O Atlântico Como Ponte
O Atlântico Como Ponte
O Atlântico Como Ponte
Luciana Salles *
Jéssica Zambello †
***
L.S.: O humor é uma violência e o humor é aqui a sua arma contra a violência do
imaginário colonial. Por que o humor? Por que você vai escolher justamente essa forma
de violência contra uma espécie de glória memorialística dos seus, da sua alma mater,
da sua terra? Por que o humor? Por que esse caminho?
Por que usar a gargalhada? Por que não fazer outro tipo de objeto? Porque o
discurso colonial, a elite colonial, que não é representativa de Portugal, neste caso, mas
que controla o discurso colonial e o impõe nos meios de comunicação, o faz parecer
nacional. E esse discurso, essa elite fala desse pedestal de seriedade; ela é sempre séria.
Esse discurso ele nunca é cômico, ou seja, o homem colonial é sério porque parte do
princípio que é superior ao restante. Então ele nunca ri, ele nunca sorri, ele nunca
gargalha. E ele tem, dentro do seu próprio de seriedade, um jogo argumentativo
montado que é logocêntrico, que é colonial, que é eurocêntrico, que não é esta mímica
das onças. Só conhece esse jogo argumentativo: o seu. Então se eu chego e uso um
discurso argumentativo que se sustenta na gargalhada e que não segue as regras, nem
sequer logocêntricas, do seu jogo oficial argumentativo, este homem de repente está
perdido, ou seja, não há como argumentar perante Diógenes que solta o galo. Essa
história que tu lestes é uma história antiga entre Platão e Diógenes em que Platão vai à
ágora e partilha sua última conclusão: a de que o ser humano é o único animal bípede e
que não tem penugem. Diógenes, que nunca vai à ágora, que recusa qualquer hierarquia
ou regra social ouve outros homens a contarem sobre o que Platão concluiu e Diógenes
então vai à ágora, solta um galo depenado e diz: “eis o homem segundo Platão”. E
Platão, que tem um diálogo para cada um de seus inimigos, não tem um diálogo para
Diógenes pois não há maneira de dialogar com Diógenes; ele gesticula, ele ri, ele não
fala, nega-se a entrar nessa estrutura argumentativa. Então é precisamente isso que o
“Kit” faz, ou procura fazer, e é por isso que ele inclui imagens; os objetos têm assim
como imagens, e a imagem em jogo com o texto e em jogo com minha própria
performance — porque o “Kit” antes de ser publicado foi performado —, e foi
precisamente essa performance que me ajudou a escrever a segunda parte do livro
porque ia vendo onde as pessoas riam mais, onde elas ficavam mais incomodadas, o que
as fazia sentir culpa, o que as fazia reconhecer o problema que vem após a culpa. Então
esse jogo performático foi fundamental para mim, está muito ligado. Achei muito bonito
abrirmos com a “Mímica das onças” que está ligado ao Manoel de Barros com quem eu
aprendi esta lição.
L.S.: Ainda dentro dessa discussão, porque quando a gente fala em colonialismo,
em decolonialismo, a gente está de alguma forma falando de violência e aí essa coisa
desse riso que é amargo e necessário e é reflexivo, ele vai aparecer com força no “Kit”
e ele vai aparecer em um lugar que me pareceu tão surpreendente que é na literatura do
Dany. Ele vai falar muito de violência, como é comum às literaturas da África lusófona,
especialmente no caso de Moçambique, a violência aparece sempre; não só a violência
da colonização, mas de depois disso, a violência das guerras civis, porque se tem toda
uma questão da violência como um mediador social ainda muito presente, como no
Brasil. O Dany vai focar muito em uma questão — nos dois livros já publicados no
Brasil, tanto no A adubada fecundidade quanto no A mulher sobressalente — ele vai
focar muito na violência contra o corpo feminino o que é algo bastante interessante
nesse olhar dele sobre pensar a violência em Moçambique, ter sempre uma mulher
sendo vítima dessa violência de alguma forma. Mas o fragmento que eu queria trazer é
uma provocação, é o trecho de um conto pra fazer com vocês o que ele fez comigo há
algumas semanas em um outro evento, que é plantar o desespero de você precisar
comprar o livro dele pra saber como termina a história. É uma história de violência, mas
que também é uma história de um certo humor; um humor possível na violência assim
como aquele humor violento da colonização desbravado pela Patrícia no “Kit”. Vou dar
o contexto: é uma noite de calor e muitos mosquitos, uma noite moçambicana cheia de
insetos e aí, uma moça coberta pela sua rede, que não está fazendo muito efeito, começa
a bater nos mosquitos e acerta os mosquitos que estavam sugando seu sangue e acaba
toda manchada de sangue. Ao mesmo tempo uma violência muito mais real acontece na
entrada da casa: chega a polícia e acusa a moça de assassinato. Chegam espancando a
porta de uma forma muito familiar para quem mora no Brasil — se disser isso aos
europeus eles não vão nem compreender como funciona isso de a polícia chegar
espancando uma porta.
A Luisângela vai ser presa, vai haver um julgamento. Será que Luisângela será
acusada pela morte dos mosquitos? Esse é o momento em que o Dany para de ler na
leitura ao vivo e diz “aí vocês vão ter que comprar o livro e ler o conto inteiro pra saber
como termina. Aí eu queria perguntar pro Dany: dentro de um contexto social
complexo, complicado, como é o de Moçambique, há espaço pro humor na escrita da
violência, na escrita da denúncia da violência? Como é que você vê essa relação entre
violência e humor na sua literatura e na literatura moçambicana de maneira geral?
Dany Wambire: Então eu dizia que nós como país, a nossa relação com a
construção dos 500 anos que nós tivemos sob o julgo do colonialismo português e dessa
relação que surge, sobretudo, nesse conceito de senhor/escravo, vai ser essa relação:
enquanto existia o senhor, que era o tal do senhor sério sobre o qual falava a Patrícia,
existia o escravo que diante desse sofrimento, dessa submissão a que estava voltado, há
um mundo que se constrói, há o mundo desta seriedade desse escravo que seria da sua
própria desgraça, da sua própria submissão. E, a partir do que as narrativas e a história
nos contam, nos sentimos — isso eu que sou adepto e gosto de contar as histórias da
periferia — sentimos ainda essa réplica de um empregado doméstico dentro da casa do
patrão — falo nos dias de hoje — dos patrões e da classe média em que existe um
trabalhador para ajudar nos trabalhos de casa que quando está o patrão para dar
orientações e fazer com que o trabalho que existe dentro da casa seja feito, está o
trabalhador que diante dessa dor ou por conta do salário magro e pequeno que vai
recebendo, rindo-se da própria desgraça e das conversas que vão tendo quando falta
algum elemento, falta eletricidade, porque com o salário que recebe do patrão não
consegue satisfazer essas necessidades. Então sinto que nessas conversas que há desse
trabalhador doméstico, que recebe o salário-mínimo, a presença do humor, o rir-se da
própria desgraça está sempre presente. Eu sinto essa presença forte.
Agora, terminado o colonialismo, se temos hoje os dias em que há outras formas
de ajuda, outras formas de submissão, conseguimos ter um poder instituído através da
democracia, a democracia também trouxe outras coisas como, por exemplo, as ONGs
que vêm trazendo uma outra forma de ajuda, vamos assim dizer, como nesse conto que
apresentou Luciana. Ajuda porque as pessoas sofrem pela malária, sofrem com o HIV,
sofrem com tuberculose, sofrem com tantas outras doenças incluindo a guerra que tem
sido uma coisa recorrente no nosso país. Vai aparecendo uma nova relação entre os
desgraçados, os empobrecidos e aqueles que querem prestar ajuda, que querem prestar
apoio. E dessa relação vai surgindo uma espécie de diálogo de surdos. Uns achando que
o desenvolvimento deve ser feito de determinada forma, enquanto que os outros vão
achar que o desenvolvimento tem que ser feito de outra forma. Um exemplo disso é as
pessoas acham que existe malária e vão oferecer as redes mosquiteiras para proteger da
malária, mas ao mesmo tempo as pessoas vão achar que precisam da rede para pescar
porque precisam de alimento e não adianta combater a malária se não puderem se
alimentar. Quer dizer, a grande ameaça não está no mosquito, mas está na fome que
ameaça o estômago. Estamos diante da situação de mortes de uma desgraça que se pode
causar pela morte de um filho atingido por um estilhaço de uma explosão de uma
fábrica, mas que o pai da criança que morre nessa explosão festeja porque é a
oportunidade de ganhar alguma indenização pela morte daquela criança na explosão.
Situações que existem de ciclones, em que há destruição e ventos assassinos que
destruíram casas, mataram pessoas e criaram um conjunto de desgraça, mas onde vai
aparecer pessoas que vão festejar porque é uma possibilidade de receber ajuda, ou um
saco de farinha, um saco de arroz.
Então tudo isso que estou apresentando serve pra ver como que o humor está no
dia a dia dessas pessoas, como é que riem das próprias desgraças. E é isso que eu
procuro sempre trazer no texto: esse espaço periférico que parece invisível, ou é
invisível, que não é visto pelo tal senhor sério — como disse Patrícia — que está
sempre ali concentrado e que não sorri, mas que dentro da periferia está presente essa
realidade. Então isso que eu queria comentar agora sobre o lugar do humor na nossa
realidade, nos meus textos em particular.
L.S.: E para introduzir o Júlio eu tenho mais uma espécie de epígrafe, não no
Júlio leitor de literaturas africanas, não no professor e pesquisador, mas no poeta Júlio
Machado e, especificamente, do O quintal e o mundo que já é por si só um título
interessante para essa nossa reunião. E o poema que eu queria compartilhar com vocês e
depois pedir pro Julio falar um pouco sobre a questão que move a gente aqui, é um
poema chamado “Exu na chegada”.
Fica muito claro nesse livro que, atravessando muitas leituras e propondo muitos
diálogos intertextuais — ou mesmo intersemióticos já que você vai ao cinema, vai às
artes em geral —, fica muito marcada no seu texto essa ideia de querer ser ponte entre
linguagens, entre seres. E aí eu queria que você falasse um pouco desse seu desejo de
uma ponte entre artes e linguagens e pessoas como poeta, e esse seu lugar de ponte entre
culturas como pesquisador, como o sujeito que no Brasil está olhando para Cabo Verde.
Por que ser ponte?
Julio Machado: Esse livro de onde você tirou esse poema tem justamente esse
título porque ele tem duas partes. A primeira parte são poemas que são muito ligados à
experiência da origem, no meu caso do meu estado de origem que é Minas Gerais, o
quintal desse livro; e depois a passagem e abertura pro mundo. Aliás, há uma epígrafe
do Coriolano, do Shakespeare, que quando ele é expulso da cidade ele diz “Olha, vocês
me obrigaram a dar as costas para vocês, mas isso me fez ficar de frente para o mundo”,
algo mais ou menos nesse sentido. Mas acho interessante esse poema que você citou e o
livro de modo geral, tem um pouco a ver com o que eu estava pensando em falar sobre
esse tema da ponte, que é uma certa ideia de ambiguidade de papéis, principalmente no
caso brasileiro, e é curioso que o Dany fez a menção de que Moçambique ficou 500
anos sob a colonização portuguesa e uma das minhas dúvidas em termo de pesquisa
inclusive é pensar quanto tempo nós realmente ficamos sob a colonização portuguesa no
Brasil na medida que nós muito rapidamente assumimos controle da nossa própria
colonização. Eu penso muito no Brasil, a partir de um determinado momento histórico,
de auto-colonização, os brasileiros assumindo os pilares da colonização no Brasil
inclusive a escravidão que era o principal pilar de sustentação e de violência desse
regime. Os maiores traficantes de escravo acabam sendo brasileiros: o Francisco Félix
de Sousa, que era baiano, etc.
Aí esse poema começa não com o humor explosivo da gargalhada de que vocês
estavam falando, mas ele tem uma certa nota de ironia porque ele começa com uma
citação de Shakespeare, do Hamlet, num poema que é sobre a entidade iorubá que é
Exu; justamente a entidade que abre os caminhos entre os mundos: o mundo dos
homens e o mundo das entidades. Então vejo que há aí uma certa ambiguidade nos
papeis da ponte e o que eu pensei em falar sobre o Brasil e sobre mim mesmo, sobre
qual é o meu lado da ponte, exatamente? Eu fui colonizado ou eu fui colonizador,
porque isso é um incômodo da formação brasileira. Nós assumimos as rédeas da
colonização e continuamos colonizando os nossos próprios excluídos internos. Essa é
uma das razões, por exemplo, dentro do meu projeto de pesquisa atual, de saber por que
alguns conceitos do Gilberto Freyre continuam sendo tão sedutores para os brasileiros.
E são, no meu entender, justamente por isso, eles mitigam um pouco a nossa própria
culpa brasileira de nos termos auto-colonizado. Nós continuamos escravistas depois da
nossa própria independência.
Mas aí me veio tudo isso pra falar um pouco porque nesse mundo de ostentações
que nós vivemos que eu execro, só abro exceção numa categoria específica que é a da
livro-ostentação então eu gostaria de mostrar essa edição d’Os Lusíadas de 1880,
publicada pelo Real Gabinete. O que é curioso, primeira coisa, é que esse livro chegou
para mim pelo meu irmão que o achou no lixo. Então essa é uma ideia interessante,
dessa obra que é a grande epopeia de deflagra um discurso de colonização, em certo
sentido, ser encontrada no lixo de uma cidade do interior do Brasil e depois ser
resgatado tudo isso. Mas o que é curioso é que ele tem uma nota histórica no final sobre
o Real Gabinete e esse sujeito que assina, Reinaldo Carlos Montouro, começa essa nota
histórica dizendo o seguinte “A evolução progressiva da colonização portuguesa no
Brasil, depois da independência deste importante estado (...)”; ou seja, essa sujeito está
pensando a colonização portuguesa no Brasil mesmo depois da independência, então
veja que ela não acaba com a independência e esse sujeito respalda essa ideia de que a
colonização continuou, e feita por brasileiros.
Então uma das minhas grandes questões é qual o meu lado nessa ponte. Em que
medida eu tenho culpas enrustidas e embutidas que eu mesmo não sei quais são. E é
curioso pensar, por exemplo, como essa formação brasileira, essa ambiguidade sobre
não se definir como colonizado ou como colonizador, ela acaba sendo transplantada
também pra Cabo Verde. O grupo que vai deflagrar o modernismo lá, que o grupo da
Revista Claridade o faz muito a partir do modernismo brasileiro e do próprio Gilberto
Freyre, mas muito curiosamente eles absorvem um dos vários ramos do modernismo
brasileiro que é o modernismo do Rio de Janeiro — eles são leitores de Bandeira,
Ribeiro Couto — que é o modernismo brasileiro que não tem uma postura de ruptura
com Portugal. Eu quero chegar a uma linguagem brasileira mas eu não quero romper
com a tradição portuguesa porque estou muito preso a ela, etc, que é o que faz Manuel
Bandeira não participar da Semana de 22 mesmo ele tendo sido convidado; ele tem
poemas lidos lá, mas ele pessoalmente não vai e diz que é por isso. E é justamente esse
modernismo que não é de ruptura — eu chamo em algum momento de modernismo de
transição — é uma busca de chegar a uma linguagem brasileira sem romper com a
tradição de Portugal que é nosso “avozinho” como disse Manuel Bandeira. É isso que se
transplanta do Brasil pra Cabo Verde nesse momento e cria essa mesma ambiguidade
que nós temos no Brasil de não saber exatamente e, em alguns casos não saber
confortavelmente qual é o lado pra não assumir as responsabilidades daquilo que fez
com seu próprio povo, isso se transplanta pra Cabo Verde. O conceito de mestiçagem ou
miscigenação que o Freyre vai usar pra teorizar a suposta harmonia racial no Brasil, ele
é transmutado em Cabo Verde no conceito da crioulidade — ele não é inventado pelo
Freyre, ele já existe lá — e eles vão embutir esses dois conceitos e dizer que tudo se
transformou em cultura. Então eu vejo que a mescla cultural, e o Freyre vai falar mesmo
em mescla corporal, mas em Cabo Verde a mescla se tem uma ideia de que a mescla
cultural harmonizou os contrários, como o Gilberto Freyre preconizaria para o Brasil.
L.S.: acho que pra Cabo Verde, e não só. Mas acho que efetivamente acabou
cabendo a nós no Brasil, entre esses oceanos todos, esse papel de ponte, até porque de
fato o que acontece é que como o processo de libertação das colônias em África acaba
sendo muito traumático, por muito tempo eles meio que se viram para o Brasil como
modelo de “irmão mais velho”, quase como que rejeitando um lugar comum muito
frequente, que a Patrícia vai explorar belamente no “Kit” que é “O manual da língua de
Camões”. Ou seja, o Brasil passa a ocupar um espaço, de alguma formas para essas ex-
colônias, como uma espécie de metrópole cultural não de uma forma opressiva,
inicialmente — a história do acordo ortográfico é algo a ser discutido — mas é essa
ideia de que os países em África têm uma resistência em enxergar a “língua de Camões”
como um presente, um patrimônio. Se não me engano é Pepetela que vai iniciar um
texto dizendo que ele não fala a língua de Camões, ele fala a língua de Drummond. É a
ideia de que olhar para o Brasil como um parceiro de idioma é mais confortável que
olhar pra Portugal como parceiro de qualquer coisa. E aí a Patrícia vai usar essa coisa do
“Manual da língua de Camões”, acho que é um bom ponto pra pensar aqui se pensarmos
que somos todos parte dessa lusofonia, ainda que alguns portugueses se excluam desse
bojo — “não, nós somos os donos da língua de Camões, eles têm que aprender. É uma
coisa tensa até hoje para brasileiros, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos. Quem
vai pra Portugal falando português nativamente, chega em Portugal e é
sistematicamente corrigido, é riscado e afrontado. Mas então Patrícia, que fez ali o
“Manual da língua de Camões” no “Kit”, com todas aquelas regras que a gente deveria
estar seguindo e ensinando aos filhos o mais cedo possível pra não incorrermos nessas
falhas; gosto sobretudo da alfinetada inicial “o país que matou Camões querendo se
arvorar em donos da língua de Camões”. Como é pra você então, como portuguesa,
pensar essa questão da lusofonia, mas como uma portuguesa que pensa a questão do
mundo decolonial e anti-colonial, como é pra você essa questão da lusofonia?
Acho que o que me faz realmente, não só questionar, mas ir contra expressões
como “estudos lusófonos” e o conceito de nacionalidade com um cunho nacionalista, é
realmente esse momento em que me apercebo que essa extrema-direita portuguesa está
cada vez mais forte, e me sento a estudar o discurso da extrema-direita portuguesa e
percebo que o principal argumento que as várias fracos dessa extrema-direita têm em
comum é o colonialismo e uma versão colonial, sobretudo, do período salazarista. Que,
claro, assenta no colonialismo. Então questionar, para mim, essa imposição linguística
tem vários níveis porque não é uma imposição linguística no sentido de “nós falamos o
português correto e vamos impondo a todos e todas”, mas o que que essa imposição da
língua tem também de gênero, ou de heteronormatividade ou de raça. Então, para mim,
parece que questionar tudo isso — o que eu tento fazer no “Kit” — é pegar a própria
língua, em todos os níveis coloniais, com o discurso dessa mitologia imperial, e
inverter. E, sim, o “Manual da língua de Camões” abre também com essa modificação
do Almada Negreiros, ou seja, a pátria de Camões deixou Camões morrer de fome. Mas
onde todos falam como Camões — o que é também irônico porque essa imposição
linguística parte do princípio que todo português e portuguesa fala “corretamente”, o
que não é verdade. O que é falar corretamente? São muitos poucos portugueses e
portuguesas que falam de acordo com as regras das enciclopédias.
Então eu quando faço paródias estou a parodiar a mim, a todos e a todas, não há
quem fique de fora. E, portanto, é sempre auto-desconstrutivo, auto-destrutivo, que não
tem como não ser; e também no sentido de nos desligarmos cada vez mais dessa ideia
de nacionalidade lusofonia. E a questão do humor, não disse há pouco, mas eu também
opto pela gargalhada porque a gargalhada tem a particularidade de, seríamos muito
enganados se pensássemos que todo Portugal está a debater pós-colonialismo porque
não está, o debate não está acontecendo e, se acontece, acontece em uma comunidade
ativista sobretudo em Lisboa, o debate não acontece muito em outros sítios. E eu gosto
de insistir nessa ideia de que a classe trabalhadora não tem tempo para debater pós-
colonialismo e podem até não dominar as palavras ou saber o que significam, mas isso
não quer dizer que a classe trabalhadora não queira debater e não possa juntar-se ao
debate muito rapidamente. O que há no humor, de muito útil, é isso mesmo: é muito
diferente entrar em uma sala em que está um grupo de portugueses que nunca pensou no
assunto e que foi educado, como eu, colonialmente, e agredir esse conjunto de pessoas
dizendo “vejam, todos nós aqui somos coloniais e pensamos colonialmente” e é muito
diferente fazer isso e entrar numa sala e fazer humor. E o humor gera também um
espaço coletivo porque se um riu, a pessoa ao lado está a rir-se também, então não estou
sozinha, há um grupo que se está a rir comigo, eu pertenço a um grupo que está a
desconstruir-se através da performance do riso. Isso faz com que as pessoas que nunca
pensaram no assunto e a quem esse discurso colonial foi imposto, possam desconstruir e
possam sentir culpa, mas depois reconhecer a culpa e desconstruir ainda mais. Então o
humor tem essa particularidade também, ele incomoda essa elite colonial de que eu
falava, que se assume colonialmente, que é consciente desse fato e chega ao mesmo
tempo a uma comunidade que não pensou no assunto ainda, mas que está mais que
aberta para pensar. O que eu entendi é que as pessoas não estão fechadas ao debate, elas
só não tiveram muito acesso a ele ainda, mas estão muito abertas a debater porque elas
não se beneficiam desse discurso, elas não fazem parte da elite que se beneficia dele.
Então a gargalhada é isso também, é esse primeiro passo para um questionamento mais
profundo.
Dany Wambire: Você estava falando de glossário e no caso esse texto, desse
primeiro livro, foi traduzido para que fosse publicado no Brasil dentro do próprio
português. Mas o que eu queria comentar nessa questão que, como disse, são várias
nações dentro desse país que é Moçambique, e eu acho que nós como humanos somos
as representações dessas várias nações que existem. Eu, particularmente, tenho um
bilhete de identidade, como os outros têm também, em que a minha naturalidade — que
é de uma região próxima aqui que é Manica, uma província próxima — e eu vivo na
Beira, capital da província de onde são originários meus pais. E custa, muitas vezes,
quando tenho que me apresentar, quando vou a Maputo, e me perguntam de onde eu sou
natural; eu digo que sou da Manica, mas saído da Beira, onde eu cresci, onde tem toda a
história e cultura que recebi porque não sei muito desse outro espaço que está dentro do
meu bilhete de identidade. E isso, posto, reforço a discussão a conversa que se conhece
do livro Identidades assassinas, do Amin Maalouf, quando fica-se a discutir quando lhe
perguntam qual a identidade que ele tinha no fundo e ele diz que era do Líbano e era
francês ao mesmo tempo, que tinha crescido numa região de muçulmanos mas que os
pais e os parentes eram católicos, que no final do dia nós somos a soma de tudo isso e
essa questão de identidade que muitas vezes nos pega, e talvez a identidade seja o
somatório de tudo isso.
Com isso quero comentar que essa discussão que fazemos da lusofonia, que
fazemos da colonização, condenando ou não condenando os usos dessas expressões e
palavras, mas que no final do dia nos beneficiam como pessoas porque talvez eu como
Dany sou resultado dessas pequenas nações que Luciana comentou: tsonga, meu pai é
sena, mas estou numa região onde está um povo que fala outra língua como o chuabo ou
como changana, escuto músicas que — nossa cultura, por exemplo, temos uma coisa
interessante em Moçambique que a música que domina e que é escutada em
Moçambique, na sua maioria é cantada numa língua nacional que não é a língua de toda
gente, é a língua de um grupo que controla os meios de comunicações social, as
televisões — todo mundo escuta mesmo que não seja desse lugar que eu vou mencionar,
que é capital moçambicana, onde se fala changana, todo mundo quando vai para esse
lugar vai aprender essa língua para cantar porque está ali a porta do sucesso, cantar
nessa língua para que se possa ter sucesso e parece que se tornou uma língua nacional.
Então, dessa colonização a vantagem que se aprende, agora falou-se da literatura que há
muitos livros brasileiros que entraram em Moçambique e fizeram escritores que fizeram
Moçambique, e hoje há textos moçambicanos que estão dentro do campo brasileiro e,
eventualmente, podem estar a ajudar na construção da literatura brasileira. Ainda
lembro-me de um dos encontros que tive quando estive no Brasil a fazer um
lançamento, a sede que tinha parte da população brasileira em ouvir histórias de África
porque acha que uma parte da história do Brasil está perdida em África, que é preciso
recuperar essa história para que haja uma espécie de reencontro e reconciliação com a
história dessas pessoas que forçadamente foram tiradas desse espaço que é a África,
para o Brasil, e que temos que voltar a essas origens para ter parte dessas histórias.
Então no final do dia eu gosto, se temos que usar a expressão da Patrícia, de rirmos
dessas construções, desses “ismos”, dessas narrativas de superioridade ou de
inferioridade que são construídas e que, no final do dia, é apenas mesmo uma questão
de representação ou de um grupo que quer se sobrepor ao outro. E, sobre isso, há coisas
mesmo leves que existem. Há dias estive a acompanhar a entrevista da escritora Paulina
Chiziane quando sempre a caracterizavam, diziam que ela era a primeira romancista
moçambicana, ou era a primeira mulher a escrever um romance em Moçambique e ela,
curiosamente, recusou esse rótulo. E uma das vezes quando conversei sobre as palavras
que ela deu numa entrevista em um jornal de Macau, é que se ela aceitasse ser
romancista significaria que ela precisa escrever seguindo os padrões das pessoas que
inventaram o gênero romance, ou as regras que existem para o gênero romance, para ser
classificado como tal e ver-se se se tratava de um romance bem feito ou mal feito; e ela
queria ser apenas isso, queria ser a contadora de histórias porque é o que é facilmente
entendido entre os seus, entre as pessoas que contam histórias, talvez os griot como
chamam na África ocidental, mas que existe uma forma de classificar esse tipo de autor,
esses escritores que não seja do romance que é coisa própria da escola, das
universidades e das pessoas que seguiram um conjunto de regras para que assim fosse
esse gênero. No final do dia eu gosto muito dessa intervenção, e eu vou citar sempre
essa intervenção da Patrícia, de nos rirmos disso, de pensar sobre essas coisas que nós
fomos criados, se são verdades ou não, e repensar o nosso meio e essa ambiguidade que
está dentro de nós.
L.S.: O Julio também é bom nisso de reunir identidades porque é o sujeito que é
nascido em Minas, mas que foi se fabricando meio que pelo Brasil todo e sai, e volta, e
tem essa coisa que tá sempre colocando línguas diferentes em contato. É o Bandeira
com a poesia da Claridade. O Guimarães com o Luandino. Você tem esse trânsito entre
essas explorações de uma língua que escape ao rótulo único. Como é que você então,
que já tinha começado a jogar a isca do acordo ortográfico, agora vem o Dany dizer que
teve que ser traduzido para ser publicado aqui, então como é que você lida com esse
tema: vamos rasurar, vamos jogar fora a lusofonia, o que é que a gente põe no lugar? A
gente põe alguma coisa? A gente faz o quê?
Julio Machado: O termo também não emprego, como a Patrícia, até porque essa
questão dos vários grupos culturais, das várias línguas, ela cria uma incongruência do
próprio conceito linguístico porque “lusofonia”, o fono é a ideia de fala, então, a
princípio, só poderia participar disso os grupos que têm efetivamente o português como
língua de fala — o que exclui Cabo Verde, exclui a Guiné-Bissau, exclui São Tomé e
Príncipe, que tem o português como segunda língua, e exclui grande parte de
Moçambique e Angola dependendo da origem e pertencimento do sujeito. Mas acho
que, primeiro, a gente tem que conservar essa comunidade no que ela tem de
interessante, que é o que faz com que a gente esteja aqui hoje reunido. A história existiu,
não é possível negar a história. Tudo isso existiu, tudo isso que foi violento, tudo isso
também nos aproximou. Eu acho que a questão é como preservar justamente essa
multiplicidade porque, em geral, esses conceitos têm uma lógica de homogeneização
onde todos têm a mesma língua ou você tem um eixo que hierarquiza essas línguas
então todo mundo tem que se polarizar por essa hierarquia e não é assim. Morei em
cinco estados diferentes no Brasil, e isso já é uma experiência, mesmo o Brasil
isoladamente, essa lógica já não funciona. Morei no interior no Amazonas na tríplice
fronteira Brasil-Peru-Colômbia e é outro mundo, são outras línguas, ou seja, você tem
metade da população de línguas indígenas — principalmente da língua ticuna — então é
um outro mundo. O grande risco, não diria exatamente do termo, porque trocar o
significante e manter o significado não resolve. É esse risco da homogeneização, porque
se você tem uma espinha dorsal que vai orientar as coisas, quem tem o controle do
poder político e econômico é quem vai controlar aquilo que é a baliza que essa suposta
homogeneização deve seguir. E é um caso curioso, o caso da língua de Camões é que eu
quando encontro um português mais à direita e que começa com essas conversas eu já
começo a falar “você tem uma série de elementos linguísticos n’Os Lusíadas que
encaixam no português falado no Brasil, mas não encaixam mais, hoje, no português
falado em Portugal”, porque a prosódia lá mudou mais que no Brasil, eles perderam
sons vocálicos que nós não perdemos. Você pega determinados versos d’Os Lusíadas e
ele é decassílabo heróico se você pronunciar à brasileira porque se pronunciar à
portuguesa ele já não é mais nem decassílabo, ou seja, é meio curioso isso. O uso dos
gerúndios, por exemplo, o uso dos gerúndios n’Os lusíadas é muito mais próximo do
português brasileiro de hoje que do português europeu; a própria colocação pronominal,
está cheio de próclise n’Os Lusíadas que um português desses à direita vai dizer “olha,
você não sabe usar a língua portuguesa”, então vá ensinar a Camões porque ele estava
usando errado.
Mas é um pouco isso. Acho que a ideia de uma comunidade que nos une apesar
de tudo o que foi a história é muito interessante, mas sem perder de vista que é preciso
discutir aquilo que foi violento e que continua sendo violento na produção discursiva
dentro dessa história. E, no caso do Brasil, especificamente, essa não-discussão das
coisas vai aparecendo pela mitigação até mesmo da linguagem, por exemplo, uma das
partes que eu gosto muito no livro da Patrícia que é “Mapa do monopólio”, o jogo de
tabuleiro, no Brasil eles nem conseguiram dar esse nome, aqui se chama “Banco
imobiliário” porque a ideia de monopólio — que é a ideia sincera do jogo, porque ganha
quem ficar com tudo — no caso do “Kit” todos os territórios são meus, tudo é meu; no
Brasil esse nome foi excluído por ser muito agressivo. Aqui a gente nunca teve um
processo revolucionário de nenhuma ordem, pensando nessa ideia dos países africanos
onde realmente houve guerras violentas, ou mesmo nos nossos vizinhos da América
Latina, a gente nunca teve um processo revolucionário violento de nenhuma ordem; a
nossa independência foi um acordo entre pai e filho pra que a casa de Bragança
continuasse governando os dois lados do Atlântico. O problema brasileiro tá muito
ligado a isso: a gente coloca embaixo do tapete qualquer espécie de discussão, de
mitigação, numa sociedade que é muito brutalmente violenta.
L.S.: Já que com a questão do acordo estamos em acordo, e que com a ideia de
matar a palavra “lusofonia” estamos também em acordo... assim, podemos rasurar de
vez o nome do colóquio que deu origem a essa mesa (e que agora se transforma em
texto escrito) já que a ideia era realmente reciclar a coisa. Talvez até não estar no
auditório oficial do Real Gabinete Português de Leitura torne mais fácil essa
reciclagem. A gente já não tem mais só a ideia de uma ponte construída entre Portugal-
Brasil, a nossa ponte se bifurca tantas vezes. Quem sabe daqui a dez anos, quando
fizermos uma nova reciclagem dessa mesa, a gente já inclua literaturas indígenas e
outras mais.
REFERÊNCIAS: