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2022 JoaoPedroEliseu TCC

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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA - UNB

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO - FAC


DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO ORGANIZACIONAL

João Pedro Eliseu

O avatar e o ciborgue: perspectivas cartográficas sobre as corporeidades


contemporâneas no contexto da cibercultura.

BRASÍLIA, DF
2022
JOÃO PEDRO ELISEU

O avatar e o ciborgue: perspectivas cartográficas sobre as corporeidades


contemporâneas no contexto da cibercultura.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Faculdade de Comunicação da Universidade de
Brasília como parte dos requisitos para a obtenção
do título de Bacharel em Comunicação
Organizacional. Orientadora: Profa. Dra. Fabíola
Calazans

BRASÍLIA, DF
2022

1
RESUMO

Considerando a interação da tecnologia com os modos existenciais humanos, este


presente estudo propõe uma investigação dos deslocamentos acerca da
corporeidade e da subjetividade na cibercultura. Utilizando como arcabouço
teórico-metodológico principal as considerações de Félix Guattari e Francisco
Ortega, exploramos o avatar e o ciborgue como figuras expressivas desses novos
sentidos e configurações do corpo humano. Após analisar uma ampla e diversa
literatura sobre o tema, foi possível visualizar uma multiplicidade de implicações
práticas relacionadas ao entrecruzamento do território biológico com o tecnológico.

Palavras-chave: corporeidade, cibercultura, contemporaneidade, subjetividade,


estética, ética.

2
ABSTRACT

Considering the interaction between technology and human existential modes, this
present study proposes an investigation of movements about corporeality and
subjectivity in cyberculture. Using the considerations of Félix Guattari and Francisco
Ortega as the main theoretical-methodological framework, we explored the avatar
and the cyborg as expressive figures of these new meanings and configurations of
the human body. After analyzing a wide and diverse literature about the theme, it was
possible to visualize a multiplicity of practical implications related to the intertwining
of biological and technological territories.

Keywords: corporeality, cyberculture, contemporaneity, subjectivity, aesthetics,


ethics.

3
AGRADECIMENTOS

Agradecimentos especiais ao meu pai, que sempre estimulou minha


curiosidade. No início, eram livros didáticos e gibis. Depois foram alguns livros sobre
dinossauros e curiosidades científicas aleatórias (que no final das contas acabei
descobrindo que nem eram tão científicas assim). Por fim, talvez num instante que
só existiu por uma combinação de ócio, curiosidade, inocência e um pouco de
loucura, acabei eu mesmo indo explorar nosso cômodo quase abandonado de
madeira do quarto do meio para pegar emprestado algum livro “mais sério”. De livro
em livro, essa paixão misteriosa pela filosofia crescia em mim. Por ter me apoiado
nessa longa jornada e por toda a dedicação e amor nesses muitos anos até aqui,
minha mais profunda gratidão.
Agradeço também a todos os professores que fizeram parte da minha
história, mas, em especial:
À professora Marcela Salgado, que no 6º e 7º ano despertou um interesse
sobre as ciências da vida que nunca cessou. A vontade de entender sobre a vida me
estimulou a estudar mais ativamente e a buscar informações complementares fora
dos livros didáticos.
À professora Marquelene, que no 9º ano despertou meu interesse pela
literatura nacional e pela língua portuguesa e que fazia do aprendizado um momento
mágico de divertimento e entrosamento social.
Ao professor e amigo Erik Surjan, que do 1º ao último ano do ensino médio
me ensinou sobre a história do mundo, ampliou minhas noções de território e teve a
coragem de adentrar nas nuances politizadas do ensino histórico enquanto este é
dominado pelo discurso da neutralidade.
Ao professor Yuri Gagarin, que deu sequência ao interesse pelas ciências da
vida e, além disso, me inspirou com seu amor e dedicação pela docência e me
influenciou a querer seguir por este caminho.
À professora e orientadora Fabíola Calazans, que é uma das minhas
principais referências de futuro e que desde o primeiro semestre me inspira e me
provoca a explorar os caminhos vacilantes da subjetividade.
Aos professores Tiago Quiroga e Luiza Spínola, por toparem se envolver na
banca de defesa do trabalho e por participarem do encerramento desse ciclo tão
importante.
4
Ao Professor Felipe Polydoro, que topou ser o suplente da banca de defesa e
que foi muito importante na etapa de decisão do tema e de desenho do escopo do
trabalho.
À minha namorada Sara Viana, com quem sempre aprendo muito e que
esteve comigo dos momentos mais sombrios aos mais alegres. Seu apoio neste
trabalho e em toda a jornada da graduação foi vital.
Aos meus amigos Isabela Braga e Lucas Vaz, que estiveram comigo em
várias das etapas que me trouxeram até aqui.

5
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 7
1.1. Panorama geral da discussão 7
1.2. Objetivos gerais e específicos do estudo 12
1.3. Muito além de uma análise objetual: uma discussão ética acerca da
corporeidade contemporânea e seus desdobramentos práticos. 13
2. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO 15
2.1. Os agenciamentos coletivos de enunciação, os agenciamentos maquínicos e
a produção subjetiva. 15
2.2. Cultura somática e ascese do corpo 19
2.3. Uma nova modalidade de sociabilidade e o corpo mercadificado via
avatarização. 30
3. DESENVOLVIMENTO 34
3.1. Uma nova modalidade experiencial: cartografia de uma corporeidade híbrida
na atualidade. 34
3.2. O avatar e o corpo avatarizado: deslocamentos de uma subjetividade
externalizada e vislumbres de uma corporeidade no contexto da cultura de
personalização. 36
3.3. O avatar sob a ótica das ecologias sociais e ambientais: comunicabilidade
interativa e cultura de customização 47
3.4. O ciborgue e o corpo aprimorado: O corpo como hiperconstruto e a
discussão acerca da construtibilidade no contexto da cultura tecnológica. 50
4. CONCLUSÕES 54
5. REFERÊNCIAS: BIBLIOGRAFIA, VIDEOGRAFIA, FILMOGRAFIA E OUTRAS FONTES
DE CONSULTA. 61

6
1. INTRODUÇÃO
1.1. Panorama geral da discussão

Muito se tem discutido, recentemente, a respeito dos impactos produzidos


pelas diversas tecnologias sobre o corpo e a mente. Existe, na atualidade, uma
discursividade técnico-científica posicionada fortemente favorável ao
desenvolvimento e a incorporação desses dispositivos tecnológicos e dos modelos
existenciais implicados por eles na sociedade. Estes dispositivos, que são
funcionalmente plurais, parecem estar, muitas vezes, inseridos em um deslocamento
compartilhado singular, se constituindo então enquanto fragmentos de um processo
mais amplo que se aponta para a própria constituição geral das corporeidades e
subjetividades atuais.
Curiosamente, essas práticas de si contemporâneas estão inscritas não
somente na esfera dos agenciamentos técnico-científicos de última geração. Essas
apresentam também, simultaneamente, um certo atravessamento de práticas e
discursos muito anteriores ao surgimento das tecnologias como são conhecidas e
práticas de si que as manifestam atualmente. Isso quer dizer que, apesar do
racionalismo indiscreto explicitado por essa modalidade discursiva tecnicista
contemporânea, existem componentes subjetivantes extrínsecos e indiscriminados
no domínio das tecnologias. Componentes esses que integram universos religiosos,
culturais, estéticos etc, interagindo e se entrecruzando na constituição das
subjetividades e corporeidades contemporâneas.
Os ciberespaços, espacialidades possibilitadas por esses agenciamentos
tecnológicos, já são notavelmente espaço-temporalidades principais na cultura
global. É possível listar aqui, a título de contextualização, três principais fenômenos
que apontam para uma intensificação do assentamento e da circulação nestes
espaços virtuais, que se disseminaram exponencialmente nos últimos anos. O
primeiro é o fenômeno dos jogos. Segundo pesquisa realizada pela TECHnet
Immersive revelam, o valor estimado do mercado de jogos no mundo em 2019 era
de 152 bilhões de dólares. Já em 2021, o valor foi estimado em pouco mais de 167
bilhões de dólares, um aumento considerado significativo e atípico em relação a boa
parte de outros setores econômicos afins, como a indústria audiovisual e musical. A
mesma pesquisa afirma também que há cerca de 2.5 bilhões de jogadores casuais e
profissionais no mundo inteiro, sendo a ásia a região com maior participação nesse

7
montante. Isso quer dizer que aproximadamente 32% da população global em 20201
consumia algum tipo de jogo, considerando tanto as plataformas de mídia
tradicionais fixas (consoles e computadores) quanto as móveis (celulares e tablets).
O segundo fenômeno concerne à esfera do trabalho. Segundo material
informativo publicado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) também em
2020, uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
revelou que 20,8% dos profissionais no setor empresarial tinham como opção o
trabalho remoto2. A mesma pesquisa afirma que, dentre as áreas profissionais, a
ciência e a área das produções intelectuais são as áreas que oferecem mais
possibilidade de trabalho remoto. É nítido que as configurações específicas de cada
ambiente de trabalho são, de certa forma, heterogêneas. Mas é certo dizer que
houve uma migração massiva dos territórios físicos e presenciais, para os ambientes
cibernéticos e virtuais.
O último fenômeno se manifestou no território das mídias sociais, que não
são precisamente um fenômeno recente. Mas é certo que, sob duas perspectivas
distintas, seu potencial fenomenológico se destacou nos últimos anos. A primeira e
mais específica é a da ampliação dos ciberespaços sociais enquanto metaversos
visuais, e juntamente a isso o uso de avatares realísticos e interativos como
representações corporais no ciberespaços, no lugar das fotos de perfil estáticas
tradicionais. A segunda perspectiva se estica para todos os outros fenômenos
destacados: a da pandemia de COVID-19 e a do isolamento social vivenciados nos
últimos anos. Tanto os universos dos games, quanto do trabalho remoto e das
mídias sociais viveram uma intensificação da transferência das atividades subjetivas
e do capital simbólico para os territórios virtualizados durante a transcorrência da
pandemia.
É nesse contexto de transição territorial das práticas subjetivas que se
suporta, de certo modo, os questionamentos fundamentais deste estudo. Como são
configuradas as práticas sociais e individuais nessas espaço-temporalidades? Que
tipos de corporeidade são produzidas através dos agenciamentos subjetivantes
ciberculturais? Quais implicações surgem como efeito desses deslocamentos
subjetivos? De que forma há conexão entre as subjetivações individuais e coletivas

1
A população mundial somava 7, 753 bilhões de pessoas em 2020, segundo dados do Banco Mundial
divulgados pela Google.
2
22,7% dos postos de trabalho no Brasil (2020)
8
contemporâneas, especialmente as de ordem ascética e social, e a cultura neoliberal
das sociedades de desempenho atuais?
Se por um lado os agenciamentos tecnológicos mais recentes parecem
engendrar um tipo específico de corporeidade e subjetividade: caracterizada, por
exemplo, por tipos singulares de ascese e sociabilidade, nos quais caberá dar mais
profundidade adiante. Por outro lado, os indivíduos, os grupos sociais, as instituições
e mesmo as ciências humanas de maneira geral parecem desampadaras para lidar
com o aspecto híbrido destas modelações subjetivantes, as quais aparentam
expressar um entusiasmo com o progresso tecnológico e com a virtualidade do
futuro e, simultaneamente, uma afeição arcaizante e conservadora à tradições
culturais do passado (GUATTARI, 2012).
Primeiramente, é preciso dizer que mesmo o entusiasmo evolucionista e
transumanista da discursividade tecnológica não é uma novidade. Nick Bostrom, em
seu estudo A History of a Transhumanist Thought (2011), apresenta a existência de
impulsos de transcendência corporal muito relacionados com o desejo da
imortalidade e da longevidade da vida (e da juventude) na antiguidade. O primeiro
exemplo e o mais antigo é dos textos míticos sumérios da Epopéia de Gilgamesh
(1700 a.C), um texto poético que narra a busca de um rei à imortalidade. O segundo
é o caso da tradição taoísta chinesa, em que os ascetas religiosos buscavam
transcender os limites orgânicos físicos e mentais através da harmonia com as
forças da natureza (ORTEGA, 2008). O terceiro caso é o da tradição greco-romana,
em que cabe um olhar mais aprofundado, justamente por se aproximar mais das
práticas ascéticas cristãs que foram historicamente mais disseminadas no ocidente
que as outras.
Bostrom destaca uma ambivalência singular no caso dos mitos gregos:
juntamente com a perseguição da divindade, existe um preço a ser pago
individualmente. Esse perfil se revela por exemplo nos mitos de Prometeu, que foi
punido pelos deuses por roubar a chama divina, e no mito de Dédalo e Ícaro, em
que as asas de cera produzidas por seu pai derretem ao alçar o vôo muito próximo
ao sol, resultando na queda e morte de Ícaro. Destaco, no contexto do último mito,
que são justamente as asas, encaradas enquanto a representação de
empreendimento tecnológico, que se desmantelam, causando a queda, expressando
metaforicamente essa outra perspectiva de quando os os agenciamentos técnicos

9
se direcionam no sentido de superar o que é o humano e alcançar o que é divino, da
ordem da eternidade.
Se de certo modo, os ascetas ocidentais eram “avatares” à sua própria
maneira, paralelamente, o termo originário do avatar origina-se primeiramente no
contexto das tradições filosófico-religiosas orientais hinduístas e budistas. É
precisamente com essas práticas culturais ascéticas e dietéticas religiosas que o
conceito se desenvolve, assumindo o significado de encarnação de deidades
míticas. É interessante observar que a crença em reencarnação característica do
hinduísmo sugere um relacionamento singular entre o asceta e sua função social.
Uma mesma divindade pode reencarnar diversas vezes, mas com corporeidades
singulares. Aspectos físicos e subjetivos diferentes, mas carregando sempre uma
função divina de propor um modelo existencial.
Entretanto, há um fenômeno que se desenrolou entre as décadas de 70 e 80
e atingiu seu ápice no final da década de 90 com o jogo Meridian 59
(CASTRONOVA, 2003), oferecendo uma concepção própria do avatar: a
popularização dos jogos arcade nos grandes pólos tecnológicos da época. Na
cultura dos games, o avatar é um personagem construído para corporificar uma
identidade em uma espaço-temporalidade virtual. É a figura-produto que dá forma a
um eu virtual, uma projeção corpórea. É esse avatar que percorre as
espaço-temporalidades dos universos virtuais e dispõe de interações sociais
próprias com outros avatares, sejam humanos, computadores ou inteligências
artificiais.
Considerando as observações de Castronova (2003), é possível vislumbrar
um engajamento intensivo com a produção de mundos de realidade virtual
compartilhada, em meados da última virada de século. Tendo o primeiro mundo
desse tipo sendo lançado em 1996, em 2001, já era possível contabilizar mais de 50
espaços virtuais similares. Todos eles com suas próprias instituições políticas,
sociedades, economias complexas, suas próprias realidades simuladas. Esses
mundos alternativos fantásticos se disseminaram tão intensamente que à época,
“para muitos, a vida na realidade virtual era preferível à vida na terra”
(CASTRONOVA, 2003, p. 3).
Com isso é possível visualizar o panorama geral em que se insere os
direcionamentos definidos para o presente estudo. Foi apresentado, primeiramente,
a questão das discursividades tecnológicas: existe uma mentalidade hegemônica
10
racionalista, uma subjetividade capitalística produzida parcialmente pelo
estabelecimento do Capitalismo Mundial Integrado, ou CMI, (GUATTARI, 2012) e
aficionada pelo progresso tecnológico. Em seguida, foi destacado que os
agenciamentos maquínicos tecnológicos, apesar de hegemônicos, não impedem a
concorrência de outros agenciamentos, sejam maquínicos, sejam coletivos de
enunciação. Foram apresentadas, por fim, algumas pistas que apontam para uma
territorialização massiva dos ciberambientes e as questões do impulso
transcendental e do avatar e do ciborgue em desenvolvimento não linear pela
história.
Percorrido o mapa de fundo no qual se situa os diferentes componentes do
estudo, cabe apresentar a seguir o intuito final que justifica a realização dele.
Conforme as biotecnologias e as tecnologias comunicacionais se ampliam enquanto
agenciamentos de subjetivação principais no contexto do CMI, faz-se cada vez mais
urgente ponderar criticamente sobre os modos existenciais implicados por esses
tipos de subjetivação atuais. O avatar e o ciborgue, portanto, atuam nesse sentido
como pontos de reflexividade que permitirão estimar os padrões de corporeidade
implicados, em parte, por efeito destes agenciamentos de subjetivação atuais.
O que é mais provocativo acerca da figura do ciborgue e do avatar é que
estes parecem refletir um fluxo de territorialização no corpo. Enquanto o avatar se
configura de certo modo como uma projeção positiva virtual, como potência virtual,
muitas vezes configurada como uma espécie de devir corporal, o ciborgue aparenta
mais ser uma espécie de negação da corporeidade orgânica pela modificação
biotecnológica, uma desfiguração do orgânico enquanto condição finita em função
da ampliação das potências positivas de vida. Assim, talvez a consolidação do
ciborgue como uma figura emblemática da cibercultura futurística revele algo para
além do que revelam as narrativas prometeicas anteriores. Mais que desafiar a
mortalidade e acessar a divindade através da técnica: a negação da negatividade, a
expressão do deslocamento de um paradigma ontológico para outro?
Quando voltamos a nos inclinar, porém, sobre a cibercultura enquanto o
conjunto não só dos territórios existenciais, mas também os seus universos
incorporais, é importante visualizá-la enquanto uma multiplicidade de agenciamentos
heterogêneos. Nesse caso é importante tratar a cibercultura buscando sempre
considerar essa topografia complexa e singular de agenciamentos e territórios
próprios, com seus próprios universos de valor (GUATTARI, 2012).
11
1.2. Objetivos gerais e específicos do estudo

Este trabalho quer se debruçar justamente sobre as ambiguidades e os


paradigmas éticos e estéticos constituídos nesse entrecruzamento entre a
corporeidade e subjetividade contemporânea e a tecnologia, em especial, as
biotecnologias e as tecnologias comunicacionais e informáticas. As figuras do avatar
e do ciborgue, nesse contexto, se revelam objetos potentes para a exploração dos
novos modelos e padrões de corporeidade e subjetividade atuais. É através do olhar
sobre essas figuras que será possível conduzir a reflexão pretendida sobre as
atividades de ascese e sociabilidade em algumas espaço-temporalidades e culturas
contemporâneas, a exemplo dos diversos ciberespaços existentes e da cibercultura
global.
Assim, deve-se dizer que o principal objetivo do trabalho é este de lançar uma
provocação crítica sobre os tipos de corporeidade produzidos na atualidade e às
subjetivações vinculadas a ela, analisando práticas, figurações e deslocamentos em
uma ampla e descontínua literatura, a qual não hesita em interseccionar o debate
central a temáticas religiosas, culturais e estéticas. Trata-se de investigar como
esses arranjos e movimentações subjetivantes características de uma
contemporaneidade deslumbrada com a tecnologia implicam em modelos
existenciais singulares.
Será estudado, por exemplo, utilizando alegoricamente em referência à
cartografia o vocabulário geográfico: quais modalidades topográficas são articuladas
sobre os territórios existenciais corporais e psíquicos. Olhamos, adiante, para quais
acidentes geográficos estão salientados no mapa da corporeidade e, olhamos ainda,
nomeadamente, para a mobilidade tectônica dos múltiplos territórios existenciais que
se chocam, se atravessam e se superpõe, produzindo o relevo, a forma singular das
coisas que instigam a conhecer seu conteúdo mais profundamente.
Queremos descobrir quais tipos de experiência corporal são privilegiadas no
contexto da sociedade atual. Quais práticas são principais na consolidação da
corporeidade contemporânea e como elas são formadas. Considerando uma
sociedade similarmente fascinada e aterrorizada pelo corpo biológico e pela potência
tecnológica. Quais contradições e saliências territoriais são gestadas justamente no
caldeirão de mundos que ao primeiro olhar parecem tão distintos?
12
Nesse contexto, queremos destrinchar mais detalhadamente figuras centrais
à cibercultura ainda biologizante que permeia a experiência contemporânea e age
radicalmente na constituição dos modos de ser e estar no mundo: o avatar e o
ciborgue. Eis que, com suporte no potencial fenomênico destas emergências
emblemáticas da cibercultura, sintetizadas em duas figuras, partirmos a desvendar
possíveis engendramentos discriminados por elas acerca da corporeidade
contemporânea.
Fica definida, então, como finalidade maior, a realização de uma cartografia
aberta de diversas movimentações conceituais e práticas envolvendo o corpo e a
subjetividade contemporânea. A escala que daremos ao mapa é também flexível e
fluida, oscilando entre análises mais amplas e interpretações mais detalhadas, na
tentativa não de resistir, mas de se apropriar das ambiguidades e da complexidade
geral características da temática contemporânea. À parte disso, tencionamos manter
atenção sempre às interações, aos atravessamentos, às comunicações, aos fluxos,
sejam convergentes ou divergentes. Melhor dizendo, independente da escala
utilizada, o olhar busca sempre privilegiar as instâncias relacionais e móveis. O vir a
ser, antes do ser. O composto, antes da substância. O Rizoma, antes da raiz. O
objetivo é canalizado, nessa lógica, menos para alcançar quaisquer novas verdades
e resultados e mais para o processo em si, para o flanar exploratório, para o
percorrer.

1.3. Muito além de uma análise objetual: uma discussão ética acerca da
corporeidade contemporânea e seus desdobramentos práticos.

Abordar a temática do avatar e do ciborgue no contexto das expressividades


fenomênicas da cibercultura vai muito além de um empreendimento unicamente
conceitual de definir “o que é”. Pensar sobre essas figuras é uma oportunidade de
abrir mais uma frente da discussão ética acerca da corporeidade e da subjetividade
contemporânea. Por isso, este empreendimento investigativo está proposto muito
mais no sentido de olhar para o mundo e para o fluxo de possibilidades que o
percorre, e menos para uma delimitação essencial e platônica.
Muitos pesquisadores e artistas vêm se interessando pela temática
cibernética há algum tempo. Juntamente à explosão informacional na cultura global
contemporânea, que não cessa de se intensificar e ampliar sua interface para os

13
mais diversos espaços, uma série de desdobramentos práticos na sociedade são
observados e problematizados nas produções fílmicas, literárias, acadêmicas etc. A
maioria dessas produções, porém, ao tratar da comunicação, se inclina mais
intensamente para a problemática das mídias sociais, negligenciando parcialmente
outras abordagens acerca da produção subjetiva e da sua respectiva integração ao
debate comunicacional e da fenomenologia estética.
Embora uma abordagem mais instrumental seja privilegiada nesses âmbitos,
a discussão ética aparenta estar sempre incluída e as práticas comunicacionais,
especialmente as alicerçadas em máquinas produtivas informáticas, não escapam a
uma série de problematizações práticas lançadas, inclusive, por intermédio dos
próprios Equipamentos Coletivos (GUATTARI, 2012) e práticas que estes
problematizam. Dessa forma, preferimos uma abordagem que contemple essas
lacunas não-instrumentais frequentemente negligenciadas nos estudos de
comunicação trazendo uma discursividade mais vinculada à proposta da
comunicabilidade sensível.
Ao mesmo tempo, tencionamos preservar a acidez crítica já consolidada a
respeito das práticas tecnológicas contemporâneas, sendo estas as que
circunscrevem majoritariamente o território das práticas e instrumentos
comunicacionais na atualidade, buscando sempre que possível promover reflexões
de natureza ética. Melhor dizendo, para este estudo, rejeitamos a totalidade da
cultura utilitarista técnica que predomina na maior parcela das produções intelectuais
em comunicação, resgatando um apetite filosófico, mas preservando principalmente
sua dimensão de crítica a respeito das modalidades e instrumentos produtivos
midiáticos.
Na esteira dessas produções e práticas contemporâneas, cabe destacar por
exemplo, uma lista de fenômenos característicos da cibercultura que revelam a
disseminação de práticas antiéticas exclusivas dos ciberambientes, como por
exemplo, o surgimento de ciberviolências como o slut-shaming e o próprio problema
do Big Data, como amplamente apresentado na obra O dilema das redes (2020).
O foco não é, entretanto, o de constatar um veredito moral para as
transformações tecnológicas e as mediatizações que se ramificam a partir dela, mas
de refletir justamente sobre os pontos de mais intensa articulação entre estes
agenciamentos maquínicos e os agenciamentos coletivos de enunciação que
atravessam os vários territórios midiáticos, políticos, das relações sociais, da
14
biomedicina, sedimentando sentido e incidindo sobre seus componentes de
subjetivação e transformando suas práticas.
O foco é entender quais aspectos do avatar e do ciborgue refletem
articulações entre agenciamentos maquínicos e coletivos de enunciação e quais
modalidades, componentes e singularizações de produção subjetiva podem ser
observadas. Melhor dizendo, o que se pretende é cartografar uma multiplicidade de
fluxos transversais de subjetivação.

2. REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO
2.1. Os agenciamentos coletivos de enunciação, os agenciamentos
maquínicos e a produção subjetiva.

Primeiramente, é preciso entender quais são as acepções de subjetivação e


subjetividade que estão sendo levadas em consideração no trabalho. Guattari (2012)
oferece posicionamentos que considero potentes para essa questão. É preciso
pensar a subjetividade para além da estrutura psíquica freudiana e da dicotomia
sujeito-sociedade. Melhor dizendo, é preciso expandir a noção de subjetividade para
algo que compreenda mais que a relação representacional entre as instâncias da
psicologia individual e da sociedade. Para isso, a subjetividade deve ser encarada
do ponto de vista de seu relacionamento com fatores extrínsecos, como um
processo, um fluxo de sensibilidades, afetos, modos de existir etc:

O sujeito não é evidente: não basta pensar para ser, como


proclamava Descartes, já que inúmeras outras maneiras de existir se
instauram fora da consciência, ao passo que o sujeito advém no momento
em que o pensamento se obstina em apreender a si mesmo e se põe a girar
com um pião enlouquecido, sem enganchar em nada dos territórios reais da
existência, os quais por sua vez derivam uns em relação aos outros, como
placas tectônicas sob a superfície de continentes. Ao invés de sujeito, talvez
fosse melhor falar em componentes de subjetivação trabalhando, cada um,
mais ou menos por conta própria. Isso conduziria necessariamente a
reexaminar a relação entre o indivíduo e a subjetividade e, antes de mais
nada, a separar nitidamente esses conceitos (GUATTARI, 2012, p. 17).

É ainda através desse descentramento do sujeito para a subjetividade em que


outros aspectos podem ser percebidos como co-produtores dos processos de
subjetivação. À instância da subjetividade, se acrescentarão então outras instâncias
ecológicas: a das relações sociais e a do meio-ambiente. Essas dimensões são
constituídas por práticas diferentes, mas integram “uma disciplina comum
15
ético-estética” (GUATTARI, 2012, p. 55), a qual será emprestada como instrumento
para se olhar sobre os engendramentos subjetivos atuais tratados no trabalho.
Assim, será sobre esse eixo ecosófico, como foi denominado por Guattari, que serão
conduzidas as análises e interpretações críticas em relação aos objetos do estudo.
Outros conceitos importantes para que seja possível acessar e compreender
a multiplicidade e a complexidade de instâncias de subjetivação dispostas não
hierarquicamente entre si, são os agenciamentos maquínicos e os agenciamentos
coletivos de enunciação, conceitos disseminados por Guattari (2012) que serão
emprestados como fundação teórico-metodológica para as investigações
empreendidas adiante. Mas, para progredir na compreensão desses conceitos, é
preciso antes entender o conceito de máquina proposto pelo autor, ressignificando a
ideia de máquina como exclusivamente um objeto dos domínios tecnológicos:

É preciso se afastar de uma referência única às máquinas tecnológicas,


ampliar o conceito de máquina, para posicionar essa adjacência da máquina
aos Universos de referência incorporais (máquina musical, máquina
matemática…)(GUATTARI, 2012, p. 43)

A máquina guattariana, portanto, pode ser definida como um agrupamento de


potências e vetores produtores. Elas podem ser materiais ou abstratas,
autopoiéticas (produzem a si) ou alopoiéticas (produzem algo diferente de si). Esse
conceito é primordial para que se possa enfatizar o sujeito enquanto transição e
menos como fixação. É esse descolamento do Ser para o Devir que vai pavimentar,
por exemplo, algum tipo de reflexão sobre o avatar enquanto corporeidade virtual,
abrindo espaço para pensar o aspecto híbrido dessas existências contemporâneas e
das próprias maquinações, em que máquinas ou protomáquinas (GUATTARI, 2012)
interagem entre si independentemente de serem materiais ou não, corporificadas ou
não, refletindo um pouco do caráter da experiência virtualizada. Esse é o caminho
vislumbrado para pensar a interação entre as diferentes instâncias evocadas no
estudo: o quase-sujeito, o quase-objeto, a biosfera e a mecanosfera. (SOARES, L;
MIRANDA, L; 2008).
Com isso, é possível partir para o entendimento de agenciamento. Existem
dois tipos de agenciamento, os maquínicos, que apresentam uma discursividade
ontogenética e os agenciamentos coletivos de enunciação, que são referentes ao
conteúdo existencial (GUATTARI, 2012). É através dessas articulações e

16
deslocamentos diversos, se entrecruzando e interferindo uns nos outros que está
concentrada a base para analisar as manifestações fenomenológicas dos
engendramentos subjetivos contemporâneos. Portanto, se por um lado as instâncias
ecológicas da ecosofia guattariana compõem o eixo ético-estético através do qual
será conduzido o olhar às problemáticas do estudo, por outro, a consideração
dessas movimentações ontogenéticas suporta o olhar analítico para componentes
subjetivantes muito heterogêneos.
É primordial dizer que essas maquinações tecnológicas não necessariamente
implicam efeitos exclusivamente positivos ou negativos. Apesar da escolha de um
eixo analítico ético-estético, melhor explicado adiante, o objetivo não é fatalmente
decretar um veredito moral acerca das produções subjetivas abordadas no estudo.
Pelo contrário, o zelo será por evitar subversão à quaisquer tipos de dialógica
maniqueísta. Sobre isso, é pertinente a seguinte colocação de Guattari:

“As transformações tecnológicas nos obrigam a considerar simultaneamente


uma tendência à homogeneização universalizante e reducionista da subjetividade e
uma tendência heterogenética. É preciso evitar qualquer ilusão progressista ou
qualquer visão sistematicamente pessimista. A produção maquínica de subjetividade
pode trabalhar tanto para o melhor quanto para o pior. Existe uma atitude
antimodernista que consiste em rejeitar maciçamente as inovações tecnológicas, em
particular as que estão ligadas à revolução informática. A produção maquínica de
subjetividade pode trabalhar tanto para o melhor quanto para o pior. Entretanto, tal
evolução maquínica não pode ser julgada nem positiva nem negativamente, tudo
depende de como for sua articulação com os agenciamentos coletivos de
enunciação” (GUATTARI, 2012, p.15)

Vale acrescentar, que desde a época em que este trecho foi publicado,
houveram diversas manifestações no sentido dessas articulações com os
agenciamentos coletivos de enunciação. Pensando do ponto de vista das
bioasceses e biossociabilidades, núcleo principal do estudo, as manifestações mais
recentes não vêm se apresentando como práticas que visam melhorar o
relacionamento das subjetividades consigo e com o mundo. Assim, não são éticas,
segundo definição de ética do próprio Guattari, à medida que oferecem todos os
meios instrumentais necessários para que se concretizem as subjetividades e
corporeidades bioascéticas capitalísticas3.

3
Em sua obra “Caosmose: um novo paradigma estético”, Guattari explica a preferência do termo
capitalístico ao termo capitalista, que é privilegiado no intuito de valorizar o aspecto derivativo e incluir
as periferias do capitalismo sem igualá-las entre si.
17
O território da comunicação, por sua vez, não está nem um pouco dissociado
desses engendramentos subjetivos, e ele será o principal componente de
subjetivação considerado ao decorrer do estudo. Apesar de atravessar todas as
ecologias, é possível observar uma certa ressingularização dos componentes a
depender das instâncias ecológicas específicas. Por exemplo, no sentido que é o da
ecologia subjetiva, são as tecnologias comunicacionais que se encarregam de
catalisar a disseminação das forças subjetivantes fitness, das modificações
corporais, das ideologias e das discursividades e práticas bioascéticas vinculadas a
elas.
Por esse ângulo, são justamente as técnicas e dispositivos comunicacionais
que intermediam as subjetivações específicas as quais são objeto-processo do
presente estudo. São também essas tecnologias comunicacionais e informáticas que
processam e concentram uma infinidade de dados sobre os indivíduos, tornando as
subjetividades, de certo modo, “previsíveis e avatarizáveis”. Para Guattari (2012,
p.14),

Devem-se tomar as produções semióticas dos mass media, da informática,


da telemática, da robótica etc… fora da subjetividade psicológica? Penso
que não. Do mesmo modo que as máquinas sociais que podem ser
classificadas na rubrica geral de Equipamentos Coletivos, as máquinas
tecnológicas de comunicação operam no núcleo da subjetividade humana,
não apenas no seio das suas memórias, da sua inteligência, mas também
da sua sensibilidade, dos seus afetos, dos seus fantasmas inconscientes.

Olhando mais pelo sentido da ecologia das relações sociais, a atuação da


comunicação fica um pouco mais óbvia, mas é uma obviedade potencialmente
elusiva, se a comunicação for pensada exclusivamente da perspectiva da
linguagem. Para efetivamente depreender como a comunicação se insere “É
justamente pela força da vivência em sua constituição que a estética (especialmente
a estética do fluxo) estimula o compartilhamento e promove o estabelecimento de
relações” (FREITAS, G. 2014, p.173). Se considerada, nesse sentido, a
comunicação como anexada a uma totalidade estética, é possível pensar, no âmbito
da ecologia das relações sociais, a manifestação de todo um fluxo subjetivo
destacado pela experiência estética enquanto uma experiência compartilhada nas
interações sociais e mesmo na própria constituição destas, seja em uma instância
mais particularizada, entre uma pessoa e outra, sejam em instâncias mais públicas,

18
envolvendo grupos sociais de maior volume e por conseguinte ganhando uma
dimensão mais amplamente política.
Existe, todavia, um outro âmbito que diz respeito à ecologia ambiental, em
que também persevera a potência da experiência estética para os agenciamentos
subjetivantes. Ao pensar sobre esse entrecruzamento das tecnologias
comunicacionais e informáticas com o campo das artes, cabe citar a artemídia e a
própria arquitetura como exemplo de apoio para a reflexão. A artemídia pressupõe o
uso dessas tecnologias para a construção da experiência estética. A arquitetura, por
sua vez, por mais que orientada mais intensamente para o desenvolvimento das
faculdades funcionais do espaço, também se encarrega de imprimir nessa atividade
algum tipo de posicionamento estético. Nesse sentido, a subjetividade do criador
estético, seja o comunicador, seja o arquiteto, se relaciona diretamente com a
modelação desta instância ecológica ambiental que, por sua vez, não hesita em
incidir sobre as modalidades sensíveis e afetivas, estabelecendo elos de
subjetivação e metamodelização (GUATTARI, 2012) com os corpos e subjetividades
percorrentes.

2.2. Cultura somática e ascese do corpo

Tendo tudo isso em vista, será possível visualizar melhor esta cartografia das
bioasceses e biossociabilidades atuais, precisando melhor a atuação da
comunicação e as tecnologias agregadas a ela nesses agenciamentos subjetivantes
mencionados. O avatar e o ciborgue também estão bem integrados aos universos
tecnológicos comunicacionais e informáticos pela perspectiva estética. Por mais que
haja uma suposta ampliação das potencialidades estéticas do metaverso na
cibercultura atual, agora com avatares mais realísticos, mais interativos e com mais
recursos, como citado anteriormente, avatares em ciberambientes menos
sinestésicos e imersivos já existiam. O ciborgue, cujo nome deriva da combinação
dos termos “organismo e cibernético” (Cyb-Org), se manteve muito mais próximo da
ficcção científica do que da realidade por muitos anos, e se popularizou muito no
meio das produções culturais, em especial as audiovisuais.
Apesar de vicissitudes agenciadoras muito heterogêneas, ambas as figuras
se aproximam e se encontram enquanto núcleos de reflexividade das subjetividades
e corporeidades contemporâneas. Como já tratamos da subjetividade, cabe um

19
aprofundamento maior sobre os padrões corporais atuais visando conectar esses
dois conceitos. Corporeidade é qualidade, a propriedade de uma materialidade física
e sensível, que permite um relacionamento experiencial com o mundo. Desse
modo, parte-se silogisticamente a pressupor que, se são observáveis
singularizações específicas nas configurações corporais de hoje, alguma força
subjetivante deve se articular sobre a corporeidade de forma a modelá-la à forma
que ela assume, a produzir tipos específicos de corporeidade que emergem na
atualidade. Quando essas instâncias, a das subjetividades, e a dos corpos
biológicos, vêm a coincidir, é que decorre-se então o processo chamado de
somatização dos indivíduos. Segundo Ieda Tucherman e Ericson Saint Clair (2009):

Em outras palavras, assistimos à biologização de todas as esferas da


vida e da subjetividade, tendo os media um papel decisivo neste contexto.
Essa tendência à biologização da subjetividade é reforçada, ainda, no campo
das neurociências e da genética, em que profundas alterações dos jogos de
saber e poder estão sendo promovidas.

Nesse ponto de vista, a biologização das subjetividades implica um


centramento de critérios corporais e biológicos na construção dos modos
existenciais. É diante dessa inflexão dos agenciamentos de subjetivação para dentro
da biosfera que o entrecruzamento entre as tecnologias, as práticas religiosas, as
práticas sociais e o corpo se intensificam e possibilitam a emergência dos padrões
de corporeidade e das práticas bioascéticas e biossociais que lhe parecem típicas. À
medida que a distinção entre o corpo e a subjetividade se dissolve, muito por efeito
da instalação de uma cultura somática, tanto o corpo é submetido a um
“assujeitamento” aos imperativos dessa cultura somática, quanto a própria
subjetividade passa a se alienar por esses modos existenciais focados no culto ao
corpo (ORTEGA, 2008), produzindo comportamentos e dinâmicas de gestão de si
que se inclinam sobre os territórios corporais-subjetivos a fim de modelá-los,
reconstituí-los para que caibam nessa normalidade que está em consolidação.
Ortega afirma que na cultura somática, ou seja, nessa cultura que é a de
encontrar uma causalidade fisiológica para os fenômenos psíquicos, “o corpo é
reinventado como um objeto de visão” (ORTEGA, 2008, p. 42). Ou seja, há uma
rearticulação da corporeidade em uma espécie de corpo transparente, que se dispõe
como reflexo de uma subjetividade, de uma identidade que passa a se encontrar em
posição de equivalência ao corpo físico e aparente. A identidade contemporânea,

20
portanto, passa a se constituir menos sob a incidência e os processos
característicos de agenciamentos diversos de dimensão política, cultural, psíquica,
racial, histórica, etária etc.
A identidade passa a ser definida então mais intensamente por
agenciamentos maquínicos tecnológicos, em especial os biotecnológicos e
cibernéticos (tecnologias de visualização), que no contexto da nossa sociedade
contemporânea e da ênfase discursiva que essa empreende às práticas de cuidado
e aprimoramento corporal, leva a formação das bioidentidades. Esse novo tipo de
identidade (bioidentidade), consolidada segundo preceitos estritamente biológicos,
emerge na contemporaneidade e implica ressingularizações nos modos de existir
atuais, estendendo seus impactos em todas as instâncias ecológicas: subjetivas,
sociais e ambientais.
As bioidentidades, porém, se enquadram nesse estudo com um papel mais
complementar, já que estão mais colocadas na condição de resultado em relação às
asceses e bioasceses, estas sim, práticas socioculturais processuais, e que portanto
serão privilegiadas neste estudo, que visa priorizar uma análise aos fluxos,
deslocamentos e agenciamentos que atuam na construção dos modos existenciais
corpóreo-subjetivos contemporâneos. Vale reforçar que, no contexto da cultura
somática mencionada anteriormente, a corporeidade e a subjetividade estão
intrinsecamente vinculadas, e portanto os agenciamentos que produzem
subjetividades singulares, também implicam corporeidades singulares relacionadas
a elas. Se as práticas ascéticas implicam em um processo de subjetivação
(ORTEGA, 2008, p. 20), então pode-se estimar que elas implicam em processos de
corporificação correspondentes.
Em seu livro O corpo incerto , Francisco Ortega (2008) afirma que as asceses
são sobretudo fenômenos globais de transformação cultural e hermenêutica. Ele
afirma que apesar de poderem se relacionar com culturas específicas de diferentes
formas, o alcance geral do fenômeno precisa ser levado em consideração. Isso vale,
inclusive, no caso das manifestações ascéticas em temporalidades históricas muito
distintas, como no caso das asceses antigas greco-romanas, as asceses cristãs e as
bioasceses contemporâneas. Nesses casos, são observáveis formas diferentes de
relacionamento entre o asceta e a cultura em qual esse está inserido: de
tensionamento, de integração e de transformação são alguns exemplos (ORTEGA,
2008, p.19 apud MITCHELL, 1966).
21
Apesar disso, olhando para o ascetismo enquanto mecanismo geral presente
em várias culturas, certos aspectos da conduta ascética parecem se sedimentar e
reaparecem constantemente através dos diferentes tipos de ascese. Ortega
reagrupa esses aspectos cristalizados do ascetismo em quatro tópicos gerais: O do
ascestimo como processo de subjetivação, o da reconfiguração do âmbito relacional
social, o da dimensão fenomênica sociopolítica e, por fim, o da vontade.
A respeito deste primeiro tópico, Ortega (2008) afirma que as asceses
circunscrevem um fluxo de um tipo de subjetividade para outro tipo. Esse
deslocamento acontece, portanto, entre uma subjetividade atual e uma subjetividade
desejada. É sobre esse âmbito que, posteriormente, será tratada a questão da
personalização do Avatar, no sentido de pensar sobre essa figura virtual
contemporânea enquanto esse vir-a-ser subjetivo que, por intermédio de dispositivos
tecnológicos personalizantes, pode ser modelada como uma imagem muitas vezes
corpórea e virtualizada produzida no intuito de se refletir uma identidade.
As bioasceses podem ser encaradas então como práticas empreendidas no
intuito de rejeitar uma corporeidade para aceitar outra. Mas, esse processo de
negação de si, ocorre especialmente porque já é fixada e conhecida
antecipadamente, via simulação, uma imagem melhorada de si pelos indivíduos, um
avatar ideal que norteia as práticas de ascese corporal e incide na negação de si. Na
perspectiva das práticas bioascéticas, todo deslocamento é de contínua negação do
corpo atual para aceitação de um corpo ideal. O asceta biotecnológico oscila entre
os tipos de subjetividade-corporeidade atuais e ideais, parecendo sempre estar em
um fluxo ascético, engajado em uma contínua jornada de melhoramento de si.
Dando sequência ao segundo tópico mencionado, o autor afirma que o
fenômeno ascético implica uma ressingularização dos arrranjos sociais, que nas
suas versões clássicas entravam em conflito com os arranjos sociais hegemônicos
mas que, no caso das bioasceses, implicam numa biossociabilidade
demarcadamente apolítica e caracterizada pelo alinhamento com os valores
dominantes. Nesse caso, a propriedade de provocador e catalisador de
deslocamentos significativos e alternativos no âmbito social, se perde quando não
há conflito e disputa simbólica entre essas práticas ascéticas e o status quo da
cultura em que as práticas estão inseridas e contextualizadas.
A isso cabe acrescentar uma reflexão acerca dos ambientes virtuais e os
padrões de sociabilidade observados neles: quando um avatar interage com outro, é
22
como se um devir corpóreo-subjetivo interagisse com outro. Considerando que no
contexto da cultura somática e bioascética contemporânea a tendência é a
homogeneização dos padrões de corporeidade, os ciberespaços nesse sentido são
pontos de convergência e reflexividade dos padrões de corporeidade ideais,
geralmente compartilhados entre amplas parcelas da sociedade. A partir disso é que
se intensifica portanto a sensação de afastamento social e autodenúncia a qualquer
sinal de alteridade apresentada. Além disso, poucas trocas sociais significativas
podem ser proporcionados nessas modalidades predominantemente
homogeneizantes de sociabilidade, justamente porque a alteridade, discriminada no
corpo desviante, é sequestrada da experiência social-estética pela possibilidade de
que todos sejam aquilo que querem aparentar ser, mesmo quando todos são
induzidos a querer aparentar ser mais ou menos a mesma coisa.
Além dessa função de deslocamento subjetivo, Francisco Ortega (2008, apud
FOUCAULT, 1984) destaca que a ascese é um fenômeno sociopolítico: é uma
prática social. Ele cita o exemplo do retiro estóico: “O cuidado de si (...) aparece
como uma intensificação das relações sociais”. A prática ascética é portanto
primordial para a definição de uma comunidade e dos seus valores e atividades
culturais. Também convém chamar atenção, ligeiramente, relacionando estas
narrativas ascéticas antigas com a visão de Ortega (2008, p.28) sobre o caráter
geral das práticas ascéticas medievais da tradição cristã:

“Os ascetas eram, como vimos, personalidades públicas respeitadas


e admiradas, que representavam um papel e que levavam uma vida de
imitação (imitatio christi) incitando a emulação. Por isso, não entraram em
conflito com as instituições impessoais da época. Não se tratava de uma
oposição institucional à autoridade e sim de uma instância de correção. O
ascetismo tinha uma função de crítica social”

O terceiro tópico, portanto, é relativo à dimensão sociopolítica das asceses.


Nas asceses clássicas e cristãs, destaca Ortega (2008), os ascetas assumiram uma
função de líder comunitário. O cuidado de si nesse caso se desdobrava em uma
modalidade coletiva de cuidado, considerando que a conduta dos ascetas
usualmente refletia um tipo de conduta ideal assumindo em uma respectiva cultura,
e a constituição da ascese como prática de liberdade inspirava outros indivíduos da
comunidade a agirem similarmente. No caso das bioasceses contemporâneas, um
novo tipo de conduta é privilegiada, e ela está vinculada a uma sociabilidade

23
baseada nas bioidentidades: uma biossociabilidade. Ela se distingue do biopoder
clássico, porque não é estabelecida enquanto um agenciamento social amplo e
político, mas um sim estabelecida enquanto um tipo de sociabilidade apolítica, que
fixa como critérios de integração e reconhecimento social características corporais e
comportamentos empreendidos na intenção de maior saúde, ressignificando até
mesmo outras atividades humanas enquanto práticas de saúde:

As ações individuais passam a ser dirigidas com objetivo de obter melhor


forma física, mais longevidade, prolongamento da juventude, etc. Todo um
vocabulário médico-fisicalista baseado em constantes biológicas (...)
populariza-se e adquire uma conotação “quase moral”, fornecendo os
critérios de avaliação individual. Ao mesmo tempo, todas as atividades
sociais, lúdicas, religiosas, esportivas, sexuais são ressignificadas como
práticas de saúde. (ORTEGA, 2008, p. 31).

À vista disso, vale frisar que apesar das asceses clássicas também serem
realizadas como uma espécie de empreendimento transcendental sobre o próprio
corpo, ela não está enquadrada unicamente no escopo das práticas de si corporais
bioascéticas, que visam potencializar as faculdades de um corpo específico. Na
verdade, muito embora o asceta esteja submetido a uma variedade de atividades de
desenvolvimento corporal, a finalidade da ascese envolvia uma ambição coletiva,
maior e para além da duração do próprio corpo do asceta.
O trabalho ascético tradicional, nesse caso, não pode ser interpretado como
uma atividade que visa exclusivamente um autoaprimoramento. A mitologia hindu
oferece um bom vislumbre sobre essa ideia: Vishnu, deus responsável por conservar
o mundo e a vida, é uma ideia coletiva, um ícone mitológico que simboliza valores e
costumes comunitários, os avatares incorporados por essa entidade não
compreendem portanto a totalidade da ascese, que é construída no decorrer de
gerações e traz benefícios em uma instância coletivizada. Nesse sentido, a potência
ascética não é direcionada para um corpo específico e as práticas estão
ressignificadas como uma construção amplamente histórica e coletivizada.
As bioasceses, por sua vez, estão circunscritas pelo corpo-objeto ou pelo
corpo-imagem ao qual elas se direcionam. O corpo contemporâneo, que passa a
reproduzir a subjetividade externalizada, morre juntamente com quaisquer melhorias
adquiridas através das práticas, estas sim, exclusivamente de si. A bioascese é
individualizada à medida que se inclina para o corpo particular e, justamente em
detrimento disso, seu potencial coletivo é anulado. Nenhum saber ou benefício é

24
transferido para uma instância coletiva quando as atividades de melhoria são
canalizadas apenas no avatar, e não na “alma” que incorpora uma materialidade,
esta sim, componente passível de efetuar transformação em nível coletivo.
Talvez ambas as asceses envolvam o corpo. Mas é preciso diferenciá-las:
com o emaranhamento de uma cultura somática aos interpresamentos ascéticos, as
práticas ascéticas se tornam muito mais individualizadas e limitadas. Elas
compartilham sua longevidade com o avatar incorporado porque não incidem sobre
progressos subjetivos compartilháveis dos indivíduos, apenas sobre sua instância
material e mortal, e decaem e se decompõem na mesma velocidade. Quer dizer, a
consolidação de uma modalidade mais “subjetivizada” da atividade ascética implica
um caráter coletivo e político das asceses, enquanto a centralidade de uma cultura
corporal extremamente materialista e objetivista não pode produzir nada além de um
perfil individualizado de ascese, com reduzidos e negligenciados vieses coletivos e
políticos.
Por fim, cabe trazer o último tópico, relativo a dimensão volitiva das asceses.
Sobre isso, Ortega (2008) destaca que nas asceses clássicas e cristãs existia um
forte componente de exercício da vontade. Nesse caso, o sentido da vontade era o
da liberdade, de transgredir o corpo e alma, de rejeitar uma subjetividade
assujeitada e assumir uma subjetividade mais livre. Já nas contemporâneas
bioasceses, não só o objeto da vontade muda como suas características também se
transformam. A vontade bioascética não flui em direção a uma singularização, a uma
liberdade autonômica como é o caso das asceses clássicas e cristãs, mas sim em
direção a um assujeitamento ao imperativo bioascético. É um tipo de vontade de
integração à norma, que “constrange a liberdade de criação e elimina a
espontaneidade” (ORTEGA, 2008, p. 46).
Atravessando todas essas dimensões citadas, cabe destacar uma ideologia
amplamente disseminada e internalizada na sociedade contemporânea: o fitness.
Considerando que os agenciamentos ascéticos pensados em sua totalidade estão
entremeados e distribuídos, às vezes dificilmente identificáveis, em diversas práticas
contemporâneas, que são ressignificadas enquanto práticas de saúde. O fitness é, já
partindo do próprio nome, transparente e sugestivo acerca da finalidade desse
conjunto de práticas que atualmente é simultaneamente um estilo de vida, uma
ideologia contemporânea e até, por diversas vezes, uma máquina abstrata própria.
O termo quer dizer, em tradução literal: aptidão. Isoladamente, fit significa caber,
25
ajustar, se adaptar à forma. ness por sua vez é um sufixo da língua inglesa usado
para transformar um adjetivo em substantivo. Essa definição parece refletir bem o
aspecto geral assumido por essa ideologia na atualidade: uma ideologia da
conformidade, do ajuste à norma, do modelamento de si para se fazer caber aos
padrões corpóreo-subjetivos pré-fixados.
É importante vislumbrar a potência da ideologia fitness para além do ponto de
vista estritamente esportivo, mas encará-lo levando em consideração a sua atuação
ampla nos mais diversos territórios corpóreo-subjetivos. Pensando a partir da sua
nuance discursiva e linguística, cabe retomar o destaque feito anteriormente sobre a
formação da palavra. A princípio, a noção de ajustamento à forma sugerida pela
palavra estrangeira parece surgir mais especificamente com suas conotações
relativas à prática da atividade física em si, à manutenção da “boa forma”. No
entanto, para os fins deste estudo, cabe acrescentar que o progresso biotecnológico
vem ampliando o arsenal de dispositivos que permitem articulação de diversas
modificações e “melhoramentos” corporais.
As biotecnologias vem articulando toda uma reestruturação da corporeidade
contemporânea, rompendo muitas vezes com seus aspectos orgânicos e por
conseguinte afastando sua finitude e ociosidade intrínsecas e necessárias.
Juntamente a isso, a intensificação de outros agenciamentos, a exemplo do fitness,
vem produzindo modelações subjetivantes nocivas para as ecologias ambientais,
sociais e subjetivas. Essas modelações, evidenciadas aqui por seu perfil bioascético,
participam de um verdadeiro movimento de implosão da relação da subjetividade
com sua exterioridade (GUATTARI, 2012).
Por esse lado, pode-se dizer que diversos agenciamentos e maquinações
tecnológicas, bioascéticas e capitalistícas se articulam sobre os territórios corporais
e subjetivos, produzindo uma ressingularização dos modos existenciais e portanto
das próprias corporeidades e subjetividades contemporâneas. Por outro lado,

Analogamente, na tecnobiomedicina contemporânea, os corpos são


progressivamente virtualizados. O uso crescente de novas tecnologias de
visualização, associado ao desenvolvimento de anatomias e clínicas
virtuais, se adequa a uma prática médica cada vez mais digitalizada,
levando a ultrapassar os limites entre o corpo real e o virtual. O virtual não
é mais o oposto do real, aparece como seu prolongamento, e o corpo é
basicamente uma imagem dotada de materialidade, em concorrência com a
materialidade real do corpo físico. (Ortega, 2008, p.14)

26
Essa noção do corpo-imagem é seguramente uma das mais primordiais
noções para as investigações a respeito do avatar e sua inserção no contexto das
maquinações biotecnológicas. Se é necessário ampliar a noção de máquina para
apreender as problemáticas propostas neste estudo, como mencionado
anteriormente, é importante ampliar também os entendimentos acerca do corpo
enquanto um artefato híbrido na atualidade, considerando a multiplicação e a
complexificação dos ciberambientes e dos tipos de sociabilidade possíveis nesses
inúmeros mundos digitais que existem paralelamente e em concorrência com o
mundo físico, mas não isoladamente.
Pensando a partir dessa ideia do corpo-imagem e ao mesmo tempo
retomando as considerações sobre a ideologia do fitness, cabe tratar de uma
característica importante das bioasceses contemporâneas: sua reflexividade. Ortega
(2008, p. 32) define reflexividade como o processo de “taxação contínua e peritagem
sobre nós mesmos”. É portanto através de práticas de autocontrole (dietética) e de
desenvolvimento da aptidão física e mental (fitness) que os indivíduos
contemporâneos buscam comunicar sua identidade e firmar sua existência no
mundo. Para os fins deste estudo, esses dois conjuntos de práticas, a dietética e o
fitness, serão tomados como os dois principais eixos do labor bioascético, ou seja, o
trabalho realizado sobre o corpo, no intuito de transformá-lo e de maximizar seu
desempenho.
Já em relação à biossociabilidade, predominam agenciamentos como o do
chamado discurso do risco. A articulação do discurso do risco com a crescente
“autonomização” dos sujeitos promove uma assimilação profunda de um senso de
responsabilidade pelo próprio corpo. Nesse sentido, há uma deslegitimação dos
sofrimentos relativos à saúde, já que a responsabilidade de trabalhar seu próprio
corpo e se preocupar com a saúde é de cada um consigo. Esse discurso do risco
tampouco está dissociado da reflexividade característica do labor bioascético, pois é
justamente o olhar do outro sobre as práticas de ascese do corpo o principal
catalisador da absorção discursiva da ideologia securitária (FRANCO FERRAZ,
2014).
Por isso, apesar da reflexividade corporal consistir basicamente de um
processo fechado no self, de uma espécie de labor corpóreo-subjetivo retroativo,
realizado sobre si mesmo, é sobretudo o assujeitamento ao olhar e à avaliação dos
outros que finalmente pode legitimar uma corporeidade. O indivíduo contemporâneo
27
precisa selecionar cuidadosamente seus comportamentos sociais e subjetivos, sua
tarefa é interpresar uma verdadeira gestão do seu corpo-imagem. Nesse sentido,
tanto as tecnologias imagéticas quanto as biotecnologias no geral consolidam uma
base discursiva para a autonomização dos indivíduos. Conta-se a história de que o
progresso técnico-científico veio para solucionar questões de saúde há muito tempo
tomadas como grandes obstáculos à utopia no planeta e, juntamente a isso, não
aderir à revolução clínica e aos empreendimentos bioascéticos passa a ser uma
opção, justificando mesmo uma repulsão e humilhação dos biogrupos
marginalizados dessa jornada de transcendência corporal. Sobre isso:

O corpo e o self são modelados pelo olhar censurador do outro que leva à
introjeção da retórica do risco, resultando na constituição de um indivíduo
responsável, que orienta suas escolhas comportamentais e estilos de vida
para a procura da saúde e do corpo perfeito e o afastamento dos riscos.
(ORTEGA, 2008, p.33)

Em dissonância com as asceses greco-romanas, parece certo que a máquina


bioascética se encarrega da produção de subjetividades e corporeidades
supostamente mais autonomizadas e independentes. Talvez em função dos diversos
agenciamentos discursivos capitalísticos aos quais a sociedade vem sendo exposta
já há algum tempo, é comum ser induzido a uma interpretação plenamente positiva
da autonomia e da independência. A ligação entre o iluminismo filosófico e os
agenciamentos técnico-científicos e seus engendramentos mais típicos sequer é
discreta. Vale dizer que recuar aos primórdios da filosofia moderna para refletir sobre
problemáticas emergentes contemporâneas é um movimento não só possível, mas
necessário e potente.
É seguro dizer que uma das últimas produções dos agenciamentos
tecnológicos comunicacionais, a internet, provocou uma reavaliação da noção de
global. Cabe sim destacar, todavia, que esse produto foi primeiramente desenvolvido
e disseminado justamente no meio científico ocidental, não se distanciando então do
iluminismo enquanto uma tradição filosófica ocidental obcecada com a ciência e com
a técnica. O caso aqui não é de se mobilizar uma crítica anacrônica ao iluminismo,
mas de reforçar a sedimentação dessa constelação de Universos, que certamente
adquirem arranjos divergentes, perdem intensidade ontológica no passar das
vicissitudes históricas, se desintegrando rápida ou lentamente, em uma espécie de
fossilização, mas deixam imprimidas nos territórios existenciais um vestígio de sua

28
cartografia outrora viva: “A cristalização de uma tal constelação poderá ser
“ultrapassada” ao longo da discursividade histórica, mas jamais apagada enquanto
ruptura irreversível da memória incorporal da subjetividade coletiva” (GUATTARI,
2012, p. 39).
À vista disso, é justo propor uma revisão da acepção comumente positiva da
autonomia e da independência no contexto da ecologia social, resgatando
justamente a comparação entre as asceses clássicas grego-romanas e as asceses
do corpo contemporâneas (bioasceses) já introduzidas anteriormente. Por um lado a
máquina bioascética se articula no sentido de produzir subjetividades
autonomizadas, mais inclinadas à independência social e ao trabalho biossocial, um
trabalho de tipo narcisístico orientado sobretudo para a gestão do próprio
corpo-imagem, de forma que este se adeque aos parâmetros perfomáticos e
capitalize uma vantagem sobre os outros nos jogos de poder normalizadores que
incidem sobre todos, estabelecendo uma instância competitiva entre os indivíduos.
Por outro lado, muito por conta dos regimes de visibilidade e mesmo do
diagrama da avaliação (FRANCO FERRAZ, M. C. 2014), as bioasceses e as
biossociabilidades não se constituem como práticas de liberdade, mas de
assujeitamento. À medida que tal corporeidade precisa de uma validação pública,
geralmente nos territórios midiáticos, parece justo dizer que as bioasceses se
apropriam do discurso da autonomia quando convém movimentar mais
responsabilidade em relação ao mundo para o sujeito, mas a corporeidade acaba,
por fim, submetida a um poder avaliador coletivo, denunciando a presença de uma
nuance extremamente interdependente da biossociabilidade.
É também por essa perspectiva de competição dos corpos-imagem e das
corpo-subjetividades que a ideologia securitária e o discurso do risco se acoplam às
maquinações bioascéticas: se o corpo-imagem é fixado como ponto de reflexividade
do estilo de vida, este por sua vez usado como artefato comparativo entre os
indivíduos nos jogos de poder capitalísticos, então a violência aversiva contra as
corporeidades divergentes é não somente legitimada, mas esticada para várias
superfícies de contato da ecologia social. A internalização do discurso do risco
nesse caso, ao promover a auto-responsabilização da gestão do corpo-imagem,
estimula um centramento individualista e um sentimento de cada um por si, que
intensifica as violências contra “os inaptos” da biossociabilidade.

29
Já nas asceses clássicas, a própria atividade ascética não se concentra
exclusivamente no corpo, se articulando também enquanto ascese da alma. A
principal diferença entre as asceses clássicas e as bioasceses, do ponto de vista do
tipo de sociabilidade que acaba se articulando, é em relação à finalidade do labor
ascético. O ascetismo clássico toma por finalidade um causa coletiva, mesmo que o
disciplinamento corporal e psíquico seja individualizado, a causa final é se habilitar
para a vida pública e para a cidade (ORTEGA, 2008). Essa mesma finalidade não é
observada no caso das bioasceses, cujo trabalho ascético é empreendido com
objetivo de aprimorar o próprio self.
Dito isso, cabe destacar que o embate individual versus coletivo na
comparação das asceses passadas e das bioasceses atuais é mais complexo que
um simples deslocamento de um tipo que objetiva uma transformação da vivência
comunitária e pública para outro que objetiva o melhoramento de si em concorrência
com os outros. Talvez seja efetivamente impreciso afirmar que tudo se resumiria
basicamente a uma mutação subjetiva indivíduo-grupo para uma indivíduo-indivíduo.
De certa forma, as bioasceses também buscam uma espécie de integração em
contextos coletivos, embora através de processos de subjetivação distintos e
visando configurações coletivas finais destacadamente divergentes daquelas
observadas no caso das asceses clássicas.

2.3. Uma nova modalidade de sociabilidade e o corpo mercadificado via


avatarização.

O bioasceta não interpresa um processo de auto-melhoramento em um


circuito totalmente fechado. Assim como foi destacado anteriormente, o sucesso ou
o fracasso da escalada bioascética precisa de espectadores, à medida que está
inserido não só no contexto da ideologia securitária, do discurso de risco e das
biotecnologias, mas também no contexto dos regimes de visibilidade e do diagrama
da avaliação, considerados intrincados nos processos de subjetivação
contemporâneos, e que implicam numa abertura do circuito self-self para um circuito
mais configurado como self-socius-self.
Essa abertura parece participar significativamente na constituição cartográfica
da biossociabilidade, que se complexifica enquanto dimensão social, mas não
verdadeiramente política. Nesse sentido, embora as bioasceses estejam articuladas
30
majoritariamente como predicado entre o self e ele mesmo, os agenciamentos
midiáticos, tidos como fluxos rizomáticos transversais, parecem interferir nesse
circuito de forma a produzir arranjos singulares de aglomeração e relacionamento
social. Ortega (2008) alerta para a mutação das configurações sociais na
biossociabilidade, que são cada vez menos organizadas segundo critérios
biopolíticos modernos, e mais orientadas segundo constantes biológicas.
Assim sendo, a biossociabilidade parece implicar na consolidação de
“biotribos”: aglomerações sociais formadas por indivíduos com características
fisiológicas similares, as bioidentidades, que se distinguem então, hierarquicamente,
de outros agrupamentos sociais e impõem uma pressão normalizadora às
subjetividades que não se adequam a esses parâmetros, forçando uma introjeção
nos jogos de poder biossociais que se instalam nos territórios existenciais. Além
disso, deve-se destacar também que esses agenciamentos se articulam em
conjunção com os agenciamentos mercadológicos contemporâneos e a formação
desses biogrupos portanto é um acontecimento bastante conveniente para os
anseios capitalísticos.
No que diz respeito a essa provocação, cabe refletir se a formação de
biogrupos em um mercado farmacológico e tecnológico crescentemente voltado para
viabilizar e estimular as bioasceses, não têm a definição de seus públicos-alvo
facilitado para a elaboração de estratégias de Marketing. À medida que as
bioidentidades são engendradas como núcleos gravitacionais das aglomerações
sociais, o corpo-imagem ideal, ou a corpo-subjetividade final do processo ascético, é
compreendida pelo mercado como o Avatar ao qual os desejos dos consumidores se
direcionam, sendo o Avatar uma figura sintética que supostamente resume um perfil
subjetivo e corpóreo. Nesse caso, ao desenvolver estratégias de mercado, o risco é
minimizado através da estimação precisa dos interesses e demandas dos
indivíduos:

A forma de sociabilidade originada desse processo constitui uma


socialização apolítica que visa à construção de grupos de interesses
privados, sem articulação comum com interesses gerais de raça, classe,
estamento entre outros, e tem como finalidade principal a capacidade do
sujeito para se adaptar e se integrar de modo flexível ao mercado de
consumo. (ORTEGA, 2008, p.49)

31
Se pela perspectiva mercadológica o self ficou mais previsível no âmbito de
seus desejos e necessidades, pela perspectiva de seus afetos e sentimentos
também é possível identificar um tipo de deslocamento similar do íntimo para o
externo. Com o processo de somatização crescente, a “aparência virou essência”
(ORTEGA, 2008, p.43) e nesse sentido as subjetividades se encontram não somente
expostas entre si, expressadas através do corpo, mas os valores psíquicos são
parcialmente subvertidos aos valores fisiológicos, corroborando para uma elevação
exagerada da sensação física em detrimento do sentimento subjetivizado.
No geral, há uma drenagem simbólica significativa nos sentimentos e uma
transposição desse capital simbólico para o território corpóreo sensível, implicando
talvez em uma massiva superficialização subjetiva na atualidade. Seguindo esse
raciocínio, para que exista profundidade subjetiva, é preciso que haja uma distância,
uma separação entre os componentes humanos existentes e os aparentes. A
profundidade nesse sentido é o entre, o meio formado quando o percebido é
divergente ao total subjetivo. A crescente somatização dos indivíduos produz então
efeitos singulares e notavelmente problemáticos na perspectiva das três ecologias,
especialmente a subjetiva.
Versando primeiramente sobre as formações ecológicas subjetivas nesse
contexto da superficialização, deve-se dizer que os tipos subjetivos produzidos são,
segundo Ortega (2008), paranóicos e melindrosos. O self superficializado pelos
imperativos somáticos está dessa forma constantemente exposto ao outro e
simultaneamente assujeitado ao imperativo de preservação identitária, de
manutenção de si. Ele parece então dilacerado por tensionamentos ambíguos dessa
categoria.
Por um lado, a condição existencial é coagida pelos regimes de visibilidade e
avaliação. O self precisa então se submeter ao julgamento alheio como processo de
validação existencial. Por outro lado, a decomposição da alteridade característica da
sociedade atual induz o sujeito a uma insegurança insistente em relação ao outro.
Assim, parece se desenhar um perfil assombroso de subjetividade contemporânea,
que se submete ao olhar alheio como uma etapa para existir e ao mesmo tempo não
suporta o outro enquanto potencial alteridade.
Esse perfil subjetivo produzido na atualidade evidentemente atravessa e
articula cartografias singulares na ecologia social afins a esses modelos existenciais
consolidados. Com a emergência dos selfs bioascéticos somatizados, há alguns
32
movimentos de homogeneização generalizados nos territórios corpo-subjetivos. Com
os novos regimes de exposição generalizada e o desaparecimento da possibilidade
de dissimulação nas sociedades contemporâneas é configurada toda uma diáspora
da alteridade. Isso quer dizer que, estando frustrado com o próprio corpo, o self é
estimulado a se esconder sob a normalidade, a se conformar com os padrões
estabelecidos de corporeidade e com os processos subjetivantes relacionados a
eles (ORTEGA, 2008).
Dessa forma, as sociabilidades mais equilibradas, criativas e profundas vão
sendo desmanteladas por essa nova biossociabilidade conformadora, recalcada e
despolitizada. A fixação desse paradigma da insegurança perante ao outro,
provocada sobretudo pelo progressivo desaparecimento da alteridade na cultura
global contemporânea, é inscrita nesse agenciamento homogeneizante das
sociedades atuais, e efetua nos territórios ambientais da ecologia planetária ainda
uma outra particularidade: a substituição da ação pela reação no mundo:

A confiança possibilita a continuidade e a constância no ambiente, a


formação de um “ambiente suficientemente bom”, condição necessária para
que o novo e o imprevisto possam surgir. Sem essa confiança em mim, nos
outros e no mundo, não há ação, só há reação, que é, no fundo, um
sinônimo para o comportar-se. Nessas circunstâncias, a obediência, a
adaptação e a submissão ao mundo ocupam o lugar do agir no mundo.
(ORTEGA, 2008, p.46)

Ainda no tema ambiental, é possível observar toda uma desterritorialização


do mundo. Talvez seja que, à medida que é intensificada a discursividade do corpo,
o qual somos colocados a serviço, também é manifestado um desinteresse
generalizado pelo mundo. A corporeidade ganha uma centralidade extraordinária e,
de repente, toda a libido criativa é também transferida para o corpo, espaço que
passa a concentrar um contingente extenso de atividades estéticas, manifestadas
por exemplo através das modificações corporais. Se houve um tempo em que o
mundo era o território onde se congregavam as artesanias de transformação, hoje,
“não podendo mudar o mundo, tentamos mudar o corpo, o único espaço que restou
à utopia, à criação” (ORTEGA, 2008, p. 48).

33
3. DESENVOLVIMENTO
3.1. Uma nova modalidade experiencial: cartografia de uma corporeidade
híbrida na atualidade.

Não pensar o paradigma da corporeidade considerando suas saliências


virtualizadas é ignorar toda uma multiplicidade de singularizações efetuadas quando
há articulação conjunta dos agenciamentos tecnológicos, biológicos, religiosos e
estéticos. O avatar e o ciborgue são figuras notavelmente emergentes em um
mundo físico cada vez mais desabitado e cada vez mais mesclado com o mundo
virtual. Passou o tempo dialógico em que o real se opunha ao virtual, como que em
uma rivalidade maniqueísta típica dos dualismos produzidos e enraizados no
genealogismo filosófico ocidental (GUATTARI, 2012). Agora, em uma conjuntura
subjetiva cada vez mais voltada para a experiência sensorial corpórea, a
corporeidade não deve ser reduzida à percepção restrita do corpo físico, mas
acrescida de suas dimensões virtuais e cibernéticas.
Os agenciamentos técnico-científicos nos quais estão inseridos as práticas de
si atreladas ao corpo cibernetizado são tampouco dissociados das novas
modalidades comunicacionais e estéticas contemporâneas. Na verdade, nossa
cultura é atravessada por uma instrumentalidade técnica, associada não apenas aos
modos de fazer, mas também e, sobretudo, aos regimes do ser e do aparecer”.
(PICADO, 2015, p.155). A problemática da cultura tecnicista no que concerne à
comunicação está vinculada à constituição de uma uma nova modalidade
experiencial estética da atualidade.
O que parece estar em disputa nessa discussão é, portanto, a reconfiguração
do próprio sentir no desenrolar das incorporações cibernéticas à corporeidade e à
subjetividade humana. Uma tecnicização do corpo demarcada pela mesclagem do
orgânico com a máquina, por essa ótica, certamente implicaria em um
redimensionamento da sensibilidade humana, e em uma distinta condição ontológica
do que tomamos coletivamente como ser humano.
Eis que, nesse contexto, a cartografia corporal dispõe da qualidade de
híbrida. Ela deixa de existir integralmente no território físico e passa a dividir seu
conteúdo existencial com produtos imagéticos virtuais, acoplamentos cibernéticos,
máquinas dos mais diversos tipos. É comum, ao tratar da máquina na temática do
ciborgue, aludir imediatamente a suas manifestações mais óbvias e mecânicas:
34
braços e pernas biônicos, órgãos viscerais sintéticos e até, segundo o imaginário
geral da cibercultura popular, olhos robóticos que disparam lasers e dispõem de uma
visão extraordinária e pós-orgânica.
Não é que essas construções cinematográficas estejam muito distantes de se
concretizar na realidade, mas é importante expandir a nossa acepção de máquina
para além das máquinas robóticas e mecânicas. Para efetivamente se atingir uma
instância em que é possível vislumbrar as maquinações corpóreas e subjetivas
contemporâneas, é preciso perceber mesmo práticas, fármacos e discursos como
máquinas. Melhor dizendo, é preciso encará-las como protomáquina, assumindo que
protomáquinas são os componentes que integram um maquinário total, segundo a
visão de Guattari. Nessa linha de pensamento, o número dois, a operação de
multiplicação, o símbolo de igual, todos são protomáquinas abstratas que integram o
todo maquínico matemático, por exemplo. São os dispositivos vinculados entre si
que agenciam um processo produtivo. (GUATTARI, 2012, p. 43)
O exemplo da matemática foi considerado oportuno como exercício de
ampliar a noção de máquina justamente por posicionar uma máquina das mais
abstratas em oposição a esse imaginário extremamente material e metálico, que
cerca a significação tradicional mais amplamente difundida sobre a máquina. Dito
isso, é possível incluir uma multiplicidade de componentes de subjetivação à
discussão da corporeidade no contexto da cibercultura, visando principalmente o
aprofundamento das reflexões e dando à elas a consistência complexa que lhes é
adequada.
Seguindo essa linha de pensamento, é menos difícil detectar como essas
supostamente novas configurações corporais da atualidade se singularizam e quais
principais efeitos nas ecologias subjetivas, sociais e ambientais podem ser
destacados. Como em uma espécie de movimento de externalização, ironizando
mesmo a problemática da cultura “externalizada” a qual estão submetidos os corpos
contemporâneos, o fluxo escolhido para abordagem dessas perspectivas no trabalho
privilegia primeiramente as ecologias subjetivas, partindo então para o recorte
intermediário das interações sociais e por fim, abordando os aspectos mais amplos
das ecologias ambientais.
Nesse sentido, cabe provocar uma primeira reflexão comparando as duas
figuras principais tratadas no presente estudo: o avatar e o ciborgue. Partindo do
ponto de vista da formação corporal-subjetiva e presumindo um sistema de
35
agenciamento fechado entre a tecnologia e o corpo, é possível distinguir dois tipos
ordinais diferentes de articulação e interação entre esses dois componentes, que
parecem culminar em transfigurações simultaneamente distintas e similares,
variando em função da ótica assumida em relação a suas manifestações
fenomênicas específicas.

3.2. O avatar e o corpo avatarizado: deslocamentos de uma


subjetividade externalizada e vislumbres de uma corporeidade no contexto da
cultura de personalização.

Castronova (2003, p. 4) define o avatar como “uma representação de um self


em um dado ambiente físico”. Nesse sentido da representação, o avatar é tido como
uma imagem-objeto onde uma subjetividade imaterial é incorporada. Para o autor de
Theory of the Avatar, obra escrita pouco após um grande boom dos mundos virtuais
e por conseguinte dos selfs avatarizados, o corpo humano biológico também é um
avatar, um veículo que a mente está comandando. Curiosamente, essa visão reflete
ainda a acepção do corpo-imagem e do corpo-objeto da atividade subjetiva
problematizada por Ortega (2008).
Algumas evidências foram coletadas na literatura sobre o sentido da
incidência subjetivante na relação biológico-virtual. Ao olhar para o caso dos
avatares e considerando as evidências encontradas em parte da literatura sobre o
tema (SIBILA, F. MANCINI, T; 2018) é possível visualizar um fluxo particularmente
positivo nesse caso, que parte do biológico e é projetado para o tecnológico. É
importante frisar que positivo não quer necessariamente dizer bom, apesar de
algumas nuances desse fenômeno de projeção corporal e subjetiva serem
identificadas como boas no sentido ético-estético da ecosofia preferida como
metodologia analítica, como será melhor desenvolvido adiante.
Retomando a questão do Avatar, é notado um fluxo agencial que começa no
agente biológico e é projetado positivamente em direção aos ambientes virtualizados
tecnológicos. Isto é, um deslocamento parcial do aspecto corporal visível do
biológico e da experiência subjetiva vinculada a ela para o ciberespaço. Nesse
sentido, considerando alguns aspectos destacados na literatura (MESSINGER et al.,
2008; SIBILLA, F. MANCINI, T; 2018) sobre esse tipo de esticamento
corporal-subjetivo fundamentalmente híbrido nas suas nuances sensíveis e

36
experienciais, é importante vislumbrar duas perspectivas principais sobre o caráter
positivo dessa movimentação biológica-tecnológica.
Primeiramente, esse deslocamento é positivo em seus aspectos de dilatação
potente. Ou seja, de ampliação virtual de possibilidades materiais de corporeidade.
Assim sendo, com acesso a tecnologias de visualização e personalização corporal
extremamente avançadas, existentes nos muitos mundos virtuais criados e vividos
atualmente, o self tem à disposição ferramentas de criação e moldagem de outros
selfs possíveis. Ele pode, portanto, construir uma representação corporal de si em
um ambiente virtual compartilhado, moldando a aparência dessa extensão de si no
ciberespaço quase como quiser.
É importante frisar, tendo em mente a esteira filosófica guattariana e
deleuziana privilegiada como ótica maior para as problemáticas do estudo, que essa
acepção representativa dos avatares virtuais pode e deve ser contestada. A
possibilidade de explorar o fenômeno do avatar transgredindo a dialética
representativa enraizada na cultura ocidental é profundamente encorajada e
estimulada. Entretanto, é uma realidade que a grande maioria da literatura científica
analisada específica sobre o avatar, seu relacionamento com o self e seus
desdobramentos e emergências fenomênicas, está em consonância com as noções
hegemônicas e cristalizadas representativas. Fica portanto a provocação para
futuros estudos e a tentativa de, no decorrer do presente trabalho, exercitar
resistência discursiva e expor quaisquer contradições identificadas acerca da visão
representativa e suas limitações práticas.
Retomando portanto a discussão do primeiro aspecto considerado positivo
nos agenciamentos bioascéticos manifestados no fenômeno do avatar, cabe trazer
as considerações expostas no estudo de Messinger et al. (2008) a respeito
principalmente das tendências identificadas na construção dos avatares em um
determinado mundo virtual e, juntamente a isso, das nuances interativas entre o self
físico e sua extensão virtualizada e incorporada. Na sequência, em sintonia com o
fluxo argumentativo do mais específico interno pro mais amplo, será abordado o
estudo realizado por Federica & Mancini (2018), o qual analisa conclusões de uma
extensa gama de estudos e experimentações acerca do avatar, inclusive das
investigações de Messinger et al. (2008).
Segundo as constatações do autor (ibid, 2008) a maioria dos agentes, ao
criarem seus avatares, os criam considerando motivações de auto-verificação e
37
auto-aprimoramento (self-verification and self-enhancement) em intensidades
razoavelmente equilibradas entre si. A auto-verificação consiste na construção de
avatares relativamente fidedignos, similares nos aspectos físicos e subjetivos do self
agente físico. O auto-aprimoramento, por sua vez, consiste num perfil de
personalização mais arriscado que visa melhorar o self virtual nesses mesmos
aspectos mencionados.
É interessante observar a consonância entre essas principais motivações e
critérios de personalização do avatar no ciberespaço com as características
denotadas por Ortega (2008) a respeito da biossociabilidade, das bioidentidades e
das práticas de personalização/modificação corporal, que também objetivam, de
certo modo, uma auto-verificação. Na verdade, assim como o self físico é impelido a
realizar uma gestão de si canalizada na aparência corporal para se integrar nos
grupos privados dominantes da biossociabilidade, a verosimilhança entre o agente e
sua interface de avatar nos mundos virtuais está vinculada ao grau de credibilidade
e à boa recepção dos agente nas comunidades sociais dentro destes mundos.
Por outro lado, o self-enhancement já é uma conduta que parece refletir
majoritariamente as bioasceses, tendo em vista que no quesito dos aspectos físicos
do avatar, “os estudos mostram que a criação de um avatar melhor que o usuário,
mais semelhante ao self ideal que ao self atual, isto é, a idealização da aparência do
avatar, é a tendência mais comum”4 (SIBILLA, F. MANCINI, T; 2018, p. 3). Nesse
sentido, essa segunda motivação parece refletir uma tendência do self agente de
aproveitar o amplo leque de possibilidades personalizantes nesses mundos para se
projetar, predominantemente, de maneira positiva nesses ciberespaços.
Parece existir portanto uma ambiguidade que paira sobre esses vetores
subjetivos de criação dos avatares: ao mesmo tempo que o self físico quer
“preservar a verdade sobre si e buscar um feedback objetivo dos outros”5
(MESSINGER et al. 2008, p. 4) na sua interface corporal virtualizada, ele também
enxerga uma potência de melhoramento e aproveita para distorcer em níveis
variados a própria imagem para o que é considerado melhor na cultura em que o self
agente está inserido.
A partir de evidências observadas por Messinger et al. (2008, apud
SEDIKIDES et al. 2003), de acordo com pano de fundo cultural, uma modalidade de

4
tradução do autor
5
tradução do autor
38
auto-aprimoramento singularizada é manifestada no sentido de quais padrões
corporais e subjetivos são considerados melhores. Por exemplo, enquanto agentes
inseridos em culturas mais individualistas, como a estadunidense, a tendência maior
era de se auto-aprimorar em atributos mais individuais, em culturas mais coletivistas
como a japonesa, os avatares eram geralmente melhorados justamente nos seus
atributos coletivos, sendo então ligeiramente mais solidários e sociais que
supostamente são no mundo físico.
Essa evidência reforça a ideia de que há, em grau maior ou menor,
entrecruzamentos e interações entre os empreendimentos melhorantes e o contexto
cultural em que o self agente está inserido. Nesse sentido, tanto o
auto-aprimoramento quanto a auto-verificação parecem estar apoiadas no
background cultural e aliadas no projeto positivo articulado nos agenciamentos do
avatar. São as nuances culturais singulares que emergem tanto na “verdade de si”,
concernente à bioidentidade do self físico, quanto na corporeidade e subjetividade
ideal, confluindo em um total complexo de projeções virtuais que oscilam “entre a
personalidade atual e a ideal” (SIBILLA, F. MANCINI, T; 2018, p. 5) e agem de
acordo com uma multiplicidade substantiva de interfaces subjetivas e corporais.
Esse perfil de mobilidade, de deslocamento de subjetividade, é identificado ainda por
Ortega (2008, p. 20) na conduta ascética: “O asceta oscila entre uma identidade a
ser recusada e outra a ser alcançada”.
Sibilla e Mancini (2018) revelam uma variedade de composições relacionais
entre o self agente e o avatar virtual mapeados a partir da revisão de 43 artigos
publicados entre 2006 e 2017. Na ampla literatura analisada pelas autoras, há 4
dimensões de comunicação entre o self e o avatar: aspectos físicos, auto-conceito,
auto-necessidades e identificações. Vale frisar que, assim como é esperado em uma
cultura somatizada, componentes físicos e psicológicos aparecem aliados na
constituição dessas dimensões de relacionamento usuário-avatar.
Diante disso, foi notado que os avatares podiam ser enquadrados geralmente
em dois principais tipos. O primeiro é o avatar “atualizado”6, que é similar ou
ligeiramente melhorado em relação ao self, dispondo de características similares a

6
atualizado (actualized) é usado no sentido de inspirado no self atual, não no sentido de atualização
ou implementação de uma versão mais recente.
39
eles em todas as dimensões citadas. O segundo tipo é o avatar “utópico” 7, um tipo
extremamente distinto do usuário, reproduzindo uma imagem extremamente
transformada de si. Cada avatar parece, por sua vez, ter alguma modalidade própria
de visão de mundo e de relacionamento com ele.
As investigações de Sibila e Mancini (2018, p. 7) destacam ainda um
fenômeno muito interessante a respeito do efeito da customização sobre as
condutas subjetivas dos avatares. Segundo as autoras, a customização está
correlacionada a “diferentes atitudes diante dos mundos virtuais”. Nesse sentido, o
avatar atualizado parece não distinguir o mundo real do virtual, concebendo o avatar
como uma proeminência que transgride a “realidade física”. Assim, a construção e
personalização auto-verificada aparenta estar vinculada a uma visão que pressupõe
o mundo virtual e o real como similares, como espaços de continuidade do self.
Por outro lado, o avatar utópico está conectado à uma visão de mundo outro,
de alteridade. Nessa visão, o mundo vivido pelo agente e o mundo acessado pelo
avatar estão configurados segundo instâncias distintas de realidade. Os usuários
com este perfil tendem a ser aficionados pelas particularidades do mundo,
“reconhecendo seu potencial revolucionário” (SIBILLA, F. MANCINI, T, 2018, p. 5,
apud COSTELLO, 2012; PARMENTIER, 2009; ROLLAND, 2009; WANG et al, 2014).
Por essa ótica, os ciberambientes podem ser considerados mundos alternativos de
criatividade, onde é possível explorar e experimentar outros mundos paralelos ao
mundo físico.
A segunda perspectiva é considerada valiosa porque apresenta justamente
ideia de exploração, de expedição da alteridade, que se opõe em parte aos
engendramentos narcísicos, próprios das práticas da biossociabilidade, que visam
reafirmar a própria existência mediante visualização e validação do próprio corpo.
Nesse sentido, o avatar atualizado parece refletir uma subjetividade mais
intensamente introjetada na lógica da biossociabilidade, sendo um tipo de
relacionamento onde o self procura projetar uma cópia de si, visando uma
experiência realística, vinculada à uma realidade mesma, uma simulação. O avatar
utópico, no que lhe toca, espelha uma subjetividade distinta. O self “por trás” dessa

7
utópico (utopian) é utilizado não necessariamente no sentido de idealização “positiva”, podendo ser
interpretado também como fantasioso, aludindo a quaisquer mundos imaginados alternativos,
paradisíacos ou cataclísmicos..
40
categoria parece vislumbrar um potencial de resgate de uma experiência subjetiva
não associada à axiomática biológica e com a representação simulada de si.
Vale frisar que embora o avatar utópico possa estar vinculado à uma prática
genuinamente fantasiosa interessada em experimentar mundos potencialmente
enriquecidos de vivências sociais, psicológicas e expenciações estéticas, muitas
vezes ele pode também reproduzir um ascetismo utópico no sentido clássico de
idealização, de representar uma versão extremamente melhorada de si. Nesse caso,
a experiência não necessariamente é áltera, mas pode estar inscrita no mesmo
quadro da bioascese, de visualização e personalização melhorante. A riqueza de
experimentar mundos paralelos, como é característico da experiência literária ou
filmográfica, por exemplo, parece portanto estar mais unida à percepção do self de
que se trata de uma excursão, uma saída de si, do que propriamente a sua
dimensão fantasiosa, ainda possivelmente idealizada. Melhor dizendo, o fator chave
para o enriquecimento da experiência avatarizada talvez consista na potência de
alteridade dos respectivos ciberambientes.
Prontamente, Sibilla e Mancini (2018) enquadram a dicotomia existente nessa
instância relacional das subjetividades do self com as modalidades de avatar a partir
de um dimensionamento das teorias psicológicas. Nesse sentido, as autoras
destacam duas abordagens, a relacional e a sócio-construtivista:

Na abordagem relacional, o avatar é visto como um meio de explorar a


identidade do usuário. Ele é utilizado para experimentar com um self
possível, diferente mas ainda similar ao atual. Nesse caso, a proximidade
entre o self online e o offline possibilita a transferência de algumas
características do mundo online para o offline. (ibid, 2018, p.7)

Na lógica proposta pela abordagem relacional, há uma articulação


instrumental do processo de avatarização. O self físico estabelece um nexo
recíproco com o self virtual, trocando características adquiridas entre si. Por essa
ótica, o avatar passa a consistir em uma espécie de artefato simulante,
instrumentalizado para testar situações possíveis no mundo biológico e talvez, até
para receber feedbacks para o usuário representado pelo avatar acerca de
características físicas ou psicológicas.
Se os tipos atualizados de avatar parecem incluídos na abordagem relacional
de conexão entre os selfs, os tipos utópicos espelham deslocamentos subjetivos
sócio-construtivistas, mais orientados conforme uma acepção processual do avatar.

41
Esse prisma reverbera a ideia de agenciamento coletivo de enunciação empregado
como um dos alicerces teórico-metodológicos do presente estudo, ao cindir com a
lógica representacional manifestada mais intensamente na abordagem relacional.
Quer dizer, uma abordagem sócio-construtivista destaca a possibilidade de
uma movimentação de interferência, de flanar transversalmente por territórios
existenciais essencialmente distintos entre si, um aspecto processual. Dessa forma,
o self biológico é desincorporado parcialmente e embarca em um corpo outro, se
pondo a cruzar cartografias heterogêneas. Vale salientar que talvez incorporar um
corpo desigual a si seja fundamental para efetuar esse tráfego. Nesse sentido, é a
partir de uma desvinculação da experiência geral com mundo virtual da autoimagem
e da representação simulada de si que um enriquecimento áltero é incrementado à
excursão.
Esbarrando nos levantamentos de Ortega (2008) as modalidades de
avatarização explicitam certos deslocamentos simbólicos entre os territórios do
corpo e do mundo. De certo modo, a avatarização atualizada parece estar
engendrada enquanto um mecanismo autoreflexivo, característico das bioasceses.
Ao criar um avatar que seja uma representação de si, o próprio corpo se torna uma
autoimagem materializada, objetificada. É evidente que na avatarização utópica o
self virtual é ainda um objeto, um artefato produzido. Mas ele é um objeto
majoritariamente desassociado da própria corporeidade, diferente do self criador.
A dinâmica que parece operar nesse caso, parece ser similar à criação de
uma personagem. Um personagem, no geral, não reproduz a si mesmo no universo
ficcional, ele pode sim resguardar características transferidas pelo seu criador, mas
sua concepção é fundamentalmente de uma corporeidade e uma subjetividade
distinta de si. Emprestando ainda as noções de movimentação subjetiva
guattarianas: a avatarização intencionalmente fantasiosa demarca uma
reterritorialização do mundo, mesmo que esse mundo não seja o mundo físico. Se o
interesse pelo corpo suscita o desinteresse pelo mundo (ORTEGA, 2008), uma
avatarização articulada dentro dessa lógica sócio-construtivista pode ser
interpretada como uma genuína reterritorialização do mundo, como um resgate
simbólico das ecologias sociais e ambientais. A avatarização atualizada é portanto
contrastada por demarcar justamente a movimentação oposta: em alinhamento com
os deslocamentos subjetivos bioascéticos e somáticos, ela consiste em potencializar
e reforçar um interesse por si mesmo, em instrumentalizar potenciais alteridades em
42
simulações do real e ressignificar dispositivos e práticas de customização como
tecnologias de visualização de si.
É importante, todavia, discernir essas noções. Não é que qualquer
modalidade de ascetismo esteja reduzida à criação de um avatar, mas a aliança
entre esses dois componentes pode ser potente na visualização de uma dinâmica
multidimensional entre selfs virtuais e identidades interligadas simultaneamente
outras e mesmas ao self físico. Esse fluxo parece estar configurado tanto no sentido
positivo através do auto-melhoramento, quanto no sentido negativo de retornar de
um ponto ideal para um ponto atual da subjetividade, rejeitando uma variedade
extensa de selfs possíveis e formando uma espécie de onda rítmica ascética.
Ortega (2008) defende uma ótica ampla de interpretação das tentativas de
modificação e personalização corporal. Ainda que essas práticas se inscrevam no
contexto das bioasceses, biossociabilidades e bioidentidades, elas não se reduzem
a uma consequência da cultura somática, da centralidade do corpo e da aparência
na atualidade, mas também manifestam um certo ímpeto compensatório no sentido
delas, processo similar aos engendramentos do discurso do risco que,
ambiguamente, encoraja condutas de preservação e ao mesmo tempo acaba por
suscitar formações subjetivas arriscadas e relapsas. Em vista disso,

Se, por um lado, no nível biopolítico/biossocial as modificações corporais


parecem seguir o padrão identitário e apolítico das biossociabilidades
contemporâneas e da ideologia da fitness, por outro lado, no nível
fenomenológico da experiência subjetiva, constituem esforços de fugir da
cultura da aparência e de recuperar a dimensão do vivido corporal.
(ORTEGA, 2008, p. 57)

Primeiramente, convém partir para uma comparação entre as modificações


corporais em uma materialidade física biológica e em uma virtual avatarizada,
apontando suas diferenças e similaridades para, a partir daí, efetivamente adentrar
na apresentação desses deslocamentos e fluxos relacionais entre os selfs numa
perspectiva mais ampla. Para isso, é preciso tanto considerar uma interface
compartilhada entre o corpo físico e o virtual quanto considerar suas saliências
singulares e distintas. Ou seja, é assumindo tanto continuidades e descontinuidades
que é possível visualizar quais fenômenos parecem estar vinculados e entremeados
mesmo em plataformas espaço-temporais distintas e quais parecem ser fenômenos
específicos de cada tipo de materialidade.

43
É evidente que a cultura somática vem se encarregando de encurtar as
distâncias entre os componentes subjetivos e os físicos, muitas vezes produzindo
uma sintomática que pode ser equiparada e transportada a nível de experiência
entre uma instância e outra. Por exemplo, como nos casos já bem disseminados das
manifestações fisiológicas de patologias ansiosas e depressivas, ou mesmo do
bem-estar prometido e experimentado após uma temporada dietética ou uma série
de malhação, podendo acontecer também no caminho contrário.
Tendo isso em mente, deve-se dizer que é necessário considerar tanto a
experiência subjetiva total híbrida, quanto às experiências específicas que existem
enquanto singularidades de seus respectivos meios existenciais. No caso do corpo
biológico, está em questão todo um conjunto de complexidades que simplesmente
ainda não podem ser reproduzidas em sua totalidade em um ambiente virtual. Há
textura, há dor e mal-estar fisiológico, há uma dimensão inteira olfativa e aromática,
por exemplo, que definitivamente produz um todo experiencial singular.
Enquanto o corpo biológico dispõe de, ao menos, cinco sentidos, a
experiência avatarizada no geral só é mediada através principalmente da visão e da
audição. Sendo, na maioria dos casos, a audição complementar à visão. Nos
mundos de realidade aumentada, é sobretudo a visão que se apresenta como canal
de acesso aos outros sentidos, como fonte fundamental de uma experiência
supostamente corporal. Criam-se, a todo momento, novos e mais tecnológicos
recursos visuais que tentam simular e potencializar uma experiência corporal
totalizada: ambientes mais realísticos, alimentos mais vívidos que ativam memórias
olfativas, óculos de realidade aumentada que permitem uma experiência interativa,
quase tátil, com objetos virtuais etc.
Essa primazia da visão sobre os outros sentidos não é específica da
experiência em um avatar incorporado, como bem destaca Ortega (2008) mas ela
reflete uma suspeição da tecnomedicina em relação aos outros sentidos, que são
entendidos como menos objetivos e menos eficientes na experienciação do real. O
tato, portanto, está posicionado como oposto à visão, ele é o sentido mais corporal.
Uma experiência tátil presume a existência de um objeto e de um corpo
fundamentalmente outro não-objeto, que colide com uma forma externa, rompendo a
preciosa objetificação do corpo das atuais bioasceses. Segundo Ortega (2008, p.65),
“existe uma relação direta entre o receio do tato na cultura visual contemporânea e
na tecnobiomedicina e a perda da experiência corporal”.
44
Essa dimensão do vivido corporal, portanto, é um ponto chave para a
reconquista psicológica do corpo (ORTEGA, 2008), que consiste na translocação do
corpo-objeto para o corpo vivo. Assim, por um lado, o corpo avatarizado é percebido
como um caminho para a exploração da “diversidade interior” (Sibilla, F. Mancini, T;
2018, p. 5), ele cede parte da sua integridade sensorial se desincorporando do corpo
biológico para incorporar um avatar que não está assujeitado a esse mesmo poder
com a mesma intensidade, reconquistando parcialmente uma interface subjetiva que
é fundamentalmente mais desvinculada do biológico. Por outro lado, o corpo
avatarizado carece de uma integridade experiencial muito importante para a
reterritorialização subjetiva do corpo, como é o caso da dor:

A dor é um elemento fundamental nas modificações corporais, uma via de


acesso ao corpo vivido numa cultura como a nossa, na qual a dor é um
anacronismo que deve ser suprimido, um escândalo intolerável numa
sociedade que não reconhece mais nem o sofrimento nem a morte como
constitutivos da condição humana. (ORTEGA, 2008, p. 64)

Se por um lado a dor é condenada no contexto da nossa sociedade, ela não é


condenada de uma forma que ela é totalmente excluída. A questão da dor na nossa
atualidade, na prática, é mais ocultada sob o véu farmacológico dos produtos
biomédicos que verdadeiramente solucionada. A nova campanha publicitária Dorflex
“vai em frente e deixa a dor com a gente”, por exemplo, parece retratar bem o
relacionamento com a dor no contexto da biomedicina e da farmacologia: a dor é
normalizada como sintoma do trabalho. À vista disso, a dor é encarada como um
perigo iminente e espontâneo aos trabalhadores, mas que pode ser facilmente
remediável por soluções médicas.
Assim, ao tratar da questão experiencial do avatar, é fundamental entender
primeiro que não são experiências equivalentemente corporais. Apesar da
possibilidade de incorporação subjetiva, só é possível experimentar o mundo virtual
através de um corpo avatarizado que também é objeto. Nesse sentido, o avatar
reflete bem os padrões de corporeidade bioascéticos presentemente construídos,
emergindo como uma figura possivelmente profética da corporeidade do futuro
seguindo a lógica da tecnobiomedicina: corpos extremamente personalizáveis,
moldáveis, dóceis, conformados, inseguros e desabitados de suas subjetividades.
Tendo tudo isso em vista, o avatar parece emergir como um produto
profundamente ambíguo, um “metaespelho” de diversos agenciamentos de nossa

45
presente época histórica. Ele é um objeto incorporal que pode ser personalizado
quase infinitamente, e justamente por essa ótica ele pode ser um produto estético,
refletindo deslocamentos e fluxos subjetivos no próprio corpo biológico e
características gerais sobre as instâncias sociais e ambientais habitadas e
percorridas na atualidade. A nível fenomenológico, no corpo avatarizado parecem
estar intrincados esforços tanto de conformidade à cultura da aparência do
corpo-objeto quanto de fuga e resistência desse contexto no resgate de um corpo
atravessado por afetos experienciais não biológicos.
A definição “metaespelho” é utilizada para vislumbrar uma certa dinâmica
oscilante, uma mobilidade que é consonante com os deslocamentos subjetivos
bioascéticos. Essa noção convém para demonstrar em parte que o avatar não deve
ser reduzido a uma imagem virtual de uma materialidade biológica, uma
representação de um corpo. Mas, antes, uma interface parcial de uma corporeidade
e uma subjetividade, que é construída enquanto artefato comunicacional vivo, e
portanto conta com seus ruídos, discursividades e singularizações. Logo, o avatar
está simultaneamente articulado como o espelho e como o espelhado, como
processo de espelhamento e como o total cartográfico retratado, contemplando tanto
seu caráter de processo subjetivante e personalizante (instrumento), como de
construto possivelmente estético e reflexivo (efeito).
O prefixo ‘meta’ utilizado serve também como uma provocação à “nova” moda
dos metaversos8, que surgiu como uma espécie de estratégia de rebranding das
grandes companhias de tecnologia após os escândalos acerca da mercadificação do
big data e suas implicações nocivas às três ecologias, como apresentado no filme O
Dilema das Redes, produzido pela Netflix. Dito isso, convém partir para a próxima
instância analítica, relativa à ecologia do socius.
Mesmo sem se desprender muito de uma ótica fundamentalmente
behaviorista, Messinger et al. (2008) apresentam uma série de percepções e
evidências interessantes em relação ao perfil social dos avatares. Foi observado em
seus experimentos simulados que, após a construção do avatar, o comportamento
do self virtual era ajustado, conscientemente ou não, de acordo com os supostos
atributos de uma subjetividade ideal ali buscada através do processo de
avatarização. Avatares considerados mais “atraentes”9 portanto se comportavam

8
Mundos virtuais escaláveis
9
Os autores não fornecem nenhum critério para o que é considerado atraente.
46
com maior extroversão e, nesse conceito, avatares mais altos tendiam também a
agir e negociar de maneira mais agressiva em relação a outros (Ibid, 2008, p. 13).
Além disso, resgatando a discussão da retórica do risco, foi observado um
engendramento particular nesse sentido: os avatares aprimorados, mais atraentes e
mais “ideais”, tendiam a buscar positivamente mais situações de risco que os outros,
rompendo com a conduta securitária típica do self biológico. Isso mostra em parte
que, mesmo em um self virtual incorporado, a questão da aparência continua sendo
um componente determinante para a autoconfiança e para a confiança nos outros, e
por conseguinte, para uma prioridade da ação sobre a reação, do “formar-se” sobre
o “conformar-se”, na esteira de Ortega em O corpo incerto (2008).

3.3. O avatar sob a ótica das ecologias sociais e ambientais:


comunicabilidade interativa e cultura de customização

Diante de fenômenos contemporâneos muito recentes como a inserção do


avatar na comunicabilidade virtual de maneira quase generalizada e sua integração
no mercado cultural tecnológico através das NFTs10, algumas emergências
peculiares podem ser abordadas no intuito vislumbrar a articulação do avatar em
interfaces sociais e ambientais amplas. Nesse sentido, convém refletir
especialmente sobre alguns tipos específicos de interação através de correntes na
rede social instagram e alguns projetos NFT mainstream como o Bored Ape Yatch
Club e o CryptoPunks.
Há, nesses contextos, uma série de práticas interessantes a quais podem ser
exploradas no intuito de entender quais tipos de comunicabilidade e interatividade
social são engendradas sob a lógica da biossociabilidade e da bioidentidade
avatarizada. Algumas correntes de sticker nos stories do instagram por exemplo,
parecem gamificar nesses espaços sociais a atividade de construção do self. Essas
práticas aparecem, em geral, consonantes com os jogos de ser e vir a ser da
bioidentidade, que não é reproduzida diretamente através de um produto único, mas
se articula mais enquanto uma comunicação sedimentada, que vai adquirindo uma
forma com o tempo através dessas dinâmicas cadenciadas de visibilização da
identidade.

10
Non Fungible Token (NFT) é a denominação utilizada para avatares criptografados.
47
Nesse sentido, correntes como “uma foto sua e de 3 personagens com a sua
energia” ou “uma foto sua e de uma celebridade que dizem parecer com você”
mostram uma espécie de gamificação das dinâmicas comparativas entre
corpo-subjetividades e bioidentidades. A lógica da similaridade entre corporeidades
já verificadas é então ativada como um instrumento de expressão subjetiva e
estética. Dito isso, não é possível dizer que esses jogos de visibilização identitária
estão inscritos como um processo de aparição e produção de diversidades nesses
aspectos. Pelo contrário, aparecem mais configurados como maquinações
homogeneizantes, como fluxos de convergência bioidentitária e de autoprodução.
Resgatando o olhar analítico da ecosofia, emprestada como lente
metodológica neste estudo, é possível caracterizar essas dinâmicas como
especialmente nocivas para as ecologias subjetivas e sociais, considerando que a
multiplicidade e a diversificação dos modos de existir subjetivos e corporais são
fundamentais para a preservação dessas instâncias. Vale enfatizar que a
problemática maior não consiste necessariamente em transacionar a construção
corporal-subjetiva entre dimensões públicas e privadas. Ou sequer consiste em
coletivizar parte do processo de exploração das identidades, tomando como
referência personagens e modelos existenciais de grande relevância simbólica para
o indivíduo. Parece que a problemática maior consiste efetivamente na instalação de
modelos existenciais corporais dominantes.
Geralmente, há corporeidades específicas que são mais vislumbradas como
modelos às outras. São justamente essas corporeidades modelo que criam uma
gravidade simbólica ao redor de si, exercendo um poder deformador sobre as
corporeidades com menor densidade simbólica dentro das suas respectivas redes
sociais. Dessa forma, é produzida uma cartografia de transições corporais
convergentes, em que todas as diferentes formações migram para o modelo central,
incorporando-se a ele e potencializando o imperativo bioascético sobre os outros
corpos habitando a periferia do biopoder e fazendo-os orbitar ainda mais
violentamente em direção a um corpo idealizado.
Ainda nessa discussão acerca das correntes de instagram, cabe tratar
também de um outro aspecto dessas práticas, que podem também ser constituídas
como formas de resgatar uma personalização menos biologizada. Da mesma forma
que as modificações corporais visam resgatar também as dimensões psicológicas
do corpo, rompendo com o asserviçamento da “alma” ao corpo na instância
48
subjetiva. Na ecologia social, parece se manifestar também uma reivindicação da
construção de laços sociais através de características “não reais” psicológicas, no
sentido de real apresentado por Ortega (2008), e que está intimamente ligado à
biossociabilidade.
O corpo no contexto do biopoder obtém um status de detentor do real,
enquanto o psicológico e o subjetivo são assumidos imprecisos e enganosos. Isso
ocorre, principalmente, segundo a lógica da visualização. Da mesma forma que a
visão é considerada a referência de sensorialidade assertiva, de canal para a
realidade, o corpo material é entendido como objeto onde essa realidade é visível,
mais ou menos na mesma movimentação em que o psicológico é encarado como
uma ilusão, como o “campo das incertezas”.
Assim, o que a lógica da biossociabilidade propõe é que fatores físicos sejam
os principais componentes da interatividade e da comunicabilidade social. É
justamente por essa visão que as enquetes podem também se articular enquanto
ruptura dessa dinâmica, promovendo um afastamento da materialidade biológica
como fator central, e possibilitando o acesso compartilhado à características de
ordem psicológica que são refletidas a partir dessas relações de identificação entre o
self e o personagem de um filme predileto, por exemplo.
Dito isso, cabe transicionar para discussões relativas às instâncias
ambientais, trazendo à luz das investigações e reflexões um fenômeno considerado
oportuno para essa questão: as NFTs. Olhando a partir de uma perspectiva ampla,
as NFTs se instalaram como um mercado recente em que já são observáveis
transações exorbitantes e milionárias. Grandes celebridades das indústrias
esportivas, culturais e outras áreas aderiram rapidamente a essa nova modalidade
de colecionamento “artístico”.
O mercado de NFTs é sumariamente um mercado de avatares. Dentro do
pretexto das próprias tecnologias da imagem foi possível criar uma “obra de arte
única” mesmo no meio digital reprodutível. Utilizando recursos criptográficos, foi
possível cifrar uma imagem para torná-la exclusiva. Essas imagens, porém, não são
aleatórias. A grande maioria dos projetos mais populares de NFTs são avatares.
Projetos como Bored Ape Yatch Club e o CryptoPunks, movimentam
montantes na casa dos milhões na comercialização de avatares criptografados e
supostamente irreprodutíveis. Esse processo de mercadificação da identidade
manifestada parcialmente pelo fenômeno das NFTs é potente para refletirmos sobre
49
uma questão correlata que envolve justamente a inserção das tecnologias e
maquinações do avatar na lógica do consumo capitalístico do CMI: a customização.
A lógica da customização no sentido literal da palavra é de adaptação à
necessidade do consumidor. Em resumo, na linguagem do marketing, customizar
tem a ver com personalizar um produto ou um serviço para que ele melhor se
encaixe às necessidades de um cliente. A customização está inserida no contexto
dos agenciamentos mercadológicos e capitalísticos. Ela se apresenta, dessa forma,
como uma prática estratégica típica de uma sociedade de consumo especializada,
com demandas e desejos especializados.
Talvez a produção de tecnologias de customização e a incorporação destas
nos dispositivos e práticas comunicacionais esteja vinculada a articulação ampla do
corpo enquanto objeto-produto. Não é que todas as práticas de personalização
tenham todas uma finalidade mercadológica, mas sim que a customização se instala
nos territórios humanos incorporando cada vez mais a linguagem e as modalidades
existenciais do customer. Nessa linha de pensamento, da mesma forma que um
produto é customizado para se conformar às necessidades e desejos de um suposto
comprador, o corpo-objeto avatarizado da atualidade, sob efeito dessas práticas e
modalidades existenciais, está sujeito a se ajustar para melhor satisfazer os anseios
do mercado.

3.4. O ciborgue e o corpo aprimorado: O corpo como hiperconstruto e a


discussão acerca da construtibilidade no contexto da cultura tecnológica.

Se por um lado o Avatar consiste nessa articulação ambígua que transborda o


biológico para habitar a utopia do virtual. Há uma outra figura na cultura
contemporânea que expressa bem as singularizações de um percurso contrário: o
ciborgue. Diferentemente da avatarização, processo majoritariamente positivo de
ascese do corpo aparente, a formação do ciborgue parece estar articulada como um
fluxo oposto, em que o virtual e o cibernético incidem sobre o biológico.
O processo de transformação do corpo enquanto uma máquina produtiva é
intensificado à medida que a tecnobiomedicina continua a criar possibilidades de
melhoramento e soluções para as diversas angústias humanas. A formação do
ciborgue parece estar bem alinhada com o imaginário de um humano feito melhor,
que preserve ainda o status de humano, mas que seja dotado de capacidades
50
inumanas. Um corpo que não é completamente automático, e portanto dispõe de
alguma autonomia, mas que está integrado em um conjunto de maquinações,
dispositivos, interfaces etc.
Se por um lado o avatar carrega em parte um empreendimento simbólico de
escapar da dor e do desconforto típicos de uma sensorialidade biológica, por outro,
talvez, o ciborgue surja como um empreendimento de escapar mesmo da própria
morte. O discurso do risco, por exemplo, só existe no contexto de uma condição
material finita. Toda a base da discursividade securitária de preservação de si,
precisa partir da premissa que o corpo biológico é mortal, uma condição temporária
de existência, e justamente por isso precisa ser objeto de cuidado.
Muitos podem reconhecer a mortalidade como uma condição indissociável da
humana. Morrer é tão parte de ser humano que viver. Mas a tentativa de remediar
nosso limiar de finitude (GUATTARI, 2012) é nada espantosa considerando uma
sociedade muito mais obstinada em gerir a vida que decidir sobre a morte
(DELEUZE, 1992), na qual foi contextualizada a experiência moderna.
Talvez o ciborgue seja um tipo de ritornelo existencial (GUATTARI, 2012)
prometeico dos agenciamentos técnico-científicos, assim como o Frankenstein, mas
interpretado a partir de uma perspectiva cultural profundamente tecnicista e
aficcionada com os progressos e inovações tecnológicas. Quer dizer, a ideia de
animar matéria inorgânica se mantém, mas o espanto e o medo diante de um corpo
remendado e artificial, visto no romance de Mary Shelley, é radicalmente diferente do
deslumbramento que existe em relação ao ciborgue contemporâneo.
É evidente que parte da retratação dessa figura é fictícia. Mas, ela não é
inteiramente fantasiosa e aparece, em diversos aspectos, muito vinculada aos
agenciamentos subjetivos contemporâneos. O ciborgue é sumariamente um
corpo-máquina e, como o corpo já é de certa forma uma máquina por si só, a
ontogênese ciborguiana consiste sobretudo em uma integração maquínica.
Pode ser que ao pensar sobre o ciborgue o pensamento seja
espontaneamente induzido a visualizar uma antítese entre o natural e o artificial,
materializada no corpo que é território disputado entre esses dois vetores
supostamente rivais. Entretanto, para se debruçar efetivamente sobre a questão do
ciborgue, é preciso primeiro, considerar a máquina no lato sensu guattariano
exposto anteriormente. Segundo, é preciso visualizar uma diversidade nas próprias
categorias internas ciborguianas. Segundo Tomaz Tadeu (2009), elas podem ser
51
restauradoras, normalizadoras, reconfiguradoras e melhoradoras. Pensando em
favorecer uma sequencialidade discursiva, privilegiando uma fluidez com o
enquadramento teórico geral do trabalho, será dado destaque às perspectivas
reconfiguradoras e melhoradoras.
Erick Felinto (2005) enfatiza em sua obra A Religião das Máquinas a única
suposta vantagem que a humanidade teria sobre a máquina na clássica trama
humano versus máquina retratada no filme Matrix: a capacidade criativa.
Combinando essa colocação com os conceitos de máquina autopoiética, as quais
produzem continuamente componentes de si mesma e reproduzem seus próprios
limites, e as alopoiéticas, que produzem sempre algo outro, Guattari (2012)
problematiza a visão de Francisco Varela de que as máquinas autopoiéticas estejam
limitadas à biosfera, ignorando toda uma coletividade áltera e um conjunto de
relações diversas entre os organismos vivos. Guattari, contestando que sistemas
biológicos sejam puramente autônomos, inscreve a autopoiese então em um
contexto singular que remete diretamente a formação ciborguiana: “Considerar-se-á,
então, a autopoiese sob o ângulo da ontogênese e da filogênese próprias a uma
mecanosfera que se superpõe à bioesfera” (ibid, 2012).
É justamente sob essa ótica de entrecruzamento da mecanosfera e da
biosfera que um tipo de produtividade autonomizada se torna possível. Nessas
circunstâncias, cabe bifurcar adiante dois caminhos interpretativos que não se
anulam. O primeiro percurso transpassa uma perspectiva na esteira das
constatações de Ortega (2008). Nesse sentido, vale questionar se o
desaparecimento gradual da alteridade e das produções “outras” que dão
profundidade às subjetividades e ao mundo não está correlecionada à instalação do
maquinismo bioascético enquanto uma maquinação fundamentalmente
biotecnológica, que acaba se singularizando enquanto uma máquina autopoiética e
por conseguinte autoengendrada.
A segunda bifurcação, porém, percorre no sentido desenvolvido por Hari
Kunzru em um encontro com Donna Haraway. Nessa esteira de pensamento, o
entrecruzamento entre mecanosfera e biosfera discriminada na figura do ciborgue
pode servir como uma perspectiva de resistência ao engendramento de um
pensamento determinista em relação à natureza humana, de um discurso do “mundo
como ele é”. É possível, através dessa ótica, finalmente desmobilizar o discurso
conservador do ser cartesiano e retomar na mesma dança as rédeas do próprio
52
devir. Ser um ciborgue na visão de Haraway (2009), portanto, não tem
necessariamente a ver somente com próteses biônicas, melhoramentos
farmacológicos ou customizações corporais, mas sobretudo com a construtibilidade
da subjetividade e da corporeidade humana e a inserção já efetuada da vida em
uma ampla sistemática tecnológica.
Parece que, de alguma forma curiosa, os caminhos bifurcados voltam a se
entrecruzar no ponto acerca da construtibilidade subjetiva e corporal. De fato, a
consolidação de uma corpo-subjetividade moldável na atualidade parece ser uma
das principais evidências da superposição entre a biosfera e a mecanosfera. Talvez
esse seja o ponto mais crítico sobre o qual devem ser direcionadas as
problematizações e investigações de natureza ética-estética.
Se todos já somos, afinal de contas, ciborgues, senhores de nosso próprio vir
a ser corporal e subjetivo, resta partir então a descoberta de como fazer os melhores
usos desse poder prometeico que é “o poder de Deus” (FELINTO, 2005). A questão
que aqui sucede é, como pensar em aplicações responsáveis para a biotecnologia e
para as tecnologias de visualização corporal, como provoca Kunzru (2009, p. 24): “A
verdade é que estamos construindo a nós próprios, exatamente da mesma forma
que construímos circuitos integrados ou sistemas políticos - e isso traz algumas
responsabilidades”.
A convocação da responsabilidade parece ser recorrente nesse tema e
também é considerado um ponto de sensibilidade. Por um lado, o discurso do risco
visa constituir subjetividades autonomizadas e donas de seus próprios corpos,
implicando um deslocamento das responsabilidades compartilhadas e comunitárias
para um modelo “cada um por si”. Por outro, a integração das máquinas à
constituição da subjetividade e da corporeidade humana implica a possibilidade de
promover transformação conjunta, de provocar uma disrupção com uma
continuidade presumidamente natural das coisas “como são” e construir um futuro,
uma sociedade, um sistema político que melhor contemple a todos. Isso, sem
dúvida, também acaba implicando por sua vez numa certa responsabilidade por
como os maquinismos se articulam nos territórios existenciais e interagem com as
ecologias subjetivas, sociais e ambientais.
Vale destacar que essa retomada da responsabilidade consiste em resgatar
também a dimensão política das corporeidades e identidades. Nesse sentido, não se
trata de decidir em conjunto sobre a corporeidade ideal, ou finalmente modelizar
53
uma corporeidade que contemple a todos. Trata-se de reconhecer que “a
plasticidade de processos psíquicos e ciência e tecnologia estão integrados na
formulação de novas estratégias de governamentalidade” (LEIBING, 2004).
Diante disso, fica evidente que iniciar uma reterritorialização do corpo
enquanto território político é uma realização valorosa para frear a desintegração das
ecologias subjetivas, sociais e ambientais e começar uma reconstituição das
corporeidades contemporâneas. Considerando as formações subjetivas
melindrosas, inseguras e reativas características da biossociabilidade e da
bioascese no contexto da biotecnologia, politizar o corpo e libertar a subjetividade
da sua subserviência à gestão do corpo-objeto quer dizer transformar e desmantelar
toda uma máquina de produção de sofrimento psíquico e auto-violência.
O ciborgue e a dialética ciborguiana são consideráveis como ponto de
inflexão das articulações concretizadas por intermédio das maquinações e
agenciamentos técnico-científicos. A partir da suas ambiguidades, é possível refletir
tanto sobre a fundação de uma visão mais atual sobre a subjetividade e
corporeidade humana, que considere sua construtibilidade e escape de um
reducionismo darwiniano espelhado na relação natural versus artificial, quanto é
possível também perceber a urgência de superar a biologia do ponto de vista da
imparcialidade científica e resgatar sua agências políticas e filosóficas.

4. CONCLUSÕES

Diante do exposto, as cartografias do avatar parecem apontar então para uma


articulação de uma espécie de fantasma dos fluxos de positividade e negatividade
corporal. Ele é uma cifra mais ou menos isso, um limbo entre a corporeidade atual e
a corporeidade ideal assumida a partir de uma visão cultural. Ele é simultaneamente
efeito de um processo de autoconstrução e instrumento para essa autoconstrução.
Através dos processos de avatarização a subjetividade é externalizada e sintetizada
em uma simulação corporal, decodificável tanto para espectadores do âmbito social
e cultural, quanto para ele mesmo e para as tecnologias de mercado.
É certo que ele começa como uma projeção virtual positiva. Uma simulação
de potência de ser, mas que mesmo quando distinta de seu self criador, comunica
algo sobre as movimentações gerais da subjetividade e da corporeidade em um
amplo mapa relacional. Mas, se por um lado ele começa como uma projeção
54
positiva do self ele é também um processo negativo da organicidade do corpo. Para
ser projetado enquanto potência quase irrestrita de ser, é necessário antes negar a
materialidade biológica do corpo e incorporar um corpo-imagem absolutamente
customizável.
Do ponto de vista ecosófico, o avatar por si não está exclusivamente
submetido à reprodução da lógica bioascética, mas também nele se detectam
tentativas de recuperar o que foi perdido na instalação das práticas e tecnologias do
corpo: a profundidade de uma dimensão psicológica. Nesse sentido, tanto as
modificações corporais físicas como tatuagens e piercings quanto as práticas de
personalização online indicam canais alternativos de expressão que não podem ser
reduzidos às bioidentidades. Essas práticas demarcam de fato uma reconstituição
do corpo vivido e uma linha de fuga do corpo constituído enquanto objeto.
Essa recuperação do corpo vivido acontece através de práticas e
experiências sensoriais fundamentalmente distintas. No caso das modificações
físicas, a experimentação de sentidos e sentimentos negligenciados no contexto de
uma cultura extremamente visual e externalizada. Já no caso das personalizações
do avatar, a desvinculação do corpo material como o corpo real e a incorporação de
uma subjetividade que passa a existir fora de uma materialidade biológica. Apesar
de manifestados de maneira diferente, ambos podem apresentar como característica
o exercício da negação do ser subjetivo ou material para o resgate de um devir
nesses mesmos aspectos. .
A possibilidade de resgatar certa profundidade subjetiva incorporal não quer
dizer que essa seja a trajetória majoritariamente preferida no caso da avatarização
corporal. Dessa maneira, é preciso vislumbrar que um vínculo transversal é
estabelecido entre o self físico e o avatar, fazendo transitar a lógica da
autoconstrução nos dois sentidos. Melhor dizendo, a emergência do avatar como
figura central pra comunicabilidade contemporânea promove até certo ponto a
avatarização do corpo físico e sua inscrição na lógica da customização também,
intensificando a objetificação do próprio corpo como forma única de expressão
subjetiva.
Todavia, considerando a análise da literatura revisada neste presente estudo,
é possível visualizar uma predominância de tendências positivas e melhorantes do
self. Tanto nas investigações empíricas quanto nas teóricas, a ideia de migrar para
uma melhor versão de si e de gerir a própria imagem aparece como característica
55
fundamental das práticas empreendidas nos ciberespaços. Isso quer dizer que,
muito embora haja uma variância em como as articulações ocorrem, certamente o
corpo avatarizado está vinculado às maquinações bioascéticas e também inscrito na
lógica da biossociabilidade.
Além disso, o fenômeno do corpo avatarizado também possibilita a percepção
de diversos deslocamentos a respeito das modalidades práticas do ascetismo e da
sociabilidade no decorrer do curso histórico. Ele reflete, por exemplo, a mudança de
paradigma do ascetismo enquanto uma prática de liberdade, de consolidação de
uma liderança comunitária e de habilitação para a vida pública na cidade para uma
respaldada em suma por motivações privadas e competitivas. Assim, enquanto o
projeto ascético clássico contava ainda com uma reflexividade coletivizada, de
compartilhamento de modos de existir, o bioascetismo avatarizado se articula
através da autoreflexividade, do automonitoramento.
Ainda, parece existir um relacionamento sutil entre a ideologia securitária e o
corpo virtualizado. Além do ilimitado potencial de customização, incorporar um
avatar permite a construção de uma autoimagem simulada. Pensando a partir do
contexto da cultura de visualização instalada na atualidade, o entrelaçamento entre
o discurso do risco e a virtualização corporal parece integrar a articulação de uma
possível cultura de simulação. Em outros termos, a possibilidade de incorporar um
self virtual favorece que condutas perigosas sejam testadas e experimentadas
nesses espaços, onde não há risco real à integridade física e à vida. Estudos
empíricos como o realizado por Messinger et al. (2008) demonstraram que quanto
mais resguardado e prevenido é o self físico, mais seu self incorporado nos mundos
virtuais tende a uma conduta arriscada e agressiva.
É preciso dizer que a vida virtualizada é mais segura para uma ótica que
privilegia a proteção do corpo. É estimável que o fortalecimento de uma
discursividade do risco pode encorajar a transferência da experiência corporal
contemporânea para espaços virtuais. O desenvolvimento e a disseminação rápida
das tecnologias de simulação na cibercultura, que são cada vez mais realistas,
podem estar vinculados à possibilidade de proporcionar experiências simuladas
fisicamente seguras, muito embora estas sejam sensorialmente diferentes em
relação às que podem ser experimentadas fisicamente.
Ao mesmo tempo que uma ideologia securitária se fortalece e uma cultura
cada vez mais introjetada com a discursividade do risco é articulada, emergem
56
algumas ambiguidades em relação a práticas biotecnológicas e médicas muito
disseminadas na atualidade. Algumas das customizações mais comuns e mais
invasivas são, por exemplo, as próprias cirurgias plásticas, procedimentos estéticos
que visam modificar características físicas de pacientes, aproximando-os do corpo
almejado muitas vezes por intermédio de arriscadas interferências médicas.
É evidente que, considerando o engendramento já bem fixado dos padrões
violentos de corporeidade, especialmente contra corpos gordos, velhos e femininos,
que a possibilidade de sanar características consideradas desviantes e deficitárias
pela lógica da biossociabilidade, muitas vezes se coloca como uma solução para a
angústia de habitar um corpo marginalizado, como uma forma de atingir um
bem-estar em meio a uma cultura aversiva a corpos divergentes do modelo
hegemônico estabelecido.
A finalidade dessa problematização, porém, não é tratar a maleficidade ou
não das tecnologias cirúrgicas, mas de vislumbrar o que parece ser uma
relativização do risco quando este é tomado no contexto de adquirir uma forma
superior de corporeidade. Nesse pano de fundo onde muitas práticas são
ressignificadas como práticas de saúde, o risco ao consumir drogas recreativas e ao
possuir hábitos alimentares desbalanceados aparecem como mais alarmantes que o
risco oferecido por intervenções cirúrgicas e medicações psiquiátricas
potencialmente aditivas, por exemplo.
Esse tipo de questão está presente também ao tratar do ciborgue. Tomando
como ponto de partida essa formação fenomênica como vinculada à superposição
da biosfera e da mecanosfera, a constituição de um corpo híbrido também pode
estar pautada como uma estratégia de redução de risco. Quer dizer, a integração da
biosfera à mecanosfera característica da articulação ciborguiana é uma facilitadora
de processos de intervenção corporal. A temporalidade de transformação da
biosfera acontece em intervalos significativamente mais longos que na mecanosfera,
na qual manutenções e reconfigurações podem transformar máquinas com maior
agilidade e menor risco.
Por esse ângulo, a amalgamação entre as tecnologias e o corpo efetua
diversos tipos de catálise transformadora, produzindo novas temporalidades, novos
ritmos para o existir e, ao mesmo tempo, estabelecendo um canal de comunicação
entre a máquina biológica e os agenciamentos técnico-científicos, possibilitando uma

57
transferência de práticas antes utilizadas em máquinas inanimadas para as práticas
do corpo humano.
O corpo crescentemente virtualizado e colonizado pela mecanosfera parecem
então então nuances de um mesmo emaranhamento entre a biocultura e a
cibercultura. Considerando o corpo avatarizado e o ciborgue no contexto de suas
amplas cartografias, é evidente que ambos integram agenciamentos afins, mas
acabam parecendo muito distintos pela ótica da representação. Melhor dizendo, a
miopia de uma cultura exacerbadamente imagética pode perceber apenas que
essas expressões parecem diferentes, deixando escapar na maioria das vezes o
caráter coletivo de subjetivação, o total maquínico compartilhado que as produzem.
A partir dessa noção de produção subjetiva compartilhada destes
agenciamentos, evidenciada por meio de expressões fenomênicas ainda distintas
porém interconectadas aos mesmos sistemas produtivos e componentes de
subjetivação, é que fica possível acessar a proposta final deste trabalho: a noção de
que tanto o corpo avatarizado quanto o corpo semiorgânico discriminados nas
figuras do avatar do do ciborgue integram um movimento de profunda transformação
corporal e subjetiva na atualidade.
Após as investigações, fica nítido que o que está em disputa é mais que um
mero jogo de expressão identitária ou de interpelação ontológica a respeito do que é
o humano e do que é a máquina. O que vem sendo construído e engendrado nas
bases da subjetividade e da corporeidade coletiva é a própria construtibilidade do
humano. A autopoiese do humano, que organicamente depende de
desenvolvimentos filogenéticos demorados, é acessada e catalisada mediante o
acoplamento de uma diversa gama de mecanismos biotecnológicos e biomédicos.
As problematizações a respeito desses engendramentos partem daí. Se a
subjetividade e corporeidade humana são mais construtíveis que nunca, quais
modos de existir humano vêm sendo produzidos e disseminados em maior
proporção? A opção de trazer as investigações de Francisco Ortega para o estudo é
nesse sentido um posicionamento por si mesmo. As biotecnologias não são
imparciais, elas trazem consigo uma discursividade própria que favorece a
articulação de corporeidades características de subjetivações derivadas dos
agenciamentos técnico-científicos.
Considerar que a construtibilidade do humano é um instrumento de cisma
com uma perspectiva discursiva da “natureza como ela é”, de irreversibilidade das
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condições e formações subjetivas e corporais humanas, não implica ignorar que os
empreendimentos cibernéticos no corpo são majoritariamente voltados a melhorar o
humano enquanto potência de trabalho, em interferir em processos orgânicos como
artifício de manutenção e aperfeiçoamento da sistemática de produção e consumo.
A customização, a medicamentalização, a virtualização, a plastificação etc
não estão inseridas apenas em uma conjuntura neutra de construção da
subjetividade e da corporeidade. Elas estão vinculadas a tipos específicos de
construtibilidade, modalidades sobretudo individualizadas, encerradas em circuitos
retroativos e narcísicos de supressão das alteridades e de estimulação da cultura de
consumo. Elas são atravessadas por forças políticas e históricas e não estão
inteiramente dissociadas das maquinações capitalísticas do CMI e dos interesses
burgueses atrelados a elas.
Esses tipos de autoconstrução são precisamente reproduzidos nas práticas
de bioascese. As práticas bioascéticas mostram que o corpo contemporâneo é cada
vez menos o corpo vivido e cada vez mais configurado segundo a lógica da imagem.
O corpo avatarizado é o corpo que foi expropriado de sua dimensão subjetiva para
se tornar objeto das práticas de autogestão e de autoconstrução melhorantes dos
selfs.
O ciborgue, por sua vez, projeta a lógica da imagem para dentro. O corpo
robotizado e mecanizado comunica informações sobre sua performance em tempo
real. Ele permite ao self visualizar ele mesmo a parte invisível de seu corpo em
tempo real: taxas de glicose, de colesterol, carência ou excesso de nutrientes a ou b.
Ele é o próprio corpo transformado em uma interface dinâmica e monitorável,
remediando o risco a todo momento.
O corpo avatarizado é portanto o corpo cifrado enquanto o ciborgue é o corpo
decifrado, mas ambos operam segundo a lógica da cifra. O avatar pode aparecer
como uma imagem codificada de um self estimado, calculado mediante
computações algorítmicas inteligentes, um artifício aproximado que facilita a leitura e
a intervenção empreendida pelo biopoder e pelas demandas da cultura de consumo.
Da mesma forma que a ideologia securitária existe como conjuntura de apoio do
corpo avatarizado, o mesmo serve como instrumento de prevenção de risco para a
cultura de consumo, gerando informações sobre suas necessidades, hábitos e
desejos a todo momento e subsidiando o input informacional que sustenta a
exatidão das estratégias de mercado e minimiza os riscos dos investimentos.
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Talvez o ciborgue esteja menos vinculado à cultura de consumo e mais
conectado à cultura de performance e avaliação. Ele reproduz uma lógica de corpo
visível mesmo nas suas nuances organicamente ocultas e demarca a transposição e
o acoplamento da clínica ao corpo, poupando mesmo o tempo de ir ao médico e
liberando esse tempo para que o corpo continue produzindo e consumindo. O
ciborgue reflete um ímpeto transversal de superação da condição humana enquanto
condição mortal e de risco.
Uma variedade de sofrimentos estão associados a esses deslocamentos
subjetivos em relação à corporeidade humana. Romper com o paradigma do
corpo-objeto e reconstruir a corporeidade humana em harmonia com as três
ecologias é pavimentar o caminho para processos de subjetivação, inclusive
comunicacionais, mais humanizados e éticos. O efeito desses deslocamentos
subjetivos e da reterritorialização política que urge no contexto da sociedade atual
está longe de ser meramente uma revisão sobre a construção de uma personagem
representada, mas é significativa para promover uma ampla transformação e
resgatar uma variedade extensa de corpos marginalizados e de sofrimentos
subjetivos engendrados a partir da sistemática tecnobiomédica.
Por fim, não cessam de surgir uma série de problematizações de cunho
ético-estético. Indagações e provocações para possíveis futuros trabalhos.
Primeiramente, seria possível propor intervenções visando ampliar a
conscientização da sociedade a respeito dos engendramentos nocivos estabelecidos
pelas bioasceses e pela biossociabilidade? Quais são as dimensões do impacto da
experiência contemporânea do corpo virtualizado para a comunicabilidade humana
de uma maneira geral?
Por último, de quais formas se pode empreender uma reterritorialização
política da subjetividade e do corpo? Considerando a ideia do corpo
computadorizado e das ideologias de preservação, como promover uma intervenção
ético-estética inspirada no vírus para penetrar a sistemática maquínica bioascética e
desconstruir de dentro pra fora seus engendramentos subjetivos?
Essas são algumas perguntas que podem abrir o caminho para pensarmos
outras perspectivas de subjetivação e até novos vislumbres a respeito de práticas e
ações comunicacionais que considerem esse panorama experiencial híbrido da
contemporaneidade. Fica, por fim, esta provocação de continuar e disseminar a
utilização da ótica cartográfica para estudos em subjetividade e comunicação.
60
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