Aristóteles Émile Boutroux
Aristóteles Émile Boutroux
Aristóteles Émile Boutroux
Émile Boutroux
Introdução e notas de Olavo de Carvalho
1ª edição — janeiro de 2024 — CEDET
Título original: Aristote,
em Etudes d’histoire de la philosophie (3e édition). Paris: Félix
Alcan, 1908.
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Editor:
Felipe Denardi
Tradução:
Christian Lesage
Revisão:
Vitório Armelin
Preparação de texto:
Miguel Mallet
Diagramação:
Virgínia Morais
Capa:
Lucas Gabriel Goes de Macêdo
Revisão de Provas:
Flávia Regina eodoro
Andressa Gotierra da Silva
Telma Regina Matheus
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo
FICHA CATALOGRÁFICA
ISBN: 978-85-9507-209-1
1. Filoso a. 2. Filoso a de Aristóteles.
I. Autor. II. Título.
CDD – 100 / 185
A
B
O A
A
L
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F
M
C
A
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B
B
Z
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A É B
O C
O texto que se vai ler foi redigido inicialmente por Émile Boutroux
como verbete para a Grande Encyclopédie (Paris, 1886) e depois
incluído pelo autor nos seus Études d’Histoire de la Philosophie
(1897).1 Com seus cento e tantos anos de idade, ainda é uma das
melhores introduções ao estudo da loso a de Aristóteles, e, fora um
ou outro ponto corrigido pela pesquisa mais recente — de que dou
ciência nas notas de rodapé —, di cilmente se encontrará um guia
mais seguro para orientar os primeiros passos do estudante que
ingressa no assunto.2
Assim, cou o dito pelo não dito. A “Época das Luzes” faz-se de
avestruz, despede-se de Leibniz com as chacotas de Voltaire (que o
caricatura sob o personagem do Dr. Pangloss) e deixa as objeções para
depois, sem imaginar que renasceriam com força centuplicada no
século .
Olavo de Carvalho
A
Τὸ πρῶτον οὐ σπέρμα ἐστὶν ἀλλα τό τέλειον.22
B
A ristóteles nasceu em Estagira, colônia grega jônica da Trácia,
situada à beira-mar na península Calcídica, no ano de 384 a.C., e
morreu em Cálcis, na ilha de Eubeia, em 322.
Seu pai, Nicômaco, era médico, assim como seus antepassados. Eles
relacionavam sua família à de Macaão, lho de Esculápio; e, como
muitos outros, davam a si mesmos o nome de Asclepíades. Nicômaco
foi médico do rei da Macedônia, Amintas , pai de Felipe. Este fator
pode ter contribuído para que Aristóteles fosse chamado à corte do rei
da Macedônia, para a educação de Alexandre. Na qualidade de
Asclepíade, supõe-se que tivesse recebido desde cedo instrução em
anatomia.
Seu caráter, atacado desde cedo por adversários políticos e cientí cos,
surge em seus escritos como leal, humano e nobre; e não há fato
con rmado que prove o contrário. Sua vida é imbuída de dignidade
moral e losó ca. Aristóteles é um gênio a um só tempo universal e
criador, e um trabalhador infatigável. Não possui o ímpeto de Platão:
tendo o espírito voltado para a realidade que nos é dada, tem por
quimérico tudo que não se relacione a ela; mas não se restringe aos
fatos, ou ao sensível: busca pelo inteligível. Em todas as matérias,
recomenda o meio-termo, o comedimento. Uma fortuna mediana, um
governo da classe média: esta é, segundo ele, a melhor condição para o
indivíduo e para a sociedade.
O A
A história da conservação dos escritos de Aristóteles é pouco
conhecida. Segundo Estrabão e Plutarco, os escritos de
28 29
O
A
U niversalidade: esta é, como indicam os próprios títulos dos livros,
a primeira característica da obra de Aristóteles. Teoria e prática,
metafísica e ciência da observação, erudição e especulação, a loso a
de Aristóteles se estende a todos os campos. Ela é, ou almeja ser, o
saber em sua totalidade. Mais clara do que em Platão, mais geral do
que em Anaxágoras e Demócrito, da obra de Aristóteles emana a ideia
da ciência, considerada o objeto supremo da atividade. Não se trata de
uma curiosidade de eruditos, e sim da ambição de penetrar a essência
e a causa das coisas. Tudo o que é, sem exceção, mesmo o que parece
reles e insigni cante, provoca, neste sentido, a busca do lósofo. Em
toda produção da natureza, até na que aparenta ser mais humilde, ele
sabe que irá encontrar o inteligível e o divino.
C
S em ter chegado à precisão, ou mesmo à xidez no detalhe,
Aristóteles foi, não obstante, o primeiro a conceber a ciência de um
ponto de vista enciclopédico, e a procurar um princípio completo de
classi cação do conhecimento.
A ciência, antes de mais nada, distingue-se claramente das próprias
coisas a que se refere. Ela consiste na concepção das coisas como
necessárias; e comporta gradações, segundo o objeto por ela
considerado comporte ele mesmo a necessidade, ou apenas a
probabilidade.
O
O objeto considerado por Aristóteles é essencialmente teórico. Saber
por saber, compreender, ajustar as coisas à inteligência, esta é a
nalidade de todo seu trabalho.
L
A ristóteles quer conhecer os fatos, não apenas como são, mas como
devem ser; quer resolver o que é contingente e o que é necessário.
Ele precisa então, em primeiro lugar, investigar as condições nas quais
o espírito concebe algo como sendo necessário; em outras palavras, ele
precisa inicialmente considerar a ciência pela forma, abstraindo o seu
conteúdo: tal é o objeto da lógica.40 –41
De onde vêm esses princípios? Não são inatos, nem recebidos de fora
pura e simplesmente. Há em nós uma disposição para concebê-los; e
por efeito da experiência, essa disposição se efetiva. É nisso,
de nitivamente, que consiste a indução, e assim é por indução que
conhecemos os primeiros princípios próprios a cada ciência.
M
E nquanto cada ciência especí ca considera alguma espécie
particular de seres — a física, por exemplo, o ser enquanto tem em
si matéria e movimento; a matemática, a forma do ser móvel enquanto
se o isola por abstração da matéria em que é realizado —, a loso a
primeira, como é chamada por Aristóteles, considera o “ser enquanto
ser” (τὸ ὄν ἦ ὅν, to on e on), e examina, neste sentido, os seus
princípios.
Daí, todavia, surge uma di culdade. Se, por um lado, toda ciência
trata do geral, e se, por outro lado, a substância não pode ser senão
uma coisa individual, como poderá haver uma ciência da substância?
Nossa teoria não chegaria então a este resultado: uma ciência cujo
objeto não existe, um ser que não pode ser objeto da ciência? Para
resolver essa di culdade, é preciso ampliar a noção de ciência. Nem
toda ciência trata do geral. A ciência possui dois modos, dois graus.
Existe a ciência em potência e a ciência em ato. A ciência em potência
tem por objeto o geral, mas o mesmo não ocorre com a ciência em ato:
esta tem por objeto o ser perfeitamente determinado, o indivíduo.
Tais são as causas próximas do ser submetido ao devir. Mas este ser
não seria completamente explicado se fossem considerados
unicamente seus elementos. O ser que devém não encontra sua
explicação última senão num ser eterno.
Esta prova pode ser generalizada da maneira que segue. O atual situa-
se sempre antes do potencial. O primeiro, no absoluto, não é o germe,
mas o ser completo. Ademais, a atuação não poderia realizar-se se já
não existisse o ato puro. Deus é este ato puro.
F
A física,
loso a primeira tinha por objeto o ser imóvel e incorpóreo: a
ou loso a segunda, tem por objeto o ser móvel e corpóreo,
na medida em que este tem em si próprio o princípio do seu
movimento. A φύσις, fysis (“natureza”) é o movimento espontâneo,
por oposição ao movimento forçado.
Portanto, a natureza é uma causa, e uma causa que age com vista a
um m. Mas é preciso reconhecer que ela não é a única causa do
universo. Sua ação não é possível senão graças à cooperação da causa
material ou mecânica, a qual, embora cedendo à sua atração, não se
deixa jamais subjugar inteiramente. A par da nalidade, há portanto
em todo o universo uma parte de necessidade bruta e de acaso.
M
A matemática considera as relações de grandeza, a quantidade e o
contínuo, abstraindo as outras qualidades físicas. Trata, assim, das
coisas que são imóveis sem existirem à parte, essências intermediárias
entre o mundo e Deus. O matemático isola por abstração, nas coisas
sensíveis, a forma da matéria.
C
D amovimento,
eternidade da forma e da matéria, segue-se a perpetuidade do
e também a da existência do mundo. As espécies são
eternas, e sempre houve homens: somente os indivíduos nascem e
morrem. Sendo o mundo eterno, a ciência do mundo não é mais uma
cosmogonia, mas uma cosmologia. Aristóteles já não precisa explicar a
formação do universo, apenas seu sistema.
O mundo é uno, nito e bem ordenado. É uma obra de arte. É belo e
bom, na medida em que o permite a resistência do elemento material.
Sua forma é perfeita; é a única, aliás, que possibilita o movimento do
conjunto sem vazio ao seu redor: a forma esférica.
Dentro do céu das estrelas xas está a região dos planetas, entre os
quais Aristóteles situa, além dos cinco planetas conhecidos pelos
antigos, o Sol e a Lua. No centro do mundo está a Terra, de forma
esférica. O céu dos planetas é feito de uma substância cada vez menos
pura, à medida que se afasta do céu das estrelas xas. Diferentemente
do primeiro céu, que é uma esfera única contendo todas as estrelas, o
céu dos planetas é composto por uma multiplicidade de esferas, pois
os movimentos dos planetas, relativamente irregulares, supõem uma
multiplicidade de motores cujas ações se combinam entre si.
Excluídos os astros xos, todos os outros seres são feitos dos quatro
elementos. Cada elemento tem seu movimento próprio, que é o avanço
retilíneo em direção a seu lugar natural. Daí decorrem o peso e a
leveza. O peso é a tendência de cada corpo a seguir sua direção
própria. Não é possível dizer, como Demócrito, que todo movimento
resulta pura e simplesmente de um choque, e assim até o in nito. É
preciso deter-se na regressão, ao menos na ordem lógica. O
movimento forçado supõe o movimento espontâneo.
M
A meteorologia tinha sido muito cultivada desde Tales. Aristóteles
valeu-se dos trabalhos dos que o antecederam, mas fez também
pesquisas originais no espírito de sua própria loso a. Os fenômenos
meteorológicos resultam, segundo ele, da ação dos quatro elementos
entre si. Em conformidade com a natureza desses elementos, os
resultados de sua ação mútua são menos determinados, e obedecem a
leis menos rigorosas do que os fenômenos que se produzem no
primeiro elemento ou éter. Por isso, Aristóteles busca para os meteoros
explicações sobretudo empíricas e mecânicas. Ele atribui um papel
preponderante ao calor. É dessa maneira que ele explica os cometas, a
via láctea, as nuvens, as neblinas, os ventos, as relações entre mares e
continentes, a formação do mar; e suas explicações denotam
frequentemente uma observação exata e um raciocínio inteligente. Os
ventos, por exemplo, são explicados pelo movimento dos vapores
resultantes de suas diferenças de temperatura. Os terremotos são
devidos à ação de gases subterrâneos. O arco-íris não passa de um
fenômeno de re exão: as gotículas das nuvens agem, em relação à luz
do Sol, como espelhos.
M
M inerais são os corpos homogêneos que como tal permanecem, e
não se organizam em indivíduos compostos de partes diferentes.
Esses corpos são formados pelo frio e pelo calor, combinando ou
desagregando, enquanto propriedades ativas, o úmido e o seco, que
desempenham o papel de propriedades passivas.
B
A biologia é parte considerável da obra cientí ca de Aristóteles. Ele
pode, sem dúvida, ter se servido do trabalho de seus antecessores,
especialmente de Demócrito, mas foi tão além deles que desponta
como o verdadeiro criador da biologia entre os gregos. Ele procede,
em primeiro lugar, pela observação, devendo a determinação dos
fenômenos preceder à busca das causas. À observação pura e simples,
ele parece ter acrescentado a dissecção. Ele vai da anatomia à
siologia; e, de maneira geral, fundamenta a biologia na física, dando-
lhe por base o conhecimento dos quatro elementos. Ele abordou não
apenas todos os problemas que podiam ser concebidos em seu tempo,
mas quase todos aqueles que preocupam a ciência moderna. As
soluções que apresenta são, em geral, cuidadosamente demonstradas; e
seus raciocínios são corretos e engenhosos, considerando os
conhecimentos da época. Diga-se, porém, que muitas vezes suas
explicações são arbitrárias, ou sobretudo metafísicas; e às vezes, ele
chega a atribuir a simples lendas o valor de uma demonstração.
B
A scertamente
obras de Aristóteles sobre botânica se perderam, mas ele
impulsionou os estudos feitos sobre as plantas em sua
escola; e parece ter contribuído grandemente para a criação da
botânica cientí ca.
A
D eve-se distinguir entre anatomia e
siologia comparadas.
siologia gerais e anatomia e
Z
A ristóteles foi o primeiro zoologista classi cador. A bem da verdade,
não parece ter sido sua intenção estabelecer uma classi cação
zoológica: suas tentativas de classi cação são apresentadas como
exemplo apenas. Ele tampouco distribuiu os animais numa hierarquia
de gêneros e espécies: ele se limitou à de nição dos grupos principais.
Mas viu que o critério da espécie resulta da reprodução, da
interfecundidade. Ele só considera da mesma espécie os animais
descendentes de genitores comuns. Sua classi cação pretende ser
natural, isto é, tende a reunir os animais que têm entre si semelhanças
fundamentais. Seu esforço, aqui como em todos os domínios, tende a
fazer a distinção entre o essencial e o acidental.
nele se une à alma animal. Ele possui faculdades que são comuns
aos animais, e faculdades que lhe são próprias. Em comum com os
animais, o homem tem a sensação e as faculdades que dela derivam.
E
O homem, pela vida em família, atinge um grau de perfeição
superior ao que comporta a vida individual. A família é uma
sociedade natural. Ela compreende três tipos de relações: entre homem
e mulher, entre pais e lhos, e entre senhor e escravos.
A relação entre pais e lhos é uma relação entre reis e súditos. Pais e
lhos constituem uma monarquia. O lho não tem, em relação ao pai,
nenhum direito, pois é ainda parte do pai; mas o pai tem o dever de
zelar pelo bem do lho, pois o lho tem, também, sua vontade e sua
virtude, embora imperfeitas. O pai deve transmitir sua perfeição ao
lho, e o lho apropriar-se da perfeição do pai.
Fica claro que as ideias políticas de Aristóteles muitas vezes não são
senão a teorização dos fatos que ele contempla, mas seria um exagero
não ver nelas nada além disso. Se os meios que ele preconiza são
frequentemente tirados de uma experiência forçosamente restrita, os
ns que ele indica são determinados pela razão e pela loso a; e a
política de Aristóteles, ainda hoje, fornece ensinamentos aos homens
de Estado, e documentos aos historiadores.
R
E mEssaretórica, o próprio Aristóteles nos diz que não precisou criar.
ciência já havia sido desenvolvida, antes dele, por Tísias,
Trasímaco, Teodoro e muitos outros. Mas esses autores se limitavam
ao particular e não iam além de uma visão empírica. Pertence a
Aristóteles a ideia de uma retórica cientí ca, e particularmente a
determinação de uma relação estreita entre a retórica e a lógica. Platão
já havia tentado, sem sucesso, fundar a retórica na ciência. Aristóteles,
graças às suas teorias lógicas, encontra na dialética, distinta da
apodíctica, o próprio fundamento da retórica. A retórica é a aplicação
da dialética aos ns da política, isto é, a certos ns práticos. A dialética
é logicamente anterior à retórica: ela é o todo do qual a retórica não é
senão uma parte. Segundo a ordem temporal, a retórica é anterior à
dialética; segundo a ordem da ciência, porém, a verdade é o inverso.
E
A ristóteles distinguia três partes da loso a: a parte teórica, a parte
prática e a parte poética, ou relativa à arte. Não chegou a tratar
desta última em detalhes, mas nem por isso deixou de ser, por todas as
indicações e exemplos que deu, o fundador da estética.
P
O que chegou até nós da Poética de Aristóteles limita-se quase ao
estudo da tragédia. Mas Aristóteles havia tratado da poética de
maneira completa.
A poesia nasceu da queda para a imitação. Uma tragédia é a imitação
de uma ação séria e completa, de uma certa extensão, empregando
uma bela linguagem, sob forma dramática, e não narrativa, imitação
que estimula terror e piedade, e assim purga a alma dessas mesmas
paixões. O poeta trágico nos apresenta, em seus heróis e no destino
que lhes dá, tipos gerais da natureza e da vida humana. Ele nos mostra
as leis imutáveis que dominam e regulam os eventos aparentemente
acidentais. Daí a e cácia da tragédia para purgar a alma dos seus afetos
desordenados.
D
C itam-se diversos discursos de Aristóteles, entre outros um Λογος
διχανιχος, Logos dikanikos (“Apologia”), no qual ele se defende da
acusação de blasfêmia, um Elogio de Platão, e um Elogio de
Alexandre; mas a autenticidade dessas obras, hoje perdidas, é muito
contestada.
Ele compôs também peças de poesia, das quais nos restam, entre
fragmentos de autenticidade muito duvidosa, alguns trechos
autênticos. O mais importante desses fragmentos é uma parte de um
escólio em homenagem a Hérmias de Atarneu, seu amigo. Nele,
Aristóteles canta a virtude, à qual, como os antigos heróis da Grécia,
Hérmias sacri cou a própria vida. Mencionemos também alguns
dísticos de uma elegia a Eudemo, composta em homenagem a Platão,
“esse homem de quem mesmo o elogio é vedado aos maus”.
C
A sautores
cartas de Aristóteles são celebradas por Demétrio e outros
como modelos de estilo epistolar. Segundo Simplício, o
estilo dessas cartas reunia clareza e graça, a um ponto nunca atingido
por nenhum outro autor conhecido. Diógenes menciona as cartas a
Felipe, as cartas dos Selímbrios, quatro cartas a Alexandre, nove a
Antípatro, e cartas a Mentor, Aríston, Filóxenes, Demócrito, etc. Sendo
os fragmentos que nos restam, em geral, inautênticos, não temos como
julgar por nós mesmos o conteúdo e a forma das cartas de Aristóteles.
A
A ristóteles serve-se da língua ática escrita, tal como existia em seu
tempo. Mas a quantidade de ideias novas que ele se propõe a
expressar exerce sobre o instrumento de que faz uso uma importante
in uência. A consideração das coisas em sua individualidade, a
distinção precisa entre os domínios cientí cos, o empenho em
conseguir formar conceitos isentos de qualquer elemento sensível,
re etem-se na sua língua e no seu estilo. Assim como a análise lógica
de Aristóteles não se detém, em seu trabalho, senão depois de ter
capturado as últimas diferenças, as diferenças especí cas, da mesma
forma, na linguagem aristotélica, os aparentes sinônimos se
singularizam e se de nem com precisão.
I A
O ensinamento de Aristóteles deu origem, inicialmente, à escola
peripatética, que oresceu durante dois ou três séculos, e cujos
principais representantes são: Teofrasto de Lesbos (372 a.C.?–287
a.C.?), Eudemo de Rodes (século a.C.), Aristóxenes de Taranto (ca.
350 a.C.), conhecido como “o músico”, Dicearco de Messana ( . 320) e
Estratão de Lâmpsaco ( . 287). Critolau, que fez parte da embaixada
enviada a Roma, em 156, pela qual foi introduzida a loso a no
mundo romano, era um lósofo peripatético. A escola distinguiu-se
por suas pesquisas minuciosas em lógica, moral e ciências da natureza;
mas a tendência naturalista prevaleceu cada vez mais sobre a tendência
metafísica. Estratão chegou a identi car a divindade com a φύσις,
physis (“natureza”) que atua inconscientemente no mundo, e a
substituir a teleologia aristotélica por uma explicação completamente
mecanicista das coisas, fundada nas propriedades do calor e do frio.
Por maior que seja seu lugar na história, pode-se dizer que Aristóteles
seja, ainda hoje, um dos mestres do pensamento humano? No que diz
respeito à loso a propriamente dita, não parece haver dúvida. Pode-
se mesmo dizer que o aristotelismo responde particularmente às
questões de nossa época. As duas doutrinas que hoje ocupam o maior
espaço no mundo losó co são o idealismo kantiano e o
evolucionismo. Ora, o sistema de Aristóteles pode ser confrontado
sem desvantagem a esses dois sistemas.
Tudo tem sua razão, e o primeiro princípio deve ser a razão suprema
das coisas. Ora, explicar é determinar, e a suprema razão das coisas
não pode ser senão o ser inteiramente determinado. Entre o in nito e
o nito, é o nito, enquanto inteligível, o princípio; o in nito,
enquanto ininteligível, não pode ser senão fenômeno.
2 E, para continuar esses estudos, nada melhor que as Lições sobre Aristóteles pronunciadas
por Boutroux na École Normale Supérieure entre 1878 e 1879.
3 Albert Einstein e Leopold Infeld, A evolução da física, trad. Giasone Rebuà, Rio, Zahar,
1976, cap. i (“A ascensão do conceito mecânico”).
11 e Encounter of Man and Nature. e Spiritual Crisis of Modern Man, Londres, Allen
and Unwin, 1968. (Há tradução brasileira, O homem e a natureza, Rio, Zahar.)
15 V. Michel Foucault, Les Mots et les Choses. Une Archéologie des Sciences Humaines,
Paris, Gallimard, 1966, pp. 32 ss.
16 Léon Brunschvicg, Les Âges de I’Intelligence, Paris, p.u.f., 1934 (curso da Sorbonne em
1932; 4ª ed., 1954).
17 Ernest Renan, L’Avenir de la Science, em Pages Choisies, Paris, Calmann-Lévy, 1890, p.
231.
18 Que Aristóteles visse nos astros uma estabilidade e permanência divinas, confundindo
assim com o reino metafísico uma parte do mundo físico, é evidentemente uma aplicação
particular errada de uma distinção geral que, em si, permanece válida. Mas tal era a atmosfera
de hostilidade antiaristotélica (no fundo, antiescolástica ou anticatólica) no Renascimento, que
a criança foi jogada fora com a água do banho: ao rejeitar as concepções astronômicas de
Aristóteles, a nova ciência desprezou, junto com elas, a na distinção entre o domínio físico e o
metafísico, que já continha em seu bojo a antecipação do probabilismo leibniziano.
Confundindo o acidental com o essencial, viciou na raiz suas próprias aspirações de progresso e
acabou por aprisionar-se, por dois séculos, na ilusão mecanicista.
23 Os autores antigos que tratam da vida de Aristóteles são: 1º. Diógenes Laércio, v, 1–35; 2º.
Dionísio de Halicarnasso, Carta a Ameu, i, 5; 3º. O autor anônimo de uma biogra a de
Aristóteles publicada por Ménage no segundo volume de sua edição de Diógenes Laércio,
biogra a composta, talvez, conforme Hesíquio; 4º. O Pseudo-Amônio; 5º. O Pseudo-Hesíquio;
6º. Suda, no artigo Ἀριστοτέλης (“Aristóteles”). Quase todos esses textos encontram-se no tomo
i da edição das obras de Aristóteles empreendida por Buhle, de 1791 a 1800. O valor dessas
diferentes fontes não pode ser determinado a priori. O que se pode fazer é examinar cada
indicação do ponto de vista de sua verossimilhança interna e externa.
24 Ou seja: oral, não livresca. Na história da loso a, assim é chamada a parte do ensino
reservado por Aristóteles aos iniciados — nt.
27 General macedônico sob Felipe e Alexandre, que em 320 a.C. tornou-se regente do
império — nt.
35 Isto é, rememorativo, que não acrescentam nada à memória, mas podem trazer de volta à
lembrança elementos já presentes nela — nt.
36 A unidade inalterável do sistema de Aristóteles foi contestada em 1923 por Werner Jaeger,
que, reconstituindo a evolução do pensamento do mestre desde os fragmentos de suas obras de
juventude, chegou à conclusão de que ele teria sido primeiro um platônico em sentido estrito, e
de que em seu desenvolvimento ulterior teria chegado não só a renegar o platonismo, mas a
perder todo o interesse metafísico, para dedicar-se cada vez mais a estudos de ciência “positiva”.
A crítica genética inaugurada por Jaeger pareceu prometer uma revolução de que sairia um
Aristóteles totalmente diverso daquele conhecido por uma tradição de vinte séculos. Essa linha
de estudos culminou com Pierre Aubenque, que, com base nos estudos genéticos, contestou
interpretações tão rmemente estabelecidas como a da analogia do ser e até mesmo a existência
pura e simples de uma metafísica aristotélica, oferecendo-nos a imagem de um Aristóteles
céptico e trágico. A escola genética, porém, não conseguiu seu intuito. Estudos posteriores
demonstraram que Aristóteles já se opunha a Platão em pontos fundamentais desde a
juventude, e que seus escritos posteriores em nada mudaram a linha central de suas opiniões.
Após um século inteiro de debates e hesitações, a a rmação de Boutroux, portanto, pode
novamente ser considerada exata — OdC.
37 Este é um dos raros pontos em que o belo trabalho de Boutroux se encontra francamente
desatualizado. Em sua depreciação da dialética, o autor segue o uso disseminado entre os
autores do seu tempo, reduzindo-a a uma retórica mais técnica, ou, mais propriamente, a uma
retórica teorizada. Na verdade, a verossimilhança (πιθανος) é o objetivo do discurso retórico,
enquanto a dialética vai um passo além, buscando o razoável, o admissível, o provável, donde
ser chamada também peirástica (de πειρα, “prova” ou “experiência”). Outra diferença
importante é que, se a retórica parte sempre de “concepções populares”, como diz Boutroux, a
discussão dialética parte sempre das opiniões dos sábios, dos que conhecem o assunto em
questão, o que é coisa completamente outra. Essas diferenças, porém, só vieram a aparecer com
clareza em pesquisas muito posteriores à publicação desta obra. V., a propósito, Olavo de
Carvalho, Aristóteles em nova perspectiva (Campinas, Vide Editorial, 2013), e sobretudo Éric
Weil, “La place de la logique dans la pensée aristotélicienne”, em Éssais et Conférences, Paris,
Vrin, 1991, vol. i, cap. 2, onde se demonstra que a dialética, longe de ser apenas uma forma de
lógica menos rigorosa, constitui o núcleo mesmo do método aristotélico — OdC.
41 O termo “lógica” é uma invenção posterior, dos estóicos. Aristóteles empregava em seu
lugar os termos analítica (τεχνε αναλιτικε) e demonstração (αποδειζιο) — OdC.
43 V. notas 1 e 2 do cap. 5, “O ponto de vista e o método”. Aqui novamente o autor não leva
em consideração a distinção entre verossímil e provável, retórica e dialética — OdC.
49 Fonte: a Física.
52 Fonte: Meteorologica.
53 Fontes: Meteorologica, iv. Ver também algumas indicações que nos restam sobre a obra
perdida Περι μετάλλων, Peri metallon (“Dos metais”), que poderia ser de Aristóteles, ou mais
provavelmente de Teofrasto.
55 Fonte: De Anima.
56 Sem equivalente em português, signi ca, em grego antigo, “razão”, “mente”, “inteligência”,
“pensamento” — nt.
60 Fonte: a Política.
61 Liberal no sentido das artes liberais, em oposição às artes servis. A tradição das artes
liberais como base da educação das classes governantes permanece viva nos Estados Unidos,
onde praticamente todo o primeiro escalão dos dirigentes obtém sua formação em algumas
centenas de colégios que conservam os antigos métodos de educação — OdC.
62 Fonte: Retórica.
63 Relação análoga existe entre a lógica (apodíctica) e a dialética: anterior àquela, na ordem
do tempo, a dialética lhe é subordinada na ordem da constituição interna (“ordem da ciência”)
— OdC.
66 Examinada desde vários pontos de vista, uma questão qualquer em discussão sugere
inúmeros argumentos que podem ser usados pró e contra as várias respostas que lhe sejam
oferecidas. Esses pontos de vista denominam-se, em retórica, “lugares” (tópoi), donde a
denominação de tópica que se dá à sua classi cação. Mas o termo tópica é usado também como
designação geral da dialética, o que signi ca que a mesma operação de classi car os pontos de
vista também se faz em dialética, com a diferença de que aí já não com o objetivo de encontrar
argumentos puramente persuasivos, e sim de avançar no conhecimento efetivo do assunto —
OdC.
67 Esta parte da retórica constitui uma psicologia das situações de discurso. Da lógica para a
dialética, desta para a retórica e a poética, cresce a importância do fator psicológico, isto é, das
diferenças entre as mentalidades dos destinatários, até o ponto em que, no discurso poético, a
reação emocional da plateia (por exemplo, a catarse na tragédia) se torna o próprio objetivo do
discurso. À escala da subjetividade crescente dos quatro discursos — analítico, dialético,
retórico, poético — corresponde inversamente a escala dos graus de veracidade intrínseca dos
argumentos — OdC.
68 Fonte: Poética.