessoas homossexuais, a negros/as e mulheres. A partir dessas “falas”
foram identificados cinco discursos normativos que podem estar na origem da constituição das mesmas.
A maioria das/os participantes reconhecem que ainda continua a existir uma relação
desigualdade de poder entre géneros, mesmo nas gerações mais jovens que tiveram acesso a uma
educação mais igualitária em função dos géneros. Duas participantes exemplificam a constatação desse
sistema de dominação/opressão, a partir da sua experiência profissional:
“Eu não quero bater nos homens, mas os homens discriminam mais do que as mulheres. Eu digo isto,
porque muitas vezes nós trabalhamos, já tenho trabalhado com turmas a questão da educação sexual e
tenho muita experiencia com eles. Eu não percebo como é que hoje em dia ainda continua a haver tanta….
Um exemplo muito simples: estamos a falar do HIV Sida e de usar ou não preservativo e os moços
voltaram-se para mim e dizem: Ai da minha namorada, Ai dela, que me pedisse para usar preservativo,
ou que desconfiasse de mim e me pedisse para ir fazer o teste. Isto assusta, a maneira como eles abordam
o assunto.” (P1)
“Os miúdos são muito mais machões, ciumentos, controladores, que a minha geração. E eu vejo
namorados…. Um colega de uma turma colocou o braço sobre a namorada de um colega e aquilo foi logo
à pancada, que a namorada era dele e ele não podia por o braço sobre o ombro da namorada.” (P8)
Estes dois exemplos mostram como ao nível das relações de intimidade entre rapazes e
raparigas, os rapazes afirmam a sua masculinidade através da forma como falam sobre o seu poder na
decisão de usar ou não o preservativo, ou de controlar o corpo da sua namorada. No entanto, limitando-
se a uma análise do sexismo ao nível individual e interpessoal, as/os participantes invisibilizam as
estruturas sociais, políticas e ideológicas que esses comportamentos reproduzem, incluindo, o papel e a
responsabilidade da escola e do sistema educativo na transformação dessas desigualdades,
nomeadamente, em estimular as raparigas a frequentarem cursos profissionais que ainda são
vocacionados para rapazes e educar os rapazes para integrarem as raparigas nesses cursos. Duas
participantes referem-se ao sexismo na escola, partindo do exemplo dos Cursos Profissionais de
Eletricidade e Mecatrónica:
“Eu acho que ainda fica estranho, mesmo quando se acha que têm a mesma capacidade, mas ainda é
128
estranho ver numa turma de Mecatrónica, por exemplo, uma rapariga, ou instalações elétricas onde há
duas raparigas. Se calhar elas não são muito incentivadas em casa a escolher esse tipo de cursos que são
considerados mais masculinos. Ou elas próprias, percebendo que vão para uma turma só com rapazes,
também, se calhar, se sentem não muito à vontade e acabam por desistir.” (P6)
[Nos Cursos de Eletricidade e de Mecatrónica] o ambiente e o tipo de alunos que lá estão, acabam por
fazer que as raparigas se afastem. Poucas são aquelas que se mantêm no curso. Tem a ver, também, com
o tipo de alunos.” (P7)
Embora as participantes se refiram a uma situação de discriminação das alunas que frequentam
um Curso Profissional numa instituição escolar, a análise é feita ao nível das relações interpessoais,
considerando-se que as alunas acabam por desistir desses cursos, porque não se sentem à vontade “numa
turma só com rapazes” (P6) e com “o ambiente e o tipo de alunos que lá estão” (P7). Curiosamente,
coloca-se a hipótese de as raparigas serem pouco incentivadas em casa a optar por esses cursos (P6),
mas não se coloca a hipótese de as alunas serem, igualmente, pouco incentivadas a frequentar e pouco
apoiadas a permanecer nesses cursos, pela própria escola, invisibilizando-se, assim, o sexismo
institucional que reproduz o próprio sexismo estrutural. Estruturalmente, as mulheres são incentivadas
a cultivar a sua feminilidade dentro dos padrões mediáticos e dos valores elencados no ideal de família
tradicional. Estes discursos funcionam como norma-travão no acesso das mulheres a um mercado de
trabalho tradicionalmente masculinizado. Na sociedade atual, são os homens que exercem as profissões
de eletricistas, mecatrónicos, carpinteiros, etc. e as escolas não podem ficar isentas da sua
responsabilidade em relação a esta falta de oportunidades no acesso e sucesso em determinados Cursos
Profissionais.
Para além do contexto escolar, outras participantes deram exemplos a partir da sua própria
experiência enquanto mulheres no espaço familiar e no espaço público:
“Eu tive vários problemas com o meu marido, porque eu sou contra, não sou criada de ninguém, nem
admito que me obriguem a fazer determinados serviços, porque sou mulher.” (P5)
“[Quando] vou a lojas de ferragens procurar material, os homens falam com os homens. Eu pergunto
qualquer coisa e não me respondem a mim, respondem ao homem que vai comigo. É esquisitíssimo.
Quem trata de uns determinados assuntos é o homem, quem trata de outros determinados assuntos é a
mulher. E se tentas movimentar-te nesses espaços, que estão associados às lembranças e à cultura
portuguesa, é mais difícil (…).
129
professores (homens) ao qual ele pertence, não associando o facto de haver professores mulherengos
com a discriminação em função do género. Este discurso reproduz o discurso dominante da
invisibilidade das desigualdades em função do género na escola, ao mesmo tempo que naturaliza o
comportamento de um professor mulherengo.
Resumindo, a análise dos extratos dos discursos das/os participantes sobre o sexismo na escola
permite concluir que as/os participantes consideram que existem desigualdades de poder entre os
géneros, ao nível de atitutes e comportamentos individuais e das relações interpessoais. A invisibilidade
do sexismo ao nível institucional, tem como consequências a reprodução desse sistema de
dominação/opressão, através, por exemplo, da falta de mobilização da gestão e das/os professores/as da
escola em incentivar as alunas a frequentar determinados cursos e em garantir o sucesso das alunas nos
mesmos.
Enquanto a discriminação é mais aberta por parte dos/as alunos/as, entre as/os professoras/es,
como refere uma participante, a discriminação “camuflada existe sempre, mas não aberta (…). Já estive
num grupo de trabalho de professores, onde eu senti que havia discriminação de orientação sexual.
Porque ao criticarmos de troça, chegou-se ao ponto de dizer este é, aquela é. Ao chegar a este ponto está
a discriminar” (P12). Embora esta participante considere que este tipo de comportamento é
discriminatório, parece haver uma certa contradição quando a participante afirma que esse
comportamento “(…) pode ser visto no sentido de um pequeno desabafo de brincadeira, também”. Seja
“discriminação” ou “brincadeira” a participante reitera a sua posição afirmando que “são coisas que para
mim me chocam brincar com este tipo de coisas” (P12)
Este discurso está de acordo com os resultados de alguns estudos que foram abordados na
revisão da literatura, Capítulo 1, sobre o tema da discriminação na escola. Por exemplo, o estudo de E.
130
Ferreira (2011) mostrou que os/as adultos/as evidenciam comportamentos mais discriminatórios do que
as/os jovens, nomeadamente, através de comentários pejorativos e ofensivos em relação à
homossexualidade. No entanto, estes comentários são feitos num círculo fechado de professoras/es em
que, à semelhança das/os alunas/os, como foi apresentado acima, as/os professoras/es que não
concordam com esse tipo de comentários homofóbicos não manifestam a sua opinião contrária, ou
crítica, acabando por compactuar com a homofobia.
Embora a maioria considere que existem discursos e práticas homofóbicas na escola, alguns e
algumas participantes consideram que tem havido algum progresso nesse campo. Uma participante dá
o seguinte exemplo:
Noutro dia disse (…) aos miúdos que ele [Manuel Goucha] era casado com a Teresa Guilherme, e eles
disseram-me que ele era gay, que vivia…com uma pessoa. Se fosse há uns tempos atrás, as pessoas
gozavam com estas situações, não respeitavam. E a gente hoje vê uma fotografia e ninguém comenta. É
tudo muito mais natural, acho que sim. (P2)
Este extrato revela que as/os alunas/os falaram abertamente da homossexualidade de uma figura
pública que a própria professora desconhecia. Em relação ao discurso da participante, as reticências no
extrato apontam para a dificuldade em falar sobre o tema, ou seja, em vez de dizer aberta e
espontaneamente que “vivia com um homem”, a participante diz que “vivia… (um tempo de pausa para
escolher o termo a usar, se homem ou pessoa) com uma pessoa” (P2). A participante optou pelo termo
“pessoa” que é usado, quer pelos homossexuais e lésbicas, quando se referem aos/às seus/suas
namorados/as, quer pelas/os heterossexuais quando se referem, igualmente, aos/às namoradas/os de
homossexuais ou lésbicas, sejam dos/as próprios/as filhos/as, amigas/os, outros familiares ou figuras
públicas. O termo “pessoa” invisibiliza, omite e esconde o sexo/género da pessoa com que se tem uma
relação afetiva/sexual.
Um outro participante considera que os/as alunos/as, atualmente, respeitam as/os colegas
homossexuais na escola:
Aqui na nossa escola, qualquer aluno que fosse homossexual, estou a falar de rapazes, era um
bocadinho ridicularizado e, hoje em dia, e eu posso-te dar um exemplo de um aluno que está ali na
Mecatrónica. Os colegas respeitam-no muito e o pessoal da Mecatrónica é um curso só de rapazes e de
rapazes malcomportados (…). (P3)
131
colegas da turma, pode ser visto, também, como uma defesa da masculinidade dos alunos que
frequentam os cursos de Mecatrónica. Ao respeitar e proteger esse colega, a turma está a proteger,
igualmente, a sua masculinidade.
Em relação à questão que foi colocada às/aos participantes na entrevista, a saber, se a orientação
sexual das pessoas que fazem parte da comunidade escolar é um assunto que só diz respeito à pessoa, a
maioria das/os participantes considera que sim, porque, como refere uma participante, “Há coisas que
são privadas e íntimas das pessoas” (P2) e, como explica outro participante, “(…) muitas das vezes as
pessoas não se dão ao recato [referindo-se a professoras/es], entram em momentos de carícias públicas
e depois isso, quando vem para a escola, isso cria, assim, um mau estar” (P3). Outro participante coloca
a questão de uma forma metafórica: “A virgindade e a reforma, cada um sabe um momento em que ela
chegou. A sexualidade é das coisas mais pessoais que nós temos” (P4).
Contrariamente à posição da maioria, uma participante considera que a orientação sexual das
pessoas:
Interessa, porque é uma pessoa que pertence à comunidade escolar. E se ainda é estranho ter uma opção
sexual diferente e se os outros sabem que têm uma opção sexual diferente, é evidente que isso faz mexer
alguma coisa na comunidade escolar. Agora, não deveria ser assunto de conversa no sentido
discriminatório, não. Agora que não pode fingir-se que não se sabe e que faz comichão nalgumas pessoas,
também não se pode. Porque, na verdade, se é um assunto que mexe, se calhar deveriam criar-se
oportunidades aos miúdos. Então, se calhar, deveria criar-se oportunidades de as pessoas poderem falar,
sem ser às escondidas. Não podemos fingir que não interessa. (P6)
Um outro participante partilha da mesma opinião, quando afirma que o tema da orientação
sexual “(…) se calhar, devia ser discutido de uma forma mais natural e não fazer disso um bocado don´t
ask, don´t tell. Acho que deveria ser abordado como mais uma possibilidade na vida dos jovens” (P10).
Um único participante reconhece que há uma cultura homofóbica na escola, que é invisibilizada
e/ou silenciada e não é percecionada da mesma forma pelos/os alunos/as e por outros responsáveis da
ação educativa, como ele explica: “(…) o que eu sei é que há discriminação, mas não há uma percepção
132
igual da discriminação, ou seja, na Gestão é tudo ouro sobre azul, não há episódios, não há ocorrências,
não há nada e quando há são medidas quase a nível particular. Os professores também não têm grandes
conhecimentos de discriminação, as funcionárias também não têm e os alunos têm imensos, imensos”
(P10).
“Eu não discrimino, agora outros colegas acredito que sim, porque eu já tenho ouvido assim umas queixas.
Já senti quase ter de me revoltar, eu que não posso fazer nada.” (P2)
“Mas a questão da raça e das raças não foi uma questão que me preocupasse muito, até porque eu acho
que de racista nunca tive assim grande coisa.” (P3)
“Eu não sou assim muito racista. Não tenho esse conceito de racismo, mas acho que a nossa cultura…
embora nós, portugueses não sejamos os mais racistas, eu acho que há povos mais racistas do que nós,
como, por exemplo, os ingleses e os americanos”. (P5)
As participantes (P2) e (P5) afirmam que não são racistas, mas fazem referência a outros/as
colegas que poderão ser racistas e a outros povos que são mais racistas do que nós, portugueses/as. De
133
acordo com van Dijk (1992), uma das características do racismo contemporâneo é a sua negação e as
implicações sociais, políticas e culturais “(…) from the level of interpersonal relations, to the global
level of intercultural and international relations” (p. 49). Em todos estes níveis, a negação do racismo
funciona, de acordo com o autor, como uma estratégia de reprodução das desigualdades em função da
manutenção dos privilégios.
Outra forma de invisibilizar ou negar o racismo, como se pode verificar nos extratos abaixo,
consiste em recorrer a termos como “raivas mascaradas” (P4), “conflitos” (P6), ou uma “observaçãozita
por causa da raça”, como refere uma participante (P7). Estas expressões servem para camuflar quer as
atitudes e os comportamentos racistas dos/as alunos/as, quer o racismo institucional e estrutural. A
maioria das/os participantes reconhecem que há comportamentos agressivos, que se expressam
fisicamente, “em cenas de pancadaria” (P4), ou verbalmente, mas atribuem as causas desses
comportamentos às características individuais de certos/as alunos/as, como a agressividade e a
crueldade, não reconhecendo que essa agressividade também é dirigida para alunas/os de outras
nacionalidades, ou portugueses/as negras/os ou de etnia cigana. Os extratos apresentados abaixo
exemplificam esta análise.
“(…) na verdade eu tenho tido alunos de muitas nacionalidades diferentes que trazem passados culturais
muito diferentes e que nem sempre estão dispostos a aceitarem-se. E o ano passado tivemos alunos que
se envolveram em cenas de pancadaria. Não foi na minha presença, mas foi com alunos meus. Eu acho
que tenho alguma propensão para fazer esse tipo de trabalho (mediação cultural), porque estou a lidar
com gente muito agressiva, ou que trás muita coisa guardada, ou que está a explodir a qualquer momento.
Muitas vezes essas raivas saem mascaradas de “Eu não gosto dele, porque ele é de outra nacionalidade,
outra raça, ou é de outra cultura”. Não é por isso que eles são agressivos, mas vem mascarado disso. Acho
que a agressividade deles tem mais que ver não tanto com essas diferenças culturais, mas com as próprias
raivas deles. O serem adolescentes, o terem dificuldades em casa, o não terem uma família.” (P6)
“Acho que na prática não [há discriminação]. Poderá haver, nestas coisas, conflitos, até porque as coisas
não estão todas aceites. Se há conflitos entre alunos por causa de… raças diferentes.” (P6)
“A raça pode ser motivo para haver qualquer observaçãozita. Eu sei porque a minha filha às vezes se
queixa que na escola dela, às vezes há esse tipo de observações. (…) Mais os alunos [que discriminam]
uns com os outros. Penso que são os mais cruéis, os mais agressivos. Eventualmente também poderá
haver professores que fazem discriminação, não sei concretamente situações. As funcionárias, acho que
a maioria, aquelas que eu conheço melhor, não discriminam.” (P7)
134
categorias de exclusão (Silva, M. C., 2008; Cortesão & Stoer, 1997). Salvo raras exceções, o interesse
em estudar e a motivação para ir à escola estão dependentes da existência de um bom ambiente escolar.
O segundo, porque, embora o colonialismo já não exista enquanto domínio político de um Estado-nação
sobre outros Estados, a ideologia racista que foi produzida nesse contexto continua a estruturar as
relações desiguais de poder e de privilégio na atualidade (Araújo, 2008; Maeso & Araújo, 2017; Moreira,
2017a).
4. Racismo Inverso
Para van Dijk (1992) o discurso sobre o racismo inverso constitui-se como uma estratégia de
legitimação e naturalização do racismo em todas as suas formas (interpessoais, representacionais e
estruturais). Neste sentido, o autor considera que a expressão mais forte da negação do racismo é o
racismo inverso (p. 94). Por sua vez, Moreira (2017b) considera que o racismo inverso é uma falácia,
dado que o racismo surge no contexto de “uma opressão histórica” (fruto do colonialismo e da
escravatura) e “violência sistémica” numa relação de poder e dominação que inferioriza os negros e não
os brancos (p. 46). De acordo com Moreira (2017b), a posição das associações de afrodescendentes em
Portugal em relação ao discurso do racismo inverso é unânime em considerar que este discurso é uma
forma de perpetuar, legitimar, naturalizar e invisibilizar o racismo estrutural e garantir os privilégios de
quem continua a usufruir (consciente ou inconscientemente) das desigualdades raciais. Para a associação
SOS RACISMO, “o racismo inverso não existe, sendo que o que existe é uma resposta de ‘autodefesa’
de quem sofre a discriminação racial” (Moreira, 2007b, p. 46). De acordo com o que foi exposto, os
extratos dos discursos das/os participantes apresentados abaixo podem inserir-se neste tipo de discurso:
“Eu tinha, curiosamente, duas ou três miúdas negras, há dois ou três anos atrás e eram elas que arranjavam
mais conflitos, eram elas que mais discriminavam os outros (…). Eu acho que, hoje em dia, são os que
mais discriminam, os mais racistas no sentido inverso, são os negros em relação aos brancos.” (P2)
“Olha, quando estive em África sentia-me discriminada, às vezes. Pela cor, porque estava em
Moçambique, um ambiente de raça negra e há grupos que são muito racistas e discriminam mesmo os
brancos.” (P7)
“Há miúdos muito racistas e eu noto mesmo. O ano passado tinha uma negra que fazia bullying com a
melhor amiga dela. Graças a Deus que este ano ela não está na turma, ela mudou de escola. A outra miúda
não podia fazer nada porque a negra era a maior. Não sei se era o complexo de inferioridade.” (P8)
135
5. Discurso sobre a visibilidade do racismo interpessoal
Para além dos discursos sobre a negação do racismo, que incluiu a estratégia do discurso inverso,
alguns/algumas participantes reconheceram que existe racismo ao nível das relações interpessoais na
escola, que se manifesta, quer entre professores em relação a alunas, em particular, e a alunos, em geral,
quer entre alunos/as, através de comentários racistas. Os estratos dos discursos dos/as participantes
descrevem alguns dos comentários que fazem parte do “racismo do dia a dia” (everyday racism),
conceito que foi criado por Philomena Essed, em 1990, e que significa a forma como o racismo estrutural
é reproduzido através de “práticas situadas” que são normalizadas na rotina diária, neste caso, na rotina
da escola (Pollock et al., 2010, p. 212).
“Os grupos mais discriminados são os africanos, nesta escola. (…), às vezes, o facto de ser rapariga, falar
mal o português e de ser africana, digamos, é meio caminho andado para a desgraça. [Os] alunos
certamente [são os que mais discriminam]. (…), mas mesmo até ao nível de professores, até em termos
de linguagem: ʻEpá, há ali umas pretinhas…ʼ. ʻAh… já viste aquela pretinha?ʼ. Ou, ʻisso é o gang aí dos
pretos, pá, vêm para a escola e sei lá o que estão aí a fazerʼ. (…) A maioria [dos professores] não se dão
ao trabalho de os conhecer [alunas/os africanas/os]. Colam-se ao estereótipo e, a partir daí, criam um
escudo para nem sequer estarem muito interessados em interagir.” (P3)
“Há situações de bullying [da parte dos alunos] que eu já observei: ʻOh, chinêsʼ. ʻOh, pretoʼ”. (P4)
“O que os alunos gozam é a forma como eles [marroquinos, moldavos, ucranianos] falam. Porque a
pronuncia das pessoas que não são portuguesas é totalmente diferente e então, aí, é um fator de
destabilização. Eu lembro-me, uma vez, tinha um aluno que era moldavo, coitado, que eu queria que ele
lesse um texto e ele não conseguia ler o texto de maneira nenhuma e os outros gozavam com aquilo. Ou
então, porque eles são mais lentos, lentos na tradução das coisas para português e vice-versa. Tive uma
aluna romena que, às vezes até escrevia umas palavrinhas na língua dela. Era uma miúda que era muito
discriminada, coitada.” (P5)
Para finalizar, importa referir que, pela primeira vez, no discurso de um participante sobre o
racismo, surge uma visão do racismo a partir de uma perspetiva interseccional, quando o mesmo
reconhece que “(…) o facto de ser rapariga, falar mal o português e de ser africana, digamos, é meio
caminho andado para a desgraça” (P3). O reconhecimento legal e jurídico das múltiplas e intersetadas
discriminações que configuram a experiência das mulheres, de acordo com a revisão da literatura
realizada no Capítulo 2, é uma das principais reivindicações dos movimentos feministas das mulheres
negras, que teve o seu início nos finais do séc. XIX a par do movimento das mulheres (brancas)
sufragistas. Por isso, é importante abordar o racismo de um ponto de vista interseccional, porque os
sistemas de opressão e privilégio constituem-se e reproduzem-se através de redes intersetadas de poder
e desigualdades (Anthias, 2013; Collins, 1990; Crenshaw, 1989).
Importa referir que apenas um participante abordou a questão do racismo estrutural, a partir do
relato de uma experiência de um aluno “africano” e de outro relato de uma aluna cabo-verdiana:
136
Ainda há dias um aluno que é africano me contou que ele e o irmão foram tratados de maneira racista
pela polícia, aqui em Faro, porque iam de carro, tinham carta de condução e autorização de residência, a
fotocópia e não original. E, por isso, de acordo com o meu aluno, eles foram para a esquadra algemados
por causa disto. E que a certa altura os polícias dirigiram-se a eles chamando-lhes pretos. Ainda ontem
uma aluna contou uma situação em que o cunhado dela, que é cabo-verdiano, foi apanhado numa situação
de tráfico de droga, foi detido, foi julgado e apanhou dez anos de cadeia. E, segundo o que me disse a
miúda, a juíza terá dito na audiência que “não há aqui pessoa mais racista do que eu”. (P4)
As experiências destas pessoas, vitimas de racismo estrutural, perpetrado por agentes policiais,
aconteceu num tempo, embora muito recente (2012), de total ausência de um discurso sobre o racismo
em Portugal, principalmente da parte da maioria branca da sociedade civil, ou da classe política. Só
muito recentemente, precisamente no presente ano civil de 2017, o tema do racismo estrutural,
português, começa a ter alguma visibilidade nos media, nomeadamente, através da série de artigos
lançados pelo jornal Público, sob o tema “Racismo à Portuguesa”. Curiosamente, o primeiro artigo, da
autoria de Joana Gorjão Henriques (2017) tem como título “A justiça em Portugal é ʻmais duraʼ para os
negros”. De acordo com os resultados da pesquisa realizada pela autora, os relatos do aluno e da aluna,
apresentados acima, são mais uma evidência do racismo institucional e estrutural, transversal a todo o
sistema judicial português.
Este tema tem como objetivo perceber como as categorias de privilégio e discriminação se
intersetam nos discursos dos/as participantes para falar das suas experiências pessoais e profissionais.
Em relação a este tema, os dados obtidos confirmam os estudos que têm sido realizados sobre o não
reconhecimento do privilégio de ser “homem branco heterossexual” ou “mulher branca heterossexual”.
Nenhum/a participante referiu as categorias de “género” (homem), “raça” (branca), “etnia” (lusa) e
“orientação sexual” (heterossexual) como marcas de privilégio. A posição social de privilégio é
reconhecida somente através da categoria de “classe”:
(…) nunca fui uma pessoa com muitas posses, mas também nunca me faltou nada. (P4)
(…) sou professor do ensino oficial e já sou privilegiado em relação aos outros. (P10)
Tenho casa, tenho emprego, mesmo que não tivesse emprego tinha acesso a compensações sociais, do
137
Estado, por ter trabalhado, e isso dá-me, inegavelmente, um lugar no grupo das pessoas mais favorecidas.
(P11)
Pertenço ao mais privilegiado, mas acho que o meu vencimento é diferente do que, por exemplo, uma
empregada doméstica, um calceteiro. Só nesse aspeto. (P12)
E da categoria de “cultura”:
(…) ter acesso a uma determinada cultura que me permite ver as coisas de uma determinada forma, que
me permite transmitir aos meus filhos uma visão diferente da sociedade. (P2)
(…) eu acho que sou privilegiado porque tenho a possibilidade e (…) vontade de aprender (…) de estar
sempre a evoluir. (P3)
(…) tenho acesso à cultura, consigo pensar. Consigo, até, ter um certo distanciamento para criticar, porque
se estivesse aflita para dar comida aos filhos, se calhar não tinha essa capacidade. (…) tenho um curso
superior. (P1)
(…) eu tirei um curso, sou uma pessoa que tenho um emprego e praticamente tudo o que eu desejei na
vida sempre consegui ter. Não sou assim daquelas classes privilegiadas, mas da classe média remediada,
que tenho tudo o que eu tentei, consegui. (P5)
(…) consegui estudar, para estudar tive oportunidade para ir para fora do Algarve, conhecer mundo, como
se costuma dizer, para Lisboa. Depois consegui arranjar emprego. Consegui viajar pelo mundo inteiro e
ainda tenciono viajar mais. Tenho acesso, mais ou menos, a quase tudo o que preciso, para fazer o que
gosto de fazer, sou uma privilegiada. (P7)
Tenho um desfavor que é ser mulher. (…). Às vezes na família, pelo género. Aqui na escola, se às vezes
levantasse mais a voz e fizesse uma voz um bocadinho mais grossa, talvez… Na família, eu tenho um
irmão, que ainda por cima é mais velho, e então é assim, o irmão é que é. As decisões da família não
passam por mim. Eu digo, não me disseram porquê, porque sou mulher? (P1)
(…) enquanto criança eu fui super reprimida pelos meus pais, porque o meu pai era muito autoritário.
(…) Eu lavava a louça e dizia assim: [Luís], limpa aí as colheres, se faz favor. E o pai logo: A ti é que
pertence. Eu não podia estar com rapazes, ele se me visse estar com um rapaz… O meu pai sempre foi
muito opressor, eu não podia sair, só saía com o meu irmão. (P2)
(…) eles achavam sempre que lá por ser uma mulher e tinha um aspeto mais bonito, que era burra. (P5)
138
Senti-me discriminada, às vezes, e ainda sinto, por ser mulher, quer em África, quer em Portugal. Não sei
se já alguma vez te aconteceu, mas eu sou de esculturas e então vou a lojas de ferragens procurar material
e os homens falam com os homens. Eu pergunto qualquer coisa e não me respondem a mim, respondem
ao homem que vai comigo. É esquisitíssimo. Quem trata de uns determinados assuntos é o homem, quem
trata de outros determinados assuntos é a mulher. (P7)
Quando era criança não me deixavam andar de bicicleta e muitas meninas nem podiam levar calças para
a escola, porque só as meninas de uma classe mais privilegiada, como era o meu caso, é que usavam
calças. As primeiras frutas da árvore eram dadas aos rapazes. Recentemente, numa oficina de carros, o
mecânico queria que eu levasse a peça que tinha sido substituída no carro, para mostrar ao meu marido.
(P11)
Como mulher, em casa, com o marido. Na escola como mulher não, mas pensando bem, se calhar poderia,
em determinadas situações. Se em vez de uma mulher estiver um homem a falar com outro homem, não
tem o mesmo tipo de resposta. Um chefe superior hierárquico com uma mulher e um chefe superior
hierárquico com um homem não tem a mesma postura. Um homem frente a uma mulher sente-se com
mais poder de afirmação, é isto e é isto. (P12)
Eu acho que o meu grupo profissional não é nada, nada privilegiado. Nós somos dos grupos mais afetados
com as últimas medidas de austeridade do governo. (P4)
Por ser pobre. Era, porque é assim, há 50 anos aqui em Faro, os professores primários, bancários, eram
as pessoas mais letradas (…). Antigamente, e talvez ainda hoje, perguntavam-nos: A tua mãe não é
doméstica, então porque é que não ficas em casa a ajudá-la, porque é que vens estudar? (P2)
[Sou discriminado] por não ser professor do quadro e por ser professor de uma área que é a dança que
não é muito bem compreendida. (P10)
Este discurso está estritamente associado ao discurso sobre a negação da “raça” (branca)
identificado no tema das “Autoidentificações”. De acordo com a revisão da literatura sobre o tema e os
estudos realizados sobre o racismo, as pessoas “brancas” têm uma visão muito limitada da
“branquitude”, quer como uma marca de privilégio, quer como uma marca racial (Frankenberg, 1993;
McIntyre, 1997; Chizhik & Chizhik, 2005; Marx, 2004; Scrimgeour & Ovsienko, 2015; Sholock, 2012).
Os dados obtidos na categoria de “privilégio” mostraram que as/os participantes se consideram
privilegiadas/os em termos de “classe” e “cultura”, como se “tirar um curso superior”, “ter um emprego”
139
e “acesso à cultura” não fizesse parte de um sistema de privilégios que exclui aqueles/as que são
marcados/as pela “cor de pele” e pela “orientação sexual”. O mito da igualdade de oportunidades e da
meritocracia invisibilizam todo um sistema de intersetadas formas de poder e de privilégio que limitam
ou favorecem o acesso a um estatuto social de classe média, à educação, à saúde, à segurança, etc.
A orientação sexual das pessoas é de cada um. A mim não me preocupa nada. (P5)
Alguns casos, que dá mais problemas, tem a ver que, muitas das vezes, muitas pessoas não se dão ao
recato. Lembro-me de um caso em concreto nesta escola, em que as pessoas partilhavam os mesmos
lugares de alunos e com os seus companheiros ou companheiras, entraram, digamos assim, em momentos
de carícias públicas e depois isso, quando vem para a escola, isso criou assim um mau estar. (P3)
Sim, de certa forma. Porque dentro de uma comunidade escolar, e eu sei que eu posso aceitar, mas a outra
pessoa pode não aceitar. (P12)
Nunca pode dizer só…, quer dizer, a pessoa tem o direito de optar, mas eu não posso ser ingénua, ou um
pouco, assim, tão estreita, que pense que isso não interessa à comunidade escolar. Interessa. Porque é uma
pessoa que pertence à comunidade escolar. E se ainda é estranho ter uma opção sexual diferente e se os
outros sabem que têm uma opção sexual diferente, é evidente que isso faz mexer alguma coisa na
comunidade escolar. Agora, não deveria ser assunto de conversa no sentido discriminatório, não. Agora
que não pode fingir-se que não se sabe e que faz comichão nalgumas pessoas, também não se pode.
Porque, na verdade, se é um assunto que mexe, se calhar deveriam criar-se oportunidades (…) das pessoas
poderem falar, sem ser às escondidas.” (P6)
Sim, em parte. Porque se calhar devia ser discutido de uma forma mais natural e não fazer disso… Isso é
um bocado Donʹt ask, Donʹt tell. Acho que deveria ser abordado como mais uma possibilidade na vida
dos jovens.” (P10)
Os dois últimos extratos revelam uma posição diferente em relação à maioria das/os
participantes. Embora também tenham associado “orientação sexual” com “homossexualidade”, estes
discursos mostram que a “orientação sexual”, no caso, a homossexualidade, pertence quer à esfera
privada, quer à esfera pública, particularmente, no espaço da comunidade escolar onde, para além da
crescente e visível diversidade sexual dos/as alunos/as, existe uma legislação que garante e protege o
140
direito à não discriminação em função da orientação sexual 103. Para além disso, existe, na escola a
Educação Sexual, como uma área curricular não disciplinar obrigatória. Isto implica que todos/as os/as
professores/as, independentemente da sua área disciplinar, devem abordar a educação sexual nas suas
áreas disciplinares.
Embora a maioria das/os participantes reconheça que existe racismo e homofobia na escola e
reprovem essas práticas, o facto de não reconhecerem os privilégios que usufruem, pelo facto de serem
“pessoas brancas heterossexuais” numa sociedade racista e heterossexista tem como efeitos discursivos
a manutenção das suas posições de privilégio e, consequentemente, a reprodução do racismo e do
heterossexismo, quer ao nível individual, quer ao nível institucional. Mesmo quando as/os participantes
assumem a sua responsabilidade e intervenção em relação a discursos e práticas discriminatórias na sala
de aula, como irá ser apresentado no ponto seguinte, essa responsabilidade e grau de intervenção aparece
nos discursos de uma forma distanciada, individualista e pontual face à complexidade estrutural do
racismo e do heterossexismo.
Neste tema pretendia-se saber, por um lado, se as/os participantes se sentiam responsáveis
perante as desigualdades sociais e práticas discriminatórias, quer enquanto cidadãs e cidadãos, quer
como professoras/es e, por outro, se esse sentido de responsabilidade corresponderia a algum tipo de
intervenção. Em relação à categoria “responsabilidade”, quer na sociedade, quer na escola, todos/as
os/as participantes afirmaram que tinham responsabilidades. No entanto, essa responsabilidade é sempre
entendida em termos de responsabilidade individual e acrítica da sua posição de privilégio de
“professor/a branca/o heterossexual” e de “classe média”. Em relação à categoria “intervenção” na
sociedade, nenhum/a participante falou sobre o modo como intervinha socialmente, o que permite
concluir que estamos perante um discurso politicamente correto sobre a cidadania ativa, isto é, ser um/a
cidadão/ã responsável é, por si só, uma forma “ativa” de cidadania. Tomando como referência o “modelo
de conexão social” (social connection model) desenvolvido por Iris Marion Young (2011), a
responsabilidade perante as desigualdades estruturais implica, necessariamente, partilha e ação coletiva
para a mudança desses processos estruturais (p. 105). Neste sentido, o discurso sobre a responsabilidade
e a intervenção das/os participantes aparecem dissociados, quer da partilha coletiva dessa
responsabilidade, quer da mobilização coletiva para a mudança.
Temos toda a responsabilidade, (…) se eu for responsável a cem por cento comigo própria, cada situação
que me aparece pela frente eu sou responsável por ela. (P1)
103
Lei n.º 51/2012, de 5 de setembro, sobre o Estatuto do Aluno e Ética Escolar.
141
Entendo que a nossa responsabilidade será só e apenas enquanto cidadãos individualmente considerados.
(P2)
Acho que sou responsável, nem que seja porque, então, eu devo continuar a agir daquela maneira que eu
acho que pode ajudar a fazer a mudança. Acho que não posso negligenciar o meu papel. Eu digo que sim,
cada um de nós é responsável. (P6)
Claro que temos[responsabilidade]. Temos de intervir sempre, às vezes tornamo-nos preguiçosos, mas
somos todos responsáveis. (P7)
Em primeiro lugar ter consciência delas, não fingir que não existem só porque eu posso não estar numa
situação de desigualdade social, ou sentir menos a desigualdade social. Em segundo lugar, ser
interventivo. (P11)
Importa referir um participante que tem um discurso diferente da maioria, considerando que
“(…) Se em termos cívicos nos associarmos, podemos fazer alguma coisa” (P3). No entanto, a maioria
considera que o seu campo de ação é muito limitado e circunscrito à sala de aula:
Entendo que a nossa responsabilidade será só e apenas (…) relativamente ao papel do professor na sua
esfera de ação. (P2)
Aí a minha responsabilidade é, seguramente, amplificada. Porque o simples facto de ver uma situação
dessas… eu posso levar o assunto para a turma e debater, e verificar as idiossincrasias que os alunos
tenham e depois, a partir daí, tento introduzir melhorias em repor, pelo menos, a igualdade e, sobretudo,
o conhecimento do outro. (P3)
Qualquer pessoa que tenha uma profissão e que lide com diversidade cultural, ou que lide com
desigualdade, por exemplo, (…) se pudermos devemos tomar uma posição, devemos dizer aquilo que
pensamos e, sobretudo, não fomentar. (P4)
Eu penso que nas minhas salas de aula, com os meus alunos eu não sou racista e tento eliminar essas
situações. Mas também não posso fazer só eu. Eu acho que somos todos responsáveis. (P5)
Aí tenho [responsabilidade]. Porque uma desigualdade pode me perturbar o ambiente numa sala de aula.
(P8)
Enquanto educadoras e educadores, temos esse papel. Há uma responsabilidade, fazer diminuir o conflito
que em muitos casos há entre os alunos, porque são de origens diferentes origens sociais, económicas,
culturais… (P11)
Como professora, ainda mais. Porque se a pessoa tem uma profissão que é a de ensinar, não é só ensinar
conteúdos programáticos, mas é ensinar os valores, para que consigam apreender de uma forma os
conteúdos. (P12)
142
Eu tento fazer ver que cada um tem direito a ser aquilo que é, que um não é mais do que o outro, temos é
que aceitar como o outro é e tentar conviver pacificamente. (P2)
Em relação aos outros alunos da turma [que discriminam] eu tento que eles sejam tolerantes, às vezes
consigo, outras vezes não consigo. (…) se o professor não mostrar que somos iguais, embora com aquelas
diferenças, eles vão sempre discriminando o outro. (P5)
Se acontecer, falo sobre aquilo, sei lá. Acho que não te sei dizer exatamente o que é que digo, mas digo
alguma coisa, não fica em branco, não deixo passar. Mas não te sei dizer que palavras é que digo, mas
interfiro. Não deixo que aquilo fique assim. Tento que se resolva (…). Mas pode haver uma maneira de
fazer um trabalho de grupo em que acabo por juntar aqueles alunos (…). Tinha um aluno ucraniano que
não queria, tinha vergonha, de dizer que era ucraniano. E eu propus vários trabalhos de pesquisa sobre
vários lugares do mundo e um dos sítios era a Ucrânia e foi aquele aluno que ficou com esse trabalho. E
o trabalho pedia para valorizar aspetos positivos de cada região. Tenta-se sempre arranjar alguma coisa.
(P6)
Às vezes só uma pequena palavra num momento-chave é importante e determinante. Como professora
tento sempre intervir se houver alguma diferença. (P7)
É tudo igual e acabou e tens de aceitar todos. É o teu colega, seja ele de uma raça, seja ele de uma cor,
seja ele de uma etnia, não deixa de ser um colega. (P8)
Se houver falta de diálogo intercultural tem de haver uma mediação e, para mediar, é necessário ter
formação. Os conflitos, quando existem, é porque há uma incapacidade de compreensão do outro e, nesses
casos, é preciso haver pessoas habilitadas para fazer essa mediação. Nas aulas, quando há conflitos eu
tento amainar as coisas e faço ver que o outro pensa de uma maneira e que nem sempre a nossa maneira
de ver não é única e exclusiva. (P10)
Não aceito de todo que haja discriminação, seja de que género for, e por isso atuo. Num primeiro
momento, exijo que os alunos que estão a ter essa postura discriminatória apresentem argumentos para
serem discutidos, para ver a razoabilidade desses argumentos e tentarem perceber se aquilo que eles estão
a argumentar tem algum sentido de existir ou não. Às vezes conseguem chegar à conclusão que
discriminam o colega que gosta de rapazes, porque o pai também diz que são pessoas com determinadas
características e, por isso, vem habituado a discriminar e nunca se deparou com uma situação diferente,
com a diferença e, até ao momento, não teve acesso a uma discussão sobre o assunto. Quando as coisas
só por si não bastam, quando a reflexão que o aluno deve ter não chega à conclusão que não há nenhuma
razão para discriminar só porque a outra pessoa é diferente, aí, começo por mostrar a legislação, o que é
que está na legislação, o que é que são direitos, direitos comuns, direitos individuais. O que é que nos faz
sermos pessoas diferentes e, por último, tudo falha e também tudo pode falhar, faço uma pergunta fatal,
o que é que o facto do colega beijar um rapaz ou beijar uma rapariga, ou o colega do lado ser negro, ou
ser estrangeiro, interfere com o aluno em causa que tem problemas com isso. O que é que isso o diminui.
A partir daí, é o mundo do desconhecido. (P11)
Às vezes é um bocado complicado, porque penso na altura, mas intervenho na base do diálogo. Chamo
em particular as duas partes. Falo primeiro com uma e depois faço com outra. São as minhas aulas de
catequese, como eu digo. (P12)
143
disciplinares, que abordem as temáticas do sexismo, racismo, heterossexismo, a partir de uma perspetiva
crítica, interseccional e histórica, quer ao nível dos discursos e das imagens presentes nos manuais
escolares, que reproduzem um padrão ideal de sociedade que exclui aqueles/as que não se enquadram
dentro desses padrões.
Numa breve síntese, a análise dos resultados permitiu concluir que a maioria das/os participantes
(1) não se identifica em termos raciais ou étnicos, mas identifica outros/as em função dessas categorias.
Este discurso deve ser questionado a partir do discurso da negação da “raça”, quer do ponto de vista da
“des-naturalização” da categoria, quer do ponto de vista da negação da raça branca e da “branquitude”;
(2) não reconhece que os sistemas de opressão e de privilégio, como o sexismo, o racismo e o
heterossexismo são sistemas estruturais, e não apenas individuais ou interpessoais, que resultam de
relações desiguais de poder. Este discurso pode ser abordado a partir do discurso da invisibilidade das
categorias de “género”, “raça”, “etnia” e “orientação sexual”, e da forma como elas se intersetam nos
discursos e nas práticas sociais, na reprodução de desigualdades estruturais; (3) não reconhece que o
facto de serem marcados/as como “mulheres/homens, brancos/as e heterossexuais”, permite-lhes ocupar
posições de poder e de privilégio, quer na sociedade, quer na escola. O discurso da negação, ou
invisibilidade do privilégio em função da branquitude, do género (identidade e expressão) e da
orientação sexual (hétero) deve ser questionado a partir do discurso da responsabilidade e intervenção
coletiva. Concluindo, o resultado da análise das entrevistas permitiu identificar os temas a abordar no
contexto da oficina de formação. A etapa seguinte, consiste em estruturar as atividades de formação a
partir dos métodos e dos objetivos propostos para esta investigação-ação-formação, como será
apresentado no ponto seguinte.
De acordo com Tomal (2003), a etapa de planificação da ação “is the decision-making segment
of the process” (p. 16). Esta fase do processo de investigação teve como foco a preparação da
implementação da oficina de formação. Neste sentido, a investigadora principal elaborou um roteiro de
formação a partir dos temas, metodologia e questões de partida da presente investigação e com base na
144
análise preliminar dos dados obtidos com as entrevistas individuais. Posteriormente, foi feita uma
reunião com todos/as os/as participantes para apresentar a proposta do roteiro da oficina de formação e
aferir alguns aspetos relativos ao calendário, objetivos, metodologia e avaliação da oficina de formação.
O quadro apresentado abaixo mostra uma visão geral do plano da componente presencial da oficina de
formação.
104
A componente presencial das oficinas de formação corresponde a 25 horas. A versão inicial do roteiro de
formação foi planificada com base nessas horas. No entanto, ao longo da formação, o grupo compreendeu que
seriam necessárias mais horas de trabalho e acrescentámos mais 5 horas de formação, num total de 30 horas.
O roteiro apresentado aqui já contabiliza essas horas.
145
4.3.1 Etapas descritivas do roteiro da formação
Para Boal (1973/1990), o exercício é entendido como movimento físico, respiratório e vocal,
necessário ao reconhecimento do corpo, como complexa estrutura de músculos, nervos, na sua relação
com outros corpos, objetos, espaços, velocidade e as suas interações. O exercício é um movimento do
corpo sobre si próprio, enquanto que o jogo é o movimento expressivo do corpo e, por esse motivo,
exige um/a outro/a para estabelecer a comunicação. De acordo com o autor, a diferença entre exercício
e jogo é apenas didática, “na realidade, os jogos e exercícios (…) são antes de tudo joguexercícios,
havendo muito de exercício nos jogos, e vice-versa” (Boal 1973/1998, p. 87).
No entanto, no presente estudo consideramos que, embora os exercícios corporais e de voz sejam
fundamentais para des-mecanizar o corpo e a mente, uma vez que, como refere Boal (1973/1998), os
movimentos dos corpos são pensamentos e os pensamentos também se exprimem corporalmente, é
somente no campo do “jogo teatral” que se criam as condições de produção de uma leitura crítica e
transformadora do mundo, no sentido proposto por Paulo Freire (1970, 1979). Neste sentido, a
planificação da sessão 3, do módulo I, tinha como objetivo a familiarização do grupo em formação com
os princípios e as regras do jogo teatral, tomando como referência o conceito de “jogo teatral”
desenvolvido pela dramaturga norte-americana Viola Spolin (1963/1992). Para esta autora, o jogo teatral
é um jogo social, cujo princípio organizador é a regra e o acordo do grupo na solução de um problema
de atuação. A “solução de problemas”, o “foco”, ou ponto de concentração, a relação “palco/plateia” e
a “avaliação” são procedimentos essenciais à prática do teatro como jogo social na estética teatral de
Spolin (1963/1992).
146
A interiorização das “regras do jogo” através da prática do jogo teatral teve como resultado a
constituição de um grupo de trabalho interativo, participativo e lúdico. Estavam, deste modo, reunidas
todas as condições para passar à prática dos jogos de Teatro-Imagem, que compreendem os módulos II
e III do roteiro da formação. Os jogos propostos para as sessões do módulo II tinham como objetivo a
construção de modelos, enquanto que os jogos propostos para as sessões do módulo III tinham como
objetivo a dinamização desses modelos. O Teatro-Imagem corresponde à terceira etapa – o teatro como
linguagem – do Teatro do Oprimido (Boal, 1973/2005). Como já foi apresentado no Capítulo 3, o Teatro-
Imagem tem como objetivo tornar visível um pensamento através de imagens, estáticas ou em
movimento, criadas pela expressividade do corpo, sem usar a comunicação verbal. O modo de proceder
consiste em criar uma imagem-modelo de um tema que se queira abordar. A partir desse modelo,
pergunta-se a outros/as participantes, ou às/aos próprias/os criadoras/es desse modelo, se concordam
com o modelo apresentado ou se propõem alterações. No caso de haver participantes que queiram
transformar esses modelos, inicia-se o processo de dinamização do modelo até esgotar todas as
possibilidades e alcançar-se um consenso entre o grupo. Quando se consegue um modelo unânime, pede-
se ao grupo para construir uma “imagem ideal” sobre o tema dado. Quando se obtém a nova imagem,
pede-se a qualquer participante que mostre a “imagem de trânsito”, isto é, a imagem que realiza a
transformação de uma realidade (imagem real) numa outra, que seria a imagem ideal (Boal, 1973/1998).
O tema proposto para a criação dos modelos foi o tema “famílias”. As/os participantes eram
convidadas/os a mostrar as imagens da rotina diária de uma “família”. Foram construídos três modelos
de “famílias”: “famílias portuguesas”, “famílias estrangeiras” e “famílias alternativas”. A opção pelo
tema “famílias” justifica-se pelo facto de a “família”, enquanto “construção ideológica” e “princípio de
organização social”, funcionar, quer como um exemplo privilegiado de interseccionalidade na
reprodução de relações desiguais de poder, quer como um desafio e um espaço de resistência a essas
desigualdades estruturais (Collins, 1998, p. 63). O ideal de família tradicional continua a reproduzir
sistemas de opressão e privilégio em função do género, raça, etnia, orientação sexual. Enquanto princípio
de organização social, a retórica dos valores familiares tradicionais está presente noutras instituições
sociais, como a Escola e o sistema educativo em geral, influenciando muitas das políticas públicas,
nomeadamente, na área da educação, na área da saúde e das políticas de imigração.
147
4.3.2 Modelo de formação
148
CAPÍTULO 5 – ETAPAS DO PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO-AÇÃO II
Introdução
Neste capítulo são apresentados e analisados os resultados referentes à quarta e quinta etapas do
processo da investigação-ação: “implementação da ação” e “avaliação e acompanhamento”. A primeira
etapa corresponde à descrição detalhada das atividades (jogos de Teatro-Imagem) e à apresentação e
análise dos resultados obtidos na oficina de formação “O teatro na mediação de conflitos interculturais
na escola: Uma ferramenta pedagógica”. A segunda etapa corresponde à avaliação da oficina de
formação a partir dos resultados da análise dos dados obtidos na mesma e através de entrevistas
individuais semiestruturadas, que foram realizadas após o término da componente presencial da oficina
de formação.
5.1.1 Objetivos
A partir da análise dos dados obtidos nas primeiras entrevistas individuais (E1) e dos objetivos
da presente investigação, pretende-se, com esta oficina de formação, criar um espaço estético de reflexão
e análise crítica sobre a reprodução de sistemas de opressão/discriminação e privilégio em função das
categorias sociais de género, raça, etnia e orientação sexual, na sociedade e na escola, a partir de uma
perspetiva interseccional (Anthias, 2013; Creenshaw, 1989). A questão que se coloca é perceber como é
que os jogos de Teatro-Imagem podem contribuir para tornar visível essas estruturas de poder e de
privilégio que reproduzem discursos e práticas racistas e hétero(sexistas). De acordo com Boal
(1973/1998), embora o Teatro do Oprimido tenha como objetivo questionar e transformar atos
individuais de opressão, ao nível experiencial e interpessoal, o objetivo maior centra-se no
reconhecimento de estruturas de poder, historicamente situadas, que criam e perpetuam os sistemas de
opressão. Mais do que um espaço de reflexão crítica, os jogos de Teatro-Imagem desafiam as/os
participantes a transformar pela e na ação as práticas discursivas discriminatórias com as quais
“convivem”, quer na sociedade, quer na escola. O teatro, como refere Boal (1973/2005), “não é
revolucionário em si mesmo, mas certamente pode ser um excelente ʻensaioʼ da revolução” (p. 182)
Parte da recolha e análise dos dados foi realizada no contexto da oficina de formação, quer
149
através das imagens teatrais construídas e dinamizadas pelas/os participantes, quer através dos
momentos de análise e discussão dos resultados obtidos através dos jogos de teatro-imagem que se
estabeleciam entre os/as participantes. Dennis (2009) designa estes espaços de conversação e reflexão
por “interscene dialogues”, uma vez que ocorrem entre as cenas de improvisação dos jogos de imagem,
produzindo uma “análise pública” (public analysis), isto é, “(…) the collaborative explorations into the
meaning and identity constructions implicit in the scenes” (p. 73).
Neste sentido, ao contrário de outras formas mais tradicionais de análise dos dados, o método
do teatro-imagem implica o envolvimento das/as participantes no processo de análise dos dados, de
forma a que, frequentemente, a recolha de dados e a sua análise não possam ser separadas (Dennis,
2009). No presente estudo, o facto de se constituir uma plateia para cada cena improvisada permite que
a construção dos dados, a sua recolha e análise sejam processos simultâneos, embora realizados por
diferentes participantes. As imagens teatrais obtidas ao longo das sessões foram fotografadas e as
análises públicas foram gravadas em áudio e transcritas posteriormente. Para além destes registos, as/os
participantes elaboraram reflexões escritas sobre o processo e a investigadora principal registou as suas
observações. Os dados obtidos foram organizados por sessões e por ordem de sequência.
Para a análise dos dados, foi realizada, num primeiro momento, uma análise hermenêutica que
consiste numa “análise horizontal reconstrutiva” e numa “análise interativa sequencial”, de forma a
obter uma compreensão mais profunda e articulada dos dados obtidos no contexto da formação (Dennis,
2009, p. 74). Num segundo momento, foi aplicada a análise crítica do discurso para (1) identificar os
discursos produzidos pelas/as participantes através das imagens teatrais (modelos) e o modo como esses
discursos se intersetam; (2) identificar os discursos dominantes, ou de resistência, que (re)produziram
essas imagens e os seus efeitos discursivos; (3) compreender as transformações ou as reações discursivas
a esses discursos dominantes, através dos discursos produzidos, quer no processo de dinamização das
imagens teatrais, quer no processo de análise dos modelos e das dinamizações das imagens (interscene
dialogues) realizadas pelas/os participantes.
150
Em relação ao formato de apresentação da análise dos resultados dos dados obtidos no contexto
da oficina de formação, optou-se por combinar o texto convencional das ciências sociais com o texto
dramático/teatral. O recurso a dois géneros de escrita, que combina arte e ciência, é um dos critérios de
“validação” dos resultados desta investigação, propostos pelos/as defensoras/es do processo ou
metodologia da “cristalização”, como foi apresentado no Capítulo 3 (Ellingson, 2009; Denzin, 2007;
Richardson & St. Pierre, 2005).
O método do Teatro-Imagem constitui-se como um espaço estético que, por si só, possibilita a
cristalização de práticas discursivas, através do processo de participação ativa de todas/os as/os
participantes na construção e dinamização das imagens teatrais. À semelhança de um cristal, as imagens
teatrais e a forma como elas são dinamizadas, funcionam como prismas “(…) that reflect externalities
and refract within themselves, creating different colors, patterns, and arrays casting off in different
directions. What we see depends on our angle of repose” (Richardson & St. Pierre, 2005, p. 963).
Nesta sessão foram introduzidos três conceitos básicos dos jogos teatrais propostos por Spolin
151
(1963/1992): “Onde”, “Quem”, “O Quê” (pp. 81-82). Estes termos são usados em substituição dos
termos teatrais “cenário”, “personagem” e “ação de cena”. De acordo com Spolin (1963/1992), a
compreensão destes termos cria as condições para a focalização no tema/problema. Antes de realizar os
jogos do Onde, Quem e O Quê é necessário fazer uma breve introdução ao significado dos termos na
linguagem teatral. Neste sentido, a formadora/investigadora introduziu algumas perguntas para
dinamizar um diálogo coletivo sobre os conceitos com o objetivo de que todos/as participantes
adquirissem uma compreensão dos mesmos ou esclarecessem dúvidas que ainda tinham.
Diálogo 1
152
Formadora: Tem sentido estar numa biblioteca sem fazer nada?
(Várias/os participantes responderam que não em uníssono)
Formadora: Concluímos, assim, que “O Quê” determina a ação. É a justificação para estarmos no “palco”.
Formaram-se três grupos que tinham como tarefa mostrar uma personagem (“quem”) em ação
(“o quê”) num espaço cénico (“onde”). Cada grupo estabelecia apenas o “onde” e “quem”, deixando “o
quê” para improvisação. O tempo de preparação era de 5 minutos.
Avaliação
153
origem ao seguinte diálogo:
Diálogo 2
Formadora (dirigindo-se aos grupos 2 e 3): Como é que identificaram a personagem “pai” da performance
do grupo 1?
Grupo 2: O pai carregava a cesta do piquenique. O pai só interagia com a criança quando ela estava mais
irrequieta.
Grupo 3: A criança, por norma, vai ao lado da mãe. A mãe é mais atenta no cuidado, o pai é mais distante.
Se havia mãe, então a outra pessoa era o pai.
Formadora: Sintetizando, temos um casal com uma criança.
P9: Um pai e uma mãe não têm de ser necessariamente um casal, ou seja, um marido e uma esposa. Podem
não ser casados, ou podem ser divorciados.
Formadora (dirigindo-se aos grupos 1 e 3): Muito obrigada pela observação e pela correção do
estereótipo. Em relação à performance do grupo 2, como é que identificaram que são “três amigas” e não
“três amigos” ou “amigas e amigos”?
Grupo 1: As mulheres são mais afetivas, tocam-se fisicamente, enquanto os homens batem nas costas. As
mulheres cruzam as pernas (o participante que fez este comentário estava com a perna cruzada).
Formadora (dirigindo-se aos grupos 1 e 2): Por último, duas questões em relação à performance do grupo
3. Como é que identificaram “o cabeleireiro” e “o manicuro”? Como é que identificaram “o cliente”?
Grupo 1: Pela forma afetada com que gesticulavam.
Grupo 2: Se era um cabeleireiro e um manicuro, então o cliente era homem.
P7: Na minha opinião, a construção e a identificação das personagens foi feita através de estereótipos de
género.
Grupo 1 (participante que construiu a personagem “pai”): Se tivesse adereços, como um bigode e um
chapéu, teria sido mais fácil identificar o pai.
Formadora: Será que um pai com bigode e chapéu teria mostrado um comportamento menos estereotipado
em função do género?
P11: Acho que não.
(poucas participantes concordaram com a opinião de P11)
Meta-análise
Embora este jogo tivesse como objetivo compreender os princípios básicos da linguagem teatral,
os resultados obtidos mostraram, como referiu uma participante, que “(…) a construção e a identificação
das personagens foi feita através de estereótipos de género” (P7). Todos os grupos construíram as suas
personagens e os relacionamentos entre elas, através de imagens estereotipadas de expressões,
comportamentos e papéis atribuídos ao género (feminino/masculino; mulher/homem).
154
estão posicionadas fora do regime dos códigos da gramática heterossexual. Dentro deste regime,
manicuro e cabeleireiro são profissões que se definem pela interseção da categoria de género –
“afetado”, nem feminino, nem masculino – e a categoria da orientação sexual (homossexualidade). Note-
se, por fim, que a palavra “homossexual” nunca surgiu nos discursos das/os participantes, sendo
substituída por um, entre muitos dos seus “sinónimos”, o indivíduo afetado.
Em relação à construção das personagens pelo grupo 1 e pelo grupo 2, os resultados obtidos
evidenciam, igualmente, a reprodução de um discurso normativo baseado na naturalização das
diferenças entre papéis, comportamentos e expressões em função da binaridade do género. No modelo
construído pelo grupo 1 esse discurso surgiu de uma forma mais acentuada e complexa, uma vez que as
personagens faziam parte de uma família nuclear tradicional, desempenhando os seus papéis de pai e de
mãe de acordo com as normas definidas para os respetivos géneros: o pai carregava o cesto do
piquenique, enquanto a mãe levava a criança pela mão; a mãe cuidava da criança, enquanto o pai estava
mais distante.
Ritual é um dos jogos do teatro-imagem que tem como objetivo revelar as relações desiguais de
poder que são impostas através de códigos sociais que determinam as normas de conduta. De acordo
com Boal (1973/1998), é importante descobrir os rituais de cada sociedade, porque eles são as
“expressões visuais” dos sistemas de opressão (e privilégio) que estruturam todas as sociedades (p. 254).
Formaram-se três grupos a quem foi pedido que construíssem um ritual que mostrasse um dia
de rotina de uma família, desde a hora em que se levantavam até à hora de dormir, usando apenas gestos
e movimentos. A ritualização teria de ser feita de uma forma não realista, ou seja, as ações deveriam ser
rápidas, sem entrar em pormenores. Antes do jogo, cada grupo dispunha de 5 minutos para definir o
“onde”, o “quem” e “o quê” (ver quadro 5.2, abaixo). O “como”, isto é, os gestos, os movimentos e as
suas sequências não devem ser definidos a priori, uma vez que se perderá a espontaneidade da ação
(Spolin, 1963/1992) e em vez de construirmos uma “imagem real”, partindo das ideias que temos de
uma determinada realidade, construiríamos uma “imagem da realidade”, partindo da realidade
mediatizada pelo diálogo que se estabeleceria antes do jogo (Boal, 1973/1998).
155
Descrição dos modelos
Grupo 1
Mãe (doméstica): Levanta-se rapidamente, faz a higiene pessoal a correr e acorda a filha e o filho.
Prepara o pequeno almoço. Quando a filha e o filho saem para a escola, ela começa a passar roupa a
ferro. Mais tarde, ela prepara o jantar, arruma a cozinha e pede à filha para a ajudar a pôr a mesa para o
jantar. Procura ser afetiva com o filho, mas é mais com a filha. Depois do jantar, arruma a cozinha e
continua a passar roupa a ferro.
Pai (desempregado): Levanta-se mais tarde e, a pedido da mãe, vai acordar o filho (que não se tinha
levantado quando a mãe o chamou). Senta-se à mesa e, mesmo que a mulher reclame por ele estar
sentado e não participar no trabalho doméstico, ele não se levanta. Enquanto a mulher passa a ferro, o
homem lê o jornal e vê televisão até à hora de jantar. É ele quem pede o jantar à mulher. Interage com
os filhos de uma forma autoritária. Depois do jantar, senta-se no sofá a ver televisão.
Filho (estudante): Adolescente e rebelde. Não ouve a mãe, nem o pai. Fica no quarto agarrado ao
computador. Não participa, tal como o pai, das tarefas domésticas.
Filha (estudante): Adolescente e mais afetiva do que o irmão em relação à família. Ajuda a mãe a
preparar o pequeno almoço. Quando volta da escola faz os trabalhos de casa, ajuda a mãe a pôr a mesa
para o jantar e, depois, fica sentada ao lado do pai a ver televisão até à hora de se deitar, enquanto a mãe
continua a passar a ferro.
Grupo 2
Mãe (doméstica): Cuida do filho acamado, da filha pequena e das tarefas domésticas.
Pai (empregado): Partilha o cuidado com o filho acamado, cuida da filha e partilha as tarefas domésticas
antes de ir para o trabalho e quando chega em casa.
Filha: Fica em casa durante o dia aos cuidados da mãe. Brinca com a mãe durante o dia.
Filho: Portador de uma deficiência, acamado, aos cuidados da família.
Grupo 3
Mãe (doméstica): Levanta-se e acorda a filha e o filho. A filha ajuda-a a preparar o pequeno almoço.
Mostra-se afetiva com a filha e com o filho (mais com a filha).
Filha (estudante): Adolescente. Mais velha do que o irmão. Tem uma boa relação com a mãe. Durante
o jantar conversam e ficam a ver televisão juntas.
Filho (estudante): Adolescente. Levanta-se e vai para a mesa do pequeno almoço com os auscultadores
nos ouvidos. Não dialoga, nem mostra afetividade com a mãe. Mais tarde, depois de mãe e filha
preparem o jantar o adolescente agride a irmã quando esta o tenta convencer a ir para a mesa. A mãe
interfere, pegando na mão do filho e sentando-o à mesa.
Depois do jantar, mãe e filha arrumam a cozinha e sentam-se abraçadas a ver televisão na sala,
enquanto o filho fica sentado num canto, com os auscultadores nos ouvidos.
156
Avaliação
Diálogo 1
Formadora (dirigindo-se aos grupos 1 e 2): O grupo 1 mostrou “quem” eram através da forma como se
relacionaram? Que tipo de família foi apresentada?
Grupo 2: Mostraram uma família tradicional: mãe doméstica e pai, desempregado, que se entregava a
prazeres solitários, como ver televisão. No entanto, o pai, mesmo estando desempregado e não
participando das tarefas domésticas era o chefe de família.
Grupo 3: Mostraram uma família tradicional, onde o homem e a mulher têm papéis estereotipados.
Formadora: (dirigindo-se aos grupos 1 e 3): Em relação ao modelo construído pelo grupo 2, qual o modelo
de família que foi mostrado?
Grupo 1: Mostraram um casal homossexual feminino. O acamado era o ex-marido de uma das mulheres
e teve um AVC. A filha ou era filha biológica de uma das mulheres e do pai acamado, ou era adotada por
uma delas.
Formadora: A criança não poderia ser filha biológica só de uma das mulheres?
P5 (participante do grupo 1): Sim, daquela que vai trabalhar.
Grupo 3: Mostraram uma família com tendências tradicionais. A mãe era doméstica e estamos divididas
em relação à identificação do outro elemento do casal, que tanto pode ser outra mãe, como um pai. O
dependente também pode ser um jovem ou um idoso.
P1 (participante de grupo 3): Não ser uma família heterossexual não interessa nada.
Formadora (dirigindo-se aos grupos 1 e 2): Por último, temos um modelo de família apresentado pelo
grupo 3. Que tipo de família mostraram?
Grupo 1: Mostraram uma família monoparental. Uma mãe, um filho e uma filha.
Formadora: Como é que identificaram o filho e a filha?
Grupo1: O filho mostrou um comportamento rebelde. Colocou um boné e estava sempre com os
auscultadores nos ouvidos.
P10 (participante pertencente ao grupo 1): Eu discordo da opinião do grupo. Para mim não vi nada que
representasse o género dos filhos ou das filhas.
Grupo 2: Mostraram uma família monoparental. Não identificámos se eram duas filhas, dois filhos, ou
um filho e uma filha. A pessoa que cuida dos/as filhas/os pode ser a mãe, mas também pode ser a avó ou
uma tia.
Formadora: E porque é que não pode ser um pai, um avô, ou um tio?
P8 (participante pertencente ao grupo 2): Não podia ser o pai, pelos gestos e pela forma de lidar com os
filhos. Porque a mãe era meiga e não agredia.
Meta-análise
Em relação aos modelos de família construídos pelas/os participantes neste jogo, não se verifica
uma grande diferença em relação ao tipo de modelo de famílias apresentados no jogo do “onde”,
“quem”, “o quê”. As personagens foram construídas a partir de estereótipos de género e de
157
heterossexualidade, à exceção do modelo construído pelo grupo 2, identificado como “um casal
homossexual feminino”, pelo grupo 1, e levantando dúvidas ao grupo 3, “(…) em relação à identificação
do outro elemento do casal, que tanto pode ser outra mãe, como um pai”. A opção do grupo 2 pela
divisão das tarefas domésticas na construção das suas personagens, embora mantendo as características
de uma família nuclear tradicional, constitui-se como um discurso de resistência em relação à
desigualdade estrutural na partilha de tarefas domésticas entre mulheres e homens.
Embora a personagem tivesse alguns adereços para tornar mais evidente a sua identidade de
género (chapéu e gravata), o facto de não ter sido mostrado uma divisão das tarefas domésticas em
função do género, levou os outros grupos a concluir que se tratava de um casal homossexual, que, de
acordo com o discurso normativo e estereotipado, partilha todas as tarefas domésticas. Nesta primeira
avaliação dos modelos, optou-se por não revelar o tipo de família construída pelo grupo 2, com o
objetivo de usar esse exemplo nas futuras dinamizações que iríamos realizar sobre estes modelos de
família.
Importa referir, ainda, que nesta terceira sessão observei que o grupo interagia melhor, no
sentido de (1) estarem mais empenhadas/os em solucionar, conjuntamente, o problema em jogo; (2)
respeitarem o tempo de fala do/a outro/a, sem interromper; (3) não fazerem comentários negativos sobre
as imagens teatrais construídas expressas pelos/as colegas; (4) não chegarem atrasados à oficina de
formação. A partir destas observações pode considerar-se que se tinha formado um grupo de trabalho
interativo e responsável.
A partir dos modelos construídos no jogo anterior e da avaliação sobre os mesmos, foi proposto
que cada grupo criasse três imagens cinéticas, uma sobre o ritual da sua família e duas sobre o ritual da
família dos outros dois grupos. Para Boal (1973/1998), a imagem ritual ainda é uma reprodução muito
próxima dos movimentos do quotidiano, enquanto que a imagem cinética se afasta da imagem da
realidade para revelar a realidade da imagem, ou seja, a imagem do significado, aquilo que revela a
“essência” da imagem e não a aparência (p. 265).
As imagens cinéticas criadas pelos grupos foram fotografadas para serem dinamizadas noutra
sessão. Embora sendo difícil traduzir uma fotografia em palavras, segue-se uma pequena descrição de
cada uma delas, destacando-se os elementos mais importantes para o presente estudo.
105
Técnica de imagem nº 10, proposta por Boal (1973/1998, pp. 265-266).
158
Descrição das imagens cinéticas
Grupo 1
Grupo 2
Grupo 3
Estas imagens cinéticas serão dinamizadas na sessão 6, uma vez que a dinamização de imagens,
159
no sentido referido por Boal (1973/1998) exige que se tenha adquirido capacidades de expressão
corporal e de interação em grupo, o que, nesta sessão, ainda não estão suficientemente desenvolvidas.
Para além deste aspeto, a possibilidade de retomar um jogo na penúltima sessão da formação tem a
vantagem de compreender as etapas que foram percorridas, quer em termos de funcionamento do grupo,
quer em termos individuais.
Formaram-se três grupos. Cada grupo recebeu um papel com a origem cultural de uma família:
angolana, brasileira e iraniana. O tema de improvisação era mostrar o quotidiano de cada família. A cena
começava no momento de acordar e terminava quando toda a família estivesse deitada. O grupo definia
o Quem, Onde e O Quê. O tempo de preparação foi de dez minutos.
Uma “família rural angolana”, composta por três elementos, a avó, a mãe e a filha. A mãe
preparava a refeição da manhã, lavava caldeirões e depois fiava. A avó recolhia lenha, frutos e folhas e
a filha, depois da escola, ajudava a avó nas tarefas domésticas. No fim do dia dançavam. Comiam no
chão, com a mão, e dormiam no chão.
Uma “família indígena” composta por quatro elementos, a mãe, a filha, o filho e o pai, “chefe
de família”, “patriarca” e “chefe da tribo”. A filha ajudava a mãe a coletar frutos e folhas e o filho
ajudava o pai na pesca. Pescavam à linha dentro de uma piroga. Comiam no chão, com a mão e
dançavam depois do jantar, uma dança “tribal”. O pai contava estórias antes de se deitarem. Dormiam
106
Adaptação minha da técnica de imagem nº 3 e nº 8 propostas por Boal (1973/1998, pp. 244-248 e pp. 260-
264).
160
no chão, separados.
Uma “família xiita” composta por três elementos: mãe, que cuida do marido, abanando-o e
massajando-lhe os pés. O marido, que faz a higiene corporal (desde limpar o nariz até arranjar as unhas
e, também, rezava e lia o Corão. Uma filha em idade escolar.
Avaliação
Diálogo 1
Formadora: Que tipo de família foi apresentado? Mostraram quem eram através da forma como se
relacionaram?
Grupo 2: Uma família monoparental angolana que vive no campo. Identificámos a avó, a mãe e a filha.
Formadora: Como é que identificaram o “género” das personagens?
Grupo 2: Porque desempenhavam tarefas femininas: usavam o pilão e faziam as tarefas domésticas.
Grupo 3: As tarefas domésticas eram marcadamente femininas. E o modo como se relacionavam entre si
era muito afetivo.
Formadora (para o grupo 1): Esta família rural de mulheres representa todas as famílias de mulheres que
existem em Angola?
P11 (participante do grupo 1): Não. Existem famílias que vivem na cidade e, por isso, são diferentes.
Entre uma família citadina angolana e uma família citadina europeia não há grandes diferenças.
Formadora: E entre uma família rural angolana e uma família rural portuguesa ou europeia existem
diferenças? Em que é que difere uma família rural angolana de uma família rural portuguesa?
P2 (participante do grupo 1): O uso do pilão.
Formadora: As famílias rurais portuguesas dormem e comem no chão? Comem com a mão?
P2 (participante do grupo 1). Atualmente não.
Formadora (para o grupo 1): Porque é que escolheram uma família monoparental?
P11: O grupo partiu do princípio que em Angola existem muitas famílias monoparentais, uma vez que
morreram muitos homens na guerra e morrem muitos de SIDA.
Formadora (para o grupo que mostrou a família angolana): Alguém do grupo já experimentou usar um
pilão?
Grupo 1: Não.
Formadora: Usar o pilão é um trabalho coletivo, porque exige muita força. Quem são as famílias,
atualmente, que moem a farinha?
P11: É mais saudável moer a farinha na hora. Sabe melhor. É orgânico.
Formadora: Se vemos uma mulher, principalmente sozinha, a moer a farinha no pilão, não será porque
estamos perante uma família de uma classe socioeconómica muito baixa? Haverá famílias rurais de
mulheres que têm empregadas/os que podem moer a farinha, ou que a podem comprar moída numa
mercearia?
Grupo 1: Sim, mas não pensámos nisso.
(sobre o modelo da família brasileira)
Formadora: Que tipo de família foi apresentado? Mostraram quem eram através da forma como se
relacionaram?
161
Grupo 1: Uma família indígena tradicional. Não tinham utensílios de cozinha, coletavam folhas e frutos
e faziam o fogo. O pai era o chefe de família, pescava e caçava com o filho.
Formadora: Como identificaram que era o filho? (o filho era representado por uma participante).
Grupo 1: Era um rapaz, porque a criança era puxada pelo mais velho para entrar na piroga.
Grupo 3: O filho vai à pesca com o pai, na piroga.
Formadora: E como é que identificaram que era uma filha e não um filho?
Grupo 1: Porque a filha ficou com a mãe a tratar da casa e a apanhar frutos.
Formadora: E como identificaram a mãe e o pai?
Grupo 3: O pai caçava, pescava, pintava a cara, fumava e contava estórias.
Grupo 1: A mãe tratava das tarefas domésticas.
Formadora (para o grupo 2): E porque é que só o pai contava estórias?
P3 (personagem chefe de família do grupo 2): Porque só a caça e a pesca davam uma estória.
(algumas participantes reagiram a esta posição do participante, considerando-a machista e uma
participante formulou a pergunta diretamente para P3)
P11 (participante do grupo 1): E a mãe não tem estórias para contar a partir das suas tarefas?
P3 (“reconhecendo o “politicamente incorreto”): Claro que tem… mas ali aconteceu ser o pai que contava
as estórias.
Formadora: Esta família representa todas as famílias brasileiras?
Grupo 1: Não, porque a família mostrava índios “abrutalhados”.
Grupo 2: Agiam como se fossem macacos.
(sobre a família iraniana)
Formadora: Que tipo de família foi apresentado? Mostraram quem eram através da forma como se
relacionaram?
Grupo 1: Uma família muçulmana tradicional. O pai era o chefe de família e a mãe era doméstica e
submissa, e uma filha.
Grupo 2: Identificámos o mesmo tipo de família e as mesmas personagens.
Formadora: Como identificaram que era uma filha e não um filho? (a filha era representada por um
participante).
Grupo 2: A personagem (filha) fazia xixi à menina e também alisou o cabelo para parecer uma menina.
Grupo 1: A filha também colocou um véu na cabeça.
P1 (personagem mulher/mãe/cônjuge do grupo 3): Eu queria acabar a improvisação, porque não me sentia
bem no papel. O que eu fazia era agradar ao marido, sentia medo.
P6 (personagem homem/pai/cônjuge): Foi difícil fazer de homem e, por isso, tive de recorrer a alguns
estereótipos, como, por exemplo, mostrar que usava barbas compridas, fazer a higiene matinal, pôr a
família a rezar. Eu queria rezar sozinho e ela só me queria lavar os pés. Foi demasiado submissa.
P4 (personagem filha): Queria dizer que mostramos uma família árabe xiita.
P3 (participante do grupo 1): A primeira vez que vi uma mulher de burka (xiita) e luvas pretas foi em
Marraquexe. Foi muito impressionante. Talvez fosse uma mulher imigrante ou refugiada.
P11 (participante do grupo 1): Porque é que pensaste logo que era uma mulher imigrante ou refugiada e
não uma turista?
P3: Na altura foi o que me ocorreu.
Formadora: Este modelo de família iraniana podia ser um modelo de família portuguesa?
Grupo 3: Não poderia representar uma família portuguesa, é diferente, pela religião.
(Neste ponto, a formadora propôs que se refizesse o modelo do ritual de um dia de rotina de uma família
162
portuguesa construído pelo grupo 1 na sessão anterior. Seguidamente, o diálogo foi retomado)
Formadora: Quais são as diferenças e as semelhanças entre o modelo de família iraniana e este modelo
de família portuguesa que acabámos de rever?
P1: O homem não faz nada, mas não notei a subserviência da mulher, nem o medo. Na família iraniana a
mulher só quer agradar ao homem.
P11: E na família portuguesa não podemos encontrar as duas situações? O medo e a subserviência?
P6: A dinâmica de funcionamento dessas famílias é muito parecida. São famílias tradicionais patriarcais.
Não há diferenças.
Formadora: Penso que a grande diferença é a classe social. A mulher não realizou nenhuma tarefa
doméstica.
P4: Sim, pensámos numa família abastada, ligada ao negócio do petróleo.
P7: A ideia que nós temos de família iraniana e de família portuguesa é essa. São essas as imagens que
nós temos da realidade, não que a realidade seja essa.
Formadora: Se a escola não desafiar os estereótipos e os preconceitos, ela está a reproduzir esses modelos
estereotipados de culturas e de modelos de família tradicionais.
P3: Mas não temos hipótese. As leis é que têm de mudar.
P11: Mas ser professora e professor não implica desafiar as normas? Promover a mudança social?
Meta-análise
Os modelos de família construídos pelos grupos mostram a “realidade das imagens” que as/os
participantes têm sobre diferentes culturas. Embora não tivesse sido dada nenhuma instrução sobre o
território/país em que essas famílias pudessem habitar, as/os participantes optaram por situar as famílias
nos seus países de origem - Angola, Irão, Brasil - como se não existissem famílias angolanas, brasileiras
e iranianas a viver em Portugal. Acentuando essa distância espacial, as imagens das famílias mostram,
particularmente no caso da família angolana e da família brasileira, uma ideia de família arcaica,
primitiva, selvagem, que reproduz um discurso colonialista baseado numa visão de mundo dividido entre
norte e sul, desenvolvimento e subdesenvolvimento, ricos e pobres, civilizados e selvagens, brancos/as
e negras/os. A escolha de uma família angolana monoparental rural e pobre e a escolha de uma família
brasileira, indígena, pobre e selvagem (que come no chão e dorme no chão) mostra como o discurso
colonialista produz e reproduz uma imagem negativa das culturas e dos povos que foram colonizados,
embora, paradoxalmente, tenham permanecido, no nosso imaginário, selvagens. Embora o colonialismo
português, enquanto sistema político, tenha dado lugar a processos de descolonização durante as décadas
de 1960 e 1970, o discurso colonialista sobreviveu a esse processo, continuando a reproduzir e a
sustentar sistemas de opressão e privilégio, quer ao nível individual e interpessoal, quer ao nível das
estruturas sociais (Perry, 2012).
Transpondo este discurso colonialista para o contexto escolar, há uma tendência para tratar
grupos ou povos que foram historicamente colonizados ou oprimidos como “entidades unitárias e
monolíticas” (Nash, 2008). Nas primeiras entrevistas, as/os participantes identificaram os seus e as suas
alunas/os negros/as como “africanas/os”, não atendendo à especificidade e diversidade de culturas de
163
cada país africano e às diferentes posições sociais que cada um/a desses/as alunos/as ocupam na
sociedade em que estão inseridas/os, em função da raça, género, etnia, classe, entre outras e o modo
como essas categorias se intersetam para configurar as suas experiências de vida.
Contrariamente ao modelo das famílias brasileira e angolana, a família iraniana pode enquadrar-
se numa imagem normativa de família abastada que vive dos rendimentos do petróleo. O que chama a
atenção, num primeiro momento, é o facto de quer o Brasil, quer Angola serem, igualmente, países
produtores de petróleo, no entanto, talvez pelo facto de terem sido colónias portuguesas, essa imagem
de família que vive dos rendimentos do petróleo não tenha surgido na “imaginação” dos/as participantes.
Embora a “classe social” tenha sido a categoria que diferenciou o modelo de família iraniana dos outros
modelos de família, a forma como se mostram as relações de género são idênticas, embora se manifestem
de forma diferente.
Neste jogo, à semelhança dos anteriores, as imagens da família foram construídas em função
das desigualdades de género na divisão ou partilha das tarefas domésticas. No entanto, durante a
avaliação surgiram alguns discursos de resistência em relação a algumas posições assumidas durante a
discussão sobre a construção dos modelos de família. Por exemplo, quando a formadora pergunta, em
relação à família indígena brasileira, porque é que só o pai é que contava estórias e o participante, que
tinha construído essa personagem, respondeu “Porque só a caça e a pesca davam uma estória” (P3),
164
várias participantes reagiram, considerando que a resposta era machista. Uma das participantes colocou
a pergunta que era necessária ser feita naquele momento: “E a mãe não tem estórias para contar a partir
das suas tarefas?” (P11). O participante (P3) concordou imediatamente com a observação da participante
(P11) e justificou-se da seguinte forma: “(…) mas ali aconteceu ser o pai que contava estórias”. Esta
justificação merece uma breve análise. Primeiro, ela entra em contradição com a resposta anterior dada
pelo participante, quando afirma categoricamente que “(…) só a caça e a pesca davam uma estória”;
segundo, o participante não reconheceu que a opção por ser o pai a contar estórias, não aconteceu por
acaso, mas faz parte de um discurso normativo sobre “an imagined traditional family”, usando a
expressão de Patricia Collins (1998, p. 62). De acordo com a autora, este ideal de família tradicional
pressupõe uma estrutura autoritária específica, nomeadamente, o pai, chefe de família e provedor do
sustento da mesma e a mãe/esposa doméstica. O papel da mulher é cuidar da casa e dos filhos, em
primeiro lugar, e o lugar do homem é na esfera pública do trabalho, no mundo dos acontecimentos
sociais, das grandes mudanças que, ao contrário da esfera privada, caracterizada pela rotina, constituem
o material interessante para as estórias que se podem contar às/aos filhas/os no regresso a casa; terceiro,
a imagem que o participante construiu da sua personagem desafiou, por um lado, o participante a refletir
sobre a “realidade da sua imagem” de pai e de família, informada por um discurso normativo baseado
na desigualdade de género (Boal, 1973/1998) e, por outro, criou um espaço de contestação e de
resistência das participantes (mulheres) a esse discurso.
Nesse espaço de contestação, podemos incluir um outro discurso de resistência à forma como
foram construídas as imagens da família indígena brasileira em termos culturais. O grupo 1 considerou
que “(…) a família mostrava índios abrutalhados” e o grupo 2 considerou que “Agiam como se fossem
macacos”. Tal como já foi referido anteriormente, a imagem desta família reproduz um discurso de cariz
colonialista que faz uma demarcação nítida entre “nós”, os/as civilizados/as, e “as/os outras/os”, os/as
selvagens.
165
formadora a propor que se refizessem esses modelos. No momento de avaliação desses modelos, as
participantes referiram algumas semelhanças entre as famílias, nomeadamente, em relação à
desigualdade de género na partilha das tarefas domésticas, particularmente, no relacionamento com
as/os filhas/os, em termos de cuidado e afeto. As participantes estavam divididas em relação às
semelhanças entre as imagens de opressão das duas mulheres, acabando por haver uma concordância
generalizada com a participante (P6) que concluiu a discussão afirmando que “A dinâmica de
funcionamento dessas famílias é muito parecida. São famílias tradicionais patriarcais. Não há
diferenças”. A única diferença, na opinião da formadora, reside no estatuto social e económico das duas
famílias.
Por último, importa fazer uma referência ao comentário de uma participante (P7) sobre os
modelos das imagens da família iraniana e da família portuguesa: “Mas a ideia que nós temos é essa.
São essas as imagens que nós temos da realidade, não que a realidade seja essa”. Através deste
comentário, a participante mostrou ter compreendido o princípio básico das técnicas do Teatro do
Oprimido: “A imagem do real é real enquanto imagem”, por isso, “devemos trabalhar com a realidade
da imagem, e não a imagem da realidade” (Boal, 1998, p. 233).
Este jogo é uma variante do jogo de imagem Ritual já utilizada no modelo 1 da sessão 3 da
oficina de formação (Boal, 1973/1998, pp. 260-264). Os/as participantes foram convidados/as a criar
modelos de imagens de famílias não tradicionais (ver síntese dos resultados no quadro 5.4) e, para além
da linguagem não verbal, poderiam usar algumas palavras, isoladas, ou pequenas frases. Contudo, não
deveriam estabelecer um diálogo verbal.
Grupo 1
Três “manas” na terceira idade, uma delas com problemas de locomoção e um mordomo que
era tratado como empregado-escravo. Uma das manas era muito autoritária e as outras eram submissas.
166
O mordomo tinha a intenção de envenenar as irmãs, mas só uma bebeu o chá envenenado.
Grupo 2
Três irmãs que partilhavam as tarefas domésticas. Uma limpavam a casa, outra cozinhava e uma
fazia massa de cimento e carregava os baldes. Cada personagem mostrava que fazia aquilo que gostava.
Noutra cena, uma pintava um quadro, descansava no sofá, talvez a ouvir música, e a outra chega,
sorridente, com as compras.
Grupo 3
Uma estudante portuguesa que recebe o/as outro/as estudantes do programa Erasmus em sua
casa. Apresentaram-se e sentaram-se à volta de uma mesa para conversarem e partilharem uma pequena
refeição. O estudante espanhol era o que falava mais. A estudante portuguesa não se sentava, porque
estava sempre a servir os/as outros/as estudante/s. Falaram de política e da situação de crise que se vivia
em Portugal. O estudante alemão mostra um comportamento muito agressivo e a estudante russa fala
uma língua inventada, como se fosse a língua russa.
Antes de fazermos a avaliação dos modelos foi pedido a cada grupo para refazer o seu ritual.
Quando um/a participante dos outros grupos queria substituir uma personagem que estava em ação, dizia
“stop” e ocupava o lugar da personagem que queria transformar. As mesmas personagens podiam ser
substituídas várias vezes por participantes diferentes. O objetivo desta dinamização consiste em
transformar o comportamento de uma personagem, mas sem alterar a identidade da mesma. Após terem
sido esgotadas as substituições das personagens, iniciou-se o momento de avaliação dos modelos e das
dinamizações (diálogo 1), seguido da análise e discussão dos resultados obtidos (diálogo 2).
Avaliação
Diálogo 1
(sobre o modelo do grupo 1)
Formadora (para o grupo 2): Que tipo de família foi mostrada pelo grupo 1?
Grupo 2: Eram três manas velhotas e um mordomo que tentou matá-las todas, mas só conseguiu matar
uma.
Formadora: Mostraram o género das personagens?
Grupo 2: O mordomo era um homem e as “manas” eram mulheres.
P11 (participante do grupo 2): No inicio não percebia muito bem o papel do elemento masculino. Pensei
que fosse um irmão, bom, era escravizado de qualquer forma. Há medida que o tempo foi passando, houve
uma definição maior, mas mesmo assim, não com total clareza. Podia ser um irmão.
(sobre as dinamizações do modelo do grupo 1 pelo grupo 2)
P11: Eu substitui a mana que dava instruções na família. Instruções severas, austeras, que não me
agradavam. E, por isso, fui transformar essa atitude.
Formadora: Que atitude? O que é que querias transformar?
167
P11: Era uma atitude de superioridade para com a pessoa que servia a família e a palavra “servir” está a
ser empregue intencionalmente. E uma atitude de minorização relativamente às irmãs. As irmãs não eram
autónomas na sua atitude, na sua forma de estar. E a relação com a pessoa que tratava delas era uma
relação de superioridade/inferioridade, tinha que estar ao seu serviço e às vontades e aos caprichos da
pessoa, portanto, tentei transformar o autoritarismo em respeito e pôr as irmãs a tirar o “rabinho” da
cadeira, ou do sofá e a ir fazer as coisas.
P5: Eu quando alterei a personagem da mana submissa foi mesmo intencional, porque ela estava a fazer
croché e sentadinha ali no chão. E depois eu mudei, transformei-a numa pessoa mais nova, mais
capacitada.
Formadora: Porque é que sentiste necessidade de transformar a personagem numa personagem mais
nova?
P5: Porque eu não vejo as pessoas idosas inúteis e ela estava… e elas estavam a representar, as três,
aquelas velhas gagás, desculpem lá o termo, aquelas velhas que não fazem nada. Antigamente aquelas
velhas que se sentavam, passavam o dia a fazer croché, que já não se usa hoje em dia, que as pessoas são
mais ativas.
Formadora: Mas essa imagem de mulheres a fazer croché representa todas as mulheres idosas de
antigamente?
P11: Não representa, mas é a realidade da nossa imagem, ou seja, é um estereótipo de mulher idosa.
P5: Sim, é uma imagem que nós fomos construindo ao longo da vida, através da forma como as mulheres
idosas são representadas, as avós, que fazem croché e contam estórias às crianças.
Formadora: E também uma imagem de avós que vivem na cidade, que tiveram oportunidade para aprender
e praticar o croché, ao contrário da maioria das mulheres trabalhadoras rurais.
(Em relação ao modelo do grupo 1)
Formadora (para o grupo 3): Que tipo de família foi mostrada pelo grupo 1?
Grupo 3: Fizemos a mesma análise do grupo 2, em relação ao tipo de família e ao género das personagens.
P3 (participante do grupo 3): Aquilo que mais me impressionou foi a cumplicidade das duas irmãs. À
partida seriam unidas, mas quando uma morreu, até ajudaram o mordomo a esconder o corpo.
Formadora (para P3): Se isso foi um facto tão marcante par ti, porque é que não substituíste uma dessas
irmãs?
P3: Pois é… a minha ideia foi essa. Mas a dúvida era… o que é que eu iria substituir ali para alterar
aquilo? Mas que aquilo me fez confusão, fez. Porque ali seriam três irmãs e um funcionário e, de repente,
há uma que morre e toda a gente ajuda. E eu pensei, mas que raio de coisa é esta?
Formadora: Não seria possível substituir a morte. Morreu, morreu. Mas poder-se-ia substituir a forma
como as irmãs reagiram à sua morte.
(sobre as dinamizações do grupo 1 pelo grupo 3)
P12: Eu substituí o mordomo, para ele ser menos rezingão. Ele estava a cuidar das velhotas e não levava
a sério e eu queria mudar aquela atitude, ter mais paciência.
(sobre o modelo do grupo 2)
Formadora (para o grupo 1): Que tipo de família foi mostrada pelo grupo 2?
Grupo 1: Era uma família, também de irmãs.
P10 (participante do grupo 1): Pareceu-me que havia um pai que estava cansado de trabalhar.
P1 (participante do grupo 1): No inicio também pensei, mas depois começaram a tratar-se por manas, era
tudo manas.
P3 (participante do grupo 3): Mas a certa altura ela ou ele diz que estava farta ou farto de carregar baldes
de massa.
P1: Mas pode ser mana, a mim não me choca nada. Se não houvesse a componente verbal, eu diria que
havia um pai, uma mãe, filha e filho. Mas há a componente verbal e a componente verbal destrambelhou
tudo.
168
P10: Foi quase como legendas.
(sobre as dinamizações do grupo 2 pelo grupo 1)
P9: Era uma família onde não havia regras. Não havia ordem naquela casa. Porque é que eu a substitui?
(referindo-se à personagem que esteve deitada no sofá), porque achei que esta irmã era muito indolente e
teria que partilhar, também. Não era desculpa o facto de dizer que tinha trabalhado. Não sabemos se as
outras irmãs tinham trabalhado tanto ou mais que ela. Eu tentei (…) fazer com que [ela] tivesse outra
postura em termos de partilha do grupo. (…) está bem que o objetivo era esse, mostrar uma família não
tradicional, mas ali não havia regras, não havia horas. Cada uma vivia no seu próprio mundo.
Formadora (para o grupo 3): Que tipo de família foi mostrada pelo grupo 2?
P12: Eu vi um homem que não conseguia fazer nada, estava muito cansado.
P10 (participante do grupo 1): Não era homem.
P12: Não era homem?
Formadora (para P12): Porque é que era homem, para ti?
P12: Porque tinha carregado baldes de massa e, na minha ideia, os homens têm mais força. Então
carregam os baldes. Então pensei que era homem.
P8 (participante do grupo 3): Pois eu também. Tinha andado a arranjar o jardim todo e não sabia fazer
mais nada. Ninguém fazia nada, quem fazia alguma coisa era a irmã que foi às compras e cozinhou. Uma
estava cansada e a outra tocava música.
P12: No fundo não havia partilha de atividade nenhuma naquele grupo.
P3: Eu vi uma família monoparental. Um pai com adolescentes, filhos. Não vi ninguém no papel de mãe.
Vi um pai que estava em casa, mas estava estoirado, tinha trabalhado muito, e vi as filhas cada uma com
a sua entretenga e havia coisas para fazer em que ele dizia assim, ó pá, pelo menos façam alguma coisa,
porque eu já estou arrumado. Tentem lá fazer qualquer coisa, o jantar, ou qualquer coisa.
(o grupo 3 não substitui nenhuma personagem do grupo 2)
(sobre o modelo de família do grupo 3)
Formadora (para o grupo 1): Que tipo de família foi mostrada pelo grupo 3?
P6 (grupo 1): Eu não vi logo que era um grupo de estudantes do Erasmus. Vi uma pensão familiar, uma
daquelas casas de família em que a pessoa para ter alguns proventos aluga os quartos. E ela alugava
quartos a estrangeiros. Calhou ser a estrangeiros, uma eslava, um espanhol.
Formadora: Porque é que achas que ele era espanhol?
P6: Porque falava espanhol.
Formadora: Mas todas as pessoas que falam espanhol, são espanholas?
P5: Podia ser cubano.
(sobre as dinamizações do grupo 3 pelo grupo 1)
P6 (substituiu a estudante de nacionalidade russa): O meu objetivo não foi fazer uma transformação
moral, ou ética, transformar alguém melhor. O que eu quis fazer foi mostrar que se aquela era eslava e
estava tão sossegadinha, o que eu quis mostrar foi um estereótipo de eslavos que são mais violentos. Por
isso é que lhe chamei “bruxowski”, “caraxowki”, para mostrar que era qualquer país eslavo, que parte
muito rapidamente para a violência, naquele caso era verbal. Portanto, eu, a transformação que fiz não foi
transformar o modelo, foi mostrar que se eu fosse aquilo, se eu tivesse que mostrar, como é que eu
mostrava aquele estereótipo.
Formadora: E porque é que tinhas de mostrar um estereótipo?
P6: Foi o que eu entendi.
Formadora: Entendeste que nós tínhamos de mostrar estereótipos?
P6: Ela estava a representar alguém de um país eslavo. E se fosse eu a querer mostrar que aquela
personagem era eslava, como é que eu mostraria? E, então, eu escolhi o estereótipo de eslavo, que é uma
pessoa mais violenta. E como podia usar uma linguagem, fiz aqueles estereótipos de linguagem, também,
169
com os “owskis”.
Formadora: Alguém substitui a P6?
P9: Não.
P6: A P8 era a primeira eslava, que falava uma língua que ninguém entendia e ela também não entendia
ninguém. Foi substituída pela P12 que estava a tentar convencer diplomaticamente, com muito
argumentos, muito civilizados, em português, estava a tentar convencer a alemã a partilhar o espaço e a
ser menos autoritária. E eu o que quis mostrar foi: se fosse eu a fazer a personagem eslava, eu faria de
outra maneira, para mostrar que era uma personagem eslava.
P9 (substituiu o estudante espanhol): Eu substitui o espanhol, e esqueci-me, e comecei a falar português,
mas não era essa a intenção. Eu quis substituir o espanhol, porque ele estava muito apagado perante a
“frau” autoritária. E então pensei que ao substituir o espanhol, houvesse diálogo e partilha. Porque ele
estava obstinado em dar uns bocadinhos de salsicha, e como estamos em crise, cada um só podia comer
um bocadinho. Eu entendia que a melhor forma era que cada um de nós representasse as quatro
nacionalidades, fizéssemos a partilha em termos gastronómicos e de hábitos e costumes. Mas ele estava
muito rabino, muito autoritário.
Formadora: Conseguiste resolver o conflito?
P9: Eu acho que ele ficou mais dócil.
Formadora: Esta família mostrou dois conflitos. Como é que foram resolvidos esses conflitos?
P2: Eu fui substituir a portuguesa e tentar apaziguar a situação. Aquilo estava tão conflituoso e eu achei
que se fosse ali uma portuguesa mais serena, ou ali do barlavento algarvio, sei lá. Tinha o alemão
(renitente). Os outros colegas em vez de tentarem apaziguar um bocado e condescender, não se
contentavam com metade da salsicha, tinham de comer a salsicha inteira, e eu fui tentar, de alguma forma,
aliar-me a ele (ao estudante espanhol).
P10: E sabem que mais? Ela comeu três bocados de salsicha (risos).
Formadora (para P2): Achavas que podias resolver o conflito?
P2: Sim. A primeira coisa que eu disse foi que “com vinagre não se apanham moscas”. Eu aliei-me a ele,
foi uma energia que passou corpo a corpo naquele abraço.
Formadora (para o grupo 2): Que tipo de família foi mostrada pelo grupo 3?
P5: Quando eles entraram em ação, eu vi o estudante espanhol com a mochila às costas e aquilo pareceu-
me uma pensão, e a P12 [estudante portuguesa] era a dona da pensão. A única preocupação dela era servir
os almoços e eles não se entendiam. Eu nunca percebi qual era a nacionalidade da P8 [estudante russa].
O P3 percebi que falava espanhol, podia ser espanhol de um sítio qualquer. A P2 era alemã e só no fim da
representação é que eu percebi que eram estudantes, porque aí, quando ela começa a fazer perguntas,
parecia uma aluna aplicada, fazia perguntas a toda a gente. Achei um grupo um bocado estranho. E não
achei que houvesse ali grande harmonia.
P7: Eu comecei logo por perceber que era o Erasmus. Numa primeira fase não percebi que eram todos de
nacionalidades diferentes, mas quando falaram em estudar, a associação foi logo maior.
(sobre as dinamizações do grupo 3 pelo grupo 2)
P11: Eu substituí a estudante russa, porque ela não demonstrava qualquer interesse em estabelecer
interações com os restantes elementos. Estando estes em conflito, não era um elemento que colaborasse
para ajudar a resolvê-lo. De elemento passivo transformei-a em alguém com participação ativa no grupo.
P7: Porque é que fui substituir a P11 (estudante russa)? Porque quando o P10 entrou e substituiu a
estudante alemã, ele entrou com uma atitude tão, tão, agressiva e tão dominadora, que os outros
personagens todos se anularam, até a P12 (estudante portuguesa) ficou ali… e esqueceram-se que aquela
cena tinha um princípio, um meio e um fim. Eu entrei a dizer: “vamos lá estudar que temos teste amanhã”.
Sentei-me no chão com a estudante portuguesa a pensar que aquilo tinha ficado resolvido, mas não.
P10: O conflito ali era porque não compreendíamos o que estávamos a dizer.
P2: Eu não falava português e a P8 era russa.
P5: Eu não fui substituir ninguém, porque eu não sabia espanhol. E alemão, muito menos. O que eu achei
interessante foi a transformação do conflito. A Alemanha a querer se impor, na minha interpretação
170
política, e eles transformaram aquela relação numa relação de poder em relação a nós, a nós europeus, ou
a nós portugueses. Eu fiz uma interpretação política.
Formadora: Hoje, dia de greve geral, veio mesmo a propósito.
P11: Para mim também. Ele (estudante alemão) até nos mandou à manifestação, não foi? Aí já falavas
português (risos). Pois, Pois.
Diálogo 2
P1: Eu vou falar de algo transversal às três famílias. Em cada grupo houve sempre alguém que mandava
e que organizava aquilo tudo e que geria. No grupo 1, quem mandava era a mana Bia. No grupo 2 era a
P5, que era a mana não sei das quantas. No grupo 3 era a estudante portuguesa (P12) que dinamizava
aquela coisa toda.
P10: E sempre é uma questão de autoridade e depois há sempre a queda da autoridade. Como é que se
quebra aquela autoridade?
Formadora: Se partirmos da ideia que esse autoritarismo é transversal às três famílias, será que mostrámos
famílias não tradicionais?
P7: Vamos sempre cair naquilo que são os nossos estereótipos.
P11: Afinal haverá alguma distinção entre uma família que se considere tradicional e as outras? A
distinção estará somente na forma, ou aquilo que a família faz é transversal àquilo que se entende por
família tradicional?
P3: Em relação ao “tradicional” do modelo da família apresentado pelo grupo 1(…), eu vi uma família
abastada do Alentejo, em que a irmã mais velha é a chefe de família, têm um pavor muito grande do asilo,
porque ali não há lares de terceira idade, é asilo. Então, contratam um jovem serviçal para, digamos, servir
a família. E ela está sempre a mandar nele, porque não quer, já que paga a alguém, que as irmãs se
incomodem com coisa nenhuma. Mas isto é o retrato do Alentejo dos anos 50-60, como eu conheci.
P12: E se calhar do Algarve.
P9 (participante que mostrou a mana autoritária): Eu tive tias dos dois lados da família. Tive tias
autoritárias e tive tias dóceis, mas não foi propositado.
P5: Eu percebi que aquilo tinha algo a ver com a tua família, indiretamente.
P9: Mas não foi essa a intenção, não foi. Em relação à questão que a P11 colocou, em relação ao que é a
família. A família são os laços que se estabelecem entre os vários elementos da família, ou a distribuição
de papéis em termos de hierarquia. Porque há sempre alguém que manda, entre aspas. Para se estabelecer
uma ordem, é sempre necessária uma hierarquia.
Formadora: Será que é necessário haver uma hierarquia e autoritarismo para que uma família funcione?
P7 (participante do grupo 2): No nosso grupo não havia uma hierarquia, não foi definida, mas sem
querermos, mostrámos essa hierarquia.
P9: Uma grande conclusão, quer queiramos ou não, estamos todos presos ao tradicional de uma forma
inconsciente.
P8: Mas isso não será porque no grupo sabemos quem é quem mas não sabemos o que é que vai fazer e
como? E depois a gente depara-se com situações e diz, o que é que eu faço?
P11: Claro, porque aí não pões filtros.
P9: Mas quando ages de imediato não pensas.
P10: Claro, porque a tua matriz é colonialista, olhas sempre com superioridade para os outros e é isso.
Mas se tu tiveres o reflexo de pensares, vais entrar na intercultura.
P11: Se tiver esse reflexo…
P10: Claro, tem que ter.
P11: Sim, tem de ter.
171
P10: O teatro como mediação de conflitos interculturais significa isso.
P11: Mas, naturalmente, em situação de improvisação, nós temos as defesas em baixo. Porquê? Porque o
teu foco está em tentares ouvir uma situação e não em pensar como é que eu agora vou pôr isto de uma
forma politicamente correta. Isso vem depois. Na improvisação, tu ages e depois pensas, e é por isso que
nós vemos o resultado.
P9: Isso foi o que aconteceu aqui. Pediram-nos para fazer algo e nós fizemos sem pensar.
P12: Mas quando vamos substituir [dinamização] já pensámos, já vamos mudar.
P11: Se essa reflexão tiver algum impacto em ti, tu já te transformaste e já avançaste um degrau. Já não
estás presa ao que estás num primeiro momento.
P10: Mas temos de ter essa premissa. Isso é uma atitude tua, ninguém é intercultural porque quer.
P7: Mas podes fazer isso no momento de improvisação?
P10: Não, no momento não.
P11: Mas é no momento que nós estamos a falar.
Formadora: No teatro-imagem, como tivemos oportunidade de experimentar e refletir, as imagens que
construímos, os modelos, são imagens que reproduzem determinados discursos sobre realidades que
também foram construídas por esses mesmos discursos. Por isso, no teatro-imagem, como explica
Augusto Boal, o que interessa não é a imagem da realidade, mas a realidade da imagem. A imagem sobre
a família tradicional ou a família não tradicional que nós construímos aqui, têm um significado real,
porque não foram pensadas, não passaram pela mediação da reflexão crítica, pelos tais filtros do
politicamente correto.
P7: Temos aquela expressão: Disse sem pensar, desculpe.
Formadora: E no dia a dia, no nosso relacionamento com a família, as/os colegas, alunos/as, também
agimos e comunicamos, a maior parte das vezes, de uma forma “improvisada”, através da linguagem
corporal ou da linguagem verbal, reproduzindo discursos estereotipados e discriminatórios em função de
determinadas categorias sociais, como o género, a raça, a etnia e orientação sexual, entre outras.
P10: Entre classes, entre idades, entre religiões…
P2: É difícil a gente passar uma imagem de uma família que não seja tradicional. Todas as nossas
vivências…, a menos que a gente ponha: o pai vai preso, a mãe é alcoólica e os filhos ficam com fome.
(o grupo reage dizendo: “mas isso é uma família tradicional, tem pai mãe e filhos)
Formadora: Uma família com pai, mãe e filhos não pode ser considerada uma família não tradicional?
P2: Então, sendo assim, eu não consigo saber o que é uma família não tradicional.
P12: É a atitude. Às vezes é mais fácil o não verbal, do que o verbal.
P11: Sim, uma família não tradicional, para além de outros fatores, difere da família tradicional pela forma
como se relacionam em termos de relações de poder.
Meta-análise
172
o que é que eu faço?” (P8). Como resposta a estas questões, um participante (P10) compreendeu que as
imagens foram construídas a partir de uma “(…) matriz (…) colonialista. Olhas sempre com
superioridade para os outros e é isso.”
173
5.1.3.5. Sessão 6 – Jogos de Imagem
A partir das imagens cinéticas das famílias criadas pelas/os participantes na sessão 3, pediu-se
aos grupos que construíssem uma “imagem ideal” desse modelo de família. O “modelo ideal”, de acordo
com Boal (1973/1998), não deve conter nenhuma imagem de opressão, ou seja, cada personagem deve
ocupar uma posição em que não se sinta oprimida. Depois de construído o modelo ideal, inicia-se a
dinamização do modelo através da “imagem da transição” que consiste em mostrar a
transição/transformação entre o modelo real e o modelo ideal. Esta transição é realizada através de
movimentos lentos do corpo sem recurso à palavra. As personagens, e não os/as participantes, devem
estar de acordo com o modelo ideal. O diálogo que se apresenta abaixo descreve o processo de
construção da imagem ideal, a partir da imagem de transição.
Diálogo 1
P9: Pois eu posso começar. Houve uma troca efetivamente de papéis, de uma mãe tradicional que
cozinhava e que passava a ferro ao mesmo tempo e um pai que via televisão, unicamente. O pai decidiu
partilhar, dividir as tarefas: mãe foi para o sofá e o pai ficou a passar a ferro.
Formadora: Isso foi partilhar as tarefas?
P8: Não, trocaram.
P9: A casa é de todos, a roupa é de todos, porque é que há de ser a mãe a fazer? A mãe também precisava
de descansar e o pai foi fazer aquilo que precisava de ser feito naquela altura. E o irmão que era muito
individualista, que se isolava do resto da família, deixou o computador e foi partilhar uma história que a
irmã estava a ler.
(sobre o modelo ideal do grupo 2)
P11: Nós decidimos que, apesar de toda a gente colaborar nas tarefas assistenciais, não havia momentos
lúdicos na família. E era preciso esse momento lúdico de prazer e não só de obrigações. E, por isso, a
família decidiu brincar. A ideia era olhar para o “acamado” do ponto de vista da necessidade dos cuidados
de saúde, e também como pessoa mais abrangente. E os pais, os progenitores, também terem momentos
mais descontraídos com as crianças.
(sobre o modelo ideal do grupo 3)
P6: Decidimos transformar, tornando a família mais próxima. Transformámos a relação da mãe com a
filha numa coisa menos dependente e menos obsessiva e o irmão incluiu-se.
P1: Embora continuando na sua, mas a partilhar.
P7: Criámos um relacionamento entre todos.
Formadora (dirigindo-se aos três grupos): Todas e todos participaram na construção da imagem ideal e
concordaram com as mudanças propostas?
(todas/os participaram e concordaram)
107
Cf. Boal (1973/1998, pp. 244-245).
174
Meta-análise
Como se pode perceber através do diálogo apresentado acima, cada grupo considerou que foram
realizadas todas as transformações possíveis para chegarem a um modelo ideal de família, ou seja, um
modelo onde não existisse nenhum tipo de opressão. Contudo, em relação ao modelo de imagem ideal
construído pelo grupo 1, quando a participante (P9) fala do processo de transformação, explicando que
“(…) o pai decidiu partilhar, dividir as tarefas: a mãe foi para o sofá e o pai ficou a passar a ferro”, a
formadora teve dúvidas se realmente teria havido uma partilha e colocou essa questão ao grupo. Apenas
um participante (P8) considerou que tinha havido uma troca de papéis, mas não tinha havido uma
partilha. Este tema acabou por não ser explorado, mas, curiosamente, foi trazido à discussão no jogo
que realizamos posteriormente.
5.1.3.5.2 Ritual 3
Nas sessões anteriores não tinha sido mostrado/construído nenhum modelo de família
homoafetiva. Como a “orientação sexual” constitui uma das categorias sociais em estudo, foi necessário
encontrar uma forma de criar esse modelo de família sem haver uma imposição da formadora. Assim,
levei uma crónica de Daniel Sampaio (2009) onde o autor aborda a questão da definição de família e as
suas pluralidades. Distribuí o texto pelas/os participantes e lemos o seguinte parágrafo em que o autor
define família e enumera aquilo que ele designa por famílias não tradicionais:
É assim que tento definir família(s) como um espaço emocional com práticas familiares (guarda,
sustento, apoio, educação, afectividade, valores...), sem limites rígidos de residência, casamento ou
orientação sexual dos cônjuges, no qual sobressai a preocupação com o cuidar dos seus membros. Nesta
divisão englobo a família nuclear “tradicional”, a família monoparental, os agregados familiares
reconstituídos, os casais do mesmo sexo com ou sem crianças, os casais living aparttogether com ou sem
filhos a seu cargo e muitos outros modelos de vida gregária existentes ou que o futuro definirá (p. 4).
Seguidamente, perguntei ao grupo quais os modelos de famílias referidos no texto que ainda
não tinham aparecido nas nossas sessões de formação. A resposta foi unânime: as “famílias
reconstruídas” e as “famílias living aparttogether”. Quando perguntei se já tinha sido construído um
modelo de família homoafetiva, confirmei que o grupo tinha identificado um dos modelos de família
construído na sessão 3108 como sendo um modelo de família homoafetiva com filhos. Perguntei se
alguém gostaria de construir um outro modelo de família homoafetiva (não referindo se com ou sem
filhos/as). Três participantes e um participante construíram o seguinte modelo: um casal do mesmo sexo
(mulheres), com uma filha, de 6 anos e um filho de 9 anos de idade. Partilhavam as tarefas domésticas
108
O modelo de família construído pelo grupo 2 representava uma família nuclear tradicional, em que o casal era
desempenhado por duas participantes que partilhavam as tarefas domésticas, incluindo o cuidado com o filho
acamado. Tal como foi referido na meta-análise deste jogo, as/os participantes (plateia) identificaram esta
família como sendo um casal homossexual feminino com filhos/as.
175
básicas, mostravam gestos muito afetivos entre elas e com a filha e o filho. Tomaram um pequeno
almoço prolongado, conversando, enquanto as crianças brincavam uma com a outra. Mostraram a
imagem de uma família que cuida bem da sua companheira e dos/as filhas/os.
Uma vez que as/os participantes tinham identificado o modelo do ritual de família do grupo 2
(sessão 3) como uma família homoafetiva com filhos, pedi ao grupo 2 para refazer o ritual. Após a
apresentação do modelo, iniciámos a análise dos modelos apresentados. Para uma melhor identificação
dos modelos das famílias em análise utiliza-se, no diálogo abaixo, a sigla FHE, para referência ao
modelo de família heterossexual e a sigla FH, para referir o modelo de família homoafetiva.
Diálogo 1
P7 (referindo-se ao modelo FHE): Os atores são do sexo feminino, mas poderia ser um casal
heterossexual.
Formadora: Porquê?
P7: Faltavam sinais de que as duas personagens estavam a incarnar papéis do mesmo género sexual.
Formadora: Mas o que é que faltava ali?
P7: Qualquer gesto que desse para entender… para identificar… Sem dúvida nenhuma que havia uma
personagem do género masculino e uma personagem do género feminino.
Formadora: No vosso modelo (FH), em que as personagens também são representadas por duas mulheres,
qual foi o gesto a que recorreram para mostrar o vosso género?
P7: Não sei… Para mim este casal (FHE) tanto podia ser gay, como não.
P6: Na outra vez (referindo-se à sessão 3 e ao modelo FHE), houve uma das pessoas que disse que
pensava que era um casal homossexual, porque parecia haver partilha de tarefas que não é tão normal
num casal heterossexual. Eu pensei que era um casal homossexual. Hoje, (…) não liguei nenhuma à
criança, nem ao acamado, liguei ao casal, para ver o que é que percebia dos gestos do casal, se eram do
mesmo sexo, ou não. E não consegui perceber. Podia ser um homem, ou não. Da outra vez não tinha
dúvidas.
P1: Eu da outra vez também achei que podiam ser um casal do mesmo sexo, única e exclusivamente por
causa da questão dos estereótipos dos papéis, porque… (dirigindo-se a P6) há só uma coisa que eu quero
dizer em relação àquilo que tu disseste: que não é tão normal nos casais heterossexuais a partilha. Isso aí
já não sei, depende. Não vi grandes diferenças entre… aquele que nós desempenhámos (P1 e P6
representaram, respetivamente, uma das companheiras/mães e a filha do modelo de família homoafetiva)
e este, eu não vi diferenças nenhumas.
P4 (personagem filho no modelo da FH): Eu vou falar em linguagem filosófica. Vou usar a expressão
“dever ser”. Não importa muito quais são os sinais estereotipados, ou os sinais de género. Porque é assim,
a ordem ideal, a tal ordem do “dever ser”, do casal homo e do casal hetero, devem ter basicamente o
mesmo comportamento.
Formadora: Podias explicar melhor o que queres dizer com o “dever ser”?
P4: A ideia do “dever ser” é esta: o ideal é que qualquer casal, seja homo, seja heterossexual, viva numa
situação de partilha absoluta, não só de afetos, mas também de tarefas, resolução de problemas, etc.
(este participante tinha desempenhado a personagem de pai/companheiro no modelo de família do grupo
1, da sessão 3, no primeiro jogo de imagem ritual de famílias. Neste modelo, a personagem mostrava-se
extremamente autoritária e patriarcal, nomeadamente, na recusa em partilhar as tarefas domésticas)
176
Formadora (dirigindo-se a P4): Entre o modelo de família homoafetiva, na qual tu participaste como
filho, e o modelo da família heterossexual, na qual participaste como um marido/companheiro machista,
onde é que fica o teu “dever ser”?
P4: O “dever ser” é a ordem ideal das coisas.
Formadora: Mas porque é que o “dever ser” não surgiu na improvisação do modelo da família
heterossexual na qual tu participaste?
P4: Não surgiu porque não tinha de surgir, porque o problema não se pôs, talvez.
Formadora: E porque é que o problema não se pôs? A proposta para criar um modelo de família era a
mesma.
P4: Eu é que peguei na ideia do “dever ser” porque qualquer casal, ou melhor, qualquer família,
independentemente das suas características, deve partilhar, deve cooperar, deve ser solidária, etc.
Formadora: Partindo desse principio, como é que isso não apareceu na primeira família?
(Outras/os participantes instigavam o participante a explicar melhor esta questão)
P4: Na primeira família nós quisemos representar uma família tradicional. E todos nós, no nosso sentido
crítico temos alguma coisa a apontar a algumas características de algumas famílias tradicionais.
Formadora: Foi uma opção vossa, então, porque a proposta era só mostrar o dia de rotina de uma família.
Porque é que optaram por mostrar uma família tradicional e patriarcal? Porque a família pode ser
tradicional e não ser patriarcal.
P4: Agora, talvez esse “dever ser” tenha estado presente na imagem da transição que nós fizemos hoje.
Posso só esclarecer aqui uma coisa? (respondendo a uma participante que comentou que o participante
se estava a contradizer). É assim, eu sei muito bem aquilo que estou a dizer e não me estou a contradizer,
isto é, a questão do “dever ser” também estava presente ali, lembraste de eu ter dito, quando estávamos a
falar da nossa representação, o seguinte: aquela imagem transparecia a mudança, ou seja, transparecia
uma partilha de tarefas, ou seja, naquele dia, o homem está a passar a ferro e a mulher está a descansar, o
que não significa que no dia seguinte não voltasse outra vez a mulher a trabalhar. Aquela imagem
representava a transformação.
P11: Mas aquela imagem é fixa, nós não temos o antes, nem o depois.
Formadora: Vou insistir nesta questão que me parece importante. Porque é que o “dever ser” surge numas
situações e não surge noutras?
P4: É assim, deveria surgir sempre.
P8: Eu penso que ele ali na primeira (modelo da família heterossexual da sessão 3), quis fazer uma família
mais à antiga (risos gerais), em que o homem não fazia as tarefas e a mulher é que fazia as tarefas todas.
Hoje, nesta família (referindo-se à imagem de transição), já é uma família moderna em que todos
trabalham e todos partilham.
P1: Não, só trocaram os papéis. Relativamente àquilo que ele (P4) disse da família que nós representámos,
que era uma família homossexual (refere-se ao modelo FH), e a questão de não haver grande diferença
numa família heterossexual em termos de partilha, a minha pergunta agora é outra, na tal ordem,
autocrítica, até que ponto também não é um estereótipo que nós temos que numa família homossexual há
partilha?
(a maioria dos/as participantes manifestou concordância com esta posição)
P9: Eu não consegui diferenciar as duas famílias (referindo-se ao modelo FH e FHE).
P5: Eu também não.
P2: Eu também não.
P10 (referindo-se ao modelo FHE): Eu acho que é um casal gay. Os sinais são a tua gestualidade (da
participante que fazia a personagem pai/companheiro) e alguns pequenos comportamentos físicos que
denunciam o género. Por exemplo, os beijinhos. Aquele beijinho repenicadinho. A forma como se
aproxima… aquele nervosismo é feminino. Há coisas que me distanciam logo do universo masculino. Há
uma ação que decorre como masculino, mas depois há essas nuances físicas que me distanciam. Portanto,
eu ponho em questão. É a mesma coisa que eu sinto quando vejo uma mulher muito masculina. É uma
espécie de dualidade. Há mulheres que são tão masculinas que tu ficas naquela, é rapaz, é rapariga?
177
P7: O P10 está a associar os gestos delicados ao feminino.
P10: Não são os gestos delicados. É a perceção que eu tenho do gesto.
Formadora: Para ti, os gestos da personagem são femininos.
P10: Não são todos. Alguns são masculinos e outros não. Mas depois há uns gestos intrínsecos, daqueles
que nós não nos apercebemos.
Formadora: Quando dizes que são femininos, a que tipo de feminino te estás a reportar?
P10: Àquele que eu sinto como feminino, como homem que sou. É o feminino que eu vejo na minha irmã,
que eu vejo na minha mãe e que é intrínseco a elas e que eu reconheço nas mulheres.
Formadora: Há pouco estávamos a falar precisamente de “femininos”, “masculinos” e “famílias” no
plural, porque a diversidade é enorme. Quantas formas femininas e masculinas existem e como elas se
intersetam numa mesma pessoa, só considerando a categoria de “género” no sentido estrito. A forma como
construímos o “feminino” e o “masculino”, como já foi dito aqui, tem a ver com a forma como
reproduzimos os discursos dominantes sobre a feminilidade e a masculinidade. Uma das consequências
desses discursos é associarmos o feminino à mulher e o masculino ao homem. Quando o “sexo” parece
não combinar com o “género”, concluiu-se que a pessoa em causa é homossexual ou lésbica. Parece-me
que a leitura que fizemos do modelo de família construído pelo grupo 2 reproduz esse tipo de discurso,
uma vez que identificámos essa família como uma família homossexual, a partir das imagens que temos
de feminilidade e masculinidade e o desempenho de papéis atribuídos a cada género. Alguém quer
acrescentar algum comentário, concordante ou discordante? Vamos passar, então, à análise do modelo da
família homoafetiva.
Meta-análise
Segundo a maioria das/os participantes, a dificuldade em identificar a FHE está relacionada com
o facto de “(…) haver partilha de tarefas que não é tão normal num casal heterossexual” (P6). Ao
contrário da maioria, um participante (P10) identificou nesta família um casal gay através da
“gestualidade” e “alguns comportamentos físicos que denunciavam o género” da participante que
desempenhava a personagem do pai/cônjuge, como, por exemplo, “aquele beijinho repenicadinho” e
“aquele nervosismo (…) feminino” (P10). A dificuldade em identificar o casal heterossexual neste
modelo de família tem a ver fundamentalmente com a ausência de imagens que mostrassem as divisões
de trabalho doméstico em função do género. No entanto, como questionou um participante, “(…) até
que ponto também não é um estereótipo que nós temos que numa família homossexual há partilha? (P1).
Esta questão desafia, ao mesmo tempo, dois discursos normativos sobre o modelo de família: o primeiro,
o modelo de família constituída por um casal heterossexual, em que a mulher deve assumir a
responsabilidade das tarefas domésticas, incluindo o cuidado e a educação dos/as filhos/as e o homem
deve apenas “ajudar” nessas tarefas; o segundo, o modelo de família constituída por um casal
homossexual, feminino ou masculino, em que há uma partilha igual das tarefas domésticas e da educação
dos/as filhos/as. Esta questão contribui para um momento de reflexão crítica sobre a análise das imagens
das famílias em discussão.
Neste diálogo, a análise e a discussão dos/as participantes sobre os modelos de famílias mostrou,
de uma forma mais evidente, como, através do Teatro-Imagem, as/os participantes são confrontadas/os
com o contraditório entre os discursos que informam as imagens que elas/eles próprias/os constroem e
os discursos que informam o falar “politicamente correto”. É este reconhecimento que permite uma
178
reflexão crítica e potencialmente transformadora sobre os discursos normativos que se vão revelando,
quer nas imagens teatrais, quer nas falas dos/as participantes. Por exemplo, neste primeiro diálogo,
abriu-se uma espécie de “caixa de pandora” quando um participante (P4) afirmou que,
independentemente dos estereótipos de género, o que interessa, no sentido filosófico do termo, é a ordem
ideal do “dever ser”, ou seja, “(…) o ideal é que qualquer casal, seja homo, seja heterossexual, viva
numa situação de partilha absoluta, não só de afetos, mas também de tarefas, resolução de problemas,
etc.”. Perante este discurso, o participante foi questionado em relação à ausência desse ideal de “dever
ser”, na construção do modelo de imagem de família (Ritual de famílias, da sessão 3) do grupo 1, no
qual o participante desempenhava o papel de pai e cônjuge autoritário e não participava em nenhuma
tarefa doméstica.
Confrontado a partir do seu próprio discurso, o participante (P4) apresenta duas justificativas
contraditórias para essa ausência da imagem do “dever ser”: na primeira, explicou que “(…) Não surgiu
porque não tinha de surgir, porque o problema não se pôs, talvez”; na segunda (na sequência da
formadora e algumas participantes terem perguntado porque é que “o problema não se pôs”), justificou
que “Na primeira família nós quisemos representar uma família tradicional. E todos nós, no nosso
sentido crítico temos algumas coisas a apontar a algumas características de algumas famílias
tradicionais”. A partir do reconhecimento do seu discurso contraditório e da associação entre família
tradicional e família patriarcal, o participante (P4) argumenta que embora o “dever ser” não tenha estado
presente nesse primeiro modelo de família, “(…) talvez esse “dever ser” tenha estado presente na
imagem da transição que nós fizemos hoje (….) Aquela imagem transparecia a mudança, ou seja,
transparecia uma partilha de tarefas, ou seja, naquele dia o homem está a passar a ferro e a mulher está
a descansar (…)”. Na análise que tinha sido feita anteriormente pelas/os participantes (ver Diálogo 1 do
jogo da imagem de transição) sobre a imagem de transição do grupo 1, uma participante (P8) observa
que não tinha havido uma transformação da imagem, uma vez que não houve partilha de tarefas, mas
uma troca de papéis. Na altura, esta questão não gerou nenhuma discussão significativa entre as/os
participantes. No entanto, a partir da análise que o participante (P9) fez da sua imagem de transição, a
maioria das participantes assumiu a mesma posição crítica da participante P8, reiterando que não houve
nenhuma transformação, mas uma troca pontual de papéis, no sentido de a mulher poder descansar um
pouco.
O reconhecimento, quase coletivo, e o nível de análise que as/os participantes mostraram neste
diálogo, quer em relação aos discursos que envolviam estereótipos e papéis de género, quer em relação
à ausência de transformação da imagem de transição do grupo 1, mostra como as/os participantes vão
desenvolvendo, através da prática reflexiva do Teatro-Imagem, uma perspetiva mais crítica sobre os
discursos normativos que estruturam e naturalizam as posições de poder e de desigualdade.
179
Diálogo 2
180
Meta-análise
Para além deste discurso, mas associado a ele, o participante reproduz o discurso normativo
sobre a necessidade da autoridade e presença do pai na educação dos/as filhos/as, quando refere que,
naquele modelo de família, “(…) deixou de haver ali a figura da autoridade, o autoritário que existe na
outra família tradicional, porque o homem assume esse papel” (P10). Este discurso tem como
consequência provocar um sentimento de culpa nas mulheres que decidiram pedir o divórcio, ao mesmo
tempo que aumenta a pressão para que ela consiga desempenhar o papel de pai e de mãe, ou inibir a
mulher de pedir o divórcio, com medo de ser a única responsável pela educação dos/as filhos/as e ser
culpabilizada, quer pelos familiares, quer pela sociedade, se alguma coisa correr mal na educação dos/as
mesmos/as.
Diálogo 3
(Fala o grupo que construiu o modelo de família homoafetiva)
P7: Quando disseram aqui que deixámos as crianças muito à solta, isso, eu acho que foi nos primeiros
momentos da improvisação. Porque, depois, estivemos com eles, saímos, sentámo-nos no sofá, não a ver
televisão, realmente, mas a partilhar e a falar sobre atividades. Esquecemo-nos da televisão, é verdade,
mas um casal heterossexual pode, também, não ver televisão.
181
P6: Mas na família heterossexual (referindo-se ao modelo do grupo 1 da sessão 3), apareceu.
Formadora: A televisão apareceu em quase todos os modelos de família, exceto nos modelos em que havia
partilha de tarefas.
P7: Apareceu, mas não é obrigatório. Houve momentos em que um dos personagens, ou uma das
personagens do casal, não era totalmente autoritária, mas comandava e noutro momento comandava a
outra. Houve uma partilha de comandos. Quando fomos sair de carro, alguém comandou essa ação,
quando nos sentámos a tomar o pequeno-almoço, alguém comandou essa ação.
Formadora: Todos os modelos de famílias que têm sido construídos até ao momento, como a P1 já referiu
anteriormente, mostram figuras autoritárias, exceto o modelo da família do grupo 2, da sessão 3, que
ainda não temos a certeza se é um modelo de família homoafetiva ou heterossexual. Por outro lado, o
modelo de família homoafetiva não construiu nenhuma personagem autoritária. Assim, a realidade das
nossas imagens de família tradicional, ou não tradicional, tem como elemento estrutural uma figura de
autoridade ou autoritária, enquanto que a realidade da nossa imagem de família homoafetiva perde esse
elemento estrutural, colocando em questão a necessidade de uma figura autoritária ou de autoridade para
que uma família funcione.
(Sobre o modelo de família heterossexual, que quase todas/os as/os participantes tinham identificado
como sendo uma família homoafetiva)
P11: (com ênfase e ironia): Então… nós somos uma respeitadíssima família alternativa, nuclear,
tradicional, papai, mãezinha e filhinhos.
P9 (para P11): Tu és o pai.
P11: Sim, eu sou o pai.
P9: Num determinado momento eu vi que usavas gravata.
P11: A gravata existia desde o primeiro momento.
P6: Mas os gestos eram tão femininos.
P11: E agora, pegando naquilo que o P10 disse sobre o que é ser feminino, ou não. O P11 tem a sua
representação de feminino e uma delas é os beijos. Por exemplo, eu sou uma mulher, fisiologicamente, e
em termos de identidade e eu detesto beijos repenicados. E agora é a P11 que está a falar e não a
personagem. Ali, até era a despachar. Porque, da primeira vez, se bem te lembras, era um beijo,
simplesmente. Tudo isto foi feito, porque era uma história muito longa, mais longa do que as outras. E
então, é a tua conceção de feminino, baseada na tua mãe, nas tuas irmãs.
P10: Isso foi a minha justificação. A minha conceção em relação ao que foi apresentado, foi a minha
imagem.
P11: Sim, a imagem que tu tens de feminino e que reproduz um determinado discurso, como já falámos
lá atrás. De facto, nós temos sempre que ir à primeira sessão (sessão 3), porque no contexto das famílias
apresentadas (ritual de famílias) a nossa saiu fora do baralho. Porque agora é mais fácil ver coisas ou
pensar mais coisas, mas, na altura, a quente, saiu completamente fora do baralho. E o nosso modelo de
família foi mostrado logo após a apresentação do modelo de família do grupo 1: mãezinha passava a ferro,
cozinhava, o pai lia o jornal e ficava no sofá e depois fomos nós, em que as duas pessoas iam ao doente
(mãe e pai), iam as duas para a cozinha, etc. Não havia a identificação clara, para quem assistia, dos papéis
que são atribuídos, por muitas pessoas, ao que é o pai e ao que é a mãe. Nós partilhávamos as tarefas de
que estávamos imbuídas. Era uma família que partilhava tudo.
P9 (dirigindo-se a P11): Posso fazer uma pergunta?
P11: Podes.
P9: Vocês partilharam. Então porque é que não concordaste quando dissemos que no nosso grupo (imagem
de transição do grupo 1, a partir do jogo ritual de famílias da sessão 3) houve uma troca de papéis e uma
partilha? Tu disseste que houve uma troca, mas não houve uma partilha
P11: Vi uma partilha entre eles (a filha e o filho), eles estavam a fazer coisas em conjunto. Agora, no pai
e a mãe eu não vi. Vi o pai a trabalhar (a passar roupa a ferro) e vi a mãe a descansar. Ora, se eu vejo uma
pessoa…
P9 (interrompendo): Houve uma troca de papéis.
182
P11: Uma troca de papéis não implica uma partilha. Naquela imagem (imagem de transição do grupo 1)
não havia uma partilha. Havia uma pessoa a trabalhar e outra a descansar.
P4: Com uma só imagem como é que a gente podia representar mais?
P11: Ela podia estar a dobrar a roupa, ele podia estar a passar, podia estar a lavar a loiça.
P4: Mas ao mesmo tempo eu permito-lhe que ela descanse.
P11: (indignada) Ah, tu permites-lhe… (outras participantes apoiam este comentário de viva voz, criando
algum tumulto que é cortado pelo participante)
P4: Da mesma maneira que ela no futuro vai permitir-me a mim (o tumulto e os comentários sobrepostos
recomeçaram e foram cortados pela intervenção da participante).
P11: Eu percebo a vossa tentativa para justificar a vossa imagem… Eu estive calada durante muito tempo,
agora posso falar? Vocês já justificaram, já deram a vossa justificação. Não vão acrescentar mais nada.
Eu que estou a assistir, não sei o que é que vos levou a fazer aquilo. Porque nós só tínhamos direito a uma
imagem, não tínhamos direito a mais nenhuma.
P2 (a participante que fazia a personagem da mãe/conjuge da família heterossexual que está a ser
questionada): Nós fizemos o percurso (a imagem de transição) em câmara lenta.
P11: Fizeram o percurso em câmara lenta, mas passaram do sofá para o ferro e do ferro para o sofá. Não
houve absolutamente mais nada. Se tu tivesses saído do ferro para outra coisa, e o teu marido tivesse saído
do sofá para outra coisa doméstica, aí estavam duas pessoas a partilhar…
P9: Se estivessem os dois sentados no sofá já estavam a partilhar (risos gerais).
P11: Se na imagem de transição só se invertem os papéis e não se invertem as tarefas, o que é que altera
a nossa visão sobre o primeiro modelo da imagem da família? Para eu depreender que da segunda vez
havia partilha, então eu tenho que depreender que da primeira vez também havia. E só porque é homem
e está no sofá, eu estou a atribuir automaticamente o papel do não faz nada e só porque é mulher, e está
no sofá, eu já estou a atribuir o papel do que partilha? Ou seja, o homem não pode estar no sofá a
descansar, porque já trabalhou e é entendido como o homem tradicional. Mas a mulher já pode estar no
sofá a descansar, porque é entendida como a mulher moderna, da família moderna, porque o marido
permite (risos gerais).
P8 (participante que construiu a personagem mãe/companheira do modelo de família supostamente
homossexual): Em relação à nossa família, todo o grupo pensou que nós éramos do mesmo sexo, pelo
facto de sermos duas mulheres. E nós quisemos contrariar isso, não quisemos que a figura do pai fosse o
um homem.
P11: E o facto de nós sermos afetivos, afetivas, também poderia levar a pensar isso. Porque eu vou
trabalhar, esqueço-me de dar um beijinho, volto para trás, porque ela ainda ficou em casa.
Formadora: Os modelos de famílias heterossexuais que foram construídos, à exceção deste modelo, não
mostram imagens de afetividade entre o casal.
P1: Eu, pessoalmente, continuo a não estar esclarecida. Vocês disseram que era uma criança, mas eu não
percebi que era uma criança. Não me pareceu que houvesse a afetividade para com aquela criança.
Pareceu-me mais que era uma pessoa dependente, e a sensação com que fiquei é que era um idoso.
P11: Eu da primeira vez brinquei. Houve um momento em que agarrei em duas coisas que seriam
brinquedos e mostrava qual é que queria.
P1: Mas não se percebeu. E não se percebeu a afetividade.
Formadora: Na sexta linha, do último parágrafo, da coluna um do texto (do Daniel Sampaio) e para
rematar esta questão que a P1 colocou, diz assim: “é assim que tento definir famílias…”. Como é que nós
mostramos o “quem”? Através da forma como nos relacionamos com os outros elementos do grupo. Nos
modelos de famílias que surgiram aqui, tem-se colocado mais o foco nos papéis que desempenham, o seu
lugar no grupo, a sua posição, do que propriamente nos relacionamentos. Como é que as pessoas se
relacionam, dentro das famílias, em relação ao cuidado, atenção, afetividade, valores, etc.
P1: Sociologicamente, hoje em dia, já se fala de famílias unipessoais.
Formadora: Sim, mas as pessoas não vivem em universos isolados. Mesmo as famílias unipessoais criam
“laços familiares” com vizinhos, animais de estimação, etc. Para concluirmos gostaria de frisar, uma vez
183
mais, que no Teatro-Imagem trabalhamos com a realidade da imagem e não com a imagem da realidade.
As imagens de famílias que construímos ao longo destas sessões, foram construídas, de acordo com as
análises que fizemos, através de estereótipos em função do género, raça, orientação sexual, classe,
masculinidades, feminilidades, etc. Esses estereótipos foram e continuam sendo adquiridos e formatados
a partir de discursos normativos, nomeadamente, o discurso sobre o ideal de família tradicional que se
constitui a partir da interseção de eixos de desigualdade e discriminação em função do género, raça, etnia,
orientação sexual, entre outros. Esse ideal de família tradicional, estrutura o modo de funcionamento de
todas as instituições sociais, nomeadamente, a escola. Se olharmos de forma crítica para o espaço escolar,
encontraremos imagens semelhantes àquelas que foram construídas neste espaço estético sobre as
famílias. Identificaremos imagens de opressão e de privilégio, em função das categorias sociais de género,
raça, etnia, orientação sexual, etc. E podemos, igualmente, à semelhança do que temos feito com as
imagens das famílias, dinamizar essas “imagens do real”, no sentido de transformar esses discursos e
práticas discriminatórias.
Meta-análise
Neste último diálogo, apresentado acima, surgiu novamente a questão da partilha ou não partilha
das tarefas domésticas do modelo de família já referido anteriormente, que gerou um discurso de
resistência generalizada, das participantes mulheres, quando uma participante (P11) sugeriu que a
partilha poderia ter sido mostrada da seguinte forma: “Ela podia estar a dobrar a roupa, ele podia estar
a passar, podia estar a lavar a loiça”. Numa tentativa de defender a sua posição, o participante que tinha
desempenhado o papel de cônjuge autoritário na família em análise, argumentou o seguinte: “Mas ao
mesmo tempo eu permito-lhe que ela descanse (P4). Este “eu permito-lhe” desencadeou uma forte
reação generalizada que terminou com o argumento final da participante (P11), comparando a
personagem que esta tinha desempenhado no modelo de família não tradicional, como irmã que
carregava baldes de massa e descansou no sofá e esta personagem que, na imagem cinética, também
estava sentado no sofá.
De acordo com a participante, a forma como a troca de papéis foi realizada na imagem de
transição (o homem passava a ferro e a mulher estava sentada no sofá) mostra, igualmente, um
estereótipo de género, porque “(…) só porque é homem e está no sofá, eu estou a atribuir
automaticamente o papel do não faz nada [referindo-se ao modelo da imagem cinética] e só porque é
uma mulher, e está no sofá, eu já estou a atribuir o papel do que partilha [referindo-se à imagem de
transição]” (P11). Esta questão foi encerrada a partir da compreensão de que partilhar não significa
ajudar pontualmente nas tarefas domésticas para a mulher poder descansar.
184
5.1.3.6 Sessão 7 – Jogo das Imagens do Poder e da Desigualdade
Este jogo é uma adaptação de “O grande jogo do poder” (Boal, 1973/1998) e do “Exercício do
privilégio” desenvolvido pela norte-americana Barbara McCaffry (2002). Este jogo de imagem tem
como objetivo mostrar como todos os espaços sociais são estruturas de poder. O modo como as posições
de privilégio e opressão se intersetam nessas estruturas sociais não é inocente, “todas têm um significado
e uma desigual distribuição de poder”, como afirma Boal (1973/1998, p. 218). Cada participante recebeu
um cartão com uma determinada identidade (ver quadro 5.5). Define-se um ponto de partida no espaço
físico e todas/os as/os participantes se alinham nesse ponto. Cada participante avança dois passos sempre
que se identificar com as diretivas109 (ver quadro 5.6) que vão sendo dadas pela formadora. No fim do
jogo, os/as participantes devem permanecer nos seus lugares e iniciar um diálogo sobre as diferentes
posições e desigualdades de poder que ocupam no espaço.
Diretivas
1. Quem não é discriminado pela sua cor de pele
2. Quem pertence ao grupo com menos mortes por violência doméstica
3. Quem tem direito a feriados e férias pagas
4. Quem pode adotar uma criança em conjunto com o/a seu/sua companheiro/a
5. Quem ocupa a maioria dos cargos de chefia e dos cargos políticos
6. Quem não sente a pressão social de cuidar da casa e dos filhos
7. Quem pode falar abertamente da sua orientação sexual sem medo de ser discriminado/a
8. Quem não tem medo de ser violado/a sexualmente
9. Quem não corre o risco de ser acusado de criminosa/o ou ladra/ão
Quadro 5.6. Diretrizes
109
As diretivas foram elaboradas pela formadora a partir da revisão da literatura sobre os temas em foco.
185
Apresentação dos resultados
A posição de maior privilégio foi ocupada pelo português branco, heterossexual e professor do
quadro da escola (P10). Em segundo lugar, ficaram o português branco, transexual e professor do quadro
de escola (P4); o brasileiro branco, homossexual, publicitário e imigrante (P2); o angolano negro,
heterossexual e professor do quadro de escola (P1). Em terceiro lugar, ficou a brasileira branca,
cabeleireira e imigrante (P9). Em quarto lugar, ficaram a cabo-verdiana negra, homossexual, empregada
doméstica e imigrante (P8); o cabo-verdiano negro, transexual, pedreiro e imigrante (P3); o português
cigano, heterossexual e feirante (P5); a portuguesa cigana, heterossexual e feirante (P11); a angolana
negra, heterossexual, empregada doméstica e imigrante (P6); a romena, empregada doméstica,
heterossexual e imigrante (P7). Em último lugar, ficou a portuguesa branca, homossexual e professora
contratada (P12).
Dinamização
A formadora perguntou às/aos participantes qual seria o perfil de quem ocupava a posição de
topo da hierarquia social. A opinião geral do grupo dividia-se entre “um político corrupto” ou “um
empresário”. A mesma pergunta foi feita ao participante que ocupava o topo hierárquico, em relação às
pessoas que ocupavam os últimos lugares. O participante respondeu que seriam “mulheres”, “negros” e
“homossexuais”. Seguidamente, cada participante apresentou a sua personagem. Num primeiro
momento, duas posições chamaram a atenção do grupo. A primeira, foi o facto do participante (P10) em
situação de maior privilégio ser “apenas” um português/branco/heterossexual/professor do quadro. A
segunda refere-se o facto da participante (P12) que ocupava o último lugar na hierarquia social ser uma
mulher/branca/homossexual/professora contratada (P12).
Algumas participantes questionaram a colega sobre a sua posição, uma vez que consideravam
que uma mulher branca, embora homossexual e professora contratada, não poderia ocupar uma posição
social inferior a, por exemplo, uma mulher cabo-verdiana negra, também homossexual e de uma classe
social menos reconhecida (empregada doméstica), ou, ainda, numa perspetiva interseccional a partir das
categorias de “género”, “raça” e “classe”, ficar numa posição atrás do cabo-
verdiano/negro/transexual/pedreiro/imigrante. A participante em questão concordou com as/os colegas
em relação à posição que ocupava e explicou que houve momentos em que não compreendeu bem as
diretrizes e, noutro momento (diretriz 9), não avançou dois passos, “porque como era homossexual,
podia ser considerada ladra ou criminosa” (P12).
Outra questão levantada pelas/os participantes foi em relação à posição (segundo lugar) ocupada
pelo brasileiro/ branco/ homossexual/ publicitário/imigrante (P2). A participante justificou a sua posição
referindo que avançou dois passos em relação à diretiva 7, porque, e cito, “não tenho problemas de falar
da minha sexualidade, porque sou publicitário, brasileiro, simpático, alegre, com facilidade em
estabelecer contactos. Estou num ambiente profissional gay e há um lobby dos gays” (P2). Apesar da
186
justificação, a maioria das/os colegas não concordaram com algumas afirmações da participante em
relação aos privilégios que ela tinha atribuído à sua personagem e aos estereótipos (“simpático”,
“alegre”). A participante encerrou a discussão dizendo que “é-se mais discriminado por ser gordo, do
que por ser homossexual”. Algumas participantes concordaram que ser “gordo/a” também é alvo de
discriminação numa sociedade que constrói um discurso sobre os corpos desejavelmente magros e
musculados. No entanto, a maioria considerou que a homossexualidade ainda é mais discriminatória,
porque há direitos básicos fundamentais que ainda são negados, como, por exemplo, o direito de adoção.
Em relação às/aos participantes que ficaram na quarta fila, a formadora perguntou ao grupo se
um português/cigano/heterossexual/feirante (P5) e uma portuguesa/cigana/heterossexual/feirante (P11)
deveriam, de acordo com as diretrizes, ocupar a mesma posição. Neste momento, a participante que
representava o “português cigano” (P5) deu a seguinte explicação:
(…) como cigano, tive imensa dificuldade em avançar, porque eu pensava que os ciganos estavam sempre
atrás porque tinham sempre limitações, da cor, da etnia, da raça. Mas como eu era homem, devia ter
avançado e não avancei, porque eu, na minha mente estava a pensar, era homem, mas eu pensava em
mulher e, lá está, eu não avançava, porque a minha mente não conseguia ultrapassar aquele conflito. (…).
Mas em relação à “violência doméstica” (diretriz nº 2), eu não avancei, porque para mim, eles às vezes
matam-se uns aos outros, lá dentro da sua família, quando têm rixas. E, então, a certa altura, já estava tão
baralhada que não avançava.
Importa registar ainda algumas reflexões dos/as participantes sobre o modo como o jogo da
imagem do poder e das desigualdades desafiou as suas posições em relação aos privilégios e
desigualdades estruturais:
Cheguei à conclusão que ainda há muita discriminação, não só que achei…. E a tal situação, eu não sinto,
e cheguei à conclusão com aquele jogo que a cor de pele e o facto de ser mulher, era logo discriminada.
Tomei consciência disso. Eu ainda não quero acreditar nisso (….). Eu quando li a minha personagem,
digo assim: Pronto, mulher, empregada, reles empregada doméstica e negra, eu não vou muito longe. (P8)
Neste jogo eu vi perfeitamente a discriminação. As mulheres ficaram todas para trás e as que tinham
orientações sexuais diferentes. Todas eliminadas. (P5)
No jogo eu era um homem negro e cheguei atrás do P10 [homem branco, heterossexual e professor do
quadro de escola], porque eu era professor do quadro. O único problema, ali, era ser negro, mas era do
quadro e era heterossexual, mas era negro. Eu estava numa posição melhor em relação ao [P4], que
também era negro, mas era transexual, pedreiro e imigrante (….) Eu adorei este último jogo. Achei que
se sentiu mesmo as desigualdades sociais. Eu tinha uma garota, numa turma, que lhe chamavam barrote
queimado. (P1)
Eu [P3, não a personagem] não me vi naquela situação de privilégio do P10. Eu só depois de toda a gente
se ter revelado é que eu comecei a perceber que afinal eu não estou tão mal na sociedade. Tu muitas das
vezes não te dás conta do que representas, porque aquilo que está ali, embora seja ou jogo, aquilo também
é uma imagem exterior que se manda e que serve para atrair o companheiro, ou a companheira, interessa
para o banco, porque é alguém que tem um determinado estatuto. (P3)
No último jogo eu era professor do quadro da escola, e era transexual. E é assim, aquilo que eu intuí foi
que, mesmo sendo transexual, por ser professor, estaria em vantagem em relação a um transexual com
baixos recursos. (P4)
O último jogo revelou, tornou explícito, que tenho muitos privilégios [como pessoa e não como
participante]. Eu estava à frente porque era homem, era branco, era alto. (P10)
187
Meta-Análise
O facto de a posição com mais privilégio ter sido identificada em função da interseção do
“género” (homem) e da “classe” (político e empresário) confirma os dados obtidos nas entrevistas
individuais, quer em relação ao tema “autoidentificação” das/os participantes em função da categoria de
“raça”, quer em relação ao tema “autorreconhecimento de estatutos sociais (privilégio/discriminação)”.
Em relação ao primeiro tema, as/os participantes não se identificaram em função da categoria “raça”,
nem da categoria “etnia”, embora tenham usado essas categorias para identificar outras pessoas,
nomeadamente, os/as seus/suas alunos/as. Em relação ao segundo tema, o resultado da análise revelou
que as/os participantes não reconhecem a branquitude e a heterossexualidade como posições sociais de
privilégio. Os dados obtidos na categoria de “privilégio” mostraram que as/os participantes se
consideram privilegiadas/os em termos de “classe” e “cultura”. Na categoria “discriminação”, o
“género” surge como a categoria dominante no discurso sobre as experiências de discriminação.
Podemos concluir esta análise reafirmando que dar visibilidade aos privilégios e às
188
desigualdades estruturais pode contribuir, no campo da educação, para uma revisão dos critérios de
mérito, competência, talento, inteligência e cultura como medida do sucesso ou do insucesso escolar
dos/as alunos/as. A avaliação do desempenho dos alunos/as deve ter como referência as múltiplas e
intersetadas posições sociais de privilégio e discriminação onde esses/as alunos e alunas se posicionam.
A reflexão escrita de uma participante (P11) sobre esta questão revela como a invisibilidade dos
privilégios dos/as professores em termos de acesso à “cultura” invisibiliza as desigualdades sociais e
culturais das/os alunas/os:
Há, regra geral, um conjunto de competências, de valores, que os professores esperam (…) que
os alunos tragam quando chegam ao 10º ano. E quando somos confrontados com a ausência daquilo que
nós achamos que eles devem ter (…), e já não passa pelos conhecimentos que eles têm de trazer (…), mas
o saber estar, o saber ser, o saber relacionar-se com os outros, a linguagem que usam para se relacionarem
entre si, para se relacionarem com os professores. Há um conjunto de expectativas que os professores têm
antes de tentarem perceber de onde é que esse aluno vem. E isso cria uma barreira (….) Os professores
acham que o aluno deve comportar-se de determinada maneira, deve saber falar de determinada maneira,
deve reagir de determinada maneira sem tentar perceber qual é a história daquele aluno. E se ele não sabe,
porque é que não sabe? (….) Porque eu leio, parto do princípio que os meus alunos, com quinze e
dezasseis anos também têm de ler. E dizemos, não tem cultura. Mas o que é ter cultura? Cada professor
define o que é ter cultura a partir da sua posição de privilégio.
5.2.1 Objetivos
Da segunda questão decorre um outro objetivo que consiste em identificar algumas dificuldades
dos/as participantes na elaboração dos seus projetos de intervenção na comunidade escolar, a partir dos
conhecimentos e das experiências adquiridas no contexto da oficina de formação. A elaboração e
aplicação destes projetos enquadra-se na segunda fase da oficina de formação, correspondendo a 25
horas de trabalho autónomo.
A recolha de dados foi realizada através de entrevistas individuais semiestruturadas logo após o
término da componente presencial da oficina de formação, ou seja, entre 6 e 15 de dezembro de 2012.
Todas as entrevistas foram realizadas num gabinete da escola, tendo sido gravadas em áudio, com
189
autorização das/os participantes, e transcritas posteriormente.
O guião da entrevista (ver Quadro 5.7) incluía três grandes temas em aberto: (1) Contributos da
oficina de formação; (2) Avaliação do modelo de formação; (3) Projeto de trabalho autónomo”. Os dois
primeiros temas estão direcionados para o primeiro objetivo mencionado acima, enquanto o terceiro tem
como objetivo abordar questões relacionadas com o desenvolvimento do trabalho autónomo. A
investigadora, como entrevistadora, intervinha na conversação, de forma espontânea e não controlada
(Nogueira, 2001b). Estes temas serviram de base para a organização, tratamento e análise dos dados.
Temas Categorias
Avaliação da oficina de
Formação pessoal
formação Formação profissional
Críticas
(In)visibilidades
Avaliação do modelo de Interação de grupo
formação Descoberta e partilha do
conhecimento
Reflexão na e pela ação
Projeto de trabalho Planificação das
autónomo atividades
Quadro 5.8. Temas e categorias (E2)
190
5.2.3 Apresentação dos resultados da análise
A apresentação dos resultados da análise dos dados está organizada de acordo com os temas
abordados na entrevista e as respetivas categorias e subcategorias. Em relação ao primeiro tema,
procurou-se comparar o discurso das/os participantes sobre o reconhecimento dos seus privilégios em
função da branquitude, género (no caso dos participantes) e heterossexualidade, com os resultados
obtidos sobre o mesmo tema na primeira entrevista. Ainda em relação ao tema 1, foram identificados os
discursos e os seus efeitos discursivos (Nogueira, 2001b), a partir de uma análise interseccional dos
mesmos (Anthias, 2013).
Contribuiu para levantar questões. No meu desenvolvimento pessoal foi importante, (…) fez-me tomar
consciência de certas coisas de mim própria. Não apenas pelas coisas que eu fiz ou deixei de fazer, mas
pelas coisas que eu observei nos outros e que estava a ver nos outros e podia ser eu. Os outros foram
apenas…. (….) Observar-me. De repente eu estou numa situação, a lidar com uma situação, que palavras
é que eu escolhi? Preocupei-me com aquilo que ia dizer de modo a não entrar por um campo ou por outro?
(P6)
Contribuiu, porque houve uma série de assuntos que nós falámos e as perspetivas de outros parceiros aqui
do grupo, sobre as quais nunca me passaria pela cabeça pensar assim. É um assunto que eu nunca estudei,
nunca fui investigar, nunca me preocupei. Portanto, só o conhecer opiniões diferentes do grupo que aqui
estava, já contribui para um maior conhecimento sobre essas questões. Depois, os jogos, as interações
que aqui foram provocadas, também ajudam, porque aquele nosso esforço de nos colocarmos no papel de
outra pessoa numa realidade diferente, contribui muito para esse entendimento e para esse conhecimento.
(P7)
Uma coisa que estou mais atenta é observar o que é que as outras pessoas dizem, ou que eu própria digo
sobre determinados assuntos, se realmente é um daqueles estereótipos (…). (P7)
O desafio que, para mim, é desafio e dificuldade ao mesmo tempo, era vigiar-me no sentido de perceber
porque é que eu tinha feito determinado comportamento estereotipado. (P11)
Sim, e aprendi um pouco, também, a conhecer-me, porque houve situações em que, por exemplo, a pessoa
diz assim: olha, não sou racista, não sou. Mas depois, às vezes, naqueles jogos (…), a gente acaba por
olhar a “cor”. No fundo, a gente acaba por seguir aquilo que não quer. (P12)
Os discursos das/os participantes sobre os contributos da oficina para a sua formação pessoal
situam-se ao nível individual, isto é, os conhecimentos adquiridos na oficina de formação foram
191
aplicados à identificação e vigilância de estereótipos que as/os participantes descobriram, em si e
noutros/as colegas, através da prática dos jogos de teatro imagem. Apenas uma participante utilizou a
palavra interseccionalidade para se referir ao contributo da oficina de formação, ao nível pessoal, para
“organizar de forma mais sistemática e interseccional a relação entre essas categorias [género, raça,
etnia, orientação sexual]” (P11).
A formação despertou-me ainda mais para o problema da discriminação. Despertou-me, outra vez, um
sentimento que eu já tinha de não gostar de ver as outras pessoas a serem discriminadas, ou mal-
tratadas. Só que voltou com mais força, está mais aceso (…). (P5)
Eu não tinha absolutamente consciência nenhuma dos meus privilégios pelo facto de ser branco, homem
e heterossexual. Esse jogo [jogo da imagem do poder e das desigualdades] contribui para ter essa
consciência, porque à medida que fomos dando passos, verificamos que há pessoas que, muito que
queiram, dificilmente lá podem chegar, nem que se esforcem. (P3)
Eu já apliquei na minha turma o jogo dos nomes e também fiz outro… o jogo da roda dos números. Correu
bem, criou uma certa dinâmica e eles, a partir daí, tornaram-se mais dinâmicos, mais colaboradores
comigo e entre eles. Abriu um bocadinho o espírito deles. Quando acabar a matéria vou fazer mais. (P5)
(…) deu-me uma outra visão em termos práticos, ou seja, como trabalhar essas questões desligando-me,
enfim, da parte teórica e indo ao terreno. Aí sim, em termos de metodologia e de estratégia. Já comecei a
aplicar os jogos de concentração numa turma grande. (P9)
(2) formar “turmas” logo no início do ano letivo, porque, de acordo, com um participante, “(…)
depois de aplicarmos os jogos talvez pudéssemos ter uma turma, que é o grande problema hoje em dia.
É que temos um conjunto de pessoas, mas não temos uma turma” (P3); (3) abordar as questões de género,
raça, etnia e orientação sexual, como referem uma e um participantes: a primeira, como formadora na
área de educação sexual, considera que a oficina de formação a desafiou a abordar a “questão dos abusos
sexuais do ponto de vista da raça, etnia, género e orientação sexual” (P1). O segundo, também formador
na área dos direitos humanos e da educação sexual, refere que:
O que eu descobri foi que o teatro é uma ferramenta para se lidar com estas coisas, para diagnosticar
192
alguns problemas, para se diagnosticar a forma de pensar das pessoas e que pode ser utilizado em termos
pedagógicos. Portanto, nesse sentido eu de facto aprendi algumas técnicas e algumas coisas que podem
ajudar a fazer chegar aos alunos a consciencialização para estes problemas. (P4)
Ainda dentro deste objetivo, mas incluindo a perspetiva interseccional, uma participante dá o
seguinte exemplo de aplicação da teoria interseccional na prática:
O impacto ainda não é muito visível, mas estou muito mais atenta para não ficar presa só à primeira
evidência. Se tenho um aluno que é imigrante, ou que é filho de imigrante, e tem uma determinada cor…,
mapear de forma rápida todos esses elementos, estarem todos presentes ao mesmo tempo e fazer a análise
com todos esses elementos ao mesmo tempo. (P11)
Para além dos aspetos positivos mencionados pelas/os participantes nas categorias “formação
pessoal” e “formação profissional”, algumas/uns participantes apontaram algumas críticas que se podem
resumir em três pontos: (1) falta de tempo para realizar algumas atividades; (2) a não articulação das
atividades realizadas para o contexto escolar; (3) atividades que incluíssem mais situações de conflito.
Em relação ao primeiro ponto, os extratos apresentados abaixo mostram que as/os participantes
gostariam de ter tido mais tempo para tirar apontamentos, fazerem mais reflexões, individuais e em
grupo:
(…) gostava de ter tido algum tempo para tomar mais apontamentos, para fazer mais reflexões em
conjunto, porque às vezes as ideias surgem e tu não as trabalhas logo e depois, passado algum tempo, as
coisas já não têm o mesmo impacto. Aquilo já não te abriu aquela janela de oportunidade para tu
conseguires explorar ainda mais as coisas. (P3)
Faltou tempo até para nós fazermos as reflexões e depois podermos trabalhar as reflexões juntos. (P8)
Talvez mais tempo para reflexão. O que eu notei é que o tempo passava muito rápido. Podíamos ter tido
mais jogos, acho que foram muito interessantes. E depois, faltava-nos tempo para refletir em conjunto.
(P9)
O último extrato apresentado acima mostra a dificuldade de realizar este tipo de formação em
25 horas. A participante tem consciência de que “o tempo passava muito rápido” (P9), no entanto, ela
considera que, por um lado, “podíamos ter tido mais jogos” e, por outro, “faltava-nos tempo para refletir
em conjunto”. Se tivéssemos tido mais tempo para fazer mais atividades, teríamos tido ainda menos
tempo para fazer reflexões, e vice-versa. Na minha avaliação enquanto formadora, penso que
deveríamos ter reduzido as atividades e ter dado mais tempo para as/os participantes tirarem os seus
apontamentos e fazerem as suas reflexões individuais, uma vez que as reflexões e análises em grupo que
realizámos foram bastantes.
“(…) achei que era pouco focado no contexto escolar e há uma certa dificuldade em transpor isto, depois,
para a prática letiva (….) Em termos dos exercícios lançados, em vez de irmos à família, por exemplo,
irmos mais ao escolar, ao professor, ao aluno, ou seja, assumir as personagens do ambiente escolar. (P10)
193
Considera-se esta crítica como um dado para reflexão na elaboração de um futuro programa de
formação. Em relação ao ponto 3, uma participante “esperava ainda mais a nível de resolução de
conflitos” (P1) que, na sua opinião, poderia ter sido conseguido do seguinte modo:
(…) Se calhar teres dado assim…. Tu és a não sei quantas, dares personalidades. Tu deixaste ao nosso
critério o assumirmos uma personalidade ou não (….) E tu deixaste assim, o como são vocês que o fazem.
Se calhar se tivesses dado mais dicas no sentido de, olha, tu és uma pessoa assim e assim e obrigar-nos a
incarnar aquela personagem, como fizemos no último, em que tu disseste, tu és negro, etc., se calhar aí
teria havido mais conflito. (P9)
De acordo com Grant e Sleeter (1986), é difícil, ou quase impossível, compreender a posição
social de outras pessoas, nomeadamente, dos/as alunos/as, sem compreender a sua própria posição na
sociedade e o modo como como as nossas perspetivas sobre os/as outros/as determinam a forma como
nós olhamos para eles/elas. Abordar as questões da raça, etnia, género e orientação sexual, entre outras,
no contexto educacional, desafia os/as professores/as a confrontarem-se “with the disequilibrium and an
opportunity to reframe human diversity from a deficit perspective to an asset or strengths-based
perspective” (Dyce & Owusu-Ansah, 2016, p. 329).
Para além das críticas apresentadas, as/os participantes fizeram algumas sugestões para
próximas oficinas de formação sobre o tema em estudo que incluem um maior aprofundamento de
algumas categorias sociais, como a “etnia” (P2) e a “orientação sexual” (P11); a abordagem de outras
categorias como a “classe” (P11) e a “violência doméstica” (P1); mais tempo para fazer anotações e
reflexões pessoais e, por último, o que é muito gratificante para a formadora, dar seguimento a esta
oficina de formação, porque, de acordo com uma participante a componente presencial da oficina de
formação “(…) foi só o início, uma introdução, ainda ficou muito aquém daquilo que a gente pode
194
atingir” (P5).
Por último, a categoria “(in)visibilidades” emergiu da leitura e análise dos discursos das/os
participantes em relação ao modo como abordaram os contributos da oficina de formação, quer ao nível
pessoal, quer ao nível profissional. Esses discursos continuavam a reproduzir, na sua maioria, o discurso
institucionalizado da invisibilidade da raça (branquitude), da orientação sexual (heterossexualidade) e
do género (homem) e o não reconhecimento das posições de privilégio que as/os participantes ocupam,
na sociedade e na escola. No momento em que a entrevista decorria, a entrevistadora sentiu necessidade
de “desafiar” as/os participantes colocando a seguinte questão: “A formação contribuiu de algum modo
para reconheceres os teus privilégios em função do género, raça, etnia e orientação sexual, ou outros?”.
As respostas dos/as participantes, apresentadas abaixo, revelam quer as invisibilidades, quer as
visibilidades, em relação às suas posições sociais de privilégio e ao modo como elas se intersetam para
configurar as suas experiências de vida, quer ao nível pessoal, quer ao nível profissional:
Não se reconhece o privilégio de ser branco. Eu estava com essa discussão… claro que ser branco é óbvio,
é a cor, os outros é que são de cor, nós não temos cor. Nós estamos acima das cores. Na sociedade é
melhor ser-se heterossexual do que homossexual. De facto, é. (P1)
Se calhar quando chegamos a um nível cultural e socioeconómico, nós interiorizamos que não vamos ser
racistas, falar de raça… Se calhar foi por isso que eu disse [na primeira entrevista] que não me identificava
com nenhuma raça (…). Se formos ver raça (branco, preto, ou negro, como queiram chamar, amarelo),
eu sou branca. Em relação a ter privilégios por ser branca… talvez. (P2)
Na sociedade em geral, como homem, talvez tivesse tido acesso a eles [privilégios], agora não sinto que
a minha vida em particular, o meu percurso de vida, me tivesse sido mais vantajoso por eu ser homem
(….) No meu país, não vejo muito a vantagem ou a desvantagem [de ser branco]. Eu, pessoalmente, não
me sinto privilegiado por ser branco. (P4)
Eu posso ter sido, às vezes privilegiada por ser branca, ou por ser mulher, em certas condições (….) E
sempre tive esta orientação sexual [heterossexual] e nunca fui discriminada. (P5)
Por ser mulher, não sou. Por ser branca, sim, e por…, mas isso está implicado na classe, o facto de ter
estudos. (P6)
Com certeza. Sou privilegiadíssima. Em termos de tudo, quase. Em termos de raça, vá, voltamos, etnia,
situação face ao emprego, tenho um emprego, até quando não sei, mas tenho, estou a trabalhar e tenho.
Em termos de tudo, tudo. Não sou a mais privilegiada... por ser mulher. (P7)
Estes resultados vão ao encontro dos resultados encontrados por outras/os autoras/es, quer
recorrendo a outro tipo de metodologias, quer recorrendo a metodologias semelhantes, segundo os quais
as pessoas têm dificuldades em reconhecer os seus privilégios sociais, particularmente, o privilégio da
branquitude (Frankenberg, 1993; McIntyre,1997), a sua cumplicidade na reprodução de estruturas
desiguais de poder e a sua responsabilidade em transformar essas estruturas (Applebaum, 2010).
Contudo, a negação desses privilégios não deve ser vista como uma questão individual, mas
estrutural que, historicamente, tem sido fomentada pelos discursos da democracia racial, da
invisibilidade da raça, de Portugal como um País de brandos costumes e da meritocracia como fator de
195
privilégio social (Araújo, 2008; Moreira, 2017a; van Dijk, 1992). Comparando os resultados obtidos ao
longo da oficina de formação, ao nível do reconhecimento dos privilégios sociais, com os resultados
obtidos nesta entrevista, considera-se que fora do espaço coletivo da formação, algumas e alguns
participantes mostraram dificuldades em sustentar um discurso de reconhecimento, cumplicidade e
responsabilidade perante os sistemas de desigualdades, particularmente, em relação ao privilégio da
branquitude.
O modo como as/os participantes avaliaram o modelo de formação foi agrupado indutivamente
em três categorias: (1) “interação de grupo”; (2) “descoberta e partilha do conhecimento”; (3) “reflexão
na e pela prática”. Destas categorias, a que se revela mais saliente na avaliação do modelo de formação
é a “interação de grupo”. A maioria das/os participantes considera que os modelos mais tradicionais de
formação não oferecem essa oportunidade:
Já é tão repetitivo o uso do powerpoint, o professor estar a explicar, há um modelo e se eu não vier à
formação posso consultar na net, posso pesquisar e chego lá da mesma maneira. Enquanto que este
modelo, tu não consegues de outra maneira, tens de estar mesmo, experimentar e relacionares-te e
interagir com o grupo. (P7)
Antes de mais a interação com os próprios colegas de áreas completamente diferentes que a gente, se
calhar, toma um café, já o vê há muitos anos e se calhar nem tem tempo para dar dois dedos de conversa.
Acabamos por descobrir o outro mesmo ali. Ali tivemos oportunidade de descobrir o outro e já há uma
interação. Para mim isso foi, se calhar, o que pesou mais, o que me tocou mais (…). (P2)
Este tipo de formações para mim é que são desafiantes (….) Ganhei muito, e acho que todos nós. O jogo
do “Go” [um dos jogos de interação de grupo que realizámos na segunda sessão de formação] foi muito
engraçado. Um dia eu cheguei à sala dos professores e não sei porquê, disse go e outra colega disse go, e
outro colega entrou na brincadeira e disse go e o resto do pessoal ficou a olhar. Pessoas com quem eu
nunca tinha trabalhado antes. (P1)
Outra grande vantagem é criares um grupo com quem trabalhas e conheces minimamente, não há tempo
suficiente para conhecer tudo, era bom. É muito mais sentido e vivido do que aquele em que passivamente
nos sentamos a ouvir. Aqui tens de agir, tens de te relacionar e estar na formação mesmo. Quando vais
assistir a uma formação que é exposta, podes nem estar lá, estás noutro sítio, só estás de corpo presente.
Aqui tens de participar a sério. (P6)
Uma participante acrescentou dois dados novos ao discurso sobre a interação do grupo.
Primeiro, a referência à formadora como um elemento integrante do grupo; segundo, a referência à
dispensa de intervalos a partir da segunda sessão de formação, mesmo para os/as fumadores/as:
Ali funcionou o grupo. Senti que não havia ali elementos estranhos, vamos lá. Portanto, não era a
formadora e os formandos, estávamos todos no mesmo todo, no mesmo grupo, no mesmo barco. Uma
coisa curiosa, é que eu penso que só fizemos um intervalo na primeira sessão, ou talvez na segunda. A
partir daí ninguém mais falou em fazer um intervalo, a meio, nem os fumadores. (P9)
196
Estes dados são importantes para o presente estudo, uma vez que se trata de uma investigação-
ação cujo objetivo é, precisamente, criar um grupo de pesquisa onde a investigadora/formadora principal
esteja integrada no grupo. Apesar da formadora ter uma dupla função no grupo (coordenadora e
investigadora), a participante considerou que havia um grupo onde formadora e formandas/os estavam
“no mesmo barco” (P9). A dispensa dos intervalos, principalmente para fumadores/as, em sessões com
uma duração de quatro horas, foi decidida por unanimidade, uma vez que as/os participantes sentiam
que o intervalo quebrava os momentos (longos) de dinamização, avaliação e análise das imagens teatrais
(modelos) construídas pelas/os participantes. Este dado coloca em evidência a vantagem de um modelo
de formação em que as/os formandas/os têm autonomia e responsabilidade na gestão da sua
aprendizagem, quer em relação ao conteúdo das aprendizagens, quer em relação aos ritmos das mesmas.
Revela, também, um sentido de responsabilidade em relação aos ritmos das aprendizagens do grupo.
Em relação à segunda categoria, a maioria das/os participantes considerou que este modelo de
formação, ao contrário dos modelos mais convencionais, permite que a aprendizagem se realize através
da (auto)descoberta, do (auto)questionamento e da partilha do conhecimento:
Neste modelo, obrigatoriamente há o confronto com aquilo que nós fazemos e com aquilo que nós
pensamos, porque nos expomos e, chega uma altura, em que temos de questionar: esta é a minha
personagem, ou sou eu? E porque é que eu escolhi que a personagem fosse de determinada maneira? Em
função daquilo que eu penso? Em função daquilo que o grupo pensa? Em função daquilo que a sociedade
pensa? Isso, obrigatoriamente, leva ao diálogo entre todas as pessoas e a refletir sobre aquilo que nós
pensamos. Este processo não tem lugar na formação convencional, porque é tudo muito racionalizado e,
como é tudo muito racionalizado, está tudo muito filtrado. Quando estamos em situação de jogo, o jogo
permite que as pessoas mostrem mais delas próprias, porque não têm tempo de filtrar. E, ao fazer mais
coisas, temos mais dados de observação e de reflexão. (P11)
Gosto mais deste modelo, porque a pessoa, assim, de certa forma, até reconhece logo os próprios erros e,
de outra forma, a pessoa vai ouvindo a teoria e etc. Claro que tem sempre a tendência para seguir a teoria
e não se apercebe daquilo que faz e do que consegue fazer. E aqui não. Eu nunca me aperceberia, por
exemplo, que fazia o contrário daquilo que pensava. Porque de outra forma, eu ouvia o formador, sim
senhor, e fazia o trabalho, porque se eu já concordo com aquilo… Mas uma parte prática deste género,
acho que é mais útil. (P12)
Esta metodologia, para mim, é interessante por uma coisa muito simples, porque, na verdade, tu só
proporcionas as condições e a descoberta é uma descoberta interior. E o engraçado é tu por dedução, por
simulação, acabas por encarar a realidade de uma maneira muito mais interessante. Se tu estivesses a dar
aqueles conceitos numa formação presencial a gente via aquilo, tomávamos apontamentos, éramos
capazes de discutir, e tal, mas aqui, não, parte-se do jogo, parte-se de uma determinada encenação de uma
coisa qualquer e de repente nós vamos descobrindo coisas interessantes e isso, foi o que me surpreendeu,
porque isso foi mais profundo, de repente estamos a falar de nós e estamos a ver-nos, a nós e aos outros.
(P3)
Acho que neste modelo nós conseguimos ver o que é que os outros pensam e se nós estamos a limitar-
nos a ouvir, não há uma partilha de ideias e aqui houve uma partilha e chegámos a conclusões. (P8)
197
Mas acho que o facto de se partilhar ativamente o conhecimento, envolve mais os participantes. Todos
assumem uma responsabilidade sobre o que se está ali a passar. (P10)
Por último, as/os participantes valorizaram este modelo de formação pela oportunidade de
refletir sobre as suas experiências e conhecimentos, através da prática e na prática:
(…) porque o que eu achei curioso em relação a… [este modelo de formação], é isso, o que é que nós
somos? Que leituras é que fazemos da sociedade e do mundo onde vivemos? (P9)
Se as ações fossem sempre assim, eram muito mais construtivas, porque o modelo teórico é uma coisa
monótona. A gente sai dela com essas ideias todas e depois, passado um tempo, a gente esquece-se de
tudo, porque não pomos em prática. E que tudo o que nós fazemos, a gente fica com as ideias mais
assentes, ou seja, o que tu fazes para ti, é algo mais de concreto. As pessoas só sabem é teorias, depois na
prática não sabem aplicar nada. (P5)
Acabamos por enriquecer aquilo que fizemos com os nossos próprios conhecimentos e com as nossas
próprias vivências, sem nos darmos conta, mas é uma realidade. (P2)
Isto é uma coisa diferente e sim, isto entusiasma-nos, isto diverte-nos, isto abre-nos os horizontes. Mas é
assim, o tema da ação proporciona que seja assim. Eu não conseguia imaginar uma formação sobre esta
temática de outra forma. Nós não íamos estar sentados numa sala de aula e tu a escreveres no quadro. Nós
temos que fazer exercício, temos de jogar, temos de experimentar. (P4)
Como se pode ver no quadro apresentado abaixo, os projetos são bastante diversificados em
termos das atividades que foram desenvolvidas, embora sejam semelhantes em relação aos objetivos a
198
alcançar.
199
- Grupo coral
ACANTO
P3 1 turma do 1º ano do - Ser capaz de tomar o Adaptação do jogo das
Curso Profissional outro como igual, livre de imagens do poder e das
Técnico de Recepção preconceitos, nos seus desigualdades.
relacionamentos
interpessoais;
- Valorizar as competências
sociais, as aprendizagens
em grupo e a preparação
para a vida em sociedade.
P11 1 turma do 1 º ano do - Consciencializar o grupo Construção de um trabalho
Curso Profissional de de trabalho acerca das teatral e apresentação
Artes de Espetáculo- diferenças e desigualdades pública, a partir da
Interpretação que a cor da pele, o género, adaptação do jogo da
a etnia, constituição física, imagem de poder e das
a personalidade, o cuidado desigualdades.
com a aparência, a
nacionalidade, a classe, a
orientação sexual,
acarretam.
Quadro 5.9. Síntese dos projetos de intervenção na escola
Outro aspeto a destacar nestes projetos é o facto das/os participantes não se limitarem a aplicar
os jogos de Teatro-Imagem, mas terem recorrido a jogos de concentração, interação e dinamização de
grupo, adaptando-os, para alcançarem os seus objetivos. Para além dos jogos, as/os participantes
projetaram outras atividades que incluíam, por exemplo, a análise do artigo 13.º da Constituição
Portuguesa, a análise e discussão sobre o caso do assassinato da transexual Gilberta e a realização de
um inquérito à comunidade escolar, incluindo pessoal docente e não docente e alunas/os 110.
A formadora acompanhou a implementação dos projetos, que decorreu entre janeiro e maio de
2013, quer ao longo do processo, quer na apresentação dos resultados e sempre a convite dos/as
participantes. A oficina de formação considerou-se encerrada após a realização de uma reunião com
todos/as as/os participantes, no dia 5 de julho de 2013, onde foram apresentados os resultados dos
projetos de intervenção na escola e realizada a autoavaliação dos/as participantes, quer em relação ao
seu desempenho na componente presencial da formação, quer em relação à implementação do projeto
de intervenção. Como foi mostrado nos resultados da análise da entrevista individual (E2), todos/as os/as
participantes consideraram que o tempo para este tipo de formação foi insuficiente e expressaram a
necessidade de haver uma continuidade desta oficina de formação.
110
As e o participante(s) elaboraram o inquérito a partir dos temas abordados na oficina de formação e aplicaram-
no a uma amostra constituída por 134 alunos/as, 30 professores/as e 31 funcionárias/os auxiliares e
administrativos, num total de 195 pessoas. O tratamento dos dados foi realizado através do programa SPSS.
200
CONCLUSÕES GERAIS
Nesta parte final, serão apresentadas conclusões gerais com o objetivo de, por um lado, sintetizar
e complementar os resultados das análises dos dados examinados até ao momento e, por outro, apontar
para algumas limitações do estudo, os seus contributos para a formulação de políticas de formação
contínua de professoras/es e as possibilidades de novos caminhos de investigação.
A realização do presente estudo teve como ponto de partida a constatação de uma enorme lacuna
na pesquisa educacional que tem sido realizada em Portugal, quer ao nível de estudos sobre as práticas
discursivas das/os professoras/es sobre as relações desiguais de poder e de privilégio na escola, em
função de categorias sociais de género, raça, etnia e orientação sexual, quer ao nível do desenvolvimento
de metodologias de formação que abordem essas questões a partir de uma perspetiva interseccional.
Como referido na Introdução, este estudo resulta de um processo de investigação-ação-formação
qualitativa que envolveu um grupo de professoras/es do ensino secundário num espaço e num tempo
delimitados de reflexão crítica na e pela ação investigativa, no contexto de uma oficina de formação.
A opção dos/as participantes, entre tantas outras ofertas de formação, por uma oficina de
formação intitulada “O teatro na mediação de conflitos interculturais na escola: Uma ferramenta
pedagógica” revela, à partida, duas situações que caracterizam o dia a dia da escola: (1) a existência de
“conflitos” que as/os professoras/es vivenciam nas suas salas de aula e cujas causas atribuem a
diferenças culturais dos/as alunos/as, nomeadamente, em função da “cor de pele”, “não falar
corretamente a língua portuguesa”, “pertencer a outra nacionalidade ou a outra religião”, entre outros
aspetos; (2) a dificuldade que as/os professoras/es sentem em lidar com esses “conflitos” devido à falta
de formação para abordar os mesmos. A investigadora principal tomou a decisão e a responsabilidade
de incluir no título da oficina de formação a expressão “conflitos interculturais” por considerar que esta
designação corresponde à forma como as/os professoras/es “traduzem” as desigualdades sociais e as
práticas discriminatórias que ocorrem na sala de aula, principalmente, em função da raça, etnia e
nacionalidade. As práticas discriminatórias em função do género e da orientação sexual, porque não são
geradoras de “conflitos abertos”, e mesmo quando se manifestam abertamente, não são enquadradas nos
“conflitos interculturais”.
Imaginemos que o título da oficina de formação correspondesse exatamente aos temas que se
pretendiam abordar na formação. Neste sentido, teríamos um título mais ou menos semelhante a “O
Teatro do Oprimido como ferramenta pedagógica na identificação e transformação de discursos e
práticas racistas, hétero(sexistas) e homo(trans)fóbicas na escola”. O facto de o título não incluir o termo
“mediação”, levantaria, provavelmente, três problemas: primeiro, o objetivo da formação não se dirigia
diretamente a uma necessidade urgente das/os professoras/es em aprenderem técnicas para resolver os
“conflitos interculturais”; segundo, o título sugeria que existiam práticas discriminatórias na escola, e
não apenas na sala de aula, e que essas práticas discriminatórias não ocorreriam só entre alunas/os, mas
201
entre outros/as agentes educativos; terceiro, como se verificou através dos resultados obtidos nas
primeiras entrevistas, a maioria das/os professoras/ não considera que o sexismo, a homofobia, a
transfobia e ainda menos o racismo se constituíam como sistemas de privilégio e de opressão no espaço
escolar.
Os resultados da análise dos dados obtidos na primeira entrevista revelaram que as/os
professoras/es atribuíam os “conflitos interculturais” às diferenças raciais, éticas e de nacionalidade, ou
seja, reconheciam-se os “conflitos” em função da “raça” (que para a maioria das/os participantes
englobava as outras categorias), mas negava-se o racismo. Estes resultados estão de acordo com a
revisão da literatura (ver Capítulo 2) sobre a invisibilidade e a negação do racismo, quer na União
Europeia (Möschel, 2011, van Dijk, 1992), quer no caso específico de Portugal (Araújo, 2007;
Henriques, 20017; Maeso & Araújo, 2017; Silva M. C., 2008). Nestes estudos, as/os autoras/es
argumentam que a negação do racismo é transversal a todas as sociedades europeias e que o racismo
tem sido substituído por termos como “discriminação”, “preconceito”, “estereótipo” (van Dijk, 1992, p.
93), quer ao nível dos discursos pessoais, quer ao nível dos discursos legislativos e das políticas públicas,
nomeadamente, as políticas educativas. No presente estudo, no contexto da oficina de formação, as/os
participantes recorriam ao termo “estereótipos” para identificar e questionar os discursos racistas,
homofóbicos ou sexistas que emergiam através das imagens teatrais construídas pelas/os próprios
participantes, ou nos momentos de avaliação e dinamização dos jogos de Teatro-Imagem.
De acordo com Möschel (2011), na maioria dos países europeus, à exceção da Inglaterra e da
Irlanda, a situação do Holocausto e o posterior reconhecimento científico de que não existe uma raça
biológica levou a criar a ideia de que se a raça não existe, também não existe racismo. Embora a raça
tenha sido desnaturalizada, cientificamente (embora não totalmente), ela continua a estruturar as
relações de poder e desigualdade, uma vez que não é a raça que constrói o racismo, mas o inverso, o
racismo produz e reproduz as raças. No caso de Portugal, a negação e a invisibilidade do racismo tem
as suas raízes no mito do lusotropicalismo, desenvolvido pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre e
apropriado pelo Estado Novo Português no início da década de 1950 (Araújo, 2008). Este mito foi
construindo, ao longo dos tempos, um discurso sobre um Portugal que se assume como um “país de
brandos costumes”, onde a “simpatia”, a “capacidade de acolhimento” e o “espírito aventureiro” são
reconhecidos como virtudes que reforçam a ideia de que a sociedade portuguesa não é racista, ou foi
menos racista em relação a outros países como, por exemplo, Espanha e Inglaterra.
Os resultados obtidos a partir das primeiras entrevistas realizadas neste estudo em relação ao
lugar que Portugal ocupa na hierarquia colonialista estão de acordo com a revisão da literatura sobre o
tema. A maioria das/os participantes considerou que o colonialismo, que criou o racismo, é uma coisa
do passado e foi um processo muito mais brando do que o colonialismo espanhol ou inglês. Embora
alguns e algumas participantes admitissem que existe discriminação racial na escola, principalmente em
relação aos “africanos”, esses atos discriminatórios são considerados como casos pontuais, conflitos
202
entre pessoas de culturas diferentes que são muito agressivas e não se sentem integradas. Este discurso
nega e invisibiliza a permanência de um racismo institucional e sistémico (van Dijk, 1992), ao mesmo
tempo que “(…) favorece o racismo através do seu silenciamento, naturalizando a discriminação e
despolitizando-a” (Araújo, 2008, p. 44).
Para além do discurso da negação e invisibilidade do racismo, foi identificado, a partir das
primeiras entrevistas, um outro discurso, relacionado como o primeiro, que se designa na literatura por
“racismo inverso” e consiste em considerar que os/negros também são racistas e que, por vezes, são
mais racistas do que os brancos. Este discurso enquadra-se no discurso da negação do racismo,
reforçando a ideia de que não existe um (re)conhecimento sobre o racismo sistémico. De acordo com a
jornalista e ativista negra norte-americana Zeba Blay (2015), o racismo é um sistema que beneficia uma
raça dominante em função da opressão de outras raças, quer as pessoas sejam diretamente responsáveis
por esse sistema, quer não. Enquanto sistema que privilegia os/as “brancos/as”, falar de racismo inverso
é uma falácia. De acordo com a autora, não se pode confundir preconceito (atitude) com racismo (um
sistema estrutural). Embora a classe branca em todo o mundo e ao longo da história tenha sido vítima
de preconceitos, perseguições, agressões, por parte das populações negras, essas atitudes e
comportamentos não podem ser considerados racistas, uma vez que a população branca nunca foi
escravizada, colonizada ou forçada à segregação, diferentemente do que ocorreu e continua a ocorrer
com as populações negras. Esta enfrenta diferentes formas de discriminação, como, por exemplo, a
discriminação racial no acesso à habitação, ao emprego, à educação, na forma como são tratadas pelas
forças policiais e judiciais, etc.
Neste sentido, os termos “raça” e “racismo” continuam a ser utilizados pelas pessoas, grupos e
movimentos sociais que são vítimas do racismo institucional e/ou reivindicam políticas públicas que
garantam uma sociedade estruturalmente antirracista. No campo da pesquisa em educação, a Teoria
Crítica da Raça (TRC), como foi referido no Capítulo 2, tem contribuído para abordar o modo como os
valores da cultura hegemónica branca limitam e comprometem a igualdade de oportunidades no acesso
à educação e no sucesso escolar de pessoas que não pertencem à classe “branca”, ao mesmo tempo que
desafia as políticas e as práticas para a promoção de uma educação para a cidadania, expondo as suas
limitações e promovendo uma reavaliação das mesmas no sentido de se tornarem mais eficazes para
os/as alunas que não pertencem a uma maioria branca (Tate, 1997).
203
Não negando a centralidade da raça e da etnia na abordagem do racismo institucional, as
políticas de promoção e implementação de uma educação para a cidadania devem abordar outros eixos
de desigualdade e discriminação que intersetam com o racismo, nomeadamente, o género e o (hétero)
sexismo. De acordo com Crenshaw (2011), os discursos políticos sobre o género tendem a ignorar, ou a
minimizar, o modo como o género, a raça e a classe se intersetam para configurar experiências únicas
de opressão (e, acrescentaríamos, de privilégio). Neste sentido, Moreira (2017a) reconhece a
importância de uma análise interseccional do racismo, quando afirma que as relações inter-raciais
sempre foram baseadas “(…) em relações de dominação e de opressão, principalmente, sobre os corpos
das mulheres negras” (p. 47).
Neste sentido, as primeiras entrevistas tinham como objetivo identificar, por um lado, os
discursos das/os professoras/es sobre o modo como percebiam, ou não, as suas posições sociais de
privilégio e/ou discriminação e as posições dos/as seus colegas e alunos/as, em função do género, raça,
etnia e orientação sexual, e, por outro lado, compreender qual o grau de visibilidade, responsabilidade e
atuação das/os professores/as em relação ao racismo, sexismo e homofobia, quer na sociedade em geral,
quer na escola, em particular. Esta etapa da pesquisa consistiu numa primeira recolha de dados
necessária para a implementação de uma futura ação de formação, de acordo com os procedimentos
propostos por uma metodologia de ação-investigação que orientou o presente estudo. De acordo com
Cortesão e Stoer (1997), “(…) a pesquisa, a ação e a formação são as três componentes que idealmente
constituem a investigação-ação” (p. 12).
204
enquanto pessoas e profissionais, em relação à forma como ocupam determinadas posições sociais de
privilégio e/ou opressão num sistema de relações desiguais de poder e de desigualdade que estruturam
a sociedade. Segundo, um conhecimento sobre uma ferramenta pedagógica, o Teatro-Imagem, que pode
ser aplicada pelas/os participantes em qualquer contexto escolar. Nas entrevistas finais (E2), as/os
participantes valorizaram, principalmente, a aquisição deste último conhecimento.
Outras críticas relevantes foram apontadas pelas/os participantes, quer em relação ao número de
horas da oficina de formação, quer em relação a alguns aspetos relacionados com o tema das atividades.
Em relação à primeira crítica, a maioria dos/as participantes considerou que 25 horas para este tipo de
formação, que exige que sejam as/os participantes a construir, a analisar e a avaliar os conteúdos da
formação, é um tempo demasiado curto. Uma das dificuldades apontadas foi a falta de tempo para
realizar as reflexões pessoais escritas e preparar, com o grupo e a formadora, a implementação dos
projetos de intervenção na escola. Alguns/algumas participantes sugeriram que se realizasse uma
segunda oficina de formação para desenvolver e aprofundar os temas em debate. Em relação à segunda
crítica, embora tenha sido feita apenas por um participante, a investigadora considerou pertinente a
sugestão de relacionar melhor os temas abordados na ação (que teve como foco o tema da família) com
205
o contexto escolar.
Para além das críticas referentes à oficina de formação, a investigadora considera que existiram
algumas limitações em relação ao estudo em geral, que derivam, por um lado, do limitado número de
horas de duração da formação, quer da componente presencial, quer da componente prática, e, por outro,
da sobrecarga de trabalho letivo e burocrático dos/as professoras, que lhes deixa pouco tempo para
realizar a sua formação. A primeira limitação tem a ver com o facto de não ter havido uma abordagem
do conteúdo das entrevistas individuais preliminares (E1) no contexto da formação. Por exemplo,
selecionar alguns discursos que emergiram nas entrevistas e propor uma dinamização teatral sobre os
mesmos. A segunda limitação está relacionada com o papel central que a investigadora desempenhou
em relação ao grupo de participantes, quer na escolha dos temas e da metodologia utilizada e na análise
global dos resultados da pesquisa, quer na forma como foram selecionados e apresentados os resultados.
O ideal, numa metodologia de investigação-ação, seria as/os participantes terem uma participação mais
ativa em todo o processo de pesquisa. A terceira limitação prende-se com o facto de não ter sido feito
um acompanhamento mais assíduo e prolongado no tempo dos projetos de intervenção na escola, não
só pela investigadora principal, mas também por outros/as participantes. Estas limitações apontam para
que na planificação de futuras oficinas de formação se considere a realização de uma oficina de formação
com dois módulos de, pelo menos, 50 horas cada.
O facto da área de Cidadania e Desenvolvimento não se constituir como uma disciplina ao nível
do ensino secundário vai implicar, de acordo com o ponto 3, do Artigo 10.º do Despacho n.º 5908/2017,
de 5 de junho, sobre a “autonomia e flexibilidade curricular”, que essa componente do currículo seja
“desenvolvida com o contributo de todas as disciplinas e componentes de formação constantes nas
matrizes curriculares-base”, ou seja, todos/as os/as professores de qualquer área disciplinar terão que
contribuir para a formação dos/as alunos/as na área de cidadania. Como a maioria dos/as professoras/es,
mesmo aquelas/es que são da área da Filosofia, como ficou demonstrado neste estudo, não têm formação
111
Esta componente curricular insere-se no projeto de experiência pedagógica de autonomia e flexibilidade
curricular dos ensinos básico e secundário para o ano escolar de 2017-2018, autorizada pelo Governo através
do Despacho n.º 5908/2017, de 5 de junho.
112
Homologado pelo Secretário de Estado da Educação, através do Despacho n.º 6478/2017, de 26 de julho.
206
para promover as competências exigidas para a nova área curricular de Cidadania e Desenvolvimento,
de acordo como o “Novo Perfil dos Alunos”, a questão da formação contínua nesta área torna-se uma
necessidade prioritária.
Sensibilidade
estética e
artística
Consciência e
Linguagens e
domínio do
textos
corpo
Desenvolvimento
Relacionamento
pessoal e
interpessoal
autonomia
Teatro-Imagem
Interseccionalidade
Raciocínio e
Informação e
resolução de
comunicação
problemas
Saber
Bem estar,
científico,
saúde e
técnico e
ambiente
tecnológico
207
O facto da nova área curricular “Cidadania e Desenvolvimento” ser uma área da competência
de todas as áreas disciplinares e, respetivamente, da responsabilidade de todas/os as/os docentes que
lecionam essas disciplinas, exige um plano de formação contínua nessa área que já deveria ter sido
promovido e realizado ao nível nacional. Na ausência desse plano de formação, a formadora e as/os
formandas/os que fizeram a formação irão propor oficinas de formação, quer ao nível da escola, quer ao
nível do Centro de Formação de Professoras/es, que terão como referência os resultados obtidos na
presente investigação
Por último, pretende-se produzir um referencial de formação para a área curricular de Cidadania
e Desenvolvimento em colaboração com as/os professoras/es que participaram desta investigação, que
possa servir como referência, quer na formação de professoras/es, quer na formação de alunas/os ao
nível do ensino secundário. O objetivo final será o reconhecimento e a aprovação deste Referencial de
Formação em Cidadania e Desenvolvimento pelo Ministério da Educação e uma futura publicação do
mesmo.
Em suma, considera-se que esta investigação traz uma importante contribuição teórica,
metodológica e prática, para o campo da educação. Teórica, pela abordagem interseccional das
categorias de opressão e de privilégio, que ainda é pouco utilizada na pesquisa educacional, não só em
Portugal, mas também em países como os EstadosUnidos e a Inglaterra, onde os estudos sobre a
interseccionalidade estão mais desenvolvidos. Embora Portugal tenha incorporado algumas
recomendações da União Europeia para incluir a perspetiva interseccional nas suas políticas públicas,
ao nível da sua implementação, ainda não se obteve resultados significativos.
Por último, esta investigação contribui para a prática, no sentido em que propõe um modelo de
formação contínua de professoras em que as/os participantes, através do Teatro-Imagem, são sujeitos
ativos no processo de produção do conhecimento. O modelo de formação ensaiado nesta investigação
pode, igualmente, ser aplicado no contexto de sala de aula, com estudantes, ou na formação de pessoal
não docente. Para além do campo da educação, este modelo pode estender-se a outras áreas profissionais
como, por exemplo, a formação de policiais, magistradas/os, médicas/os, entre outros.
208
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