C S Lewis - Cristianismo Puro e Simples
C S Lewis - Cristianismo Puro e Simples
C S Lewis - Cristianismo Puro e Simples
Será que posso começar mais uma vez colocando duas imagens, ou, melhor,
duas histórias, na sua cabeça? Uma é a história que todos vocês já leram,
chamada A Bela e a Fera. A moça, como vocês devem se lembrar, teve de se
casar com um monstro por alguma razão, e ela o fez. Ela o beijou como se fosse
um ser humano. E então, para o seu alívio, ele se transformou em um homem de
verdade e tudo ficou bem. A outra história é sobre alguém que teve de usar uma
máscara; uma máscara que fazia com que ele tivesse uma aparência muito
melhor do a que realmente tinha. Ele teve de usá-la por anos a fio, e, quando ele
a retirou, descobriu que a sua face havia se conformado com ela, e ele então
havia ficado bonito de verdade. O que começou com um disfarce havia se
tornado uma realidade. Acredito que ambas as histórias (é claro que de uma
forma imaginativa) ajudam a ilustrar o que eu tenho a dizer neste capítulo. Até
agora, estive tentando descrever fatos — o que Deus é e o que ele fez. Agora,
gostaria de falar sobre a prática — o que devemos fazer com isso? Que diferença
faz toda essa Teologia? Ela pode começar a fazer diferença hoje à noite. Se você
teve interesse suficiente para ter lido até aqui, provavelmente também terá
interesse suficiente para fazer uma pausa para suas orações e, entre as suas
preces, certamente haverá o Pai-nosso.
As duas primeiras palavras são Pai nosso. Você vê agora o que essas palavras
significam? Elas significam que você está, francamente, assumindo o papel de
um filho de Deus. Para colocá-lo de forma direta, você está se vestindo de
Cristo. E se quiser colocá-lo em outras palavras, você está fazendo de conta.
Porque, é claro que no momento em que você se conscientiza do que as palavras
significam, se dá conta de que não é filho de Deus. Você não é um ser como o
Filho de Deus, cuja vontade e cujo interesse estão em harmonia com os do Pai;
você é um emaranhado de medos egocêntricos, de esperanças, de ganâncias, de
invejas e de presunção, fadados à morte. Sendo assim, de certa forma esse vestir-
se de Cristo é um tremendo atrevimento, o mais estranho, entretanto, é que ele
nos mandou fazer isso.
E por qual motivo? Qual a vantagem de fazer de conta que somos o que não
somos? Bem, mesmo no nível humano, há dois tipos de faz de conta. Há o tipo
ruim, em que o fingimento está substituindo a coisa real — por exemplo, quando
uma pessoa faz de conta que vai ajudá-lo em vez de fazê-lo de verdade. Mas
também há um tipo bom, em que o simulado leva à coisa real. Quando você não
está se sentido particularmente amigável, mas sabe que o deve ser, a melhor
coisa que pode fazer, muitas vezes, é assumir modos gentis e se comportar como
se fosse uma pessoa mais legal do que realmente é. Muitas vezes, a única forma
de desenvolver realmente uma qualidade é começar a se comportar como se você
já a tivesse. Esse é o motivo pelo qual os jogos infantis são tão importantes. As
crianças sempre fazem de conta que são adultas — brincando de serem soldados,
de irem ao supermercado, mas todo esse tempo elas estão fortalecendo os
músculos e aguçando a inteligência, de modo que o faz-de-conta de serem
adultas as ajuda a crescer de verdade.
Agora, no momento em que você se dá conta do “Olha eu aqui, me vestindo
de Cristo”, é bem provável que, naquele mesmo instante, enxergue alguma
maneira de tornar aquele faz de conta menos fingimento e mais realidade. Várias
coisas vão passar pela sua cabeça que não estariam lá se você fosse um filho de
Deus de verdade. Bem, então pare de ficar pensando nessas coisas. Ou você
poderá se dar conta de que, em vez de fazer suas orações, deveria estar lá
embaixo escrevendo uma carta ou ajudando sua esposa a lavar a louça. Bem,
então faça isso.
Você percebe o que está acontecendo? Cristo em pessoa, o Filho de Deus, que
é um ser humano (igualzinho a você) e Deus (igualzinho ao Pai) está realmente
ao seu lado e já está começando, naquela mesma hora, a tornar o seu faz de conta
uma realidade. Essa não é uma simples forma simbólica de dizer que sua
consciência está lhe dizendo o que fazer. Se você simplesmente lhe fizer uma
pergunta, obterá um resultado; se você lembrar que está se vestindo de Cristo, o
resultado obtido será diferente. Sua consciência pode não considerar muitas
coisas “erradas” (especialmente coisas que se passam na sua cabeça), mas você
verá imediatamente que não pode continuar fazendo-as se busca seriamente ser
como Cristo. Pois você já não estará pensando simplesmente sobre o certo e o
errado, mas sim tentando contrair o bom contágio de uma Pessoa. Isso se parece
mais com a pintura de um quadro do que com a obediência a regras, e o curioso
é que, enquanto, por um lado, isso é mais difícil do que obedecer às regras, por
outro é bem mais fácil.
O verdadeiro Filho de Deus está do nosso lado e está começando a nos tornar
no que ele mesmo é. Ele está começando, por assim dizer, a “injetar” seu tipo de
vida e pensamento, sua Zoé, em você; começando a transformar o soldadinho de
chumbo em um homem vivo. A parte de você que não gosta disso é a que segue
sendo de chumbo.
Alguns de vocês podem sentir que isso nada tem a ver com sua própria
experiência. Você poderia dizer: “Nunca tive a sensação de ser ajudado por um
Cristo invisível, mas já recebi muita ajuda de outros seres humanos”. Isso é bem
parecido com a mulher, durante a Primeira Guerra, que disse não se importar se
houvesse um racionamento de pão, pois isso não atingiria a casa dela, visto que
costumavam comer torradas. Ora, se não houver pão, não haverá torradas. Sem a
ajuda de Cristo, não haveria a ajuda de outros seres humanos. Ele trabalha em
nós por todos os meios, não apenas por intermédio do que acreditamos ser nossa
“vida religiosa”. Ele trabalha por meio da natureza, por meio dos nossos próprios
corpos, por meio de livros, às vezes, por meio de experiências que parecem
(naquela hora) anticristãs. Quando um jovem que esteve frequentando a igreja de
forma rotineira se dá conta honestamente de que não crê mais no cristianismo e
para de frequentar as reuniões — desde que ele o faça de forma honesta e não
para irritar os seus pais —, o espírito de Cristo provavelmente estará mais perto
dele do que estava antes. Mas, acima de tudo, ele trabalha em nós por intermédio
da colaboração de uns com os outros.
Os seres humanos são espelhos ou “portadores” de Cristo para os outros. Às
vezes, são portadores inconscientes. Esse “bom contágio” pode ser transmitido
por aqueles que não o receberam — pessoas que não eram cristãs me ajudaram a
chegar ao cristianismo —, mas normalmente são aqueles que o conhecem que
conduzem os outros até ele.
É por esse motivo que a Igreja, o corpo completo de cristãos que o exibem uns
aos outros, é tão importante. Você pode até dizer que quando dois cristãos estão
seguindo a Cristo juntos, não há apenas o dobro de cristianismo no
relacionamento deles do que quando eles estavam separados, mas dezesseis
vezes mais.
Mas não esqueça: em um primeiro momento, é natural para um bebê mamar o
leite de sua mãe sem de fato conhecê-la; também é igualmente natural para nós
reconhecermos a pessoa que nos ajuda sem enxergar Cristo por trás dela. Mas
não devemos seguir na condição de bebês. Temos de passar a reconhecer o nosso
Doador real. Seria loucura não o fazer porque, se não o fizermos, estaremos
confiando em seres humanos, e isso vai nos levar para o mau caminho. Por
melhores que eles possam ser, estão fadados a cometer erros; e todos eles vão
morrer. Temos de ser gratos a todas as pessoas que já nos ajudaram, temos de
honrá-las e amá-las, mas nunca, jamais devemos depositar toda a nossa fé em
qualquer ser humano, nem que ele seja o melhor e o mais sábio do mundo. Há
muitas coisas legais que se pode fazer com a areia, mas não tente construir uma
casa sobre ela.
A partir daí, começamos a entender do que o Novo Testamento está falando.
Ele fala sobre cristãos que são “nascidos de novo”, orientando-os a “revestirem-
se de Cristo”; fala de Cristo “sendo formado em nós” e de como passamos a “ter
a mesma mente de Cristo”.
É bom você tirar logo da sua cabeça a ideia de que essas são apenas formas
simbólicas de dizer que os cristãos devem ler e aplicar o que Cristo disse à
própria vida — como uma pessoa que lê Platão ou Marx e tenta pôr em prática o
que eles escreveram. O Novo Testamento significa muito mais do que isso. Ele
está querendo dizer que uma pessoa real, o Cristo presente aqui e agora, naquele
mesmo quarto em que você está fazendo suas orações, está fazendo algo por
você. Não se trata de um bom homem que morreu dois mil anos atrás. Trata-se
de um homem vivo, tão ser humano quanto você e eu, e, ao mesmo tempo, tão
divino quanto era quando criou o mundo, vindo realmente e interferindo no seu
eu interior; matando o velho eu natural e substituindo-o pelo tipo de
personalidade que ele tem. No início, apenas por instantes, mas, depois, por
períodos mais longos. Por fim, se tudo correr bem, ele o transforma
permanentemente em algo diferente; em um novo pequeno Cristo, um ser que, à
sua própria maneira reduzida, tem o mesmo tipo de vida que emana de Deus;
partilhando de seu poder, de sua alegria, de seu conhecimento e de sua
eternidade. E, com isso, faremos imediatamente outras duas descobertas.
1) Começamos a perceber nossa pecaminosidade para além de nossos atos
pecaminosos particulares; começamos a ficar alarmados não apenas com o que
fazemos, mas com o que somos. Isso pode soar bem difícil de compreender,
então, vou tentar esclarecê-lo a partir do meu próprio caso. Quando chega a hora
das minhas orações noturnas e tento prestar contas dos pecados do dia, noventa
por cento das vezes o mais óbvio é algum pecado contra a caridade: ou fiquei
irritado, ou agoniado, ou fui debochado, ou prepotente, ou impetuoso. E a
desculpa que imediatamente me vem à mente é que a provocação foi tão súbita e
inesperada que fui pego desprevenido e não deu tempo de me controlar. Mas
essa pode ser uma circunstância atenuante com relação àqueles comportamentos
específicos que obviamente seriam piores se tivessem sido deliberados e
premeditados. Por outro lado, o que uma pessoa faz quando é pega desprevenida
não é a melhor prova do que ela é de verdade? Será que aquilo que vem à tona
antes de a pessoa ter tempo de pôr a sua máscara não é a mais pura verdade? Se
há ratos no porão, você tem mais probabilidade de vê-los se entrar de supetão.
Mas não é a surpresa que cria os ratos, ela apenas os impede de se esconder. Da
mesma forma, a surpresa da provocação não me torna um homem irascível; ela
apenas me mostra que homem irascível eu realmente sou. Os ratos estão sempre
ali, no porão, mas se você entrar gritando e fazendo barulho, eles terão
encontrado abrigo antes mesmo de você ligar a luz. Aparentemente os ratos do
ressentimento e da vingança estão sempre lá no porão da minha alma. Agora, o
porão está fora do alcance da minha vontade consciente. Tenho condições de
controlar os meus atos até certo ponto: o que não tenho é o controle direto sobre
o meu temperamento. E se (como eu disse antes) o ser importa até mais do que o
fazer — se, aliás, o que fazemos importa principalmente como evidência do que
somos —, então concluímos que a transformação pela qual eu mais estou
precisando passar é uma mudança que nossos próprios esforços diretos,
voluntários, não podem provocar. E isso também se aplica às minhas boas ações.
Quantas delas foram feitas pelos motivos certos? Quantas por medo da opinião
pública ou desejo de me mostrar? Quantas por uma espécie de obstinação ou
senso de superioridade que, em circunstâncias diferentes, poderiam igualmente
ter levado a algum ato muito maldoso? Mas eu não posso, por um esforço moral
direto, proporcionar novos motivos a mim mesmo. Depois dos primeiros passos
na vida cristã, nós nos damos conta de que tudo o que realmente precisa ser feito
em nossas almas só pode ser feito por Deus, e isso nos conduz a algo que pode
ter levado a muitos mal-entendidos na linguagem que empreguei até agora.
2) Da forma como eu me expressei até agora, pode parecer que somos nós que
fazemos tudo. No entanto, está claro para mim que é Deus que faz tudo. O
máximo que fazemos é permitir que Deus aja. De certo modo, você pode até
dizer que o faz de conta é Deus quem realiza. O Deus tripessoal, por assim dizer,
vê diante de si um animal humano que, na verdade, é egocêntrico, ganancioso,
resmungão e rebelde. Mas ele diz: “Vamos fazer de conta que essa não é uma
mera criatura, mas nosso Filho. Ele é como Cristo, visto que é um ser humano, já
que o Filho se tornou Homem. Vamos fazer de conta que esse filho também é
igual a ele em espírito. Vamos tratá-lo como se fosse algo que, na verdade, não é.
Vamos fazer de conta para transformar o faz de conta em realidade”. Deus olha
para você como se você fosse um pequeno Cristo, e Cristo está do seu lado para
operar essa transformação. Ouso dizer que essa ideia do faz de conta divino soa
bem estranha no começo, mas será que é realmente tão estranha? Não é sempre
assim que as coisas superiores alcançam as inferiores? Uma mãe ensina o seu
bebê a falar falando com ele, como se ele entendesse, muito antes de ele
realmente o fazer. Tratamos nossos cachorros como se eles fossem “quase
humanos”, e é nisso que acabam se tornando no final.