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Demitologização - A Mensagem de Rudolf Bultmann

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Demitologização – A mensagem de

Rudolf Bultmann
por Harvie M. Conn

Uma das palavras-chave para entender a teologia do século XX é “demitologização”.


Rudolf Bultmann tornou este termo famoso quando o introduziu num ensaio em
1941.[1]

O impacto deste conceito na Europa foi enorme. E, se bem que em alguns aspectos a
atualmente a Alemanha não demonstra interesse por este conceito como antes, o
interesse está aumentando nos EUA e na Ásia.[2] A ideia recebeu novo estímulo
quando o bispo John Robinson da Inglaterra a popularizou em seu livro Honest to God
(1963).[3]

Não é possível sintetizar todo o pensamento de Bultmann nesta palavra. No capítulo


anterior tratamos de indicar outra parte muito importante da atual influência de
Bultmann.[4] Todavia, o programa de demitologização é sem dúvida uma parte
importante da teologia deste professor e, a parte que continua ainda hoje a mais
controvertida.

1. O centro do programa de demitologização é a afirmação de Bultmann de que no


NT se encontram duas coisas: 1) o evangelho cristão; e, 2) a cosmogonia do
século I de índole mitológica. A essência do evangelho, que era o que Bultmann
chama de kerygma (transliteração da palavra grega que significa “o conteúdo do
que se prega”), é a entranha irredutível que devemos apresentar aos nossos
contemporâneos e o que devemos crer. Todavia, o homem moderno não pode
aceitar a moldura mítica que envolve a essência do evangelho. Por isso, “a
teologia deve empreender a tarefa de despojar o kerygma da casca mitológica a
envolve.[5] Segundo Bultmann esta “casca mitológica” não é cristã de modo
algum.

2. O “mito” para Bultmann é a racionalização indiferenciada de uma época


pré-científica.[6] o propósito do mito é expressar o modo como o homem se vê,
não apresentar um quadro objetivo do mundo. O mito emprega imagens e termos
emprestados deste mundo para expressar estas convicções da cosmovisão que o
homem tem de si mesmo. Deste modo, no século I, o judeu entendia o seu
mundo como um sistema aberto a Deus e aos poderes sobrenaturais. No século I
se cria que o universo tinha três níveis, acima estava o céu, no meio a terra, e
embaixo o inferno. Bultmann afirma que esta é a cosmovisão que se encontra na
Bíblia. A ordem natural que se vê perturbado por intervenções sobrenaturais.

3. Segundo Bultmann, esta transformação mítica do mundo também foi utilizada


para transformar a mensagem acerca de Jesus. A pessoa histórica de Jesus se
converteu muito cedo, num mito no Cristianismo primitivo e, por isso,
“Bultmann argumenta que o conhecimento histórico acerca de Jesus não tem
importância para a fé cristã.”[7] É este mito que é apresentado no quadro do NT
acerca de Jesus. Afirma-se que os fatos históricos a respeito de Jesus foram
transformados numa história mítica de um ser divino preexistente que se
encarnou e expiou com o seu sangue os pecados dos homens, ressuscitou dentre
os mortos, ascendeu ao céu e, segundo se cria, regressaria em breve para julgar
ao mundo e iniciar a nova era. Esta história central se estabeleceu, segundo
disse, também com históricas miraculosas, acerca de vozes do céu, triunfos
sobre demônios, e etc.. Devemos recordar que Bultmann afirma que toda esta
apresentação de Jesus no NT não é história, senão mitos, ou seja, as formas de
pensar das pessoas que criaram estes mitos intencionavam entender a si mesmas.
São mitos que não tem validade para o homem do século XX, que crê em
hospitais e não em milagres, em penicilina e não em orações. Para transmitir
com eficácia o evangelho ao homem moderno, devemos despojar o NT do mito
e colocar em descoberto o propósito original que está oculto por trás do mito. O
processo de descobrimento é a “demitologização”.

4. Este processo não significa negar a mitologia, segundo Bultmann. Significa


interpretá-la existencialmente, ou seja, em função da compreensão do homem e
de sua própria existência, e em termos que o homem atual possa entender.
Bultmann o faz com a utilização dos conceitos do filósofo existencialista alemão
Martin Heidegger (1889-).[8] Assim, por exemplo, o suposto mito do
nascimento virginal de Cristo afirma-se que é um intento de expressar o
significado de Jesus para a fé. William Hordern Observa que “tais mitos dizem
que Cristo nos veio como uma ação de Deus”[9]. A cruz de Cristo não significa
a respeito da carga vicária de nossos pecados por Jesus. Tem significado
somente como um símbolo de que o homem assume uma nova existência,
renunciando a toda segurança material por uma nova vida que se vive apoiada
no transcendente.[10]

5. Em último lugar, Bultmann disse que as características básicas da mitologia do


NT se concentram em duas classes de auto-compreensão. Uma é a vida fora da
fé e a outra é a vida da fé. Os termos pecado, carne, temor e morte são
explicações míticas desta vida fora da fé. Em termos existenciais, se diz que
significam vida em escravidão a realidades tangíveis, visíveis que perecem. A
vida da fé, por outro lado, significa abandonar esta adesão às realidades
tangíveis e visíveis. Significa libertação do próprio passado e abertura para o
futuro de Deus. Segundo Bultmann, este é o único significado real da
escatologia. A implicação é que o viver escatológico genuíno é viver em
constante renovação através da decisão e obediência.

Bultmann nos ajuda a recordar a necessidade de entender ao homem moderno quando


lhe pregamos. E, nos lembra também da necessidade de assegurarmos de que não
somente proclamaremos o evangelho com simplicidade, senão que também o
apliquemos. Acerca disto, é interessante que estudioso coreanos como o professor Ryu
Tong-shik e o Dr Yun Sung-bum utilizam muito a ênfase hermenêutica de Bultmann
para apresentar a chamada “indigenização da teologia.”[11] Reconhecem que Bultmann
luta com problemas bem semelhantes.
Mas, por várias razões, o nosso juízo da demitologização deve ser negativo.

1. A “demitologização” tanto como a neo-ortodoxia, deve muito a uma escola


filosófica, o Existencialismo, que está em desarmonia com o NT. O enfoque do
primeiro está centralizado no homem, enquanto que o outro centraliza-se
profundamente em Deus. Ao intentar adaptar essas categorias centradas no
homem, no empenho de fazer o NT nos dizer algo a respeito da existência
humana, Bultmann não somente se mostra injusto com o caráter teocêntrico do
Cristianismo, como também perde o único centro com o qual se pode entender
adequadamente o homem em sua essência. O propósito verdadeiro do NT é
proclamar que o Deus soberano veio, e que a sua vinda em Cristo foi para
restaurar a verdadeira natureza do homem como imagem de Deus. O coração do
NT continua sendo não o homem, mas Deus.

2. A “demitologização” destrói o fundamento do Cristianismo na história. A


religião da Bíblia se converte numa religião baseada em mitos. Herman
Ridderbos nota que, segundo Bultmann, Jesus “não foi concebido pelo Espírito
Santo, nem nascido da virgem Maria. Embora tenha sofrido sob Pôncio Pilatos,
foi crucificado, mas não desceu ao inferno. Não ressuscitou ao terceiro dia
dentre os mortos; nem ascendeu aos céus. Não está assentado à direita de Deus
Pai, e não retornará para julgar aos vivos e mortos.”[12] De acordo com
Bultmann, estas palavras estão desprovidas de todo significado literal. São
mitológicas e, não indicam nenhuma realidade histórica objetiva. Assim é
também no caso da Trindade, a expiação substitutiva e a obra do Espírito Santo.

3. O Cristianismo primitivo está marcado pelo impacto da pessoa e obra de Cristo.


Nenhuma outra explicação pode justificar o nascimento da Igreja e da sua
teologia. Mas Bultmann reduz a influência de Jesus à zero. Presume que
praticamente todos os registros confiáveis acerca de Jesus caíram destruídos ou
suprimidos no breve período que transcorreu entre a sua vida terrena e a
pregação do evangelho. Um ceticismo tal é insustentável. Deve-se recordar que
Jesus o Mestre, eram maior que a comunidade-discípulo a que ensinou.

4. A “demitologização” do mesmo modo que o liberalismo clássico, conduz a um


ceticismo radical acerca do caráter sobrenatural do NT. E, por esta mesma razão,
chamam-no de “neo-liberalismo”.[13] O programa de Bultmann exige nada
menos do que um repúdio radical do sobrenaturalismo do Cristianismo clássico.
Todas as doutrinas às que Bultmann chama de mitos, o NT as chama de fatos.
Todo isto está bem de acordo com a ênfase antropocêntrica de Bultmann. Mas se
opõe radicalmente ao caráter teocêntrico do NT.

5. A premissa de Bultmann de que a relevância do evangelho será vista claramente


pelo homem moderno, ignora a depravação do coração humano. Não é a
“demitologização”, senão que o Espírito Santo, quem poderá dissipar as trevas
da incredulidade e capacitar que o pecador veja o evangelho. Apesar de todos os
esforços que se faça para aplicar o evangelho, o “homem natural não percebe as
coisas que são do Espírito de Deus, porque para ele é loucura” (1 Co 2:14).
Extraído de Harvie M. Conn, Teología Contemporánea en el Mundo (Grand Rapids,
Libros Desafío, 1992), pp. 38-42.

Tradução de Rev. Ewerton B. Tokashiki

NOTAS:

[1] Rudolf Bultmann, “New Testament and Mythology” in Kerygma and Myth (London,
The Tyndale Press, 1956).

[2] O interesse no Brasil é provocado pela EST de São Leopoldo, instituição teológica
da Igreja Luterana de Confissão Luterana, e pela Editora Sinodal que tem publicado em
português alguns dos livros de Bultmann. Nota do tradutor.

[3] O autor se refere ao livro de John Robinson, Honest to God (Philadelphia,


Westminster & John Knox Press, 1963). Nota do tradutor.

[4] O autor se refere ao capítulo IV “Crítica da Forma” – O método de Bultmann, pp.


32-37. Nota do tradutor.

[5] Ibidem, p. 3.

[6] Há uma excelente exposição crítica do conceito de mito de Bultmann no livro de


Philip E. Hughes, Scrpture and Myth (London, The Tyndale Press, 1956).

[7] William Hordern, A Layman’s Guide to Protestant Theology (New York, The
Macmillan Co., 1968), p. 201.

[8] A apresentação mais complete da relação entre Heidegger e Bultmann pode-se


encontrar em: John Macquarrie, An Existencialist Theology (London, SCM Press,
1955). Uma crítica reformada desta dependência se encontra em Robert D. Knudsen,
“Bultmann” in Philip E. Hugues, ed., Creative Minds in Contemporary Theology (Grand
Rapids, Eerdmans, 1966), pp. 131ss.

[9] William Hordern, A Layman’s Guide to Protestant Theology, p. 205.

[10] Ridderbos, pp. 23-36.

[11] Kan Ha-bae, pp. 41-42.

[12] Ridderbos, pp. 26-46.

[13] Esta designação forma parte do léxico reformado (conf. Klaas Runia, loc. cit.,
exemplos de tal uso). O perigo é de se distinguir demasiadamente os pressupostos de
Bultmann dos de Barth.

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