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Aristóteles Émile Boutroux

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Aristóteles

Émile Boutroux
Introdução e notas de Olavo de Carvalho
1ª edição — janeiro de 2024 — CEDET
Título original: Aristote,
em Etudes d’histoire de la philosophie (3e édition). Paris: Félix
Alcan, 1908.
Os direitos desta edição pertencem ao
CEDET — Centro de Desenvolvimento Pro ssional e Tecnológico
Av. Comendador Aladino Selmi, 4630,
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e-mail: cedetusa@cedet.com.br

Editor:
Felipe Denardi
Tradução:
Christian Lesage
Revisão:
Vitório Armelin
Preparação de texto:
Miguel Mallet
Diagramação:
Virgínia Morais

Capa:
Lucas Gabriel Goes de Macêdo
Revisão de Provas:
Flávia Regina eodoro
Andressa Gotierra da Silva
Telma Regina Matheus
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo

FICHA CATALOGRÁFICA

Boutroux, Émile (1845–1921).


Aristóteles; Émile Boutroux; tradução de Christian Lesage;
introdução e notas de Olavo de Carvalho
– Campinas, SP: Vide Editorial, 2024.

ISBN: 978-85-9507-209-1
1. Filoso a. 2. Filoso a de Aristóteles.
I. Autor. II. Título.
CDD – 100 / 185

ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO


1. Aristóteles – 100
2. Filoso a de Aristóteles – 185

VIDE Editorial — www.videeditorial.com.br


Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por
qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro
meio de reprodução, sem permissão expressa do editor e do detentor dos direitos autorais.
Sumário
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O texto que se vai ler foi redigido inicialmente por Émile Boutroux
como verbete para a Grande Encyclopédie (Paris, 1886) e depois
incluído pelo autor nos seus Études d’Histoire de la Philosophie
(1897).1 Com seus cento e tantos anos de idade, ainda é uma das
melhores introduções ao estudo da loso a de Aristóteles, e, fora um
ou outro ponto corrigido pela pesquisa mais recente — de que dou
ciência nas notas de rodapé —, di cilmente se encontrará um guia
mais seguro para orientar os primeiros passos do estudante que
ingressa no assunto.2

A causa dessa vitalidade reside não só no extenso conhecimento que


o autor tinha das obras do Estagirita e de seus comentadores antigos e
modernos, porém, muito mais que isso, na conaturalidade entre seu
espírito e o do mestre que ele celebra como encarnação suprema do
gênio grego.

Excetuando-se talvez F. W. von Schelling e Félix Ravaisson, que o


antecederam sob mais de um aspecto, ninguém no século  estava
mais dotado para apreender a intimidade do pensamento de
Aristóteles do que o autor de De la Contingence des Lois de la Nature
(1874), título que, para quem sabe do que se trata, já é toda uma
declaração de aristotelismo.

Para captar o sentido dessa a nidade, é preciso compreender o que


Boutroux queria dizer com a “contingência das leis da natureza”.
A história das concepções modernas sobre o mundo físico pode-se
dividir, grosso modo, em duas épocas: o império do mecanicismo e a
era da física indeterminista. O primeiro origina-se no século , com
Galileu, alcançando seu apogeu na centúria seguinte com Newton. A
segunda esboça-se no século , com Leibniz, mas não alcança sua
plena expressão senão dois séculos depois, com Max Planck e Werner
Heisenberg. O confronto desses dois estilos de pensar a natureza
con rma o dito de Arthur O. Lovejoy segundo o qual toda a história
intelectual do Ocidente é apenas um conjunto de notas de rodapé a
Platão e Aristóteles. Pois, no sentido mais rigoroso dos termos, o
mecanicismo clássico é platônico e o indeterminismo moderno é
aristotélico.

Platônico quer dizer, até certo ponto, pitagórico. A noção pitagórica


de que Deus escreve o livro da natureza em caracteres matemáticos,
longo tempo abandonada no Ocidente, foi vigorosamente retomada
pela ciência renascentista, dando surgimento à concepção mecanicista
de que, uma vez apreendidas as equações fundamentais do universo,
tudo o mais se poderia conhecer por dedução matemática.

Nada mais distante da verdade histórica do que a crença popular de


que a nova ciência se voltou para a observação do mundo natural,
negligenciada pelos escolásticos. A primeira objeção que estes
levantaram contra a lei galileana da inércia foi, precisamente, que ela
se opunha aos fatos observados. Galileu inventou, isto sim, o
experimento matematizado, o que é o mesmo que dizer: o
experimento idealizado, que não corresponde a nenhum fato
particular da experiência, mas sim à “fórmula” matemática por trás
dos fatos. A ciência assim concebida não lidava com a natureza dada
na experiência, mas com estruturas gerais que, governando
invisivelmente os acontecimentos naturais, só são apreensíveis sob a
forma de relações matemáticas. É patente a inspiração platônica deste
recuo da mente desde a multiplicidade sensível à unidade de umas
quantas fórmulas.
Matematização quer dizer, desde logo, simpli cação. A antiga ciência
aristotélica também buscava a simpli cação, mas sempre pelo método
de remontar dos seres individuais às suas espécies por meio da
abstração e da classi cação, permanecendo sempre estreitamente
referida aos dados sensíveis dos quais havia partido. Na ciência
renascentista, o que se busca já não é a “essência” — o conteúdo
intelectualmente apreensível por trás dos dados sensíveis —, mas
apenas a fórmula, a equação que relaciona uns aos outros esses dados
sensíveis, independentemente de qual seja a “natureza” dos seres
considerados. Em ambos os casos a mente procedia por abstração: mas
uma coisa é reduzir vários entes à unidade de seus traços comuns,
suprimindo as variações acidentais, outra coisa é reduzi-los a suas
medidas, proporções e relações. A descrição cientí ca do mundo
perde assim em alcance ontológico e força explicativa o que ganha em
precisão matemática e aplicabilidade técnica. Todos os dados não
redutíveis ao modelo matemático tinham de ser excluídos da área de
investigação, em benefício da coerência do sistema — uma perda que,
de início, não pareceu grave, porque as relações matemáticas obtidas
podiam, em seguida, ser aplicadas de volta à natureza sensível,
demonstrando-se exatas. A busca da exatidão vai então cada vez mais
substituindo a busca do quid, da essência, até o ponto em que se torna
possível produzir uma descrição assombrosamente exata e e caz de
algo que não se tem a menor ideia do que seja.

É absolutamente errado dizer que a nova ciência “derrubou” ou


“contestou” o que quer que fosse da ciência antiga. Ela limitou-se a
mudar de assunto, investigando em outras direções e respondendo a
novas perguntas que jamais tinham interessado à ciência antiga.
Fortemente in uenciada por Aristóteles, esta última não acreditava
muito na e cácia do método matemático no domínio das ciências da
natureza. As realidades matemáticas, segundo Aristóteles, são
essencialmente xas e imutáveis, não podendo por isto corresponder
perfeitamente aos fatos da natureza, que é, por de nição, o reino da
mutação — do nascimento e da deterioração (γενεσις και φτορας,
guênesis kai orás). Uma ciência da natureza que procedesse
principalmente por medições e comparações matemáticas chegaria, no
máximo, a leis de probabilidade razoável, objeto da dialética, muito
abaixo do ideal da certeza demonstrativa (αποδειζις, apodêixis), que
era o objetivo supremo da ciência aristotélica.

Mas, no primeiro momento, nenhum dos próceres da nova escola


pensou nisso. Os sucessos da física matematizada eram tão
estrondosos que qualquer objeção aristotélica assumia o ar de uma
negação insensata do fato consumado. Toda a mitologia moderna que
contrasta a imagem de uma ciência medieval puramente lógico-
verbalista com a da nova ciência voltada para “a observação da
natureza” — mitologia que ainda é transmitida nas escolas, a despeito
de já mil vezes desmoralizada pela pesquisa histórica — nasce,
paradoxalmente, dos sucessos obtidos pela aplicação de modelos
matemáticos que só sob aspectos muito determinados e limitados
correspondiam à realidade observada. Para fazer uma ideia de quanto
a imagem estereotipada da transição renascentista chegou a dominar
as consciências, basta ver que até um homem da autoridade de Albert
Einstein chega a proclamar que Galileu libertou a ciência física de um
jugo aristotélico de mais de um milênio.3 Ora, na época de Galileu,
não fazia nem três séculos que as concepções físicas de Aristóteles
tinham reingressado em circulação no Ocidente, por intermédio de
Sto. Alberto Magno, suscitando, em vez de aprovação geral, uma geral
hostilidade que só aos poucos foi vencida. Por outro lado, é fato que o
aristotelismo dos escolásticos era de tipo muito atenuado pela
mediação da doutrina cristã, e que um aristotelismo stricto sensu só
vem a surgir, por ironia, justamente no renascentismo italiano, com
Pietro Pomponazzi — isto é, no período mesmo no qual a cultura de
almanaque transmitida nas escolas e manuais populares data o m da
hegemonia aristotélica no pensamento ocidental.

Qualquer que fosse o caso, o sucesso do modelo matemático,


ampliado pelos desenvolvimentos extraordinários que lhe deu
Newton, conferiu à nova ciência a autoridade de uma nova revelação
sinaítica. De lado a lado, o continente europeu é varrido por uma onda
de matematismo, que abrange desde as discussões teológicas até a
jardinagem: Descartes aposta na conversão dos in éis pela
argumentação more geometrico, enquanto nos jardins de Versalhes a
vegetação rebelde é disciplinada até reduzir-se ao formato de um
tabuleiro de xadrez. Deslumbrada pela claridade das equações que
aparentemente tudo explicavam (embora sua força descritiva viesse
justamente de haverem desistido de explicar o que quer que fosse),
ainda no século seguinte — que é o da efetiva propagação europeia do
mecanicismo, por meio da obra de Voltaire Éléments de la Philosophie
de Newton (1738) — a exaltação dos entusiastas chega a ver na nova
ciência um novo at lux, o retorno ao momento primordial da criação:
“God said: ‘Let Newton be!’ — and all was light”.4

Uma das poucas vozes discordantes é Leibniz. Matemático ele


próprio, e dos maiores, mas igualmente versado na loso a escolástica
(principalmente portuguesa), que os novos lósofos haviam
abandonado sem exame, ele adverte que nem toda a natureza do corpo
consiste somente na extensão, isto é, em grandeza, gura e
movimento, mas que importa necessariamente reconhecer nela algo
que tenha relação com as almas e que se designa habitualmente por
forma substancial [...]. Pode-se até demonstrar que a noção da
grandeza, da gura e do movimento não é distinta como se imagina, e
que encerra algo de imaginário e de relativo às nossas percepções.5

A ousadia desse parágrafo era tanta que historicamente seu efeito


caria retido por mais dois séculos. A época que acabava de encontrar
mais um argumento para o mecanicismo na distinção de Bacon entre
as qualidades primárias e secundárias dos objetos, isto é, entre a
grandeza e as qualidades sensíveis, acreditando piamente na
objetividade da primeira e na subjetividade das últimas, não podia
mesmo engolir, da noite para o dia, a escandalosa proclamação de que
a grandeza “tem algo de imaginário” e de que aquilo que há de real e
objetivo nos seres é o seu individual e irredutível quid — a abominável
“forma substancial” dos escolásticos.

Assim, cou o dito pelo não dito. A “Época das Luzes” faz-se de
avestruz, despede-se de Leibniz com as chacotas de Voltaire (que o
caricatura sob o personagem do Dr. Pangloss) e deixa as objeções para
depois, sem imaginar que renasceriam com força centuplicada no
século .

Leibniz, no entanto, já prevê que, pelo caminho matematizante, as


ciências iriam acabar desistindo de toda certeza e tendo de se
contentar com as probabilidades razoáveis de que falava o velho
Aristóteles. Retribuindo o mal com o bem, ele se põe a pesquisar a
matematização das probabilidades, terminando por descobrir o
cálculo in nitesimal, incumbido de determinar a partir de que ponto
uma diferença pequena se torna irrelevante, e construindo assim a
única esperança de que uma física reduzida à probabilidade dialética
possa conservar ainda o estatuto de ciência rigorosa. A utilidade dos
estudos de Leibniz para a ciência do século  é incomensurável.

Mas, antes que o legado leibniziano pudesse ser retomado, foi


necessária uma longa batalha para abalar e en m destruir as falsas
certezas em que se fundavam as ambições totalitárias do mecanicismo,
abrindo assim a possibilidade de um retorno à modéstia do
probabilismo aristotélico-leibniziano.

Nessa luta, a contribuição de Émile Boutroux é sem dúvida de um


valor que nem sempre os historiadores lhe têm sabido reconhecer. De
la Contingence des Lois de la Nature é, simplesmente, a contestação
radical das “imutáveis leis matemáticas da natureza” em que o
mecanicismo havia apostado o destino da humanidade europeia.

A argumentação de Boutroux parte de uma base kantiana. Nas


matemáticas reina a absoluta necessidade lógica, mas os juízos
matemáticos são puramente analíticos, no sentido kantiano, isto é,
suas conclusões já estão contidas em suas premissas. Assim, por mais
que busquemos adaptar as realidades do mundo sensível a um padrão
de exatidão matemática, jamais o conseguiremos por completo,
porque, de um lado, a ciência da natureza não pode contentar-se com
puros juízos analíticos e deve, ao contrário, produzir juízos sintéticos
obtidos da experiência; por outro lado, esses juízos sintéticos não terão
outro fundamento senão a indução, que não poderá jamais obter
senão certezas aproximativas. Os juízos produzidos pela ciência da
natureza não serão nunca juízos categóricos, mas juízos contingentes.

Se Boutroux tivesse parado aí, teria apenas repetido Kant,


assinalando um limite constitutivo do nosso conhecimento
experimental. Mas, prossegue ele, a contingência não está só nos juízos
cientí cos que produzimos sobre a natureza: está na natureza mesma.
A diferença essencial entre as entidades matemáticas e os seres do
mundo físico não re ete apenas alguma imperfeição da nossa mente,
mas a natureza mesma destes e daquelas. Se não conseguimos reduzir
todo o cosmos a umas quantas equações das quais tudo o mais se
pudesse deduzir matematicamente, é simplesmente porque os seres da
natureza não são entidades matemáticas, formais, imutáveis, alheias ao
tempo e ao espaço, mas, ao contrário, sua forma mesma de existência é
a mudança no espaço e no tempo. Na natureza, ao contrário do que
acontece no domínio lógico formal, podem acontecer coisas novas,
imprevistas. A necessidade natural existe, sim, mas é uma necessidade
condicional e relativa. Mais ainda, não é um só e mesmo padrão de
necessidade relativa que impera em todo o universo, mas este se divide
em estratos, que vão subindo da necessidade mais imperiosa até a
quase completa indeterminação, não vigorando em parte alguma nem
o absoluto determinismo nem o acaso completo. Daí que, sendo
impossível alcançar uma perfeita exatidão matemática nas leis gerais
da natureza, a matematização da ciência natural acabe tomando a
forma de um raciocínio de aproximação probabilística.

O contingencialismo de Boutroux, se por um lado revigora as críticas


de Aristóteles ao método matemático na loso a natural,6 por outro
enuncia da maneira mais enfática o programa que mais tarde viria a
ser realizado pelo indeterminismo de Planck e Heisenberg.

O mais interessante, no caso, é que o próprio Aristóteles, ao enfatizar


as limitações do método matemático em física, não apenas se abstém
de negar toda utilidade a esse método, mas ele próprio lança as bases
para o estudo matemático do movimento, indo, portanto, muito além
do que, na época renascentista, puderam perceber tanto seus
seguidores quanto seus detratores. Esta observação, posta em relevo
bem recentemente,7 mostra que o contingencialismo das leis da
natureza estava bem mais próximo do espírito do aristotelismo do que
talvez o próprio Boutroux o houvesse percebido.

É evidente que a dívida de Boutroux não era só com Aristóteles. Ele


aprendeu muito com a teoria do hábito enunciada pelo seu mestre
Félix Ravaisson, ao qual De la Contingence des Lois de la Nature é
dedicado. Segundo Ravaisson, a capacidade de adquirir hábitos é uma
propriedade geral da natureza. Ravaisson de ne o hábito como a
maneira de ser geral e permanente, o estado de uma existência
considerada quer no conjunto dos seus elementos, quer na sucessão
das suas épocas.

Hábito adquirido é aquele que é consequência de uma mudança.

Mas o que se entende especi camente por hábito, e que constitui o


assunto deste trabalho, não é somente o hábito adquirido, mas o
hábito que, em decorrência de uma mudança, é contraído em relação
a essa mudança mesma que lhe deu nascimento.

Ora, se o hábito, uma vez adquirido, é uma maneira de ser geral,


permanente, e se a mudança é passageira, então o hábito subsiste para
além da mudança da qual é resultado. Ademais, se ele não se refere,
enquanto hábito e por sua essência mesma, senão à mudança que o
engendrou, o hábito subsiste por uma mudança que já não é e que
não é ainda: por uma mudança possível;

— eis o sinal mesmo pelo qual deve ser reconhecido.8

No entender de Ravaisson e Boutroux, as proclamadas “leis” da


natureza são em verdade hábitos, que, embora possam permanecer
estáveis por um tempo impensavelmente longo, nada têm de eterno e
imutável.
O contingencialismo não antecipou apenas a física de Planck e
Heisenberg. Ele também resolveu, antecipadamente, todas as
contradições em que viria a debater-se, em seus confrontos com o
mecanicismo das ciências físicas, a escola alemã das “ciências do
espírito” (Geisteswissenschaen). O pressuposto básico de que parte
essa escola é a distinção estabelecida por Wilhelm Dilthey — inspirado
em Windelband e Rickert — entre “compreensão” e “explicação”, a que
corresponde outra, entre “sentido” e “causa”. Os fatos da natureza,
segundo Dilthey, explicam-se pelas suas causas; os fatos da história e
da cultura compreendem-se pelo seu sentido. Esta radical oposição de
métodos entre ciências da natureza e da cultura foi logo em seguida
relativizada por Max Weber, ao alegar que, embora sem aspirar a
formular leis causais de ordem geral, as ciências da cultura não podem
abdicar totalmente da explicação causal nem do instrumental
matemático.

Esta objeção de Weber foi amplamente aceita pelos cientistas sociais,


mas pouquíssimos dentre eles tiveram a ousadia de levá-la às suas
últimas consequências. Que consequências? Simplesmente isto: se o
método causal e matemático não pode ser excluído das ciências
humanas, quem garante que, reciprocamente, o método compreensivo
não possa ser aplicado às ciências da natureza? Falar num sentido dos
fatos da natureza é, para o mecanicista de estrita observância,
anátema. A natureza tal como enfocada pela ciência desde Galileu é
pura coisa, objetividade muda. Toda tentativa de captar nos fatos do
universo um sentido, um valor, é pura “criação cultural”, para não
dizer antropomor smo primitivo. Mas será mesmo assim? O combate
à concepção coisista da natureza começou, no nosso século, da
maneira mais modesta, em círculos de marginais e excluídos da
comunidade acadêmica. O primeiro deles foi René Guénon. Em O
reino da quantidade e os sinais dos tempos (1945), ele atacou, com
base na cosmologia vedantina, a redução da ciência natural aos
aspectos quantitativos, que separa arti cialmente mundo natural e
mundo humano, e exigiu um retorno a antigas cosmologias que
integravam ambos numa visão da natureza como manifestação visível
de realidades espirituais. Titus Burckhardt, um continuador de
Guénon, assim resume a crítica do mestre:

A mais mínima percepção, o fato de que apreendamos com os


sentidos um objeto qualquer, de que o incorporemos à rede de
imagens interiores e de que o espírito o reconheça como verdadeiro e
real, constitui um processo indivisível que demonstra como, neste
mundo, condições de tipo muito variado se inserem umas nas outras,
umas em modo espaço-temporal, outras em modo temporal não
espacial e outras, ainda, em modo supraespacial e supratemporal.
Disto resulta que a “realidade” não consiste em meras “coisas”, mas
representa uma ordem de inconcebível sutileza e multiplicidade de
níveis. Todos os povos que não estejam deformados pela
modernidade sabem disso. Ter consciência da multíplice gradação
interna da existência faz parte da experiência primordial humana. Só
em virtude de uma evolução muito peculiar do pensamento foi
possível chegar ao ponto de aceitar uma ciência baseada
exclusivamente em dados numéricos como explicação satisfatória do
cosmos.9

Embora Guénon fosse ainda mais fundo na crítica, demonstrando,


em Les Principes du Calcul In nitésimal (1952), que a ciência
quantitativista acabara perdendo a noção mesma do que era
quantidade e entrando com isto nas mais grotescas contradições, a
comunidade acadêmica fez questão estrita de ignorá-lo.

Mas, aos poucos, críticas semelhantes começaram a brotar de dentro


do próprio grêmio. Edmund Husserl, talvez o lósofo de maior
in uência nos círculos acadêmicos europeus de sua época, mostra, em
A crise das ciências europeias, que a matematização da imagem da
natureza importa em ignorar diferenças decisivas entre estratos da
realidade. Uns anos depois, a antropóloga Mary Douglas contesta a
noção de que todos os signi cados entrevistos na natureza por
civilizações antigas sejam meras “criações culturais” arbitrárias, sem
conexão com propriedades objetivas da natureza: sem apoio em dados
objetivos da natureza, nenhum simbolismo é possível. O simbolismo
natural não apenas existe mas é a condição mesma para a existência
das culturas.10 O ataque se radicaliza quando Seyyed Hossein Nasr,
laureado historiador das ciências, lança sobre a concepção
quantitativista da natureza a culpa pelo desastre ecológico, que, a essa
altura, começa a preocupar os meios cientí cos.11 Quase ao mesmo
tempo, Raymond Ruyer, biólogo eminente, informa ao mundo que o
conjunto de ideias cosmológicas informalmente compartilhado pela
elite cientí ca norte-americana não só se opõe radicalmente a todo
cienti cismo mecanicista mas forma, de maneira quase espontânea, as
bases de uma visão gnóstica do universo.12 E uma das bases dessa
gnose é justamente a constatação de que todo materialismo
mecanicista toma o mundo pelo avesso:

O materialismo consiste em crer que “tudo é objeto”, “tudo é exterior”,


“tudo é coisa”. Ele toma por pressuposto o caráter “super cial” da
percepção visual e da consciência cientí ca. Ele toma como “lado
direito” o avesso dos seres.13

Em direta oposição a essa visão das coisas, os gnósticos de Princeton


insistiam em que a forma própria de existência de tudo quanto existe é
ser algo em si mesmo, é possuir um quid, uma consistência interna,
uma identidade e, no m das contas, quase um ego.

De um passo, a ciência do século  não apenas voltava às formas


substanciais dos escolásticos e de Leibniz mas também demolia o
muro entre ciências da natureza e ciências da cultura, entre
“explicação” e “compreensão”. Na perspectiva de Ruyer, já não seria
descabido a um físico ou a um biólogo indagar, para além das causas e
processos, o sentido de um fato natural. Estava assim aberta a via para
a reconstituição da ciência compreensiva da natureza reivindicada por
Guénon, Burckhardt e Nasr. E um dos instrumentos que Ruyer
apontava como mais promissores nesse sentido era justamente uma
disciplina cientí ca de criação recente que até então, aplicada
unilateralmente ao domínio das ciências humanas, parecera destinada
a fortalecer os preconceitos matematizantes: a teoria da informação.
Nas ciências da natureza, ela daria o resultado inverso: uma vez
enfocado qualquer fenômeno natural como um processo de
transmissão e recepção de informações, a consideração de um sentido
se tornava não apenas uma possibilidade, mas uma necessidade.

Não é preciso exagerar, na história da progressiva demolição da fé


mecanicista, o papel que depois de Ruyer desempenharam omas
Kuhn, com a teoria das “revoluções cientí cas”, e Michel Foucault, com
a alegação de que as epistemes — sistemas de chaves básicas de todo o
pensamento cientí co de uma época — se sucedem de maneira
arbitrária. A irracionalidade da História — até mesmo da História das
ciências — nada prova contra a razão. Mas di cilmente a crença na
mecanicidade matemática do universo poderia resistir a um abalo
como o que lhe deu o biólogo Rupert Sheldrake com sua teoria da
ressonância mór ca:

A Natureza é essencialmente habitual. Entre os gregos desenvolveu-se


a ideia de que o mundo é governado por princípios invisíveis, não
materiais, que transcendem espaço e tempo. Os pitagóricos
conceberam-nos como números e relações numéricas; os platônicos,
como Ideias ou Formas intemporais. Estes pressupostos erigiram-se
em fundamentos da ciência moderna, e do século  em diante os
princípios imateriais governantes do universo material foram
concebidos como leis imutáveis moldadas por um Deus matemático.

Até a década de 60, essa velha ideia parecia mais ou menos


inquestionável; o universo mesmo era visto como uma máquina
eterna, e portanto o que poderia ser mais natural do que o fato de leis
o governarem? Mas, com a revolução cosmológica causada pela teoria
do Big Bang, o cosmos tornou-se mais parecido com um organismo
em desenvolvimento do que com uma máquina eterna. Ele parece ter
nascido uns 15 milhões de anos atrás, e ter-se desenvolvido e crescido
desde então. A totalidade da natureza evoluiu; um dia não houve
átomos, nem moléculas, nem estrelas ou planetas, nem cristais ou
células viventes. Todos esses sistemas desenvolveram-se no curso do
tempo. Assim, por que continuaríamos a pressupor que num
universo em evolução as leis que os governam foram xadas de
antemão, antes até que o universo viesse a existir?

Por que não explorar a possibilidade de que as regularidades da


natureza tenham efetivamente evoluído? Talvez elas dependam de
hábitos que se desenvolvem organicamente dentro do universo, antes
que de leis impostas por uma mente matemática preexistente.14

A ideia de que as regularidades da natureza se assemelham antes a


hábitos do que a leis eternas foi proposta por Sheldrake no livro A
New Science of Life: e Hypothesis of Formative Causation [Uma
nova ciência da vida: a hipótese da causalidade formativa], em 1981, e
desenvolvida em e Presence of the Past: Morphic Resonance and the
Habits of Nature [A presença do passado: a ressonância mór ca e os
hábitos da natureza, 1988]:

Essa hipótese postula que os sistemas auto-organizantes, de todos os


níveis de complexidade — como átomos, moléculas, cristais, células,
organismos, sociedades, planetas e galáxias —, são estruturados por
campos especí cos chamados campos mór cos, e que estes campos
contêm uma espécie de memória coletiva derivada de coisas
anteriores da sua mesma espécie. Assim, cada cristal de aspirina, por
exemplo, ou cada pé de carvalho, é moldado por um campo que é ele
mesmo moldado pela in uência cumulativa dos cristais de aspirina e
pés de carvalho que os antecederam. A in uência dos sistemas
similares anteriores, agindo através ou por meio do espaço e do
tempo, ocorre pelo processo da ressonância mór ca, que envolve
uma ação do semelhante sobre o semelhante.

Paracelso ou Agrippa não diriam isso melhor. A teoria da ressonância


traz de volta, precisamente, as velhas noções da analogia, das
simpatias, das correspondências, en m as similitudes, tão decisivas na
loso a antiga e medieval da natureza, que a episteme renascentista
acreditava haver banido para sempre15 e que, historicamente falando,
só tinham sobrevivido, a duras penas, no interior do gueto esotérico
perpetuamente assediado pela inquisição cientí ca moderna.
A ciência deste m de século pode não estar ainda totalmente livre da
contaminação mecanicista, com o seu cortejo de sequelas totalitárias.
Mas a ampliação do horizonte das perguntas possíveis foi tal, que hoje
em dia nenhum lósofo ou cientista pode, sem incorrer em pecado de
dogmatismo que não passará despercebido a ninguém, proclamar a
existência de um abismo intransponível entre a ciência moderna e a
ciência antiga e medieval, nem muito menos instalar-se na primeira
com a presunção cega com que, ainda em 1932, um Léon Brunschvicg,
lendo os sábios do passado, se sentia um homem adulto a ouvir
histórias de crianças.16

Mas, no século passado — no século de Darwin e Spencer, de


Haeckel e Comte —, essa presunção imperava por toda parte, e o
establishment acadêmico fazia coro quase unânime à profecia de
Renan:

A ciência não terá destruído os sonhos do passado senão para lhes


pôr no lugar uma realidade mil vezes superior.17

Desa ar essa certeza era expor-se à chacota, ao boicote, ao


isolamento. E o que mais impressiona, na loso a francesa do século
, é a vigorosa atualidade que apresenta, para nós de hoje, o grupo
de pensadores que, dentro da própria cidadela acadêmica, ousaram
opor-se a esse formidável consenso. Ler hoje Renan ou Comte, ou
qualquer dos outros profetas do império cientí co-materialista, é
sentir o cheiro inconfundível da morte e do passado. Ler Ravaisson,
Ollé-Laprune, Lachelier, mas principalmente Boutroux, é entrar numa
atmosfera que é nossa e, em certos momentos, é conversar com
alguém que nos fala, por antecipação, do mesmo tipo de ciência que
hoje salta do século  para o terceiro milênio.

Curiosamente, muito do pensamento desses precursores permanece


desconhecido daqueles que, por descendência direta ou até mesmo
ressonância mór ca, expõem hoje ideias análogas às suas. No
parágrafo de Sheldrake acima citado, ca bem claro que ele ignora por
completo que a doutrina dos hábitos da natureza já fora exposta, com
todas as letras, com mais de cem anos de antecedência, por Émile
Boutroux, partindo de uma ideia de seu mestre Félix Ravaisson.

Nem Ravaisson nem Boutroux jamais esconderam o que suas ideias


deviam a Schelling, a Leibniz e sobretudo a Aristóteles. Idêntica dívida
têm hoje, sabendo-o ou não, os homens de ciência que se abrem ao
estudo dos imprevistos, das singularidades irrepetíveis, do misterioso
acordo entre ordem e desordem que se observa por toda parte num
cosmos bem diferente da máquina, escrava da ordem matemática,
imaginada pela ciência renascentista.18 A distinção de Aristóteles entre
um reino celeste e metafísico, regido por leis eternas, e um mundo
sublunar ou natural, submetido à mudança e capaz de imitar a
estabilidade do primeiro mediante algum meio-termo entre mudança
e permanência, é uma ideia que ressoa, com toda a sua força, não só
nas descobertas de Sheldrake mas — só para dar mais um exemplo —
na teoria das catástrofes de René om.19

Mas a simples capacidade de extrair riquezas de dentro de um legado


aristotélico que estava soterrado sob três séculos de maledicência já
mostra a poderosa independência de pensamento que animava
aqueles dois lósofos franceses, aquela independência que lhes
permitia examinar a ciência antiga com uma visão direta e objetiva,
saltando por cima das viseiras impostas pelo establishment acadêmico
de então.

No caso de Boutroux, essa independência soma-se a outro fator, que


o torna, também, um esplêndido historiador da loso a. É que o
lósofo da contingência, tendo rejeitado as supostas leis eternas da
natureza, não poderia em seguida cair escravo ante pretensas leis de
ferro do devir histórico, a cujo culto a in uência hegeliana vinha
afeiçoando boa parte da intelectualidade europeia. Como frisou André
Canivez, Boutroux, em seus estudos históricos, se opõe ao neo-
hegelianismo e insiste numa loso a da história que não seja
demonstração de uma regularidade preestabelecida no fundo de
singularidades parciais mutuamente neutralizadas. Ele preferiu trazer
à luz a atividade do livre-arbítrio no o da continuidade histórica. Não
há um sistema da história. Ela não é a ressurreição das doutrinas
mortas, mas o acionamento de seus recursos inesgotáveis. O
historiador une-se, assim, ao teórico da contingência.20

Não há, de fato, compreensão mais humilde, mais objetiva e mais


profunda de uma loso a do que aquela que, em vez de “explicá-la”
pelo “seu tempo histórico”, remetendo-a ao museu das ideias
inofensivas, busca, ao contrário, compreender-se a si mesma por ela,
revigorando a sua força e a sua luz originárias e demonstrando mais
uma vez a verdade da sentença de Hoffmansthal: “Para o espírito, tudo
está presente”.21

O Aristóteles que o leitor vai encontrar no presente volume não é,


portanto, um dado histórico de uma cultura extinta, exibido por um
arqueólogo, mas um tesouro losó co e cientí co revivi cado por um
intérprete capaz de “pôr em ação os seus recursos inesgotáveis”.

Rio de Janeiro, 31 de julho de 1999

Olavo de Carvalho

A
Τὸ πρῶτον οὐ σπέρμα ἐστὶν ἀλλα τό τέλειον.22

Aristóteles, Metafísica, xii, 7, 1073a, 1.

Se é verdade que em certos homens se encarna às vezes o gênio de


um povo, e que esses vastos e poderosos espíritos são como o ato e a
perfeição em que todo um mundo de virtualidades encontra seu termo
e sua perfeição, Aristóteles, mais que ninguém, foi um desses homens:
nele, o gênio losó co da Grécia encontrou sua expressão universal e
perfeita. Portanto, o que aqui evocamos é mais que o pensamento de
um indivíduo, notável, aliás; é o espírito da própria Grécia, no apogeu
de sua grandeza intelectual. Estará de acordo com o pensamento
analítico do lósofo em questão, e na prática se mostrará
indispensável, estabelecer numerosas divisões em assunto tão amplo, e
considerar suas diversas partes uma por uma.


B
A ristóteles nasceu em Estagira, colônia grega jônica da Trácia,
situada à beira-mar na península Calcídica, no ano de 384 a.C., e
morreu em Cálcis, na ilha de Eubeia, em 322.

Seu pai, Nicômaco, era médico, assim como seus antepassados. Eles
relacionavam sua família à de Macaão, lho de Esculápio; e, como
muitos outros, davam a si mesmos o nome de Asclepíades. Nicômaco
foi médico do rei da Macedônia, Amintas , pai de Felipe. Este fator
pode ter contribuído para que Aristóteles fosse chamado à corte do rei
da Macedônia, para a educação de Alexandre. Na qualidade de
Asclepíade, supõe-se que tivesse recebido desde cedo instrução em
anatomia.

Aos dezessete anos, perdeu os pais. Viu-se então independente, e


possuidor de uma grande fortuna. O brilho de Atenas o atraiu a essa
cidade. A ela chegou em 367 ou 366 a.C., aos dezoito anos. Platão, que
ali fundara sua escola em 387 ou 386, estava então ausente; tinha
partido para Siracusa em 368 ou 367, e a deixaria por volta de 365,
para a ela retornar em 361 ou 360. Aristóteles ingressou no círculo dos
alunos de Platão, e fez parte dessa escola por vinte anos, até a morte do
mestre. Isso já contradiz a lenda de um atrito que teria ocorrido, bem
antes da morte de Platão, entre o mestre e o discípulo, provocado por
ingratidão e falta de respeito deste último. Diz-se que Platão, tendo
percebido a aplicação e a vivacidade de espírito de Aristóteles,
chamava-o de “o leitor”, e também de “a inteligência”. Supõe-se que, na
própria Atenas, ele tenha estudado não apenas o platonismo, mas
também os outros sistemas que vigoravam na época.

Muito antes da morte de Platão, ele manifestou sua independência. É


perfeitamente possível que, como membro da escola de Platão, já desse
aulas por conta própria. Ao menos escrevia já desde essa época; e se
suas primeiras obras são platônicas na forma e no conteúdo, elas já
contêm, entretanto, objeções às teorias das Ideias, e a a rmação da
eternidade do mundo. Era a contragosto, dizia ele, e por zelar pelo
superior interesse da verdade, que se contrapunha dessa forma ao seu
mestre. Ele dava exemplo, aliás, de respeito pelo gênio de Platão. Em
poema que chegou até nós, ele celebra o mestre como um homem a
quem os maus não têm o direito de louvar, e que mostrou, por meio de
sua vida e de sua doutrina, que o homem bom é, ao mesmo tempo, o
homem feliz.

A morte de Platão, em 347 a.C., inicia um novo período na vida de


Aristóteles. Ele deixa Atenas e vai, com Xenócrates, para Atarneu, na
Mísia, ao encontro de seu amigo e condiscípulo Hérmias, tirano dessa
cidade, de quem veio a desposar a sobrinha, ou irmã, Pítia. Depois ele
se casaria novamente com uma mulher chamada Hérpile. Após a
queda e a morte de Hérmias, em 345, Aristóteles vai para Mitilene.

Daí, parece ter retornado a Atenas, onde abriu a escola de retórica em


que se colocou como adversário de Isócrates. Em 342 a.C., atendeu ao
chamado de Felipe, rei da Macedônia, pedindo-lhe que cuidasse da
educação de seu lho Alexandre, então com aproximadamente
quatorze anos. Permaneceu na corte da Macedônia até que Alexandre
empreendesse sua expedição à Ásia (334 a.C.). Sem divagar em busca
de um ideal distante demais das condições da prática, Aristóteles
parece ter cultivado no espírito do seu aluno as qualidades generosas.
Alexandre manteve por toda a vida respeito e amor pelo seu mestre,
embora as relações entre eles se tivessem rompido após o assassinato
do sobrinho de Aristóteles, Calístenes, em 325 a.C.

Em 335 ou 334 a.C., Aristóteles retorna a Atenas, e aí abre, no Liceu,


uma escola que foi chamada de escola peripatética, ao que tudo indica
devido ao hábito do mestre de passear com os alunos enquanto falava
sobre ciência e loso a. Pela manhã, relata Aulo Gélio, Aristóteles
dava, para uma audiência seleta, uma aula acroamática,24 versando
sobre as partes mais complexas da loso a, em especial da loso a da
natureza e da dialética. À noite, dava uma aula exotérica,25 aberta a
todos que se apresentassem, que tratava de retórica, tópica26 e política.
Ensinava tanto em forma de aulas, quanto em forma de conferências.
Sua escola era, como a escola de Platão, uma sociedade de amigos que
se reuniam, em dias estabelecidos, para refeições em comum.

Sendo ele próprio rico, e gozando da assistência do rei, Aristóteles


podia dispor de todos os recursos cientí cos comportados pela
sociedade de então. Diz-se que Alexandre enviou-lhe oitocentos
talentos para a confecção de sua História dos animais. Diz-se até que
pôs à sua disposição milhões de homens encarregados de procurar
para ele animais de todo tipo, especialmente peixes, de manter parques
de animais e viveiros de pássaros, de informá-lo sobre todas as
observações e descobertas que pudessem fazer avançar a ciência. São
lendas, porém suscitadas, sem dúvida, pelos fatos. Aristóteles
certamente reuniu todos os documentos, de toda natureza, que lhe foi
possível obter. Foi o primeiro a formar uma grande coleção de livros.

Embora Aristóteles, em 325 a.C., tivesse rompido com Alexandre, a


morte deste último, em 323, deixou-o em perigo. Quando estourou a
guerra lamíaca, ele foi considerado amigo dos reis da Macedônia e de
Antípatro,27 e perseguido por ateísmo. Deixou Atenas, segundo
declarou, para que os atenienses não se tornassem mais uma vez
culpados em relação à loso a. Refugiou-se em Cálcis, na Eubeia. Aí
veio a morrer, doente, no verão de 322 a.C., poucos meses antes de
Demóstenes, nascido no mesmo ano que ele. Tinha sessenta e dois
anos.

Seu caráter, atacado desde cedo por adversários políticos e cientí cos,
surge em seus escritos como leal, humano e nobre; e não há fato
con rmado que prove o contrário. Sua vida é imbuída de dignidade
moral e losó ca. Aristóteles é um gênio a um só tempo universal e
criador, e um trabalhador infatigável. Não possui o ímpeto de Platão:
tendo o espírito voltado para a realidade que nos é dada, tem por
quimérico tudo que não se relacione a ela; mas não se restringe aos
fatos, ou ao sensível: busca pelo inteligível. Em todas as matérias,
recomenda o meio-termo, o comedimento. Uma fortuna mediana, um
governo da classe média: esta é, segundo ele, a melhor condição para o
indivíduo e para a sociedade.

Diz-se que era magro e de pequena estatura; tinha olhos pequenos, e


na boca uma expressão irônica. Com a primeira esposa, Pítias, teve
uma lha de mesmo nome. Com a segunda, Hérpile de Estagira, teve
um lho, Nicômaco, do qual a Ética a Nicômaco leva o nome. Em seu
testamento refere-se em termos afetuosos à primeira e à segunda
esposa, aos dois irmãos, e aos seus lhos; e demonstra solicitude em
relação aos amigos e parentes afastados.


O   A
A história da conservação dos escritos de Aristóteles é pouco
conhecida. Segundo Estrabão e Plutarco, os escritos de
28 29

Aristóteles e de Teofrasto, após a morte deste último, teriam chegado


às mãos de Neleu,30 que os levou para sua casa em Escépcis, na Mísia.
Aí teriam sido escondidos num subterrâneo, e descobertos por
Apelicão31 na época de Sula.32 Este teria então mandado transportá-los
a Roma. Sejam ou não verdadeiras essas anedotas, os textos que se
conservaram foram revistos e classi cados, no século  a.C., por
Andrônico de Rodes, lósofo peripatético, que publicou deles uma
edição completa em torno de 60–50 a.C. É este o Aristóteles, mais ou
menos recomposto, que possuímos hoje. Nossa coleção contém,
provavelmente, tudo o que restava de autêntico no tempo de
Andrônico, e há motivos para considerar, em geral, apócrifas as obras
ausentes da coleção enumerada por Diógenes Laércio.33 Mas, também
provavelmente, nem tudo o que contém a edição dita de Andrônico é
de Aristóteles; e mesmo as obras autênticas não estão isentas de
acréscimos e modi cações. Além disso, são conhecidos títulos de
obras comprovadamente autênticas que não constam de nossa coleção
e que aparentemente já estavam perdidas desde a época de Andrônico.
Entretanto, tudo indica que as obras mais importantes para o
conhecimento da loso a e da ciência aristotélicas tenham sido
conservadas.

Quais são, entre as obras que possuímos, as que devem ser


descartadas por inautênticas? A questão, em muitos casos, não pode
ser resolvida de forma precisa e segura. Eis os resultados obtidos por
Eduard Zeller,34 em sua Philosophie der Griechen, t. , 3ª ed. É
duvidosa ou inadmissível a autenticidade das seguintes obras: De
Xenophane, Zenone et Gorgia; De animalium motu; De plantis; De
coloribus; De audibilibus; De mirabilibus auditis; Physiognomonica;
Mechanica problemata; De indivisibilibus lineis; De mundo; De
respiratione; De virtutibus et vitiis; Œconomica; Rhetorica ad
Alexandrum. As obras Moralia Eudemea e Moralia Magna são
modi cações da Ética a Nicômaco. Os fragmentos de cartas que
possuímos estão muito entremeados de acréscimos e alterações.

Os escritos deixados por Aristóteles podem, ao que tudo indica, ser


classi cados em uma das três categorias seguintes: 1a. Livros didáticos
e de ciência propriamente dita: são os resumos e compêndios que ele
empregava em suas aulas.
Ele não os publicou, mas os divulgou unicamente entre os seus
alunos.

2a. Escritos publicados: estes destinavam-se ao grande público. Eram


escritos, segundo se dizia, de forma rica e cativante. Parte deles era em
forma de diálogos.

Frequentemente, usando expressões tiradas do próprio Aristóteles,


foram chamados de acroamáticos ou acroáticos os escritos não
publicados, e de exotéricos os escritos publicados. É certo que essas
expressões respondem a uma distinção capital na loso a de
Aristóteles. Existem, segundo ele, dois modos de ensino,
correspondentes aos dois graus do conhecimento. O que é conhecível
como necessário e absolutamente certo é assunto de demonstração
propriamente dita; o que não é conhecível senão como possível é
assunto de dialética. Em suas aulas, Aristóteles ensinava a ciência
perfeita: ele demonstrava; o papel do aluno era unicamente de ouvinte.
Mas fora de suas aulas, Aristóteles dirigia encontros dialéticos em que
se raciocinava em função das probabilidades, em função de
considerações mais ou menos externas ao objeto em questão, e nos
quais eram admitidos não apenas alunos, mas também gente de fora. É
este o valor das palavras acroamático e exotérico, empregadas em
referência ao ensino de Aristóteles. Este não as aplica às suas obras,
mas elas lhes são perfeitamente aplicáveis.

3ª. A essas duas categorias deve-se acrescentar uma terceira, a saber:


anotações destinadas ao uso pessoal de Aristóteles. Esses escritos
podem ser chamados de hipomnemáticos.35

Por m, Aristóteles deixou discursos, cartas e poesias.

Desses três tipos de escritos, não chegaram até nós senão os


primeiros. Dos segundos e terceiros não nos restam senão fragmentos.
Entre os escritos perdidos, os mais importantes são: na primeira
categoria, o Tratado das plantas, a Anatomia, os Teoremas
astrológicos. Na segunda, os Diálogos e a História da retórica. Na
terceira, extratos de algumas obras de Platão e escritos sobre os
pitagóricos e sobre outros lósofos. É sem dúvida nessa terceira
categoria que devem ser classi cadas as Instituições (Πολιτειαι,
Politeiai), onde se encontravam informações de todo tipo sobre 158
cidades helênicas e bárbaras, coletânea perdida, da qual possuímos
numerosas citações muito interessantes. O tratado Da constituição dos
atenienses foi encontrado recentemente num papiro, e publicado em
1891.

Podem ser classi cados da seguinte maneira os escritos cientí cos


propriamente ditos, ou escritos não publicados, que possuímos, e que
representam, de maneira provavelmente completa no que diz respeito
ao essencial, a obra losó ca de Aristóteles: 1º. Escritos lógicos,
reunidos na época bizantina apenas sob o nome Ὄργανον [Organon]:
Κατηγορίαι, Kategoriai [Categorias], em partes alteradas e ampliadas;
Περὶ ἑρμηνείας,

Peri hermeneias [Do discurso, ou Das proposições], obra que parece


ser o trabalho de algum peripatético do século  a.C.; Αναλιτιχὰ
πρότερα, Analitica protera [Primeiros analíticos], que trata do
silogismo; Αναλιπχὰ ὔστὲρα, Analitica ustera [Últimos analíticos], que
trata da demonstração; Τοπιχά, Topica [Tópicos], que tratam da
dialética ou raciocínio em matéria provável. O livro  dessa obra é
geralmente apresentado como obra especial, com o título: Περὶ
σοφιστιχῶν ἐλἑνχων, Peri so stikon elenkon [Dos argumentos
sofísticos].

2º. Escritos de loso a natural: Φυσιχὴ ἀχρόασισ, Fisike akroasis


[Física], em oito volumes, dos quais o livro , embora redigido
segundo anotações aristotélicas, não parece ser de Aristóteles; Περὶ
γενέσεως χαὶ φθορᾶς, Peri gueneseos kai oras [Da geração e da
corrupção]; Περὶ οὐρανοῦ, Peri ouranou [Do céu]; Μετεωρολογιχά,
Meteorologica [Meteorologia]; Περὶ ψυχῆς, Peri psikes [Da alma], e
diversos opúsculos ligados a estes, denominados Parva naturalia; Περὶ
τὰ ζῶα ἱστορἰαι, Peri ta zoa historiai [História dos animais], em dez
volumes, obra extremamente alterada, da qual o livro  é inautêntico;
Περὶ ζώων μορίων, Peri zoon morion [Das partes dos animais]; Περὶ
πορείας ζώων, Peri poreias zoon [Dos órgãos motores dos animais];
Περί ζώων γενέσεως, Peri zoon geneseos [Da geração dos animais],
obra gravemente alterada.

3º. Escritos ditos metafísicos, que abordam o que Aristóteles


denomina “Filoso a primeira” (Πρὠτη φιλοσοφία, prote loso a): a
obra chamada Metafísica, em quatorze volumes, é uma coleção feita
aparentemente pouco tempo depois da morte de Aristóteles, e
compreende tudo o que se encontrava em seus papéis referente à
loso a primeira. Esses escritos devem seu nome atual: Pós-física (Τὰ
μετὰ τά φυσικὰ, Ta meta ta fysika) à sua posição que sucede à da física,
na edição de Andrônico. O que forma seu fundo são os livros , , ,
,  a , e  (numeração da edição de Berlim). O livro  e o livro 
a partir do cap. , 1065a26, são inautênticos.

4º. Escritos relativos às ciências práticas: Ηθιχα Νιχομαχεια, Ethika


Nikomakeia [Moral endereçada a Nicômaco]; Πολιτιχα, Politika
[Política], obra inacabada. Segundo Eduard Zeller, os livros  e 
da Política devem, ao que tudo indica, ser intercalados entre os livros
 e ; Τεχυη ρητοριχη, Tekne retorike [Retórica]; Περι ποιετιχης, Peri
poietikes [Poética].

A questão da cronologia, em relação às obras didáticas, é de pouca


importância. Todas essas obras, de fato, foram compostas nos últimos
anos da vida do lósofo (335–322 a.C.): remetem umas às outras, e em
seu conjunto nos apresentam o sistema perfeito, sem nenhuma marca
de progresso.36 Até onde se pode julgar pelas frágeis indicações que
podem ser tiradas dos testemunhos históricos e do exame das obras
em si, Aristóteles compôs inicialmente os escritos lógicos, exceto as
anotações segundo as quais foi redigido o Περι ερμηνειας, Peri
hermeneias [Da interpretação], que parecem ser posteriores ao Περι
ψυχης, Peri psykes [Da alma]. Em seguida foram compostos os
escritos de loso a natural, depois as obras de siologia e psicologia, e
sobre as ciências práticas; e nalmente, ao que tudo indica, e em todo
caso posteriormente à física, a coleção dita metafísica. Aristóteles
parece, portanto, ter ido do abstrato ao concreto, e, no campo do
concreto, do ser inconstante ao ser imutável.


O    
A
U niversalidade: esta é, como indicam os próprios títulos dos livros,
a primeira característica da obra de Aristóteles. Teoria e prática,
metafísica e ciência da observação, erudição e especulação, a loso a
de Aristóteles se estende a todos os campos. Ela é, ou almeja ser, o
saber em sua totalidade. Mais clara do que em Platão, mais geral do
que em Anaxágoras e Demócrito, da obra de Aristóteles emana a ideia
da ciência, considerada o objeto supremo da atividade. Não se trata de
uma curiosidade de eruditos, e sim da ambição de penetrar a essência
e a causa das coisas. Tudo o que é, sem exceção, mesmo o que parece
reles e insigni cante, provoca, neste sentido, a busca do lósofo. Em
toda produção da natureza, até na que aparenta ser mais humilde, ele
sabe que irá encontrar o inteligível e o divino.

É neste sentido que ele aborda todos os objetos acessíveis à


inteligência humana; e, munido de todos os conhecimentos positivos
que se podia adquirir então, tão atilado em sua intuição quanto
rigoroso no raciocínio, criou ou constituiu a maior parte das ciências
pelas quais se dividiria, em seguida, o gênio humano. A lista das
ciências assim organizadas por ele é a própria lista das ciências que ele
cultivou: história da loso a, lógica, metafísica, física geral, biologia,
botânica, ética, política, arqueologia, história literária, lologia,
gramática, retórica, poética e loso a da arte. Aristóteles está à
vontade em cada uma dessas ciências: para cada uma delas, determina
princípios especiais e apropriados. Um puro ético ao tratar de justiça e
amizade, é naturalista de pro ssão ao tratar de zoologia.

Haveria então diversos homens em Aristóteles, e não seria sua


imensa obra senão a justaposição dos mais diversos trabalhos, tal
como poderia resultar da colaboração entre diversos sábios?
Semelhante apreciação seria certamente super cial. Entre os diversos
trabalhos de Aristóteles, há em primeiro lugar espírito e método
comuns. Esse fundo comum poderia ser de nido como uma mistura
harmoniosa de idealismo, observação e formalismo lógico. Em tudo,
Aristóteles busca a ideia no fato, o necessário e o perfeito no
contingente e no imperfeito; em tudo ele busca substituir os dados
fugazes da observação sensível por concepções xas e de nições. Mas
isso não é tudo: as diferentes partes do saber mantêm entre si, segundo
ele, uma determinada relação, que ele de ne muito claramente. De
forma geral, o superior só se torna conhecido depois do inferior, e com
auxílio do próprio conhecimento desse inferior; mas, ao mesmo
tempo, é no superior que se encontra a razão de ser e a causa
verdadeira do inferior. Por exemplo, a alma não se torna conhecida
senão depois do corpo, que é sua base e condição de existência. Mas o
corpo não existe senão para a alma; e é dela que obtém o movimento
regrado que o faz ser. Este princípio de Aristóteles nos servirá para
classi car as diversas formas de sua atividade losó ca.


C  
S em ter chegado à precisão, ou mesmo à xidez no detalhe,
Aristóteles foi, não obstante, o primeiro a conceber a ciência de um
ponto de vista enciclopédico, e a procurar um princípio completo de
classi cação do conhecimento.
A ciência, antes de mais nada, distingue-se claramente das próprias
coisas a que se refere. Ela consiste na concepção das coisas como
necessárias; e comporta gradações, segundo o objeto por ela
considerado comporte ele mesmo a necessidade, ou apenas a
probabilidade.

A ciência, em seu conjunto, segue uma dupla direção, conforme o


espírito humano tome por ponto de partida o que for primordial do
seu ponto de vista, ou o que for primordial absolutamente. Esses dois
movimentos são o exato inverso um do outro: pois o que para nós é
primordial são os fatos, e os fatos, segundo a ordem interna da
natureza, são o que existe em último lugar; reciprocamente, o que é
primordial em si são os princípios, e os princípios são a última coisa
que podemos atingir.

A loso a, no sentido amplo da palavra, é a ciência em geral. Ela


compreende, em primeiro lugar, a loso a primeira ou ciência dos
princípios absolutos; em segundo lugar, o conjunto das ciências
especí cas, das quais as principais são: a matemática, a física, a ética e
a poética. A loso a é una, graças à loso a primeira que é o
reservatório comum de onde todas as ciências especí cas extraem seus
princípios.

Essa divisão, embora fundamental, não está sempre presente nas


classi cações das ciências encontradas em Aristóteles. Em algumas
delas ele divide as proposições, como fazem os platônicos, em éticas,
físicas e lógicas, incluindo entre estas últimas as proposições mesmas
relacionadas à loso a primeira.

Na maior parte das vezes, ele divide as ciências em teóricas, práticas


(ou relativas à ação) e poéticas (ou relativas à produção por meio de
uma matéria), colocando, do ponto de vista lógico e absoluto, a teoria
à frente da prática, e a prática à frente da poética. Depois ele subdivide
as ciências teóricas em teologia, matemática e física. A teologia pode
ser relacionada à loso a primeira: forma dela o topo. A matemática
trata de essências ainda estáveis, porém não separáveis da matéria,
senão por abstração. A física trata das substâncias sensíveis, ou seja,
móveis e perecíveis. As ciências práticas ou ciências das coisas
humanas se subdividem, quando se vai da potência ao ato, ou seja, do
que é primordial para nós ao que é primordial em si, em ética,
econômica e política. A econômica, a bem dizer, é frequentemente
dada por Aristóteles como inserida na política. A retórica é
apresentada sobretudo como ciência auxiliar da política. A poética
compreende todas as artes, das quais a poesia e a música ocupam o
primeiro lugar. Nessa classi cação não é mencionada a lógica, sem
dúvida porque ela não abrange senão as ciências que tratam das
realidades, enquanto a lógica tem, por objeto, conceitos.


O      
O objeto considerado por Aristóteles é essencialmente teórico. Saber
por saber, compreender, ajustar as coisas à inteligência, esta é a
nalidade de todo seu trabalho.

Todos os homens, diz ele, têm o desejo natural de conhecer.


Apreciamos a ciência, para além de qualquer interesse. A sabedoria
independe de utilidade, e é mesmo tão mais sublime quanto menos
útil. A mais elevada ciência é aquela do objetivo ou da nalidade em
função de que existem os seres. Esta é a única ciência verdadeiramente
livre, pois é a única a não existir senão em função do saber em si. É a
menos necessária de todas as ciências, e, por isso mesmo, a mais
notável. A ciência nos leva a conhecer as razões inteligíveis das coisas.
O ignorante que observa admira-se de que as coisas sejam como são, e
essa admiração é o próprio início da ciência: o sábio se admiraria de
que as coisas fossem diferentes de como ele as conhece.
Como procede Aristóteles para apreender a ciência, assim entendida?
Aristóteles não é nem o idealista dogmático que supõe Bacon,
fabricando o mundo unicamente com as categorias da linguagem, nem
o empirista que vêem nele muitos modernos. É observador, e
construtor: de forma geral, ele alia e combina intimamente o estudo
escrupuloso dos fatos ao esforço para torná-los inteligíveis. Tem os
fatos como ponto de partida, mas não se atém a eles: procura extrair
deles as verdades racionais que sabe de antemão estarem neles
contidas. O termo que tem em vista é o conhecimento das coisas em
forma demonstrativa, isto é, na forma de uma dedução em que as
propriedades da coisa se tornem conhecidas pela sua própria essência.

Na maior parte das vezes, e sobretudo quando se trata de coisas


metafísicas ou morais, antes de abordar o estudo das coisas em si, ele
procura e discute todas as opiniões existentes sobre a matéria. É o
método dialético, que ao tirar seus argumentos, não da essência
mesma da coisa, mas do que é admitido pelo interlocutor, não vai além
da verossimilhança.37 Ao empregar este método, Aristóteles parte
frequentemente das concepções populares, tirando delas um sentido
losó co, que utiliza para estabelecer sua teoria. Parte também da
linguagem, que é para ele como um intermediário entre as coisas e a
razão. E sobretudo respeita as doutrinas dos que o antecederam,
enumerando cuidadosamente todas as opiniões por eles sustentadas; e
mesmo quando contesta essas opiniões, procura-lhes a razão e a
verdade relativa. Suas dissertações losó cas são, em geral, compostas
da seguinte maneira: 1º. Determina o objeto da pesquisa, a m de não
se expor a mal-entendidos, como ocorre a Platão; 2º. Enumera e
aprecia as indicações e opiniões existentes sobre a matéria; 3º. Busca e
examina, da forma mais completa possível, as di culdades ou άπορίαι
apresentadas pela questão levantada; 4º. Considerando as coisas em si
mesmas, e utilizando nos seus raciocínios os resultados das discussões
anteriores, busca a solução do problema na determinação da essência
una e eterna do objeto em questão.38

A 
R esulta do que foi dito até aqui que Aristóteles é, antes de mais nada,
historiador. Começou por aprender o mais possível. Platão,
segundo se diz, chamava-o de “o leitor”. Apesar de seu elevado grau de
curiosidade pelos fatos, a história não é, para ele, um m em si, mas
um meio indispensável. Ela fornece ao espírito o material sem o qual
este se agitaria no vácuo. Aristóteles entregou-se a estudos históricos
aprofundados em todos os domínios da ciência.

No que diz respeito à história da loso a, ele escreveu sobretudo


sobre os pitagóricos e sobre o platonismo. Todo o primeiro livro da
Metafísica é preenchido por pesquisas históricas: é uma exposição dos
princípios propostos desde Tales até Platão. Mas como o objeto que
tem em vista é dogmático, ele enquadra os sistemas anteriores em sua
própria loso a. Busca-lhes a ideia, a forma perfeita, o termo e a
perfeição; quer compreendê-los com mais profundidade do que foram
compreendidos pelos próprios autores; e os resume em fórmulas
criadas por ele, que fazem deles encaminhamentos ao seu próprio
sistema. Se classi ca as doutrinas, é segundo as semelhanças e
diferenças que apresentam em relação ao seu ponto de vista, e não
segundo a in uência que tenham exercido umas sobre as outras.
Assim, o resumo contido no primeiro livro da Metafísica destina-se a
preparar a teoria aristotélica das quatro causas. Aristóteles mostra que,
antes dele, já se havia mais ou menos discernido e evidenciado os
princípios material, motor e formal, mas que a causa nal só fora
mencionada de forma acessória e acidental. Anaxágoras, que
vislumbrara a causa nal, surge, diz nosso autor, como um homem
sensato, em meio a homens que falam ao acaso. As buscas
cronológicas têm pouca importância nessas considerações. Da mesma
forma, Aristóteles atribui pouca importância às relações entre mestre e
discípulo. Ele assinala os serviços prestados por cada um de seus
antecessores à loso a em geral, tal como a concebe; salienta aquilo
que cada pensador encontrou de duradouro; assinala os inventores e
defensores das ideias que desempenharam algum papel no
desenvolvimento da ciência, e que lhe parecem merecedoras de exame.
Em resumo, ele não busca as origens históricas dos sistemas, mas
extrai da massa informe dos fatos a formação lógica da loso a
de nitiva.

À história política referem-se as famosas Πολιτειαι, Politeiai


[Politeias],39 em que Aristóteles expunha as constituições de 158
cidades gregas e bárbaras. Esse conjunto de tratados se inseria naquilo
que chamamos hoje de arqueologia e história da civilização. Neles
encontravam-se diversas indicações de costumes, e até mesmo
provérbios e canções populares de diferentes povos. As matérias eram
organizadas, segundo alguns comentaristas gregos, em ordem
alfabética. Segundo Diógenes, as constituições eram classi cadas,
conforme suas semelhanças, em democráticas, oligárquicas,
aristocráticas e tirânicas. Podemos hoje fazer uma ideia de como eram
as “Politeias” graças ao tratado da Constituição dos atenienses,
descoberto recentemente. A primeira parte desse tratado é a
explicação das transformações políticas de Atenas, desde a sua origem.
A segunda descreve a organização política e administrativa de Atenas
na época do processo da Coroa.

Na ordem literária, Aristóteles tinha escrito a história da retórica e da


poesia. Essa história, que não chegou até nós, é muito louvada por
Cícero. “Aristóteles”, disse, “assinalou nela todos os preceitos
enunciados pelos retores, e isso com tanta perfeição que se
considerava que esses preceitos eram mais bem expostos por ele do
que pelos próprios autores, e quando se queria conhecê-los, era nele
que se os procurava”.

Ele estabeleceu também listas cronológicas das representações


dramáticas, e listas dos vencedores dos jogos olímpicos e píticos. Essas
obras se perderam.
Percebe-se que a curiosidade de Aristóteles é insaciável, e estende-se
a todos os campos. Mas ele quer saber e compreender, e não distrair-se
com a narração dos fatos: a história não passa, para ele, de um
instrumento da ciência, e os fatos não têm valor senão como veículos
para as ideias.


L
A ristóteles quer conhecer os fatos, não apenas como são, mas como
devem ser; quer resolver o que é contingente e o que é necessário.
Ele precisa então, em primeiro lugar, investigar as condições nas quais
o espírito concebe algo como sendo necessário; em outras palavras, ele
precisa inicialmente considerar a ciência pela forma, abstraindo o seu
conteúdo: tal é o objeto da lógica.40 –41

A lógica é a determinação das leis do raciocínio e das condições da


ciência. Aristóteles distingue, no conhecimento, forma e matéria, e
considera que a forma tem existência e leis próprias. Sua existência
consiste na realidade dos conceitos estáveis, ou ideias gerais, unas, e
exatamente determinadas quanto à sua compreensão e à sua extensão.
Sua lei fundamental é o princípio da contradição: “É impossível que
um mesmo atributo pertença e não pertença a um dado sujeito,
considerado por uma única e mesma perspectiva”. Existe, aliás,
segundo Aristóteles, proporção e harmonia entre o pensamento e o
ser; por conseguinte, nosso lósofo não se esquiva de admitir em sua
lógica diversos elementos de caráter metafísico.

A lógica aristotélica é uma análise racional das condições que devem


ser preenchidas por um raciocínio para que sua conclusão seja
concebida como necessária. Não se trata de saber como, de fato,
raciocinamos na vida comum, mas de como deve ser construído um
raciocínio para que a necessidade do laço que ele estabelece surja
imediata e irresistivelmente como evidente. É por isso que o problema
da análise psicológica do raciocínio natural, apontado por Locke, não
pode ser substituído pelo de Aristóteles se não for admitida a redução
do necessário ao contingente, do ideal ao real, do preceito ao fato, da
arte à natureza.

Convém distinguir: 1º. Os instrumentos do pensamento; 2º. O papel


e o valor desses instrumentos na constituição da ciência.

Os instrumentos do pensamento são as noções, as proposições e o


raciocínio.

Sob o título geral de noções alinham-se os predicáveis, as categorias e


as noções de relações lógicas.

Os predicáveis, que Aristóteles chama, ao que parece, de gêneros dos


problemas, são as noções universais referentes aos modos gerais
segundo os quais uma coisa pode ser enunciada em relação a outra.
São os denominados universais, a saber: o gênero, a espécie, a
diferença, o próprio e o acidente.

As categorias são os gêneros irredutíveis das palavras, e, por


conseguinte, das coisas, pois as classes das palavras são as próprias
classes das coisas. São os gêneros supremos. As categorias são em
número de dez: 1ª. A essência, por exemplo: homem, cavalo; 2ª. A
quantidade: dois metros de comprimento; 3ª. A qualidade: branco; 4ª.
A relação: o dobro, a metade; 5ª. O local: no liceu; 6ª. O tempo: ontem;
7ª. A situação: estar deitado, sentado; 8ª. A maneira de ser: estar
calçado, armado; 9ª. A ação: cortar, queimar; 10ª. A paixão: ser
cortado, queimado. As categorias dividem-se em duas classes, sendo a
essência, por si só, a primeira, e as nove outras categorias a segunda.

Essa tabela das categorias parece ter sido organizada empiricamente,


por comparação das palavras entre si. Ela difere fundamentalmente da
de Kant, que apresenta as diferentes maneiras de ligar a priori e em
sentido necessário os diversos elementos de uma intuição geral, ou
seja, de trazer essa matéria esparsa à unidade da apercepção
transcendental.

As diferentes relações lógicas dos termos entre si são a identidade e a


oposição; esta última compreende a contrariedade, a contradição e a
relação entre privação e posse.

O princípio geral relativo à oposição é que dois termos opostos entre


si pertencem sempre a uma mesma e única ciência. As proposições
resultam da combinação dos conceitos.

São a rmativas ou negativas, universais ou especí cas. Somente elas


comportam verdade ou erro, enquanto conceitos isolados não são
verdadeiros nem falsos. A consequência não é a mesma, se dois juízos
forem contraditórios entre si, ou simplesmente contrários. Dois juízos
contrários não podem ser ambos verdadeiros, mas podem ser falsos;
ao passo que, de dois juízos contraditórios, um é necessariamente
verdadeiro, e o outro, falso: isso resulta do princípio do terceiro
excluído, expressão particular do princípio de contradição.

As proposições comportam conversões, ou inversões entre sujeito e


atributo, das quais Aristóteles determina as regras. O raciocínio
consiste essencialmente no silogismo. A teoria do silogismo e da
demonstração, ou silogismo perfeito, é chamada por Aristóteles de
analítica. Aristóteles reivindica sua criação. Ele a rma que não havia
nada sobre essas matérias antes dele, que sua tarefa não foi só
aperfeiçoar, mas também inventar, e que foi por meio de exaustivos
experimentos que atingiu seu objetivo. Kant, referindo-se à teoria do
silogismo, a rmou que esta, depois de Aristóteles, não tinha dado um
só passo, para frente ou para trás.

O silogismo é um raciocínio no qual, dadas determinadas coisas,


delas resulta necessariamente outra. O próprio do silogismo é
evidenciar a necessidade da ligação. Esse resultado é obtido pelo
emprego de elementos adaptados a uma aplicação exata do princípio
de contradição. Esses elementos são termos que se considera terem
entre si relação semelhante à relação entre a parte e o todo. Se 
contém , e  contém , segue-se necessariamente, segundo o
princípio de contradição, que  contém . Tal é o tipo do silogismo, e
os três termos que ele implica são chamados, por esse motivo, grande,
médio e pequeno. Esta relação de continência é considerada por
Aristóteles como equivalente à relação entre o geral e o particular. O
gênero é como um círculo de nido que contém as espécies.

O silogismo é perfeito ou imperfeito segundo seja imediatamente


conforme ao tipo que acabamos de indicar, ou não se torne conforme
a ele senão por meio de transformações ou reduções.

A origem dessa teoria encontra-se na matemática. Consiste numa


adaptação das relações de grandeza às noções qualitativas. Era natural
que Aristóteles buscasse, numa imitação analógica da matemática, o
meio de demonstrar necessariamente em matéria qualitativa; pois a
matemática realizava, no entendimento de todos, essa necessidade no
encadeamento dos termos que ele tinha em vista. O instrumento da
ligação necessária, no silogismo, é o meio-termo.

Entre os casos particulares do silogismo, o mais importante é a


indução, ou raciocínio que vai do particular ao geral. Eis um exemplo
deste raciocínio: “O homem, o cavalo e o jumento têm vida longa. Ora,
o homem, o cavalo e o jumento são animais sem fel. Logo, todos os
animais sem fel têm vida longa”. A condição para a legitimidade da
conclusão é a convertibilidade da menor. Neste exemplo, é preciso que
seja legítimo substituir a proposição “O homem, o cavalo e o jumento
são animais sem fel. Logo, todos os animais sem fel vivem muito
tempo”. A legitimidade dessa substituição não é mais uma questão de
lógica. De fato, a lista de animais sem fel é in nita. Mas a essência do
animal sem fel encontra-se inteira em cada animal sem fel. A questão é
discernir essa essência, extrair dela o tipo do animal sem fel, de
maneira a distinguir as características que pertencem aos animais sem
fel, enquanto animais sem fel, das características que lhes pertencem
independentemente dessa condição. Para tanto, considera-se um certo
número de animais sem fel, comparando-os entre si, investiga-se o que
têm em comum, e, com isso, o que neles é essencial e necessário. Em
outras palavras, considera-se os seres da natureza, não apenas com os
sentidos, mas com o νοῦς,42 lugar das essências e capaz de encontrá-las
e de reconhecê-las em meio aos dados dos sentidos.

A indução de Aristóteles visa assim à classi cação dos seres e dos


fatos, e a uma classi cação natural. Na medida em que se aplica em
discernir entre as relações necessárias e as relações contingentes, ela
torna possível a predição, fornecendo assim verdadeiras leis, no
sentido moderno da palavra. Mas essa possibilidade de predição é
restrita aos fatos que decorrem imediatamente de uma determinada
essência, e não se estende aos fatos resultantes da mistura de várias
essências. Pois a mistura das essências não tem uma razão necessária, é
algo puramente contingente. Os gêneros, segundo Aristóteles, são
radicalmente separados uns dos outros, cada um deles é um absoluto.
Por essa doutrina da independência dos gêneros, a teoria aristotélica
da indução se opõe tanto ao cartesianismo, que reduz as leis físicas às
determinações matemáticas, o heterogêneo ao homogêneo, quanto ao
evolucionismo, que admite a existência atual das espécies, atribuindo-
lhes, porém, uma gênese natural no passado a partir de uma origem
comum.

O silogismo propriamente dito e a indução estão um para o outro,


segundo Aristóteles, como a ordem da natureza está para a ordem do
conhecimento humano. Em si, o silogismo é mais inteligível: para nós,
a indução é mais clara. O silogismo parte do geral. Ora, é para nós
impossível tomar conhecimento do geral, senão por indução. Não que
os princípios gerais se apóiem na sensação e na indução como seu
fundamento; mas é a indução que, para nós, revela esses princípios, é
ela que nos fornece os elementos inteligíveis que o νοῦς reconhece
como necessários e verdadeiros.

Tais são os instrumentos da ciência. Como, por seu intermédio, se


forma a ciência? A ciência é o conhecimento das coisas enquanto
necessárias. Uma coisa é conhecida cienti camente quando sabemos
que não poderia ser diversa do que é. Ora, este conhecimento é
realizado quando conseguimos associar a coisa dada à sua causa.

Existem na natureza três tipos de ligações: 1º. As conjunções que se


realizam sempre, por exemplo: as relações dos fenômenos
astronômicos; 2º. As conjunções que costumam realizar-se, por
exemplo: as relações entre si das coisas físicas, e, mais ainda, das coisas
morais; 3º. O acaso, isto é, as coincidências que se reproduzem pouco,
ou nunca. A primeira espécie de ligação comporta a ciência perfeita, a
segunda uma ciência imperfeita, limitada à probabilidade; a terceira
permanece fora da ciência. Não há ciência daquilo que se passa.

Nem a opinião nem a sensação podem produzir a ciência, pois sendo


ambas incapazes de determinação perfeita e de xidez, não podem
apreender o nito e o imóvel. A dialética platônica é, também, incapaz
de fornecer ciência, pois, como consiste em perguntas e respostas, não
repousa senão no consentimento do adversário, e não sobre o
verdadeiro em si. Partindo da hipótese, não vai além da consequência
puramente lógica e formal. É pela demonstração que se obtém a
ciência. A “apodíctica”, ou teoria da demonstração, difere
essencialmente da dialética.

A demonstração se faz por silogismo direto da primeira gura. A


redução ao absurdo e os silogismos da segunda e da terceira gura não
são ainda a demonstração. A demonstração estabelece seu ponto de
partida num princípio não apenas concedido pelo adversário, mas
necessário em si. Assim raciocina o matemático.

A demonstração compreende três elementos: 1º. O sujeito; 2º. O


atributo, que deve ser associado ao sujeito por um laço de necessidade;
3º. Os princípios gerais sobre os quais se apoia a demonstração. Estes
últimos são o princípio de contradição e seus derivados.
Indispensáveis, são, em si, vazios e insu cientes. É na natureza do
sujeito que reside a base da demonstração.
Há, efetivamente, princípios que são próprios ao sujeito, como, por
exemplo, o contínuo, inerente à extensão; o descontínuo, inerente ao
número: são esses princípios especiais que têm conteúdo e são
fecundos. É sobre esses princípios que convém tomar apoio, e nunca se
deve, na dedução, passar de um gênero a outro, a menos que um seja
propriamente subordinado ao outro. Assim, a geometria não poderia
ser explicada pela aritmética: é impossível adaptar às grandezas
extensas as demonstrações próprias ao número. Quando se viola esta
regra, não se tem mais por guia senão os princípios comuns a todas as
ciências; a partir deste momento, as ligações estabelecidas não são
conhecidas senão como acidentais e contingentes, não como essenciais
e necessárias: procedeu-se por analogia, não por demonstração. A
impossibilidade vista aqui por Aristóteles será suprimida por
Descartes e Leibniz.

Os princípios próprios são indemonstráveis como os princípios


comuns. Pretender demonstrar tudo seria condenar-se, seja a uma
progressão ao in nito, seja a um círculo vicioso. Cada ciência possui,
assim, seus próprios princípios especiais irredutíveis.

De onde vêm esses princípios? Não são inatos, nem recebidos de fora
pura e simplesmente. Há em nós uma disposição para concebê-los; e
por efeito da experiência, essa disposição se efetiva. É nisso,
de nitivamente, que consiste a indução, e assim é por indução que
conhecemos os primeiros princípios próprios a cada ciência.

A demonstração supõe a de nição. É preciso que haja de nições


indemonstráveis, caso contrário se iria ao in nito. Não há de nição,
nem do indivíduo, nem do acidente, ou geral indeterminado, mas
apenas das espécies intermediárias entre o geral e o indivíduo. A
de nição se faz pela indicação do gênero próximo e das diferenças
especí cas. Para chegar a constituir uma de nição, é preciso ir do
particular ao geral, e conferir essa indução por uma dedução indo do
gênero às espécies.
Em resumo, uma coisa é conhecida como necessária quando é
associada, por via de dedução, a uma essência especí ca.

Abaixo da apodíctica, que ensina como se pode chegar a conhecer


uma coisa como necessária, está a dialética, ou lógica do provável:43 ela
está exposta nos Tópicos. O domínio da dialética é a opinião, modo de
conhecimento suscetível a verdade ou falsidade. O dialético adota,
como ponto de partida, não de nições necessárias em si, mas as
opiniões ou as teses apresentadas pelo senso comum ou pelos lósofos;
e apura qual, dentre essas opiniões diversas, é a mais provável. Ele
procede por perguntas e respostas, e examina contraditoriamente o
sim e o não de cada tema. Assim, conduz suas perguntas de forma a
colocar, primeiro, uma tese, em seguida uma antítese; e discute ambas
as proposições. Essa discussão consiste em examinar as di culdades
que surgem, quando se quer aplicar a proposição a casos particulares.
O dialético raciocina em forma de silogismos, partindo, no entanto, do
verossímil. O verossímil, tomado como dado, é, de nitivamente, a
essência simplesmente genérica, ainda não determinada pela diferença
especí ca. Somente o acréscimo do princípio especí co ao princípio
genérico poderia tornar a conclusão necessária. Mas os princípios
especí cos não podem ser deduzidos dos princípios genéricos, pois
todo gênero comporta, de forma igual, diferentes espécies.

O papel da dialética é considerável: é o único modo de raciocínio


possível nas matérias que não comportam de nições necessárias. E na
busca das próprias verdades necessárias, é o preliminar indispensável
da demonstração.

O que a dialética é em matéria lógica, a retórica é em matéria moral.


Se a primeira busca o verossímil, a segunda visa persuadir. A retórica,
portanto, vai de par com a dialética, ou melhor, assim como a prática
está para a teoria como o particular está para o geral, a retórica é uma
parte da dialética.44 O modo de raciocínio próprio à retórica é o
entimema, silogismo no qual uma das três proposições é
subentendida, e as razões são tiradas, não da própria essência das
coisas, mas da verossimilhança e de sinais. A principal matéria do
entimema empregada pela retórica é a analogia, ou indução que vai do
particular ao particular.

Por m, da dialética45 distingue-se a erística. Enquanto aquela age no


campo das coisas que são gerais, ordinárias, sem ser necessárias, a
erística age no domínio do puro acidente, de forma deliberada. A
erística contenta-se com uma verossimilhança aceita pelo interlocutor.
Assim, os raciocínios erísticos são puros so smas. Aristóteles os revela
e descreve minuciosamente.

Abaixo das coisas que acontecem sempre, que dependem de uma


essência a um só tempo genérica e especí ca e podem ser conhecidas
como necessárias, e abaixo mesmo das coisas que costumam
acontecer, que dependem de uma essência simplesmente genérica e
podem ser conhecidas como prováveis, há aquelas que acontecem
acidentalmente, sem nenhuma regra. Assim como as coisas que
costumam acontecer dependem da mistura das espécies, os fenômenos
isolados resultam da mistura de gêneros; porém, enquanto o que não é
determinável pela espécie ainda o é, em certa medida, pelo gênero,
fundo comum de diversas espécies, o que não é nem mesmo
determinável pelo gênero deixa completamente de sê-lo, visto que,
acima dos gêneros não há mais nada senão os princípios universais, os
quais, sendo aplicáveis a tudo, não determinam nada. Não há,
portanto, ciência do acaso, enquanto tal, do encontro de dois gêneros.
Apenas os elementos de que se compõe o fenômeno fortuito podem
ser conhecidos como necessários ou possíveis, na medida em que são
associados a suas essências especí cas ou genéricas respectivas: a
junção desses elementos, que constitui propriamente o fenômeno
fortuito, é desprovida de razão, porque os gêneros, enquanto tais, não
têm ligação entre si.

A lógica aristotélica reinou inconteste até Bacon e Descartes. A partir


dos primórdios da loso a moderna, ela foi fustigada por todos os
lados, criticada seja por não ser senão a lógica da exposição, e não da
invenção,46 seja por ser considerada factícia e ilegítima. A discussão se
dá principalmente em torno do valor do conceito ou ideia geral, que é
a base da teoria. Os empiristas, em particular, para quem as ideias não
passam de traços da sensação, medem o valor das generalidades pelo
número de fatos constatados que elas representam, e a rmam que,
como a verdade da premissa maior de um silogismo supõe a da
conclusão, o silogismo é necessariamente um círculo vicioso.

A questão aqui é saber se um conceito não passa de uma ideia


coletiva, ou se é uma unidade, estática ou dinâmica, válida para uma
série inde nida de fatos passados, presentes e futuros. Mas ainda que o
conceito aristotélico não coincidisse exatamente com a natureza das
coisas, como ocorreria se a continuidade fosse a lei fundamental do
ser, nem por isso a lógica de Aristóteles deixaria de conservar um valor
real; não apenas subsistiria como análise das condições do
conhecimento ideal para o espírito humano, mas seria legítima na
medida em que existem espécies na natureza. Ora, estas existem, se
não, talvez, de maneira eterna e primitiva, ao menos de fato e
atualmente. Os seres superiores, sobretudo, formam grupos
relativamente estáveis. Ainda que a continuidade fosse a lei
fundamental, nem por isso se poderia deixar de reconhecer na
natureza uma tendência à descontinuidade e à especi cação. A lógica
aristotélica responderia a essa parte, ou a esse lado da natureza,
governado pela lei de especi cação. Destituída do valor metafísico e
absoluto que lhe era atribuído pelo seu fundador, conservaria um valor
relativo e experimental.47


M
E nquanto cada ciência especí ca considera alguma espécie
particular de seres — a física, por exemplo, o ser enquanto tem em
si matéria e movimento; a matemática, a forma do ser móvel enquanto
se o isola por abstração da matéria em que é realizado —, a loso a
primeira, como é chamada por Aristóteles, considera o “ser enquanto
ser” (τὸ ὄν ἦ ὅν, to on e on), e examina, neste sentido, os seus
princípios.

A metafísica aristotélica constituiu-se em oposição à loso a


platônica. Aristóteles inicia sua exposição, portanto, por uma crítica ao
mestre. Platão, diz ele, busca pelo objeto da ciência e pelo ser enquanto
ser nas essências gerais concebidas como existentes à parte, fora das
coisas e fora umas das outras. Ora, o verdadeiro está aqui misturado
ao falso. Platão bem viu que só o geral pode ser objeto da ciência, e
que assim o mundo sensível enquanto tal não pode ser conhecido
cienti camente. Mas equivocou-se ao crer que os gêneros podem
existir à parte, e que são, eles mesmos, princípios e substâncias. Os
gêneros não existem senão nos indivíduos. Envolve-se em di culdades
insuperáveis quem pretende que existam em si. Qual será, nesta
hipótese, a relação entre as coisas e seus gêneros respectivos? Uma
relação de participação? Mas como conceber essa participação?
Depois, quantos gêneros substanciais haverá? Como pode a ideia,
substância una, situar-se dentro de uma in nidade de indivíduos? Se a
ideia geral é substância, ou não há indivíduos, ou há apenas um.
Ademais, o geral não pode ser princípio e substância, pois é destituído
de força, porque não pode existir em si. O geral é sempre um atributo:
a substância, ao contrário, é sujeito e coisa existente à parte. Portanto,
é fato que só o geral é objeto de ciência, mas a substância, em
contrapartida, não pode ser senão individual.

Daí, todavia, surge uma di culdade. Se, por um lado, toda ciência
trata do geral, e se, por outro lado, a substância não pode ser senão
uma coisa individual, como poderá haver uma ciência da substância?
Nossa teoria não chegaria então a este resultado: uma ciência cujo
objeto não existe, um ser que não pode ser objeto da ciência? Para
resolver essa di culdade, é preciso ampliar a noção de ciência. Nem
toda ciência trata do geral. A ciência possui dois modos, dois graus.
Existe a ciência em potência e a ciência em ato. A ciência em potência
tem por objeto o geral, mas o mesmo não ocorre com a ciência em ato:
esta tem por objeto o ser perfeitamente determinado, o indivíduo.

Nesta doutrina encontra-se a ideia mestra do aristotelismo. O geral


não é o princípio constitutivo do ser: não é dele senão a matéria.
Determinado, por um lado, é por outro lado indeterminado: todo tipo
genérico pode ser realizado de diversas maneiras. Um ser real, uma
substância, é um ser completo que, sob todos os aspectos, é isso e não
aquilo: por conseguinte, há em qualquer ser real alguma coisa a mais
do que em qualquer ideia genérica. Toda a ciência do geral não seria
capaz de construir a individualidade de Sócrates. Duas coisas estão
necessariamente fora dessa ciência abstrata: os acidentes, por estarem
abaixo, e os indivíduos, por estarem acima do geral. O conhecimento
dos indivíduos obtém-se por uma intuição, que, imediatamente,
apreende a unidade substancial que não se poderia deduzir.

Essa irredutibilidade do individual ao geral será reencontrada em


todas as partes da loso a de Aristóteles. Em virtude deste princípio, a
especulação abstrata será incapaz de nos fazer conhecer a natureza;
para isso será necessária a experiência. E, na ordem moral, as leis serão
insu cientes para impor a justiça; será preciso agregar-lhes o
magistrado, encarregado de aplicar judiciosamente as regras gerais à
diversidade in nita dos casos individuais.

Quais são os princípios do ser? O ser que nos é dado é submisso ao


devir. Ora, o devir, na medida em que existe, supõe princípios não
engendrados: é preciso necessariamente deter-se na regressão às
causas, quando se trata de encontrar os elementos integrantes da
existência atual.

Quais são os princípios requeridos para a explicação do devir? São


em número de quatro: 1º. Uma matéria ou substrato, palco da
mudança, isto é, da substituição de uma maneira de ser por outra; 2º.
Uma forma ou determinação; 3º. Uma causa motriz; 4º. Um objetivo.
Assim, os princípios de uma casa são: a madeira como matéria, a ideia
da casa como forma, o arquiteto como causa motriz, e a moradia a ser
realizada, como objetivo.

Esses quatro princípios, por sua vez, se reduzem a dois: a matéria e a


forma. De fato, a causa motriz não é senão a forma num sujeito já
realizado: assim, a causa motriz da casa é a ideia da casa enquanto
concebida pelo arquiteto. E a causa nal é ainda a forma, pois a causa
nal de cada coisa é na verdade a perfeição ou forma à qual ela tende.

A matéria e a forma são portanto, de nitivamente, os dois princípios


não engendrados necessários e su cientes para explicar o devir. A
matéria é o substrato. Ela não é nem isso, nem aquilo: ela pode tornar-
se isso ou aquilo. A forma é o que faz da matéria uma “coisa
determinada” (τὀδε τι, tode ti) e real. Ela é a perfeição, a atividade, a
alma da coisa. A palavra “forma” tem, em Aristóteles, um sentido bem
diferente do que tem entre nós. Assim, uma mão esculpida tem, na
linguagem de Aristóteles, a “ gura”, e não a “forma” de uma mão, pois
não pode realizar as funções próprias à mão. Há uma escala de
existências desde a matéria ín ma, que não tem forma alguma, até a
forma suprema, que não tem matéria. A matéria absolutamente
indeterminada não existe. A forma sem matéria está fora da natureza.
Todos os seres da natureza são composições de matéria e forma. A
oposição entre matéria e forma é relativa. O que é matéria, de
determinado ponto de vista, é forma, de outro. A madeira da estrutura
é matéria em relação à casa, forma em relação à madeira bruta. A alma
é forma em relação ao corpo, matéria em relação à inteligência.

Aristóteles não se atém a essa redução dos quatro princípios à


matéria e à forma: ele busca confrontar esses mesmos princípios; para
tanto, ele os reduz à potência e ao ato. A matéria não é mais, para ele,
uma pura receptividade, como para Platão: ela é disposta a receber a
forma, ela a deseja. A forma não é mais uma coisa heterogênea em
relação à matéria: é sua perfeição natural. A matéria é potência, e
potência capaz de dois contrários determinados. O mecanismo lógico
da substituição das formas numa matéria inerte resolve-se assim num
dinamismo metafísico. Na passagem da potência ao ato, há uma ação
interna. Não é mais uma justaposição ou separação de elementos
inertes e preexistentes: é uma criação espontânea de ser e de perfeição.
Se é preciso, diz Aristóteles, uma força de determinada quantidade
para produzir determinado efeito, a metade dessa força, isoladamente,
não produz esse efeito em nenhum grau. Diversamente, dado um
navio que muitos homens, em conjunto, põem em movimento, um só
homem já poderia imprimir a esse navio uma determinada quantidade
de movimento, o que é contrário à experiência. Determinada parte,
que produz um movimento quando unida ao todo, torna-se
totalmente impotente quando tomada isoladamente e agindo só. É que
a parte, a bem dizer, não existe enquanto parte dentro do que é
verdadeiramente um todo: uma parte não existe senão em potência no
todo do qual pode ser tirada.

O conceito aristotélico da potência e do ato é, como se vê, muito


empírico. Aristóteles supõe que o esforço de um só homem não tem
ação sobre um navio, pois ignora que o trabalho que não se manifesta
em forma de movimento engendra ao menos calor. Não obstante, o
esforço de um só homem é efetivamente sem efeito no que diz respeito
ao movimento de translação. E mesmo nos dias atuais, uma escola de
químicos, raciocinando à maneira de Aristóteles, não considera que o
oxigênio e o hidrogênio existam na água em ato; mas, atendo-se à
experiência, esses cientistas dizem que o hidrogênio e o oxigênio
existem na água em potência, no sentido em que, submetendo-se a
água a determinadas condições, se poderá obter hidrogênio e oxigênio.

Em resumo, o devir, segundo Aristóteles, não deriva nem do ser, nem


do não-ser absolutos; deriva do ser em potência, intermediário entre o
ser e o não-ser.

Desse ser em potência, ou matéria, procede tudo aquilo que, no


mundo, é indeterminação e imperfeição. A matéria é o princípio da
necessidade bruta ou ἀνἁγκη, ananké, que é a causalidade mecânica e
cega, por oposição à causa motriz, que age com vista a um m. Se
existe tal necessidade, é porque a natureza é obrigada a empregar, nas
suas criações, causas materiais. Ora, a matéria, em certo sentido,
resiste à forma. É por isso que as criações da natureza são sempre
imperfeitas; são produzidas muitas coisas desprovidas de objetivo, na
medida em que nascem unicamente pela ação das forças mecânicas.
Da mesma forma que escravos, cuja ação é regrada, e no entanto agem
frequentemente por si próprios, fora da regra. A matéria é o princípio
da contingência dos futuros.

No que diz respeito ao porvir, só é necessária a posição de uma


alternativa determinada: a realização deste ou daquele termo dessa
alternativa é indeterminada. Da matéria procede o acaso. São fortuitos,
num dado ser, os fenômenos que não decorrem da essência desse ser,
mas que resultam seja de sua imperfeição, seja da in uência de causas
estranhas. O acaso se manifesta pela raridade do evento. O evento
fortuito é necessário mecanicamente, mas só é necessário desse ponto
de vista: em relação à nalidade é indeterminável e incognoscível. A
matéria é a causa da imperfeição dos seres, e do mal. É causa também
da multiplicidade das espécies, pois dentro de sua in nita variedade,
os seres da natureza não são senão realizações mais ou menos
completas de um mesmo e único tipo que é dado pela forma. Os
animais não passam de homens inacabados, detidos em certo ponto de
seu desenvolvimento natural. Da presença da matéria no seio das
coisas naturais, segue-se que essas coisas não podem ser objeto de
ciência perfeita, isto é, não podem ser conhecidas como inteiramente
determinadas. O elemento material das coisas, em si mesmo, não
comporta a ciência.

Tais são as causas próximas do ser submetido ao devir. Mas este ser
não seria completamente explicado se fossem considerados
unicamente seus elementos. O ser que devém não encontra sua
explicação última senão num ser eterno.

Já a existência de um Deus se prova, de maneira popular, pela


perfeição gradual dos seres, e pela nalidade que reina na natureza. E
prova-se cienti camente pela análise das condições do movimento. É o
chamado argumento do primeiro motor.
O movimento é a mudança, a relação entre a matéria e a forma. Neste
sentido, o movimento do mundo é eterno. Efetivamente, o tempo é
necessariamente eterno; ora, sem movimento ou mudança, o tempo
não pode existir. Mas quem diz movimento diz, ao mesmo tempo,
móvel e motor. Portanto, o movimento, enquanto eterno, supõe um
móvel eterno e um primeiro motor imóvel. O móvel eterno move-se
de acordo com um círculo; é o primeiro céu, o céu das estrelas xas. O
primeiro motor imóvel é o que se chama Deus.

Esta prova pode ser generalizada da maneira que segue. O atual situa-
se sempre antes do potencial. O primeiro, no absoluto, não é o germe,
mas o ser completo. Ademais, a atuação não poderia realizar-se se já
não existisse o ato puro. Deus é este ato puro.

Em resumo, a demonstração da existência de Deus baseia-se neste


duplo princípio: 1º. O ato é, do ponto de vista da natureza absoluta das
coisas, anterior à potência; 2º. O condicionado supõe o
incondicionado.

O que é Deus? Sua natureza se determina pelo seu papel de primeiro


motor. Deus é puro ato, isto é, isento de indeterminação, de
imperfeição e de mudança. É imóvel e imutável. É o “pensamento que
tem por objeto o pensamento”, e só ele (ἡ νόησις νοήσεως νόησις, e
noesis noeseos noesis). Ele não vê o mundo, pois quando se trata de
coisas imperfeitas, não vê-las é melhor do que vê-las: a dignidade de
uma inteligência se mede pela perfeição de seu objeto. Ele é vida
eterna e excelente, e em consequência é soberanamente feliz.

Neste pensamento que se pensa está suspenso o mundo, como um


pensamento que não se pensa e que tende a se pensar. Eis como Deus
move o mundo. O que é desejado e pensado move, sem mover a si
próprio. É o inteligível que determina a inteligência, não a inteligência
que determina o inteligível. Ora, Deus é o supremo desejável e o
supremo inteligível. Logo, Deus move o mundo como causa nal, sem
mover a si próprio. Deus não é o último produto do desenvolvimento
do mundo, ele é logicamente anterior ao mundo. E não é imanente ao
mundo, como a ordem é imanente a um exército: ele está fora do
mundo, como o general é distinto do seu exército.

O efeito imediato da ação divina é o movimento rotatório do


conjunto do universo, do qual resultam os movimentos ou mudanças
das coisas perecíveis. O mundo é uno, porque Deus é uno. Por ser
Deus inteligente, o mundo é um todo harmonioso, um poema bem
composto. Tudo nele é ordenado em vista de um só m. A relação
entre os seres e o todo é nele tão mais próxima quanto mais alto se
situem esses seres na escala da natureza, assim como, numa casa bem
ordenada, as ações dos homens livres são mais regradas do que as
ações dos escravos. Deus, aliás, para quem o mundo é como se não
existisse, não intervém em nada no detalhe de seus acontecimentos.

Essa teologia é um monoteísmo abstrato. Todos os seres e todos os


fatos da natureza são reduzidos inteiramente a causas naturais. Não é
senão a natureza tomada em seu conjunto que é suspensa à divindade.
Não há nem providência especial, nem recompensa sobrenatural em
outra vida. Da religião popular, Aristóteles não admite como
verdadeira senão a crença geral em uma divindade e na natureza
divina do céu e das estrelas. O resto não consiste, segundo ele, senão
em acréscimos míticos, dos quais o lósofo encontra a explicação,
quer na tendência dos homens às concepções antropomór cas, quer
nos cálculos dos políticos.


F 
A física,
loso a primeira tinha por objeto o ser imóvel e incorpóreo: a
ou loso a segunda, tem por objeto o ser móvel e corpóreo,
na medida em que este tem em si próprio o princípio do seu
movimento. A φύσις, fysis (“natureza”) é o movimento espontâneo,
por oposição ao movimento forçado.

Existe a natureza enquanto tal? Há no universo um princípio interno


de movimento, uma tendência a um m? Este é, segundo Aristóteles, o
princípio fundamental da física: o de que Deus e a natureza não fazem
nada em vão, e que a natureza tende sempre ao melhor; que faz
sempre, na medida do que lhe é possível, o que deve ser o mais belo. A
existência da nalidade no universo é provada pela observação. Tanto
nas menores coisas quanto nas maiores, se prestarmos atenção, há uma
razão, há perfeição e há o divino. A natureza transforma em bem suas
próprias imperfeições.

Mas se a ordem e a harmonia existem no universo, segue-se daí que o


universo seja produto de uma φύσις propriamente dita, ou potência
criadora divina? Não haverá outra explicação possível para essa ordem
e essa harmonia? Quem, por exemplo, nos impede de dizer: “Júpiter
não faz chover para nutrir os grãos, mas os grãos germinam porque
chove”? A necessidade faz chover; e quando ocorre esse fenômeno, o
trigo se bene cia. Da mesma forma, a necessidade faz os órgãos dos
animais, e estes servem-se deles. Onde tudo parece ocorrer tendo em
vista um m, não há, na verdade, senão coisas que sobrevivem, por
terem sido constituídas pelo acaso de maneira conforme às suas
condições de existência. E as coisas que não se viram constituídas
dessa maneira pereceram e perecem, como nos disse Empédocles ter
acontecido aos seus bois de cara humana.

Vã explicação, responde Aristóteles. Pois os órgãos dos animais e a


maioria dos seres que a natureza apresenta aos nossos olhos são o que
são, ou seja, compostos harmoniosos, em todos os casos, ou ao menos
na maioria dos casos. Ora, nunca se passa assim com as coisas
produzidas pelo acaso. Nelas, os encontros felizes são sempre exceção.

Mas, dirão, existem monstros. — Os monstros não passam de obras


malogradas, efeitos de um esforço impotente para realizar o tipo
perfeito. A natureza pode errar, assim como a arte, devido ao
obstáculo que lhe é imposto pela própria matéria sobre a qual
trabalha.

Objetar-se-á en m que não se vê o motor deliberar e escolher? —


Pouco importa, pois a arte tampouco delibera: ela age de maneira
inteligente, sem dar-se conta do que faz.

Portanto, a natureza é uma causa, e uma causa que age com vista a
um m. Mas é preciso reconhecer que ela não é a única causa do
universo. Sua ação não é possível senão graças à cooperação da causa
material ou mecânica, a qual, embora cedendo à sua atração, não se
deixa jamais subjugar inteiramente. A par da nalidade, há portanto
em todo o universo uma parte de necessidade bruta e de acaso.

É por isso que, por um lado, é legítimo o emprego do princípio do


melhor na explicação das coisas da natureza; mas por outro, as coisas
da natureza não podem jamais ser objeto de uma ciência perfeita, em
que tudo seria inteiramente determinado do ponto de vista da
inteligência. A ciência da natureza é sempre imperfeita em alguma
parte, e comporta gradações, como as partes da própria natureza.
Segundo estes princípios, a causa das coisas naturais encontra-se, seja
na sua matéria, seja na sua forma ou destinação. E a explicação
teleológica deve, na medida do possível, complementar a explicação
mecânica, a qual, por mais completa que seja, deixa as coisas
indeterminadas aos olhos da razão. Tal é o método que seguirá
Aristóteles em suas investigações sobre as coisas naturais.

O movimento ou mudança é a realização de um possível. Há quatro


espécies de mudanças: 1ª. A mudança substancial, que consiste em
nascer e em perecer. É o movimento que do não-ser relativo vai ao ser,
e deste àquele. Não há geração e destruição absolutas. Somente os
indivíduos nascem e morrem: os gêneros permanecem; 2ª. A mudança
quantitativa: é o aumento ou a diminuição; 3ª. A mudança qualitativa,
ou passagem de uma substância a outra; 4ª. A mudança espacial, ou
deslocamento.
Todos os modos de mudança são condicionados pelo movimento no
espaço. Aristóteles faz deste movimento um estudo aprofundado. Aos
argumentos dos eleatas contra a possibilidade do movimento, ele opõe
a doutrina de que o in nito não existe senão em potência, não em ato.
O in nito não consiste senão na possibilidade de um crescimento
inde nido dos números e na divisibilidade inde nida das grandezas:
não pode ser dado. Portanto, quando se raciocina sobre o real, não se
deve supor senão quantidades nitas.

No que diz respeito ao espaço, Aristóteles estuda a natureza do lugar.


O lugar de um corpo não é uma coisa em si, é o limite interior do
corpo ambiente. É como um vaso imóvel em que o corpo estaria
contido. Em consequência, nem todos os corpos estão num lugar, mas
somente os que estão encerrados em outros corpos. O céu, continente
universal, não está, ele mesmo, num lugar. O espaço, ou melhor, a
extensão do mundo, é limitado.

O tempo é o número do movimento em relação ao antes e ao depois.


É ilimitado nos dois sentidos.

O contínuo é a característica do tempo e do espaço. É divisível ao


in nito, mas em grandezas, por sua vez, contínuas, e não, como
supunha Zenão, em pontos indivisíveis. Toda grandeza é divisível em
grandezas. O contínuo é, aliás, uma noção imperfeita, relativa às coisas
sensíveis. Pois é divisível ao in nito e, por consequência,
indeterminado quanto ao número de seus elementos.

Desses princípios, Aristóteles conclui que fora do mundo não há


espaço nem tempo, que o vazio dos atomistas é inconcebível, que todo
movimento se produz no cheio, por substituição, e que o tempo, que é
um número, supõe, como todo número, uma alma que lhe conte as
unidades. O movimento no espaço, condição de todos os outros, é o
único a ser contínuo. E o movimento circular é o único que pode ser a
um só tempo uno e contínuo, sem começo nem m.
Aristóteles não pensa que se possa explicar todas as mudanças
unicamente pelo movimento no espaço. Ele considera as qualidades
como realidades, e admite, como irredutível ao movimento no espaço,
uma mudança qualitativa. Ele constitui essa teoria em oposição ao
mecanicismo de Demócrito e ao matematicismo de Platão. Contra as
doutrinas desses dois lósofos, ele levanta duas objeções: 1ª.
Demócrito e Platão reduzem as grandezas a pontos indivisíveis: ora,
toda grandeza é divisível ao in nito; 2ª. É impossível, não importa
como se proceda, fazer advir qualidade da quantidade pura.

É por isso que Aristóteles coloca como princípio a distinção


qualitativa das substâncias.

E assim como há uma natureza qualitativa, há também uma


transformação qualitativa. Uma substância, sob in uência de outra,
modi ca-se em seu interior. Este fenômeno é possível quando dois
corpos são em parte semelhantes, em parte dessemelhantes, ou seja,
quando duas substâncias são opostas entre si dentro de um mesmo
gênero; e não é possível senão neste caso. A mudança de uma dessas
substâncias para outra não é um simples deslocamento mecânico, no
qual os elementos permanecem idênticos em meio à mudança do
composto: é efetivamente a formação de uma nova substância, de
fundo distinto da anterior. Entre a substância dada e a substância
resultante da mudança qualitativa, há a relação entre a potência e o
ato.


M
A matemática considera as relações de grandeza, a quantidade e o
contínuo, abstraindo as outras qualidades físicas. Trata, assim, das
coisas que são imóveis sem existirem à parte, essências intermediárias
entre o mundo e Deus. O matemático isola por abstração, nas coisas
sensíveis, a forma da matéria.

A matemática é pura ou aplicada. A geometria e a aritmética


constituem a matemática pura. A matemática pode ser aplicada tanto
às artes práticas — como, por exemplo, a geodésia — quanto às
ciências naturais — como, por exemplo, a óptica, a mecânica, a
harmonia, a astrologia. Neste último caso, a questão de fato é matéria
para o físico, e o porquê é matéria para o matemático.

A matemática faz uso das noções do bom e do belo, pois a ordem, a


simetria, a determinação, objetos matemáticos por excelência, guram
entre os elementos mais importantes do bom e do belo.

As obras matemáticas de Aristóteles não chegaram até nós. Ele


compôs, em especial, um tratado de matemática, um tratado da
unidade, um tratado de óptica, e um tratado de astronomia. Nas obras
que conhecemos, ele dá com frequência exemplos tirados da
matemática.


C
D amovimento,
eternidade da forma e da matéria, segue-se a perpetuidade do
e também a da existência do mundo. As espécies são
eternas, e sempre houve homens: somente os indivíduos nascem e
morrem. Sendo o mundo eterno, a ciência do mundo não é mais uma
cosmogonia, mas uma cosmologia. Aristóteles já não precisa explicar a
formação do universo, apenas seu sistema.
O mundo é uno, nito e bem ordenado. É uma obra de arte. É belo e
bom, na medida em que o permite a resistência do elemento material.
Sua forma é perfeita; é a única, aliás, que possibilita o movimento do
conjunto sem vazio ao seu redor: a forma esférica.

Compõe-se de duas metades desiguais: 1ª. O mundo supralunar ou


celeste: é a abóbada a que estão presas as estrelas xas; 2ª. O mundo
infralunar ou terrestre.

O mundo celeste é animado por um movimento de rotação


produzido diretamente por Deus. A natureza imperecível das estrelas e
a regularidade imutável de seus movimentos provam que elas diferem,
quanto à matéria, das coisas terrestres, submetidas a uma perpétua
mudança. A matéria das estrelas é o éter, ou quinto elemento
(quintessência), o corpo sem contrário, e, por conseguinte,
incorruptível, não admitindo mudança senão a de lugar, nem
movimento senão o circular. Os outros elementos, ao contrário,
matéria dos corpos terrestres, são corruptíveis e comportam o
movimento de baixo para cima e de cima para baixo, ou seja, do
centro à circunferência e da circunferência ao centro. O céu das
estrelas xas é a morada do ser e da vida perfeita, da ordem inalterável.
As estrelas são seres isentos de envelhecimento, que levam uma vida
bem-aventurada, exercendo sem fadiga uma atividade eterna. Elas são
bem mais divinas que o homem. Nossos ancestrais tiveram uma vaga
intuição da verdade ao considerar as estrelas como deuses.

Dentro do céu das estrelas xas está a região dos planetas, entre os
quais Aristóteles situa, além dos cinco planetas conhecidos pelos
antigos, o Sol e a Lua. No centro do mundo está a Terra, de forma
esférica. O céu dos planetas é feito de uma substância cada vez menos
pura, à medida que se afasta do céu das estrelas xas. Diferentemente
do primeiro céu, que é uma esfera única contendo todas as estrelas, o
céu dos planetas é composto por uma multiplicidade de esferas, pois
os movimentos dos planetas, relativamente irregulares, supõem uma
multiplicidade de motores cujas ações se combinam entre si.
Excluídos os astros xos, todos os outros seres são feitos dos quatro
elementos. Cada elemento tem seu movimento próprio, que é o avanço
retilíneo em direção a seu lugar natural. Daí decorrem o peso e a
leveza. O peso é a tendência de cada corpo a seguir sua direção
própria. Não é possível dizer, como Demócrito, que todo movimento
resulta pura e simplesmente de um choque, e assim até o in nito. É
preciso deter-se na regressão, ao menos na ordem lógica. O
movimento forçado supõe o movimento espontâneo.

O próprio do elemento terrestre é dirigir-se ao centro. Daí a situação


da terra, imóvel no centro do universo. A Terra é esférica. Seus
elementos estão entre si em dupla oposição, de peso e de qualidade.
Por um lado, são pesados ou leves; por outro, são quentes ou frios,
secos ou úmidos. Dessa oposição resulta que os elementos da Terra
transformam-se constantemente uns nos outros. O calor e a luz são
engendrados pela fricção in igida ao ar pela velocidade extrema das
esferas celestes. Devido à inclinação da eclíptica, a produção de luz e
calor se dá em diferente medida nas diferentes regiões da Terra e nas
diferentes épocas do ano. Esta é a origem do ciclo de geração e
destruição, essa imagem da eternidade na natureza perecível. A ação
vai da periferia ao centro, sendo o céu das estrelas xas como a forma
suprema, e a Terra como a matéria ín ma. Pela ação recíproca das
duas potências ativas, que são o calor e o frio, e das duas potências
passivas, que são o úmido e o seco, formam-se os diferentes corpos
minerais e corpos organizados.

Os seres terrestres formam uma hierarquia, desde o ser mais próximo


da matéria bruta até o homem masculino. Cada forma inferior é a base
das formas superiores, e cada forma superior é a perfeição relativa das
formas inferiores. Os principais graus da hierarquia são representados
pelos corpos sem vida, pelas plantas, pelos animais e pelo homem.

A
A ristóteles ocupou-se muito de astronomia. Simplício relata,
segundo Porfírio, que tendo em vista seus estudos nessa ciência,
ele mandou que Calístenes compilasse as observações astronômicas
feitas pelos caldeus na Babilônia, em especial as observações
remontando a 1900 anos antes de Alexandre. O próprio Aristóteles nos
diz que empregou as observações, remontando à alta Antiguidade, dos
egípcios e dos babilônios. Ele havia escrito um Ἀστρονομιχόν
(Astronomikon), que se perdeu.

Todos os seres celestes, segundo Aristóteles, são esféricos. O primeiro


céu, ou céu das estrelas xas, é uma esfera. Os planetas são movidos
por esferas; a Terra é esférica.

Todo movimento simples é um movimento de rotação em torno de


um eixo. O céu dos astros xos não tem senão um movimento. O céu
dos planetas (Saturno, Júpiter, Marte, Vênus, Mercúrio, Sol, Lua) tem
vários para cada planeta. A Terra não tem movimento.

Aristóteles sustenta a doutrina da esfericidade da Terra, e dá a correta


explicação das fases da Lua.

Ele trabalhou, em conjunto com o astrônomo Cálipo, para completar


e reti car a teoria das esferas de Eudoxo, maior astrônomo da época, e
a teoria do próprio Cálipo. Eis o resumo de sua teoria: É preciso — diz
Aristóteles, assim como Platão, que nisso estava de acordo com
Eudoxo e Cálipo — admitir tanto o número de esferas quanto, para
essas esferas, seu modo de movimento; isso é necessário para explicar,
sem outro elemento além de movimentos rotatórios uniformes, as
revoluções dos planetas, do modo como se apresentam à observação.
Colocando assim o problema, Eudoxo chegava a supor vinte e seis
esferas, e Cálipo trinta e três. Aristóteles aceita o número de Cálipo.
Mas como, na sua loso a, as esferas exteriores estão para as interiores
como a forma está para a matéria, ele precisa acrescentar esferas
antagonistas, para que cada esfera exterior não imprima seu
movimento a todas as esferas que lhe são interiores, como faz a esfera
das estrelas xas. Há, portanto, para cada planeta, tantas esferas
antagonistas quantas são necessárias para anular a ação das esferas
planetárias exteriores. Essas esferas suplementares são em número de
vinte e duas, as quais, somadas às trinta e três de Cálipo, totalizam
cinquenta e cinco esferas. Estimando que o Sol e a Lua, muito
afastados dos outros planetas, não tenham necessidade de esferas
antagônicas, o número total de esferas será reduzido a quarenta e sete.
Eis então, diz Aristóteles, o que é verossímil. Quanto ao necessário,
deixaremos que o a rme alguém mais ousado do que nós.

A cada uma dessas esferas o movimento deve ser transmitido, assim


como ao primeiro céu, por uma substância incorpórea, um espírito,
um deus. Aliás, por isso mesmo, os astros, objeto e m dos
movimentos das esferas, são deles as causas verdadeiras. Os astros são,
assim, seres animados, racionais, superiores ao homem.


M
A meteorologia tinha sido muito cultivada desde Tales. Aristóteles
valeu-se dos trabalhos dos que o antecederam, mas fez também
pesquisas originais no espírito de sua própria loso a. Os fenômenos
meteorológicos resultam, segundo ele, da ação dos quatro elementos
entre si. Em conformidade com a natureza desses elementos, os
resultados de sua ação mútua são menos determinados, e obedecem a
leis menos rigorosas do que os fenômenos que se produzem no
primeiro elemento ou éter. Por isso, Aristóteles busca para os meteoros
explicações sobretudo empíricas e mecânicas. Ele atribui um papel
preponderante ao calor. É dessa maneira que ele explica os cometas, a
via láctea, as nuvens, as neblinas, os ventos, as relações entre mares e
continentes, a formação do mar; e suas explicações denotam
frequentemente uma observação exata e um raciocínio inteligente. Os
ventos, por exemplo, são explicados pelo movimento dos vapores
resultantes de suas diferenças de temperatura. Os terremotos são
devidos à ação de gases subterrâneos. O arco-íris não passa de um
fenômeno de re exão: as gotículas das nuvens agem, em relação à luz
do Sol, como espelhos.

Todas essas pesquisas são teóricas: Aristóteles não pensa em aplicá-


las na previsão dos fenômenos.


M
M inerais são os corpos homogêneos que como tal permanecem, e
não se organizam em indivíduos compostos de partes diferentes.
Esses corpos são formados pelo frio e pelo calor, combinando ou
desagregando, enquanto propriedades ativas, o úmido e o seco, que
desempenham o papel de propriedades passivas.


B 
A biologia é parte considerável da obra cientí ca de Aristóteles. Ele
pode, sem dúvida, ter se servido do trabalho de seus antecessores,
especialmente de Demócrito, mas foi tão além deles que desponta
como o verdadeiro criador da biologia entre os gregos. Ele procede,
em primeiro lugar, pela observação, devendo a determinação dos
fenômenos preceder à busca das causas. À observação pura e simples,
ele parece ter acrescentado a dissecção. Ele vai da anatomia à
siologia; e, de maneira geral, fundamenta a biologia na física, dando-
lhe por base o conhecimento dos quatro elementos. Ele abordou não
apenas todos os problemas que podiam ser concebidos em seu tempo,
mas quase todos aqueles que preocupam a ciência moderna. As
soluções que apresenta são, em geral, cuidadosamente demonstradas; e
seus raciocínios são corretos e engenhosos, considerando os
conhecimentos da época. Diga-se, porém, que muitas vezes suas
explicações são arbitrárias, ou sobretudo metafísicas; e às vezes, ele
chega a atribuir a simples lendas o valor de uma demonstração.

A vida é um movimento. Ora, todo movimento supõe uma forma que


se move, e uma matéria que é movida. A forma é a alma, a matéria é o
corpo. A alma não é um corpo, tampouco existe sem corpo. A alma
move sem se mover; ela é imóvel, e não, como queria Platão,
automotriz. Como forma do corpo, é o seu objetivo; o corpo não é
senão o instrumento da alma, e sua estrutura é regrada por essa
nalidade. Aristóteles de ne com propriedade a alma como enteléquia
primeira de um corpo físico orgânico. Isso signi ca que a alma é a
força permanente que move o corpo e determina sua constituição. É
natural que a nalidade da natureza se mostre nos seres vivos com
mais clareza do que em qualquer outra parte, porque neles tudo é,
desde o início, calculado em função da alma. Mas, como só aos poucos
a forma vence a resistência da matéria, a vida psíquica tem graus, que
são essencialmente três: nutritividade, sensibilidade e inteligência. A
nutritividade é a qualidade fundamental dos seres vivos. É dela que
procedem o desenvolvimento vital e a morte. Ela existe tanto entre as
plantas como entre os animais. Estes possuem, a mais, a sensibilidade.
O homem, animal superior, possui a nutritividade, a sensibilidade e a
inteligência.
A biologia aristotélica trata principalmente dos animais. O corpo dos
animais é feito de substâncias homeômeras, que são uma mistura das
substâncias elementares. A matéria imediata da alma é o πνεῦμα,
pneuma (“fôlego”, “sopro”), princípio do calor vital, corpo próximo do
éter, com o qual a alma se transmite, no sêmen, do pai ao lho. A sede
principal do calor é o órgão central, ou seja, nos animais providos de
sangue, o coração. No coração o sangue cozinha, depois de formado
pelas substâncias nutritivas trazidas pelas veias; e o sangue, alimento
de nitivo, nutre e mantém o corpo. Transforma-se em carne, osso,
unha, chifre, etc. O poder nutritivo dos alimentos não está em
conterem partículas de carne, osso ou medula que venham unir-se
diretamente às substâncias semelhantes existentes no corpo; mas é
graças a uma série de cocções que o alimento chega ao estado que lhe
permite ser assimilado pelo organismo. Muito preciso sobre a
assimilação, Aristóteles não parece ter pensado na desassimilação.


B
A scertamente
obras de Aristóteles sobre botânica se perderam, mas ele
impulsionou os estudos feitos sobre as plantas em sua
escola; e parece ter contribuído grandemente para a criação da
botânica cientí ca.


A   
D eve-se distinguir entre anatomia e
siologia comparadas.
siologia gerais e anatomia e

As partes do organismo são de dois tipos: as partes homogêneas,


como os tecidos; e as partes heterogêneas, como os órgãos. Os órgãos
possuem uma função, como a mão ou a língua. Os tecidos possuem
propriedades. Aristóteles estuda sucessivamente as partes homogêneas
e as partes heterogêneas.

As partes homogêneas são: 1ª. As veias, os ossos, as cartilagens, as


unhas, os pelos, o chifre, etc.; 2ª. A gordura, o sebo, o sangue, a
medula, a carne, o leite, o líquido seminal, as membranas. As
explicações de Aristóteles a respeito dessas partes são frequentemente
nalistas, e fazem derivar a natureza da função. Assim, os incisivos, diz
ele, crescem antes dos molares, por ser preciso cortar ou rasgar o
alimento antes que se possa triturá-lo.

No que diz respeito às partes heterogêneas, o estudo anatômico não é


separado do estudo siológico.

O primeiro dos órgãos é o coração. Aristóteles não tem ideia da


circulação como a entendemos hoje, tampouco de dois tipos de
sangue; mas admite que o sangue se distribui no corpo pelas veias
como por canais. O coração é o centro do ser vivo, a sede da formação
do sangue e a fonte de seu calor. Todos os animais possuem um
coração e sangue, ou substitutos dessas condições primordiais da vida.
Os animais que podem ser divididos sem que as partes cessem
imediatamente de viver não são animais simples, mas aglomerados de
animais. O grau de unidade dá a medida da perfeição do ser. Nenhum
animal mutilado repara seus danos como a planta, na qual o princípio
de vida encontra-se disperso por todo o ser.

As outras partes heterogêneas são: o diafragma, os órgãos dos


sentidos, os órgãos do movimento, o encéfalo, os pulmões, as vísceras
abdominais, os órgãos sexuais.
Aristóteles estende-se acerca dos sentidos. A sensação consiste em ser
movido, em experimentar alguma alteração. Há dois tipos de sentidos:
os sentidos indiretos, que agem por intermédio do ar: visão, audição,
olfato; e os sentidos diretos, que agem por contato: tato e paladar; estes
últimos são mais importantes para a conservação do indivíduo. Os
sentidos indiretos estimam, sejam diferenças de natureza dos objetos,
sejam distâncias: deve-se também distinguir sua precisão e seu
alcance.

O olho não é um simples espelho; a presença de uma imagem não


seria su ciente para produzir a visão: é necessária uma propriedade
psíquica que um simples espelho não possui. O fundo do olho não só
re ete a imagem, mas tem a propriedade de ver.

A audição é, indiretamente, o mais intelectual de todos os sentidos,


uma vez que permite a comunicação de ideias através da linguagem. A
palavra não é senão uma sequência de sons que penetra no ouvido: é
um mesmo movimento que se propaga do ouvido à garganta.

O tato difere dos outros sentidos na medida em que estes nos


fornecem contrastes de um único tipo, enquanto o tato nos dá o
quente e o frio, o seco e o úmido, o duro e o mole. No que se refere ao
movimento, Aristóteles não conhece dele outro órgão além dos
tendões, que ele chama de nervos. Ele busca-lhes o princípio, não nos
próprios membros, mas num órgão motor central. O princípio do
movimento é o coração, ou seu equivalente nos animais que não o
possuem. Os movimentos são de dois tipos: voluntários e
involuntários. Os movimentos do coração, por exemplo, são do
segundo tipo.

Assim como o coração é um órgão calorí co, o encéfalo e os pulmões


são órgãos arrefecedores.

Dos órgãos abdominais, Aristóteles estuda cuidadosamente o


estômago, do qual faz descrições admiravelmente detalhadas no que
diz respeito aos ruminantes e aos pássaros, e os órgãos sexuais, sobre
os quais suas observações costumam ser muito acuradas. Ele investiga
a parte que cabe aos dois sexos na produção de um novo ser.

Ele se interessa também pela questão da hereditariedade. Nega a


pangênese, segundo a qual os pais forneceriam germes semelhantes a
eles, por haver crias que não se assemelham a seus pais, como as
lagartas, nascidas das borboletas. Segundo ele, os materiais formadores
do novo ser formam-se por meio de substâncias diferentes da
substância de seus pais. Há um líquido seminal masculino, o esperma,
e um líquido seminal feminino, o mênstruo. Da mistura desses dois
elementos, como da união entre a forma e a matéria, resulta o germe.
Do homem nasce, assim, a alma, e da mulher, o corpo da criança
resultante de sua união.

A diferença entre os sexos se reduz a uma diferença de grau. Na


mulher o alimento sofreu uma elaboração menos completa do que no
homem, pois nela a potência criadora não concluiu sua obra.

Aristóteles explica de forma análoga os casos teratológicos. As


monstruosidades não são senão dissemelhanças maiores ou menores,
resultantes de excesso ou falta. São desvios do curso normal das coisas,
embora tenham por base as forças naturais.

Com o mesmo espírito, Aristóteles ocupou-se da embriogenia.


Interpretando, segundo os princípios de sua loso a, os resultados de
suas minuciosas observações, ele admite que o desenvolvimento do
germe é um resumo da progressão geral da vida na natureza. A vida do
germe é, inicialmente, comparável à dos vegetais; em seguida, o
embrião entra num estado comparável ao sono, porém um sono sem
despertar. O feto torna-se animal quando adquire o sentimento. Só
então é capaz de sono verdadeiro. A ordem em que surgem os órgãos é
determinada por sua utilidade e pelo papel que desempenham na
formação dos outros órgãos. O coração é também o primeiro órgão a
se desenvolver.
Encontram-se em Aristóteles muitos aforismos e considerações
biológicas referentes ao que chamamos hoje anatomia e siologia
comparadas.

Ele estuda cuidadosamente as semelhanças e diferenças orgânicas. Os


órgãos podem assemelhar-se na aparência. Órgãos aparentemente
diferentes podem não ser senão desenvolvimentos mais ou menos
completos de um único tipo de órgão, de tal forma que o excesso ou a
falta façam toda a diferença. Pode haver semelhança por analogia:
assim, a pena está para a ave como a escama está para o peixe. A
mesma relação está presente entre os ossos e as espinhas dos peixes,
entre unhas e chifres, etc. Espécies diferentes podem exibir os mesmos
órgãos dispostos de maneira diferente. Órgãos diferentes podem
cumprir a mesma função.

Aristóteles determina um grande número de correlações orgânicas.


Por exemplo: todos os animais têm sangue, ou um equivalente do
sangue. Os animais sem pés, de dois pés ou de quatro pés têm sangue;
todos os que têm mais de quatro pés têm linfa. Há, entre os
ruminantes, uma correlação entre a presença de chifres e a ausência de
caninos. Os movimentos laterais da mandíbula inferior existem apenas
entre os animais que trituram seu alimento. Todos os animais
verdadeiramente vivíparos respiram no ar, etc.

A lei da divisão do trabalho é formulada claramente. A natureza, diz


Aristóteles, emprega sempre, se nada a impede, dois órgãos distintos e
especí cos para duas funções diferentes. Quando não é possível, ela se
serve do mesmo instrumento para diversos usos; mas é melhor que
um mesmo órgão não sirva a diversas funções.

As in uências do meio contribuem para determinar as formas


animais. Nos climas quentes, diz Aristóteles, são sobretudo os animais
frios por natureza, como cobras, lagartos e animais de escamas, que
atingem dimensões consideráveis.
Aristóteles estudou também a relação entre o físico e o moral, ou
siognomonia. Tudo indica que as Physiognomonica não são
autênticas, mas provêm sem dúvida de seu ensinamento. Na História
dos animais, ele investiga a que diferenças morais correspondem as
diferenças físicas no rosto humano.

As espécies propriamente ditas são, segundo ele, estáveis e separadas


umas das outras. Mas, ao lado do absoluto, Aristóteles admite a
existência do contingente. Há portanto um certo jogo na natureza, e as
formas e faculdades orgânicas comportam uma variabilidade restrita.
Uma diferença aparentemente insigni cante e situada em pequenas
partes pode ser su ciente para produzir diferenças consideráveis no
conjunto do corpo do animal. Pela castração, por exemplo, remove-se
apenas uma pequena parte do corpo do animal; entretanto, essa
remoção altera sua natureza, aproximando-o do outro sexo. Quando o
ser encontra-se em estado embrionário, uma minúscula diferença fará
dele um macho ou uma fêmea. É da diferente disposição de pequenas
partes que resulta a diferença entre o animal terrestre e o animal
aquático. Em resumo, segundo Aristóteles, há na natureza unidade de
composição, e continuidade progressiva. O próprio homem, que, ao
que sabemos, ocupa o topo da escala, não é separado dos animais, do
ponto de vista físico, senão por diferenças a mais ou a menos. De um
reino a outro a passagem é imperceptível. Assim, encontram-se no
mar seres intermediários entre os animais e as plantas; as esponjas, por
exemplo. Os tipos principais, bem como as etapas do desenvolvimento,
nem por isso são menos determinados e irredutíveis entre si.


Z
A ristóteles foi o primeiro zoologista classi cador. A bem da verdade,
não parece ter sido sua intenção estabelecer uma classi cação
zoológica: suas tentativas de classi cação são apresentadas como
exemplo apenas. Ele tampouco distribuiu os animais numa hierarquia
de gêneros e espécies: ele se limitou à de nição dos grupos principais.
Mas viu que o critério da espécie resulta da reprodução, da
interfecundidade. Ele só considera da mesma espécie os animais
descendentes de genitores comuns. Sua classi cação pretende ser
natural, isto é, tende a reunir os animais que têm entre si semelhanças
fundamentais. Seu esforço, aqui como em todos os domínios, tende a
fazer a distinção entre o essencial e o acidental.

A primeira divisão é entre os animais que têm sangue (são os que


chamamos de vertebrados) e os animais que não têm sangue (os
invertebrados). A divisão dos animais sanguíneos fundamenta-se
principalmente na embriogenia e na consideração do elemento em que
vivem esses animais. Os animais sanguíneos se dividem em vivíparos
verdadeiros, ovovivíparos e ovíparos. Os animais que não têm sangue
dividem-se em moluscos (correspondentes aos nossos cefalópodes),
crustáceos, testáceos (moluscos, exceto os cefalópodes) e insetos.

Na descrição das espécies, das quais ele menciona perto de


quatrocentas, Aristóteles dá prova de conhecimentos muito extensos.
Ele trata, entre outras coisas, da moral dos bichos. Chama as abelhas
de sábias.

No que diz respeito à origem primeira do homem e dos outros


animais sanguíneos, ele pondera se procedem de uma espécie de
escólex (larva de determinados vermes) ou de um ovo perfeito, do
qual apenas uma parte torna-se o germe, desenvolvendo-se às
expensas do resto. Ele considera a produção espontânea de um ovo
perfeito pouco provável, porque nunca se vê disso um exemplo. Os
testáceos e vermes, ao contrário, nascem espontaneamente.

P
O que diferencia o homem dos outros animais é o νοῦς, nôus que 56

nele se une à alma animal. Ele possui faculdades que são comuns
aos animais, e faculdades que lhe são próprias. Em comum com os
animais, o homem tem a sensação e as faculdades que dela derivam.

A sensação é a mudança produzida na alma pelo objeto sensível,


como por um contrário, por meio do corpo, e que consiste em que a
forma do objeto sentido é comunicada ao sujeito senciente. A sensação
é, portanto, o ato comum ao sensível e ao senciente.

Cada sentido nos informa exclusivamente sobre as propriedades das


coisas a que é especi camente relacionado; e o que ele nos diz dessas
propriedades é sempre verdadeiro. As propriedades gerais são
conhecidas pelo sensorium commune,57 no qual se reúnem todas as
impressões sensíveis. É nele também que as sensações são comparadas
e relacionadas aos objetos como causas, e a nós mesmos como sujeitos
conscientes. O órgão do sensorium commune é o coração. Seus dados
podem ser verdadeiros ou falsos.

A sensação é a base da vida psíquica animal. Ela é capaz, tanto do


ponto de vista teórico quanto do prático, de um desenvolvimento que
dá origem a diversas outras faculdades. Quando o movimento no
órgão do sentido se mantém para além da duração da sensação,
propaga-se ao órgão central, e, aí chegando, provoca uma nova
aparição da imagem sensível, trata-se da imaginação. Os produtos
dessa faculdade podem ser verdadeiros ou falsos. Se uma imagem é
reconhecida como a reprodução de uma sensação passada, trata-se da
memória. Aristóteles reúne, ao estudo dessas faculdades, pesquisas
sobre a natureza do sono, da morte e dos sonhos, do ponto de vista
psicológico.
Considerada do ponto de vista prático do bom e do mau, a sensação
comporta um desdobramento paralelo ao precedente. Pelo simples
fato de um animal ser dotado de sensação, ele é capaz de prazer e de
dor. Quando sua atividade se desenvolve sem obstáculo, trata-se de
prazer; no caso contrário, trata-se de dor. Prazer e dor são,
de nitivamente, nos seres plenamente capazes de senti-los,
julgamentos sobre o valor das coisas. Os seres capazes de prazer e de
dor possuem, consequentemente, desejo, o qual não é senão a busca
pelo que é agradável. Possuem, da mesma forma, paixões.

Todas essas funções já pertencem aos animais, embora só se realizem


perfeitamente no homem. O homem possui, ademais, a inteligência.
Até aqui, assistimos a um desenvolvimento, uma progressão contínua.
Entre a alma animal e o nôus, ao contrário, há uma ruptura. O nôus é
o conhecimento dos primeiros princípios. Não tem nascimento, é
eterno. É isento de passividade, existe em ato. Não tem órgãos. Não
decorre, portanto, do desenvolvimento da sensação, vem de fora e é
separável.

Mas a inteligência humana não se limita a esse nôus acabado e


imóvel. Ela aprende; conhece as coisas perecíveis, as coisas que podem
ser assim ou de outra forma. Portanto, o nôus, no homem, se mistura
com a alma: há uma inteligência inferior intermediária entre o nôus
absoluto e a alma animal. Essa inteligência pode ser chamada νοῦς
παθητικός, nôus pathetikós, “inteligência passiva”, por oposição ao
νοῦς ἀπαθός, nôus apathós, “inteligência em ato”. Este nôus inferior é
sujeito, mas não objeto; seu objeto são as coisas perecíveis.

Ele depende do corpo, e perece com ele. Dessa inteligência passiva há


rudimentos entre os animais, entre as abelhas, por exemplo; mas não
existe plenamente senão no homem.

O nôus pathetikós tem dois tipos de função: funções teóricas e


funções práticas.
Considerado do ponto de vista teórico, o nôus pathetikós,
originalmente, não é nôus senão em potência. É uma tábula rasa em
que ainda não há nada escrito. O nôus pathetikós só pensa por meio
de imagens e sob a in uência do nôus superior. Sob essa in uência, ele
extrai da sensação o geral nela contido, e que a sensação não alcança
senão por acidente: ele se de ne pouco a pouco graças a essas
essências gerais. Mas a ciência perfeita não pertence senão ao νοῦς
θεορητιχὀς, nôus theorétikos, ou “nôus superior”, que procede, a
priori, a partir das causas.

O nôus, no seu uso prático, não possui princípios próprios: a prática


não consiste senão na aplicação das ideias teóricas. Essa realização se
dá de duas maneiras: 1ª. Pela produção (ποιεῖν, poiein); 2ª. Pela ação
(πράττειν, prattein).

Sobre a ação, Aristóteles apresenta uma teoria da vontade, que é sua


fonte. A vontade é a combinação da inteligência e do desejo. Enquanto
desejo, ela coloca ns a serem realizados; enquanto inteligência,
determina os meios que correspondem a esses ns. Os objetos da
vontade são determinados em relação a dois ns principais: o bem e o
possível.

À existência da vontade está ligado o livre-arbítrio. Nos seres


desprovidos de razão, o desejo não pode nascer senão da sensação. No
homem, pode ser engendrado, seja pela sensação, seja pela razão.
Engendrado pela sensação, é apetite. Engendrado pela razão, é
vontade. Entre apetite e vontade situa-se o livre-arbítrio, ou a
faculdade de autodeterminação. Virtude e vício dependem de nós;
somos o princípio dos nossos atos. A realidade do livre-arbítrio é
provada pela imputabilidade moral, suposta pela legislação, pelo elogio
e a censura, pela exortação e a defesa. A essência do livre-arbítrio é a
espontaneidade, e, mais precisamente, essa espontaneidade que é a
preferência; pois as crianças e os bichos possuem, de fato, a
espontaneidade, mas somente o homem é verdadeiramente livre,
porque somente ele é capaz de escolher.

M
E ntre os seres desprovidos de inteligência, os ns são atingidos
imediata e necessariamente. O homem possui um m mais
elevado, que não se realiza pelo simples jogo das forças naturais, mas
pela ação de sua liberdade. Trata-se de saber como ele deve organizar
sua vida para realizar a ideia do homem, para agir segundo a essência
que lhe é própria, e não por in uência da necessidade ou do acaso. Daí
a ideia da loso a prática, ou loso a das coisas humanas. Essa
loso a busca o m e os meios da atividade própria ao homem.

A loso a prática compreende três partes, correspondentes às três


esferas de ação que se oferecem ao homem. Essas três partes são: a
ética, ou regra da vida individual; a econômica, ou regra da vida de
família; e a política, ou regra da vida social. Segundo a ordem
cronológica, a ética antecede à econômica, que, por sua vez, antecede à
política. Segundo a ordem da natureza e da perfeição, a relação se
inverte. A política, efetivamente, é a conclusão da econômica, que, por
sua vez, determina a atividade humana com mais precisão do que a
ética pura e simples.

Começaremos pela ética, ou moral. A moral divide-se em moral geral


e moral particular.

Em Aristóteles, a moral não tem com a física a mesma relação que


tem em Platão. O bem não é transcendente; a natureza não é hostil ou
puramente passiva diante do ideal. Assim como a forma existe em
potência na matéria, a natureza tende à virtude, que não é senão o
desenvolvimento normal das tendências naturais. Não nascemos
virtuosos, sem dúvida, mas tendemos, naturalmente, à virtude: a
cultura e a arte são a perfeição da natureza. É preciso, aliás, distinguir
entre o bem em si e o bem para o homem. O bem considerado pela
moral não é o bem em si, mas apenas o bem em sua relação com a
natureza humana.

O que é o bem moral? Toda ação tendo um objetivo, deve haver um


objetivo supremo, e esse objetivo supremo não pode ser senão o bem
superior a todos os outros bens, o melhor. O que é esse melhor?
Costuma-se concordar que é a felicidade, mas não há consenso sobre a
de nição de felicidade. Precisamos investigar no que ela consiste
verdadeiramente.

Para todo ser vivo, o bem consiste na perfeição ou plena realização da


atividade que lhe é própria. Para o homem, portanto, a felicidade
residirá na perfeição da atividade propriamente humana. Tal é o sinal
distintivo da verdadeira felicidade. Em consequência, não se pode
situar essa felicidade nem na fruição sensível, comum ao homem e ao
animal; nem no prazer, que não é um m em si, não sendo almejado
senão em vista da felicidade; nem na honra, que não está em nosso
poder e vem de fora. Até a virtude, por si só, pode não proporcionar
felicidade, pois não se pode chamar de feliz o homem virtuoso
impedido de agir e oprimido pelo sofrimento. A felicidade consiste na
constante atividade de nossas faculdades propriamente humanas, isto
é, intelectuais. A felicidade é a ação guiada pela razão, em meio a
circunstâncias favoráveis a essa ação.

Se assim é, o elemento constitutivo da felicidade é sem dúvida a


virtude, ou realização da parte superior de nossa alma: a virtude
cumpre, em relação à felicidade, o papel de forma e de princípio. Mas a
felicidade tem ao mesmo tempo, por matéria ou condição, a posse de
bens exteriores: saúde, beleza, berço, fortuna, lhos, amigos; embora
seja certo que as maiores desgraças não podem tornar o homem
virtuoso verdadeiramente miserável.

Quanto ao prazer, considerado como m, não é um elemento


integrante da felicidade; mas, considerando que acompanha
naturalmente a ação, que complementa, está intimamente ligado à
virtude. Ele junta-se à ação, como à juventude seu vigor. É a
consciência da atividade. O valor do prazer mede-se, assim, pelo valor
da atividade que ele acompanha. A virtude traz com ela uma satisfação
especial que o homem virtuoso necessariamente possui. Os prazeres
são admissíveis na medida em que decorrem da virtude ou se
conciliam com ela. Quanto aos prazeres grosseiros ou violentos, que
perturbam a alma, devem ser rejeitados. Em uma palavra, o prazer,
como resultado, e não como m, tem seu lugar na felicidade.

En m, felicidade implica em lazer, que é uma condição da atividade.


Esta necessita, efetivamente, de repouso; mas o lazer não é o m do
trabalho, é o trabalho que é o m do lazer. O lazer deve ser dedicado à
arte, à ciência, e sobretudo à loso a.

Agora, o que é a virtude, princípio da felicidade, e quais são as


virtudes principais? A virtude é um hábito, caracterizado pela
realização perfeita das potências do homem. Ora, a natureza humana é
dupla, a saber, intelectual e moral. A parte intelectual tem por objeto o
necessário, e é imóvel; a parte moral deseja e age, uma vez que se
relaciona com o contingente. Em consequência, há dois tipos de
virtude: as virtudes dianoéticas ou intelectuais, e as virtudes éticas ou
morais.

As virtudes dianoéticas são as mais elevadas; não são adquiridas por


um esforço da vontade, mas pela instrução.

A virtude que proporciona a mais alta felicidade é a ciência ou


contemplação. É a mais nobre das ocupações do homem, porque o
nôus, que é seu órgão, é o que há de mais divino. É a atividade mais
desinteressada, a que menos fadiga traz e que mais admite a
continuidade. É a mais calma, a que mais se basta a si própria. É
através da ciência que o homem mais se aproxima da divindade. Não
se deve, portanto, seguir os conselhos daqueles que querem que não
tenhamos senão sentimentos humanos, pois somos humanos, e não
aspiramos senão à existência de uma criatura mortal, pois somos
mortais. Devemos aplicar-nos ao máximo de nossas forças para nos
tornarmos dignos da imortalidade.
Mas a felicidade suprema ligada à posse da ciência perfeita não é
dada ao homem senão em raros momentos. O que lhe convém
verdadeiramente, o que é proporcional à sua condição de espírito
ligado a um corpo, são as virtudes éticas ou morais. A virtude ética é
uma disposição ou um hábito da alma, que tende a escolher em todas
as coisas o meio-termo conveniente à nossa natureza e determina o
juízo prático do homem inteligente.

É um hábito, uma maneira de ser da vontade. Sócrates, que fazia dela


uma ciência, esquecia que, na questão da virtude, não se trata do
conhecimento das regras morais, mas de sua realização. É preciso,
aliás, para constituir a virtude, não só uma determinação atual da
vontade, mas uma maneira de ser constante, um hábito.

Toda virtude, ademais, é um intermédio entre dois vícios, e esse


intermédio varia de acordo com os indivíduos. É diferente a virtude de
um homem, de uma mulher, de uma criança, ou de um escravo. É
preciso igualmente ter em consideração o tempo e as circunstâncias. A
coragem é, neste sentido, um intermédio entre a temeridade e a
covardia; a magnanimidade é um intermédio entre a insolência e a
baixeza, e assim por diante.

En m, é o homem de bem a regra e a medida do bem em cada caso


particular. As regras abstratas, de fato, não determinam senão o bem
em geral. Em cada caso que se apresenta, há algo de singular que elas
não podem nem devem ter previsto. O juízo vivo e universal do
homem de elite supre essa insu ciência.

Aristóteles estuda detalhadamente as diferentes virtudes, tanto as


dianoéticas quanto as morais.

As virtudes dianoéticas são os hábitos perfeitos da parte inteligente


da alma. Ora, a inteligência possui dois graus: a inteligência cientí ca e
a inteligência logística. As virtudes da inteligência cientí ca são: 1ª. O
nôus, que conhece os princípios das coisas; 2ª. A ciência, que deduz
desses princípios as verdades particulares. A junção do nôus e da
ciência constitui a sabedoria (σοφία, so a). As virtudes da inteligência
logística são: 1ª. A arte, ou a capacidade de produzir em vista de um
m; 2ª. O juízo, ou inteligência prática.

As virtudes morais são tão numerosas quanto as diferentes relações


na vida humana. Sendo essas relações em número indeterminado, não
é possível estabelecer uma lista completa das virtudes morais, e menos
ainda reduzi-las a um único princípio, como quer Platão. Aristóteles
estuda as virtudes morais mais importantes. Suas dissertações são
notáveis, repletas de observações atiladas de psicólogo e de moralista.
Suas análises da justiça e da amizade, particularmente, merecem ser
citadas.

Segundo ele, a justiça é o restabelecimento da igualdade proporcional


ou verdadeira na vida social. A equidade é mais perfeita que a justiça,
porque enquanto esta não considera as ações senão de um ponto de
vista geral e abstrato, a equidade leva em conta o que há de próprio em
cada ação particular. É uma perfeição da justiça requerida pela razão,
uma vez que a lei não pode prever todos os casos. É a justiça concreta
e atual, superposta à justiça abstrata e ainda indeterminada.

A amizade é a justiça suprema, uma justiça delicada e completa, na


qual a regra cega e morta é inteiramente substituída pela inteligência
viva do homem de bem. Há três fontes de amizade: o prazer, o
interesse e a virtude. Só a virtude faz as amizades estáveis.


E
O homem, pela vida em família, atinge um grau de perfeição
superior ao que comporta a vida individual. A família é uma
sociedade natural. Ela compreende três tipos de relações: entre homem
e mulher, entre pais e lhos, e entre senhor e escravos.

A relação familiar entre homem e mulher é uma relação moral de


amizade e de serviços recíprocos. A mulher tem sua vontade própria, e
sua virtude, que não é a mesma do homem; deve ser tratada, não como
escrava, mas como pessoa livre. Todavia, sendo a perfeição da mulher
inferior à do homem, este deve exercer autoridade sobre ela. A família
é uma aristocracia, ou comunidade de seres livres encarregados de
atribuições diferentes. A mulher, livre companheira do homem, deve
ter na casa seu domínio próprio, no qual o homem não tenha
ingerência.

A relação entre pais e lhos é uma relação entre reis e súditos. Pais e
lhos constituem uma monarquia. O lho não tem, em relação ao pai,
nenhum direito, pois é ainda parte do pai; mas o pai tem o dever de
zelar pelo bem do lho, pois o lho tem, também, sua vontade e sua
virtude, embora imperfeitas. O pai deve transmitir sua perfeição ao
lho, e o lho apropriar-se da perfeição do pai.

A escravidão é objeto, por parte de Aristóteles, de um estudo


particular. Ele demonstra sua necessidade e legitimidade, e determina
a maneira pela qual devem ser tratados os escravos. A escravidão é
necessária, pois a casa necessita de trabalhadores vivos e inteligentes.
A escravidão é legítima. De fato, dado um ser que não é apto senão aos
trabalhos corporais, este ser é propriedade legítima daquele que é
capaz das funções intelectuais. A relação que há entre o primeiro e o
segundo é a relação entre a matéria e a forma. Ora, semelhante relação
existe, de fato, entre os bárbaros e os gregos. Assim, o homem livre é
proprietário do escravo. Nem por isso deve deixar de considerar que o
escravo é um homem, e de tratá-lo como tal.

P
A política de Aristóteles trata: 1º. Do Estado em geral; 2º. Das
Constituições.

A política é o m e a perfeição da econômica, como esta é o m


próximo da moral. O indivíduo não pode chegar à virtude e à
felicidade por si próprio. Ora, é da própria natureza do homem a
tendência à vida social. Este modo de vida, que é para o homem uma
condição de existência, é também um meio de aperfeiçoamento moral.
A política, que traça o ideal e as regras relativos à comunidade
humana, é também estreitamente ligada à moral: é o todo do qual a
moral e a econômica são as partes, o ato do qual elas são a potência.
Política é o verdadeiro nome de toda ciência prática. A loso a deve
traçar o ideal da política; mas, assim como a moral, na sua aplicação,
leva em consideração os indivíduos, a política aplicada levará em
consideração as circunstâncias.

Como se forma a sociedade política? Segundo a ordem temporal, a


primeira sociedade a se formar é a família. Em seguida, dá-se a união
de diversas famílias, ou χώμη, kome. Vem então o Estado, ou cidade,
(πόλις, pólis); é a mais elevada das sociedades. Esta é a ordem
cronológica; mas, do ponto de vista da natureza e da verdade, o Estado
situa-se antes dos indivíduos, da família e da aldeia, como o todo se
situa antes das partes; estas têm naquele sua causa nal e sua mais
elevada realização.

A nalidade do Estado é a mais elevada que se possa conceber, uma


vez que o Estado é a mais perfeita expressão da tendência social. Essa
nalidade não pode ser a simples satisfação de necessidades físicas,
nem a aquisição de riqueza, nem o comércio, nem mesmo a proteção
dos cidadãos pelas leis. Essa nalidade deve ser a felicidade dos
cidadãos. Cabe ao Estado zelar para que os cidadãos possuam, em
primeiro lugar, os bens interiores, ou a virtude, e depois os bens
exteriores. O Estado conclui o progresso da natureza humana que se
eleva de potência a ato.

Embora esteja, assim, de acordo com Platão, quanto ao objetivo nal


da política, Aristóteles nem por isso deixa de criticar o mestre no que
toca aos direitos e deveres do Estado. Ele combate a doutrina platônica
que tende a dotar o Estado da maior unidade possível, doutrina da
qual resultava a necessidade de sacri car-lhe a propriedade e a família.
A unidade não pertence senão ao indivíduo. A família já não é uma
unidade. A cidade é, por natureza, uma pluralidade, e uma pluralidade
heterogênea. As teorias platônicas da propriedade e da família são
inadmissíveis. Não só são inaplicáveis, como também ignoram tanto a
tendência da natureza, quanto o interesse do Estado. A propriedade e a
família não são coisas arti ciais, mas objetos de tendências naturais.
Ademais, são úteis ao Estado, ao qual asseguram benefícios que ele
não poderia auferir por outros meios. O Estado deve, portanto,
regulamentar a propriedade e a família, e não eliminá-los. Na prática,
sem dúvida, Aristóteles muitas vezes se aproxima de Platão, que na
teoria ele combate; mas daí não se conclui que não haja diferença entre
a política platônica e a política aristotélica. A ênfase à natureza
imprime a esta última uma direção totalmente diversa.

Eis as disposições essenciais da política de Aristóteles: como o bem


soberano reside no lazer intelectual, as pro ssões úteis são
incompatíveis com o título de cidadão: agricultores, comerciantes,
operários não podem ser membros da cidade; este é, ao menos, o ideal.
O Estado tem, frente aos cidadãos, o papel de educador. Ele trabalha
no sentido de regular seus atos. O pior dos Estados é aquele que
permite que cada um viva como lhe aprouver. O Estado regulamenta a
idade e a estação da procriação, estabelece metas populacionais,
ordena o aborto das gravidezes que possam levar a ultrapassar essas
metas, e o abandono das crianças aleijadas. A educação deve ser
pública e comum, e deve ter constantemente em vista o bem da
inteligência, nos cuidados que dispensa à sensibilidade, e da alma, nos
cuidados que dispensa ao corpo. Compreende a gramática, a ginástica,
a música e o desenho, e visa, em todas as coisas, a formar os hábitos
morais da criança. É essencialmente liberal:61 as ciências e artes de
caráter mecânico e utilitário são descartadas. A virtude do Estado é a
justiça, ou seja, a ordem em virtude da qual cada um ocupa, dentro do
Estado, o lugar e a posição que lhe convêm, e cada um é investido da
função que é capaz e digno de preencher.

A máxima sobre a qual devem se regular as Constituições é que a


consumação da nalidade do Estado pressupõe dois órgãos: as leis e o
magistrado. O verdadeiro soberano, o único, é a razão, a ordem. Este
soberano é invisível. A razão deve portanto, na prática, ser
representada pelas leis. Mas as leis são necessariamente enunciadas em
fórmulas gerais. Ora, por mais inclusiva que seja uma fórmula, ela
necessariamente deixará escapar por entre as suas malhas uma
in nidade de casos particulares. Daí a necessidade do magistrado. Ele
é soberano onde a lei não pode decidir, diante da impossibilidade
existente de se especi car todos os detalhes em regulamentos gerais.

No que diz respeito à forma de governo, Aristóteles não elege, como


Platão, uma delas como superior às outras, excluindo todas as outras.
Ele diz que as Constituições devem reger-se pelas características e
necessidades dos povos para os quais são feitas, e que a pior em si
pode ser a melhor em certos casos. E examina os meios de se tirar o
melhor partido de maus governos, quando estes são os únicos
possíveis. É considerando essas ressalvas que ele classi ca as formas de
governo.

Há três formas de governo, segundo o número de governantes: o


poder pode estar nas mãos de uma só pessoa, de diversas, ou da
maioria. Cada um desses governos tem duas formas, uma delas justa, e
a outra corrompida, conforme os governantes tenham em vista o
interesse geral ou seu próprio interesse. Aristóteles dá às formas justas
os nomes de realeza, aristocracia e poliarquia; às formas corrompidas,
os nomes de tirania, oligarquia e democracia.
A melhor forma de governo é uma república que reúna ordem e
liberdade. É uma aristocracia. A todos os cidadãos é permitido tomar
parte nas funções públicas; mas não são cidadãos senão aqueles que,
por sua situação e cultura, sejam aptos a cumprir os deveres cívicos.
Todo trabalho corporal, em especial aquele ligado à agricultura e à
indústria, deve ser realizado por escravos ou por estrangeiros.

Abaixo desta forma ideal de governo vêm as formas menos perfeitas,


embora legítimas, de acordo com as circunstâncias. A mais prática nas
condições ordinárias é uma república moderada, a meio termo entre a
democracia e a oligarquia. A democracia caracteriza-se por liberdade e
igualdade, e pelo fato de o governo estar nas mãos da maioria dos
homens livres e dos pobres. Na oligarquia, o governo pertence à
minoria dos ricos e dos nobres. A república moderada dá o poder à
classe média. É o equivalente político da virtude moral, que é um
intermédio entre os dois extremos.

Fica claro que as ideias políticas de Aristóteles muitas vezes não são
senão a teorização dos fatos que ele contempla, mas seria um exagero
não ver nelas nada além disso. Se os meios que ele preconiza são
frequentemente tirados de uma experiência forçosamente restrita, os
ns que ele indica são determinados pela razão e pela loso a; e a
política de Aristóteles, ainda hoje, fornece ensinamentos aos homens
de Estado, e documentos aos historiadores.


R
E mEssaretórica, o próprio Aristóteles nos diz que não precisou criar.
ciência já havia sido desenvolvida, antes dele, por Tísias,
Trasímaco, Teodoro e muitos outros. Mas esses autores se limitavam
ao particular e não iam além de uma visão empírica. Pertence a
Aristóteles a ideia de uma retórica cientí ca, e particularmente a
determinação de uma relação estreita entre a retórica e a lógica. Platão
já havia tentado, sem sucesso, fundar a retórica na ciência. Aristóteles,
graças às suas teorias lógicas, encontra na dialética, distinta da
apodíctica, o próprio fundamento da retórica. A retórica é a aplicação
da dialética aos ns da política, isto é, a certos ns práticos. A dialética
é logicamente anterior à retórica: ela é o todo do qual a retórica não é
senão uma parte. Segundo a ordem temporal, a retórica é anterior à
dialética; segundo a ordem da ciência, porém, a verdade é o inverso.

A retórica ensina a persuadir por razões verossímeis. A parte


essencial da retórica é, assim, a doutrina dos recursos de oratória.
Esses recursos são de três tipos: 1º. Os que se relacionam ao objeto; 2º.
Os que se relacionam ao orador; 3º. Os que se relacionam ao ouvinte.

Os primeiros consistem em fazer com que suas a rmações pareçam


verdadeiras. Baseiam-se na prova. A prova é, assim, o elemento
principal da retórica; é também aquele em que Aristóteles mais
insiste.63 Assim como a dialética prova por silogismo e por indução, a
retórica prova por entimema64 ou demonstração imperfeita, e por
exemplo ou indução imperfeita. Não há, ao que parece, nenhum tipo
de prova,65 que não se reduza a um desses dois argumentos. O
entimema é um silogismo no qual se raciocina segundo
verossimilhanças ou sinais. O exemplo consiste, como a indução, a
julgar uma coisa por outras coisas particulares semelhantes à que está
em questão; mas o exemplo não vai da parte ao todo, e sim da parte à
parte. A retórica determina os pontos de vista de onde se tiram os
entimemas e os exemplos: essa determinação é o objeto da tópica
oratória.66

Aristóteles distingue três gêneros de discurso: deliberativo, judiciário


e epidítico, e traça as regras próprias a cada um deles. Estes são os
recursos oratórios relativos ao objeto. No que diz respeito ao orador,
seu papel é fazer de forma a ser considerado dotado de inteligência,
probidade e benevolência. Por m, os recursos relativos ao ouvinte
consistem em saber despertar e acalmar as paixões. Aristóteles insiste
longamente sobre essa parte, e nela desenvolve uma sutil psicologia.
Ele faz um interessante estudo da in uência exercida pelas idades e
situações sobre o caráter e as disposições.67

Depois dessas teorias que constituem o fundamento da retórica, vêm


estudos sobre a elocução e a disposição, que denotam um
conhecimento aprofundado da matéria, muita exatidão e sagacidade.


E
A ristóteles distinguia três partes da loso a: a parte teórica, a parte
prática e a parte poética, ou relativa à arte. Não chegou a tratar
desta última em detalhes, mas nem por isso deixou de ser, por todas as
indicações e exemplos que deu, o fundador da estética.

A estética aristotélica parte menos do conceito do belo do que do


conceito de arte; mas esboça, todavia, uma teoria do belo. As
características essenciais do belo são, para Aristóteles, a coordenação,
a simetria e a precisão. A manifestação sensível não é um elemento
essencial do belo, pois é sobretudo nas ciências matemáticas que este
aparece como realizado. O belo reside no geral. A poesia, que diz
respeito ao geral, é mais losó ca, mais séria e mais bela que a história,
encerrada no particular.

Como Platão, Aristóteles situa a essência da arte na imitação. A arte


resulta da queda do homem para a imitação, e do prazer que esta lhe
proporciona. O que o homem imita é a natureza, isto é, segundo a
loso a aristotélica, não apenas a aparência exterior, mas a essência
interna e ideal das coisas naturais. A arte pode representar as coisas
tais como são, ou tais como devem ser. A representação é tão mais bela
quanto melhor o artista tenha sido capaz de concluir, no mesmo
sentido da natureza, a obra que esta deixa necessariamente imperfeita.
Toda arte tende a representar o geral e o necessário. Isso é verdade até
mesmo a respeito da poesia cômica, cujo verdadeiro objetivo é a
representação das personalidades.

As artes comportam mais de um gênero de utilidade. Proporcionam


distração, cultura moral, fruição intelectual, e esse efeito particular que
Aristóteles chama de χάθαρσις, katharsis, “puri cação”, “catarse”. A
catarse é o próprio das artes superiores, em especial da poesia séria.

No que consiste essa famosa catarse? Não é exatamente um


aperfeiçoamento moral, mas a supressão de uma paixão que dominava
e perturbava a alma, por meio de um tratamento homeopático. É
importante observar, aliás, que nem toda excitação da paixão é capaz
de produzir tal efeito curativo. A excitação salutar é aquela que provém
da arte, submetida a uma medida e a uma lei, e que, exacerbando o
objeto das paixões, as destaca das circunstâncias da vida individual,
para aplicá-las à existência comum a todos os homens.

Aristóteles não faz uma classi cação sistemática das artes.

As mais elevadas são a poesia e a música.


P
O que chegou até nós da Poética de Aristóteles limita-se quase ao
estudo da tragédia. Mas Aristóteles havia tratado da poética de
maneira completa.
A poesia nasceu da queda para a imitação. Uma tragédia é a imitação
de uma ação séria e completa, de uma certa extensão, empregando
uma bela linguagem, sob forma dramática, e não narrativa, imitação
que estimula terror e piedade, e assim purga a alma dessas mesmas
paixões. O poeta trágico nos apresenta, em seus heróis e no destino
que lhes dá, tipos gerais da natureza e da vida humana. Ele nos mostra
as leis imutáveis que dominam e regulam os eventos aparentemente
acidentais. Daí a e cácia da tragédia para purgar a alma dos seus afetos
desordenados.

A parte mais importante da tragédia é a ação. A ação deve ser natural.


Não que o autor deva expor simplesmente o que aconteceu, mas ele
deve mostrar o que poderia ter acontecido, o que é possível, quer pelas
leis da verossimilhança,69 quer pelas da necessidade. A ação deve ser
una e completa. Deve ser impossível deslocar ou remover uma parte
qualquer da obra sem desmontar e alterar o conjunto. Pois o que pode,
num todo, ser acrescentado ou retirado sem que se perceba não faz
parte do todo.

A unidade de ação é a única para a qual Aristóteles estabelece uma


regra. Da unidade de local, ele não fala. Quanto à unidade de tempo,
ele se limita a constatar que a tragédia se esforça em geral para conter a
ação em um só dia, ou para que não ultrapasse muito essa duração.70

Ele determina as regras relativas às partes da ação, às personalidades,


que devem ser mais completas e mais belas do que na realidade, e
também à composição e à elocução.

Ao comparar a tragédia e a epopeia, ele atribui a primazia à primeira,


por possuir uma unidade mais rigorosa, uma unidade fechada,
enquanto a epopeia comporta partes das quais de cada uma se poderia
fazer uma tragédia.

G
A ristóteles era considerado na Antiguidade o fundador da gramática
e da crítica. Ele escrevera obras, hoje perdidas, sobre a explicação e
a crítica dos poetas. As indicações relativas à gramática que chegaram
até nós não são dadas sobre elas mesmas, mas a propósito de outra
coisa. Ainda assim, são de grande importância no que se refere à
formação da ciência gramatical. Aristóteles ocupou-se da gramática
com seu habitual espírito de observação; a teoria da linguagem,
porém, ainda engatinhava: daí o fato de suas asserções serem
frequentemente vagas e obscuras.

Aristóteles admite três partes do discurso: nome, verbo e conjunção.


O verbo e o nome são sujeitos à exão. Os nomes dividem-se em
masculinos, femininos e neutros.

As palavras fundamentam-se antes num acordo entre os homens do


que na natureza. Em consequência, em sua formação domina mais o
arbitrário do que o princípio da analogia.


D  
C itam-se diversos discursos de Aristóteles, entre outros um Λογος
διχανιχος, Logos dikanikos (“Apologia”), no qual ele se defende da
acusação de blasfêmia, um Elogio de Platão, e um Elogio de
Alexandre; mas a autenticidade dessas obras, hoje perdidas, é muito
contestada.
Ele compôs também peças de poesia, das quais nos restam, entre
fragmentos de autenticidade muito duvidosa, alguns trechos
autênticos. O mais importante desses fragmentos é uma parte de um
escólio em homenagem a Hérmias de Atarneu, seu amigo. Nele,
Aristóteles canta a virtude, à qual, como os antigos heróis da Grécia,
Hérmias sacri cou a própria vida. Mencionemos também alguns
dísticos de uma elegia a Eudemo, composta em homenagem a Platão,
“esse homem de quem mesmo o elogio é vedado aos maus”.

Eis o fragmento do Escólio a Hérmias:

Virtude, objeto de labor para o gênero humano, supremo prêmio da


vida! Por ti, virgem! Por tua beleza, os gregos dispõem-se a enfrentar
a morte, a suportar trabalhos terríveis, in nitos. É tão belo o fruto
que fazes nascer no coração, fruto imortal, mais valioso que o ouro, a
nobreza e o sono sob doce olhar! Por ti, Hércules, o lho de Zeus, e
os lhos de Leda suportaram muitas provações, nobres caçadores a
perseguir-te a potência. Por amor a ti, Aquiles e Ajax penetraram na
morada de Hades. Era a ti, sempre a ti, que amava, ele também, o
lho de Atarnes; e foi por tua beleza que ele privou seus olhos da luz
do Sol. Por isso cantam-lhe os belos atos; e as Musas exaltarão seu
nome e o tornarão imortal, as Musas, lhas de Mnemósine, que
honram a majestade de Júpiter hospitaleiro e a glória de uma amizade
el.


C
A sautores
cartas de Aristóteles são celebradas por Demétrio e outros
como modelos de estilo epistolar. Segundo Simplício, o
estilo dessas cartas reunia clareza e graça, a um ponto nunca atingido
por nenhum outro autor conhecido. Diógenes menciona as cartas a
Felipe, as cartas dos Selímbrios, quatro cartas a Alexandre, nove a
Antípatro, e cartas a Mentor, Aríston, Filóxenes, Demócrito, etc. Sendo
os fragmentos que nos restam, em geral, inautênticos, não temos como
julgar por nós mesmos o conteúdo e a forma das cartas de Aristóteles.


A 
A ristóteles serve-se da língua ática escrita, tal como existia em seu
tempo. Mas a quantidade de ideias novas que ele se propõe a
expressar exerce sobre o instrumento de que faz uso uma importante
in uência. A consideração das coisas em sua individualidade, a
distinção precisa entre os domínios cientí cos, o empenho em
conseguir formar conceitos isentos de qualquer elemento sensível,
re etem-se na sua língua e no seu estilo. Assim como a análise lógica
de Aristóteles não se detém, em seu trabalho, senão depois de ter
capturado as últimas diferenças, as diferenças especí cas, da mesma
forma, na linguagem aristotélica, os aparentes sinônimos se
singularizam e se de nem com precisão.

Para de nir os termos, Aristóteles tinha dois meios: determinar


cienti camente o signi cado das palavras tradicionais, e criar novos
termos. Ele fez uso dos dois métodos, privilegiando o primeiro. Na
maior parte das vezes, ele parte de um termo usual; depois,
restringindo ou estendendo o signi cado desse termo, faz dele a
expressão exata de um conceito lógico. Mas em muitos pontos, a
linguagem tradicional apresentava lacunas. Para preenchê-las,
Aristóteles criou palavras, procurando, todavia, o mais possível,
apoiar-se na própria tradição. Graças à perfeição da terminologia por
ele assim criada, ele foi o verdadeiro fundador da linguagem cientí ca
universal.

Eis exemplos de expressões criadas por Aristóteles: ἀδιαίρετος,


adiairetos (“indivíduo”); αἰτεῖσθαι τὸ ἐν ἀρχῆ, aiteisthai to en arkhê
(“petição de princípio”); ἄμεσος, amesos

(“imediato”); ἀνἄλυσις, análisis (“análise”); ἀνομοιομερης,


anomoiômeres (“heterogêneo”); ἀντίφασις, antífasis (“contradição”);
ἀποδειχτιχός, apodêiktikós (“demonstrativo”); ἀπόφασις, apófasis
(“a rmação”); γενιχόσ, guênicos (“genérico”); διχοτομία, dikotomia
(“dicotomia”); ἐμπειριχός, empêirikos (“empírico”); ἐναντιότης,
enantiotes (“oposição”); ἐνέργεια, energueia (“energia”); ἐνότης, enotes
(“unidade”); ἐντελέχεια, entelékeia (“enteléquia”); ἐζοτεριχοσ,
exotérikos (“exotérico”); επαχτιχός, epáktikos (“indutivo”); ἐτερότες,
eterotes (“alteridade”); ἠθιχός, éthikos (“moral”); θεολογιχή,
theologike (“teologia”); χατηγοριχός, kategórikos (“categórico”);
λογιχός, lógikos (“lógico”); ὀργανιχός, orgânikos (“orgânico”); etc.

Entre os termos de que Aristóteles limitou-se a determinar


cienti camente o signi cado, pode-se citar: ἀντίθεσις, antítesis
(“antítese”); ἀξίομα, axioma (“axioma”); ἐναντίος, enantios
(“contrário”); ἐνυπάρχειν, enuparkein (“ser imanente”); ἐπαγωγη,
epagogê (“indução”); ἔσχατον, eskáton (“último”); ἴδιον, ídion
(“próprio”); συνβεβηχός, sinbêbekos (“acidente”); συλλογιζεσθαι,
silloguídzesthai (“raciocinar”); συνεχής, synekes (“contínuo”);
συνέχεια, synékeia (“continuidade”); σύνολον, synolon (“todo”); ὔλη,
hyle (“matéria”); ὑπολείμενον, yplêimenon (“substrato”).

Eis, por m, alguns exemplos da distinção entre conceitos por análise


e oposição: γένος, guénos (“gênero”) e εἴδος, eidos (“espécie”); χίνησις,
kínesis (“movimento”) e ἐνέργεια, energueia (“ato”); ἀντίφασις,
antífasis (“contradição”) e ἐναντίον, enântion (“oposição”); ποιεῖν,
pôiein (“fabricar”) e πράττειν, práttein (agir); δύναμις, dynamis
(“potência”) e ἐνέργεια, energueia (“ato”); ἐπαγωγή, epagogê
(“indução”) e συλλογισμός, sylloguismos (“dedução”); οὐσια, uusia
(“essência”) e συνβεβηηότα, synbebéota (“acidentes”); διαλεχτιχός,
dialéktikos (“dialético”) e ἀποδειχτιχός, apodêiktikos
(“demonstrativo”); πρότερον τῆ φύσει, próteron tê fusei (“anterior em
si”) e πρότερον προς ἡμᾶς, próteron prós emas (“anterior do nosso
ponto de vista”). O estilo de Aristóteles é tão pessoal quanto sua
língua. Os antigos louvavam sua abundância e seu encanto; seu
discurso, disse Cícero, uía como ouro. Tais elogios, evidentemente,
são dirigidos aos seus diálogos e às obras que publicou. Em suas obras
didáticas (πραγματεἴαι, pragmatéiai), as únicas que possuímos, são
notáveis a exatidão das de nições, a clareza, a precisão e a concisão
inimitáveis, o rigor e a xidez no sentido das palavras que fazem
lembrar a linguagem matemática. Em poucas palavras, o estilo de
Aristóteles se destaca pela exata adequação da forma ao conteúdo. Mas
é frequente, sobretudo nas obras apenas esboçadas, que Aristóteles
escreva com secura e negligência. Não somente as frases não são
ordenadas em períodos, mas são muitos os anacolutos e parênteses,
em detrimento da clareza. Às vezes, porém, em meio a essas
dissertações abstratas, encontram-se passagens às quais não faltam
entusiasmo e eloquência. Assim é o nal do cap.  do livro  da Ética
a Nicômaco:

Decerto, entre as ações virtuosas, as do político ou do homem de


guerra superam as outras em beleza e grandiosidade; mas não
comportam o lazer, e sua nalidade reside fora delas mesmas. Ao
contrário, a ação da razão, já mais séria, na medida em que é
inteiramente especulativa, não tem outra nalidade senão ela mesma,
e traz consigo uma felicidade perfeita e especial que ampli ca ainda
mais a energia da inteligência. Essa ação se basta a si própria, admite
o lazer, e é imune à fadiga, tanto quanto o permita a natureza
humana: ela reúne todas as condições da felicidade. É esta ação,
portanto, que irá constituir para o homem a felicidade perfeita, se ao
menos preencher uma vida completa: pois nada de imperfeito
poderia entrar na felicidade. Tal vida seria mais bela do que o permite
a natureza humana; pois se o homem pode viver assim, não é por ser
homem, mas por ter em si algo de divino; e quanto mais essa parte
divina superar em excelência o ser composto de alma e corpo, mais
sua ação prevalecerá sobre as outras virtudes. Se, então, a razão é algo
divino em relação ao homem, a vida preenchida pela ação da razão é
divina comparada à vida humana. Assim, não devemos, como nos é
aconselhado, nos limitar a pensamentos humanos por sermos
humanos, nem a não ter senão pensamentos mortais por sermos
mortais. Mas devemos, na medida do possível, fazer-nos imortais, e
esforçar-nos em todas as coisas para viver pela parte mais excelente
de nós mesmos. Pois se este gênero de vida não pode ocupar senão
um pequeno lugar em nossa existência terrestre, pela sua grandeza e
dignidade ele está acima de tudo.


I  A
O ensinamento de Aristóteles deu origem, inicialmente, à escola
peripatética, que oresceu durante dois ou três séculos, e cujos
principais representantes são: Teofrasto de Lesbos (372 a.C.?–287
a.C.?), Eudemo de Rodes (século  a.C.), Aristóxenes de Taranto (ca.
350 a.C.), conhecido como “o músico”, Dicearco de Messana ( . 320) e
Estratão de Lâmpsaco ( . 287). Critolau, que fez parte da embaixada
enviada a Roma, em 156, pela qual foi introduzida a loso a no
mundo romano, era um lósofo peripatético. A escola distinguiu-se
por suas pesquisas minuciosas em lógica, moral e ciências da natureza;
mas a tendência naturalista prevaleceu cada vez mais sobre a tendência
metafísica. Estratão chegou a identi car a divindade com a φύσις,
physis (“natureza”) que atua inconscientemente no mundo, e a
substituir a teleologia aristotélica por uma explicação completamente
mecanicista das coisas, fundada nas propriedades do calor e do frio.

Com a publicação das obras de Aristóteles por Andrônico de Rodes,


em torno de 70 a.C., iniciou-se a série de numerosos intérpretes e
comentaristas do Estagirita, entre os quais constam Boethos de Sídon
(século  a.C.), Nicolau de Damasco (século  a.C.), Alexandre de
Afrodísia na Cilícia (século ), chamado “o exegeta” por excelência, o
neoplatônico Porfírio de Bataneia (século ), Temístio da Pa agônia
(século ), Filopono de Alexandria (séculos  e ) e Simplício da
Cilícia (século ).

Embora a escola peripatética não seja composta senão por discípulos


pouco metafísicos ou por comentaristas puramente eruditos, as
doutrinas do mestre permanecem, ao menos, bem vivas e fecundas nas
loso as que não descendem diretamente dele, mas se nutrem em
grande parte de sua substância. O princípio dos estoicos,
intermediário entre a potência e o ato e de nido pela tensão, imanente
a todas as coisas, inteligente e causa nal suprema, bem parece não ser
senão a fysis de Aristóteles, na qual seria absorvido o nôus. Pela sua
distinção precisa entre o mecanismo e a nalidade, entre a ordem
física e a ordem metafísica das coisas, entre o acaso e a ação
inteligente, Aristóteles tornou possível o epicurismo, o qual parece ter
se constituído, em grande parte, com as doutrinas que Aristóteles
de nia ou criava para refutar. O próprio neoplatonismo, em sua
doutrina do nôus, deve muito a Aristóteles. Os neoplatônicos
procuravam conciliar Platão e Aristóteles; e Plotino sustentava que sua
doutrina do uno transcendente, de onde emana o nôus, era a
consequência necessária da doutrina aristotélica.

Depois de ter sustentado até seus últimos momentos a loso a


antiga, o aristotelismo, encarnando-se nas crenças da Idade Média,
transformou-as em doutrinas losó cas. Foi principalmente sob a
in uência de Aristóteles que se desenvolveu, neste período de
misticismo religioso, o espírito de lógica e de especulação racional.

Os escritos de Aristóteles não penetraram senão tardia e


indiretamente no mundo ocidental. Até meados do século , não
eram conhecidas senão algumas poucas partes do Organon, a saber as
Categorias e a Hermeneia, na tradução latina de Boécio. Era,
juntamente com o Ειςαγωγη, Isagogê [Introdução] de Porfírio, e do
Timeu, de Platão, mais ou menos tudo que se possuía da antiguidade
losó ca. Entre 1150 e 1210, aproximadamente, foram publicadas as
outras obras de Aristóteles, na forma de versão latina de traduções
árabes, feitas, por sua vez, no século  por sírios cristãos, segundo
traduções siríacas. Pouco depois, no século , o próprio texto grego
foi transmitido aos sábios do Ocidente, especialmente por gregos de
Constantinopla; e a tradução latina direta tomou o lugar das traduções
indiretas. Robert Greathead, Alberto, o Grande, e São Tomás
trabalharam particularmente nessa depuração da tradução para o
latim.

Fato estranho e que mostra o quanto a inteligência do homem é


dependente de sua vontade, os mais diversos espíritos encontraram em
Aristóteles um ponto de apoio racional para suas crenças e suas
aspirações. Nada mais uno, na aparência, que a Idade Média, em que
todos recorrem a Aristóteles; mas há nela tantos Aristóteles quanto há
lósofos. Há até alguns desses Aristóteles cujo único ponto em comum
com o Estagirita é o nome.

Foi do Organon aristotélico que surgiu a famosa querela dos


universais que durou do século  ao m do século . Ao mesmo
tempo, desenvolvem-se entre os árabes e os judeus, possuidores de
todos os escritos do mestre, sistemas completos de loso a aristotélica.
Os árabes, monoteístas e naturalistas, são seduzidos pela doutrina de
Aristóteles sobre Deus e pelas suas pesquisas sobre história natural.
Averróis, de Córdova (1126–1198), acredita ser um puro aristotélico
ao sustentar que o entendimento ativo é uma emanação de Deus, que é
um só para todos os homens, e o único ser imortal. O judeu Moisés
Maimônides, de Córdova (1135–1204), concilia com o aristotelismo,
sem di culdade, a criação da matéria e os milagres.

A época mais brilhante da escolástica cristã é, ao mesmo tempo, a do


apogeu da autoridade de Aristóteles. Depois da descon ança inicial
em relação às suas doutrinas físicas, nas quais se acreditava ver
professada a eternidade do mundo e do tempo, a partir de 1230,
aproximadamente, passa-se a adotar o conjunto dos escritos de
Aristóteles como texto das aulas de loso a. A doutrina aristotélica é a
expressão da luz natural, assim como as verdades da fé são a expressão
da luz sobrenatural. A razão não coincide com a fé, mas conduz a ela.
Aristóteles, representante da razão, precede o Cristo nas coisas da
natureza, como São João Batista o precede nas coisas da graça. E o
aristotelismo, assim de nido, circunscrito e subordinado, torna-se a
origem do que veio a ser chamado de deísmo e religião natural. Nessa
época, encontrava-se nele tudo que é exigido pela teologia. Ele não
pode, certamente, demonstrar a verdade dos dogmas, o que seria
contraditório; mas refuta as objeções que lhes são feitas e estabelece-
lhes a verossimilhança. E fornece, particularmente, uma teoria da
forma substancial e dos acidentes reais e separáveis, que torna
concebível a transubstanciação sob a persistência das mesmas espécies
sensíveis na Eucaristia.

Se o aristotelismo garante a ortodoxia, não é menos propício aos


dissidentes. Amalrico de Chartres e David de Dinant (séculos  e
) o levam para o lado do panteísmo, ao identi car o Deus do
Estagirita, um com a forma, e o outro com a matéria universal. E os
místicos alemães, como Teodorico de Freiberg (séculos  e ) e
mestre Eckhart (séculos  e ), apresentam sua doutrina da união
substancial da alma com a divindade como desenvolvimento da teoria
aristotélica do νοὐς ποιητιχος, nôus poiêtikos.

Finalmente, Aristóteles, na Idade Média, não é apenas o mestre dos


lósofos: sob seu patronato colocam-se igualmente aqueles que, indo
contra a Igreja e a loso a da época, pretendem surpreender e
subjugar as forças misteriosas da natureza. Para esses réprobos,
Aristóteles é um mágico. São-lhe atribuídos tratados de alquimia sobre
a loso a oculta dos egípcios. Colocam-no, com Platão, no topo da
lista dos alquimistas ecumênicos. Os próprios alquimistas nomeiam a
si mesmos os novos exegetas de Platão e Aristóteles.

Assim, Aristóteles, na Idade Média, é em toda parte um excitador dos


espíritos e uma autoridade; mas sua obra mais considerável é sem
dúvida a organização dessa loso a cristã, tão completa, tão precisa,
tão lógica, tão sólida em seus mínimos detalhes, que parecia
constituída para toda a eternidade. Ela ditou as regras nos colégios da
Universidade na França até o século . Em 1624, a Sorbonne
proibia, sob pena de prisão perpétua, que se ensinasse contra os
antigos. Em 1671, os professores ainda são pressionados a respeitar o
peripatetismo, sob pena de expulsão. É somente no início do século
 que o aristotelismo escolástico cede espaço às novas ideias.

Não foi da razão que veio o primeiro ataque realmente mortífero, e


sim da fé. Lutero não apenas apontou as diferenças importantes que
separavam a loso a aristotélica do cristianismo, mas sobretudo
julgou blasfemo buscar um acordo entre a fé dada por Deus e a razão
corrompida pelo pecado. Obra do homem, a loso a aristotélica, com
sua pretensão a tratar das coisas divinas, não podia ser senão erro e
sacrilégio; ao se conciliar com ela, a religião iria necessariamente
alterar-se e desnaturar-se. Aristóteles era um mestre da heresia: a
salvação da religião implicava na extinção absoluta de suas doutrinas.

Combatido em nome da religião cristã, o aristotelismo, apesar da


brilhante restauração devida a eruditos da Renascença, como
Pomponazzi, Scaliger, Vanini, Genádio e Jorge de Trebizonda, logo
seria atacado em nome da ciência e da loso a. Bacon não viu, no
método aristotélico, senão dedução aplicada aos dados da opinião e da
linguagem; e a metafísica aristotélica, a seus olhos, foi apenas a
pretensão de explicar as coisas, excluídas as causas mecânicas, por
ações sobrenaturais e divinas. Ele condenou, portanto, a loso a de
Aristóteles como contrária às condições da ciência, que busca por
explicações mecânicas e procede por indução. Para Descartes, o
aristotelismo foi a doutrina que materializava as qualidades sensíveis, e
explicava os fenômenos por essas entidades quiméricas. Ideias
obscuras e estéreis, essas abstrações não podiam ser os princípios das
coisas. No sentido oposto a Aristóteles, Descartes reduz a qualidade à
quantidade, e não a quantidade à qualidade.

Parecia que a doutrina aristotélica estivesse de nitivamente


enterrada, quando Leibniz a reintroduziu triunfalmente na loso a ao
declarar que havia, na teoria das formas substanciais e da enteléquia,
bem compreendida, mais verdade que em toda a loso a dos
modernos. Seguindo os passos de Aristóteles, Leibniz situou a
substância num princípio de ação, rebaixou a extensão e a matéria da
categoria de substância à categoria de fenômeno, e conciliou as causas
nais com as causas e cientes, colocando o mecanismo sob a
dependência da nalidade. Desde Leibniz, o aristotelismo manteve seu
lugar na loso a, especialmente desempenhando um importante papel
na formação do sistema hegeliano.

Por maior que seja seu lugar na história, pode-se dizer que Aristóteles
seja, ainda hoje, um dos mestres do pensamento humano? No que diz
respeito à loso a propriamente dita, não parece haver dúvida. Pode-
se mesmo dizer que o aristotelismo responde particularmente às
questões de nossa época. As duas doutrinas que hoje ocupam o maior
espaço no mundo losó co são o idealismo kantiano e o
evolucionismo. Ora, o sistema de Aristóteles pode ser confrontado
sem desvantagem a esses dois sistemas.

Ele se opõe ao kantismo. Kant nega precisamente a dependência do


espírito em relação ao ser, o valor ontológico atribuído às leis do
espírito, o absoluto teórico, e a subordinação da prática à teoria, que
estão na essência do aristotelismo. A loso a de Kant constituiu-se em
oposição direta à loso a dogmática, da qual Aristóteles é o
representante por excelência. Mas, se Kant descobriu uma nova
concepção das coisas, cujo exame se impõe doravante a qualquer um
que queira losofar, não se pode dizer que tenha conseguido
inteiramente fazer prevalecer sua hipótese. Se tem a seu favor o
testemunho da consciência moral, que aliás ele se propõe sobretudo a
satisfazer, ele não consegue a adesão franca e completa da inteligência.
Esta insiste em dizer, com Aristóteles:

Tudo tem sua razão, e o primeiro princípio deve ser a razão suprema
das coisas. Ora, explicar é determinar, e a suprema razão das coisas
não pode ser senão o ser inteiramente determinado. Entre o in nito e
o nito, é o nito, enquanto inteligível, o princípio; o in nito,
enquanto ininteligível, não pode ser senão fenômeno.

Entre Aristóteles e Kant, a questão é saber se a supremacia deve ser


atribuída à vontade ou à inteligência: mas essa questão, ainda hoje, não
parece estar de nitivamente resolvida.

Bem diferente é a situação do aristotelismo diante do evolucionismo.


Longe de opor-se a ele, ele o admite e o compreende, oferecendo meios
de superá-lo. Historicamente, é um de seus antecessores mais diretos.
Seja na natureza, seja no homem, Aristóteles aponta em toda parte a
continuidade e o desenvolvimento do inferior ao superior. As plantas
supõem os minerais, os animais as plantas, o homem os animais, e o
homem não é senão a perfeição do ser esboçado nas produções
inferiores da natureza. No próprio homem, a imaginação nasce da
sensação, a memória da imaginação, e a inteligência não pode pensar
sem imagens. Não se vê qual tese cientí ca do evolucionismo seria
incompatível com a loso a natural de Aristóteles. Mas será essa
ordem mecanicista das coisas a ordem absoluta? Essas explicações
trarão plena satisfação à inteligência? Eis a questão levantada por
Aristóteles, a qual ele encontra o meio de resolver no sentido de uma
metafísica espiritualista.

Segundo ele, a ordem que vai do indeterminado ao determinado, do


gênero à espécie, não pode ser considerada pela inteligência como
ordem absoluta da geração das coisas, porque o indeterminado
comporta sempre outras determinações além das que recebe no
mundo real. O homem é a perfeição do animal, mas o animal
comportava outras determinações além das que fazem dele um
homem. Por que motivo os gêneros se realizam em tais espécies, e não
em tais outras? A razão desta escolha entre os desenvolvimentos
possíveis não pode ser encontrada senão no próprio ser que é o termo
do desenvolvimento. É preciso que a perfeição deste ser seja uma força
que dirige a evolução da matéria da qual ele nascerá. Assim, a ordem
que vai do indeterminado ao determinado não exclui; ela acarreta uma
ordem simetricamente oposta, princípio oculto de sua direção e de sua
realização. É assim que Aristóteles concilia o mecanismo evolucionista
com a nalidade, pela distinção da ordem das coisas segundo o tempo
e da ordem das coisas no absoluto. O evolucionismo é a verdade do
ponto de vista dos sentidos; mas do ponto de vista da inteligência,
permanece verdadeiro que o imperfeito só existe e se determina à vista
do mais perfeito. A explicação nalista é o complemento legítimo e
indispensável da explicação mecanicista.

Assim, o aristotelismo mantém sua posição na loso a.

Mas não estará doravante banido da ciência? Sobre este ponto,


convém fazer uma distinção entre as ciências morais e as ciências
matemáticas e físicas. A moral de Aristóteles, e até mesmo, em vários
pontos importantes, sua política, longe de terem sido esquecidas,
vigoram mais que nunca. Os preceitos de viver como homem quando
se nasceu homem, e de atribuir, na política, a verdadeira soberania à
razão e à lei, não estão perto de cair no esquecimento. Mas as ciências
relativas à natureza, doravante positivas todas elas, já parecem não ter
mais grande coisa em comum com a loso a natural do grande
metafísico.

Para emitir a esse respeito um juízo imparcial, convém observar,


primeiro, que um homem pode ter exercido uma grande in uência
sobre o desenvolvimento das ciências, sem que nenhuma de suas
ideias se reconheça nas doutrinas atuais. As ciências são constituídas
etapa por etapa; e determinada teoria antiga, que não seja mais
encontrada nas teorias modernas, pode ter contribuído para sua
elaboração. Ora, este gênero de mérito certamente pertence a
Aristóteles. Ele fez avançar teorias e conceitos que podem ser muito
diferentes dos métodos e princípios modernos, mas que nem por isso
deixaram de presidir à formação destes. Assim é, por exemplo, com a
teoria aristotélica da indução, que sem dúvida determina antes o
objetivo a ser atingido que os meios a serem empregados, e situa este
mesmo objetivo antes na descoberta de tipos que na descoberta de leis,
mas nem por isso é menos valiosa pela precisão com que mostra que,
na indução, trata-se de extrair o necessário do contingente, e o
universal do particular. Assim é com as ideias de gênero e de espécie,
de potência e de ato, de mistura mecanicista e de combinação
qualitativa, de acaso reduzido ao encontro de causas independentes
umas das outras, de continuidade na escala dos seres, de classi cação
das ciências, etc.

Mas não basta reconhecer que Aristóteles forneceu à ciência mais de


um ponto de partida. Diversos de seus princípios permanecem
perfeitamente reconhecíveis no espírito da ciência contemporânea.
Seu grande princípio, de que há leis na natureza, e que não se pode
descobri-las senão ao extraí-las da experiência através da re exão, sua
preocupação constante em estudar as coisas em detalhe, e apreendê-
las, não através de fórmulas sempre vagas, mas em si mesmas, com
suas características próprias, sua de nição da causa situada no
elemento que faz conhecer a produção como necessária, sua doutrina
da continuidade biológica e da solidariedade do superior em relação
ao inferior: todos esses traços essenciais da loso a aristotélica
encontram-se na ciência contemporânea. Aristóteles segue sendo um
mestre, sem deixar de ser um precursor.

Mas se dirá que Aristóteles é nalista, e a ciência, hoje, proscreve a


consideração dos ns.

Talvez haja aí algum mal-entendido. A nalidade aristotélica não é a


fabricação do mundo, como a de um relógio, por um artesão que se
propõe uma ideia e calcula os meios de realizá-la. Ela consiste, pode-se
dizer, nos três princípios seguintes: 1º. A ordem, no mundo, é a regra,
e a desordem, exceção: isso signi ca que as combinações de
fenômenos que resultam imediatamente das leis da natureza
harmoniosamente reunidas em tipos e que, consequentemente, têm
um desenvolvimento normal, são muito mais numerosas que as
combinações devidas ao encontro fortuito de leis independentes umas
das outras; 2º. Há em cada indivíduo uma força organizadora ou
φύσις, fysis, em virtude da qual ele tende a ser e a realizar determinada
forma; 3º. Os tipos especí cos são exatamente determinados,
separados uns dos outros, e imutáveis. Será evidente que a nalidade,
assim entendida, seja inteiramente excluída da ciência moderna? O
primeiro desses três princípios signi ca que, por observação e por
indução, pode-se chegar ao conhecimento das leis fundamentais. Em
oposição a essa teoria ergue-se a teoria matemática cartesiana,
segundo a qual não existem, na realidade, leis qualitativas e múltiplas
na natureza, mas somente determinações diversas da quantidade
homogênea e matemática. Mas, se a concepção cartesiana está diante
de nós como um ideal e representa a ciência perfeita, a marcha
aristotélica permanece sendo a que é apropriada aos nossos meios de
conhecimento. Aristóteles só errou em crer que através da indução
poderíamos chegar a leis simples e absolutas que não pressupõem
nada antes delas.

O segundo princípio tem uma semelhança marcante com o da luta


pela vida. Em ambos supõe-se em cada indivíduo uma tendência a
existir e a se desenvolver em determinado sentido. É verdade que a
ciência moderna gostaria de poder reduzir a própria vida a um
mecanismo; mas nem por isso ela deixa de reconhecer que a vida, tal
como se apresenta a nós, tem as características e desempenha o papel
que lhe era atribuído por Aristóteles. Toda a diferença consiste em
considerar derivado o que Aristóteles tinha por primitivo; mas
enquanto a redução não se opera, acreditamos não errar ao dizer: tudo
se passa como se houvesse em cada ser vivo uma tendência a existir, e
a existir de uma maneira determinada.

Por m, o terceiro princípio, que ainda tem seus defensores entre os


próprios cientistas, não está, no sentido entendido por Aristóteles, em
contradição absoluta, mesmo do ponto de vista físico, com a doutrina
dos evolucionistas. O que quer dizer Aristóteles? Ele não pretende
a rmar que a história dos seres da natureza começou, outrora, por
uma criação de espécies separadas: ele quer dizer que a realização de
um certo número de tipos, distintos e ao mesmo tempo harmoniosos,
é o m e a regra das produções da natureza. Ele admite que a natureza,
na maior parte das vezes, atinge este m; mas junto com as produções
perfeitamente regulares da natureza, ele admite produções em parte
regulares, em parte irregulares.
Ora, se abstrairmos o passado e a origem no tempo, de que não se
ocupava Aristóteles, não encontraremos uma divergência tão grande
entre esse ponto de vista e o do evolucionismo. Diferente do
materialismo e da doutrina do acaso, o evolucionismo admite que as
espécies existem, ao menos atualmente. E reconhece, na natureza, a
tendência a uma especi cidade cada vez mais completa. O princípio
de Aristóteles subsiste, portanto, ainda hoje, ao menos de forma
hipotética, a única que um princípio pode assumir na ciência: tudo se
passa como se existisse uma hierarquia de formas ideais distintas umas
das outras, que os seres da natureza tendem a realizar.
N  R
1 Utilizamos para a tradução o texto da 3ª ed., Paris, Alcan, 1908 — ne.

2 E, para continuar esses estudos, nada melhor que as Lições sobre Aristóteles pronunciadas
por Boutroux na École Normale Supérieure entre 1878 e 1879.

3 Albert Einstein e Leopold Infeld, A evolução da física, trad. Giasone Rebuà, Rio, Zahar,
1976, cap. i (“A ascensão do conceito mecânico”).

4 Alexander Pope — ne.

5 Discours de Métaphysique, § 12.

6 Cf. N. Denyer, “Can physics be exact?”, em F. De Gandt e P. Souffrin (orgs.), La Physique


d’Aristote et les Conditions d’une Science de la Nature. Actes du Colloque organisé par le
Séminaire d’Epistémologie et d’Histoire des Sciences de Nice, Paris, Vrin, 1991, pp. 73–83.

7 Cf. F. De Gandt, “Sur la détermination du mouvement selon Aristote et les conditions


d’une mathématisation”, em F. De Gandt e P. Souffrin, op. cit., pp. 85–105.

8 De l’Habitude (1838), ed. Jean-François Courtine, Paris, Vrin, 1984, p. 1.

9 Ciencia Moderna y Sabiduría Tradicional, trad. Jordi Quingles y Alejandro Corniero,


Madri, Taurus, 1979, p. 9.

10 Símbolos Naturales. Exploraciones en Cosmología, trad. Carmen Criado, Madri, Alianza


Editorial, 1988.

11 e Encounter of Man and Nature. e Spiritual Crisis of Modern Man, Londres, Allen
and Unwin, 1968. (Há tradução brasileira, O homem e a natureza, Rio, Zahar.)

12 Raymond Ruyer, La Gnose de Princeton. Des Savants à la Recherche d’une Réligion, 2ª


ed., Paris, 1977.

13 Op. cit., p. 59.

14 “e principles of universal habit”, publicado em Peter Lorie e Sidd Murray-Clark,


History of the Future: a Chronology, Londres, Pyramid Books, 1989, pp. 16–19.

15 V. Michel Foucault, Les Mots et les Choses. Une Archéologie des Sciences Humaines,
Paris, Gallimard, 1966, pp. 32 ss.

16 Léon Brunschvicg, Les Âges de I’Intelligence, Paris, p.u.f., 1934 (curso da Sorbonne em
1932; 4ª ed., 1954).
17 Ernest Renan, L’Avenir de la Science, em Pages Choisies, Paris, Calmann-Lévy, 1890, p.
231.

18 Que Aristóteles visse nos astros uma estabilidade e permanência divinas, confundindo
assim com o reino metafísico uma parte do mundo físico, é evidentemente uma aplicação
particular errada de uma distinção geral que, em si, permanece válida. Mas tal era a atmosfera
de hostilidade antiaristotélica (no fundo, antiescolástica ou anticatólica) no Renascimento, que
a criança foi jogada fora com a água do banho: ao rejeitar as concepções astronômicas de
Aristóteles, a nova ciência desprezou, junto com elas, a na distinção entre o domínio físico e o
metafísico, que já continha em seu bojo a antecipação do probabilismo leibniziano.
Confundindo o acidental com o essencial, viciou na raiz suas próprias aspirações de progresso e
acabou por aprisionar-se, por dois séculos, na ilusão mecanicista.

19 V. René om, “Matière, forme et catastrophes”, em M. A. Sinaceur (org.), Penser avec


Aristote, Toulouse, Ères-Unesco, 1991, pp. 367–398.

20 André Canivez, “Aspects de la philosophie française”, em Yvon Belaval (org.), Histoire de


la Philosophie, Paris, Gallimard (Bibliothèque de la Pléiade), 1974, t. iii, p. 455.

21 V. Olavo de Carvalho, O futuro do pensamento brasileiro, Campinas, Vide Editorial, 4ª


ed., 2016, cap. i, § 1, “A história e o sentido da eternidade”.

22 “O primeiro não é a semente, mas o ser plenamente desenvolvido” — nt.

23 Os autores antigos que tratam da vida de Aristóteles são: 1º. Diógenes Laércio, v, 1–35; 2º.
Dionísio de Halicarnasso, Carta a Ameu, i, 5; 3º. O autor anônimo de uma biogra a de
Aristóteles publicada por Ménage no segundo volume de sua edição de Diógenes Laércio,
biogra a composta, talvez, conforme Hesíquio; 4º. O Pseudo-Amônio; 5º. O Pseudo-Hesíquio;
6º. Suda, no artigo Ἀριστοτέλης (“Aristóteles”). Quase todos esses textos encontram-se no tomo
i da edição das obras de Aristóteles empreendida por Buhle, de 1791 a 1800. O valor dessas
diferentes fontes não pode ser determinado a priori. O que se pode fazer é examinar cada
indicação do ponto de vista de sua verossimilhança interna e externa.

24 Ou seja: oral, não livresca. Na história da loso a, assim é chamada a parte do ensino
reservado por Aristóteles aos iniciados — nt.

25 Ou seja, pública, aberta a todos — nt.

26 Doutrina dos lugares-comuns — nt.

27 General macedônico sob Felipe e Alexandre, que em 320 a.C. tornou-se regente do
império — nt.

28 Historiador grego, 63 a.C–ca.20 a.C — nt.

29 Historiador grego, ca. 46–ca. 120 — nt.

30 Neleu de Escépsis, discípulo de Aristóteles e de Teofrasto — nt.

31 Rico colecionador de livros grego, no século ii a.C — nt.


32 Lucius Cornelius Sulla, general e político romano, 138 a.C.–78 a.C — nt.

33 Historiador e biógrafo romano, 180–240 — nt.

34 Historiador da loso a alemão, 1814–1908 — nt.

35 Isto é, rememorativo, que não acrescentam nada à memória, mas podem trazer de volta à
lembrança elementos já presentes nela — nt.

36 A unidade inalterável do sistema de Aristóteles foi contestada em 1923 por Werner Jaeger,
que, reconstituindo a evolução do pensamento do mestre desde os fragmentos de suas obras de
juventude, chegou à conclusão de que ele teria sido primeiro um platônico em sentido estrito, e
de que em seu desenvolvimento ulterior teria chegado não só a renegar o platonismo, mas a
perder todo o interesse metafísico, para dedicar-se cada vez mais a estudos de ciência “positiva”.
A crítica genética inaugurada por Jaeger pareceu prometer uma revolução de que sairia um
Aristóteles totalmente diverso daquele conhecido por uma tradição de vinte séculos. Essa linha
de estudos culminou com Pierre Aubenque, que, com base nos estudos genéticos, contestou
interpretações tão rmemente estabelecidas como a da analogia do ser e até mesmo a existência
pura e simples de uma metafísica aristotélica, oferecendo-nos a imagem de um Aristóteles
céptico e trágico. A escola genética, porém, não conseguiu seu intuito. Estudos posteriores
demonstraram que Aristóteles já se opunha a Platão em pontos fundamentais desde a
juventude, e que seus escritos posteriores em nada mudaram a linha central de suas opiniões.
Após um século inteiro de debates e hesitações, a a rmação de Boutroux, portanto, pode
novamente ser considerada exata — OdC.

37 Este é um dos raros pontos em que o belo trabalho de Boutroux se encontra francamente
desatualizado. Em sua depreciação da dialética, o autor segue o uso disseminado entre os
autores do seu tempo, reduzindo-a a uma retórica mais técnica, ou, mais propriamente, a uma
retórica teorizada. Na verdade, a verossimilhança (πιθανος) é o objetivo do discurso retórico,
enquanto a dialética vai um passo além, buscando o razoável, o admissível, o provável, donde
ser chamada também peirástica (de πειρα, “prova” ou “experiência”). Outra diferença
importante é que, se a retórica parte sempre de “concepções populares”, como diz Boutroux, a
discussão dialética parte sempre das opiniões dos sábios, dos que conhecem o assunto em
questão, o que é coisa completamente outra. Essas diferenças, porém, só vieram a aparecer com
clareza em pesquisas muito posteriores à publicação desta obra. V., a propósito, Olavo de
Carvalho, Aristóteles em nova perspectiva (Campinas, Vide Editorial, 2013), e sobretudo Éric
Weil, “La place de la logique dans la pensée aristotélicienne”, em Éssais et Conférences, Paris,
Vrin, 1991, vol. i, cap. 2, onde se demonstra que a dialética, longe de ser apenas uma forma de
lógica menos rigorosa, constitui o núcleo mesmo do método aristotélico — OdC.

38 Segundo enfatiza o estudo de Éric Weil citado na nota anterior, a possibilidade da


demonstração rigorosa a partir das essências depende de que antes se possua o conhecimento
das essências, para cuja investigação, precisamente, Aristóteles concebe o método dialético. Por
isso a dialética não é apenas uma irmã menor da lógica analítica, mas a sua pré-condição
metodológica. Mais adiante o próprio Boutroux reconhecerá que, “na investigação das próprias
verdades necessárias, ela é a preliminar indispensável da demonstração” — OdC.

39 Termo que designava as cidades-Estado (“polis”) governadas por uma assembleia de


cidadãos — nt.
40 Os textos relativos a essa parte da loso a de Aristóteles são os ὀργανιχά, organika, a
saber: as Categorias, a Hermeneia, os Análíticos anteriores e posteriores, os Tópicos e os
Argumentos sofísticos.

41 O termo “lógica” é uma invenção posterior, dos estóicos. Aristóteles empregava em seu
lugar os termos analítica (τεχνε αναλιτικε) e demonstração (αποδειζιο) — OdC.

42 “Nôus”: em grego antigo, “intelecto, “mente”, “razão” — nt.

43 V. notas 1 e 2 do cap. 5, “O ponto de vista e o método”. Aqui novamente o autor não leva
em consideração a distinção entre verossímil e provável, retórica e dialética — OdC.

44 Evidentemente essa não é a única nem provavelmente a melhor maneira de encarar a


retórica. Esta, de fato, tem alguma consistência teórica própria, como psicologia do discurso, a
qual leva em conta fatores totalmente alheios às considerações dialéticas, como por exemplo o
temperamento e a idade do público. V. notas 1 e 2 do cap. 5, “O ponto de vista e o método” —
OdC.

45 E da retórica mesma — OdC.

46 Objeção que só tem cabimento quando se considera a lógica aristotélica separadamente


da dialética, que, como demonstrou Weil, loc. cit., é precisamente uma logica inventionis —
OdC.

47 No século xx o valor metafísico da lógica aristotélica viria a ser defendido novamente,


com muita força, por René Guénon (ver Les Principes du Calcul in nitésimal, Paris, Gallimard,
1946) — OdC.

48 Fonte: A coleção chamada Metafísica.

49 Fonte: a Física.

50 Fontes: De Cælo; De generatione et corruptione; Meteorologica.

51 Fontes: De Cælo; Meteorologica, xii, 8.

52 Fonte: Meteorologica.

53 Fontes: Meteorologica, iv. Ver também algumas indicações que nos restam sobre a obra
perdida Περι μετάλλων, Peri metallon (“Dos metais”), que poderia ser de Aristóteles, ou mais
provavelmente de Teofrasto.

54 Fontes: Historia animalium; De partibus animalium; De generatione animalium; De


anima; os Parva naturalia, em especial: De longitudine et brevitate vitæ. O De plantis não é, sem
dúvida, de Aristóteles, mas originou- se de seus ensinamentos. Aristóteles cita também seu
tratado De anatomia, obra perdida: eram descrições com guras anatômicas.

55 Fonte: De Anima.
56 Sem equivalente em português, signi ca, em grego antigo, “razão”, “mente”, “inteligência”,
“pensamento” — nt.

57 O “sentido comum” — nt.

58 Fonte: Ética a Nicômaco.

59 Ética e Política, livro i. Existem, com o nome de Aristóteles, os Οἰχονομιχά, Economiká,


que sem dúvida não são autênticos.

60 Fonte: a Política.

61 Liberal no sentido das artes liberais, em oposição às artes servis. A tradição das artes
liberais como base da educação das classes governantes permanece viva nos Estados Unidos,
onde praticamente todo o primeiro escalão dos dirigentes obtém sua formação em algumas
centenas de colégios que conservam os antigos métodos de educação — OdC.

62 Fonte: Retórica.

63 Relação análoga existe entre a lógica (apodíctica) e a dialética: anterior àquela, na ordem
do tempo, a dialética lhe é subordinada na ordem da constituição interna (“ordem da ciência”)
— OdC.

64 O entimema é o silogismo com premissa implícita, por exemplo: “Onde há fumaça, há


fogo” — OdC.

65 Isto é: de prova retórica — OdC.

66 Examinada desde vários pontos de vista, uma questão qualquer em discussão sugere
inúmeros argumentos que podem ser usados pró e contra as várias respostas que lhe sejam
oferecidas. Esses pontos de vista denominam-se, em retórica, “lugares” (tópoi), donde a
denominação de tópica que se dá à sua classi cação. Mas o termo tópica é usado também como
designação geral da dialética, o que signi ca que a mesma operação de classi car os pontos de
vista também se faz em dialética, com a diferença de que aí já não com o objetivo de encontrar
argumentos puramente persuasivos, e sim de avançar no conhecimento efetivo do assunto —
OdC.

67 Esta parte da retórica constitui uma psicologia das situações de discurso. Da lógica para a
dialética, desta para a retórica e a poética, cresce a importância do fator psicológico, isto é, das
diferenças entre as mentalidades dos destinatários, até o ponto em que, no discurso poético, a
reação emocional da plateia (por exemplo, a catarse na tragédia) se torna o próprio objetivo do
discurso. À escala da subjetividade crescente dos quatro discursos — analítico, dialético,
retórico, poético — corresponde inversamente a escala dos graus de veracidade intrínseca dos
argumentos — OdC.

68 Fonte: Poética.

69 Há evidentemente diferença entre a verossimilhança poética e a verossimilhança retórica.


A primeira visa apenas a predispor a plateia a uma reação emocional momentânea, a segunda a
produzir a adesão efetiva a determinada crença — OdC.
70 Após a redescoberta da Poética com a edição comentada de Francesco Robortelli (1548),
as regras da unidade de tempo, de ação e de lugar foram absolutizadas pelo teatro clássico
europeu, e a poética de Aristóteles, nessa versão enrijecida, veio a dominar o pensamento
crítico por dois séculos. Voltaire, no século xviii, desprezava o teatro de Shakespeare por
escapar às regras dessa poética. Nunca se escreveu um estudo para explicar por que o
pensamento aristotélico, ao mesmo tempo que perdia prestígio na esfera das ciências naturais,
ganhava tamanha autoridade no domínio literário — OdC.

71 Fontes: De interpretatione, cap. i; Retórica; Poética, caps. xx–xxi.

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