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Esboço de Uma Fenomenologia Da Violência, Segundo Heidegger

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Esboço de uma fenomenologia da violência segundo Heidegger

Felipe Ramos Gall


ANALÓGOS, Rio de Janeiro, Edição Especial, 2017

ESBOÇO DE UMA FENOMENOLOGIA DA VIOLÊNCIA

SEGUNDO HEIDEGGER

Felipe Ramos Gall

Mestrando em Filosofia pela PUC-Rio


10.17771/PUCRio.ANA.30445

Bolsista do CNPq

Resumo: Intenta-se aqui uma abordagem do tema da

violência em seu sentido fenomenológico, e, portanto,

ontológico, segundo a compreensão de Martin Heidegger.

Ver-se-á que a violência, mais do que um problema

social ou político, é, originariamente, um elemento

estrutural do ser do homem.

O tema da violência é pensado, de modo geral, no âmbito da filosofia

política e das ciências sociais. Nesse sentido, o questionamento direciona-se

para as manifestações da violência na sociedade, na história, ou até mesmo

pensa-se a violência como uma categoria política ou um aparelho estatal.

Tais não serão o caso aqui. O que aqui se pretende é trazer à tona a essência

da violência em seu sentido ontológico e, portanto, fenomenológico.

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Felipe Ramos Gall
ANALÓGOS, Rio de Janeiro, Edição Especial, 2017
Como o título já aponta, deve-se ter em mente que tal exercício

fenomenológico será aqui meramente esboçado, e que, por conseguinte, de

modo algum intenta-se aqui esgotar o fenômeno da violência. Esboço, no

entanto, não no sentido de um improviso, de algo temporário feito apressada

ou toscamente, mas sim no sentido etimológico da palavra grega skhédios


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(daí os termos sketch, no inglês, e Skizze, no alemão), que significa:

aproximar-se, chegar perto de, quase alcançar.

Estabelecido isso, questionar-se-á, por conseguinte, a essência da

violência. De modo geral, a pergunta pela essência de algo diz respeito a o

quê a coisa é, sua quididade, ou, dito de outro modo, sua natureza. Não será

esse o sentido de essência a ser considerado aqui. Não obstante, ainda esse

sentido tradicional resguarda em si algo de originário. Pois, em que sentido

pode a palavra natureza designar o que alguma coisa é? Certamente não no

sentido habitual de natureza como meio ambiente ou como objeto cujas leis

são estudadas pela física moderna. Natureza, natura, foi o modo como os

latinos traduziram a palavra grega phýsis, termo utilizado pelos pensadores

gregos para designar o ente em sua totalidade, e, por conta disso, recebeu a

conotação de essência, pois diz o que algo é. Tal tradução, no entender de

Heidegger, não é suficiente para expressar o conteúdo daquilo que os gregos

pensavam com essa palavra. Qual seria, então, essa força designativa que se

perde na tradução de phýsis por natura? De acordo com Heidegger,

lexicalmente, phýsis, que vem de phýo, pode mesmo significar, tal como

natura, nascer, gerar, crescer. No entanto, crescer aqui não tem nenhum

sentido quantitativo, de se tornar mais ou maior.


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O que diz então a palavra phýsis? Diz: o desabrochar, o


emergir de dentro de si mesmo, (...) aquilo que ao abrir-se se
desdobra, que se manifesta em tal desdobramento, nele se
mantendo e permanecendo, em síntese: o vigorar que
emergindo permanece (das aufgehend-verweilende Walten).
(...) No entanto, a phýsis, o que emergindo vigora (aufgehende
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Walten) (...) não deverá ser entendida como um processo


qualquer entre outros que observamos no ente. A phýsis é o
próprio Ser, em virtude do qual o ente se torna observável e
permanece1.

O tornar-se observável do ente, manifestar-se, é dito em grego

pháinesthai, de onde deriva o termo phainómenon, fenômeno. Pháinesthai,

por sua vez, é a forma média/passiva de pháino, que significa “trazer para a

luz do dia, pôr no claro. Pháino pertence à raiz pha- como, por exemplo,

phôs, a luz, a claridade, isto é, o elemento, o meio, em que alguma coisa

pode vir a se revelar e a se tornar visível em si mesma” 2. Fenômeno,

portanto, é o mostrar-se como do ente, sua manifestação. Embora o conceito

de fenômeno (e de manifestação) em Heidegger seja mais complexo que

isso, esse sentido supramencionado bastará para o que aqui se intenta.

Ora, propõe-se aqui aproximar-se de uma fenomenologia da

violência. Isso significa elucidar o modo de ser da violência, descrever sua

essência, mas não, como dito, no sentido de um quid. “[A fenomenologia]

não caracteriza a quididade real dos objetos da investigação filosófica mas o

1
HEIDEGGER, M. Introdução à Metafísica, pp. 22-23.
2
HEIDEGGER. M. Ser e Tempo, p.58.
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seu modo, como eles o são”3. Tal questionar exige um certo percurso, um

caminho que, como caminho, não existe previamente, pois só passa a existir

enquanto e quando é caminhado. Assim, a questão da violência mesma

surgirá apenas quando for encontrada neste trilhar. Retomando-o, tem-se,

assim, que a pergunta pela essência levou à ideia de fenômeno. Fenômeno


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diz respeito ao modo como o ente, tò ón, vem à luz. Desse modo, alude ele

tanto ao termo fenomenologia quanto ontologia, que, no fundo, querem

dizer o mesmo: “Em seu conteúdo, a fenomenologia é a ciência do ser dos

entes – é ontologia”4. Em ambos os casos, a relação com o lógos é evidente.

Que significa lógos, portanto?

O primeiro sentido que vem à mente é aquele legado pela tradição, a

saber: lógos significa palavra, verbo, discurso. Daí deriva a interpretação de

lógos como “lógica”, o pensar propriamente dito, possibilitando, desse

modo, a tradução de lógos por razão, pensamento.

No entanto – diz Heidegger – lógos originariamente não


significa discurso, nem dizer. Esta palavra não tem no seu
significado qualquer referência imediata à linguagem. Lego,
legein, legere em latim é a mesma palavra que a alemã “lesen”;
“Ähren lesen” (colher espigas), “Holz lesen” (juntar ou apanhar
lenha), “die Weinlese” (a vindima), “die Auslese” (a seleção); “ein
Buch lesen” (ler um livro) é apenas um derivado de “lesen” no
seu sentido original. “Lesen” significa: pôr uma coisa ao lado
de outra, juntá-las num conjunto, sem síntese: coligir,

3
Idem, ibidem, p. 57.
4
Idem, ibidem, p. 68.
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compilar, colecionar (sammeln); ao fazê-lo, vai-se, ao mesmo
tempo, distinguindo uma coisa da outra5.

Por conseguinte, Heidegger concluirá que lógos significa,

originariamente, “(re)união (re)unificante, i.é, o que estando (re)unido

(re)une, o (re)unificante originário. Lógos não significa aqui nem sentido nem
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palavra, (...) significa: a (re)união originariamente (re)unificante que vigora

constantemente em si mesma”6. Em uma palavra: harmonia. Harmonia, na

mitologia grega, era a filha de Ares, deus da guerra em seu sentido violento

e brutal, com Afrodite, deusa do amor e da beleza. Há, intrínsecamente, algo

de violento e belo na harmonia, de acordo com os gregos. A concórdia por

ela gerada é fruto de um conflito, uma luta ou guerra. Assim é o lógos: uma

“união [que] nunca é um simples ajuntamento e amontoamento. Ela mantém

o que tende a dissociar-se e contrapor-se retido numa co-pertença. Não o

deixa desagregar-se em mera dispersão”7. Por não ser um reles ajuntamento,

é belo; por manter retido aquilo que se contrapõe, é violento. Com efeito,

Heidegger assevera:

Enquanto retenção, o lógos tem o caráter do que vigora de


modo penetrante (Durchwalten), da phýsis. A (re)união não
dissolve o que é dominado pelo vigor penetrante
(Durchwaltete) num vazio de in-contrastividade
(Gegensatzlosigkeit), retendo-o antes, a partir da união do que
tende a opor-se, na máxima agudeza da sua tensão8.

5
HEIDEGGER, M. Introdução à Metafísica, p. 137.
6
Idem, ibidem, p. 141.
7
HEIDEGGER, M. Introdução à Metafísica, p. 148.
8
Idem, ibidem.
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Ora, o que Heidegger está afirmando, na verdade, é que, enquanto

unidade retentora em si mesma, o lógos é o próprio Ser. Daí ele afirmar que

lógos possui o caráter da phýsis, onde phýsis também já havia sido

compreendida como o Ser. Por conseguinte, phýsis e lógos são o mesmo.

Todavia, o que entende Heidegger por “mesmo”? Será no sentido ordinário de


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igualdade? Certamente não. “Mesmo”, para Heidegger, significa: fazer parte

da mesma experiência originária, o pertencimento comum que forma uma

unidade entre eles. Dito de outro modo: phýsis e lógos são diferentes entre

si, mas são o mesmo em relação a uma unidade originária, onde phýsis só é

phýsis quando em comum pertencimento ao lógos e vice versa.

Ora, mas a harmonia reunida do ser que vigora não é justamente o

ente que se mostra, ou seja, o fenômeno? Ademais, dado que “o conceito

oposto de fenômeno é o conceito de encobrimento”9 e, dado que Heidegger

entende a verdade, ontologicamente, como alétheia, des-encobrimento (Un-

verborgenheit), pode-se concluir, de modo talvez apressado mas não

arbitrariamente, que phýsis, lógos, pháinesthai e alétheia são o mesmo.

A verdade (alétheia), no entanto, nunca é, para Heidegger, um estado

de fato. O que está aí de fato, presente, já está desde sempre na verdade. A

verdade mesma é o vir à luz, o manifestar-se do ser, o perene vir à presença

dos entes. Nesse sentido, a verdade não só não é um estado de fato, mas,

antes, o fundamento de todo e qualquer estado de fato. O irromper do ser é

um acontecimento reservado a um ente privilegiado, a um ente que, ôntico, é

ontológico, isto é, sendo, é também ser. Heidegger chama esse ente de

9
HEIDEGGER. M. Ser e Tempo, p.66.
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Dasein, “presença” ou “ser-aí”, que é o ente que nós mesmos já sempre

somos originariamente. O Dasein é o ente capaz de compreender o ente

enquanto ente, e esse enquanto é aí decisivo: enquanto significa ligação,

abertura. O acesso ao ente enquanto tal diz, portanto, que o Dasein é ligado

e aberto ao ser. Abertura é outro modo para se dizer verdade. Abertura, pois,
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é interesse, em duplo sentido: é interesse porque as coisas já sempre

importam, há já sempre uma compreensão de ser e uma lida com as coisas, e

é inter-esse, o entre-ser no qual já se está sempre dentro. No entanto, esse

sentido originário do homem, enquanto tal ente dotado de Dasein, perde-se

ao defini-lo, tal como o faz a tradição, como dzôon lógon ékhon, isto é,

animal rationale, animal racional. Heidegger assevera que

Nesta definição do homem consta o lógos, embora de uma


forma absolutamente irreconhecível e num contexto muito
estranho. (...) [Tal definição] é, no fundo, zoológica. (...)
todavia, no âmbito dessa definição edificou-se a doutrina
ocidental do homem, toda a psicologia, ética, gnoseologia e
antropologia. (...) Mas sendo uma definição toda portadora
(alles tragende) do homem já uma decadência, para nem
sequer se falar da sua posterior interpretação, é por isso
mesmo que, enquanto pensarmos e interrogarmos dentro da
órbita de visão por ela pré-traçada (...) [não teremos] acesso
ao espaço em que acontece o aparecimento inicial e a
consolidação da essência do homem10.

Com efeito, buscando uma aproximação mais originária do Ser do

homem, Heidegger recorrerá não ao pensamento filosófico, mas sim a uma

10
HEIDEGGER, M. Introdução à Metafísica, pp. 156-157.
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experiência grega fundamental poético-pensante (dichterisch-denkend),

qual seja: a tragédia Antígona, de Sófocles. O primeiro coro (vv. 332-375)

começa assim: “Múltiplo é o estranho, nada, porém,/para além do homem,

de mais estranho há”11. O termo ali traduzido por “estranho” é, na tradução

alemã feita por Heidegger, Unheimlich. “Estranho”, entretanto, é apenas um


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dos sentidos que esse termo possui em alemão. Das Unheimliche pode

significar, além de estranho e incrível, também inquietante, sinistro, lúgubre,

medonho. Contudo, qualquer que seja o termo escolhido para a tradução do

termo, o homem seria o superlativo disso.

O homem é, numa palavra apenas: tò deinótaton, o que de


mais estranho há. Este dizer concebe o homem pelos extremos
limites e mais profundos abismos do seu Ser. (...) Somente a
um idear poético-pensante se revela um tal Ser. (...) A palavra
grega deinón e a nossa tradução necessitam aqui de uma
explicação prévia. (...) Uma vez, deinón significa o terrível, mas
não os pequenos terrores e, muito menos, tem aquele
significado decadente, parvo e inútil com que hoje se usa entre
nós a palavra, quando se diz ‘terrivelmente engraçado’
(furchtbar niedlich). Deinón é o terrível no sentido do vigorar
imperar modo imponente (-s überwältigende Walten), o que
provoca, de modo igual, o medo pânico (panischer Schrecken),
o verdadeiro pavor (Angst), como o temor (Scheu) discreto,
concentrado e vibrando em si mesmo. A imponência (-s
Gewaltige), o vigorar de modo imponente (-s Überwältigende)
é o caráter essencial do próprio vigorar (-s Walten). Onde este
irrompe, pode manter em si o seu poder imperioso. Todavia,
não se torna por isso mais inofensivo, tornando-se antes ainda
mais terrível e distante12.

11
Idem, ibidem, p. 161.
12
Idem, ibidem, p. 165.
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Deve-se aqui atentar para o fato de Heidegger enfatizar os termos

Walten (vigorar, regra, norma, prevalecer), Gewaltige (imponente, tremendo)

e Überwältigende (esmagador, opressivo, colossal). Todos esses termos

estão relacionados a Gewalt (violência, poder).


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Outra vez, porém, deinón significa a imponência no sentido


daquilo que necessita e usa o poder da força e violência
(Gewalt), que não só dispõe do poder da violência como
também o aplica, agindo com violência (gewalt-tätig) sendo
violento, na medida em que o uso da violência não só é feição
fundamental do seu agir como também da sua existência13.

Por conseguinte, a phýsis, o ente no seu todo no sentido daquilo que

vigora, é a imponência, o deinón no primeiro sentido. O homem, por sua vez,

também é deinón na medida em que permanece exposto a esta imponência,

já que pertence essencialmente ao Ser. No entanto, por outro lado, o homem

também é deinón em outro sentido e ao mesmo tempo, porque ele é, tal

como supracitado, aquele que age com violência. Ele, estando em

consonância com o lógos (homologia), reune o que vigora e permite que este

se abra, entrando na evidencialidade. O homem é aquele que age com

violência, não para além e ao lado de outros, mas apenas no sentido em que

usa, com base no seu agir com violência, o poder da violência contra a

imponência, isto é, o vigorar o Ser. Destarte, “pelo fato de num sentido

originariamente uno ser duplamente deinón, o homem é tò deinótaton, o

13
Idem, ibidem, p. 166.
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mais violento: agindo com violência no meio da imponência”14. Heidegger,

contudo, chama a atenção para o fato de que

Atribuímos aqui à palavra ‘violento’ um sentido essencial que


extravasa de modo fundamental o significado habitual da
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palavra, segundo o qual quase sempre se quer dizer


brutalidade (Rohheit) e arbitrariedade (Willkür). Neste caso, a
violência é vista a partir do contexto em que o critério da
existência é constituído com base no acordo do compromisso
e da mútua assistência e em que, por conseguinte, qualquer
forma de violência é necessariamente avaliada, de modo
depreciativo, como interferência perturbadora e infractora15.

No fundo, o que Heidegger quer dizer é que essa violência, esse agir

violentamente e esse vigor imponente devem ser entendidos

ontológicamente, e não ônticamente. A violência ôntica, que é o sentido

habitual do termo, dá-se justamente quando ocorre a hýbris do homem

proclamar-se “senhor da Terra”, compreendendo-se como sujeito agente

cuja vontade própria é a causa da sua ação. Para Heidegger, o último estágio

da metafísica ocidental, a era da técnica moderna, nada mais é do que a

expressão máxima desse desequilíbrio. A interpretação do homem como

animal racional, onde o que importa é apenas elevar essa racionalidade, fez

com que a vontade do homem se tornasse uma vontade de assenhorar-se do

Ser. A vontade de poder nietzcheana, nesse sentido, vira uma vontade de

vontade, isto é, querer o querer. É esse homem do humanismo, é dizer, o

homem entendido como animal racional, que Nietzsche diz que deve ser

superado. Tal homem é designado por Zaratustra como o último homem (der
14
Idem, ibidem, p. 166.
15
Idem, ibidem.
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letzte Mensch), o mais desprezível dos homens. Ele deve ser superado para a

vinda do super-homen (Übermensch).

Mas de onde vem o clamor pela necessidade do super-homem?


Por que o homem não é mais suficiente? Porque Nietzsche
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reconhece o instante histórico em que o homem se prepara


para entrar na total dominação da Terra. Nietzsche é o
primeiro pensador que, considerando a história do mundo tal
como esta pela primeira vez nos chega, coloca a pergunta
decisiva e a pensa através de toda sua amplitude metafísica. A
pergunta é: o homem enquanto homem, em sua constituição
de essência até hoje vigente, está preparado para assumir a
dominação da Terra? Se não, o que então precisa acontecer
com o homem atual, de modo que ele se “submeta” à Terra e
assim cumpra a palavra de um velho testamento? Não será
preciso conduzir o homem atual para além de si mesmo, para
poder corresponder a esta missão?16

A missão, o destino do homem atual, do homem da técnica, é

“submeter-se à Terra” ao invés de querer operar o contrário, ou seja,

submeter a Terra à sua vontade, ao seu querer. Submeter-se aqui significa:

obedecer, saber ouvir. Só quando o homem encontra-se no vigor imponente,

violento do Ser, é que ele encontra-se a si próprio. Heidegger assevera que

A enorme distância em que o homem se encontra deslocado da


sua própria essência é-nos denunciada pela opinião que ele
nutre de si mesmo como aquele que inventou e pôde inventar
a linguagem e a compreensão, a edificação e a poesia. Como é
que o homem poderia sequer ter inventado o que vigorando o
impregna, o envolve, tratando-se afinal aquilo pelo qual ele
próprio apenas pode ser homem? (...) Antes, pelo contrário, a
linguagem, a compreensão, a disposição, a paixão e a

16
HEIDEGGER, M. Quem é o Zaratustra de Nietzsche? In: ______. Ensaios e conferências, p. 91.
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edificação não pertencem em menor grau ao vigor imponente
do que o mar, a terra e o animal. A diferença consiste
unicamente no fato de este vigorar imponentemente em torno
(umwalten) do homem, suportando-o, impelindo-o e
compelindo-o, enquanto que aquele vigora através dele
(durchwalten), impregnando-o como aquilo que o homem,
como o ente que é, tem de assumir por conta própria17.
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Este encontrar-se a si próprio, assumir o seu próprio ser, nada mais é

do que assumir aquela violência do que age violenta e imponentemente. A

vida deve vigorar não só ao derredor, como também através do homem. O

homem deve ser o pastor e o porta-voz do Ser, o arauto da vida. Quando o

homem age violentamente nesse sentido, ele não exerce nenhuma

brutalidade nem arbitrariedade de sua vontade, mas ele subjuga, explora,

domina e captura em si mesmo a abertura do ente enquanto tal ou qual

coisa. Ele abre-se ao Ser enquanto desvelamento sendo forte, e por isso o

verdadeiro só se dá para os fortes.

Só quando tivermos entendido que o uso da violência na


linguagem, na compreensão, na formação, cria também (mit-
schaffen) – que significa sempre pro-duz (her-vor-bringen) – o
ato violento de abrir caminhos para o ente circunstante, só
então compreenderemos a estranheza de tudo aquilo que age
com violência18.

É pelo fato de o homem estar e agir no lógos, na reunião, é que ele

pode ser aquele que reune o vigor imperante da phýsis. Ele assim assume e

17
HEIDEGGER, M. Introdução à Metafísica, pp. 172-173.
18
Idem, ibidem, p. 174.
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exerce a gerência desse vigor imponente. É a partir desse ímpeto do vigor

imponente que a palavra, o nomear “repõe o ente que se abre no seu Ser e

mantém-no nessa abertura, delimitação e consistência”19. Também a

linguagem, enquanto lógos, é co-originariamente violenta. É a essa

linguagem que o homem deve apurar os ouvidos, para, ouvindo, obedecer.


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Esse é o sentido da terra.

Desse modo, quando Zaratustra questiona: “A hora chega – a hora em

que sinto frio e estremeço, que pergunta, pergunta e pergunta: ‘Quem tem

coração bastante para isso? – quem deverá ser o senhor da terra? Quem dirá:

assim deveis correr, grandes e pequenos rios!?’”20, sempre haverão duas

respostas possíveis. O homem moderno responderá: “Eu!”. Mas a real

resposta de Zaratrusta, o porta-voz da vida, é: “Senhor da Terra há de ser

aquele que obedece ao sentido da Terra”.

Referências bibliográficas

HEIDEGGER, M. Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan

Fogel e Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2001.

______. Introdução à Metafísica. Trad. Mário Matos e Bernhard Sylla. Lisboa:

Instituto Piaget, 1997.

19
Idem, ibidem, p. 189.
20
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra, p. 304.
38
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______. Ser e Tempo. Trad. Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes,

2006.

NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:

Companhia das Letras, 2011.


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