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9º Encontro Internacional de Política Social


16º Encontro Nacional de Política Social
Tema: A Política Social na Crise Sanitária revelando Outras Crises
Vitória (ES, Brasil), 13 a 15 de junho de 2023

Eixo: Classe social, gênero, raça, etnia e diversidade sexual

Reflexões sobre a luta pela legalização do aborto na Argentina

Maurílio Castro de Matos1


Franciele da Silva Santos2
Tatianny de Souza de Araújo 3
Resumo: Trata-se de resultado parcial da pesquisa "As legalidades e ilegalidades do direito ao aborto na
América Latina e Caribe" que atualmente vem se aprofundando na análise da exitosa experiência
argentina da legalização do direito ao aborto. Nesse sentido, objetivamos nessa comunicação trazer
alguns elementos que ajudem a desvelar quais foram as forças e argumentos recorridos na luta por esse
direito, bem como um panorama da legislação outrora repressora e a atual, que considera a diversidade
de mulheres e pessoas que gestam.
Palavras-chave: Aborto. Legalização. Argentina. Direito.

Reflections on the fight for the legalization of abortion in Argentina


Abstract: This is a partial result of the research "The legalities and illegalities of the right to abortion in
Latin America and the Caribbean", which is currently deepening in the analysis of the successful
experience of Argentina in legalizing the right to abortion. In this sense, we aim in this communication to
bring some elements that help to reveal what were the forces and arguments used in the fight for this
right, as well as an overview of the legislation that was once repressive and the current one, which
considers the diversity of women and people who gestate.
Keywords: Abortion. Legalization. Argentina. Right.

INTRODUÇÃO

A presente comunicação, resultado parcial da pesquisa "As legalidades e


ilegalidades do direito ao aborto na América Latina e Caribe", pretende trazer
elementos que possam contribuir para a análise sobre o processo de luta pela
legalização do aborto e a implementação desse direito nos serviços de saúde da
Argentina.

1
Assistente Social; Doutor em Serviço Social (PUC-SP); Professor Associado da Faculdade de Serviço
Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). E-mail: mauriliomatos@gmail.com.
2
Assistente Social. Doutoranda em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ); Professora substituta de Serviço Social na Universidade Federal de Campina Grande
(UFCG). E-mail: francielesilvasantos22@gmail.com.
3
Assistente Social. Mestranda em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Servidora pública da saúde. E-mail:tatiannysa@gmail.com.

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Atualmente, na sub-região da América Latina e Caribe, a Argentina - e a


Colômbia, Cuba, Guiana, Porto Rico, Uruguai e em alguns estados mexicanos (com
destaque para a Cidade do México, a segunda maior cidade da região, depois de São
Paulo) - permitem às suas mulheres e pessoas que gestam interromper uma gestação
indesejada, como exercício da sua livre escolha de decidir.
Em contrapartida na mesma sub-região da América Latina e Caribe, o aborto é
totalmente criminalizado em El Salvador, Haiti, Honduras, Nicarágua, República
Dominicana e Suriname.
A maioria dos países da sub-região permite a interrupção da gestação em alguns
casos, a exemplo do Brasil, onde o acesso ao aborto pode ser garantido em caso de
gestações derivadas de estupro, que comprometam o risco de vida da mulher ou em
caso de gestação de fetos com anencefalia. Entretanto, mesmo nos países onde há
alguns permissivos, isso não quer dizer que a restrita legislação seja efetivada.
Na presente comunicação apresentamos um breve histórico do processo de lutas
na Argentina, com foco nos movimentos feministas, a ampliação da campanha pelo
direito ao aborto em vários segmentos da sociedade, a conjuntura e as disputas políticas
no período da legalização, reflexões sobre a importância dos profissionais da saúde e
das redes de socorristas favoráveis à legalização do aborto, bem como uma análise
sobre a atual legislação. Acreditamos que estes elementos, serão importantes para
pensarmos alternativas estratégicas na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos em
outros países latino-americanos e caribenhos, a exemplo do Brasil, onde o aborto não é
garantido como direito de livre escolha de mulheres e pessoas que gestam.

1. ARGENTINA E A LUTA PELO DIREITO AO ABORTO: BREVE


CONTEXTUALIZAÇÃ

A Argentina, assim como demais países do sul global, sofreu com a colonização
europeia que tem resultado na espoliação de suas riquezas e o massacre dos povos
originários. A região que hoje é a Argentina era habitada por etnias querandis,
quíchuas, charruas e guaranis até a chegada dos invasores espanhóis em 1516,
liderados por Juan Díaz de Solís Também contou, não diferente de outros países
latinos, com a mão de obra indígena e de pessoas negras escravizadas, e a utilização
destas como linha de frente em guerras expondo-as às doenças e sem garantias de

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condições de vida, levando a mortes em índices elevados por epidemias e vida


miserável. Esses atos duraram pelo menos 300 anos, uma vez que o país conquistou sua
independência apenas em 1816 (FREITAS, 2022).

A população argentina tem cerca de 47 milhões de habitantes sendo o 3º mais


populoso da América do Sul (atrás de Brasil e Colômbia, respectivamente). Os dados
do censo ainda estão sendo analisados, entretanto, de acordo com as edições anteriores,
podemos afirmar que sua população é predominantemente católica e autointitulada de
cor branca. No entanto, cabe registrar que somente em 2006 o país passou a incluir a
questão racial em seus levantamentos, sendo o dado atual de 3% de pessoas negras na
população. A Argentina viveu um processo de embranquecimento que precisa ser
questionado (GELEDÉS, 2016; BARREIRO, 2017). Cabe registrar que o censo de
2022 indicou a possibilidade de autoidentificação étnico-racial e de identidade de
gênero. A língua oficial do país é o espanhol (ESTADO DE MINAS, 2022).
Assim sendo, e como demonstrado em especial na crise vivida nos anos 2000 e
nas grandes mobilizações de piqueteios (Movimento dos Trabalhadores
Desempregados que surge na década de 1990), a Argentina está muito mais próxima da
realidade latino-americana do que se costuma pensar, especialmente recuperando, no
imaginário, a Buenos Aires como capital europeia nos trópicos (NEVES, 2016). Nessa
direção que no próprio país se escuta dizer que existem várias Argentinas dentro da
Argentina. Assim, também se pode dizer da capital, pois na Buenos Aires europeia,
uma pérola para os turistas, tem também a Buenos Aires da periferia e como tal que
convive com problemas de saneamento, déficit habitacional, serviços públicos
precários e etc.
Portanto, trata-se de uma nação com formação sócio-histórica similar de seus
países vizinhos, que tiveram seus territórios invadidos, seus bens naturais explorados de
forma desmedida, assim como os seus povos, originários e afro-argentinos, em que até
os dias atuais seguem sendo massacrados. As mulheres estão cada vez mais
sobrecarregadas diante das tarefas de produção e reprodução do capital e o domínio
sobre seus corpos e suas escolhas cada vez mais presentes, como consequência de um
patriarcado estrutural que também se faz presente. Mas, que se destaca pela sua
participação política, com ênfase para as mulheres que estão à frente das lutas, a
exemplo do histórico movimento das "Avós da Praça de Maio".

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Esses elementos corroboram para a importância de se analisar a particularidade


da Argentina sem se descolar da sua historicidade regional, marcada pela colonização e
poderio estadunidense, como expressão das marcas do capital no país. Nessa direção,
nossa discussão também visa a indagar sobre como transformar o êxito da luta pelo
aborto na Argentina em possibilidade em todo território latino-americano e caribenho.
A luta pela legalização do aborto na Argentina, ganha densidade com o fim da
ditadura militar que vigorou entre 1976 e 1983.
Em 1986 ocorreu em Buenos Aires o I Encontro Nacional de Mulheres. Desde
2022 passou a se denominar Encontro Plurinacional de Mulheres, Lésbicas, Trans,
Travestis, Bissexuais, Intersexuais e Não Binárias. Esses encontros são massivos,
realizados cada ano em um estado do país, reunindo discussões do movimento de
mulheres e feministas. Inclusive, foi de um desses encontros que surge o Dia Latino-
Americano e Caribenho pela Descriminalização e Legalização do Aborto, que se dar
em 28 de setembro, como forma de visibilizar a luta das mulheres por esse direito.
No âmbito desses encontros foram se constituindo reflexões e ações
fundamentais para a legalização do aborto. No encontro nacional de 1995, realizado em
Jujuy, foi realizada a primeira oficina sobre anticoncepção e aborto, uma vez que
anteriormente o debate era realizado dentro dos temas sobre saúde e sexualidade. No
encontro nacional de 2003, em Rosário, além da realização da oficina para a construção
de "Estratégias para a legalização do aborto", se realizou a primeira assembleia pelo
direito ao aborto e pela primeira vez se foram utilizados os lenços verdes, um símbolo
da luta que extrapolou a Argentina. Em 2004, no encontro de Mendoza, se avançou na
decisão de se criar uma campanha pela legalização do aborto.
Seguindo a orientação do Encontro Nacional de Mulheres de 2004, em 14 de
maio de 2005 foi realizada em Córdoba uma reunião com aproximadamente 70
feministas e em 28 de maio do mesmo ano foi lançada a "Campanha Nacional pelo
direito ao aborto legal, seguro e gratuito".
A campanha - uma articulação que existe até hoje, após a conquista do direito ao
aborto - reúne diversas organizações do país (já teve 45 organizações, atualmente conta,
aproximadamente, com 20). Teve como estratégia principal a apresentação de projetos
de lei para a legalização do aborto. Ao todo foram apresentados oito projetos, o

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primeiro em 2007 e o último em 2018, sendo que nas suas últimas versões já estavam
incluídas o direito ao aborto para pessoas que gestam e não necessariamente apenas
para as mulheres. Para buscar garantir seus objetivos a campanha era organizada em
três comissões: congresso (para realizar incidências e articulações com parlamentares),
articulação política (uma comissão redatora que articulava as propostas dos diferentes
estados para o projeto de lei) e de segurança (que cuidava da proteção das militantes
durante os atos).
No entorno da campanha foram criadas algumas redes que também foram
fundamentais para a ampliação do debate sobre a legalização do aborto na Argentina.
Em 2011, na Universidade Nacional de La Pampa, foi promovido um seminário
extracurricular sobre o aborto, sendo um marco para a criação de cátedras sobre o tema
nas universidades do país. Em 18 de maio de 2019 foi realizada a primeira reunião da
Rede de Cátedras das Universidades Públicas Nacionais sobre Educação Sexual
Integral e Direito ao Aborto (RUDA), que se reuniu novamente em 19 e 20 de agosto
de 2022.
Foi criada em 2014 a Rede de professores/as pelo direito ao aborto, dirigida
para o debate nas escolas de ensino fundamental e médio.
A Rede de Acesso ao Aborto Seguro (REDDAS), criada em 2014 - dando
continuidade a uma articulação existente desde 2011 - reúne profissionais de saúde e do
direito. Atualmente a rede conta com aproximadamente 600 integrantes, de 14
profissões, distribuídos por 20 estados da Argentina.
Em 2015 foi lançada a Rede de profissionais da saúde pelo direito de decidir,
atualmente composta por mais de 2000 profissionais em diferentes serviços de saúde do
país.
Outra ação importantíssima para o avanço da legalização do aborto na Argentina
foi a criação da "Socorristas em rede", uma organização que antes mesmo da
legalização, orientava mulheres em busca de um aborto. Tal movimento nunca tinha
tido uma integrante sua presa. No entanto, bem recentemente, em dezembro de 2022,
quatro socorristas foram detidas em Córdoba, mas foram liberadas depois, fruto
também de rápida e intensa movimentação feminista.

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O ano de 2015 foi marcado por muitas manifestações contrárias ao feminicídio.


Nessa direção emerge o movimento "Nem uma a menos", que dentre outras ações
organizou uma enorme manifestação em 03 de junho em Buenos Aires. Esse
movimento, em sua maioria constituído por jovens, vai adensar a luta da "Campanha
Nacional pelo direito ao aborto legal, seguro e gratuito".
O ano de 2018 foi marcante na luta, em março a campanha apresentou a oitava
versão de seu projeto, com aval de 71 deputados e foram realizadas entre os meses de
abril a junho as "martes verdes", debates sobre o projeto a cada terça-feira no
Congresso Nacional, reunindo diferentes gerações em defesa da legalização do aborto.
Essa caminhada culminou com a aprovação do projeto na Câmara dos Deputados, mas
rejeitado no Senado. Milhares de pessoas estavam nas ruas acompanhando a votação.
Podemos dizer que se houve essa perda com a votação no Senado, ganhou-se o debate
na sociedade, de maneira a sensibilizá-la para problemática em curso de apropriação da
escolha das mulheres e pessoas que gestam sob seus corpos. Vale considerarmos que a
legalização e descriminalização do aborto é uma luta histórica do movimento feminista,
este que com o percurso histórico foi incorporando outras pautas, e considerando, a
partir de questionamentos, outros sujeitos que reivindicavam visibilidade nesses
espaços, dado que hoje nos leva a tratar não mais no singular, mas um feminismo no
plural.
Naquele momento de derrota na votação no Senado, como bem contribui Burton
(2018), é possível extrair como ganho as diversas expressões de visibilidade do tema
em discussão na Argentina:

Se habló de aborto en los medios de comunicación, en las verdulerías, en el


transporte público, en el bar de la esquina, en el de mitad de cuadra, en las
escuelas, en los centros de salud,en los almuerzos familiares, en las plazas,
en las casas y en las camas. Las calles fueron testigos del crecimiento de esa
“marea verde” impulsada y protagonizada por el movimiento feminista de
Argentina que, desde hace décadas, exige la sanción de una ley que respete
el derecho y el de seode decidir sobre el propio cuerpo (BURTON,2021, p.2).

Tais expressões do debate sobre o aborto mostra a força que foi, e são, os
movimentos feministas naquele país, na linha de frente desse ganho histórico. Tal
ganho tem se feito presente na vida das mulheres e pessoas que gestam na Argentina, o
direito de escolha sobre seus corpos.

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Verônica Gago (2020), também pontua sobre isso, em seu livro "A Potência
Feminista, ou o Desejo de Transformar Tudo", ilustrando, ao tratar da greve nacional
das mulheres em 2016 denominada “Nosotras Paramos” contra a violência de gênero, a
força dos movimentos de mulheres e feministas argentinos num contexto do governo
neoliberal de Maurício Macri (2015-2019).
A ousadia retratada por Gago (2020) em relação à construção de uma agenda
feminista e anticapitalista diante de um governo neoliberal e uma brutal crise mundial
do capitalismo, demonstra a disposição que havia na Argentina para avançar com
pautas que eram questionadas mesmo nos espaços tradicionais de luta e mobilização,
como os sindicatos. E essa ousadia também é vista sob o ponto de vista organizativo. A
greve seguia uma reorganização de mulheres a nível mundial, isso fortalecia as lutas
das latino-americanas e deve um saldo muito positivo na Argentina:

Mas essa foi apenas a primeira, a que inaugurou uma saga. A força da greve
de 2016 nos levou a convocar a greve internacional do 8 de março de
2017.(...)Em 8 de março de 2017, sentimos a terra tremer sob nossos pés.
Nos meses prévios, nos movemos com a certeza de que era decisivo o que
fazíamos ou deixávamos de fazer: organizamos assembleias, fomos a
pequenas reuniões aqui e ali, conversamos, escrevemos, escutamos,
brigamos conspiramos e fantasiamos. (GAGO, 2020, p.24).

A experiência Argentina traz outros elementos importantes, como: a importância


da unidade na diferença, a construção de espaços de diálogo permanente e a articulação
com outros movimentos sociais. Nesse sentido Gago (2020, p. 52) reflete que,

Sair do Gueto também diz respeito a romper os limites das organizações que
se reconhecem exclusivamente como feministas, e transbordar a
convocatória com companheiros de Sindicatos, movimentos sociais, espaços
comunitários, organizações indígenas e afrodescendentes, centro de
estudantes, coletivos de imigrantes, grupos artísticos, etc. As assembleias
são o espaço onde prosperam essas alianças insólitas que implicam contatos,
debates, desacordos e síntese parciais do que propomos a nós mesmas
(GAGO, 2020, p.52).

Essa experiência sinalizada por Gago (2020), sem dúvidas, estabeleceu bases
para a conquista de mentes e corações para a pauta da legalização e descriminalização
do aborto. Dado que não foi diferente em relação a ampliação da luta pela legalização
do aborto na própria Argentina, assim como em muitos países da América Latina e
Caribe. Além da importância sem precedentes dos movimentos de mulheres e
feministas, o que se percebeu foi a ampliação do debate por toda sociedade e a

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construção organizativa de espaços de diálogos e construção de ações pela legalização.


Assistimos várias entidades, partidos, movimentos sociais e ativistas se incorporarem à
campanha nacional, reforçando a luta mais ampla e como parte da agenda da Greve
Internacional de Mulheres em 2018, momento em que o então presidente Maurício
Macri dissocia a expressão da Greve realizada pelas mulheres no país, do movimento
descriminalização do aborto. Contudo, ainda assim, não conseguiu barrar a Campanha
Nacional pelo Aborto Legal, Seguro Gratuito na Argentina, inclusive com expressão
que ganhou uma dinâmica de massas.

Isso foi possível, precisamente, pelo modo como essa demanda se vinculou
as lutas feministas que vinham tecendo uma compreensão política e
cognitiva sobre como as violências contra os corpos feminizadas implicavam
uma agressão sistemática cada uma e a todas com base do regime de
governo heteropatriarcal (GAGO, 2020, p.124).

Tal contexto possibilitou refletir sobre as mulheres que expressam a realidade


Argentina, na dimensão classista do tema e estabelecer formas de ampliar o trabalho de
base, concordando com Gago (2020) que a realização do aborto tem afetado e forma
diferenciada as mulheres, a quem tem, mesmo na clandestinidade acessado clínicas que
garantam práticas diferentes de risco. Acrescenta ainda que quando se tira o argumento
de classe dessa questão inverte-se a discussão de maneira a ser direcionada para o
campo do religioso com apoio explícito de líderes religiosos e políticos.

2. A MARÉ VERDE E A LEGALIZAÇÃO DO ABORTO NA ARGENTINA EM


2020

Desde a negação do Senado, em 2018, do projeto de lei da legalização do aborto


o tema se avolumou mais ainda no país, resvalando para o debate das eleições
presidenciais em 2019. O então candidato Alberto Fernandez, em diálogo com a
popularidade do clamor pela legalização do aborto e a pressão dos movimentos
feministas, se comprometeu que, caso eleito, enviaria o projeto de lei no início de seu
mandato.
Tal projeto somente foi enviado ao Congresso pelo já presidente Alberto
Fernandez em fins de 2020, sob argumento das ações assoberbadas em decorrência da
pandemia de COVID-19.

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Assim, que em 30 de dezembro de 2020, foi aprovada a legalização do aborto no


país, marco que reforça a luta de mulheres e pessoas que gestam em todo o mundo pelo
direito de decidir sobre seus corpos, pelo poder de escolha do direito de gestar, bem
como a garantia de saúde e vida diante de uma gravidez indesejada e/ou de risco.
A legalização do aborto na Argentina em 2020 tem se mostrado uma conquista
para mulheres e demais pessoas que gestam naquele país. Resultado de um processo
histórico de luta e resistência dos movimentos de mulheres e feministas que por meio
de diversas estratégias disseminaram a ideia da importância da discussão sobre a
temática para toda sociedade argentina. Foi durante a pandemia da COVID-19 que o
mundo assistiu a vitória das mulheres argentinas no que toca aos seus direitos sexuais e
reprodutivos, especificamente sobre a questão do aborto.
Desde aquele momento o mundo vivia uma grave crise sanitária, provocada por
SARS-COVID-19, que ocorre junto a uma crise econômica, recaindo de forma
particularizada nos países considerados periféricos, a exemplo da Argentina. Seus
reflexos extrapolam o campo econômico e social, desvelando uma crise que também é
humanitária, ambiental e com processos de fascistização, impregnados de um
conservadorismo de cunho fundamentalista. Neste contexto se aprofunda as políticas
ultraneoliberais com intensificação do desmonte das políticas sociais e dos serviços
públicos, bem como se amplia os discursos de ódio contra os setores mais oprimidos da
classe trabalhadora, dentre eles o de mulheres, população negra e quilombola,
refugiadas/os, indígenas e LGBTQIAP+ (BORGES e MATOS, 2020).
É neste contexto que os direitos das mulheres e dos demais grupos supracitados
estão sendo duramente atacados, pois durante a pandemia aumentou o número de
violência contra mulheres e meninas, bem como a redução dos serviços de proteção e
atendimentos diante das múltiplas violências, especialmente a sexual. E, ainda, é neste
contexto que temos visto os movimentos de mulheres feministas, o movimento negro e
demais movimentos sociais se levantarem na defesa de suas vidas, mesmo diante do
distanciamento social - que foi desigual e pouco garantido para grande parcelada
população no mundo.

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Diante do exposto, analisar o processo que resultou na legalização do aborto na


Argentina, pode nos fazer ir em uma direção assertiva a partir de seu exemplo, cuja
centralidade são as suas ativistas e suas lutas que têm influenciado a sociedade e a
posse de novo governo que dialogou e dialoga com as pautas das mulheres e feministas.
A partir disso, podemos afirmar que uma das alianças importantes nesse
processo foi a dos movimentos de mulheres e feministas, com os demais movimentos
sociais e com a sociedade, ao pautar a relevância da legalização do aborto, inclusive
pontuando que tem sofrido o impacto de forma diferenciada com a prática. Isso sem
que, de todo, houvesse submissão aos ditos da igreja, mas com uma discussão que
pauta a dimensão da totalidade que essa problemática sinaliza, havendo impactos que
vão também para setores econômicos e sociais, mas não só. Nesse sentido, o processo
de luta não haveria avançado na pauta sem ganhar a sociedade e demais movimentos
sociais para o campo de disputa enquanto aliados.

2.1. A antiga legislação e seus impactos na saúde e na liberdade

O Código Penal de 1921, em seus artigos 85 e 86, previa o aborto legal nos
casos derisco a saúde, perigo à vida e nos casos de estupro. Nesse último caso, o
aborto somente era garantido se a mulher fosse considerada incapaz 4. Apenas em 2012,
numa decisão da Suprema Corte de Justiça, conhecida como Fallo F.A.L., ficou
deliberado que o direito ao aborto em decorrência de um estupro era para todas as
mulheres, não sendo necessário registro policial e que caberia ao Estado o
estabelecimento de protocolos de atendimentos nas instituições de saúde.
Ainda assim, o acesso - como já descrito e acompanhando outros países da
América Latina e Caribe - muitas vezes era dificultado ou negado, levando a não
garantia de direitos já previstos no marco legal, quando não com utilização de
procedimentos inseguros (CARBAJAL, 2009; GONÇALVES, et al, 2021).
De acordo com a Rede de Acesso ao Aborto Seguro - Argentina (REDDAS), se
estima que antes da legalização ocorriam por volta de 370.000 a 520.000 abortos por
ano. E que as mortes por aborto inseguro, representaram 17% da mortalidade materna

4
Na ditadura militar foi publicada uma lei complementar em que o aborto somente seria legalmente
garantido se a situação de saúde fosse grave e nos casos de estupro era necessário o registro na delegacia
de polícia, bem como a aprovação do representante legal da mulher considerada incapaz.

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entre 2014 e 2016. Sendo a primeira causa individual de morte materna desde 1980,
matando 2 a cada 10 mulheres falecidas por este motivo, 47 mulheres por ano, quando
são mortes evitáveis. Entre 2013 e 2014, foram internadas mais de 49 mil mulheres
com complicações por abortamento. E segundo informações da ministra argentina de
Mulheres, Gênero e Diversidade, Elizabeth Gómez, seis meses depois da legalização,
nenhuma mulher havia morrido por complicações de aborto no país (YAHOO
NOTÍCIAS, 2021).
Esta realidade perversa levava muitas meninas e mulheres à maternidade
forçada ou aos riscos do aborto clandestino, como o retratado no documentário de
animação “Vicenta” de Darío Doria. Em 2006. Vicenta Avendaño, mulher pobre e
analfabeta, descobriu que sua filha mais nova, portadora de uma deficiência mental,
havia sido violentada sexualmente por seu tio e estava grávida. O filme mostra a
dificuldade na garantia do direito garantido em lei5.
Para ilustrar que casos como esses se repetem em outras realidades na América
Latina, exemplificamos um caso ocorrido no Brasil, em 2020, de uma menina no estado
do Espírito Santo, de apenas 10 anos que ficou grávida após 4 anos de estupro de
vulnerável por familiar. O caso chamou muito a atenção pela tentativa de negação do
direito ao aborto legal e várias violências forampraticadas contra a menina e sua família,
inclusive por membros do Governo, como a ex-ministra da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos, Damares Alves, que atuou para impedir que a menina de 10 anos,
realizasse o procedimento. Caso que expressa para nós o desafio de mesmo diante de
ter casos que são legalizados garantir que a legislação reflita de fato na vida das
mulheres e demais pessoas que gestam6.

5
Não localizamos, na internet, o filme em sua íntegra. No entanto, compartilhamos o link do trailer:
https://www.youtube.com/watch?v=mmFHSQ1o1mw. Acesso em 29 de agosto de 2022.
6
Caso amplamente abordado na mídia. Recentemente foi novamente tratado, em decorrência da
repetição de situações parecidas. Ver: https://g1.globo.com/es/espirito-
santo/noticia/2022/06/27/menina-de-10-anos-que-engravidou-apos-estupro-ha-2-anos-precisou-mudar-
identidade-e-endereco.ghtml. Acesso em: 29 agosto de 2022.

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2.2. O que muda com a aprovação da Lei nº 27.610/2020 - Acesso à Interrupção


Voluntária da Gravidez (IVG)

A Lei nº 27.610 - aprovada no Senado argentino no dia 30 de dezembro de 2020


e sancionada pelo presidente Alberto Fernández em 14 de janeiro de 2021 - afirma que
toda pessoa gestante poderá ter acesso ao aborto no sistema de saúde, de forma gratuita
e segura, até a 14ª semana de gestação (por sua livre escolha) e por tempo
indeterminado (para as pessoas grávidas em decorrência de estupro ou que estejam
correndo risco de vida).
Para que o procedimento seja realizado basta que assine um “consentimento
informado”, que se trata de um documento no qual a pessoa que se submeterá ao aborto
informa ter recebido todas as informações necessárias e confirma a tomada de decisão
sobre a prática de saúde. Tal consentimento, se enquadra nos princípios da autonomia
das pessoas, confidencialidade, privacidade e acesso à informação.
Na Argentina, as pessoas maiores de 16 anos são consideradas adultas para
decidir sobre sua saúde sexual e reprodutiva. As pessoas que estão na faixa etária entre
13 e 16 anos, também são consideradas aptas a expressar sua vontade, quando não em
risco de saúde ou semelhante, mas, diante de risco eminente devem ter autorização de
um dos genitores ou responsável legal. Se houver desacordo entre estes e o os/as
assistidos/as, cabe a decisão ao profissional ou equipe de saúde. Já as menores de 13
anos devem ser assistidas por um dos genitores ou responsável legal ou, na ausência
destes, a garantia de serem auxiliados por pessoa indicada conforme as leis de Proteção
Integral dos Direitos das Meninas, Meninos e Adolescentes.
A lei estabelece que o procedimento deve ocorrer no prazo de 10 dias a partir de
seu requerimento nos serviços de saúde, além de ser um direito totalmente gratuito
sendo garantido na rede pública, obras sociais ou pré-pagas, isto é, em qualquer serviço
de saúde sem maiores ônus aos que necessitam acessá-lo. Além do direito ao
abortamento, considera-se como direito integral e gratuito os exames de diagnóstico,
medicamentos e terapias de suporte após o procedimento7.

7
Vale considerar que o Sistema de Saúde na Argentina é conhecido como um dos mais fragmentados na
América Latina, havendo direcionamentos múltiplos conforme o público, o que não o caracteriza como
universal. Então, ele é dividido nos seguintes subsetores: Público, Seguro Social e Privado

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Quanto ao atendimento a lei estabelece que o profissional de saúde que deva


intervir diretamente na interrupção da gravidez tem o direito de exercer Objeção de
8
consciência nas condições previstas em lei, com a garantia de assegurar o
procedimento seja realizado indicando outro profissional e garantindo a pessoa todas as
informações relacionadas a garantia da IVG. Além disso, o profissional de saúde não
pode recusar interromper a gravidez caso a vida ou a saúde da pessoa grávida estiver
em perigo e exigir cuidados imediatos e urgentes.
A legalização do aborto na Argentina é um grande avanço, sendo expressão de
uma vitória dos movimentos de mulheres e feministas e defensores/as dos direitos
sexuais e reprodutivos e pela igualdade de gênero. A lei estabelece a garantia de
realização do procedimento tendo como justificativa o direito de escolha de realizá-lo.
Reconhecendo não somente como um direito das mulheres, mas de outras identidades
de gênero capazes de gestar. O que é uma conquista importante no que toca a
diversidade de gênero e sexual por reconhecer o direito assegurado a todas as pessoas
com útero.
É importante ressaltar que na Argentina já havia conquistas no campo dos
direitos da população LGBTQIAP+, como a Lei de Matrimônio Igualitário (2010), a
Lei de Identidade de Gênero (2012), mas o reconhecimento ao direito de interrupção da
gravidez por pessoas que gestam é um marco importante para o debate sobre
diversidade sexual e de gênero no país.
Outra questão importante a destacar é a luta por uma educação sexual, o acesso
à saúde reprodutiva e aos contraceptivos. A lei que assegura o direito ao aborto
contribui para ressaltar a Lei 25.673 - sobre “Saúde Sexual e Procriação Responsável” -
elaborada no ano de 2002 e regulamentada em 2003 durante o governo de Néstor
Kirchner (2003-2007) - que estabelece o Programa Nacional de Saúde Sexual e
Procriação Responsável, que visa garantia de saúde reprodutiva numa perspectiva de
redução de desigualdade de gênero, diminuição de mortalidade materna-infantil, além
de educação sexual e os direitos reprodutivos de toda população. Além da Lei 25.673
(2002), cabe destacar a aprovação da Lei de Educação Sexual Integral (2006) e da Lei

(MACHADO, 2018).
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Previsão legal que consta no art.11 da referida legislação que garante que o/a profissional não é forçado
realizar atos/ações que venham a violar suas convicções religiosas e/ou éticas.

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de Proteção Integral às Mulheres (2009). Apesar de terem sido passos importantes, na


prática não eram de fato garantidas. No entanto, estão sendo reforçadas agora - não só
pela Lei nº 27.610 (2021), que garante o acesso ao aborto - mas como parte importante
da luta das mulheres, da campanha nacional que fez uma “maré verde” se espalhar pelo
país ao som de frases como: “Educação sexual para decidir, anticoncepcionais para não
abortar, aborto legal para não morrer!”.

3. APROXIMAÇÕES CONCLUSIVAS

Diante das discussões tecidas sobre a realidade que se apresenta na Argentina,


no que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos com a legalização do aborto -
situação possível graças a incessante luta dos movimentos feministas que arregimentou
forças junto aos demais movimentos e a sociedade para enfretamento da onda
conservadora que também pairava no país - percebemos que uma nova onda de
resistência se estabelece no país, assim como servindo de modelo para os demais países
da América Latina e Caribe que estão no processo de luta para conquista de tal feito
e/ou manter a legislação já conquistada.
Tal realidade sinaliza, que mesmo diante de um contexto conservador, regido
por apelo sistemática aos valores morais e dogmáticos/religiosos que por vezes
influenciam nas decisões sobre a vida e corpos das mulheres e demais pessoas que
gestam, a resistência dos movimentos de mulheres e feministas têm - por meio de suas
lutas estratégicas - muito a contribuir com sua experiência de organização no
enfrentamento a essa onda conservadora que tem pairado sobre os direitos sexuais e
reprodutivos na América Latina e Caribe, em alguns países de forma mais intensa que
outros o que tem impossibilitado de avançarmos nas pautas de legalização e
descriminalização em países como o Brasil, por exemplo.
Nesse sentido a experiência argentina tem o potencial de nos dar esperança -
mesmo diante desse cenário de crise em todos os níveis - de construir um movimento
nos demais países de estratégias assertivas, a exemplo da que foi traçada no referido
país, que conseguiu disseminar a importância da temática na sociedade e pautar em
contexto eleitoral a questão do aborto, com isso ganhando força e apoio do então
candidato, hoje presidente, Alberto Fernández. Isso sinaliza que é preciso um
movimento coletivo e estratégias que abarquem o campo da totalidade do movimento

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de legalização do aborto e da descriminalização das mulheres e pessoas que gestam.


Assim, faz-se necessário ampliar as informações sobre o impacto que a criminalização
do aborto pode causar em diversos setores da sociedade, sem perder de vistas, óbvio, o
direito de escolha e de defesa da vida de milhares de mulheres e pessoas que gestam
que têm suas vidas impactadas negativamente, quando não ceifadas, pela garantia de
uma política pública que não as criminalize e as atendam de forma digna.

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