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Dissertação - NORMALIZADA Paula Travancas

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Faculdade de Educação

Paula Rozenberg Travancas

Mais que eventos de animê:


da cultura pop japonesa à cultura pop mundial

Rio de Janeiro
2017
Paula Rozenberg Travancas

Mais que eventos de animê:


da cultura pop japonesa à cultura pop mundial

Dissertação apresentada como requisito parcial


para obtenção do título de Mestre, ao Programa
de Pós-Graduação em Comunicação Social, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área
de concentração: Cultura de Massa, Cidade e
Representação Social.

Orientadora: Profa. Dra. Cíntia SanMartin Fernandes

Rio de Janeiro
2017
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

T779 Travancas, Paula Rozenberg.


Mais que eventos de animê: da cultura pop japonesa à cultura pop mundial/
Paula Rozenberg Travancas. – 2017.
141 f.

Orientadora: Cíntia SanMartin Fernandes.


Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Faculdade de Comunicação Social.

1. Comunicação Social – Teses. 2. Anime – Teses. 3. Eventos – Teses. I.


Fernandes, Cíntia SanMartin. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Faculdade de Comunicação Social. III. Título.

es CDU 316.77

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
dissertação, desde que citada a fonte.

___________________________________ _______________
Assinatura Data
Paula Rozenberg Travancas

Mais que eventos de animê:


da cultura pop japonesa à cultura pop mundial

Dissertação apresentada como requisito parcial


para obtenção do título de Mestre, ao Programa
de Pós-Graduação em Comunicação Social, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área
de concentração: Cultura de Massa, Cidade e
Representação Social.

Aprovada em 21 de fevereiro de 2017.

Banca Examinadora:

_______________________________________________________
Profa. Dra. Cíntia SanMartin Fernandes (Orientadora)
Faculdade de Comunicação Social – UERJ

_______________________________________________________
Prof. Dr. João Luis de Araújo Maia
Faculdade de Comunicação Social – UERJ

_______________________________________________________
Prof. Dr. Micael Maiolino Herschmann
Escola de Comunicação – UFRJ

Rio de Janeiro
2017
DEDICATÓRIA

A meus pais,
por tudo.
AGRADECIMENTOS

A meus pais, pelo amor e apoio incondicionais, especialmente nos momentos em que
eu mais preciso. Eu não poderia inventar pais melhores mesmo se eu tentasse. À minha mãe,
Riva Rozenberg, por sempre saber ir me guiando de mansinho pro caminho que eu quiser. A
meu pai, Paulo, cuja mente sui generis me municiou do léxico e da curiosidade que
permitiram buscar um caminho em meio às palavras.
A meu irmão, Simon, pelo ânimo indomável e pela tenacidade inabalável que
reverberam nas paredes de casa e ecoam no meu coração (metafórico, é claro). E pela chatice.
A Rodrigo Estevam, meu eterno companheiro e melhor amigo, cujo amor, dedicação e
infinita paciência estão por trás de cada palavra dessa dissertação.
A minha avó Billa, por ser uma mulher inspiradora e por sempre me querer tão bem.
A minha orientadora e amiga, Cíntia Sanmartin Fernandes, por ter me mostrado que
toda pesquisa é feita tanto de encontrar caminhos como de nos perder neles, tanto de dados
que colhemos como das relações que semeamos. Sua presença calorosa radia tão intensamente
que me admira que ela consiga enxergar tão bem o cintilar dos mais delicados vagalumes.
A Leila, cujo carinho supera os laços de sangue, por me entender e me mostrar que há
como viver e prosperar no território que só pessoas como nós habitamos.
A Vitor “Tensai” Nascimento e Arthur “Art” Montoya, por me provarem todo dia que
o virtual é muito real sim, senhor, e que palavras numa tela e memes bobos podem se
transformar em amizade, afeto e presença.
Ao meu primo Dan, que infelizmente nos deixou (para ir morar nos Estados Unidos),
mas cujo humor inigualável que nunca deixará de fazer parte de quem eu sou. E por um dia
ter dito “Ei, Paula, já ouviu falar num negócio chamado ‘animê’?”.
RESUMO

Travancas, Paula Rozenberg. Mais que eventos de animê: da cultura pop japonesa à cultura
pop mundial. 2011. 143f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Faculdade de
Comunicação Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

Atualmente, os produtos da cultura pop japonesa têm um público consumidor


consolidado no Brasil, com cada vez mais pessoas tomando gosto pelos desenhos animados e
histórias em quadrinhos japoneses. Muito mudou desde os “longínquos” anos 1990, década
em que os animês se tornaram febre nacional. Os otakus da época, termo pelo qual hoje são
conhecidos os fãs da cultura pop japonesa, tinham que se desdobrar para assistir mais do que
as poucas produções nipônicas exibidas na televisão brasileira. Devido à dificuldade de ter
acesso a fitas cassete de animês, os otakus da década de 1990 se organizavam em clubes e
promoviam exibições de animações japonesas, ocasiões que também serviam para conhecer
outros fãs da cultura pop japonesa. Tais exibições deram origem aos eventos de animê,
encontros que passaram a oferecer diversas outras atividades além das sessões de exibição. A
fórmula básica dos eventos parece à primeira vista ter se mantido a mesma nos últimos 20
anos, se levarmos em conta sua estrutura básica de palco com atrações, atividades para os
frequentadores participarem e estandes vendendo produtos variados. Mas um exame mais
minucioso da programação desse tipo de convenção, além da fala de frequentadores antigos e
atuais, revela a complexidade do jogo de mudanças e permanências sobre o qual que se
debruça a presente dissertação, que tem como objetivo entender o que é um evento de animê
hoje, quem o frequenta e por quê. Para tanto, foram investigados os processos que ocorreram
ao longo do tempo para que chegassem à sua configuração atual e quais foram as causas e
consequências das mudanças identificadas. A hipótese que norteou essa investigação foi a de
que as mudanças nos eventos de animê têm relação com as transformações nos modos de
consumo e engajamento dos brasileiros com a cultura pop japonesa e com a cultura pop em
geral. O modo de investigação eleito foi a pesquisa de campo, de inspiração etnográfica,
consistindo em observação participante em eventos do Rio de Janeiro e de São Paulo,
entrevistas em profundidade com frequentadores, ex-frequentadores e organizadores de
eventos. Foi feita uma triangulação de fontes, dentre as quais: revistas especializadas, posts e
sessões de comentários de blogs especializados, podcasts e comentários em redes sociais. Para
a pesquisa da história dos eventos de animê, foi utilizada a ferramenta Internet Archive.
Concluímos que a popularização da internet facilitou o acesso a animês, o que fez com que as
exibições de animê perdessem espaço nos eventos, que se tornaram multitemáticos, atraindo
diversas tribos urbanas além dos otakus. Se no começo os eventos se autodefiniam como
“eventos de cultura pop japonesa”, hoje são apenas “eventos de cultura pop”. Com a ascensão
dos youtubers como atrações principais, por volta de 2014, cada vez mais eventos se
assumiram como direcionados ao público geek. Os eventos hoje são mais que eventos de
animê e estão mais fortes do que nunca, sendo um local de confraternização de fãs de diversos
aspectos da cultura pop mundial.

Palavras-chave: Eventos de Cultura Pop. Eventos de Animê. Otakus. Geeks. Tribos Urbanas.
ABSTRACT

Travancas, Paula Rozenberg. More than Anime Conventions: from Japanese pop cultura to
Global pop culture. 2011. 141 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social) – Faculdade
de Comunicação Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

Nowadays, Japanese pop culture products have a consolidated consumer base in


Brazil, with more and more people taking liking for Japanese cartoons and comics. Much has
changed since the "distant" 1990s, a decade when anime have become a national fever. The
otaku of the time, the term by which fans of Japanese pop culture are known today, had to
make great efforts to watch more than the few Japanese shows that were broadcast on
Brazilian television. Due to the difficulty of acquiring anime recorded on cassette tapes, the
otaku of the 1990s started fanclubs that offered screenings of Japanese animations, gatherings
which were also good to meet other fans of Japanese pop culture. Such screenings gave rise to
anime conventions, meetings that went on to offer several other activities besides screenings.
The basic formula of these conventions seems, at first glance, to have remained the same for
the last 20 years, if we consider the structure of a stage with attractions, activities for
attendees and booths selling varied products. But a closer examination of the programming of
this type of convention, in addition to interviews with old and current convention regulars,
reveals the complexity of changes and continuities discussed by this dissertation, which
intends to understand what are anime conventions today, who attends them and why. In order
to do so, we investigated the processes that occurred over time that led them to their current
configuration and what were the causes and consequences of the changes that were identified.
The hypothesis that guided this investigation was that the changes in the anime conventions
relate to the changes in the modes of consumption and engagement of Brazilians with
Japanese pop culture and with pop culture in general. The method chosen was field research,
with ethnographic inspiration, consisting of participant observation at events in Rio de Janeiro
and São Paulo, in-depth interviews with convention goers, former goers and convention
coordinators. A triangulation of sources included niche magazines, blog posts and comments
sections, podcasts and comments on social networks. To search the history of anime
conventions, the Internet Archive tool was used. We concluded that the popularization of the
internet facilitated the access to anime, which made that anime screenings lose space in the
conventions, which became multi-thematic, attracting diverse urban tribes besides the otaku.
In the beginning the conventions defined themselves as "Japanese pop culture conventions",
but today they are only "pop culture conventions". With the rise of youtubers as major
attractions, around 2014, more and more conventions have shifted to being targeted at geek
audiences. Brazilian conventions today are more than just anime conventions and they are
stronger than ever, gathering for fans of very diverse aspects of global pop culture.

Keywords: Pop Culture Conventions. Anime Conventions. Otaku. Geek. Urban Tribes.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Mangá e bonecos de Evangelion ............................................................................. 14


Figura 2 – Hokusai Mangá ....................................................................................................... 28
Figura 3 – Primeira tirinha com personagens fixos .................................................................. 29
Figura 4 – Mangá de início de carreira de Tezuka ................................................................... 31
Figura 5 – Formatos de mangá ................................................................................................. 32
Figura 6– Tetsuwan Atomu (Astro Boy) ................................................................................... 33
Figura 7 – Mangá da seita Aum Shinrikyo ................................................................................ 36
Figura 8 – Turma da Mônica e Osamu Tezuka ........................................................................ 40
Figura 9 – National Kid e Speed Racer .................................................................................... 43
Figura 10– Exposições ............................................................................................................. 45
Figura 11 – Folheto Quadrimania ............................................................................................. 47
Figura 12 – Mangácon II, em 1997 .......................................................................................... 49
Figura 13 – Animecon 1999 ..................................................................................................... 52
Figura 14 – Palco principal....................................................................................................... 54
Figura 15 – Área de estandes .................................................................................................... 55
Figura 16 – Mapa de evento ..................................................................................................... 56
Figura 17 – Fila do Animecon 2000 ......................................................................................... 57
Figura 18 – Estandes no Animecon 2000 ................................................................................. 58
Figura 19 – Estandes no Animecon 2007 ................................................................................. 58
Figura 20 – Estande de livraria japonesa no Animecon 2001 .................................................. 60
Figura 21 – Estande da editora brasileira JBC no Animecon 2002 .......................................... 60
Figura 22 – Palco principal do Animecon 2001 ....................................................................... 61
Figura 23 – Exibição de animê em telão no Animecon 2006 ................................................... 63
Figura 24 – Exibição de clube no Animecon 2007 .................................................................. 63
Figura 25 – Venda de fitas VHS no Animecon 2003 ............................................................... 64
Figura 26 – Concurso de cosplay em frente ao telão................................................................ 65
Figura 27 – Exposição de desenhos no Animecon 2001 .......................................................... 66
Figura 28 – Videogames no Animecon 2001 ........................................................................... 67
Figura 29 – Videogames no Anime Friends 2016 .................................................................... 67
Figura 30 – Mapa do Animecon 2010 ...................................................................................... 72
Figura 31 – Cancelamento do convidado Vitinho “Sou Foda” ................................................ 74
Figura 32 – Cartazes do Anime Friends ................................................................................... 76
Figura 33– Cartazes do Anime Friends .................................................................................... 78
Figura 34– Saturação visual nos eventos .................................................................................. 81
Figura 35 – Flyers do HaruCon ................................................................................................ 83
Figura 36 – Logomarcas do Anibahia em 2011 e 2016 ............................................................ 83
Figura 37 – Japonesidade na comunicação visual do Rio Anime Club.................................... 84
Figura 38 – Evento sem youtuber ............................................................................................. 85
Figura 39 – Flyers de evento de animê e de evento geek ......................................................... 87
Figura 40 – Grupo de cosplayers .............................................................................................. 92
Figura 41 – Cosplays e gênero ................................................................................................. 93
Figura 42 – Animekê ................................................................................................................ 95
Figura 43 – K-pop covers ......................................................................................................... 98
Figura 44 – Videogames de dança ............................................................................................ 99
Figura 45 – Just Dance no Rio Geek Zone 2015 ................................................................... 100
Figura 46 – Combate medieval no Rio Geek Zone 2015 ....................................................... 103
Figura 47 – Plaquinha de balão de fala................................................................................... 107
Figura 48 – Plaquinhas com contagem ................................................................................... 108
Figura 49 – Plaquinhas de convite.......................................................................................... 109
Figura 50 – “Plaquinha” colaborativa .................................................................................... 110
Figura 51 – Kaomojis ............................................................................................................. 111
SUMÁRIO

CONSIDERAÇÕES INICIAIS ................................................................................. 10


1 DOS MANGÁS NO JAPÃO AOS EVENTOS DE ANIMÊ NO BRASIL ............ 26
1.1 Mangás ......................................................................................................................... 26
1.2 Animês ......................................................................................................................... 32
1.3 Surgimento dos otakus no Japão ............................................................................... 34
1.4 O quão japoneses são animês e mangás? .................................................................. 37
2 TRANSFORMAÇÕES NOS EVENTOS DE ANIMÊ ............................................ 42
2.1 Chegada da cultura pop japonesa ao Brasil e os precursores dos eventos ............ 42
2.2 Os primeiros eventos de anime .................................................................................. 47
2.3 A fórmula ..................................................................................................................... 53
2.4 Mudanças nos eventos de animê por atividade ........................................................ 57
2.5 Mudanças gerais nos eventos de anime .................................................................... 67
2.6 Surgimento dos eventos geeks .................................................................................... 72
3 CORPO E SOCIALIDADE NOS EVENTOS DE ANIMÊ .................................... 88
3.1 Participação e performance dos frequentadores ..................................................... 88
3.1.1 Cosplay ......................................................................................................................... 91
3.1.2 Animekê ........................................................................................................................ 94
3.1.3 K-pop covers ................................................................................................................. 96
3.1.4 Videogames de dança .................................................................................................... 99
3.1.5 Combate medieval ...................................................................................................... 101
3.2 Roupas, comunicação e pertencimento ................................................................... 104
3.3 Plaquinhas ................................................................................................................. 105
3.4 Otakus, geeks, fãs ...................................................................................................... 112
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 122
REFERÊNCIAS ........................................................................................................ 126
10

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Eu sou eu. Tornei-me eu pela instrumentabilidade das ligações e


relacionamentos entre mim e os outros. Sou formada pela interação
com os que me compreendem. Estes relacionamentos com os outros
servem para mudar os padrões de meu coração.
Neon Genesis Evangelion

Foi-se o tempo em que qualquer menção a animês ou mangás em textos acadêmicos


ou na mídia tradicional precisava ser prefaciada por longas explicações sobre o que são as
animações e histórias em quadrinhos japonesas e seus heróis de “olhos grandes, pernas
compridas e cabelos esvoaçantes1”. O Japão, ou ao menos esse aspecto de sua indústria de
entretenimento, não só é pop, como mainstream.
Assistir animês e ler mangás fica mais fácil a cada dia, tanto para fãs dedicados quanto
para públicos mais casuais. Hoje, basta entrar em qualquer banca de jornal ou livraria para
encontrar uma crescente variedade de mangás. O acervo do serviço de streaming Netflix já
oferece dezenas de títulos de animês, que o assinante pode ver dublados em português ou com
áudio original japonês. A organização e a profissionalização cresceram também no mundo dos
fansubs e das scanlations, traduções não-autorizadas de animês e mangás, respectivamente,
feitas por fãs e disponibilizadas gratuitamente na internet (CARLOS, 2011; URBANO, 2013).
Muito mudou desde os “longínquos” anos 1990, década em que os animês se tornaram
febre nacional. Os otakus da época, termo pelo qual hoje são conhecidos os fãs da cultura pop
japonesa, tinham que se desdobrar para assistir mais do que as poucas produções nipônicas
exibidas na televisão brasileira. Ávidos por mais animês e tokusatsu2, precisavam recorrer a
fitas VHS, muitas vezes sem legenda, obtidas em um número seleto de locadoras
especializadas ou copiadas de amigos (MACHADO, 2009).
O avanço das tecnologias de edição e a popularização da internet aos poucos
conectaram os fãs em redes de tradução e distribuição não oficiais de animês e,

1
Extraído de trecho do programa Globo Repórter, de 1996, encontrado online, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=tosgSltAE6M

2 Filmes ou séries de efeitos especiais com atores reais, normalmente sobre super-heróis, monstros e robôs.
Alguns dos tokusatsu de sucesso no Brasil foram National Kid, Jaspion, Changeman e Ultraman.
11

posteriormente, de mangás. Ainda assim, não eram muitas as pessoas que sabiam dessas redes
alternativas de consumo, e menos ainda tinham o hardware e os conhecimentos técnicos para
baixar e fazer rodar animês no computador. Havia ainda menos pessoas que obtinham,
traduziam e disponibilizavam o material online, procedimentos que exigiam ainda mais know
how tecnológico e social.
Devido a todos esses percalços para ter acesso aos animês, os otakus da década de
1990 se organizavam em clubes e promoviam exibições de animê, que também serviam como
lugar para conhecer outros fãs da cultura pop japonesa. Tais exibições deram origem aos
eventos de animê, encontros que passaram a oferecer, além das sessões de desenhos animados
e tokusatsu, outras atrações como “estandes” (na verdade, incialmente, apenas mesas
vendendo produtos) e shows de bandas tocando músicas de tokusatsu e animê
(CAVALCANTE, 2008).
De encontros de algumas centenas de pessoas, esses eventos cresceram e se
multiplicaram, passando a ocorrer com regularidade em todo o país. O Anime Friends, maior
evento do gênero na América Latina, chega a atrair mais de 100 mil pessoas em seus seis dias
de programação (MACHADO, 2009). Mas desde o Mangácon de 1996, considerado o
primeiro evento de animê “propriamente dito” do Brasil e não mais apenas uma sessão de
exibição de animê, houve mudanças não só quantitativas como também qualitativas nos
eventos, as quais se relacionam aos modos de consumir animês e mangás, à sua popularização
e status de mainstream, além de vários outros fatores que daí decorrem.
Não existem dados sobre a quantidade de eventos no país, mas Sérgio Peixoto, criador
e organizador do Animecon, evento que foi por anos o maior do Brasil e de fundamental
importância no estabelecimento da fórmula dos eventos de animê, estima que

Sérgio Peixoto: Nós devemos ter uma média de 200 a 300 eventos que acontecem
em todo o Brasil [...] que se dizem para fãs de anime e mangá ou correlatos. Se a
gente for incluir correlatos, por exemplo, encontros de fãs de Star Wars, encontros
de fãs quadrinhos, encontros de fãs de RPG, que na verdade todos eles acabam
usando quase que a mesma estrutura que havia no Animecon, a gente passa de 500
(dito no podcast SANTOS et al., 2016a).

Ainda segundo Peixoto, apenas os dez maiores eventos do país reúnem cerca de 10 a
30 mil pessoas, com os demais eventos todos atraindo um público entre mil e 5 mil pessoas.
Já o press release do Anime Friends afirmam que, em 2016, o evento paulista teve um
público de 120 mil pessoas (FDCOMUNICAÇÃO, 2016a), enquanto os dados oficiais do
evento cearense SANA são de que
12

Durante três dias, mais de 70 mil pessoas visitaram o festival, que aconteceu no
Centro de Eventos do Ceará, em Fortaleza. A próxima edição do evento acontecerá
em janeiro de 2016.
O evento movimentou R$ 6 milhões na cidade, gerando por volta de 530 empregos
diretos e indiretos. Cerca de um terço dos visitantes vieram de outros estados do
Nordeste (FDCOMUNICAÇÃO, 2016b).

A história da relação dos brasileiros com a cultura pop japonesa e dos eventos de
animê que daí surgiram e se modificaram são mais do que tema de pesquisa para mim, já que
vivi diversos desses acontecimentos, como fã de animês e mangás de longa data. Nas
próximas seções, esclareço o papel da cultura pop japonesa na minha trajetória de vida e de
que modos meus conhecimentos prévios e envolvimento emocional com o universo
pesquisado contribuíram para os rumos da presente investigação.

Confissões de uma (ex?-)otaca

Era uma quinta-feira nublada no bairro da Liberdade, em São Paulo, e eu estava numa
livraria japonesa rodeada de pessoas que eu tinha conhecido na noite anterior, na rodoviária
do Rio de Janeiro. Todos olhavam admirados os seus velhos conhecidos mangás, só que em
sua encarnação “original” japonesa3. Ao verem os títulos, comentavam com os novos amigos
quais já tinham lido, de quais gostavam, pegavam um ou outro para olhar por dentro.
Resolvi então procurar “o” mangá, aquele que é especial pra mim, que marcou minha
adolescência. Encontrei o número 13 de Neon Genesis Evangelion, edição que encerrava a
história, um belíssimo encadernado com letras prateadas na capa. Abri o livro cuidadosamente
para não danificar a lombada, mas eu não esperava os flyers de propagandas em japonês
soltos no meio, que quase caíram. Os anúncios da época em que o mangá saiu no Japão
situavam-no no tempo e faziam-no parecer tão “autêntico”, como se eu segurasse um
microrrecorte tempo-espacial do Japão materializado. Hesito admitir que meus olhos ficaram
marejados (afinal, isso é conduta de pesquisadora?), mas foi o que escrevi em meu caderno de
campo.
Só de curiosidade, olhei a lista de preços, indicada por bolinhas coloridas coladas na
lombada de cada livro. Afinal, que razão em sã consciência eu teria para comprar um livro

3
Mangás são editados primeiro um capítulo por vez em revistas semanais que publicam várias histórias
diferentes ao mesmo tempo (INGULSRUD, ALLEN, 2009). Como será visto no capítulo 1, só depois de ter
sobrevivido à constante ameaça do cancelamento uma série de mangá é compilada em edição própria.
13

que, apesar dos meus dois anos de curso de japonês, eu não tinha nenhuma possibilidade de
conseguir ler? A cor da bolinha indicava que eu teria, hipoteticamente, que desembolsar
R$40,00 para levar o mangá comigo para o hotel em que a caravana estava hospedada.
Devolvi-o para a estante, convencida de que eu não tinha nenhum motivo “real” para querer
adquirir aquele encadernado. Continuei olhando os mangás e conversando com meus colegas
de caravana.
Logo me vi gravitando novamente para a estante onde estava Evangelion. Tirei o livro
da estante e coloquei-o novamente mais algumas vezes. Consultei meus recém-conhecidos
companheiros de jornada sobre a possível compra que eu não queria admitir nem para mim
mesma que estava considerando, enquanto uma integrante da minha caravana entregava
decidida ao caixa um artbook4 de Cavaleiros do Zodíaco que lhe custou uns bons R$200,00.
A resposta que recebi foi algo como “se Evangelion é importante para você, leva!”, afinal não
é todo dia que encontramos mangás japoneses no Brasil. Além disso, estávamos na Liberdade,
a “meca otaku” do país, numa caravana para ir ao Anime Friends, maior evento de animê do
Brasil, não havia uma combinação melhor de pretextos para gastar com esse tipo de coisa.
Evangelion 13 em japonês está guardado no meu armário, protegido pelo saquinho de
papel da livraria, afinal não posso deixá-lo ao ar livre pegando poeira. Admito que o folheei
poucas vezes desde então, mas as miniaturas (várias vezes mais caras!) que adquiri no eventos
adornam minhas estantes com orgulho. Mas o mangá, primeira coisa que eu comprei na
viagem, quebrou minhas resistências de uma maneira que eu não esperava. Afinal, tenho
assistido poucos animês e lido poucos mangás nos últimos tempos, então me acreditava
emocionalmente distanciada de seus apelos. Além disso, aquela não era minha primeira vez
no bairro da Liberdade e nem naquela livraria (tinha sido eu que guiara a caravana até o
estabelecimento), mas sozinha eu nunca pensara em comprar um mangá que não sabia ler.
Naquele momento, vivenciei toda a força da nostalgia e a sensação inebriante de legitimação
proporcionada pelo sentimento de pertença a uma tribo (MAFFESOLI, 1987).

4
Livro contendo imagens e fotos em alta qualidade
14

Figura 1 – Mangá e bonecos de Evangelion

Fonte: A autora, 2016.

Esse foi um dos momentos marcantes de ida a campo, não só no âmbito pessoal, mas
como experiência de contato com meu “objeto” de pesquisa, que naquele momento era eu
mesma. Aprendi muito naquela viagem, partindo do “olhar domesticado” (OLIVEIRA, 1996)
de pesquisadora, que nunca vai a campo inocentemente, sempre já observando as interações a
partir das lentes da teoria. A reflexão posterior sobre minha reação àquele mangá me fez ver
que ela ilustra bem vários dos temas importantes desta pesquisa, que só foram se delineando
mais claramente no decorrer da mesma.
Pude sentir na pele o poder afetivo do consumo, que evocou em mim memórias e
apelou à minha nostalgia, fazendo com que eu experimentasse uma vinculação afetiva a um
objeto. Presenciei também a capacidade da tribo de potencializar emoções, gerando um
contágio afetivo grupal, que me permitiu rapidamente ficar íntima de desconhecidos com
interesses compartilhados. Percebi ainda que, por mais que acreditasse não ter nenhum tipo de
deferência especial com o Japão, ainda assim me descobri movida por alguma medida de
adoração ao original japonês, que estaria um patamar acima do mesmo mangá editado na
minha língua nativa.
É sintomático ainda que essa e outras das minhas experiências mais intimamente
relacionadas à cultura pop japonesa “em si” tenham acontecido fora do evento, reforçando o
fato de que eles estão se afastando dos mangás e animês, que um dia foram o cerne da
experiência que proporcionavam.
Essa ocasião que relatei foi também uma verdadeira “travessia do limiar”, para Joseph
Campbell (2007) no meu percurso afetivo-intelectual de pesquisa. Foi quando saí da mera
observação, como tinha feito sozinha nos eventos do Rio e me tornei uma observadora
15

participante, entendendo que independentemente da minha posição e atitude de pesquisadora,


e mesmo acreditando “ter superado” os animês, eu não tinha como não estar emocionalmente
envolvida, de corpo e alma, no meu objeto de pesquisa. Menos de 48 horas depois, eu já tinha
desistido de qualquer tentativa de me manter “isenta” e cantava a plenos pulmões com eles no
karaokê.
Os animês e mangás fizeram e fazem uma parte importante da minha história de vida,
prova disso é que os escolhi como tema de pesquisa de mestrado. Diferentemente de muitos
fãs de animê da minha faixa etária, incluindo diversos pesquisadores-fãs (CARLOS, 2011;
SCHÜLER-COSTA, 2012; LOURENÇO, 2009), eu não comecei a assistir desenhos
japoneses na Rede Manchete. À época do início do fenômeno Cavaleiros do Zodíaco, eu tinha
seis anos de idade. Até me lembro da febre que se tornou e de brincar com os bonecos de
amigos, mas não cheguei a assistir mais do que um ou outro episódio. Lembro-me de ter a
distinta impressão de que Cavaleiros era um desenho “de menino”.
O primeiro animê que de fato assisti, já com alguma consciência de ser um desenho
japonês, foi Sakura Card Captors, na Globo, quando eu tinha uns 12 anos. Depois, passei a
assistir alguns dos animês que passavam na televisão, como Dragon Ball Z (não cheguei a ver
Dragon Ball), Samurai X e Pokémon. Cheguei então ao “verdadeiro ‘turning point’ para o
universo simbólico otaku: a introdução a meios alternativos” (SCHÜLER-COSTA, 2012, p.
46), buscando animês que não passavam na tevê, comprando CDs piratas em classificados ou
na internet e depois “me graduando” para baixar animês online. Lembro-me de, depois de dias
de download, sofrer por meses tentando buscar novos softwares de reprodução de vídeo,
chegando a comprar uma placa de vídeo melhor porque Love Hina não queria rodar com som,
e depois rodava com o som atrasado. Comecei também a jogar videogames japoneses, jogos
esses que formam a terceira perna do “tripé da indústria de entretenimento japonesa”, ao lado
dos mangás e animês (LUYTEN, 2000).
Em 2001 comecei a comprar mangás nas bancas, época em que editoras como a JBC e
a extinta Conrad começaram a apostar mais sistematicamente nesse setor editorial. Os
primeiros que comprei foram Neon Genesis Evangelion e Guerreiras Mágicas de Rayearth,
cujo animê foi exibido no Brasil, mas nunca o assisti. Cheguei a fazer uns três anos de aulas
de desenho no estilo mangá.
O primeiro evento de animê ao qual fui foi o Anime Rio de 2003, evento já extinto que
acontecia na Casa do Minho, no Largo do Machado. Fui a alguns festivais do Japão na
Associação Nikkei, que pode parecer não ter relação com eventos de animê mas, desde o
estouro dos animês no Brasil, os festivais de cultura japonesa “tradicional” começaram a ter
16

uma interpenetração com os eventos de cultura pop japonesa, com atividades e frequentadores
de um entremeando-se com os do outro (SASAKI, 2013). Lembro que, em um desses
festivais, ao lado das exibições de origami e ikebana 5 , havia uma televisão passando
episódios de Naruto.
Continuei vendo animês, lendo mangás, jogando videogames e indo a eventos no Rio
de Janeiro, como o Anime Family e Rio Anime Club, mas nunca fui uma ávida frequentadora
(que eu me lembre). Fui esporadicamente a eventos até mais ou menos os meus 20 anos, mas
continuei consumindo cultura pop japonesa mesmo depois de perder interesse nos eventos.
Em 2013 comecei a fazer aula de japonês, que acabei abandonando um pouco depois
de ingressar no mestrado. Mas com o tempo fui ficando “menos otaku”, vendo menos animês
e lendo menos mangás que antes. Meus interesses “de otaku” foram se tornando menos
centrais na minha vida, tornando-se menos “algo especial” como um dia tinham sido.
Por isso o título dessa seção, confissões de uma (ex?-)otaca. É um trocadilho com a
palavra “otaka”, corruptela do termo “otaku” que alguns fãs de animê brasileiros usam para se
referir de brincadeira ou pejorativamente a otakus do gênero feminino. “Otaca” com “c” e não
“k” em referência a Henry Jenkins (2006), um dos “padrinhos” dos estudos de fãs. Jenkins
reconhece a importância de o pesquisador de culturas de fãs declarar sua relação pessoal com
o objeto estudado. A introdução de seu livro Fans, bloggers and gamers (JENKINS, 2006)
intitula-se Confessions of na Aca/Fan, onde ele se diz tanto aca(dêmico) quanto fã. No
decorrer da minha pesquisa, passei a pensar em mim como “otaca”, otaku e acadêmica, por
meu status como mais ou menos insider, gostando de animês, mas menos que antes, e estando
afastada dos eventos há bastante tempo.
Escrevendo agora sobre o meu “passado otaku”, até me surpreendi com o peso que o
gosto pela cultura pop japonesa teve na minha vida. Eu chegara a me convencer de que nunca
tinha sido “tão otaku”, o que é uma reação muito comum a esse rótulo por parte dos fãs de
animação japonesa, como será apontado nesta dissertação. Mas ao rever minha trajetória,
desde minhas aulas de mangá às de japonês, não tenho como negar o meu envolvimento com
“coisas japonesas”. Minha relação com a cultura pop japonesa e mesmo meu posterior
afastamento dela se revelou como um dado que refletia as mudanças que eu descobriria nos
eventos e nos demais frequentadores.

5
Arranjos florais
17

Percurso afetivo-intelectual

Meu processo de pesquisa passou por algumas grandes reorientações de hipótese,


numa tentativa de não buscar apenas confirmar as assunções originais, e sim deixar-se moldar
por aquilo que o objeto lhe fala, sem negar que com certeza o mesmo objeto deixaria soar
outras notas aos ouvidos de outro pesquisador, acostumado com outras melodias e interessado
por outros estilos.
Eu pretendia, inicialmente, conduzir uma pesquisa etnográfica em eventos de animê
para investigar a relação entre fãs de cultura pop japonesa e seus modos de lidar com gênero e
sexualidade. Eu partia das premissas de que os mangás e animês têm modos e fórmulas
específicos de tratar desses assuntos, e de que uma análise dos eventos de animê de algum
modo refletiria esses temas no comportamento e na autoexpressão de seus
consumidores/frequentadores. Essas descobertas, ou melhor, in(ter)venções etnográficas
nascidas do meu contato com o campo tornaram este texto não só uma resposta às minhas
antigas hipóteses, como uma demonstração de que o método escolhido nem fazia sentido para
dar conta daquele que era então meu interesse de pesquisa.
O maior indício que eu tinha para formular tal hipótese eram as frequentes
brincadeiras com fluidez de gênero em mangás e animês e, nos eventos, a prática de crossplay,
forma de cosplay em que o cosplayer interpreta um personagem de gênero diferente do seu. E
sim, encontrei crossplayers nos eventos em que fui. Mas, a partir do momento em que vejo
tanto crossplayers de animês e mangás como de Percy Jackson, da série literária Percy
Jackson e os Olimpianos, e Elsa de Frozen, como poderia atribuir à prática alguma relação
direta ou exclusiva com o pop japonês? Ao escrever o roteiro para as entrevistas, as perguntas
que eu queria fazer pareciam forçadas e fora de propósito, a não ser que eu me propusesse a
estudar especificamente o crossplay, mas eu sabia desde o início que não queria focar o
cosplay, ao qual já se dedicaram muitos pesquisadores. Não digo que pesquisar gênero nos
eventos (ou a recepção de mangás e animês no Brasil e sua relação com gênero e sexualidade)
não seja viável ou interessante, apenas que as evidências do campo foram ficando cada vez
mais em desacordo com a pergunta inicial.
Difícil relacionar diretamente eventos de animê e o consumo de mangás e animês,
porque os eventos se tornaram (ou sempre foram) algo à parte. Abandonada minha intenção
inicial de estudar o gênero nos eventos em conjunção com o dos mangás, passei à
18

“sociabilidade dos otakus nos eventos”. Mas o quê, qual delas? Isso não parecia fechar um
problema de pesquisa.
Eu não sabia como continuar, já que não havia nada específico sobre os eventos que já
não tivesse sido dito em outras pesquisas e que justificasse o estudo que eu estava fazendo
sobre eles. Pelo contrário, eles pareciam uma salada de várias atividades, pessoas e interesses
distintos convivendo em um mesmo lugar ao mesmo tempo. Não parecia haver nada que
unificasse tudo aquilo, nenhum tema subjacente, nenhuma “pequena grande narrativa” teórica
que me permitisse explicar tudo aquilo.
Sentia como se tivesse “perdido” meu objeto de pesquisa, como se aquilo que eu
tivesse ido buscar nos eventos quando os elegi como campo de pesquisa não existisse mais.
Como se eles tivessem se tornado algo diferente de quando eu os frequentava quando
adolescente. Ou como se talvez essa “inconsistência” sempre tivesse sido um aspecto dos
eventos, que na verdade eu só não tivesse percebido no papel de mera frequentadora
descompromissada, e agora eles me revelassem sua “verdadeira” e “confusa” face.
Foi refletindo sobre minha falta de conclusões parciais durante uma conversa com minha
orientadora que me dei conta de que todas aquelas “incoerências” que me deixaram desiludida
com o objeto de pesquisa ERAM conclusões parciais! E que diziam muito sobre hibridação, a
natureza fluida e cambiante das tribos, territorializações temporárias, modos de ser, de estar e
de pertencer.
Eu me impressionara com a ascensão do k-pop e das palestras de youtubers, que
pareciam ter acontecido nos anos em que estive afastada dos eventos. Outras mudanças nos
eventos, que eu presenciara durante a época em que era frequentadora, foram tão graduais que,
sem uma reflexão sistemática, nunca cheguei a me dar conta delas. A partir dessa dissonância
entre memória e atualidade do campo, novas questões tomaram forma. A atual
heterogeneidade de tribos e de atrações, além do aparente distanciamento atual dos eventos
em relação à cultura pop japonesa, levaram-me a pesquisar fotos e programações de eventos
passados, na tentativa de entender se os eventos sempre tinham sido como eram hoje e eu que
não me lembrava. Acabei, assim, pesquisando a distribuição espacial das atrações, o que se
tornou uma análise “histórica” sobre as mudanças nessa distribuição espacial com o correr dos
anos.
Na tentativa de localizar o “animê” dos eventos, percebi que ele nem estava lá, pelo
menos não da forma como eu esperava encontrar. Os eventos foram se tornando, para mim,
cada vez menos um meio para alcançar a relação entre animês e fãs, e cada vez mais um
objeto em si. Tomei-os como arranjos complexos, como entidades temporárias cuja unicidade
19

não se deixa reduzir à unidade (MAFFESOLI, 1987), como conjunto de relações entre
indivíduos, tribos, público, organização, comércio, afetos, realidades, imaginários.
A fórmula básica dos eventos parece à primeira vista ter se mantido a mesma nos
últimos 20 anos, se levarmos em conta sua estrutura básica de atrações no palco, atividades
para os frequentadores participarem e estandes vendendo produtos variados. Mas um exame
mais minucioso da programação desse tipo de convenção, além da fala de frequentadores
antigos e atuais, revela a complexidade do jogo de mudanças e permanências sobre o qual que
se debruça a presente dissertação, que tem como objetivo entender o que é um evento de
animê hoje, quem o frequenta e por quê. Para tanto, foram investigados os processos que
ocorreram ao longo do tempo para que chegassem à sua configuração atual e quais foram as
causas e consequências das mudanças identificadas.
Outro ponto de interesse foi compreender o que dá a liga aos eventos e qual é seu elã,
uma vez que já não servem ao propósito para o qual nasceram e parecem agregar muitos
gostos e atividades diferentes. E a esse propósito, foi uma preocupação importante contestar a
asserção comum de que os frequentadores dos atuais eventos de animê ainda podem ser
considerados otakus ou mesmo de fãs de cultura pop japonesa.
A hipótese que norteou essa investigação foi a de que eventos atuais oferecem maior
variedade de temas e públicos que os eventos antigos, mas que continuam sendo espaços de
sociabilidade entre fãs, onde eles sentem liberdade para expressar suas paixões. A suposição
mais ampla foi a de que as mudanças nos eventos de animê têm relação com as
transformações nos modos de consumo e engajamento dos brasileiros com a cultura pop
japonesa e com a cultura pop em geral

Estratégias metodológicas

Os eventos de animê, inicialmente um meio para estudar a recepção da cultura pop


japonesa no Brasil, acabaram se tornando um fim em si mesmos, o “objeto” pesquisado. O
modo de investigação eleito foi a pesquisa de campo, de inspiração etnográfica, consistindo
em observação participante, elaboração de diário de campo, tomada de registros (fotográficos,
de vídeo e de áudio) e realização de entrevistas semiestruturadas em profundidade.
Os informantes selecionados para as entrevistas tinham diferentes perfis dentro do
mundo dos eventos de animê, a fim de obter perspectivas distintas sobre o processo estudado.
20

O roteiro das entrevistas foi elaborado a partir das observações de campo e de questões que
emergiram ao longo da pesquisa. Foram realizadas ao todo 12 entrevistas, sendo dez delas
com frequentadores e duas com organizadores de eventos. As entrevistas com os
frequentadores foram feitas por chats online de texto, quatro das quais pelo aplicativo
Whatsapp e seis das quais pelo Messenger do Facebook, uma vez que é muito agitado e
barulhento nos eventos e as pessoas não querem perder o tempo limitado do evento dando
entrevistas longas. As entrevistas foram feitas pela internet dada a maior facilidade para os
entrevistados, alguns dos quais tinham pouco tempo, moravam longe de mim e só podiam
conversar à noite/de madrugada.
O chat de texto foi escolhido porque os entrevistados mostraram mais disponibilidade
e até mais conforto do que por softwares de conversa por voz. Todos tinham bastante
facilidade de se comunicar online, por serem jovens e por serem extremamente conectados, já
que fazem muito uso da internet para assistir animês, ler mangás e conhecer outros fãs.
Os otakus são considerados desde o princípio, seja no Japão ou no Brasil, como um
grupo com forte presença online, o que foi importante até para a formação do próprio fandom
ocidental de cultura pop japonesa. Os otakus japoneses estavam ligados aos produtos de
massa e à comunicação digital, sendo estereotipados como pessoas que se isolavam do mundo
em frente a uma tela de televisão ou computador. Os otakus não japoneses só se
estabeleceram como fandom6 porque sua atividade voluntária e não autorizada de tradução,
distribuição e circulação de animês ajudou a divulgar a cultura pop japonesa em seu país.
Argumenta-se que o próprio sucesso mundial dos animês e mangás só foi possível por causa
das tecnologias de informação e da organização e interconexão entre os fãs (NAPIER, 2007).
Conheci, abordei e conversei informalmente com todos os entrevistados ao vivo antes
de realizar as entrevistas online. Sobre o perfil dos entrevistados, sete deles conheci na
caravana partindo do Rio de Janeiro para o Anime Friends, dois eram pessoas do meu círculo
de amigos e um me foi indicado por conhecidos. Oito eram frequentadores de eventos e dois
eram ex-frequentadores. Quanto à cidade de residência, havia uma pessoa de Petrópolis, uma
de Nova Iguaçu, uma de Campos dos Goytacazes, uma de Belo Horizonte, uma de Juiz de
Fora e cinco do Rio de Janeiro. As idades variavam dos 18 aos 36 anos, sendo cinco dos
entrevistados homens e cinco mulheres.

6
O coletivo de fãs, de determinado “objeto”, seja de um gênero inteiro de produções (como a cultura pop
japonesa) ou de uma obra específica, é conhecido como fandom, junção de “fan” e “dom”, ou seja, território ou
domínio dos fãs.
21

Os organizadores entrevistados concordaram em ter seus nomes divulgados. Igor


Lucena, responsável pelo evento cearense SANA desde seu início em 2001, respondeu à
entrevista por ligação de voz no Facebook Messenger. Já Sérgio Peixoto, responsável por
diversas exibições de animê, revistas informativas e eventos de animê, cedeu entrevista por
email.
Foi feito um levantamento bibliográfico, para determinar o estado da arte e para
abordar a pesquisa empírica de modo embasado. Para a aproximação do campo, foram
mapeados os eventos de animê do Rio de Janeiro e os principais eventos do Brasil.
Acompanhei calendários online de divulgação de eventos de animê do Rio de Janeiro7 para
saber onde e quando ocorreriam os eventos.
Visitei sete eventos, sendo cinco deles considerados “de animê” e dois considerados
“geeks”, distinção que será elucidada no capítulo 2. Do total, seis foram realizados no Rio de
Janeiro (três edições do Rio Anime Club, 24/05/2015, 05/07/2015 e 15/05/2016; Expo Geek
Beta, 21/06/2015; Anime Rock, 23/08/2015; Rio Geek Zone, 20/03/2016) e um em São Paulo
(Anime Friends, 17, 18 e 19/07/2015), que é o maior evento do gênero no Brasil e na América
Latina, ao qual eu fui junto com uma caravana partindo do Rio. Lá, acompanhei não só o
evento, como também os passeios, alguns dos quais relacionados à cultura pop japonesa. O
hotel em que ficamos hospedados ficava na Liberdade, tradicional bairro japonês de São
Paulo. Passeamos pelo bairro, visitando lojas de produtos japoneses, livrarias apenas com
material em japonês, comemos comida japonesa e fomos a um karaokê nos moldes japoneses.
Acompanhei também o grupo no Whatsapp que foi criado para a comunicação da
caravana uma semana antes do início da mesma e continua ativo mesmo depois do evento, o
que se provou uma oportunidade de um contato prolongado com esses fãs animê. Nesse grupo,
emergiram várias questões que também podem ser vistas nos eventos, como o colecionismo, o
interesse por músicas j-pop 8 e k-pop 9 , a natureza participativa dessa tribo, que produz
cosplays10, desenha e comercializa mercadorias associadas aos animês e mangás.
Depois de ir a algum evento, eu acompanhava a página do evento no Facebook, e
buscava a cobertura em vídeo e escrita de sites/canais do Youtube especializados em

7
Disponível em: http://gigiokdg.wix.com/loucosplay; http://www.animetokuvideos.com
8
Música pop japonesa
9
Música pop sul-coreana
10
Fantasia de personagem de animês, mangás, videogames ou de qualquer tipo de mídia de entretenimento.
22

entretenimento de nicho, que publicam textos e vídeos com as atividades, o ambiente dos
eventos e entrevistas com frequentadores e organizadores do evento.
A pesquisa de campo, apesar de não pretender esgotar todos os eventos do Brasil ou
mesmo da cidade do Rio de Janeiro, inspirou-se também na cartografia, modo de fazer
pesquisa que usa muitas das mesmas estratégias metodológicas da etnografia, entendendo que
é preciso perder o objeto para ganhar o processo (MARTÍN-BARBERO, 2004). A cartografia
“busca desenvolver práticas de acompanhamento de processos e para isso se desvencilha de
métodos rígidos que buscavam representar o objeto retirando-o de seu fluxo e separando-o do
sujeito” (AGUIAR, 2010, p. 6).
Tal abordagem mostrou-se relevante para um estudo sobre as metamorfoses dos
eventos e de suas tribos urbanas (MAFFESOLI, 1987), comunidades emocionais de
pertencimento fluido, agregações efêmeras que têm nos eventos de animê espaços de
enraizamento dinâmico para o compartilhamento de gostos e de emoções. A tribo otaku, as
demais tribos que se reúnem nos eventos e os próprios eventos estão em constante
transformação, em sua composição, em suas práticas e ritualidades, sempre em relação entre
si e com as mídias e imaginários a que se apegam.
A observação participante revelou-se um equilíbrio difícil de atingir, uma vez que
sempre há o estranhamento inicial por parte das pessoas que abordava com relação ao fato de
eu os estar pesquisando. Às vezes, foi preciso mostrar que eu era “uma deles” e que não
exporia nomes ou imagens sem autorização e nem “traçaria um perfil psicológico” deles, o
que de fato me foi perguntado.
Busquei criar rapport, ou seja, “um ambiente de naturalidade, confiança mútua e
interesse” (DUARTE, 2005, p. 72), com as pessoas com quem interagi, já que eles se
preocupavam, ao mesmo tempo em que brincavam, que escreveria sobre a “loucura” deles.
Pareciam acostumados a esse tipo de tratamento na mídia mainstream, que os mostra como
estranhos e infantis, como ficou claro para mim quando mencionaram, em outro contexto,
uma reportagem de 2007 no programa Fantástico 11 , em que os cosplayers entrevistados
sentiram-se usados para causar sensacionalismo em torno do caso de um casal de adolescentes
otakus que frequentavam eventos e que haviam fugido de casa juntos. A matéria ficou
marcada no meio como tendo ridicularizado e desmoralizado os otakus e a prática do cosplay.

eu lembro q o fantastico noticiou uma vez sobre um casal q fugiu de casa


uma menina de 14 anos e um kra de 17
e eles noticiaram como se fosse culpa dos animes

11
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QYZBIiSVv-Q#t=156
23

e eu levei mó esporro por isso uHAUAHEUHA (entrevistada, ex-frequentadora, 24


anos)

Não é raro a mídia tradicional produzir reportagens ridicularizando otakus, mais


comumente os cosplayers, figuras muito importantes dentro dos eventos. No próprio ano de
2015, meu primeiro ano de mestrado, ocorreu um caso do tipo. Houve uma reportagem do
UOL12, em que especialistas afirmavam que cosplayers têm problemas de identidade e falta
de contato com a realidade. Mesmo o portal tendo se desculpado posteriormente pela matéria,
o imaginário coletivo acerca do cosplay e do entusiasmo demonstrado por fãs em convenções
continua sendo o de que essas pessoas não amadureceram, não se comportando de acordo com
o que seria “normal” para certa idade.
Devido à minha proximidade e posterior afastamento em relação aos eventos de animê,
foi desafiador alcançar os anthropological blues (DAMATTA, 1978), transformando o
exótico em familiar e o familiar em exótico. A convergência entre o aprofundamento e o
distanciamento necessários a esse tipo de pesquisa de campo se intensificam em mim mesma,
por eu conhecer o mundo otaku e já ter feito parte dele. Esse “mesmo” que eu já fui, mas não
sou mais, devido à própria natureza fluida e cambiante da participação na tribo, mas que
também nunca poderei deixar de ser pelo menos em parte, já que esse pertencimento prévio
não tem como deixar de tingir minhas percepções.
Ser (ex?-)insider foi interessante para compreender melhor o problema e saber que
perguntas fazer, o que me permitiu uma familiaridade que fez com que eu me entrosasse
como se fosse um deles sem realmente o ser. O pesquisador nunca se torna seu objeto, mesmo
quando faz parte do grupo que estuda, já que sua atitude de pesquisa exige que tenha um olhar
não ingênuo, o que o torna reflexivo quanto a si mesmo e aos outros. A pesquisa em ciências
humanas não requer um autoapagamento total do pesquisador no texto, como antes se
acreditava, mas sim rigor, devendo o pesquisador compreender o papel de sua subjetividade e
saber usá-la a seu favor. Como coloca Maffesoli “a atitude científica requer o ser por inteiro:
razão e paixão em um misto inextricável!” (MAFFESOLI, 2014, p. 26).
Assim, meu conhecimento do mundo otaku a partir de dentro facilitou a minha entrada
no campo, a forma de lidar com os frequentadores dos eventos e guiou a própria natureza do
meu problema de pesquisa, que se apoiou em parte na diferença que percebi entre a pesquisa
de campo e os eventos que me lembrava de ter frequentado. Por outro lado, minha
compreensão prévia dificultou um pouco o desmonte cognitivo que o pesquisador deve

12
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AFf61p4OqGM
24

realizar para abrir-se para seu objeto e permitir a atualização de suas virtualidades por meio da
pesquisa (AMADOR; FONSECA, 2009).
Esse tipo de percalço parece relacionar-se à própria natureza adaptável da pesquisa de
campo com inspiração na cartografia, que requer que o pesquisador não se distancie de seu
objeto, pois é no encontro entre pesquisador e processo pesquisado que se dá a produção do
conhecimento (AGUIAR, 2010). Não significa, no entanto, que não haja rigor metodológico,
apenas o reconhecimento de que o pesquisador não pode evitar alterar aquilo que pesquisa,
especialmente em um modo de pesquisar que não separa pesquisa de intervenção (PASSOS;
KASTRUP; ESCÓSSIA, 2009). Daí a importância do ethos cartográfico (TEDESCO, 2013),
que vai além da técnica ou do método, passando pela domesticação teórica do olhar do
pesquisador, que filtrará sua vivência pelo prisma teórico de que está equipado (OLIVEIRA,
1996).
À medida que a pesquisa foi tomando maior “profundidade histórica”, a análise
documental foi se tornando uma estratégia metodológica cada vez mais importante,
entendendo documento em sentido amplo, o que inclui registros online. Foi feita uma
triangulação de diversas fontes para dar conta dos diferentes aspectos dos eventos de animê,
dentre as quais: revistas especializadas da época do boom dos animês e início dos eventos,
entrevistas com organizadores de eventos disponibilizadas online, relatos em blogs pessoais
narrando experiências com eventos atuais e antigos, sessões de comentários de blogs
especializados, podcasts e comentários em redes sociais. Optou-se por preservar o anonimato
dos entrevistados, bem como o de autores de comentários em blogs e redes. Já os
entrevistados que são organizadores de eventos, os autores de blogs e os participantes de
podcasts serão identificados.
Para a pesquisa da história dos eventos de animê, foi utilizada a ferramenta Internet
Archive13, que permite visualizar versões antigas de sites da internet arquivadas em cache,
para visitar os sites dos eventos Mangácon (São Paulo, 1996-2000), Animecon (1999-2011),
Anime Friends (2003-presente), SANA (2001-presente) e Rio Anime Club (Rio de Janeiro,
2007-presente). Dessa forma foi possível consultar a programação e atividades oferecidas,
descrições e press releases de cada um desses eventos através dos anos. O site ainda ativo do
já extinto Animecon (que hoje é uma empresa dedicada a promover eventos de terceiros) foi
visitado e sua galeria de fotos dos encontros realizados desde 1999 até o seu fim foi analisada

13
http://archive.org/web
25

para que fosse possível vislumbrar a ambiência dos eventos de animê para além da mera
enumeração das atividades dos eventos através dos anos.
Desse modo, a dissertação foi estruturada em três capítulos. O primeiro capítulo do
presente trabalho oferece uma contextualização do surgimento da cultura pop japonesa, mais
especificamente mangás e animês, e de como esses produtos passaram a ser mundialmente
consumidos. É descrita também a origem do grupo social dos otakus e o que “otaku” veio a
significar fora do Japão. Por fim, trata do boom da cultura pop japonesa no Brasil, nos anos
1990, e como ele levou à criação dos eventos de animê.
O segundo capítulo abordará desde a chegada e a popularização das animações
japonesas ao Brasil às mudanças sofridas pelos eventos de animê, ilustrando seu surgimento
simples e bastante tímido como pequenas reuniões para exibições de animês até o status de
grades convenções com atrações internacionais e participação de milhares de visitantes.
Trataremos as transformações dos eventos de duas formas distintas, uma focada nas mudanças
em atividades dos eventos de maneira isolada e outra acompanhando as transformações dos
eventos de maneira mais ampla. Por fim, abordaremos o surgimento dos eventos geeks e sua
similaridade com os eventos de animê.
O último capítulo descreve as atividades dos eventos que envolvem a participação e
performance dos frequentadores, que constituem as diferentes tribos urbanas que lá se
encontram. Analisaremos também como seus corpos, roupas e modos de socialidade
compõem a territorialização temporária desses encontros. Por fim, trataremos das
heterogeinedades de opiniões dos frequentadores e de seu papel constitutivo do cimento do
estar junto que torna os eventos um todo coeso, mas sempre cambiante.
26

1 DOS MANGÁS NO JAPÃO AOS EVENTOS DE ANIMÊ NO BRASIL

Shinji: Um mundo onde nada existe além de mim. Mas se sou só eu,
eu não posso interagir com nada. É como se eu estivesse aqui, mas na
verdade não estivesse.
Ritsuko: É normal, pois só você está aqui. Sem outros para interagir,
você não pode reconhecer a sua própria imagem.
Neon Genesis Evangelion

1.1 Mangás

A cultura pop japonesa já faz parte do cenário midiático mundial. Os personagens de


olhos expressivos e cabelos coloridos dos animês e mangás consolidaram-se como parte do
imaginário de pessoas de todos os cantos do mundo, a ponto de seu traço ter se tornado um
estilo no grande repertório simbólico compartilhado, reforçando o fato de que “o monopólio
ocidental da criação industrial e cultural terminou: a era transestética em marcha é planetária”
(LIPOVETSKY; SERROY, 2015, p. 30). Apesar de serem lidos como distintivamente
japoneses, o hibridismo encontrado na própria origem dos animês e mangás, além da
internacionalização que marca o atual processo de produção dessas obras, em certa medida
desterritorializam esses produtos da cultura pop japonesa (URBANO, 2013).
A cultura pop se refere ao que no Brasil pode ser chamado de popular massivo ou
popular midiático, ou seja, uma gama de artefatos culturais produzidos sob a lógica das
indústrias do entretenimento e que têm como objetivo o consumo em massa, seja pelo “grande
público” ou por algum nicho específico (SOARES, 2015; ALBUQUERQUE, URBANO,
2015). A ideia de cultura pop diz respeito tanto aos produtos em si quanto aos sentidos
engendrados e circulados por eles, que passam a integrar, ainda que efemeramente, o
repertório de imaginários das pessoas que os consomem. Por mais que os produtos da cultura
pop inevitavelmente possuam marcas de seu tempo e de seu(s) lugar(es) de origem, eles
também possuem um certo ar de desenraizamento cosmopolita, que ao mesmo tempo remete
pessoas de diferentes lugares a uma territorialidade comum. A cultura pop, desse modo,
“estabelece formas de fruição e consumo que permeiam um certo senso de comunidade ou
27

compartilhamento de afetos e afinidades que situam indivíduos dentro de um sentido


transnacional e globalizante” (SOARES, 2015, p. 22).
As novas características temporais e espaciais advindas da globalização ocasionaram
também uma desterritorialização de identidades, abrindo espaço para a existência de
“identidades partilhadas” entre pessoas que estão distantes umas das outras no tempo e no
espaço, mas que compartilham dos mesmos hábitos de consumo. Isso é possível porque a
identidade na pós-modernidade não é mais um centro único que alicerça um indivíduo que
existe por si mesmo, mas sim uma “celebração móvel”, o que torna mais adequado falarmos
das múltiplas identificações convivendo em uma mesma pessoa (HALL, 2005).
Assim, a identificação de diversas pessoas em torno do gosto em comum pelos
quadrinhos e animações japonesas levou à criação dos eventos de animê e à
transnacionalização da identidade otaku, que passou a ser adotada tanto no Brasil como em
diversos outros países ocidentais. O rótulo “otaku”, que no Japão tinha um significado
negativo referente a uma geração de jovens que se isolava do mundo por meio do consumo
midiático, ganhou no Brasil e em vários outros países uma conotação descritiva dos
aficionados pela cultura de massa nipônica, da qual os principais expoentes são mangás e
animês (SATO, 2007). Animês são, grosso modo, as animações japonesas e mangás, as
histórias em quadrinhos japonesas. Estas últimas surgiram primeiro, com muitos autores
atribuindo-lhe uma história que remontaria ao século VII, com os ê-makimono, rolos com
pinturas em sucessão combinando texto e imagem, constituindo portanto a primeira
manifestação das artes sequenciais da história do Japão (LUYTEN, 2000).
Os desenhos japoneses modernos, no entanto, não apresentam continuidade direta com
essa e outras tradições artísticas que, muitas vezes apressadamente e sem questionamento, são
oferecidas como pano de fundo histórico para sua concepção. Os mangás e animês são
fenômenos caracteristicamente modernos, nascendo das condições sociais, econômicas e
políticas do Japão, sobretudo no século XX, e de seu contato com o Ocidente, mais
especificamente os Estados Unidos (INGULSRUD, ALLEN, 2009). Surgem no contexto da
cultura de massa, durante um período de intensas hibridações (CANCLINI, 2003), as quais
são fusões, não sem contradições, de estruturas, objetos ou práticas discretas. Cabe ressaltar,
todavia, que não há uma “pureza original” a ser encontrada, uma vez que “na história,
passamos de formas mais heterogêneas a outras mais homogêneas, e depois a outras mais
homogêneas, e depois a outras relativamente mais heterogêneas, sem que nenhuma seja ‘pura’
ou plenamente homogênea” (CANCLINI, 2003, p. xix-xx).
28

Um evento importante na história da interação do Japão com o Ocidente é a abertura


dos portos do país para outras nações, forçada pelos Estados Unidos, em 1854, após dois
séculos de isolamento voluntário dos japoneses. Com a chegada de estrangeiros como o inglês
Charles Wirgman e o francês Georges Bigot, começam a ser publicados no Japão os primeiros
cartuns em moldes europeus, que influenciariam a arte sequencial no país (LUYTEN, 2000).
Apesar de haver registros de usos anteriores, o termo mangá é atribuído ao
xilogravurista Katsushika Hokusai, que produziu uma série de gravuras sobre o cotidiano,
muitas das quais de cunho humorístico, que intitulou de Hokusai Mangá. União dos caracteres
“man” (漫), que significa “involuntário” ou “humor”, e“ga” (画), “desenho”,
algumas das traduções possíveis para a palavra “mangá” são “desenho humorístico” ou
“ilustração espontânea” (CARLOS, 2011; SATO, 2007).

Figura 2 – Hokusai Mangá

Vol. IV, 1819, xilogravura de Katsushika Hokusai


Fonte: WIKIMEDIA, 2014.

Em 1901, Rakuten Kitazawa, considerado o primeiro autor japonês de quadrinhos


propriamente ditos, dá início à primeira tirinha com personagens regulares. Ele também foi
responsável para resgatar o termo mangá, que passou então a significar “histórias em
quadrinhos”. Com a chegada da Segunda Guerra Mundial, que viria a marcar profundamente
a psique do país, a produção de mangás sofreu uma parada, tanto devido à escassez de papel
quanto à censura e ao esforço propagandístico da guerra (MOLINÉ, 2004).
29

Figura 3 – Primeira tirinha com


personagens fixos

Tagosaku to Mokube no Tokyo-Kenbutsu, de


Rakuten Kitazawa, 1902.
Fonte: WIKIMEDIA, 2007.

Após a derrota na Segunda Guerra, o país estava física, econômica e moralmente


devastado. Foi também militarmente ocupado pelos Estados Unidos, que impuseram diversas
mudanças para deixar o país nos moldes ocidentais, dentre elas a instituição de uma
constituição democrática. A censura que imperava durante a guerra foi abolida, o que
devolveu aos autores de mangá a liberdade para escrever as histórias que quisessem contar.
Passou a haver, no entanto, restrição quanto a conteúdos considerados ofensivos aos Estados
Unidos ou aos Países Aliados (MOLINÉ, 2004).
A população, empobrecida e sedenta por distrações, agora podia consumir a cultura
norte-americana, que durante a Guerra era proibida como símbolo do inimigo, fazendo-se, de
uma hora para outra, ubíquo no cotidiano japonês. Mas a cultura de massa nos moldes
ocidentais, como filmes e radionovelas, passou a ser produzida no país, hibridando os
formatos ocidentais com a tradição japonesas. A produção e circulação dos produtos
midiáticos de entretenimento foram fundamentais para recuperar a autoestima da população e
para definir a nova identidade do povo japonês (SATO, 2007). Uma forma de entretenimento
tradicional importante durante e depois da guerra e que viria a influenciar tanto mangás
30

quanto animês foi o kamishibai (teatro de papel), gênero performático em que o contador de
histórias usava cartões de papelão desenhados para contar uma história e garantir seu sustento
vendendo doces às crianças que vinham assistir à performance (STEINBERG, 2012).
Foi nessa época que a indústria do mangá, quase desmantelada e operando sob censura
durante a guerra, precisou se reinventar quase por completo. Ocorreu então o “renascimento”
das histórias em quadrinhos japonesas, gênese dos mangás como os conhecemos atualmente,
na qual a figura mais emblemática foi Osamu Tezuka, desenhista de mangá, animador e
empresário que entrou para a história como “deus do mangá”. Inspirado pelos comics, pelo
cinema, pelas animações ocidentais (especialmente as da Disney), credita-se a ele o posto de
criador dos mangás modernos, trazendo aos quadrinhos maior fluidez nos painéis,
enquadramentos de cenas cinematográficos ou mais próximos dos storyboards das animações
da Disney, além de ter introduzido maior dinâmica aos desenhos, dando a sensação de
movimento por meio de imagens estáticas (INGULSRUD, ALLEN, 2009).
Talvez um de seus maiores legados tenha sido sua maneira de desenhar os
personagens, com ar andrógino, traços simples e arredondados e olhos grandes e cheios de
reflexos, capazes de transparecer emoções, que se tornaram uma característica distintiva da
estética dos mangás e animês. Ele dizia ter se inspirado nos olhos muito maquiados das atrizes
do teatro Takarazuka, sua cidade natal. Independentemente de Tezuka ter ou não criado
sozinho essas técnicas, ele foi o responsável por juntar várias inovações que estavam surgindo
e agregar a elas elementos próprios, como seu estilo de desenho, e histórias interessantes com
personagens marcantes. Seu trabalho deu origem a um produto final que era familiar e
inovador o suficiente para se tornar um sucesso de público, influenciando gerações e gerações
de desenhistas de mangás e animadores (LUYTEN, 2000).
31

Figura 4 – Mangá de início de carreira de Tezuka

Shin Takarajima (Nova Ilha do Tesouro), de Osamu Tezuka, 1946.


Fonte: FESTIVAL..., 2015.

No final dos anos 1950, o sistema editorial de mangás sofreu uma importante
repaginação, quando se iniciou o boom das revistas semanais de mangá, instituindo um
formato de edição e publicação que ajudou a moldar o “caráter” dos mangás como mídia,
formato esse que dura até os dias de hoje.
Os mangás que conhecemos no Brasil são encadernados que compilam alguns
capítulos de uma única história, impressos com tinta preta sobre papel branco, numa
periodicidade que costuma ser mensal ou bimestral (CARLOS, 2011). Mas esse tipo de
edição equivale ao tankohon japonês, formato que só ganham as séries que sobrevivem à
aprovação dos leitores por algum tempo. A primeira vez que uma história em mangá é
publicada acontece em grossas revistas semanais ou quinzenais, impressas em papel jornal
tingido de diversas cores. Essas revistas não são de alguma história específica, e sim
publicações com alta segmentação de gênero, idade e interesses do público-alvo. Elas
serializam entre 20 e 30 histórias simultaneamente, que podem ser renovadas ou canceladas a
cada edição, dependendo da aprovação do público, que vota nos seus preferidos por meio de
um questionário que vem junto com a revista. As histórias que são canceladas abrem espaço
para novas séries dentre os muitos autores que estão sempre tentando emplacar uma nova obra,
já que as editoras constantemente recebem manuscritos novos (INGULSRUD, ALLEN, 2009).
Trata-se de um sistema editorial altamente exigente e desgastante para os autores (e
seus eventuais assistentes), que têm apenas uma semana para escrever, esboçar e desenhar um
capítulo, precisando receber a cada etapa a aprovação de seu editor. Esse é uma figura que
32

também tem grande envolvimento no processo criativo, tentando sempre ajudar os autores de
que está encarregado a escrever histórias que façam sucesso e se mantenham na volúvel lista
de renovações. Apenas depois da sobrevivência e sucesso de uma série é que ela é editada no
formato tankohon, compilando capítulos de uma única história em uma encadernação mais
nobre do que as baratas e descartáveis revistas semanais, das quais os japoneses se desfazem
após a leitura, assim como os brasileiros fazem com jornais diários.

Figura 5 – Formatos de mangá

Da esquerda para a direita: revista semanal de mangá, compilação, três formatos de edição de mangás no Brasil.
Fonte: CARLOS, 2009, p. 64.

1.2 Animês

As vendas dos mangás têm sofrido queda nos últimos 20 anos, o que não significa
necessariamente um fracasso para a indústria de entretenimento japonesa (INGULSRUD;
ALLEN, 2009). Os mangás fazem parte do media mix japonês, termo que se assemelha ao
conceito de convergência (JENKINS, 2006), em que produtos de uma mesma franquia
funcionam em sinergia, e não em competição com outras mídias e mercadorias que vendem
aqueles mesmos personagens e histórias em outros suportes. Marc Steinberg (2012) considera
que esse sistema de consumo interconectado entre diversos textos midiáticos, imagens e
produtos se estruturou mais organizadamente no país a partir da exibição daquele que é
considerado o primeiro animê propriamente dito, Tetsuwan Atomu (conhecido no Ocidente
como Astro Boy), em 1963, também pelas mãos de Osamu Tezuka.
33

Figura 6– Tetsuwan Atomu (Astro Boy)

Página do mangá (esquerda) e imagem do animê Tetsuwan Atomu, de Osamu Tezuka, 1952 e 1963,
respectivamente.
Fontes: MATHESON, 2009; POLAND, 2013.

O Japão já produzia animações curtas para o cinema e comerciais de televisão desde 1917,
mas não havia nenhuma animação seriada para a televisão, em parte porque os custos e o
tempo necessários para produzir vários episódios seriam exorbitantes. O método de animação
utilizado no país até então era o de full animation, empregado, por exemplo, pela Disney. No
Japão, há certa confusão acerca do termo animê, já que para o grande público, qualquer
desenho animado, independentemente de sua origem ou modo de produção, pode ser chamado
de animê. Mas para puristas como o diretor Hayao Miyazaki, famoso no Ocidente por seus
trabalhos em full animation, como A Viagem de Chihiro, seriam animês apenas as obras
criadas pelo processo limited animation, sistematizado por Osamu Tezuka (STEINBERG,
2012).
Tendo fundado sua própria empresa para realizar seu antigo sonho de animar, Tezuka
reuniu e aperfeiçoou diversas técnicas de limited animation, processo de animação utilizado
por estúdios como Hanna-Barbera, que ofereciam produtos finais que, para o “deus do
mangá”, deixavam a desejar. Tezuka e companhia utilizavam várias técnicas que reduziam o
número de desenhos necessários para completar um episódio de 25 minutos de Tetsuwan
Atomu, reutilizando desenhos de um banco de células e criando a sensação de ação a partir
dos ritmos da imagem parada e do súbito movimento, que dá a sensação de menor fluidez e
34

maior impacto do que o movimento da full animation. Muitas vezes eram apenas a voz e os
efeitos sonoros que conferiam a sensação de que algo estava acontecendo enquanto a tela só
exibia uma imagem parada, gerando críticas que afirmavam que o que Tezuka fazia nem
podia ser considerado animação. O próprio dizia que a série televisiva Tetsuwan Atomu era
mangá em movimento, mas que era sempre preciso tomar cuidado para que não virasse
apenas um kamishibai elétrico (STEINBERG, 2012).
Assim, o dinamismo cinematográfico da imagem parada do mangá, as técnicas
narrativas das performances de kamishibai e as restrições orçamentárias que levaram à
utilização do processo limited animation tiveram influência na conformação dos animês como
mídia. A relação do animê com o mangá, que os levaria a ser considerados “artes-irmãs”
(FARIA, 2008), não é a única conexão transmidiática que compõe o media mix japonês.
Tezuka inspirou-se em Walt Disney não só no estilo de seus personagens, mas também no
modelo de negócios baseado em fazer merchandising de outros produtos usando seus
personagens, o que foi importante para conferir rentabilidade a uma animação que era cara
mesmo com todas as restrições orçamentárias aplicadas, e que não pagaria seus custos apenas
com a venda do desenho para a emissora.
Esse modo de custeamento por meio de merchandising, que possibilitou o sucesso do
nascente media mix japonês (apesar de só ter vindo a ser chamado assim bem mais tarde)
ocorreu em consonância com as condições econômicas e culturais favoráveis do Japão da
época, que viveu nos anos 1960 um período de fortalecimento da indústria e grande paz e
prosperidade. Ocorria o chamado “milagre econômico” do Japão, que em poucas décadas
deixava de ser uma nação devastada e humilhada pela guerra e caminhava para se tornar uma
das maiores potências econômicas mundiais (BARRAL, 2000).

1.3 Surgimento dos otakus no Japão

Do final da década de 1970 até a década de 1980, o país conheceu um período de


grande prosperidade econômica, atingindo o sonho resultante de um esforço de décadas para
reerguer a nação após a derrota na Segunda Guerra. Não parecia haver mais um ideal que
unificasse o país, e essa falta de objetivo somada ao consumismo que impelia a economia
teria criado as condições propícias para o surgimento dos otakus.
35

Em 1983, então, o colunista Akio Nakamori escreve para a revista Manga Burikko um
curto artigo em que usa pela primeira vez o termo “otaku”, antes meramente uma palavra que
significava “casa”, mas que também possuía valor semântico de pronome de 2ª pessoa, para
designar um grupo social relativamente novo. Tratavam-se de jovens, em sua maioria homens,
que tinham dificuldade de interagir com outras pessoas, preferindo viver cercados de
computadores, animês e miniaturas em vez de assumirem as responsabilidades da vida adulta.
Esses jovens usavam o termo “otaku”, polido demais para situações informais, para se dirigir
uns aos outros, talvez como forma de manter o distanciamento. Essa primeira instância em
que o rótulo é usado já é bastante pejorativa, o que fica claro pelo desdém de Nakamori em
relação a esses jovens, os quais descreve após uma visita ao Comiket, famosa feira de
fanzines de mangás:

Os rapazes eram todos ou pele e osso, como se fossem quase desnutridos, ou então
porquinhos guinchantes com rosto tão rechonchudo que as hastes de seus óculos
prateados corriam risco de desaparecer nas laterais da face; todas as garotas tinham
cabelos curtos e a maioria estava acima do peso, as pernas atarracadas como árvores
apertadas em longas meias brancas14 (NAKAMORI, 1983).

O francês Étienne Barral (2000) mais tarde diagnosticaria as origens do fenômeno


otaku como uma combinação do rígido sistema educacional japonês, que privilegia a absorção
de informação em detrimento do aprendizado mais profundo, a um ambiente econômico e
social que privilegia o consumo, tanto cultural quanto material.
A alcunha otaku só ganhou adesão nacional, entretanto, com o caso de Tsutomu
Miyazaki, assassino em série que sequestrou, violentou e matou quatro meninas que tinham
entre quatro e sete anos, tendo ainda praticado necrofilia e canibalismo com os cadáveres.
Após a descoberta de uma coleção de milhares de fitas VHS no quarto de Miyazaki, das quais
muitas eram episódios de animês, a mídia deu-lhe a alcunha de “O Assassino Otaku”. O
incidente virou um escândalo midiático que sacudiu o país e transformou-se em um pânico
moral contra os otakus, que passaram a ser vistos como pervertidos e criminosos em potencial.
O segundo evento trágico que viria a ser ligado aos otakus foi o ataque terrorista de
gás sarin no metrô de Tóquio, perpetrado em 1995 pela seita apocalíptica de orientação
budista Aum Shinrikyo. O líder carismático, Shoko Asahara, conseguiu atrair milhares de
seguidores com uma mistura de budismo e elementos de ficção científica retirados de animês,
mangás e seriados de super-heróis. O ataque ganhou cobertura midiática internacional e só
14
Tradução nossa, da versão em inglês: “The boys were all either skin and bones as if borderline malnourished,
or squealing piggies with faces so chubby the arms of their silver-plated eyeglasses were in danger of
disappearing into the sides of their brow; all of the girls sported bobbed hair and most were overweight, their
tubby, tree-like legs stuffed into long white socks.”
36

reforçou o estereótipo negativo associado aos otakus. Esses são alguns dos motivos pelos
quais,

De fato, poucos jovens no Japão vangloriam-se de serem eles mesmos otaku. Não é
um qualificativo que se ostente no peito. É muito mais um termo reservado a
terceiros, seja em tom de brincadeira, seja como reprovação, até mesmo insulto
(BARRAL, 2000, p. 28).

Figura 7 – Mangá da seita Aum Shinrikyo

Página do mangá de propaganda My Guru, que fala sobre os supostos poderes


paranormais do líder da seita Aum Shinrikyo, Shoko Asahara.
Fonte: GARDNER, 2008, p. 208.

Identificando os sentimentos de derrota e superação em que se funda o pop japonês no


pós-guerra, Azuma (2001) resume os animês e mangás que alimentam o que ele chama de
“cultura otaku” como adaptações locais de técnicas e linguagens importadas dos Estados
Unidos. Essa questão engendraria, nesses quadrinhos e animações, a profusão de temáticas
aparentemente ligadas à tradição e ao folclore japonês, mas que já surgem aí totalmente
imersas em hibridações. O filósofo destaca assim a obsessão otaku com uma
37

“pseudojaponesidade” que só existe a partir do momento em que essa “japonesidade” já se


perdeu.

1.4 O quão japoneses são animês e mangás?

Assim como para os otakus japoneses, que buscavam nos produtos de entretenimento
nipônico, segundo Azuma (2001), uma pseudojaponesidade para substituir o vácuo deixado
por alguma japonesidade real que já teria se perdido, também os fãs brasileiros buscavam e
ainda buscam nos mesmos produtos certa essência de japonesidade. Uma característica
importante dos otakus ocidentais é a relação de reverência com o Japão e com quase tudo
aquilo que é japonês.

na verdade eu sempre gostei muito da cultura japonesa. ainda na escola, lembro de ir


à biblioteca pra ler livros sobre o japão, sua história etc. quando caía era feudal na
prova de história era nota máxima na certa. então desde o meu primeiro contato com
essas animações já sabia do que se tratavam. o que eu não conhecia era o conceito
do "anime". sabia, sim que era uma animação feita no japão. mas não fazia ideia do
fenomeno cultural que representava. isso eu só vim a descobrir alguns anos depois, e
foi quando comecei a frequentar os eventos de anime (entrevistado, ex-frequentador,
30 anos).

Os otakus valorizam muito a “autenticidade” do material que consomem, que deve ser
o mais próximo possível do original. Não obstante os processos de hibridação que originaram
e continuam modificando a tribo otaku brasileira e dos próprios animê e mangás como mídias,
os otakus brasileiros buscam aproximar-se de algum modo dessa essência japonesa,
exatamente porque é esse “diferencial” que os destaca das pessoas que não pertencem à tribo.
Essa busca de uma pureza nipônica espelha aquela da própria cultura otaku japonesa
(AZUMA, 2001).
Muitos otakus se interessam inicialmente por algum aspecto da cultura pop japonesa,
que lhes abre o leque de opções em relação a outros aspectos desse pop e, mais tarde, para
outros elementos do cotidiano e da “cultura tradicional” do Japão. Acabam querendo aprender
japonês, fazer lutas marciais japonesas e seu sonho é ir para o Japão.

acho que é bem essa a minha relação. a da idiota que vai pra inglaterra e CAÇA
asiáticos pra se relacionar. (sim, fiz mt esforço pra fazer parte do grupinho deles)
hahahaha. eu diria q é uma relação meio romântica sei lá. tipo, smp tive vontade de
conhecer o japao. e até por conta disso fui estudar japones. mas eu era criança e nao
38

sabia nd sobre o japao. o japao dos animês é mt bonito e acho que na prática nao é
bem assim. por isso acho q é meio romântica. eu sou o tipo de pessoa q qr ir pra lá
só pq gosta do entretenimento deles. mas acho q eu nao sobreviveria lá mt tempo
(entrevistada, ex-frequentadora, 24 anos).

eu tive uma experiencia muito engraçada sobre isso...tenho um professor que é


japonês e em uma conversa com ele, o proprio me disse que sou mais japonesa que
ele. pq ele não quis aprender a língua nem se envolver coma s coisas de lá...
(entrevistada, frequentadora, 26 anos).

Um dos motivos mais citados pelos otakus para explicar seu fascínio pelos mangás e
animês são os valores japoneses que depreendem de suas leituras. Temas como honra,
amizade, lealdade, esforço e sacrifício do indivíduo em prol de outros podem ser interpretados
não só como uma busca por valores que esses jovens não encontrariam na sociedade ocidental
(LOURENÇO, 2009), mas também como um desejo patentemente tribal de fundir-se em uma
coletividade.

Acho outros desenhos as vezes muito repetitivos em temas mais infantis [...] Gosto
muito de história e personagens que tipo se fazem fortes e superam as dificuldades.
Além dos mundos me atraírem muito (entrevistada, frequentadora, 18 anos).

Hmm, gosto de animes que tem romance, e que passam uma alguma lição legal.
Todos os que eu já vi são assim rs [...] Naruto é o principal pra mim. Gosto muito da
lição de amizade que ele passa. Inuyasha gosto bastante por causa do romance.
Sakura Card Captors também pelo romance rs, e também a amizade que é bem legal.
Clannad é um dos que tem uma história muito linda que me marcou, sobre valorizar
a família (entrevistada, frequentadora, 21 anos).

Mas, ao passo que os japoneses buscavam nos animês um espaço simbólico de


construção de identidade cujo cerne é um “nós” nacionalista, os brasileiros anseiam por forjar
sua identidade cosmopolita, em certa medida diferenciando-se de seus compatriotas por meio
do consumo cultural de um “outro” que traz à baila a questão do orientalismo, que se refere
não só a visões preconceituosas do Oriente como também ao fascínio por esse “outro”,
fazendo com que se queira compreendê-lo e até incorporá-lo.
O orientalismo, para Edward Said (1990), é um sistema de pensamento que é não só
descritivo como produtivo da dicotomia Oriente/Ocidente, já que os dois conceitos são
inseparáveis entre si e também da relação de poder a que se referem. “Oriente” e “Ocidente”
não existem a priori, são histórica, cultural e socialmente construídos, apesar de já estarem tão
naturalizados devido à sua “utilidade”. Não significa, no entanto, que não tenham referência
na realidade, uma vez que a própria utilização desses conceitos fez parte de seu
estabelecimento como “entidades” reconhecíveis. Essa dualidade carrega consigo,
39

inexoravelmente, a ideia de Ocidente como centro e Oriente como “outro” a partir do qual o
Ocidente pôde construir, por oposição, sua “identidade”.
Utilizar os rótulos “Ocidente” e “Oriente” é um ato ideológico que colabora para um
sistema de pensamento que cria uma distinção polar entre um “nós” ocidental de um “eles”
oriental. Mas é muito difícil fugir desses artifícios argumentativos, motivo pelo qual os
emprego aqui, consciente dessa questão. Esses conceitos se complicam ainda mais no caso do
consumo do pop japonês no Brasil quando constatamos que o Japão é por vezes considerado
tecnologicamente ocidental e a América-Latina, um Ocidente “incompleto” (HALL, 1992).
A globalização, processo inseparável da constituição do Ocidente como centro,
colocou em cheque as instituições da identidade pessoal e da identidade cultural, caso em que
se encaixa a nacionalidade. Mesmo entendendo que o conceito de nacionalidade se complica
no momento atual da modernidade, essa continua sendo uma categoria importante para os
brasileiros que consomem o pop japonês, de modo que cabe avaliar o quão “japoneses” são
animês e mangás. Seriam eles autênticos representantes culturais do país ou apenas produtos
culturalmente inodoros nascidos das hibridações de um mundo globalizado?
Como dito anteriormente, a cultura pop foi importante na redefinição da identidade
nacional japonesa após a Segunda Guerra (SATO, 2007). Os mangás já nascem no contexto
de globalização da modernidade tardia, mas as influências que ajudaram a dar forma aos
quadrinhos japoneses começaram no século XIX, com os cartunistas europeus que chegaram
ao país após a abertura dos portos. Os processos de hibridação se intensificaram após a
Segunda Guerra, na qual a derrota do Japão vem acompanhada pela ocupação norte-
americana. Seguindo a trajetória de um único criador de mangás e animador, Osamu Tezuka,
podemos mapear as hibridações dos mangás produzidos no Japão antes da guerra com o
kamishibai, o teatro Takarazuka, os desenhos da Disney e o cinema (LUYTEN, 2000).
Com a estruturação da indústria dos animês, que se apoiou no fato de que grande parte
dos japoneses já possuía aparelhos televisores, a técnica de limited animation foi adaptada à
realidade do país. Mesmo precisando desenhar menos quadros no total, ainda no final dos
anos 1960, o trabalho de animação dos animês passou a ser em parte terceirizado,
inicialmente para a Coreia do Sul, e, mais tarde, para outros países, como Taiwan, Filipinas e
Tailândia (STEINBERG, 2012).
Com o boom da cultura pop japonesa no mundo, o estilo dos animês e mangás passou
a ser copiado em animações, quadrinhos e propagandas ao redor do mundo, tornando-se uma
estética mundialmente conhecida. Isso porque a cultura pop, especialmente a de ampla
circulação transnacional, tende a uma desterritorialização cosmopolita. O crítico cultural
40

Koichi Iwabuchi (2002) chegou a dizer que os animês seriam culturalmente inodoros
(mukokuseki), o que significa que seriam étnica, cultural e racialmente não marcados, como se
exatamente por apresentarem um Japão “desniponizado” é que fossem culturalmente
exportáveis. Já outros, como Susan Napier (2007), acreditam que é o equilíbrio entre
alteridade e familiaridade, a partir do ponto de vista estrangeiro ao Japão, que os permitiu ser
ao mesmo tempo compreensíveis e fascinantes para esses públicos. O fato é que os fãs
brasileiros encontram alguma especificidade que os faz gostar de animês e mangás.

Acho outros desenhos as vezes muito repetitivos em temas mais infantis


Claro que tem suas exceções tipo Adventure Time e Steven Universe
Gosto muito de história e personagens que tipo se fazem fortes e superam as
dificuldades. Além dos mundos me atraírem muito (entrevistada, frequentadora, 18
anos).

[Gosto] do estilo mesmo! As histórias sempre são boas


Sempre tem um diferencial das histórias ocidentais (entrevistado, frequentador, 26
anos).

não tem em todos, mas tem em alguns que eu gosto: início, meio e fim. você segue o
personagem desde o princípio e vai acompanhando a jornada até o desfecho. nesse
meio tempo o personagem envelhece, casa, tem filhos, perde aliados, ganha outros e
assim vai. é legal porque é bem diferente dos comics ou das animações americanas,
por exemplo, que parecem deixar os personagens estacionados no tempo. nos
comics é ainda pior, tem personagem que tem 20 anos desde a década de 1960
(entrevistado, ex-frequentador, 30 anos).

Figura 8 – Turma da Mônica e Osamu Tezuka

Capa da revista Turma da Mônica Jovem, que reúne os


personagens de Maurício de Sousa “em estilo mangá”
aos de Osamu Tezuka
Fonte: LIMA, 2012.
41

Mas a questão da identidade nacional já atravessava a história do Japão antes mesmo


de a globalização da modernidade tardia tornar o país um enorme exportador cultural. A
questão da singularidade japonesa (nihonjinron) vem sendo debatida desde o século XVII.
Essa linha de pensamento prega que o Japão é um país único, seja em relação ao Ocidente ou
em relação aos próprios vizinhos asiáticos, devido à sua insularidade e ao fato de nunca ter
sido colonizado. E, posteriormente, por ter permanecido “fechado” por dois séculos, o país
teria podido desenvolver uma cultura singular (ORTIZ, 2000).
Além de se apoiar no mito da unicidade nipônica, ignorando as contradições internas e
essencializando aqueles que seriam os traços do “caráter japonês”, a literatura nihonjinron
neutraliza as influências determinantes da China e dos EUA, explicando-as por meio da ideia
de que o Japão seria excelente em indigenizar conteúdos “importados” sem abrir mão da
“alma” japonesa, adaptando-os sem comprometer sua identidade. Assim, vemos que a
existência de um “ser” japonês é incerta desde o princípio, vindo à tona como uma questão a
ser pensada pelos japoneses mesmo durante o período Tokugawa, em que o Japão estaria
“protegido” das influências externas.
Mas nada disso significa que a (falta de) japonesidade encontrada na cultura pop
nipônica por japoneses e brasileiros, que a utilizam em seus processos de identificação, seja
insignificante, já que a autenticidade não é algo ontológico, e sim um efeito de percepção.

Nesse sentido, a discussão sobre a autenticidade ou a inautenticidade das identidades


é um falso problema. Desde que convincente, isto é, socialmente plausível, uma
identidade é sempre válida, o que não significa que seja “verdadeira” ou “falsa”
(ORTIZ, 2000, p. 64-65).

A globalização, processo marcado por diversos paradoxos e contradições, criou fluxos


culturais e mercadológicos que possibilitaram o compartilhamento de identidades cujo
repertório material e simbólico extravasa limites geográficos. Ocasionou também uma busca
renovada pela reconstrução de identidades nacionais que querem resgatar a tradição, nem que
essa seja a aptidão para indigenizar tendências “importadas”, além de “uma fascinação com a
diferença e com a mercantilização da etnia e da ‘alteridade’” (HALL, 2005, p. 77). É no
contexto das identidades partilhadas e da mercantilização da diferença facilitadas pela
globalização que o Japão acaba fortuitamente “exportando” o conceito de otaku, quando se
prolifera o consumo de seus produtos de massa em diversos países.
42

2 TRANSFORMAÇÕES NOS EVENTOS DE ANIMÊ

Rei: Isso é seu eu atual.


Asuka: E as pessoas ao redor de seu eu atual.
Rei: E o ambiente que cerca seu eu atual.
Misato: Nada disso dura pra sempre.
Asuka: O tempo continua a fluir e traz mudanças.
Rei: Seu mundo está em constante mudança. Você é capaz de mudar
sempre que sua mente perceber essas mudanças.
Neon Genesis Evangelion

2.1 Chegada da cultura pop japonesa ao Brasil e os precursores dos eventos

O conceito de otaku chegou ao Brasil e a outros países nos quais há muitos fãs de
mangás e animês com uma carga bem mais leve do que aquela que tinha no país de origem.
Ser otaku por aqui significa ser ávido consumidor da cultura pop japonesa e ter consciência da
origem desses produtos de entretenimento (CARLOS, 2011). Foi essa identificação que
fundou o pertencimento tribal que levou à criação e à consolidação dos eventos de animê,
ainda que essa denominação só se tenha espalhado ao redor do mundo por volta dos anos
1990. Os animês e mangás, quando de sua popularização no país, ainda demoraram a ficar
conhecidos pelos fãs por suas denominações japonesas, e mais tempo ainda até que esses
nomes se difundissem entre os não-iniciados. Como coloca Sérgio Peixoto, personalidade
importante na promoção da cultura pop japonesa e na história dos eventos de animê no Brasil:

Sérgio Peixoto: Naquela época, nem a gente usava o termo otaku, não tinha o termo
otaku [...] Você era fã de desenho animado japonês, era desse jeito mesmo. (dito no
podcast SANTOS et al., 2016a).

Gostar de animês e mangás tornou-se algo relativamente comum no Brasil, não


causando grande estranhamento nos dias de hoje, mas nem sempre foi tão fácil para os
brasileiros acompanhar produções nipônicas. Até meados dos anos 1990, as animações e
séries japonesas exibidas na televisão brasileira eram poucas, muitas vezes adquiridas pelas
emissoras como forma de tapar buracos na programação e transmitidas de forma irregular.
43

Ocasionalmente, alguma delas virava um grande sucesso, como o tokusatsu (série de efeitos
especiais) Ultraman e o animê Speed Racer (originalmente chamado Mach Go Go Go, que
muitos brasileiros nem sabiam ser nipônico), nos anos 1970 (LOURENÇO, 2009). Mas, em
termos de heróis japoneses que ganharam o coração de toda uma geração de crianças
brasileiras, pode-se dizer que o pioneiro foi National Kid, série que nem fez tanto sucesso no
Japão.

O que nos longínquos anos 60 [...] era apenas diversão e fantasia, hoje, representa
um marco. Mais do que combater os Incas Venusianos e os Seres Abissais, este
herói ficará imortalizado por desbravar uma “fronteira imaginária”, o que
possibilitou — e ainda possibilita — a várias gerações conhecer a magia dos
seriados, desenhos e quadrinhos nipônicos (GUSMAN, 2001).

Figura 9 – National Kid e Speed Racer

Figura 7

Tokusatsu e animê que fizeram sucesso no Brasil antes do boom dos animês
Fonte: GOMES, 2013; SIMÕES, 2015.

Os tokusatsu tiveram um importante papel em alavancar o interesse brasileiro pelo pop


nipônico também nos anos 1980, com séries como Jaspion e Changeman, de modo que
abriram caminho para a popularização dos animês na década seguinte, ainda que hoje em dia
não façam mais tanta parte do quadro de referências dos otakus mais jovens (NAGADO,
2004).
Como os animês e tokusatsu exibidos na televisão brasileira eram poucos, os fãs
precisavam recorrer a locadoras especializadas, que existiam inicialmente apenas no bairro da
Liberdade, em São Paulo. Mesmo para os paulistas, havia o empecilho extra de que essas
locadoras só ofereciam seus catálogos, a princípio, para japoneses ou descendentes (SANTOS
et al., 2016a). O material alugado, copiado em VHS e muitas vezes sem nenhum tipo de
legenda ou tradução, era compartilhado inicialmente apenas em pequenos círculos de amigos.
Esses grupos foram crescendo e se oganizando sob a forma de clubes e associações, que
promoviam exibições regulares, distribuíam entre si o material que conseguiam e, mais
raramente, legendavam amadoramente os animês e tokusatsu (LOURENÇO, 2009).
44

Sérgio Peixoto: Naquela época já havia as locadoras que você pegava muito
material do Japão. Eles gravavam programas do Japão e botavam pra alugar aqui no
Brasil [...] Eles gravavam o que passava na TV, jogavam numa fita VHS, mandavam
pelo correio pra cá. Chegava aqui eles duplicavam e botavam na prateleira pra
alugar, sem legenda, sem nada. [...] Chegou a ter mais de 40 locadoras só no bairro
da Liberdade (dito no podcast SANTOS et al., 2016a).

Em 1984 foi fundada a ABRADEMI (Associação Brasileira de Desenhistas de Mangá


e Ilustrações), a partir da união de duas associações mais antigas de apreciadores de
quadrinhos japoneses. Essa nova Associação, idealizada por figuras importantes como a
professora Sonia Luyten, tinha como objetivo promover a disseminação de conhecimentos
acerca de mangás e animês, além de incentivar a produção nacional de mangás. A
ABRADEMI realizava mostras e concursos de mangás e ilustrações, sendo um de seus
importantes feitos ter trazido Osamu Tezuka ao Brasil para proferir uma aula/palestra na IV
Exposição de Quadrinhos e Ilustrações da ABRADEMI, ainda no ano de sua fundação. Em
1986, a Associação promoveu a primeira exibição pública de animê, como conta Sérgio
Peixoto, que fazia então parte do grupo:

Sérgio Peixoto: Com a autorização da ABRADEMI, eu organizei a primeira


exibição pública de anime no Brasil. Foi em junho de 1986 no prédio da Sociedade
de Cultura Japonesa. Vieram umas 70 pessoas pra uma sala. Era uma TV de umas
29 polegadas e um vídeo cassete e alguns animes que eu peguei alugado da ABC
Vídeo (dito no podcast SANTOS et al., 2016a).

Em 1988, Sérgio Peixoto e José Roberto Pereira organizaram uma mostra de animê no
SESC Pompéia para promover seu recém-criado fã-clube ORCADE (Organização Cultural de
Animação e Desenho). Foi um mês inteiro de exibições de animê e exposições de mangás e
miniaturas, que reuniu 20 mil pessoas no total. Os animês e live-actions exibidos, desde
clássicos como A Princesa e o Cavaleiro e National Kid e, até sucessos na época recentes
como Patrulha Estelar, ainda não tinham nenhum tipo de legenda ou tradução.

Sérgio Peixoto: A gente exibiu um monte de anime classudo lá, tudo sem legenda,
só que pra não ficar no vácuo, a gente fazia uma sinopse e distribuía no auditório
onde era feita a exibição. [...] Eu expus a minha coleção pessoal de pôsters [...] Eu
expus também parte da minha coleção pessoal de revistas informativas de anime [...]
Expus alguns mangás, um outro rapaz emprestou a coleção de kits pra montar que
ele tinha de vários desenhos de ficção [...] Num set eram as naves do Yamato, no
outro eram os robôs do Macross [...] E alguns pequenos debates que a gente teve,
mas assim, só pra discutir coisa de fã mesmo [...] Não teve concurso de cosplay, não
teve palestra de dublador, não teve nada disso (dito no podcast SANTOS et al.,
2016a)).
45

Figura 10– Exposições

Exposição de revistas e miniaturas na 1ª Exposição de Desenho Animado Japonês.


Fonte: PEIXOTO, 2013.

Exibições de animê já existiam, portanto, mesmo antes do boom dos animês no Brasil,
que se deu em 1994, deflagrado pela exibição de Cavaleiros do Zodíaco na Rede Manchete.
Devido ao enorme sucesso que o desenho fizera em outros países como México, Portugal e
Estados Unidos, os Cavaleiros já chegaram por aqui acompanhados de uma forte estratégia
mercadológica, apoiada em produtos que já existiam como parte do media mix japonês. Com
efeito, o direito de exibição do animê foi cedido à Rede Manchete sem nenhum custo
monetário, apenas com a condição de a emissora exibir a propaganda dos produtos
relacionados à série (LOURENÇO, 2009).
Segundo a primeira edição da revista Herói (SUPERMANIA..., 1994), os bonecos
baseados no animê chegaram às lojas brasileiras apenas 12 dias após a estreia do desenho,
chegando à marca de mais de 300 mil unidades vendidas em menos de três meses. Além dos
bonecos, diversos outros produtos relacionados ao desenho foram licenciados no Brasil, e a
rápida popularidade alcançada por Cavaleiros chamou a atenção das grandes emissoras de TV
aberta para o enorme potencial financeiro das séries nipônicas.
Ainda demoraria anos até que os mangás nos quais animês de sucesso como
Cavaleiros do Zodíaco, Dragon Ball e Sailor Moon são baseados fossem vendidos por aqui, o
que não impediu o mercado editorial de embarcar no fenômeno. Como a internet ainda era
incipiente, o público ficou sedento por mais informações a respeito dessas e outras animações,
o que levou à criação de revistas que exploravam o assunto, das quais a mais famosa foi a já
mencionada Herói (LOURENÇO, 2009). Essa publicação não tratava apenas da cultura pop
46

japonesa, mas logo surgiram outras com esse foco, como a Animax e a Anime Ex, ambas
editadas por Sérgio Peixoto.
Tais revistas especializadas foram importantes centralizadoras dos fãs de animê dos
anos 1990, familiarizando o público brasileiro com o mundo do entretenimento de massa
nipônico e trazendo informações sobre séries que ainda nem tinham chegado às nossas
telinhas. Além disso, essas revistas buscavam interagir com o público respondendo cartas de
leitores, dando espaço a ilustrações e mangás curtos feitos pelos fãs, realizando enquetes e
promoções. Traziam ainda anúncios de produtos de animês, divulgavam iniciativas dos
leitores (como fã clubes de exibição e troca de fitas VHS de animê) e informavam a respeito
de atrações de interesse, como mostras de ilustrações e, mais tarde, eventos de animê. À
revista Animax é também atribuída a popularização do termo “otaku” para designar fã de
mangás, animês e tokusatsu (LOURENÇO, 2009).
Já após a chegada de Cavaleiros do Zodíaco ao país, aconteceu em 1995 em Belo
Horizonte um encontro para fãs de animê, em que houve exibição de Macross 2 legendado em
português, além de palestras, exposições de miniaturas e pôsteres. A ABRADEMI realizou,
no mesmo ano, sua primeira exposição de mangás fora de São Paulo, que aconteceu em
Curitiba, para um número limitado de pessoas, já que o número de interessados foi grande.
No ano de 1996, quando começam os eventos propriamente ditos no Brasil, mas meses
antes do Mangácon, aconteceu em Porto Alegre o Quadrimania, organizado por Daniel HDR,
artista brasileiro com estilo de desenho fortemente inspirado nos mangás e famoso por
trabalhar para editoras de quadrinhos internacionais. O evento era de quadrinhos em geral,
mas houve “exibições de filmes e desenhos animados japoneses inéditos e uma feira
permanentemente aberta onde se vendeu de tudo: mangás, quadrinhos importados, garage-
kits15, cards de mangá, jogos para computador” (PEIXOTO, 1996). Nesse evento, foi lançado
o primeiro fanzine brasileiro de mangá, chamado Dojinshi, desenhado pelos alunos do
Visuarte, grupo que dava aulas de desenho e foi o responsável por organizar o encontro.

15
Bonecos que vêm em partes para ser montados e pintados pela própria pessoa, processo demorado e que exige
o conhecimento de diversas técnicas.
47

Figura 11 – Folheto Quadrimania

Capa do folheto do Quadrimania, com Seiya,


personagem de Cavaleiros do Zodíaco, em meio a
personagens de comics
Fonte: PEIXOTO, 1996.

2.2 Os primeiros eventos de anime

Foi nesse contexto de interesse pela cultura pop japonesa, com diversos fã-clubes de
animê surgindo e organizando exibições e exposições, que a ABRADEMI comemorou o 12º
aniversário da instituição, em 1996, que já prenunciava várias das atrações que viriam a fazer
parte da fórmula para esse tipo de convenção: exibição de animê, exposição de esculturas dos
Cavaleiros do Zodíaco, música de animê tocando. Além disso, a comemoração já contava
com um elemento que viria a se tornar quase que onipresente nos eventos, a fila para entrar:
“O público estava tão interessado que o evento que estava programado para começar às 15
horas teve que começar antes, já que todos estavam aguardando na porta da Associação
Shizuoka, em São Paulo” (ABRADEMI, 2012a, online).
48

Em outubro do mesmo ano, o grupo organizou a Mangácon (Convenção Nacional de


Mangá e Animê), considerada o primeiro evento de animê nos moldes atuais, incluindo
palestras, concurso de cosplay (fantasias de personagens) e estandes de lojas (MACHADO,
2009). Há poucas informações sobre esse evento, que foi fechado para associados, mas seu
sucesso fez com que a Mangácon II, em 1997, acontecesse “num salão todo enfeitado, com
exposições de posters e desenhos vencedores do Abrademi Contest, esculturas de personagens
de mangá, Ultraman e Red King gigantes, painéis interativos e o painel do mangá”
(ABRADEMI, 1998, online), contando com lojas vendendo itens de mangá e animê. A
exibição de animê viria a ser importante para a fórmula nos anos que se seguiriam, mas a
Mangácon, que aconteceu até o ano 2000, se orgulhava do diferencial de não depender desse
tipo de atração.

A introdução do karaokê, do shows de dubladores, da exposição de pôsters e


esculturas, e de apresentações de taikô, kendô e softbol, são inovações da Abrademi,
enquanto que em eventos similares no exterior a principal atração é a exibição de
vídeos (ABRADEMI, 1999a, online).
49

Figura 12 – Mangácon II, em 1997

Fonte: ABRADEMI, 1998.

As reuniões, exibições e, posteriormente, eventos que aconteciam no fim dos anos


1980 e em toda a década de 1990 eram organizados por associações ou fã-clubes de fãs de
animação japonesa, que promoviam exibições regulares de animê, quer fossem abertas ou
apenas para seus integrantes. Os eventos surgiam, então, de forma orgânica a partir das
50

atividades dos clubes, e não a partir de um grupo que se reunia exclusivamente para organizar
eventos.

Thiago Almeida: Os eventos no início não eram nada mais do que, assim, exibição
de anime, entendeu? Eram salas, ou algum lugar um pouco mais amplo, tipo uma
quadra, onde você tinha... Nem um projetor não, era uma TV de tubo 29, e a galera
sentava e ficava vendo anime o dia todo. E aí foram aparecendo alguns
estandezinhos vendendo uma camiseta, vendendo um chaveirinho e tal, e aí a coisa
começou a ter cara de evento mesmo (dito no podcast ALMEIDA et al., 2014).

Os eventos dessa época eram, portanto, eventos de fã-clubes, já que a denominação


“evento de animê” só “pegaria” no ano 2000. Até hoje não existe uma denominação unívoca
para os eventos, que são conhecidos também como convenções de animê, eventos otaku e
animencontros.
Em 1997, aconteceu o I Encontro Nacional de Fãs de Mangá e Animê, do grupo
Danketsushou, em Curitiba, com exposição de desenhos de membros do fã-clube,
apresentação do Grupo Vocal Danketsushou, vestidos de cosplay, cantando músicas de
animês, além do lançamento do fanzine de mangá com maior tiragem até então: 500
exemplares (PEIXOTO, 1997). No ano seguinte, o Danketsushou organizou o I Encontro
Internacional de Fãs de Mangá e Animê, dessa vez com uma sala de exibição de animê em
uma sala de cinema com 200 lugares, atraindo 400 visitantes durante os 5 dias de evento
(RADTKE; FERREIRA, 1999).
Também em 1998, houve o primeiro Animencontro, na mesma cidade, organizado
pela extinta ABRADEMI Paraná em conjunto com o fã-clube Anime Nation, o qual promovia
exibições periódicas de animê. O foco do evento, diferentemente da Mangácon e do primeiro
Danketsushou, era a exibição de animês (MIRAGE KNIGHTS STORE, 2011b). Houve
também exposição de mangás, de brinquedos e maquetes, e uma palestra com o diretor da
ABRADEMI-PR. No ano de 1999, o press release a respeito do III Animencontro informava
que

Devido ao grande sucesso dos dois primeiros eventos (com a participação efetiva de
cerca de 70 pessoas), o evento terá dois dias e serão convidadas personalidades
envolvidas com animes (dubladores da TV, editores de revistas especializadas,
maqueteiros, etc.). Por isso, a opção foi realizar este 3o Animencontro na
Cinemateca da Fundação Cultural de Curitiba, para abranger um número bem maior
de participantes para este evento. A novidade é um concurso de ilustrações, e um
concurso de fantasias de personagens de animes (Cosplay ou Costume Play), além
da exposição de grupos de fanzines (Fan Magazines) e a presença de lojas, com
venda de material relacionado a anime e mangá. (RADTKE; FERREIRA, 1999)
51

Curioso notar que a presença de 70 pessoas era considerada um feito impressionante


na época. Nesse mesmo evento, aconteceu a primeira apresentação de cosplay com atuação, já
que, anteriormente, os cosplays em eventos não contavam com representação de personagem,
apenas com desfile.
Em janeiro de 1999, aconteceu o BH Anime, realizado pelo fã-clube ODAC (Otaku
Densetsu Anime Club), o evento teve exibição de animê, oficina de desenho, concurso de
desenho e de cosplay, palestras sobre o panorama mundial do mercado de mangás e animês.
O último evento de importância no estabelecimento da fórmula que se espalhou pelos
demais encontros foi o primeiro Animecon, que aconteceu em 1999, sob a tutela de Sérgio
Peixoto. Essa convenção, que ocorreu em São Paulo, atraiu um público bem maior que
qualquer outra no país até então (MACHADO, 2009), com 3200 pessoas em quatro dias de
evento, podendo ser considerado o primeiro grande evento brasileiro para fãs de animê, tanto
pelo volume de público quanto pela estrutura e variedade de atrações.

No amplo hall de entrada da Faculdade Casper Líbero foram armados estandes dos
patrocinadores, todos envolvidos com mangá (quadrinhos) e anime (desenhos
animados). Estavam lá: Devir Livraria (importadora de gibis e editora de material
para RPG), Animangá (loja e publicadora de Ranma 1/2), Trama (editora de RPGs),
Conrad (editora brasileira oficial da revista Herói e do gibi Pokémon), Fonomag
(tradicional livraria com títulos japoneses), Kingdom Comics e Animax, revista
brasileira de mangá e anime. [...] Ao mesmo tempo, no quinto andar da faculdade
havia projeções de vídeos de animes. Muitos vídeos são legendados e distribuídos
por entidades de fãs, os chamados fansubbers ("fan subtitlers"), de forma a remediar
a crônica ausência de distribuidores oficiais desses desenhos no Brasil. Também
houve uma oficina (curso relâmpago) ministrado por desenhistas tarimbados [...] e
um curso de roteiro [...] Em salas vizinhas às dos cursos de quadrinhos, estavam
expostos desenhos amadores e impressionantes modelos de personagens de anime
esculpidos artesanalmente, com técnica excepcional (AV, 1999).
52

Figura 13 – Animecon 1999

Fonte: ANIMECON, 2011.

Encerra-se, assim, com o Animecon, a fase da conformação dos eventos, como


colocam Sérgio Peixoto, Dalton Silveira, do canal do Youtube “Anime United” e Karolina
Facaia, do portal Genkidama.

Sérgio Peixoto: O Animencontro, o primeiro Mangácon e o Danketsushou, eles é


que formaram o núcleo da estrutura que você tem em todo evento hoje, que é uma
exposição de desenho, algum convidado relevante pra se fazer palestra, show de
banda ou show musical, exibição de anime e, claro, concurso de cosplay [...] [e] a
área de estandes de lojistas [...] De outubro de 96 até fim de 99 [...]foi o que formou
o padrão dos eventos [...] O último que eu coloco foi o Animecon [...] que na
verdade foi o primeiro evento que rompeu a barreira dos 3 mil. (dito no podcast
SANTOS et al., 2016a).

Nós temos que remontar 1999, Animecon, um dos primeiros eventos de anime do
Brasil, em São Paulo. E esse evento, ele que moldou, vamos dizer assim, o que é o
evento de anime hoje que a gente conhece (SILVEIRA, 2016, online).

Desde o primeiro Animecon, em 1999, estes encontros de fanáticos por cultura pop
(sobretudo anime e manga) começaram a se popularizar e a se espalhar por todo o
Brasil. Sim, antes do Animecon houve outros eventos (ORCADE, MangaCon, BH
Anime 99 etc.), mas pode-se dizer que da mesma forma que já havia mangas no
Brasil antes de Conrad, foi o Animecon que teve a honra de ser o modelo para todos
os outros eventos que vieram depois (FACAIA, 2016, online).
53

2.3 A fórmula

Ainda que a maioria seguisse a fórmula do Animecon, não havia muita uniformidade
entre os eventos, de modo que cada um nasceu com suas peculiaridades e com diferentes
focos, quer fossem as exibições, os concursos de cosplay ou as apresentações de dubladores.
Os eventos sempre variaram muito em termos de estrutura, de modo que os menores ou mais
novos tinham menos variedade de atrações e menos espaço disponível.
A fórmula dos eventos consiste em quatro tipos de organização do espaço, que variam
de acordo com sua função. Há espaços para assistir atrações, constituídos por auditórios,
palcos e salas; espaços de consumo, que são estandes de vendas de produtos e barracas de
alimentação; espaços para demais atrações e atividades; e ainda espaços livres para
socialização e circulação.
O palco ou auditório é onde acontecem as atrações a serem assistidas, em frente a uma
área livre ou com cadeiras para o público. Costuma haver ao menos um palco principal, onde
acontecem as atrações com hora marcada na programação do evento, como concursos de
cosplay, palestras de dubladores e shows de música, sendo essa a área de maior prestígio e
destaque, ocupando os principais horários dos encontros e servindo como hub para outras
atividades e estandes, que por estarem mais perto do palco acabam sendo beneficiados pelo
maior fluxo de pessoas circulando no local. Pode haver outros palcos auxiliares com
programação paralela à principal, que podem ser dedicados a alguma atividade ou tema em
especial. Incluem-se nessa categoria também as salas de exibição de vídeos.
54

Figura 14 – Palco principal

Rio Anime Club, novembro de 2015.


Fonte: GÓES, 2015.

Os demais espaços oferecem atividades que ficam disponíveis normalmente durante o


evento inteiro, como a área dos estandes e da praça de alimentação, subdivididas de acordo
com as lojas disponíveis, em que se vai para consumir, satisfazendo as necessidades do corpo
ou da mente. Como a cultura pop japonesa está intimamente ligada não só ao consumo
midiático como também ao consumo material e ao colecionismo (BARRAL, 2000), os
estandes são um elemento fundamental nos eventos.
55

Figura 15 – Área de estandes

Fonte: KUUHAKU, 2016.

Além do(s) palco(s) e da área de estandes, há áreas normalmente menores que se


organizam de acordo com as diversas outras atividades em que se pode participar ativamente,
tais como jogos de videogame, RPGs e trading card games, batalhas campais (lutas com
armas de espuma) e animekê (karaokê com músicas de animê). Há ainda os espaços vazios,
muito importantes para a circulação e para sentar, conversar e socializar com amigos ou novos
conhecidos.
A estrutura básica dos eventos estabelecida entre 1996 e 1999 parece, à primeira vista,
ter se mantido a mesma nos últimos 20 anos. Uma análise mais minuciosa da programação
desse tipo de convenção e da alocação de espaço e de tempo das atrações, no entanto, revela
mudanças que parecem pequenas, mas que apontam tendências mais amplas a respeito da
relação dos brasileiros com a cultura pop japonesa e com a cultura pop em geral.
56

Figura 16 – Mapa de evento

Exemplo de disposição das atrações de um evento de animê, com palco principal, palco
musical, área de estandes, praça de alimentação, área de jogos e salas temáticas (19º
Animextreme, 2013, Porto Alegre, RS).
Fonte: CRONA, 2013.

As mudanças que os eventos sofreram foram cumulativas de todos os eventos e, ao


mesmo tempo, pouco uniformes. Costumavam ocorrer primeiro em São Paulo, o grande polo
dos eventos de cultura pop, e só depois se disseminaram para outros grandes centros, como
Curitiba, Belo Horizonte, Fortaleza e Rio de Janeiro, com outros estados e cidades menores
acompanhando essas mudanças apenas após algum tempo.
Assim, as transformações que os eventos foram sofrendo ao longo dos anos não
seguem uma única linha do tempo, tanto porque a situação corrente dos eventos em certo ano
variava muito de acordo com a cidade da qual falamos, quanto porque elas representam
tendências gerais, e não etapas bem demarcadas que substituíram as anteriores em todos os
eventos simultaneamente.
As análises aqui apresentadas se baseiam especialmente nos grandes eventos, como
Animecon (São Paulo, 1999-2010). Anime Friends (São Paulo, 2003-presente), SANA
(Fortaleza, 2001-presente), Anime Family (Rio de Janeiro, 2005-presente), Animextreme
(Porto Alegre, 2004-presente). Esses são os eventos maiores que ditam tendências para os
demais e têm uma maior disponibilidade de informações a seu respeito, tanto oficiais como
opiniões em blogs, etc.
57

2.4 Mudanças nos eventos de animê por atividade

As mudanças nos eventos não têm como ser descritas a partir de um corte transversal
de uma fase ou ano. Cada atividade ou atração teve seus próprios rumos e desenvolvimentos,
que estão relacionados ao todo do evento, mas na maioria dos casos não podem ser ligados
especificamente a alguma mudança em outra atividade, e sim a mudanças no consumo da
cultura pop. Por isso, é preciso traçar as transformações que cada atividade ou atração sofreu,
de acordo com suas próprias condições de satisfazer certas necessidades no público, antes de
abordar as mudanças nos eventos em âmbito geral, que será tratado mais adiante. Essa seção
trata das mudanças nos eventos até 2010, a partir de quando os eventos começaram a se
reconfigurar mais profundamente e se encaminhar para o diferente perfil de público e
atividade que temos hoje.
Apesar de não ser uma atividade em si, o primeiro aspecto que chamava atenção
mesmo antes de entrar em quase qualquer evento era a fila na porta, que começava a se
formar mesmo antes do horário para o qual estava marcada a abertura dos portões. Ficar na
fila sempre foi mais que apenas uma espera tediosa, tornando-se também uma atividade
coletiva que deixa as pessoas no clima do evento, além de servir para reencontrar amigos e
socializar com pessoas novas.

Figura 17 – Fila do Animecon 2000

Fonte: ANIMECON, 2011.


58

Figura 18 – Estandes no Animecon 2000

Fonte: ANIMECON, 2011.

Figura 19 – Estandes no Animecon 2007

Fonte: ANIMECON, 2011.

Uma área que não pode faltar em eventos de animê são os estandes, vendendo
produtos variados relacionados a animês, mangás, tokusatsu, videogames japoneses, entre
outras coisas. Inicialmente, esses “estandes” nada mais eram do que mesas dispostas lado a
lado, por vezes forradas com algum tecido, sobre as quais ficavam dispostas as mercadorias à
venda, que podiam ser bonecos, pôsteres, colares, camisetas, bottons, dentre diversos outros
produtos.
Com o passar dos anos, os estandes passaram a ser mais profissionalmente montados,
com divisórias e decoração própria, especialmente no caso das editoras, enquanto lojas
menores continuavam mais simples. O número de estandes cresceu enormemente desde 2000,
assim como a variedade de mercadorias vendidas. Apesar de os itens oferecidos no início
59

serem em bem menor quantidade, não havia a massificação que mais tarde passou a existir,
seja nos produtos importados ou naqueles que são produzidos pelos vendedores, como as
famosas touquinhas. Parece ter havido também uma certa homogeneização das lojas do nicho
de animê, de modo que vemos vários estandes em eventos que vendem as mesmas
mercadorias, ficando até difícil distingui-los.

[Meu primeiro evento] foi um pequenininho, num teatro, onde colocaram umas 2
banquinhas com DVDs piratas e umas outras coisinhas de anime. Mas que eram
boas, inclusive o meu medalhão do Shun é do modelo original, totalmente igual
(depois nunca mais achei igual, depois só tinha com o fundo preto e não totalmente
prata e de tamanho menor) (entrevistada, frequentadora, 29 anos).

Os estandes melhoraram em relação à quantidade de lojas e variedade de produtos.


Mas, por outro lado, a qualidade de diversos produtos encontrados hj nessas lojas
aparenta ter qualidade inferior em relação a produtos semelhantes nos primórdios
dos eventos. Provavelmente devido à massificação da produção devido ao aumento
da demanda (aka mais gente comprando) (entrevistado, ex-frequentador, 30 anos).

Os estandes estão cada vez mais iguais e com coisas cada vez mais parecidas. Cadê
aquela coisa de procurar ate encontrar uma figure rara de um personagem?
Basicamente os estandes só tem coisa de CDZ, Dragon Ball, One Piece e Naruto.
Ainda acha uma coisa ou outra de Fairy Tail e Attack on Titans e outras coisas que
são as modinhas do momento e acabou. Sempre as mesmas camisetas silk, as
mesmas orelhas neko, as mesmas toquinhas e as mesmas figures (MAIA, 2015,
online).

Alguns dos estandes de maior destaque nos eventos são os de lojas ou editoras de
mangá. Nos eventos de animê dos anos 1990, quase não havia mangás em português. Podiam
até ser encontrados em japonês ou traduzidos para outros idiomas, mas os preços e a barreira
da língua os tornavam quase que inacessíveis. A primeira história em quadrinhos japonesa
lançada no Brasil foi Lobo Solitário, em 1988, e até o fim dos anos 1990, os títulos lançados
aqui podiam ser contados em uma mão, muitas vezes sem nenhuma regularidade entre as
edições e às vezes mudando o formato e número de páginas das revistas.
No ano 2000, esse setor editorial se estruturou e se padronizou, começando com o
lançamento de Dragon Ball, pela então desconhecida editora Conrad, primeiro mangá a ser
publicado no sentido de leitura original, já que antes os mangás eram espelhados para imitar a
leitura dos quadrinhos ocidentais (URBANO, 2013). Assim, a presença de estandes de lojas
ou editoras vendendo mangás em português tornou-se quase obrigatória nos eventos, o que
facilitava a aquisição de edições que já não estavam mais nas bancas ou até de coleções
completas, às vezes com descontos.
60

Figura 20 – Estande de livraria japonesa no Animecon 2001

Fonte: ANIMECON, 2011.

Figura 21 – Estande da editora brasileira JBC no Animecon 2002

Fonte: ANIMECON, 2011.

Comprar mangás nos eventos se tornou uma prática bastante comum, mas parece ter
diminuído um pouco nos últimos anos, talvez devido ao fato de que os mangás ficaram cada
vez mais fáceis de encontrar à medida que gostar da cultura pop japonesa foi se tornando algo
mais mainstream. No final dos anos 2000 já era possível comprá-los com muita facilidade não
só nas bancas como em lojas especializadas e até em livrarias comuns, seja nas lojas físicas ou
pela internet, onde também se podia adquiri-los nos sites das próprias editoras. Assim, ficou
fácil completar a coleção sem precisar esperar o próximo evento e sem precisar carregar peso
na volta para casa.
Há ainda as scanlations, mangás escaneados e traduzidos por fãs, disponibilizadas na
internet. A variedade de títulos oferecida é expressivamente maior do que a soma de todos os
mangás já licenciados no Brasil, pois há diversos grupos de scanlators, que acabam
61

traduzindo até as obras mais desconhecidas. Muitos fãs preferem ler a versão pirata, mesmo
no caso de mangás lançados por aqui, uma vez que os capítulos recém-publicados no Japão
são disponibilizados pelos scanlators em um tempo bem menor do que o que levam para
chegar às nossas bancas. Somando-se a isso o alto preço dos mangás, com revistas custando
normalmente entre R$10,00 e R$40,00 (COMIX, 2016), muitos fãs precisam economizar para
poder colecionar apenas uns poucos títulos favoritos.

Figura 22 – Palco principal do Animecon 2001

Fonte: ANIMECON, 2011.

Um grande chamariz dos primeiros eventos eram as exibições de animê. Inicialmente,


só havia uma ou duas salas com exibições, normalmente espaços grandes, que eram
responsabilidade da organização do evento, mas depois passou a haver diversos espaços
exibindo animações japonesas simultaneamente. Essas salas de exibição eram reservadas por
fã-clubes, fansubbers ou fóruns da internet, que propunham programação própria e ficavam
encarregados por trazer os vídeos a serem exibidos, que podiam ter um tema específico, de
acordo com o interesse do clube, como tokusatsu ou animês de comédia romântica.
As exibições eram muito importantes nos eventos até meados da década de 2000, pois
permitiam ver episódios atrasados, fazer maratonas de vários episódios de uma mesma série,
assistir animês que nem passavam no Brasil e ficar conhecendo os animês novos, sobre os
quais logo todos estariam falando. Essas exibições, quando não no palco principal, muitas
vezes ocorriam em um auditório ou outro local preparado para simular uma sessão de cinema:
telão, cadeiras, luz mais baixa e silêncio na audiência. A programação dos animês era
divulgada com antecedência, detalhando que filmes ou blocos de episódios passariam em qual
horário, já que, para os fãs, a exibição de animês nas convenções era um importante meio de
conhecer títulos novos ou mesmo para fazer maratona de desenhos exibidos na TV brasileira.
62

A sala principal de exibição de animês costumava ser bastante disputada, podendo haver fila
na porta e distribuição de senhas para os assentos limitados.

Eu gostava de assistir às exibições de anime. No evento de Nova Iguaçu, por


exemplo, sempre rolava uma maratona com vários episódios de uma série e, na
edição seguinte do evento, continuava de onde parou (entrevistado, ex-frequentador,
30 anos).

[N]essa época Internet ainda não era algo difundido, então os fãs conseguiam
informações pelos fanzines, revistas e batendo papo nos eventos. E não havia essa
facilidade de conseguir as coisas baixando da Internet, então os eventos eram
praticamente apenas exibições que, em geral, iam de umas 9:00h da manhã até umas
17:00h (com uma pequena pausa para o almoço na qual ninguém almoçava de
verdade e sim comia um hambúrguer ou coisa que o valha). Fora a enxurrada de
desenhos, havia o sorteio de brindes, com coisas bem legais rolando como camisetas
e mesmo fitas VHS (é, eu sei, pré-histórico...). (DOTAKU, 2006a, online).

Os clubes responsáveis pelas salas podiam também oferecer outras atividades, como
sorteios, gincanas, bate-papos e pequenos workshops. Dessas salas vieram as chamadas salas
temáticas, que inicialmente tratavam de nichos dentro da cultura pop japonesa, mas depois
passaram a ser de qualquer assunto que se acreditava que fosse agradar o público, como Star
Wars, Senhor dos Anéis, Harry Potter e até Chaves. As salas de exibição foram, então, se
mesclando às salas temáticas, que não tinham foco na exibição, e foram se tornando mais
periféricas no evento.

As famosas “Salas de Exibição e Temáticas” do Anime Friends trazem o melhor do


entretenimento japonês ao público brasileiro, todos os grupos presentes se esforçam
ao máximo para trazer as novidades que estão rolando do outro lado do mundo.
Em edições passadas os grupos organizados para a exibição de animê, exibiam
somente um tipo de atração, os desenhos japoneses eram a estrela de toda a sala,
porém uma revolução aconteceu entre os responsáveis de sala e até mesmo entre o
público, que se tornou mais exigente quanto às novidades e as atrações do evento.
[...]
Todas as salas contarão com temas variados e selecionados a dedo pelos melhores
grupos especializados no assunto, uma verdadeira revolução quando o assunto é
entretenimento de qualidade (JÚNIOR, 2007, online).

Podia haver ainda exibições de shows ou clipes de j-music16 e AMVs (Anime Music
Videos), que são montagens de músicas (orientais ou não) com cenas de animês. Esse tipo de
peça era feita por fãs, por vezes havendo concursos de AMV nos eventos.

16
Músicas japonesas, referindo-se especialmente aos gêneros j-rock e j-pop, cujas bandas muitas vezes são
responsáveis pela performance de músicas de abertura e encerramento de animês, que fazem muito sucesso
entre o público otaku.
63

Figura 23 – Exibição de animê em telão no Animecon 2006

Fonte: ANIMECON, 2011.

Figura 24 – Exibição de clube no Animecon 2007

Fonte: ANIMECON, 2011.

Além da exibição de animês e mesmo antes da venda de mangás, costumavam ser


vendidas nos eventos fitas VHS (oficiais ou não) de animações e tokusatsu. Logo depois
viriam os CDs e DVDs, que graças à maior capacidade de armazenamento eram capazes de
conter uma grande quantidade de episódios em apenas uma mídia. Mesmo à medida que as
pessoas começaram e ter internet de maior velocidade, comprar animês nos eventos ainda era
mais fácil e prático para muitos fãs, devido à conexão ainda consideravelmente lenta para
efetuar downloads de grandes arquivos e à dificuldade para encontrar os animês online.

A Internet já existia mas era muito mais prático dar 10 reais numa temporada
completa em DVDs do que ficar semanas baixando episódio por episódio (DR.
ESPIRAL, 2016, online).
64

Figura 25 – Venda de fitas VHS no Animecon 2003

Fonte: ANIMECON, 2011.

Posteriormente, com a maior popularização da internet e da banda larga, o aumento da


quantidade e da qualidade dos grupos de fansub (legendas de fãs) e com os fãs já sabendo os
sites onde encontrariam os arquivos com boa qualidade de imagem, som e legendas, ficou
cada vez mais fácil baixar animês online. Diante desse cenário, a comercialização de animês
nos eventos foi se tornando cada vez mais supérflua e, consequentemente, diminuindo.
Uma das atrações de maior destaque desde os primeiros eventos, o concurso de
cosplay inicialmente nem tinha um palco próprio, e sim algum espaço improvisado, que podia
ser em um corredor para facilitar o desfile dos cosplayers, algum lugar de fácil visibilidade
para o público ou em frente ao telão, no caso de eventos cuja exibição acontecia em teatro ou
sala de cinema. No início os eventos recebiam bem poucos cosplayers, às vezes menos que 20,
mas esse número foi rapidamente crescendo a ponto de hoje ser impossível andar alguns
metros em qualquer evento sem passar por diversos cosplayers.
Quando começaram, as fantasias eram bem simples e amadoras, mas com o tempo
foram se tornando mais bem confeccionadas, atingindo níveis de complexidade e
detalhamento impressionante, havendo até cosmakers, pessoas especializadas em produzir
peças de cosplay para terceiros. No começo dos concursos, não havia nem comissão julgadora,
com os vencedores sendo eleitos por volume de aplausos. Com o passar do tempo, o concurso
foi se tornando mais profissional, com regras, comissão julgadora e prêmios que vão de
dinheiro a viagem ao Japão para participar do concurso internacional de cosplay. Havia outros
concursos além do de cosplay, como de desenho, de roteiros, de garage-kits.
65

Figura 26 – Concurso de cosplay em frente ao telão

Fonte: ANIMECON, 2011.

Além do sempre presente concurso de cosplay, o palco principal recebia diversas


outras atrações. No início, era comum haver shows de bandas cover de músicas de animê e
tokusatsu, gincanas relacionadas a animê, como Anime Quiz e Anime Bingo, além das
atrações de maior destaque, que eram certamente as palestras com dubladores brasileiros de
animê, que ganhavam status de celebridade por serem os brasileiros mais próximos de “fazer
parte” dos animês (FUKUSHIRO; VALENTE, 2015). Havia também palestras com
desenhistas, que falavam sobre o processo de produção de histórias em quadrinhos e davam
dicas a aspirantes à profissão, e profissionais do mercado editorial. A diminuição dos animês
na televisão aberta, bem como a facilidade de encontrar animês com som original em japonês
e legendas em português na internet, fez com que os dubladores perdessem importância como
atração.
Outra atividade em alta no início dos eventos eram os cursos/workshops de desenho,
de roteiro, de dublagem, de montagem de garage-kits. Tanto os cursos como concursos
artísticos demonstram o interesse na profissionalização dos otakus da época, que sonhavam
em se tornar dubladores, desenhistas, animadores, e vir a trabalhar com aquilo de que
gostavam. Muitos se inspiravam em brasileiros que alcançaram sucesso nessas áreas, como
Erica Awano e Daniel HDR, inspirações essas que muitas vezes eram os próprios convidados
dos eventos para ministrar os workshops ou dar palestras a respeito de suas atividades. Nessa
época, ainda havia a esperança de criar um mercado brasileiro de quadrinhos e animações
inspirados nos desenhos japoneses, mas isso não vingou, à exceção da Turma da Mônica
Jovem.
66

A produção de fanzines era vigorosa na época, com a existência de diversos artistas e


grupos, o que levou à existência de uma área de exposição e venda de fanzines nos eventos, o
que ainda ocorre hoje, mas em menor escala.
Também era bastante comum haver uma ou mais exposições de miniaturas de
personagens, ilustrações profissionais, desenhos feitos por fãs e/ou painéis de ilustração ou
informativos (sobre mangás, animês e/ou tokusatsu). Essas exposições normalmente eram
montadas de forma bem simples, às vezes nada mais que desenhos afixados a algum suporte.
Como o acesso a esse tipo de material que fosse original, importado ou de boa qualidade era
bastante limitado, sendo dificilmente comprado mesmo nos estandes do próprio evento,
qualquer mídia que pudesse ser exposta interessava aos otakus. As exposições podiam ser
também dos desenhos e garage-kits participantes dos concursos. Com o crescimento de outras
atrações e a maior disponibilidade desses itens, além da diminuição da importância da
profissionalização, que reduziu os concursos de artes não performáticas, como os de desenho
e garage-kit, as exposições foram perdendo destaque ainda na primeira metade da década de
2000.

Figura 27 – Exposição de desenhos no Animecon 2001

Fonte: ANIMECON, 2011.

Era bastante comum a diversos eventos de animê haver também áreas com outras
atividades como jogos (videogames, trading card games, RPGs), combate medieval, animekê
e pista de dança com música de animê.
67

Figura 28 – Videogames no Animecon 2001

Fonte: ANIMECON, 2011.

Figura 29 – Videogames no Anime Friends 2016

Fonte: FDCOMUNICAÇÃO, 2016.

2.5 Mudanças gerais nos eventos de anime

Delineadas as mudanças nas atividades presentes nos eventos de animê de maneira


individual, passaremos a descrever as transformações pelas quais passaram essas convenções
como um todo ao longo dos anos.
No ano 2000, os eventos se espalharam definitivamente pelo país, ainda que as
expectativas mais otimistas de sucesso para a época fossem ínfimas se comparadas à
68

quantidade de eventos que ocorrem atualmente. Em julho daquele ano, Sérgio Peixoto
publicou sua previsão no editorial da revista Anime Ex.

[V]ários grupos do país estão se mexendo para fazer suas atividades regionais.
Podem anotar aí: no ano que vem, haverá pelo menos 10 convenções em todo o país!
São os otakus indo à luta e brigando por seu espaço e respeito. E ainda tem os
grupos que fazem exibições periódicas, atraindo centenas de Otakus. (PEIXOTO,
2000, p.3).

No início dessa década, os eventos ainda tinham como objetivo servir de ponto de
encontro para os fãs da cultura pop japonesa. Ofereciam atividades culturais e sociais
relacionadas a esse interesse, além de divulgar e informar sobre suas diversas manifestações,
já que mesmo os fãs precisavam ser aclimatados às minúcias dos animês e mangás. Os
eventos começaram pequenos e simples, muitas vezes apenas uma exibição de animê com um
pequeno sorteio ou palestra ao final. Costumavam ser menos subdivididos, de modo que a
sala de exibição era o único espaço do evento, servindo também como palco onde aconteciam
outras atrações. Vale ressaltar que as próprias exibições periódicas realizadas por fãs eram
consideradas eventos, mesmo que não houvesse nenhuma outra atividade. Aos poucos e a
cada edição, os eventos maiores foram se organizando e dispondo de uma infraestrutura de
mais alto nível.

Comecei a ir em eventos no ano 2000 aqui mesmo no Rio. [...] Os eventos nessa
época eram bem reduzidos com pequenas bancas de produtos de animes e alguns
cosplays. Eu gostava muito, mesmo sendo reduzido, pois lá fazíamos amizades com
a galera que curtia animes também. Fiquei encantado com tanto cosplay eram uma
coisa nova pra mim, pois só tinha visto em revistas de animes que eram a sensação
na época (entrevistado, frequentador, 36 anos).

foi só por volta de 2005 que comecei a frequentar eventos de anime. Naquela época
eles eram menos elaborados e muito menos diversificados do que hoje em dia
(entrevistado, ex-frequentador, 30 anos).

Em 2003, aconteceu o primeiro Anime Friends, realizado pela empresa Yamato, que
não só trouxe atrações japonesas para um evento pela primeira vez, como exibiu um
investimento e uma estrutura que nunca antes se pensou possível para esse tipo de evento.
Essa convenção sinalizou também a profissionalização dos eventos de animê e um novo rumo
de transformar esse tipo de confraternização em megaeventos comercialmente rentáveis, o
que levou também a uma maior homogeneização das atrações em todo o país, já que os
eventos maiores serviam como termômetro para todos os outros em termos de o que
funcionava e o que não agradava o público.
69

Thiago Almeida: É impossível a gente falar sobre evolução de evento e não falar de
Yamato. Vocês acham que os eventos da Yamato [...] foram meio que um norte pra
todos os outros eventos? [...]
Bruno Antonucci: Creio que sim, porque depois do Animecon, que era o que
mandava mesmo, a Friends chegou trazendo uma grande novidade, que eram os
artistas de fora. Lá em 2003, quando teve o primeiro Anime Friends, ele foi
totalmente diferente, não por causa dos artistas nem nada, mas porque o concurso de
cosplay tinha regras. Eles colocaram na internet as regras, todo mundo leu. Sei lá,
seis meses depois, num evento aqui do Rio [...] tinha regras que não existiam antes e
quando você lia as regras, assim, eram as mesmas que eram da Yamato (dito no
podcast ALMEIDA et al., 2014).

Não é que os eventos mais “comerciais” não fossem também muitas vezes organizados
por fãs, mas em meados da década de 2000, ficou claro que os eventos não eram apenas
reuniões de pessoas com uma paixão em comum, e sim um negócio.
Nessa época, houve também a proliferação da frase “de fãs para fãs” como mote de
eventos organizados mais amadoramente, o que tinha como subtexto a premissa de que os
responsáveis por aquele evento eram pares dos frequentadores, e portanto teriam como foco
maior a diversão. A frase, no entanto, foi tão usada que se desgastou, além de ficar associada
à menor qualidade que derivaria do menor investimento monetário. Com um maior número de
eventos acontecendo por ano, ao menos nos grandes centros, passou a valer mais a pena
economizar para gastar nos eventos considerados melhores, geralmente os de maior porte, que
tinham atrações de maior renome, maior qualidade nas atividades competitivas devido ao
maior número de pessoas competindo, além de mais lojas, o que permitia comprar mais
material relativo a animês e mangás.
Nesse mesmo período, o mercado de licenciamento e publicação de mangás no Brasil
parecia se aquecer cada vez mais. Mesmo com a facilidade de se encontrar um imenso
número de quadrinhos japoneses na internet, muitas vezes traduzidos para o português (com
um número ainda maior de títulos disponíveis na rede em inglês), as editoras brasileiras
comemoravam o sucesso de vendas nas bancas e livrarias nacionais. O brasileiro parecia
consumir e colecionar mais mangás com o passar dos anos.
Já a disponibilidade de animês no Brasil por meios legais seguiu o caminho inverso ao
dos mangás. No início dos anos 2000, ainda havia uma quantidade considerável de animações
japonesas compondo a grade de programação de diversas emissoras de TV. Mas por conta de
diversos fatores, dentre os quais a censura sofrida por essas animações no mercado ocidental e
o gradual desinteresse do público brasileiro pelos animês disponíveis na televisão, os
populares blocos de animês foram migrando para horários de menor destaque ou mesmo
desaparecendo da programação. Assim, a melhor opção para os fãs era assistir à exibição
desses desenhos animados nos eventos de animê, que os permitiam acompanhar os principais
70

animês que já eram febre ao redor do mundo muito antes do licenciamento oficial desses
produtos para o mercado nacional.
Mesmo a chegada da internet de banda larga não extinguiu, a princípio, as exibições
dos eventos, já que eram poucas as pessoas que podiam pagar esse serviço, somado ao fato de
que ainda era bastante demorado e complicado encontrar e baixar animês na internet. Dessa
forma, a boa estrutura das salas de exibição dos eventos de animê e suas sedutoras
programações repletas de novos sucessos reinavam como a melhor forma de assistir animês
legendados em português no Brasil.

O auge das exibições dos eventos de anime foram quando não tinha mais nada
passando na TV aberta [...] A Rede Manchete desapareceu, então a gente pode supor
aí de 2002 [...] até 2005 [...]. De 2006 pra frente voltaram a ser relicenciados,
principalmente os clássicos, pra TV aberta e TV fechada [...] Eu acho que até 2005
foram o auge das exibições. (LUCENA, 2016).

Nesse mesmo período, essas convenções foram se tornando cada vez mais
multitemáticas. Diversos outros produtos e atividades não relacionadas ao Japão ganhavam
espaço, com áreas temáticas e estandes sobre Star Wars, Harry Potter e jogos de RPG, por
exemplo, se tornando recorrentes na maioria dos grandes eventos.

O primeiro AnimABC aconteceu nos dias 16 e 17 de abril de 2005 [...].E além de ser
o primeiro grande evento deste gênero no ABC, nosso evento foi também o primeiro
a reunir num único lugar tantos fãs de tão variados gostos. Era um projeto ousado,
pois ainda existe uma idéia pré-concebida que fãs de uma série de desenho animado
não gostam de fãs de filmes, por exemplo.
Nós provamos que essa idéia é furada, pois tivemos representados cerca de 30
grupos diferentes de fãs, e todos se divertiram, trocaram informações e idéias e
saíram satisfeitíssimos do evento. Mais do que apenas um encontro de
entretenimento, o AnimABC foi também um evento de confraternização e troca de
idéias entre grupos diferentes, que no final descobriram que não são tão diferentes
assim. O AnimABC se torna assim o primeiro evento multitemático do Brasil
(ANIMABC, 2005, online).

Após anos de tentativas de incentivo à formação de um mercado de animê e mangá


brasileiro, os eventos pareciam aceitar que esse sonho dificilmente sairia do papel, já que
mesmo o público, antes cativo de atividades como workshops de desenho e roteiro e ávido por
palestras sobre o mercado de mangás no Brasil, parecia cada vez mais desinteressado em se
profissionalizar. Já se tornavam cada vez menos comuns os concursos de desenho, os
workshops de garage-kits (afinal, era muito mais fácil e prático comprar uma miniatura
pronta do que montá-la e pintá-la no evento) e mesmo as palestras sobre o mercado editorial,
quando aconteciam, pareciam focar muito mais em fazer propaganda dos próximos
lançamentos das editoras, com os fãs ávidos por saber quando, como e por qual quantia
seriam lançadas as aguardadas novas séries de quadrinhos japoneses aqui no Brasil.
71

A partir de aproximadamente o ano de 2006, as emissoras de TV tornaram a licenciar


animês para exibir em suas grades de programação. Novas animações dividiam espaço com
clássicos relicenciados (e, em alguns casos, redublados), mas a força que essa mídia tinha
sobre o ibope dos canais de TV já não era mais a mesma de anos atrás. A internet de banda
larga já se popularizava no Brasil, tornando muito mais rápido e fácil baixar animês. Grupos
de fansubbers, que antes eram reconhecidos por ajudar a alimentar as salas de exibição nos
eventos, agora distribuíam seus trabalhos na internet, possibilitando aos fãs baixar e assistir os
mais variados animês do conforto de casa. Ir aos eventos para fazer maratonas ou assistir a
novas animações já se tornava uma atividade cada vez mais obsoleta.
Antes uma das atrações mais procuradas, a exibição de animês foi saindo do palco
principal, sendo relegada a salas menores até chegar a desaparecer em vários dos eventos. O
Animecon, por exemplo, tinha sete salas de clubes exibindo animê em tempo integral em
200117. Em 200618, havia 11 salas de clubes. Em 2008, o número caiu para quatro salas19 e, na
última edição do evento, em 2010, só havia duas salas exibindo animês20. Depois disso, as
exibições de animê foram rareando até quase sumirem por volta de 2010, o que foi um passo
significativo para que os eventos deixassem de ser “de animê”, ainda que mantenham essa
denominação até hoje.

17
Disponível em http://web.archive.org/web/20010925145454/http://www.animecon.com.br
18
Disponível em: http://web.archive.org/web/20061102021520/http://www.animecon.com.br/
programacao_salasdeclubes.php
19
Disponível em: http://web.archive.org/web/20080615035042/http://www.animecon.com.br
20
Disponível em: http://www.animecon.com.br/acon2010/images/mapa_animecon2010-01.jpg
72

Figura 30 – Mapa do Animecon 2010

Mapa do Animecon 2010, onde apenas as áreas em verde correspondem a salas dedicadas a animês.
Fonte: ANIMECON, 2011.

2.6 Surgimento dos eventos geeks

Com o enfraquecimento e quase desaparecimento das exibições de animê nos eventos,


os encontros entraram em uma espécie de crise de identidade: se não eram “eventos de animê”,
então eram eventos “de quê”? O afastamento dos animês propriamente ditos afetou não
somente a estrutura do evento, que tinha nos desenhos animados japoneses a fundação de seus
73

alicerces, mas também a suas outras atrações como exibições/concursos de ilustrações,


palestras com dubladores e o animekê, por exemplo.
Outro fator importantíssimo para o enfraquecimento do formato foi o próprio público:
aqueles que visitavam os primeiros eventos já estavam envelhecendo, enquanto os novos
visitantes, muitas vezes bem mais jovens, já cresceram com acesso fácil aos animês e mangás,
agora muito mais populares no Brasil e facilmente encontrados na internet, bancas e livrarias.
O formato dos eventos mostrava fortes sinais de desgaste, como comentava, em 2011, José
Roberto Pereira, responsável junto a Sérgio Peixoto pela primeira exibição pública de animê e
a criação da revista Animax.

[O]s eventos de anime já deram o que tinham que dar. As atrações são sempre as
mesmas, as editoras são sempre as mesmas, os cosplayers são sempre os mesmos e,
não raramente, os concursos premiam praticamente os mesmos [...]. Sem esquecer
que a paparicação dos dubladores já era, pois todo mundo conhece os caras, eles já
imitaram pra carambas “seus” personagens famosos… E nada mais tem novidade.
Junte‑ se a isso o AMADURECIMENTO do público, pois por incrível que pareça
até otaku envelhece, e a tragédia está armada. Quando o Noriyuki da Abrademi
passava anime no Bunka aqui da Liberdade, nos anos 90, era OUTRA história
porque quase ninguém conhecia mangá e anime. Hoje, mais de 20 anos depois, não
apenas o público mudou, envelheceu, cresceu como a TEMÁTICA dos eventos não
foi renovada. ******Porque não há mais o que mostrar!****** O assunto se
esgotou, mixou, secou! (PEREIRA, 2011, online).

Foi nesse período que algumas atividades secundárias e muitas vezes não relacionadas
à cultura pop japonesa começaram a ganhar cada vez mais espaço, preenchendo o vazio
deixado pela baixa das exibições de animações japonesas e pela diminuição do interesse pelas
demais atrações relacionadas a animês. Os organizadores vinham expandindo as atrações de
modo a contemplar vários nichos da cultura pop, na interseção dos interesses dos otakus.
Investir em fenômenos da internet parecia ser uma aposta bastante segura, uma vez
que fãs de animês e mangás já eram usuários assíduos da web, a qual estava se popularizando
mais ainda e se tornando parte indispensável do cotidiano de grande parte dos brasileiros. Um
dos acertos dos produtores desses eventos, por volta de 2010, foi em abraçar o k-pop cover.
K-pop é um estilo musical sul-coreano, que virou febre na Ásia no final dos anos 1990
graças ao sucesso dos k-dramas (novelas coreanas) e se tornou um verdadeiro fenômeno
global a partir dos anos 2010, com a difusão online dos clipes musicais de suas boy e girl
bands no YouTube. Essa manifestação da cultura pop foi cuidadosamente planejada para cair
no gosto dos públicos internacionais, aliando o apelo estético de jovens bonitas(os) usando
roupas coloridas e da moda à batida marcante da música, acompanhada de coreografias
altamente sincronizadas. Nos eventos de animê, o concurso de covers dos k-poppers (como
74

são chamados os fãs do estilo) já virou presença certa, normalmente no cobiçado palco
principal. Concorrendo sozinhos ou em grupos, dançam coreografias inspiradas nos clipes
sul-coreanos, que mesclam fofura e sensualidade (KARAM; MEDEIROS, 2015).
Nem todas as tentativas de trazer atrações da internet, porém, foram um sucesso, como
bem ilustra o caso do Vitinho “Sou Foda”, anunciado como convidado de destaque do Rio
Anime Club em 2012. O anúncio foi feito na página do encontro no Facebook, e não demorou
até que uma chuva de reclamações e comentários reprovando a escolha do destaque caísse na
publicação. Fãs e potenciais visitantes reclamavam da tentativa “absurda” dos organizadores
em levar um funkeiro para um evento de animê, ainda por cima como convidado de destaque.
Os próprios organizadores logo anunciaram o cancelamento da presença do convidado,
explicando a intenção de contar com fenômenos da web em suas próximas edições.

Figura 31 – Cancelamento do convidado Vitinho “Sou Foda”

Fonte: Print Screen da fanpage do Rio Anime Club no Facebook

Os videogames já estavam presentes desde praticamente o início dos eventos, mas


ganharam um espaço considerável. Se antes as salas com os jogos ficavam limitadas
praticamente apenas a jogos japoneses, hoje a situação é bastante diferente. A popularidade
dos videogames tem aumentado bastante nos últimos anos, o que tem rendido não somente a
realização de grandes convenções sobre o assunto (como a famosa Brasil Game Show), mas
também a ascensão dos games à categoria de “esportes virtuais” garantiu a presença de
videogames na TV, com partidas de League of Legends até mesmo sendo transmitidas em
canais tradicionais de esportes como a ESPN. Com famosos jogos de luta como Street Fighter
e Mortal Kombat, games de dança como Just Dance e Dance Central, as áreas de jogos não
75

só aumentaram de tamanho como têm atraído uma considerável fatia do público dos eventos,
levando muitos frequentadores a considerar os games como “substitutos” dos animês no
evento, pelo menos no que diz respeito à popularidade e assiduidade do público.

[N]ota-se que a "era dos animes" no Brasil está acabando. Agora é a era dos games.
Até meados de 2009 foram feitos eventos de games de empresas famosas que não
deram certo e depois, com a chegada do BGS [Brasil Game Show] a São Paulo, eles
começaram a crescer e agora estão mais fortes do que nunca, principalmente por
causa do mercado. (comentário no Facebook).

André Fava: A fórmula do evento sempre foi a mesma. Tá, vai ter uma sala de
exibição. Depois que o anime ficou bem fácil de achar, tinha uma sala de exibição só
pra atingir as pessoas, pra mostrar coisas novas que elas não tinham visto ainda, que
elas poderiam chegar na casa delas e baixar. Tinha a sala de videogames, né, que
hoje em dia, o videogame tomou o lugar do anime. O anime deu uma caída muito
grande e o jogo cresceu muito (dito no podcast ALMEIDA et al., 2014).

Outros jogos que têm ganhado bastante destaque são os jogos de tabuleiro, que antes
ocupavam pequenas porções do espaço dedicado aos videogames ou aos RPGs e hoje já
recebem espaços próprios.
Algo que ficou cada vez mais visível com o passar dos anos foi o fato de que os
eventos estavam se fragmentando. Eram muitos os diferentes interesses agregados aos eventos,
o que tornava difícil manter a “unidade” entre cada um desses interesses. Grandes eventos,
como o Anime Friends, por exemplo, já pareciam mostrar que o caminho era justamente
agradar não somente ao público fã de animês, mas também aos fãs de cultura pop em geral.
Dada a sua relevância no cenário dos eventos no Brasil, ao juntar em um só canto
“minieventos” voltados para colecionadores, jogadores de RPG, fãs de Star Wars dentro do
Friends, a Yamato ajudava a moldar o futuro dos eventos de animês no Brasil.
Assim, com a crescente importância de atividades antes consideradas secundárias e
sem atividades relacionadas a animês como espinha dorsal em torno do qual os outros
interesses gravitavam, foi-se tornando mais evidente a multiplicidade de interesses que já
estavam há anos presentes nos eventos. Esses interesses foram se delineando em alguns
núcleos que diziam respeito a tribos urbanas das quais muitas vezes que os fãs de animês e
mangás faziam parte.

Pra se manter acontecendo, eventos de “anime” com nomes bem japoneses estavam
lotados de público diversificado, atirando pra todas as direções. O “público só de
animes” era só mais um fandom, e nem era o maior. Com a mistura dos conteúdos
em eventos, ficou claro que as turmas se misturavam. Quem jogava Street Fighter
também colecionava o mangá do Rurouni Kenshin e lia Homem-Aranha, mas queria
fazer um cosplay de Predador. Tinha até cosplay de meme. Adicionam-se o público
amante do k-pop, que já é tradicional a ponto de ter competições próprias (DR.
ESPIRAL, 2016, online).
76

O material promocional do Anime Friends deixa entrever a mudança entre 2011 e


2013, com o primeiro cartaz com destaque maior para as atrações japonesas, ao passo que o
cartaz mais recente evidencia a segmentação dos gostos em minieventos, com a cultura pop
japonesa passando a ser apenas um interesse entre muitos.

Figura 32 – Cartazes do Anime Friends

Cartaz dos destaques do Anime Friends 2011 (acima), com foco em atrações japonesas ou
relacionadas a animê e cartaz dos destaques do Anime Friends 2013 (abaixo), segmentado em
diversos “minieventos”, como a Jedicon (Star Wars), a Brasil Comic Con (HQs) e a Colecon
(miniaturas e colecionáveis)
Fonte: SAMPAIO, 2011; MORELLI, 2013.
77

Outra atração que ganhou novas cores com a diversificação do público dos eventos são
as palestras/entrevistas. Agora, no entanto, nem todos os frequentadores dos eventos têm
interesse em saber como são feitos os quadrinhos e os dubladores são mais lembrados por
seus trabalhos antigos ou por emprestar a voz a desenhos ou filmes não japoneses. Esses
profissionais ainda são chamados para os eventos, mas foram perdendo espaço uma vez que
os organizadores de eventos já vinham buscando incorporar atrações ligadas à internet, como
visto no caso do Vitinho “Sou Foda”. Assim, a ascensão meteórica dos youtubers como
grandes ídolos da juventude tornou-os uma escolha factível para preencher esse espaço e
renovar os eventos.

Fato é, que vivemos na era dos Youtubers, eles lotam eventos, então é óbvio que
compensa mais pagar R$ 1500,00 (média acho) pra vir um deles do que pagar
passagem ida e volta do Japão, mais hotel, translado, tradutor, alimentação, cachê
entre outros gastos que não são poucos (comentário no Facebook).

Inicialmente, os youtubers eram mais uma das atrações e eram chamados apenas os
que produziam conteúdo relacionado aos animês e videogames. A partir de 2015, dada a boa
recepção por parte do público e sua crescente relevância como personalidades midiáticas, os
youtubers foram promovidos a destaques principais dos eventos, independentemente da
temática da qual falam. Numa análise do material promocional do Ressaca Friends de 2014 e
2015, nota-se que no primeiro os youtubers ainda eram uma atração bastante secundária, com
Muca Muriçoca sendo o único youtuber a figurar no flyer, e mesmo assim de maneira bem
tímida e sem a alcunha “youtuber”, que só se popularizou nos últimos anos. Já no flyer
seguinte, referente à edição de 2015 do evento, os youtubers ganharam seção própria e um
destaque muito maior, além de terem aumentado em número.
78

Figura 33– Cartazes do Anime Friends

Cartazes do Ressaca Friends em 2014 (acima) e 2015 (abaixo). As


setas mostram o destaque dado aos youtubers em cada ano
Fonte: EVENTO..., 2014; RESSACA..., 2015.

O fato de os youtubers terem virado atração principal na maioria dos eventos de animê
veio na esteira da quase extinção das salas de exibições de animês nesses encontros. Assim
como nos eventos de animê, na TV brasileira, tanto de sinal aberto quanto fechado, os animês
estavam quase extintos. No caso da televisão brasileira, as animações oriundas do Japão
foram perdendo espaço, em princípio, por conta da excessiva censura. Os desenhos japoneses
passavam por cortes para se adequar não somente ao público-alvo (as crianças brasileiras),
mas também ao horário, já que várias dessas animações eram exibidas durante a manhã.
Desse modo, grandes sucessos chegavam às telinhas completamente picotados, com cenas
mais violentas muitas vezes sendo completamente removidas, o que geralmente fazia com que
várias tramas se tornassem bastante confusas.
79

Outro ponto importante a ser citado com relação ao desaparecimento dos animês da
TV brasileira é o fato de que, em 2014, entrou em vigor uma medida que proibia a veiculação
de propagandas voltadas para o público infantil. Como muitas vezes os blocos com
programação infantil eram utilizados pelas emissoras de TV para exibir comerciais de
produtos e brinquedos para crianças, com a chegada dessa medida já não havia mais incentivo
para a permanência dos blocos infantis e vários canais começaram a deixar de licenciar,
dublar e exibir animações japonesas. Como explica Eduardo Miranda (2015), responsável por
trazer Cavaleiros do Zodíaco para o Brasil:

Pra TV aberta, hoje em dia, isso é meio impossível, porque primeiro você tem leis
que limitam a publicidade direcionada a crianças. E isso já causa um desinteresse
completo das emissoras de ter algum tipo de programação infantil. [...] Outro
problema grave que nós temos é a classificação indicativa. Por quê? [...] Porque o
japonês não faz, assim, nenhum tipo de restrição quanto ao uso da emoção, da
violência, da violência pelo bem, do mal pelo bem. Ele fica permeando o bem e o
mal de uma forma muito inteligente. Lembrem-se, a cultura deles é muito mais
antiga que a nossa. Vamos ter um choque cultural sempre. Então a classificação
indicativa muitas vezes não entende esse choque cultural e coloca a classificação lá
em cima. E o que acontece? Você acaba tendo produtores que alteram a obra e isso
pro fã é mortal. De repente ele prefere esperar vir no computador, que hoje em dia é
simples, e no entanto ver a obra na íntegra, do que de repente você ver uma coisa
programada oficialmente e totalmente cortada ou alterada (MIRANDA, 2015,
online).

Assim, sem precisar dos eventos para se manter “em dia” com a programação de
animês e novos episódios de suas séries favoritas recém-lançados no Japão, a internet se
consagrava de vez como a principal fonte para suprir os fãs das animações japonesas. Em
tempos de economia da dádiva, que traz consigo um senso de gratuidade sem remorso
(MOULIER-BOUTANG, 2012), é possível ver na internet a programação completa dos
animês que ainda vão passar no Japão e saber que algum grupo de fansub disponibilizará os
episódios em poucos dias após a estreia japonesa. Essa facilidade faz com que os
frequentadores dos eventos prefiram passar o tempo em atividades que não podem realizar no
dia a dia.
Além dos fansubs há alternativas legais para ver animês na internet, com serviços de
streaming como Netflix (que oferece vários animês no catálogo) e Crunchyroll (serviço
dedicado unicamente a animês e mangás). No entanto, mesmo que as salas de exibição nos
eventos tenham diminuído consideravelmente, há ocorrências de retorno desse tipo de sala.
Agora atendem a funções diferentes, seja como sala patrocinada do Crunchyroll ou para
satisfazer a nostalgia do otakus que viveram outra época dos eventos.
80

Com o advento de séries como Netflix, Crunchyroll, onde os animes estão sendo
disponibilizados em streaming, oficialmente até, não há mais tanto a necessidade de
exibições. [...] As salas de exibição hoje são patrocinadas pelo próprio Crunchyroll,
que faz como que uma degustação pras pessoas comprarem o produto deles
(LUCENA, 2016).

Hoje em dia, o povo que vai assistir, não vai assistir anime, ele vai assistir os
clássicos tokusatsus, que é pelo menos o que eu vejo nos eventos. É uma salinha que
tá passando tokusatsu, aqueles bem classicão mesmo.
Mas sabe por que isso? Porque a pessoa tinha esse hábito. [...] Hoje em dia a gente
vai pra recordar o que era aquela época. [...] Então a gente vai relembrando estágios
da nossa evolução otaku (comentário em blog).

Além da diminuição dos animês, mesmo os mangás, cujo mercado vem crescendo e se
diversificando nas bancas brasileiras, vêm perdendo espaço nos estandes de quadrinhos dos
eventos para as HQs ocidentais. Os demais estandes agora vendem produtos relacionados não
apenas à cultura pop japonesa, como também à cultura pop de forma mais geral.
Disponibilizam, assim, artigos relacionados a animês, mangás, seriados de televisão, histórias
em quadrinhos ocidentais e videogames, além de vários tipos de roupas e acessórios que
agradam a várias tribos.
O consumo sempre atraiu muitos fãs aos eventos de animê, mas o aumento da
quantidade e diversidade dos produtos disponíveis elevou a atividade a um novo patamar. Se
antigamente as pessoas iam aos encontros para adquirir e ter acesso a novos episódios de
animações ou edições de mangás, hoje elas têm acesso a esses produtos do conforto de seu lar.
Nos eventos, então, agora elas encontram mercadorias que apelam aos seus mais diversos
gostos e paixões. De broches a camisetas, de canecas a cosplays, de bonecos a almofadas, os
visitantes são bombardeados de imagens referentes aos mais diversos elementos da cultura
pop japonesa, brasileira e mundial.

Os lugares pra comprar, assim, os estandistas são um ponto à parte. Eu conheço


gente que paga pra ir em evento só pra poder fazer compra, porque ali tão
localizados todos os produtos otakus vendidos pelo pessoal. O evento de anime é o
melhor lugar que tem pra poder vender esses produtos e pra poder comprar esses
produtos. (SILVEIRA, 2016, online).

Muitos frequentadores adquirem produtos que talvez, em outras circunstâncias, não se


sentissem dispostos a comprar ou que pudessem adquirir pela internet, talvez a preços mais
convidativos. Mas, por estarem em meio a outras pessoas que legitimam a intensidade de suas
paixões e pela sensação de “oportunidade rara” proporcionada pelos eventos, acabam optando
por comprar. Há quem, ainda, acabe adquirindo produtos simplesmente para não voltar para
casa de mãos vazias, ou por ter reservado parte da mesada ou salário para a ocasião.
81

Antigamente os stands de miniaturas, camisetas, animes e mangás faziam


promoções nos eventos, valia a pena ir só pra fazer compras, mas hoje, pode
comparar, sai muito mais barato comprar algo na liberdade (ou mais barato ainda se
comprar pelo ebay) do que comprar qq coisa em evento, onde tudo é mais caro!
(comentário em blog)

João Leão: Vai ter muita gente que vai prum evento desse pra realmente comprar
algumas coisas que não vai ter a paciência [...] de comprar na internet e esperar três
meses vir lá do outro lado do mundo [...] que vai pro evento pra já comprar ali e
levar pra casa (dito no podcast SANTOS et al., 2016b).

Figura 34– Saturação visual nos eventos

Fonte: COGUMELO..., 2013.

O consumo material e simbólico, propagando ideias e imagens, é crucial nos eventos,


o que os torna importantes espaços no trabalho de polinização (MOULIER-BOUTANG,
2012), formando e realimentando os gostos de seus frequentadores. O trabalho imaterial
resultante desses processos de polinização gera não apenas trocas econômicas, mas também
de afetos e saberes. Afinal, ser fã exige e implica uma série de conhecimentos, tanto sobre os
objetos de adoração quanto a atividades relacionadas a eles (desenhar, dançar, fazer cosplay),
e também como consegui-los (onde comprar, como baixar). Ser otaku, nerd, gamer, envolve
uma economia própria de conhecimentos. Pois quanto mais alguém sabe a respeito daquilo
que consome e admira, mais valorizada a pessoa é em sua tribo.
A variedade de tribos urbanas e temas agregados aos eventos evidenciou que há vários
anos já não eram “de animê”, o qual passou a ser apenas um interesse dentre muitos outros
atendidos nessas convenções. A análise das transformações por que passaram os eventos “de
animê” torna possível sugerir uma resposta para a pergunta do início desta seção. Afinal,
eventos “de quê”?
82

Januncio Neto: A cultura pop japonesa, ela só teve relevância (...) para uma certa
exclusividade temática quando ela era escassa. A partir do momento em que a
internet populariza tudo, inclusive a cultura pop japonesa, o leque se abre. (dito no
podcast SANTOS, 2016a)

Se no começo os eventos se autodefiniam como “eventos de cultura pop japonesa”,


com o tempo passaram a “multitemáticos”, como visto a partir de 2005 com o AnimABC e,
posteriormente, a “eventos de cultura pop”. Com a ascensão dos youtubers a atrações
principais, por volta de 2014, cada vez mais eventos se assumiram como direcionados ao
público geek. Tal denominação, similar a nerd, porém menos pejorativa, vem ganhando força
desde meados da década de 2000 para designar fãs da cultura pop em geral. Os geeks são
pessoas com predisposição ao consumo e ao engajamento de fã, mas que não se limitam a um
objeto de afeição, preferindo passear nomadicamente por diversos mundos ficcionais.

O evento só voltado pro animê, a grande maioria realmente desapareceu. [...] Os


grandes eventos como o SANA, Anime Friends, Comic Con Experience,
Animextreme, SuperCon, [...] tiveram que se adaptar. E qual foi a grande mudança?
Mostrar que o público do animê é o mesmo público do geek, é o mesmo público do
Harry Potter, é o mesmo público do Stranger Things, é um público nerd e geek que
consome esse tipo de produto. Então, a maior mudança realmente foi, o evento ser
basicamente de animê e mangá pra ser um evento multicultural, multitemático,
voltado pra esse gênero geek (LUCENA, 2016).

Alguns eventos vêm acrescentando a palavra geek ao próprio nome ou à descrição


oficial, ainda mantendo “anime” numa tentativa de se manter reconhecível para os
frequentadores antigos e ao mesmo tempo atrair o público geek. O evento HaruCon, por
exemplo, manteve o mesmo nome, mas sua descrição mudou de “Encontro Cascavelense de
Anime e RPG” para “Convenção de Anime e Cultura Geek”.
83

Figura 35 – Flyers do HaruCon

Harucon 2010, descrito como “Encontro Cascavelense de Anime e RPG” (esquerda) e o mesmo evento
em 2015, descrito como “Convenção de Anime e Cultura Geek” (direita)
Fonte: KUWAN, 2010; HARUCON, 2015.

O Anime Family, tradicional evento do Rio de Janeiro, já deixa visível a mudança de


foco, chamando sua edição de 2016 de Anime Family Geek Fest. “O evento é realizado desde
2005 no Rio de Janeiro, e completa 21 edições em 2016. Até então organizado com foco em
anime, música e histórias em quadrinho japonesas, o festival aposta no mundo geek como
diferencial para este ano” (MOURA, 2015). Vários eventos de animê têm gravitado para a
denominação “geek”. O Anibahia, evento baiano que tivera sua última edição em 2011, voltou
em 2016 com o nome de Anibahia Geek Matsuri, incorporando a palavra geek e uma
logomarca com um boneco de óculos, estereótipo dos geeks. Foi acrescentado também o
termo “matsuri”, que em japonês significa “festival”, de modo a manter a identidade como
evento de cultura pop japonesa.

Figura 36 – Logomarcas do Anibahia em 2011 e 2016

Fonte: BITTENCOURT, 2011; ANIBAHIA, 2016.


84

A maioria dos eventos continua mantendo pelo menos alguma referência à cultura pop
e à cultura tradicional japonesa, com atrações como apresentações musicais e de artes
marciais, além de material de divulgação cuja estética costuma conter elementos associados
ao Japão. Mesmo quando há esse esforço para manter raízes japonesas, os eventos têm como
grandes atrações aquilo que hoje atrai público, o que pode criar uma dissonância entre um
design japonês que serve para promover atrações sem relação nenhuma com aquele país. Uma
das edições de 2016 do Rio Anime Club, por exemplo, contou com material promocional cuja
diagramação remete a elementos gráficos e arquitetônicos do Japão tradicional, mas cujas
principais atrações são youtubers. O espaço do evento também foi subdividido entre áreas
com tipos de atrações diferentes, cada uma das quais ganhou o nome de uma província
japonesa. No entanto, as atividades eram praticamente as mesmas de qualquer outro evento
atual e a marcação das “províncias” consistia apenas em faixas não muito visíveis que não
explicitavam o conteúdo da área.

Figura 37 – Japonesidade na comunicação visual do Rio Anime Club

Fonte: Print screen da fanpage do Rio Anime Club

Por outro lado, alguns encontros menores tentam manter-se fincados nas raízes dos
eventos de animê, apostando na nostalgia ao oferecer eventos old school com foco em
atrações relacionadas às animações japonesas e sem a presença dos youtubers, detestados por
muitos dos fãs antigos. Um exemplo foi o Otakontro, evento de Santos que colocou grande
ênfase em sua divulgação no fato de que não haveria youtubers se apresentando no palco.
85

Figura 38 – Evento sem youtuber

Fonte: MARINO, 2016.

Com a crescente aproximação das conveções de animê do público geek, eventos


tradicionais como Anime Friends e SANA passaram a competir público com eventos grandes
já direcionados para nichos como os games e os quadrinhos. A Brasil Game Show, feira
voltada para videogames, surgiu em 2009 no Rio de Janeiro, com o nome de Rio Game Show.
Desde então, a feira se firmou como a maior do gênero na América Latina, oferecendo
demonstrações interativas do que há de mais recente em jogos e hardware, além de
campeonatos de e-sports e presença de celebridades do mundo dos games (BRASIL GAME
SHOW, 2017).
Mas a convenção que elevou o patamar daquilo que os brasileiros esperam de
convenções de cultura pop foi a CCXP (Comic Con Experience), que chegou a São Paulo em
2014 oferecendo uma estrutura e qualidade de atrações que se compara a grandes convenções
do exterior. A CCXP segue o modelo da San Diego Comic Con, convenção norte-americana
que nasceu como encontro voltado para as HQs, mas que com o tempo passou a abranger
painéis e atrações para fãs de diversos segmentos da cultura pop. A CCXP, assim, já chegou
“diversa” ao Brasil, e hoje convida “geeks, nerds, cults, godzillas e pikachus” (COMIC CON
EXPERIENCE, 2016, online) a se unir para partilhar sua paixão pelos mais variados mundos
do entretenimento. Com o preço atual dos grandes eventos como BGS, CCXP, Anime Friends
86

e SANA, grande parte dos fãs precisa escolher um por ano para frequentar e muitos outros
precisam se contentar com eventos menores e mais baratos.

Com o advento do CCXP em 2014, todos os organizadores de eventos perceberam


que se não melhorarem seus serviços, perderão público. Se não fosse o CCXP, os
eventos brasileiros continuariam eternamente os mesmos, pois o publico não tinha
outros comparativos para exigir mais qualidade e mudanças. Agora tem, e vai cobrar
para os eventos "tradicionais" melhorarem. [...] O publico agora tem parâmetros de
comparação e vai exigir mais qualidade simplesmente indo apenas nos eventos que
mostrem melhoras e principalmente, criatividade (PEIXOTO, 2016).

O problema [dos eventos de animê] não são os “youtubers” ou o preço alto dos
ingressos [...], acontece que tem eventos maiores como a CCXP que fazem as
pessoas quererem poupar o dinheiro para irem neles. Eu sei que a CCXP e algumas
outras maiores não falam sobre anime e sim sobre assunto nerd, o anime ou mangá
nestes eventos tem apenas um espaço pequeno porém se parar pra pensar os eventos
de anime mesmo já não são diferentes, encontrar alguém falando de animes é difícil
(comentário em blog).

Não obstante as semelhanças, cada tipo de evento acaba engendrando especificidades


que os diferenciam, que podem se consagrar e acabar se difundindo nos outros tipos de
eventos, processo vivo de aproximações e afastamentos. Tanto dentro dos eventos de animê
quanto em sua posição relativa aos demais encontros, reina uma harmonia conflituosa, numa
coincidência de opostos que não se deixa e nem quer alcançar qualquer tipo de síntese
(MAFFESOLI, 2014). Esses fluxos e refluxos dentro dos e entre os eventos remete ao fato de
que “a época atual seria talvez de preferência a época do espaço. Estamos na época do
simultâneo, estamos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado, do
disperso” (FOUCAULT, 1984, p. 411).
Tanto na esteira dos já conhecidos eventos de animê e dos eventos mais recentes para
nichos da cultura pop, começaram a surgir encontros que já nascem como “eventos geeks”,
que vêm aos poucos substituindo os eventos menores de animê. São em praticamente todos os
aspectos indistinguíveis dos eventos ainda ditos “de animê”, alguns dos quais são organizados
pelas mesmas produtoras que realizam os eventos de animê.
87

Figura 39 – Flyers de evento de animê e de evento geek

Semelhanças de atrações e de layout entre os flyers do Rio Anime Club e da Expo Geek Brasil
Fonte: A autora, 2017.

Tais convenções seguem a mesma fórmula das de animê: palco principal com
concursos e shows, vários dos mesmos estandes e mesmas atrações dos eventos de animê,
como jogos, combate medieval, cosplays. Assim, os eventos geeks oferecem uma experiência
bastante parecida com aquela vivida pelos frequentadores nos eventos de animê, incluindo até
a heterogeneidade das tribos presentes.
88

3 CORPO E SOCIALIDADE NOS EVENTOS DE ANIMÊ

Sou eu! É a forma que faz com que os outros me reconheçam. É o


símbolo do meu eu. [...] Tudo é só uma forma, um identificador para
que os outros me reconheçam. Mas então, o que sou eu? [...] Minhas
roupas, meus sapatos, meu quarto. São todas partes daquilo que me
forma.
Neon Genesis Evangelion

3.1 Participação e performance dos frequentadores

Para além das atrações, o que faz (ou desfaz) um evento é o público. Os organizadores
gostam de anunciar quantos milhares de frequentadores pagaram para entrar em seu evento,
trazendo mais patrocínio e incentivando ainda mais fãs a frequentar. No entanto, o presente
que os eventos trazem jaz no que lá se sente, na presença das pessoas, cujos afetos e efeitos se
traduzem em corpos e roupas que se expressam no espaço por meio de gostos e gestos,
alterando-se e alterando umas às outras.
Com a diversificação da programação das convenções, a própria tribo urbana dos
otakus se expande, se fragmenta e se recompõe. É por isso que, entre otakus, gamers,
cosplayers, nerds, geeks e muitos outros grupos, essas convenções podem ser caracterizadas
como “eventos intertribais” (MACHADO, 2009, p. 117). O sentimento de pertença a uma ou
mais tribos é fluido, dinâmico e ambivalente, não havendo fronteiras claras nem exclusividade
entre os diversos grupos (MAFFESOLI, 1987). Assim, os espaços dos eventos de animê são
marcadamente heterotópicos, já que estes “têm o poder de justapor em um só lugar real vários
espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis” (FOUCAULT, 1984,
p. 411).
A constituição de nichos mais específicos de interesses dentro do grupo dos otakus e
suas afinidades tangenciais com outras tribos urbanas faz com que os eventos sejam
territorializações temporárias em que convivem outros microcosmos, revelando a
complexidade do viver social. Essas agregações sociais proporcionam experiências diferentes
89

de relação com a cultura pop, mas não deixam de ter diversas interseções e pontos de contato,
já que uma mesma pessoa pode transitar por vários deles.
As diferentes atrações e atividades que convivem no mesmo evento estão em constante
negociação de espaço físico e simbólico, evidenciando seu processo constante de hibridação,
resultantes da natureza fluida do tribalismo pós-moderno e da própria natureza da festa.

A festa é, ainda, mediadora entre os anseios individuais e os coletivos, mito e


história, fantasia e realidade, passado e presente, presente e futuro, nós e os outros –
por isso mesmo revelando e exaltando as contradições impostas à vida humana pela
dicotomia natureza e cultura, mediando ainda os encontros culturais e absorvendo,
digerindo e transformando em pontes os opostos tidos como inconciliáveis
(AMARAL, 1998, p. 19).

Essa tensão de heterogeneidades, longe de abalar o convívio das tribos, promove a


diversidade que solidifica o conjunto (MAFFESOLI, 1987). No caso dos eventos de animê, há
de haver algum desejo dos presentes de estar com o outro que, a princípio, compartilha dos
mesmos interesses que eles. Algumas pessoas vão aos eventos apenas para fazer compras ou
assistir certa atração e não tenham desejo de interagir com desconhecidos, mas estão de
qualquer forma se engajando com a(s) comunidade(s) de fãs que se reúne(m) no evento.
As diferentes tribos urbanas presentes nos eventos se manifestam em diferentes
estéticas, compreendidas aqui “como correspondência, como algo que liga um indivíduo a
outro, que conduz a compartilhar com outros experiências e sentimentos comuns”
(OLIVEIRA; FERNANDES; SOUZA, 2008, p. 4).
Tais estéticas são agregadoras e vetores de comunhão, constituindo os sentidos de
estar junto e deixando vislumbrar suas imagens tribalizantes no corpo dos frequentadores.
Nesse sentido, o corpo é imagem e comunica, por meio de sua superfície, voz, gestos e
presença sensível, constituindo-se como vetor de sociabilidade e de trocas com o outro
(FERNANDES, 2008). Portanto, é por meio da observação dos participantes dos eventos de
animê, de suas interações afetivas e experiências comuns que podemos tomar consciência do
elã que os une. Há, pois, para além das diferenças entre as tribos, algum modo de ser
compartilhado que torna esse encontro com o diferente não só possível como desejável, já que
“o cimento (ethos) de toda vida em comum se elabora a partir do jogo das paixões”
(MAFFESOLI, 2014, p. 44).
Diferentemente dos shows e palestras que ocorrem nos eventos, que independem do
número de pessoas na plateia, várias das atividades que constituem a grade de programação
dependem da participação e da performance dos frequentadores para ganharem vida. As mais
90

proeminentes delas são o cosplay, o animekê, os covers de k-pop, os videogames de dança e o


combate medieval.
Todo comportamento e toda interação podem ser entendidos “como” performances
sociais, mas o que de fato “é” performance depende totalmente do contexto em que os atos
são desempenhados. Tais atividades reterritorializam o espaço e modificam temporariamente
as regras do jogo social, o que as marca como diferentes da “vida comum” (SCHECHNER,
2006). Essas atividades são delimitadas no tempo e no espaço e seu contexto de visibilidade
faz com que haja plateia.

Performances marcam identidades, moldam o tempo, remodelam e adornam o corpo,


e contam histórias. Performances – de arte, rituais ou da vida cotidiana – são
“comportamentos restaurados”, “comportamentos duas vezes vivenciados”, ações
realizadas para as quais as pessoas treinam ou ensaiam 21 (SCHECHNER, 2006, p.
28).

As práticas analisadas nos subitens da seção 3.1 carregam certo grau de


autorreflexividade dos participantes, uma vez que se admitem implicitamente como
comportamentos restaurados. Evocam e corporificam algum “outro”, algum “não eu” ao qual
a performance faz referência, quer seja uma atividade que se assuma outra no tempo ou no
espaço.
Assim, o que delimitamos aqui como performances são atividades que acontecem nos
eventos de animê e que tenham como centralidade a movimentação do corpo em espaços
delimitados. Seu cerne envolve atuações do corpo e/ou da voz que pressupõem ou suscitam
treinamento cognitivo, motor, vocal, sensorial e/ou cinestésico. A materialidade dessas
performances é o corpo ou se inscreve sobre ele. Outro dado relevante é que todas elas são
passíveis de serem executadas como competição e geram torneios dentro dos eventos,
acionando a dimensão da performance como jogo, que engaja a plateia na torcida, por meio de
processos de identificação com um ou mais competidores. O que nos traz de volta à questão
da performance, já que ela é, em sua essência, interação, relação, uma vez que ela não pode
ser localizada “em” algum lugar. Em meio a performers e plateia, performance é aquilo que
ocorre exatamente no “entre” (SCHECHNER, 2011).
A performance também evidencia o fato de que o corpo é uma ferramenta do homem,
que pode se aperfeiçoada e utilizada para diversos fins. Nenhum gesto é “natural”, todo

21
Tradução nossa, do original: “Performances mark identities, bend time, reshape and adorn the body, and tell
stories. Performances – of art, rituals, or ordinary life – are “restored behaviors,” “twice-behaved behaviors,”
performed actions that people train for and rehearse”
91

comportamento é aprendido, socialmente herdado, passa pela cultura. Os sujeitos assimilam


as séries de movimentos que compõem o ato por meio da observação e imitação daquele ato
em outras pessoas. O modo de executar até os atos mais banais, como andar ou manter o
corpo em repouso, muda de sociedade para sociedade, de um grupo social para outro, numa
“mesma” sociedade (MAUSS, 1974). Desse modo, o conhecimento corporal necessário para
as práticas do cosplay, do animekê, dos covers de k-pop, dos videogames de dança e do
combate medieval passa por diversas técnicas do corpo. Essas formas “estrangeiras” de cantar
e de se movimentar requerem aprendizado gradual, sendo assimilados a corpos que já
possuem todo um repertório simbólico e cinestésico de toda uma vida de práticas e uso.

3.1.1 Cosplay

O cosplay, atividade de maior prestígio dentro dos eventos (MACHADO, 2009), é


também aquela à qual foi dispensada a maior atenção acadêmica. Trata-se do ato de se vestir
como personagens de narrativas midiáticas, sejam elas animês, livros, filmes, jogos, seriados
ou até celebridades “de carne e osso”.
Cosplay é a junção das palavras costume, fantasia, e play, termo de difícil tradução,
que passeia entre os sentidos de “brincadeira”, “jogo” e “peça teatral” (DAWSEY, 2007). O
costume de criar e vestir fantasias de personagens midiáticos em convenções originou-se nos
Estados Unidos, em 1939, com personagens da ficção científica. O primeiro registro desse
tipo de atividade no Japão é de 1978. O termo cosplay foi cunhado em 1983 nesse mesmo
país, onde a prática se popularizou enormemente (SOARES, 2013). A chegada do cosplay ao
Brasil data de 1996, quando foi realizado o evento Mangácon.
Praticamente todos os eventos de animê atuais contam com competição de cosplay. É
muito comum ver pessoas circulando fantasiadas pelos eventos, algumas das quais preferem
não se apresentar no palco. Aparecer de cosplay praticamente garante que qualquer um seja
alçado ao status de semicelebridade instantaneamente, nem que seja só até o final da
convenção ou até a pessoa se “desmontar”.

É mto trabalhoso e cansativo...mas a sensação de ser reconhecida pelo seu esforço e


ter fotos tirada...faz com que toda a parte penosa falha a pena... de crianças a adultos
essa diversidade de idade me mostrou ate onde eu alcancei... (entrevistada,
frequentadora, 26 anos).
92

Há o acordo implícito de que, ao aparecer fantasiado, o cosplayer está disposto a posar


para as fotos que os demais frequentadores pedirão para tirar. Nesses momentos, é comum o
cosplayer fazer alguma pose característica do personagem que está encarnando. Ao andar pelo
evento, o cosplayer é um “não eu” e um “não não eu” (SCHECHNER, 2011), podendo a
qualquer momento precisar ou querer performatizar o personagem. Enquanto vestir a fantasia,
é “como se” ele fosse o personagem, vivendo na ambiguidade de uma dupla identidade.

Figura 40 – Grupo de cosplayers

Cosplayers de quadrinhos da editora DC se juntam para foto no Anime Friends 2015


Fonte: A autora, 2015.

O concurso de cosplay geralmente ocorre no palco principal. Costuma subdividir-se


nas seguintes categorias: a) desfile, onde apenas a fantasia e a caracterização são avaliadas; b)
tradicional, em que um ou mais cosplayers interpretam alguma cena canônica do animê (ou
outra mídia) de origem dos personagens; e c) livre, onde os cosplayers criam uma cena
original com aqueles personagens, normalmente em situações de humor (SOARES, 2013).
Assim, cosplay não significa apenas vestir a fantasia, mas também interpretar um
personagem. Também não é apenas imitar, já que são criadas cenas novas, seja no palco ou
fora dele, já que os cosplayers posam para foto criando situações que nunca ocorreram no
material original. Os cosplays permitem que inimigos se beijem e que personagens de
diferentes franquias possam posar para fotos como se estivessem lutando entre si. O próprio
cosplay pode ser uma adaptação ou recriação do personagem. Há versões femininas de
personagens masculinos (e vice-versa), onde o cosplayer não só se veste de um personagem
93

cujo gênero é diferente do seu. A roupa toda é adaptada, de modo que é como se aquele
personagem realmente fosse de outro gênero.

Figura 41 – Cosplays e gênero

Versão feminina do personagem Freddy Krueger, do filme A Hora do Pesadelo


(esquerda) e rapaz de cosplay da princesa Elsa, da animação Frozen se apresentam no
palco do Rio Anime Club, em maio de 2016.
Fonte: OLIVEIRA, 2016.

A escolha do personagem pelo cosplayer costuma se dar por afinidades físicas ou


psicológicas, pelo desafio de elaborar uma boa fantasia, ou ainda para participar de uma
performance em grupo com amigos.

Eu acho muito legal e pretendo fazer no futuro. Acho que mostra um esforço tão
grande de mostrar seu amor a um personagem. Quando eu vejo um cosplay bem
feito isso me deixa muito impressionada com a capacidade dessa galera (entrevistada,
frequentadora, 18 anos).

Segundo Nunes (2015, p. 45), “o cosplay, compreendido como metonímia das


narrativas hegemônicas, mangás, animês, entre outras, reinventa a narrativa original no corpo
dos jovens por meio das materialidades consumidas”. É desse modo, por meio da escolha
afetiva e do caráter transformador da performance (SCHECHNER, 2011), que o cosplayer
tanto incorpora o personagem, como também realiza processos de negociação identitária,
acionando para si próprio algo daquele personagem ou daquela performance.
94

3.1.2 Animekê

Da centralidade das roupas e do gesto, passamos à centralidade da voz, importante


elemento da performance em sua materialidade (ZUMTHOR, 2005). A questão da fala se
manifesta também no cosplayer, que fala com sua própria voz ou pode ser “dublado” por
meio de lip sync, mas o animekê traz o performer ao registro do canto. Animekê, junção de
animê com karaokê, é igual a esse último, onde a pessoa canta com o acompanhamento
instrumental gravado da própria música. O que distingue o animekê é a seleção de músicas,
que podem ser anime songs (canções da trilha sonora de animês), músicas de videogame, de
tokusatsu, ou ainda j-music (música japonesa contemporânea, normalmente pop ou rock)
(MACHADO, 2009).
Karaokê é a junção de kara (vazio) e oke (abreviando okesutora, fonetização japonesa
de “orquestra”) significa algo como “sem orquestra”. A atividade surgiu nos anos 1970, no
Japão, e nos anos 1980 se popularizou no país e se espalhou pelo mundo, sendo até hoje uma
forma de diversão amplamente praticada por lá.
Em seu país de origem, o karaokê é uma atividade de socialização, regida pela
modéstia e busca da harmonia do grupo, características notórias do viver social japonês. O
importante ao se reunir com amigos ou colegas de trabalho para cantar é se esforçar, dar o
melhor de si. Cantar desafinadamente nessas ocasiões não é motivo de vergonha, e sim uma
atividade desestressante que promove a união por meio da diversão e da “vulnerabilidade” de
todos os presentes.
Ao vir para o ocidente, os karaokês foram apropriados como uma atividade
competitiva e de reafirmação individual, mesmo que essa competitividade faça parte da
brincadeira nesse ritual social. Prova disso são os videokês caseiros que atribuem nota ao
desempenho do cantor (SATO, 2007). Os eventos de animê juntam esses dois aspectos do
karaokê. Ao mesmo tempo em que é um ambiente seguro em que as pessoas podem se sentir
livres para serem elas mesmas e cantar de qualquer jeito as músicas que gostam, há outras que
o fazem em nível competitivo.

Eu sempre fui muito tímido, mas já faz um tempo que não tenho mais vergonha de
nada. Uma vez eu cantei Re:Member do Flow, Abertura da Quinta temporada do
Naruto. Tinha bastante gente olhando, e eu estava bem nervoso, cantei de olhos
fechados. Quando terminei me aplaudiram bastante, fiquei mega orgulhoso
(entrevistado, frequentador, 21 anos).
95

O animekê pode acontecer em um palco ou espaço dedicado, ou ainda no palco


principal. Há o animekê livre, em que a pessoa apenas canta sem compromisso, e os
concursos, em que os participantes são julgados por seu desempenho e concorrem a prêmios.

Figura 42 – Animekê

Rapazes cantam no palco Animekê, no Anime Friends 2015


Fonte: NAOMI, 2015.

Algumas pessoas escolhem músicas de animês que possuem versão em português, mas
é muito comum os participantes escolherem músicas em japonês, que não têm dificuldade em
cantar, ainda que não dominem a língua. Esse fato impressiona muitos não otakus, mas é
tratado com naturalidade nos eventos. Isso porque, ainda que não tenham feito curso de
japonês, os fãs de animê estão acostumados com a sonoridade da língua.

Nego acha que eu to zuando, ou algo assim, mas quando eu começo a cantar, vozes
se calam [...] as músicas em japonês que eu sei cantar, eu posso até escrever elas pra
você, porque eu sei direitinho a pronuncia de cada palavra. demora pra aprender,
mas a música fica bem legal (entrevistado, frequentador, 21 anos).

Como a oferta de animês dublados no Brasil é relativamente pequena nos dias de hoje,
os otakus recorrem à internet, onde facilmente encontram desenhos legendados (LOURENÇO,
2009). Essa legendagem costuma ser feita por fãs, que traduzem diretamente do japonês ou de
outras legendas já existentes, atividade conhecida como fansub. É de tanto ouvir a língua
japonesa em animês, filmes, novelas e músicas que os otakus acabam aprendendo a pronúncia,
a cadência e até a impostação de voz japonesa.
Tanto cantar quanto aprender outro idioma, ainda que apenas a maneira de vocalizá-lo,
desconhecendo-se seus significados, são técnicas corporais que fazem uso do aparelho
96

fonador humano. São aprendidas, como quaisquer outras, por imitação e treino, atos que
requerem a assimilação de movimentos (MAUSS, 1974), nesse caso, movimentos que
produzem voz e melodia.
Outra atração comum nos eventos são as bandas de rock, normalmente fazendo covers
de músicas de animês e videogames. Essa atração, no entanto, não entra no escopo das
atividades em que qualquer frequentador pode participar e competir. Os shows mencionados,
por outro lado, são atrações previamente planejadas. Os nomes das bandas, que normalmente
têm algum grau de fama na mídia mainstream ou no Youtube, são anunciados como parte
formal da programação.

3.1.3 K-pop covers

Pode parecer estranho que a música pop sul-coreana tenha conquistado um enorme
espaço nos eventos de cultura pop japonesa nos últimos anos. Essa expansão, no entanto, fica
clara uma vez que examinamos o fenômeno da Hallyu. Esse termo, que literalmente significa
“fluxo coreano”, mas é mais conhecido como “Onda Coreana”, marca a rápida ascensão da
Coreia do Sul como país exportador de produtos culturais para o mundo todo. Inicialmente
propelida pela disseminação das novelas coreanas (conhecidas como k-dramas) no sudeste
asiático, a Hallyu ganhou força mundial no começo dos anos 2000 por meio do k-pop
(KARAM; MEDEIROS, 2015).
Abreviação de “Korean pop”, o k-pop vai além do estilo musical de batida marcante e
influência de gêneros americanos como música eletrônica, R&B e hip hop. O fenômeno
engloba também a estética de seus coloridos videoclipes, em que os integrantes das bandas
vestem roupas da moda e executam coreografias altamente sincronizadas. Essas boy e girl
bands (raramente mistas) são resultado de verdadeiras fábricas de talento, recrutando crianças
e adolescentes para a chance de um dia virarem idols. Esses jovens trainees são treinados
exaustivamente durante anos para virarem estrelas que agradem aos mercados globais
(KARAM; MEDEIROS, 2015).
A internet foi fundamental para espalhar pelo mundo o gosto pelo k-pop. Os sites de
redes sociais permitem a comunicação dos ídolos coreanos, que aprendem outras línguas em
seu treinamento, com suas bases de fãs internacionais, fortalecendo sua imagem e dando a
sensação de serem pessoas acessíveis, “gente como a gente”. Já o Youtube permitiu que os
97

clipes e shows das bandas fossem facilmente compartilhados pelos fãs, que começaram a
gravar seus próprios covers das coreografias de k-pop e disponibilizá-los na plataforma de
vídeo (JUNG, 2011). A internet é essencial também para a comunicação e formação de redes
entre os fãs, que podem compartilhar seus gostos com pessoas de seu país e do mundo,
aprender uns com os outros e organizar encontros offline.
Daí nasceram os k-covers, prática em que os fãs de k-pop aprendem e executam,
normalmente em grupo, as coreografias de seus clipes preferidos. Como os eventos de animê
abrangem cada vez mais interesses e a própria hallyu ganhou muita força por meio do
mercado japonês, não demorou até que os covers de k-pop virassem parte da programação.

Meu tempo de k-pop se iniciou de forma diferente, eu já era fã do gênero através de


uma artista em particular mas não sabia. No caso era BoA, eu a acompanhava por
meio de seus singles japoneses. Dai quando descobri que era coreana e ainda existia
um mercado pop coreano fui conhecer, adentrando este universo musical novo para
mim e me dei conta que era maravilhoso, conheci outros bons nomes como: TVXQ,
2PM, Super Junior, SS501... dentre outros (MENDES, 2015, online).

me parece q o japao ta perdendo o timing. a onda coreana tá chegando com tudo. e


os eventos de anime tao virando coisa de kpop, kdrama. acho q eles precisam se
reinventar. ou em 20 anos meus filhos vao dizer "anime eh coisa de gente velha"
hahhahaha. so vao saber oq eh kpop. eu seiq o mercado da america latina nao eh
foco do japao. mas nao acho interessante deixar isso morrer. pelo q li da coreia, eles
tao investindo pesado em expandir a onda. japao viverá tempos difíceis se nao reagir
(entrevistada, ex-frequentadora, 24 anos).

Nos concursos dos eventos, não raro etapas de concursos maiores (assim como os das
demais atividades aqui relatadas), há categorias em que só são permitidos covers da dança
original e outros que contam também com a categoria livre, em que os participantes podem
fazer mashups22 de músicas e criar suas próprias coreografias. Por vezes, há divisão entre as
apresentações solo, dupla e grupo. Nos concursos menores, é comum só haver uma
modalidade, que acaba recebendo poucos participantes solo, já que a sincronização de
movimentos entre os dançarinos é de grande importância para tornar a performance
impactante. As equipes buscam a coordenação nos gestos e também no visual caprichado,
apostando em roupas iguais ou combinando, quase sempre com peças bastante coloridas.

22
Faixa que combina trechos de duas ou mais músicas.
98

Figura 43 – K-pop covers

Apresentações de k-pop covers no Rio Anime Club, maio de 2016


Fonte: OLIVEIRA, 2016

Há desde as coreografias mais simples, que podem ser praticadas por iniciantes, até as
mais complexas, que requerem alto grau de treino e habilidade. Alguns grupos escolhem
apresentações mais “fofas”, elemento que o k-pop tem em comum com o j-pop (música pop
japonesa), outros exibem mais sensualidade nas roupas e nos movimentos, fazendo jus à
influência norte-americana da música sul-coreana. Alguns k-poppers (fãs de k-pop, quer
dancem ou não) buscam se aproximar da aparência asiática, o que às vezes se revela difícil,
devido às diferenças de constituição física entre os corpos brasileiros e os de seus ídolos
coreanos.
As técnicas corporais necessárias à execução das coreografias do k-pop são aprendidas
por meio de produtos para consumo massivo acessados pela internet. Os k-poppers imitam e
reproduzem as coreografias que assistem, mas também as ressignificam e com elas negociam,
já que essas técnicas sobrepõem-se a corpos que já contam com um repertório gestual e
99

simbólico prévio assimilado durante anos em meio à cultura e aos modos de ser dos
brasileiros.

3.1.4 Videogames de dança

Ainda no âmbito das coreografias, outra forma de diversão popular nos eventos são os
videogames de dança. Esse gênero de game surgiu no Japão como evolução dos jogos de
ritmo, em que o jogador usava o direcional do controle para acompanhar os comandos em
forma de setas, acertando a batida da música. Lançado em 1998, Dance Dance Revolution deu
ao jogador o comando das setas por meio de botões sob seus pés, fazendo com que precisasse
pisar nos lugares certos conforme as ordens que apareciam na tela.
Nos primeiros anos do século XXI, Dance Dance Revolution (DDR) virou moda nos
eventos de animê, estes mesmos recém-estabelecidos no Brasil. Os jogos de dança evoluíram
e mudaram, o que refletiu em sua presença nos eventos. À moda do DDR, seguiu a do Pump It
Up, muito parecido com o anterior, mas acrescentando setas na diagonal, não só cima, baixo,
frente e trás. Depois houve o momento do jogo Para Para Paradise, que usava sensores no
chão para detectar os braços do jogador, trazendo o foco da dança aos membros superiores.

Figura 44 – Videogames de dança

Rapaz dança Pump It Up no Animecon 2010 (esquerda) e grupo aprende coreografia de Para Para
Paradise no Animecon 2008
Fonte: ANIMECON, 2011.

O surgimento do Nintendo Wii, console da empresa japonesa Nintendo, marcou uma


nova era para os jogos de dança, aliando sensores de movimento ao giroscópio embutido no
100

controle. É para o Wii que foi lançado Just Dance, jogo de 2009 da multinacional francesa
Ubisoft. Com gráficos coloridíssimos, jogabilidade mais intuitiva e uma seleção de hits
famosos, o game alcançou enorme popularidade, até entre pessoas que não tinham o costume
de jogar videogames. Outra grande diferença desse novo tipo de jogo de dança é que, ao
contrário do DDR e similares, em que a música era interrompida após muitos erros do jogador,
causando frustração, a geração do Just Dance permite que o jogador continue a jogar até o fim
da música, facilitando o processo de aprendizado das coreografias.
O Kinect, sistema de sensor de movimento dos consoles da linha Xbox, da Microsoft,
elevou a jogabilidade dos games de dança. Ao usar esse sistema para jogar Just Dance 2016,
versão mais atual da série, o jogador usa seu corpo inteiro para interagir com o console
(SILVA, 2013). Não é mais preciso segurar controles, já que ele possui uma câmera que capta
os movimentos do jogador. Mais do que nunca, não basta mover os pés ou as mãos para
“enganar” o jogo, é preciso participar de corpo todo.
Nos eventos de animê, o Just Dance, e às vezes seu concorrente Dance Central, é
jogado em um espaço delimitado no “chão” do próprio evento. É só em convenções maiores
ou em fases de torneios maiores que há um palco específico para esses jogos. Os games de
dança costumam ser jogados nos eventos com o número máximo de participantes possíveis,
dois no Dance Central e quatro no Just Dance.

Figura 45 – Just Dance no Rio Geek Zone 2015

Fonte: A autora, 2015.

É interessante notar que, em volta dos jogadores, forma-se uma roda de pessoas que
também conhecem a coreografia e a executam como se estivessem participando, fenômeno
também percebido na plateia que assiste às apresentações de k-covers.
101

Mas os dançarinos/jogadores de Just Dance e Dance Central precisam se preocupar


menos com a própria imagem do que aqueles do k-pop. Assim, não precisam se vestir de certo
modo para dançar e nem se preocupar em manter uma forma física dentro dos padrões de
beleza e magreza, já que quem decide o vencedor é o videogame, que não tem como
considerar os aspectos subjetivos da performance.
Em contraste com as demais práticas que analisamos, os games de dança são os únicos
feitos com o objetivo de ser imitados. O jogo só se completa quando os jogadores
corporificam os movimentos dos bonecos que aparecem na tela, bonecos esses que já são
releituras ou recriações das performances dos artistas em cuja música se baseia a coreografia.
Diferentemente de outros jogos musicais, como Guitar Hero e DJ Hero, os jogos de dança
fazem o jogador de fato dançar (ainda que mal), não apenas simulando o ato de tocar um
instrumento.
Dançar pode fazer parte da experiência de fruição musical, mas os jogos de dança
saem da esfera mais ampla da brincadeira e da representação para se formalizar em regras
claras. Assim, dentre as atividades disponíveis nos eventos, o jogo de dança é o que mais
parece borrar as fronteiras entre performance e jogo, com notas “objetivas” e ao mesmo
tempo com uma presença sensível que se torna apresentação frente ao olhar do outro.
Desse modo, o game de dança dificilmente pode ser divorciado de sua dimensão de
jogo, ainda que não esteja sendo jogado de modo competitivo. As instruções da tela, no
entanto, não são apenas seguidas, e sim traduzidas, interpretadas e negociadas entre jogadores
e jogo, entre dançarinos e plateia. O caráter competitivo dos jogos eletrônicos de dança
aproxima-se das outras performances do evento em seu engajamento da plateia, cujas reações
também fazem parte do “texto performático” (SCHECHNER, 2011), podendo engajar seu
corpo e sua voz na torcida por algum dos competidores.

3.1.5 Combate medieval

Existem vários tipos de swordplay, atividade que simula combates medievais, dos
quais o boffering é o mais difundido no Brasil. A prática que aqui é conhecida como combate
medieval consiste na luta entre oponentes empunhando réplicas de armas brancas feitas de
materiais leves e revestidas de espuma para não causar contusões.
102

É a atividade cuja inspiração parece destoar das demais aqui descritas. Remete não só
a um outro lugar, a Europa, como a outra época, a Idade Média. O imaginário acionado é o
dos cavaleiros, com seus clãs, hierarquias e códigos de honra. Esses sistemas são emulados
pelos grupos de combate medieval em seus próprios encontros, mas não se fazem tão
relevantes para o público dos eventos de animê, em geral menos “fiel” à atividade.

A diferença de público é que nós aqui somos contratados pra trazer essa atividade e
mostrar pro pessoal. Ganha dos dois lados, né, porque a gente além de ganhar pra tá
aqui, a gente conhece muitas pessoas interessantes e leva elas também pra esse
mundo, mostra pra elas como é uma atividade tanto de socialização quanto uma
atividade física e até educacional. Então a gente aqui leva pra um público que chega
aqui, qualquer pessoa pode chegar, participar. E lá nos nossos treinos também é
aberto, qualquer pessoa pode chegar, participar, perguntar. Tem muitas vezes que os
pais levam os filhos, os filhos levam os pais, às vezes vai a família toda [...]
Geralmente isso aqui é uma porta de entrada pros jogos maiores (responsável pelo
combate medieval, entrevistado em evento).

No combate, cada participante da luta (seja um contra um, um contra vários ou vários
contra vários) escolhe suas armas, dentre espadas curtas, longas, lanças, machados e até
escudos, normalmente reproduções aproximadas de armas medievais. Os lutadores devem
atingir o(s) oponente(s), evitando golpes na cabeça, pescoço e “partes íntimas”, o que inclui
os seios no caso das moças, que são minoria no jogo. As regras podem variar, mas o mais
comum é os golpes no torso serem “fatais” e golpes nos membros fazem com que o lutador
“perca” a parte atingida, não podendo usar aquele braço ou perna até o fim da partida. Há
juízes, mas espera-se que o próprio atingido reconheça que foi golpeado, revelando a
importância dos ideais da honra e da honestidade (NAPPO, 2015).
A presença do combate medieval também pode parecer deslocada nos eventos de
animê mas, assim como os k-covers, é de fácil compreensão ao observarmos as origens da
prática. O fascínio com a Era Medieval é comum ao universo do que é comumente
compreendido como “nerd 23”, grupo que tem grande interseção com os interesses dos otakus,
como pode ser visto pela quantidade de videogames, jogos de tabuleiro e trading card games
jogados nos eventos de animê.
Um dos passatempos mais classicamente “nerds”, os RPGs (role-playing games),
jogos abertos e narrativos de interpretação de papéis em que os resultados das contendas são
decididos nos dados, são grandemente influenciados pelo gênero literário da fantasia medieval.
Surgiram dele os LARPs, live action role-playing games, em que os jogadores se caracterizam

23
Não há definição unânime para o termo, mas seriam características nerds a introversão, a timidez, a
intelectualidade, a facilidade com as novas tecnologias, o colecionismo e, especialmente, a paixão por
atividades que dizem respeito aos mundos da ficção e da fantasia.
103

como seus personagens e determinam o vencedor das lutas cruzando espadas (revestidas de
espuma). A partir daí, o boffering, ou combate medieval, parte que diz respeito a esse tipo de
luta, saiu apenas do domínio dos LARPs para se tornar uma prática à parte.

O swordplay, ele é um dos elementos do LARP. O LARP é o live action roleplay, ele
é um jogo de caracterização e atividade num cenário já predeterminado, por exemplo,
medieval fantástico, que é o nosso cenário, tem o medieval realista, tem o cyberpunk,
steampunk [...]. No caso, o swordplay é só mais uma das atividades. Por exemplo,
tem o LARP político, tem o LARP que é meio estilo Game of Thrones, o LARP
econômico, onde você pode simplesmente ser um ferreiro, um artesão, um padeiro,
um taberneiro. Você não precisa se envolver em combate direto, necessariamente, o
combate direto é só um dos elementos, às vezes pra resolver alguma contenda ou
você simplesmente é um guerreiro contratado pra acabar com outro reino. [...] Essa
aqui é uma atividade mais nerd, mais diferenciada (responsável pelo combate
medieval, entrevistado em evento).

Figura 46 – Combate medieval no Rio Geek Zone 2015

Fonte: A autora, 2015.

A inspiração mais óbvia do combate é a Idade Média, mas não qualquer Idade Média,
e sim um recorte específicos dessa era: a nobreza cavalheiresca da época das Cruzadas, com
seus ideais românticos e de honra, numa sociedade hierárquica com base na
consanguinidade/hereditariedade, dividida em estamentos. O combate medieval, então,
provém em grande parte à noção de cavaleiro como retratado nos filmes e livros de ficção, já
que não há como ter acesso direto à realidade dos cavaleiros medievais. Somam-se a isso os
imaginários fantásticos de um mundo regido pela magia e povoado por dragões, prontos para
serem heroicamente aniquilados no evento de animê mais perto da sua casa.
104

3.2 Roupas, comunicação e pertencimento

Nem toda performance é socialmente demarcada. Qualquer interação cotidiana requer


que os participantes “encenem” determinados papéis, que dependem tanto da ocasião quanto
das posições relativas de cada um dos envolvidos na “cena”. É nessa teatralidade do cotidiano,
em que representamos variados papéis nas interações com os outros, vivemos processos de
identificação e de diferenciação, constantemente compondo e recompondo o que entendemos
como nossa própria individualidade (GOFFMAN, 1983).
Mas esse vir a ser que ocorre no contato com o outro é sempre precário, cambiante e
transitório, uma vez que não falamos de uma identidade e sim de uma persona, uma das
muitas máscaras que vestimos em nossas interações sociais. A máscara não representa algo
que é falso e sim um papel, desempenhado de acordo com o contexto e que exprime uma
parcela da verdade daquilo que somos. Como sintetiza Maffesoli (2006), “a pessoa (persona)
só existe na relação com o outro”. Portanto, “ser” otaku, gamer, cosplayer ou qualquer outro
tipo de pertencimento tribal é sempre um modo de ser circunscrito não só às mudanças de
gosto dos indivíduos, mas também aos momentos e pessoas com quem é possível “ser” certa
coisa e não outra, ou mais de uma coisa ao mesmo tempo.
As vestimentas e a apresentação de si são de central relevância na fruição dos eventos,
que se tornam espaços em que as pessoas podem usar roupas e acessórios ou adotar
comportamentos que seriam mal vistos fora dessas ocasiões. O acordo tácito é que cada um
tem a liberdade de ser como é (ou gostaria de ser) sem temer ser julgado pelo modo como se
faz perceber.
A multiplicidade de imaginários acionados pelas diferentes atividades dos eventos
corporifica-se nas diversas estéticas que lá encontramos. Os cosplays, as roupas, os adereços e
os modos próprios de comunicação fazem parte dos pertencimentos tribais que de pode
identificar nos eventos. Os visuais gamer, rockeiro, emo, punk e gótico entrecruzam-se com
estilos derivados da moda urbana japonesa, formando uma miríade de identificações e
estéticas que convivem no mesmo evento ou até no corpo de uma mesma pessoa.
As roupas e acessórios funcionam tanto como marcadores de pertença quanto de
diferença, o que permite que os significados de cada peça ou estampa sejam lidos pelos outros
participantes do evento, uma vez que a maioria dos presentes domina aqueles códigos. Uma
das funções das roupas nos eventos, assim, é a de serem chamarizes à interação, já que um
dos grandes atrativos dos eventos é estar na presença de outros apaixonados pela cultura pop.
105

Desse modo, a roupa “fala”, comunicando uma grande quantidade de informação antes que se
estabeleça qualquer conversa, pois se apresenta como elemento da fachada pessoal do
indivíduo (GOFFMAN, 1983).
Para muitos frequentadores de eventos, os cosplays ou as peças de roupas e adereços
que vestem nos eventos representam mais a realidade de quem eles são do que as roupas que
vestem na vida cotidiana, de modo que é “como se, ao disfarçar-se de personagens de
desenhos animados, os jovens chegassem a encontrar sua verdadeira personalidade. Como se
a roupa insípida de todos os dias fosse de fato o verdadeiro disfarce” (BARRAL, 2000, p.
140).
Um grande número de frequentadores veste camisetas pretas de bandas, de animê ou
games mas, mesmo quando não estão vestidos de algum personagem ou segundo algum estilo
específico, usam muitos adereços e acessórios que marcam seu pertencimento à tribo. Usam
colares metálicos com pingentes (para moças e também rapazes), sobretudos, luvas, presilhas
de cabelo, chaveiros e bótons na bolsa ou mochila, os quais podem ou não fazer menção a
personagens ou séries específicas. Há também as touquinhas, orelhinhas e rabos de bichinho,
que são usados por garotos e garotas.

é engraçado porque nunca parei para pensar por que usava os gorrinhos. acho que no
final das contas era um lance de identidade. eu via o pessoal usando e queria usar
também. era como se eu quisesse mostrar que fazia parte daquele grupo
(entrevistado, ex-frequentador, 30 anos).

Todos esses elementos tornam difícil identificar até onde vai a simples composição de
acessórios e onde começa o cosplay. Esses modos de vestir as paixões traz à tona a
importância do corpo na sociabilidade, o qual serve como um outdoor afetivo que convida o
contato de outros membros da tribo. É comum nos eventos uma pessoa iniciar uma conversa
com outra apenas por tê-la visto usando uma camiseta ou bóton de um animê ou série do qual
também gosta.

3.3 Plaquinhas

O aparato comunicativo que mais chama a atenção dos não iniciados são as chamadas
“plaquinhas”, pequenas lousas brancas portáteis feitas de fórmica, que possuem um cabo de
106

madeira por onde são seguradas. Em sua superfície, normalmente de ambos os lados, é
possível escrever com a caneta de ponta porosa que a acompanha, de modo que se podem
limpar as marcações com um apagador ou mesmo com a mão. Assim, é possível alterar partes
da mensagem, apagá-la e reescrever quanto e quando a pessoa quiser.
É difícil determinar com precisão a data, o lugar ou a circunstância da criação das
plaquinhas, mas há relatos de que existiriam desde 2001, ao menos em alguma versão
primitiva (PLAQUINHAS, 2010). Tudo teria tido início nos eventos de São Paulo com os
comentários às apresentações que ocorriam no palco principal, que surgiam em forma de
reações gritadas por parte de membros da plateia. Devido à dificuldade de se fazer
compreender em meio a dezenas de gritos diferentes, alguns participantes do evento
começaram a escrever mensagens em folhas de caderno, que escreviam na hora e levantavam,
de modo que pudesse ser vista do palco e também pelos demais membros da plateia. Ambas
as práticas, gritar comentários e escrever em folhas de caderno, são comuns até hoje, mas
alguns frequentadores dos eventos resolveram sofisticar a forma de transmitir suas opiniões.
Começaram então a levar placas prontas de casa, feitas de cartolina ou papel colados a
algum tipo de haste. Como não era possível apagar a mensagem, as placas eram sucintas e
genéricas, como uma mão com polegar para cima, outra com o polegar para baixo ou então
alguma palavra ou frase curta. Usavam-se também placas com desenho de gota, código visual
empregado nos animês e mangás para denotar embaraço ou desconforto. A placa de gota caiu
em desuso, mas esse símbolo ainda é comumente encontrado nas plaquinhas de lousa. Essa e
outras convenções gráficas dos mangás “são, em grande parte, transparentes, expressam
emoções que são facilmente decodificadas pelos leitores” (FREITAS; NUNES, 2012, p. 12).
Os otakus da época anterior às placas de lousa estavam, portanto, utilizando códigos dos
próprios mangás para comunicar suas emoções de maneira condensada e eficiente, já que se
supõe que a maioria dos presentes compartilhava desse mesmo conjunto de significados.
Mais tarde, os frequentadores dos eventos chegaram a uma solução capaz de poder
transmitir pensamentos mais complexos e imediatos, de forma mais visível do que traços de
caneta esferográfica no papel e que ainda evitava o gasto de várias folhas de caderno. Surgiam
assim as plaquinhas do tipo lousa branca, feitas por eles próprios e que, a princípio, só podiam
ser escritas em um dos lados.
Seguindo a tendência lançada pelos próprios frequentadores dos eventos, algumas das
empresas que tinham estandes nos eventos começaram a fazer lousas dupla face para
distribuir como brinde na aquisição de algum outro produto. Essas placas retangulares tinham
e logomarca da empresa e, muitas vezes, uma moldura desenhada no formato de balão de fala,
107

em clara alusão ao modo de apresentação de texto nos mangás. Até hoje podem ser
encontradas nos eventos algumas plaquinhas cuja lousa é cortada nesse formato de balão
(figura 47), ainda que a de forma retangular e sem nenhuma logomarca seja mais comum.

Figura 47 – Plaquinha de balão de


fala

Plaquinha em formato de balão de fala, com


escrita em japonês.
Fonte: COSPLAYRS, 2015.

Os usos das plaquinhas são tão diversos quanto as pessoas que as carregam. Devido ao
clima festivo dos eventos, as inscrições costumam ser bem-humoradas e zombeteiras, por
vezes entrando no terreno do que alguns dos próprios frequentadores consideram apelativo ou
de mau gosto.
As mensagens possíveis são praticamente infinitas, mas muitas delas acabam se
encaixando em fórmulas consagradas. É possível, portanto, ensaiar uma classificação das
mensagens mais comuns, compreendendo que as categorias a seguir são flexíveis, muitas
vezes se misturando, e que toda tipificação é essencialmente uma simplificação.
Há placas que não convidam diretamente a algum tipo de interação específica, como
as que só contêm algum tipo de declaração ou desenho, que parecem externar apenas a
vontade do autor de se expressar. Outras têm como objetivo a autopromoção, divulgando uma
rádio online, conta em rede social ou canal do Youtube, normalmente pertencentes ao portador,
que o mesmo deseja que os demais acompanhem na Internet. Tais tipos de mensagem podem
suscitar a conversa de passantes com o portador, mas essas abordagens não são necessárias
para servir à função expositiva da mensagem.
A maioria dos outros modelos de mensagem, no entanto, só cumpre o papel desejado
pelo autor da placa quando gera a participação de outras pessoas. É frequente, por exemplo,
108

encontrar plaquinhas que promovem enquetes informais. Pode haver uma pergunta no topo
(figura 48), trazendo abaixo as alternativas de resposta. Pode também apenas conter alguns
nomes de animês, personagens ou bandas, por exemplo, caso em que os passantes podem
votar em seu preferido (figura 48). O portador da plaquinha de enquete está implicitamente
aberto a abordagens, de modo que qualquer pessoa pode ir até ele, que oferecerá a caneta para
que o passante acrescente um traço à área da lousa que contém a opção em que deseja votar.
O voto também pode ser registrado oralmente, caso em que o dono da placa fará a marcação
que foi pedida.

Figura 48 – Plaquinhas com contagem

Plaquinhas de enquete (esquerda e centro) e plaquinha de “ordem” (direita).


Fonte: COSPLAYRS, 2015.

Algumas placas contêm frases no imperativo, que os passantes podem obedecer ou


ignorar. Na figura 48, a jovem segura uma placa onde se lê “GRITE BANKAI”, pedindo aos
outros que gritem o nome de um golpe do animê Bleach. Abaixo da frase, há marcações que
contabilizam o número de pessoas que entraram na brincadeira.
As plaquinhas são às vezes usadas para pedir dinheiro, normalmente oferecendo algum
motivo inusitado pelo qual a pessoa estaria precisando de ajuda. Ainda nos pedidos de ajuda,
há pessoas que usam a plaquinha para tentar encontrar algum amigo, já que é fácil se perder
de colegas em meio a tanta gente, e “as pessoas quase nunca vão sozinhas a um evento de
anime. [...] [G]rupos de três, quatro, dez (ou até mais) pessoas se encontram para andarem
juntas ao longo de todo o evento” (ISSA, 2015, p. 116).
Talvez o tipo mais popular de uso das plaquinhas seja o de convites ao contato físico
ou a algum tipo de intimidade. Abraços, beijos ou até atos sexuais bastante ousados, os quais
o portador da placa pode ou não estar disposto a realizar de fato, são oferecidos por alguns
centavos ou sem pedir nada em troca. A mensagem mais recorrente desta categoria é a que
109

pede “free hugs” ou sua tradução, “abraço grátis”. A prática de oferecer abraços a estranhos
sem pedir nada em troca se espalhou pelo mundo a partir do vídeo viral em que o australiano
de pseudônimo Juan Mann anda com uma placa em que se lê “FREE HUGS”. “Mann apenas
esperava que um transeunte qualquer, ao ler a mensagem no cartaz, se sensibilizasse e
também se propusesse à troca de abraços, sem necessidade de perguntar o motivo da
proposta” (MARTINS; GUSHIKEN, 2012, p. 183). O movimento mais tarde virou uma
campanha, incluindo flash mobs em várias cidades do mundo. Mas os abraços grátis já
transcenderam qualquer relação com a campanha e tornaram-se tradição nos eventos de animê,
a tal ponto que atualmente é quase impossível passar o dia inteiro em uma dessas convenções
e não se deparar com pelo menos uma plaquinha oferecendo abraços.
Alguns frequentadores de eventos se aproveitam dessas fórmulas para pregar peças
naqueles que aceitam a oferta de sua plaquinha. Uma pegadinha comum é uma menina andar
com uma placa de “beijo grátis”. Quando abordada por algum rapaz, ela vira a placa, cuja
outra face revela que ela só beija outras meninas ou que os beijos grátis na verdade dizem
respeito ao amigo que está andando ao lado dela.

Figura 49 – Plaquinhas de convite

Abraço ou beijo grátis (esquerda) e pegadinha (direita).


Fonte: COSPLAYRS, 2015.

Outro fenômeno relativo às plaquinhas ocorre em certos eventos, especialmente os ao


ar livre, cujas divisórias dos estandes são feitos de material que também aceita escrita com
caneta porosa sem ser danificado, pois pode ser facilmente limpo. Nessas ocasiões, as pessoas
aproveitam para desenhar, deixar recados, números de telefone e acrescentar ou atrapalhar as
mensagens uns dos outros. Assim, mesmo não sendo individuais ou móveis, esses painéis
acabam funcionando como gigantescas “plaquinhas” colaborativas, pois muito da lógica e das
fórmulas usadas nas placas portáteis também podem ser encontradas em tais divisórias.
110

Figura 50 – “Plaquinha” colaborativa

Divisória com escritas e desenhos de vários autores


Fonte: COSPLAYRS, 2015.

As mensagens das plaquinhas, independentemente do tipo de interação que propõem,


costumam se basear em um repertório de signos compartilhados pela maioria dos presentes.
Os autores das mensagens tomam referências das mais variadas origens, aludindo aos animês,
mangás, videogames, seriados, livros e filmes que se misturam a fatos cotidianos e até à
política para compor o imaginário multicultural dessa tribo.
O uso de recursos escritos e imagéticos provenientes da comunicação online chama a
atenção, especialmente a recorrência de emoticons e memes de internet. Mesmo podendo
desenhar livremente nas placas e de fato demonstrarem expressões faciais em tempo real com
próprio rosto, os jovens parecem encontrar grande potência nas carinhas formadas por
caracteres que traduzem emoções facilmente compreensíveis por quem domina seus códigos.
Essas fórmulas visuais condensadas são especialmente úteis porque qualquer um consegue
reproduzi-los, uma vez que não requerem habilidades artísticas especiais, diferentemente de
alguns dos desenhos mais elaborados que se encontram nas plaquinhas.
Os donos de plaquinhas fazem uso dos emoticons ocidentais e dos japoneses, os
kaomoji (literalmente, “rosto de letras”). À diferença daqueles, cujos rostos devem ser lidos
de lado e que recebem mais ênfase na boca, estes são lidos verticalmente e dão destaque para
os olhos (BRYCE, 2004), assim como os mangás e animês. Essa relação não é meramente
acidental, já que

Os criadores dos kaomoji recorrem à linguagem visual dos mangás, que retratam
estados emocionais internos, na elaboração de rostos a partir de botões do teclado. A
forte influência do mangá no desenvolvimento dos kaomoji fica mais aparente em
111

exemplos mais elaborados que combinam texto e grafemas para produzir, com efeito,
células de expressão online no estilo mangá24 (KATSUNO; YANO, 2002, p. 14).

Seja na forma de escrita, desenhos ou emoticons, as plaquinhas auxiliam em um dos


grandes propósitos dos eventos de animês, que é o de servir como momentos de efervescência
nos quais os membros de várias tribos partilham dos mesmos gostos e da companhia uns dos
outros. As pequenas lousas portáteis fazem parte dos rituais da festa, seguindo uma lógica
interna que pode não ser imediatamente aparente para os não iniciados. A tônica dos eventos
se dá na presença física e na comunicação oral, às quais a comunicação escrita serve para
facilitar e ampliar. As mensagens carregadas às vistas de todos possibilitam e potencializam
interações que talvez não chegassem a acontecer de outra forma. Assim, as plaquinhas ajudam
a vencer a timidez tão comumente relatada por otakus e nerds, que acabam se aproximando
dos modos que se comunicam online, com o qual parecem se sentir mais à vontade.

Figura 51 – Kaomojis

Fonte: COSPLAYRS, 2015.

Para além das brincadeiras e da pura autoexpressão, a maioria das placas carregam
recados cujo propósito é servir de quebra-gelo para o contato face a face. O meio escrito
aumenta exponencialmente o número de destinatários da proposta do dono da placa, o que
resulta em mais pessoas aceitando seu convite, tudo sem que ele tenha precisado abordar
ninguém ou vocalizar uma única sílaba. Devido às inúmeras possibilidades que criam, as
plaquinhas são instrumentos que auxiliam no gozo da corporeidade facilitada pela ambiência
dos eventos. Talvez se usadas em outros contextos ou isoladamente, as placas de fórmica
causassem estranhamento e rejeição, mas nessas ocasiões, esses simples aparatos de escrita

24
Tradução nossa, do inglês: “Creators of kaomoji draw upon the manga visual language depicting internal
emotional states in fashioning faces from keyboard strokes. The strong influence of manga upon the
development of kaomoji can best be seen in more elaborate examples that combine text and graphemes to
produce, in effect, on-line manga-like cells of expression.”
112

transformam-se em um sistema comunicacional do qual todos os presentes acabam fazendo


parte. Para os frequentadores dos eventos de animê, as plaquinhas servem para promover
brincadeiras, comentários fortuitos, longas conversas, podendo originar amizades, namoros ou
simples abraços descompromissados entre estranhos que não chegam a precisar trocar uma
única palavra.
Todas as atividades abertas à participação dos frequentadores materializam, no corpo
desses sujeitos, o desejo de fazer contato com pessoas e estéticas outras, que por vezes
remetem a modos de ser distantes dessas pessoas, tanto no espaço como no tempo. Os
frequentadores dos eventos de animê atualizam e ressignificam conteúdos midiáticos e
imaginários culturais. Tais imagens carregam para esses fãs da cultura pop, grande potência
estético-comunicativa, interessando-os pela própria ambiguidade de serem “outros” deles
mesmos e de terem com eles características em comum, que permite a criação de vínculos
afetivos com essas imagens. Tornam-se para eles vetores de comunhão e signos de
diferenciação individual/tribal em relação ao todo social.
Sejam os personagens midiáticos dos cosplays, as vozes das anime songs, os clipes
sul-coreanos dos covers de k-pop, os avatares dos games de dança ou o imaginário dos antigos
cavaleiros europeus do combate medieval, os frequentadores dos eventos corporificam e
materializam imaginários e textos midiáticos. Incorporam algo dessas imagens outras a si
mesmos, devido às experiências transformadoras da performance e da festa, que funcionam
como lócus de negociação de identidades e de comunidade.
Por meio do movimento de corpos encarnados e semantizados, os fãs da cultura pop
produzem sentidos e criam, nas espacialidades efêmeras dos eventos de animê,
microterritórios relacionais que lugarizam os espaços e estetizam o cotidiano, por meio de sua
presença sensível, sua aparência, seus imaginários e modos de ser. Em sua relação de
integralidade com os outros e com os espaços, vivem interações e produzem performances,
comportamentos restaurados porém únicos em seu contexto e execução, que reúnem aspectos
da encenação, da brincadeira e do jogo.

3.4 Otakus, geeks, fãs

Os eventos de animê são “um mundo à parte” enquanto duram, como territorializações
temporárias heterotópicas, festividades que têm o poder de por em primeiro plano aquilo “que
113

já está lá”. Mas sua importância e o que eles representam para as pessoas que têm com eles
uma conexão afetiva vai além daquilo que é visível durante os encontros. Pensar a estética
como ética e o lugar como ligação podem ser o suficiente para enxergar o elã que une cada
tribo e as tribos entre si, todavia as rivalidades e insatisfações muitas vezes são silenciosas ou
murmuradas apenas para os mais chegados, raramente se traduzindo em conflito aberto no
decorrer das festividades.

Por isso que você tem que misturar essas culturas e a partir daí que surgiu o evento
de cultura pop [...] que é quando tudo tem sua vez, tudo tem seu momento, tudo tem
sua parte. Todos esses nichos, é o momento que todo mundo se dá bem ali, que se
interage. Às vezes nem se dá tão bem assim, né (comentário em blog).

Apesar de não explicitadas, as disputas e divergências entre os microgrupos subjazem


a própria convivência nos eventos e são uma força motora de sua mudança. Esses conflitos de
opinião encerram disputas por espaço, as quais muitas vezes se dão nos bastidores, na forma
de pedidos e reclamações recebidos pela organização dos eventos. Nesse sentido, é preciso
buscar os posicionamentos das tribos quando não estão diretamente convivendo, ou quando
estão falando desse convívio.
Do mesmo modo que no capítulo 2 foi necessário examinar separadamente as
mudanças de cada atração para depois passar aos eventos como conjunto, agora nos afastamos
da corporeidade que se presentifica na performance dos frequentadores para poder ver a
imagem residual do caleidoscópio de tribos. Do mesmo modo que um mosaico seria um
conjunto de cacos não fosse a argamassa que os ata a uma superfície, o conjunto do evento é
feito das heterogeneidades que são pequenas ou grandes, dependendo de onde e quando se
olha, entendendo que “é a tensão dos diversos grupos uns sobre os outros, o que assegura a
perenidade de conjunto” (MAFFESOLI, 1987, p. 171).
Assim, buscamos entender opiniões conflitantes a partir da perspectiva da
coincidência de opostos, os pequenos paradoxos que revelam a complexidade do viver social,
dando voz às opiniões mais recorrentes quanto ao atual estado dos eventos de animê.
Exploramos também algumas das motivações das pessoas para frequentar os eventos, pois se
os eventos mudaram e o público mudou, faz sentido que essas motivações tenham, no mínimo,
se diversificado.
As transformações das convenções são reflexo das preferências do público, o qual
também reflete as mudanças das convenções e do panorama do consumo midiático da cultura
pop. Nesse sentido, o evento precisou se adaptar e se adequar às novas tendências para manter
o público cativo, ao mesmo tempo em que novos visitantes foram sendo conquistados e
114

trazendo outras tendências para os eventos. Como observa Igor Lucena, um dos diretores do
SANA, que começou em 2001 em Fortaleza como evento de animê e atualmente é um dos
maiores eventos multitemáticos de cultura pop do Brasil:
O público se renova e as atrações se renovam tanto para o público mais velho quanto
mais novo. Meus amigos solteiros que vinham ao evento, hoje estão casados e levam
seus filhos, sua família, e com isso surge um novo público que nunca vai ver que o
SANA era um evento só de anime. Hoje o evento para eles vai ser uma coisa, o próximo
que vier já vai ser outra muito maior, mais diversificada — mas também não dá pra você
negar que tenham os carros chefes, como games, animes ou quadrinhos (LUCENA, 2015,
online).

À medida que os eventos foram se abrindo para novas atrações, que agradavam a
diferentes tribos urbanas, a ambiência criada passou a ser convidativa para um leque mais
amplo de possibilidades de autoexpressão. No começo não havia nenhuma regra formal que
impedisse certos tipos de cosplay ou vestimentas mas, nos primeiros eventos, apenas se viam
cosplays de animês, mangás, tokusatsu e videogames japoneses, já que era esse o tipo de
participação que eventos estritamente de cultura pop japonesa implicitamente estimulava.

André Fava: Lembro até hoje em 2004, foi lá o cara de cosplay numa armadura de
Unreal, fenomenal, o cara fez tudo em papelão, o negócio parecia todo de ferro,
brilhava, explodia. “Ah, você não vai participar porque isso não é japonês, não é
desenho japonês”. Em nenhum lugar da regra falava isso (dito no podcast
ALMEIDA et al., 2014).

Vê-se hoje o público usando roupas, acessórios e cosplay que fazem referência às mais
variadas franquias da cultura pop. Assim, uma pessoa que fosse a eventos há dez anos e
gostasse tanto de animê quanto de seriados norte-americanos talvez optasse por um cosplay
relativo a uma série japonesa. Mas, atualmente, vestir-se de personagens ocidentais nos
eventos é uma alternativa perfeitamente aceitável. Pode-se dizer que o frequentador dos
eventos de animê, então, é “um indivíduo estético ou, mais exatamente, transestético por não
depender mais do estesismo à moda antiga, compartimentado e hierarquizado.”
(LIPOVETSKY; SERROY, p. 30).

era mais anime/tokusatsu e alguma coisa de jogo. dificilmente fugia disso


agora tem cosplay de filme, série e por aí vai (entrevistado, ex-frequentador, 30
anos).

A integração de pessoas com gostos distintos agradou uma parte dos frequentadores,
os quais acreditam que otakus, nerds, geeks, gamers e outros tipos de fãs são parecidos e o
115

convívio com mais tribos diversas enriquece o encontro e abre novas possibilidades de
confraternização.

O nerd joga video games e assiste animes, o otaku joga video games e curte hq, ai eu
te pergunto qual a diferença? [...] Se o público quase que totalmente curte um pouco
de cada coisa, é muito melhor ter um pouco de cada coisa, a diversidade é que torna
as coisas interessantes [...] não existe ninguém completamente fan só de animes e
outros completamente fans só de jogos! Eu mesmo [...] sempre gostei das duas
coisas e ir a eventos e mesclam ambos sempre foi algo muito conveniente para mim
assim posso ver e comprar artigos otakus, gamers e tirar fotos com meus youtubes
favoritos (comentário em vídeo no Youtube).

Eu acho bom misturar um pouco as culturas. É até melhor a galera otaku, gamer e
geeks em geral juntar todo mundo em um lugar interagindo, não me importo se
gamers e otakus estão no mesmo lugar, é melhor estarmos junto fazendo amizades,
brincando e etc.. do que estar se separando e criando treta por causa disso
(comentário em vídeo no Youtube).

É muito bom conviver com pessoas de outras “tribos” obviamente dês de que sejam
coisas legais. Quadrinhos e mangás tem tudo a ver com o outro. Do mesmo modo
que tem a ver com series e filmes e mesmo musica (comentário no Facebook).

Mas para alguns frequentadores antigos, existe um limite de quais as atrações que
poderiam ou não fazer parte de um evento de animê, já que é comum as tribos urbanas
estabelecerem algum tipo de policiamento de fronteiras para que possa manter coeso seu
senso de identificação. Assim, mesmo os que acharam a integração positiva costumam
acreditar que há certas tribos que “combinam” com esse tipo de eventos e há outras que
fugiriam da proposta.

Eu não acho que seja ruim a união entre anime e games em um só evento, até porque
existem muitas pessoas que curtem games e animes ao mesmo tempo. [...] Enfim, o
grande problema não é a fusão entre otaku + gamer e sim otaku + youtubers fans que
tem um gosto totalmente diferenciado e, geralmente, incompatível com a cultura
otaku (comentário em vídeo no Youtube).

Youtubers de Animes e Gamers no eventos não tem problema, o problema é levar


gente nada ver com a cultura, isso leva público diversificado, uma das essências dos
eventos, era o público ser Otaku (comentário em vídeo no Youtube).

Outros ressaltam que a onda atual de reclamações, especialmente em relação à


integração dos youtubers, seria mais uma da longa lista de “elementos estranhos” à
japonesidade do evento que foram sendo integrados ao longo do tempo. O estranhamento em
relação à maioria das tribos agregadas foi cessando, seja porque a moda passou, como é o
caso dos emos, ou porque a atividade já se tornou parte importante dos eventos, como é o caso
do k-pop.
116

Januncio Neto: O que que esse público quer? (...) eu vi comentários do tipo (...) “ah,
pra mim evento acabou no momento em que permitiu que entrasse cosplay de super-
herói americano”, “ah, pra mim evento de anime acabou quando permitiram que
entrasse videogame”, “ah, pra mim evento acabou quando permitiu que entrasse o k-
pop” (dito no podcast SANTOS et al., 2016b).

Cara, vou te dizer que eu frequento evento de anime desde 2006, e desde que eu
frequento, tem ALGUMA COISA DO DEMÔNIO que sempre “estragava os
eventos”. Primeiro eram os emos, depois era o kpop, e agora são os youtubers. E
assim, as gerações dos eventos se renovava. Eu, por outro lado, tava sempre lá. E se
quer saber, eu ainda gosto deles, ainda vejo meus amigos de 10 anos atrás, ainda
tomo Mupy e me divirto muito (comentário no Facebook).

Outras são categóricos em afirmar que um evento que inclui youtubers, fãs de Harry
Potter e de k-pop foi totalmente descaracterizado em relação à sua japonesidade, já que a
ocidentalização crescente significaria a perda da essência daquilo que os eventos de animê
deveriam ser.

Desculpa [...], mas em um evento que se diz "de anime" acho absurdo virem com
salas kpop, Harry Potter, Crepúsculo, Medieval, entre outros. Sintome extremamente
ofendido pelo descompromisso para com a própria declaração. Não tenho nada
contra quem aprecia isso (quer dizer, desde não seja lunático nem ignorante), mas
cada um em seu espaço. Toda vez que vejo isso, eu me sinto como ao entrar em uma
loja de informática e encontrar uma geladeira (comentário em blog).

Os eventos atuais a cada dia que passam, deixam de ser eventos de cultura pop
japonesa e ficam socando atrações que não tem nada a ver com a cultura japonesa.
Eles perderam totalmente a sua essência e estão se "ocidentalizando" completamente
com o objetivo de agradar públicos completamente diferentes, as atrações dedicadas
a fãs de anime, mangá, tokusatsu, Jmusic e afins aos poucos estão desaparecendo
(SHIMAKAZE, 2016).

A perda de território físico e simbólico da cultura pop japonesa nos eventos fez com
que a antiga “tribo dominante” dos otakus se tornasse apenas uma dentre muitas, não mais
determinando sozinha a ambiência dos encontros. Se, por um lado, gostar de desenhos
japoneses se tornou um hobby mais aceito e mais fácil de usufruir, essa incorporação do pop
japonês ao gosto mainstream fez com que a exclusividade temática japonesa perdesse a razão
de ser. Desse modo, os eventos de animê, que sempre foram um lugar onde os otakus
puderam “ser eles mesmos”, passaram a ser frequentados por pessoas que não
necessariamente compartilhavam de seus modos de ser e de se expressar. O encontro com a
alteridade, com pessoas que vivenciam de modos diferentes suas paixões por objetos outros
da cultura pop, pode levar a estranhamentos e a perda do sentimento de pertença
incondicional propiciado pela identificação com uma tribo.

Evento de anime deveria ser (...) um lugar onde por mais estranho que eu pareça ou
me comporte sou igual a todo mundo, isso dá uma segurança sabe ? Quando começo
a sentir que algumas das minhas ações não são bem vindas, como ficar gritando
117

genki dama, não vou me sentir totalmente livre das amarras sociais cotidianas. Mas,
no entando, se a maioria dos frequentadores não for do meu estilo então eu me retiro
de fininho com meu banquinho (comentário em blog).

A questão é que a sociedade já exerce a repressão no dia‑ a‑ dia, em casa, no


trrabalho, na rua e tals e se os eventos de animes não existissem eu nunca saberia o
que é fazer algo que me desse na cabeça sem sofrer repressão e então dizem “não
ligue p/ o que os outros dizem”, mas todos sabemos que isso não é fácil como parece
e agora até em eventos de anime sou obrigado a ouvir “que idiota aquele cosplay ou
aquilo que ele está fazendo” (comentário em blog).

Alguns frequentadores, e mesmo organizadores, consideram que os eventos os eventos


estariam mortos, na medida em que os frequentadores de hoje em dia só se interessariam por
atrações que fogem não só da temática otaku, como também da temática nerd de maneira mais
ampla.

Eu ouvi de um amigo que trabalha nesse ramo, né, que é dono de um grande evento.
“(...) os eventos de anime no Brasil estão mortos”, e eu fiquei com isso na cabeça, eu
falei “Poxa, mas os eventos de anime estão mortos?”, Sim, os eventos de anime
estão mortos porque hoje o pessoal, a grande maioria das vezes só vai num evento
pra poder ver os benditos dos youtubers (SILVEIRA, 2016, online).

O conceito de "evento de anime" na minha opinião já morreu. A fórmula pode até


parecer a mesma realmente, mas o conteúdo é completamente diferente (comentário
em blog).

Desse modo, não haveria mais por que chamar os eventos atuais de eventos de animê,
o que já era uma preocupação em 2011, como visto nos comentários de um post do blog Mais
de Oito Mil.

Os eventos estão apelando pra tudo: Chaves, Harry Potter, Star Wars, Medieval
etc… Então pra que a alcunha Anime? Um evento de tal permissividade não merece
ter anime no nome! [...] Eventos assim tirem o nome Anime e assumam outro
(comentário em blog).

A palavra ANIME no nome desse eventos ta perdendo o sentido. Nao que eu ache
que estao cometendo uma heresia ao misturar anime com outras coisas.
Eh soh uma questao de mudar o maldito nome. [...] poderia tirar esse `Anim` do
nome… Nao sei o q iria no lugar, infelizmente (comentário em blog).

Atualmente, com a ascensão dos youtubers e a maior visibilidade de temáticas nerds


faz com que algumas pessoas já tenham ideias de que os eventos atuais seriam de cultura pop,
de cultura nerd ou, simplesmente, de youtubers.

O que temos hoje são eventos sobre a cultura pop jovem, não só a oriental, mas que
ao menos estão interligados (a maioria), como kpop, games, etc (comentário em
blog).

Youtubers não deixam de ser cultura nerd, mas nessa questão de que os eventos de
anime estão se ocidentalizando eu concordo totalmente. Nem deveria ser mais
“evento de anime”, e sim evento de cultura nerd... [...] Cultura nerd pra mim é tudo
118

o que o público nerd gosta: Anime, comics, videogame, etc (comentário no


Facebook).

com a mudança brusca de foco nesses eventos de "anime" onde a parte de anime
acaba se tornando minuscula fora das quinquilhiarias piratas não haveria tanta gente
descontente. Anime Friends por exemplo ta na hora de trocar o nome para
Youtubers/Memes Friends (comentário em blog).

Mesmo pessoas que estão insatisfeitas com o estado atual dos eventos admitem que
eles já não têm como se sustentar sendo só “de animê”. Colocar youtubers como atração
principal é extremamente rentável para os organizadores, justamente porque as estrelas da
internet são muito requisitadas pelos atuais frequentadores. Mesmo que os youtubers não
fossem chamados, já não há mais como realizar eventos “puramente” de animê, até porque já
não o são praticamente desde que deixaram de ser meras exibições de animê.

O mundo mudou o público mudou e as relações comerciais mudaram, se por um


lado reclamam que a organização enche os bolsos sem retorno algum aos visitantes,
por outro os visitantes pagam e os eventos lotam, se por um lado os eventos ficaram
multitemáticos, por outro lado eventos de um único nicho não dão o lucro que deram
anteriormente (comentário em blog).

Essa geração idolatra esses youtubers, e consigo entender o porque da organização


querer eles por perto, uma vez que isso alavanca a venda de ingressos. Infelizmente,
é algo que dificilmente tem volta. Ou se adaptamos, ou abandonamo (comentário em
blog).

Januncio Neto: Vão se criando vários nichos, e os eventos a partir de agora (...)
convergem pra tentar agregar pra todos esses nichos. Porque hoje em dia, eu
confesso, ficaria muito difícil você fazer um evento de cultura pop exclusivamente
japonesa como muitos querem, ou muitos têm saudade, e ainda assim ter uma
demanda de público comercialmente viável (dito no podcast SANTOS, 2016b).

Com essas grandes transformações nos eventos e o êxodo de muitos dos


frequentadores antigos, as motivações dos fãs para ir a essas convenções foram ficando mais
variadas. Há pessoas que vão para participar de alguma atividade específica, seja aquelas que
já existiam, como cosplay e videogames, como outras que surgiram mais recentemente, que é
o caso dos covers de k-pop e das apresentações de youtubers.

Eu gosto muito das palestras, ainda mais quando quem vai dar a palestra, eu sou fã.
Tipo hoje, o [youtuber] T3ddy vai tá lá em cima e eu sou fã dele. Então eu tô
esperando a hora pra eu ir lá (entrevistada em evento).

Kushina: Eu fui pela música coreana. Desde o começo, o que eu busquei no AF


[Anime Friends] foi a banda sino-coreana que tinha vindo. Então eu fui nos dias que
tinha k-pop, só ficava perto do palco quando era coisa de k-pop. Então, basicamente,
eu não estava ligando para as coisas otaku que estavam acontecendo por lá (dito no
podcast KUSHINA et al., 2016).
119

Assim, se os eventos passaram a desagradar alguns, muitos outros otakus, nerds,


gamers, cosplayers continuam vendo nessas convenções um lugar seguro para festejar. Os
eventos oferecem a possibilidade de conhecer e estar em meio a uma multiplicidade de tribos
que encontram na cultura pop um solo em comum para enraizar seus afetos. O coeficiente de
pertença não é absoluto, cada um pode participar de uma infinidade de grupos, investindo em
cada um deles uma parte importante de si. Perder-se no outro, dissolver-se no todo do grupo
continua sendo um grande atrativo dessas festas, que muitas vezes servem de ponto de
encontro para ver amigos da internet com quem é difícil de marcar no dia a dia.

Eu vou nos eventos só porque que é lá que todos meus amigos vão se encontrar com
certeza! Sei que dá pra se encontrar em outros lugares e tal, mas um evento e anime
é um evento de anime; Tem coisas como os convidados especiais, karaokê,
cosplayers e a possibilidade de fazer mais amigos (comentário em blog).

Na minha opinião o mais legal é curtir o que você gosta com as pessoas que você
gosta, junto com varias outras pessoas com gosto parecido com o seu, o principal
sentimento que esses eventos passam é de pertencer a um grupo, de ser você mesmo
sem ser jugado (comentário em blog).

Assim, o que se busca nos eventos é uma sucessão de momentos de intensidade, que
pode ser atingida pela dissolução na tribo, a qual se congrega sob o “pretexto” nada
negligenciável de estar na proximidade física de seu objeto de adoração, seja qual for a
manifestação física que esse objeto possa tomar. Se em casa é possível ver, seja animês ou
filmes de super-herói, no evento é possível vive-los. Experienciar o êxtase de “ser” nos
mundos da fantasia com os quais se sonha, experimentar de tudo um pouco daquilo que a
cultura pop engendra como imaginários.

[O visitante do evento] não quer só ver, ele quer participar, ele quer ter uma
experiência, ele quer ter uma noção. Então, o que muda bastante é a interação. O
público demanda atrações que interajam com ele. Então a gente tem trono oficial do
Game of Thrones, nós vamos fazer agora a arena do Pokémon Go no formato do
ginásio real. [...] A pessoa tem que tá imersa nesse cenário. [...] A transposição de
mídia hoje do anime que vai pro mangá, que vai pro game, que vai pro cinema, isso
é importantíssimo, ele tem que tá cercado de todas essas atividades dos personagens
dele favoritos (LUCENA, 2016).

Nas pesquisas sobre eventos de animê no Brasil, os frequentadores costumam ser


categorizados como otakus, ainda que não se identifiquem especificamente como tal, já que se
parte do pressuposto de que quem frequenta festas conhecidas como “eventos de animê” deve
gostar de animê. No entanto, as mudanças nesses eventos e no público revelam que
atualmente não há sentido em tratar conceitualmente os frequentadores dos eventos de animê
como otakus ou mesmo afirmar que todos lá presentes são admiradores da cultura pop
120

japonesa. Essa abordagem era adequada para falar dos eventos até o final da década passada,
mas o que vemos hoje é uma constelação de diferentes tribos urbanas que têm em comum o
fato de serem fãs de um ou mais aspectos da cultura pop.
Um fã é alguém que tem um envolvimento emocional e intelectual com algum gênero
ou texto midiático, sendo assim um leitor “excessivo”, que diferiria do leitor “normal” no
grau de importância que certo texto adquire em sua vida (FISKE, 1992). A origem da palavra
remonta ao latim “fanaticus”, que significava originalmente servo ou devoto de um templo,
mais tarde vindo a incorporar a conotação de alguém em estado de frenesi causado por um
rito orgiástico (JENKINS, 1992). A excessividade e a associação tanto à devoção da
religiosidade quanto à libido generalizada da orgia são comumente malvistas, de modo que
não raro se procura afastar os fãs desses significados. No entanto, “o que é esta orgia senão o
aspecto fundador de uma paixão comum, de emoções tornadas comuns, de sentimentos que
saem para a praça pública” (MAFFESOLI, 2004, p. 80)?
Os eventos de cultura pop são ocasiões para que os fãs exercitem suas paixões
partilhadas e comunguem da imanência que é elevada à transcendência por meio da
intensidade de um momento vivido na ambiência de diversos imaginários pop, num
verdadeiro politeísmo de valores. Assim, ainda que não consideremos qualquer público como
fã, os frequentadores de eventos de animê satisfazem os dois eixos mais proeminentes do
engajamento de fã: o investimento emocional pessoal e envolvimento com a comunidade de
fãs (BUSSE, 2006).
O coletivo de fãs é conhecido como fandom, junção de “fan” e “dom”, ou seja,
território ou domínio dos fãs, para os quais a cultura pop é como um portfólio de investimento
emocional, matéria-prima a partir da qual constroem mapas de significatividade
(GROSSBERG, 1992). Mapas esses que são a um tempo individuais e coletivos,
constantemente sendo redesenhados para comportar os novos territórios relacionais dos fãs, os
quais não tanto dominam como se deixam dominar pelos espaços afetivos que habitam. O
enraizamento dinâmico de um indivíduo apenas tem como se fincar provisoriamente no
húmus efêmero do espírito do tempo.
Desse modo, parece adequado observar os frequentadores de eventos pelo viés do
entrecruzamento dos diversos fandoms dos quais fazem parte, contemplando assim os
variados aspectos da cultura pop que se deixam perceber nos eventos e na caracterização de
seus frequentadores para além da cultura pop japonesa. Para encarar espaços quentes e
abarrotados, filas que dão a volta no quarteirão e percursos que por vezes são verdadeiras
peregrinações interestaduais, é preciso um nível de engajamento que coloca essas pessoas no
121

terreno do fã. Não importa se de animê, tokusatsu, k-pop ou algum youtuber, todos lá são fãs
de um ou, mais frequentemente, muitos objetos. Os eventos de animê atuais e seus
frequentadores precisam ser compreendidos sob o prisma das práticas interculturais de fãs,
mas sem fixá-los em diferentes grupos ou objetos de adoração, uma vez que é preciso
“considerar como as pessoas podem ser fãs de múltiplos textos ao mesmo tempo, bem como o
modo como as pessoas se movem através de e entre diferentes fandoms ao longo do tempo25”
(HILLS, 2014, p. 9).

25
Tradução nossa, do inglês: “consider how people can be fans of multiple texts at the same time, as well as how
people might move through and between different fandoms over time”
122

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Shinji: Tendo os outros, eu me verei como um indivíduo. Se estiver


sozinho, não. Pois se só eu existir, não haverá diferença entre eu e o
nada.
Ritsuko: Reconhecendo as diferenças entre você e os outros,
estabelece a própria identidade.
Neon Genesis Evangelion

Os mangás e animês, que são para o Ocidente as mídias de cultura pop mais
emblemáticas do Japão, têm como pano de fundo valores tradicionais da cultura japonesa,
como honra, amizade, sacrifício e valorização do grupo acima do indivíduo. Ao mesmo tempo
em sua própria conformação como mídias incorporaram influências estrangeiras,
especialmente dos Estados Unidos, já que surgem no contexto da globalização e da cultura de
massa do século XX. Dessa forma, já nascem hibridizados.
O consumo dos mangás e animês no Ocidente como formador de uma identidade
específica chega aqui filtrado pelo conceito de otaku, que no Japão se referia a um estereótipo
de jovens que preferiam se isolar em casa a assumir seu papel na sociedade como adultos,
rodeando-se de tecnologias e de produtos da cultura midiática, especialmente quadrinhos e
animações. Se no Japão otaku era uma designação extremamente pejorativa normalmente
aplicada a terceiros, o termo passou a ser empregado no Ocidente para designar fãs da cultura
pop japonesa, na maior parte das vezes sendo empregado por essas próprias pessoas para
demarcar seu apreço por animês e mangás.
O conceito de otaku chegou ao Brasil na década de 1990, quando ocorreu o boom da
cultura pop japonesa a partir da exibição do animê Cavaleiros do Zodíaco na Rede Manchete.
Com o grande interesse pela cultura pop japonesa e devido à dificuldade de acesso à esse
material fora da TV aberta, os fãs de desenhos e seriados japoneses começaram a organizar
exibições de animês e encontros que dariam origem aos chamados eventos de animê.
Quando surgiram, os eventos de animê tinham como objetivo ser ocasiões em que as
pessoas podiam assistir animês, comprar fitas cassete com episódios e estar na companhia de
outros que compartilhavam dos mesmos interesses. Supriam assim as duas grandes
123

dificuldades dos otakus do fim da década de 1990, conseguir novos animês e conhecer outros
fãs da cultura pop japonesa.
Os primeiros eventos não eram muito mais que exibições de vídeos, às vezes até sem
legendas, e uma ou outra barraquinha vendendo fitas VHS e bonequinhos. Com o sucesso dos
eventos e o aumento exponencial do número de frequentadores, esses encontros foram
incorporando mais atrações e melhorando sua infraestrutura.
Estabeleceu-se, então, uma fórmula para esse tipo de eventos, que consistia em
exibições de animê, pelo menos um palco com atrações como concurso de cosplay e shows
musicais, área de estandes oferecendo produtos relacionados à cultura pop japonesa, além de
espaços dedicados a outras atividades, como videogames, RPG, combate medieval.
Na primeira década do século XXI foi ficando cada vez mais fácil para os otakus
terem acesso aos animês por meio da internet, livrando-os de ter que acompanhar apenas as
séries exibidas na televisão e mesmo da necessidade de ver animês nos eventos. Assim, as
exibições de animês, antes a atividade principal dos encontros e maior motivação para
frequentá-los foi sendo relegada a espaços cada vez menores e menos importantes. Enquanto
os animês foram saindo da TV, tanto aberta quanto fechada, o mercado oficial de mangás vem
crescendo desde o ano 2000, com cada vez mais títulos disponíveis nas bancas brasileiras.
Mas, se no começo, valia a pena economizar dinheiro para comprar mangás com promoções
vantajosas nos eventos, os descontos foram diminuindo e fazendo ser mais interessante
comprá-los nas bancas e livrarias ou mesmo por meio dos sites das mesmas lojas que os
vendem nos eventos. Com a diminuição do espaço físico e simbólico ocupado pelos animês e
mangás nos eventos, esse tipo de convenção viu a necessidade de se reinventar
constantemente para manter-se atraente, oferecendo atrações que agradavam a diversos nichos
do mundo otaku. Assim, os eventos foram se tornando multitemáticos e incluindo atividades
cada vez mais distantes do “núcleo” da cultura pop japonesa.
Se no começo os eventos se autodefiniam como “eventos de cultura pop japonesa”,
com o tempo passaram a “eventos de cultura pop”. Com a ascensão dos youtubers a atrações
principais, por volta de 2014, cada vez mais eventos se assumiram como direcionados ao
público geek, denominação similar a nerd, porém menos pejorativa, que vinha ganhando força
desde meados da década de 2000 para designar fãs da cultura pop em geral. Alguns eventos
vêm acrescentando a palavra geek ao próprio nome, ainda mantendo “anime” numa tentativa
de se manter reconhecível para os frequentadores antigos e ao mesmo tempo atrair o público
geek. Têm também surgido eventos geeks que são em praticamente todos os aspectos
124

indistinguíveis dos eventos ainda ditos de “animê”, algumas vezes organizados pelas mesmas
produtoras que realizam os eventos de “animê”.
Enquanto as exibições de animês estão praticamente extintas dos eventos e os
dubladores muitas vezes são convidados como atrações secundárias, o palco principal agora é
o local onde acontecem as entrevistas com youtubers, concursos de cosplay, shows de bandas
covers e competições de grupos de k-pop.
Nos estandes e nas áreas temáticas, encontramos referências aos mais variados filmes,
livros e séries, que muitas vezes ultrapassam o número de produtos relacionados à cultura pop
japonesa. Os brinquedos e colecionáveis, antes quase limitados a miniaturas de personagens
de animês, mangás e games japoneses, hoje variam muito mais contando com produtos
licenciados referentes a diversos ícones da cultura pop mundial, com bonecos baseados em
séries como Breaking Bad dividindo espaço com a cobiçada edição especial dos bonecos dos
Cavaleiros do Zodíaco.
As mudanças nos eventos também se refletem no público, que antes era composto em
grande maioria por fãs de animês e mangás, com suas camisetas estampadas com seus
personagens favoritos, mochilas para carregar suas compras e touquinhas que simulavam
personagens da cultura pop nipônica. Hoje, esse perfil de frequentador ainda existe, mas
vemos também tribos mais heterogêneas, com pessoas de todas as idades circulando com
roupas e acessórios que refletem seus gostos mais variados. Como o pertencimento tribal é
cambiante e não exclusivo, uma mesma pessoa pode se sentir parte de alguns desses grupos,
mas não necessariamente de outros. Sejam nerds, otakus, gamers ou fãs de seriados, no evento
de animê todos têm vez.
Tanto para tendências mais duradouras, dentre as quais fazem parte as mudanças nas
palestras e a ascensão dos k-pop covers, como para as modas mais passageiras, os eventos de
animê funcionam como termômetro da cultura pop japonesa e da cultura pop mundial no
Brasil (CAVALCANTE, 2008). Seja a última temporada do animê Tokyo Ghoul, o mais
recente filme da Marvel ou o novo episódio de Star Wars que ainda nem saiu nos cinemas, o
que quer que esteja em alta no momento estará estampado em bótons, em camisetas, será
inspiração para muitos cosplays, palestras e áreas temáticas. Nas convenções atuais, Capitão
América e Batman, por exemplo, são tão populares quanto Goku, de Dragon Ball, e Kirito, de
Sword Art Online, e o mesmo pode ser dito de personagens e séries de videogames. O evento
de animê segue o ethos do fã, que sabe ser fiel a amores de longa data, mas tem também fortes
inclinações poliamorosas, vivendo intensas paixões cuja fagulha é uma ou outra novidade da
cultura pop, mas cujo combustível é a experiência social de partilhar angústias e prazeres.
125

Além de partilhar suas paixões com outros igualmente apaixonados, os frequentadores


vão aos eventos para estar mais próximos do objeto de sua paixão, o que permite viver um
momento de intensidade que supere o que se pode ter no dia a dia. O que se busca indo a um
evento de uma cultura pop que ela consome em casa é estar junto com outro mas também ter
uma experiência para além do cotidiano.
Em meio a essa circulação de afetos e conhecimentos, os eventos parecem funcionar
como uma “central” para onde convergem diversas tribos urbanas de interesses diferentes,
mas análogos. Lá se fica conhecendo não só novas séries para ler e assistir, novas bandas para
ouvir, como novos grupos para pertencer. Desse modo, é possível que a atração dessas
pessoas pelos eventos se renove; mesmo que seu interesse em determinado tema diminua, há
diversos outros assuntos e tribos com os quais se engajar.
A partir de sua predisposição de fãs ao ajuntamento tribal, os frequentadores dos
eventos tecem redes de relações em seus espaços da partilha de sentimentos e significados,
reconhecendo uns nos outros experiências comuns. Tais vivências compartilhadas somam-se
aos imaginários acionados por seu gosto pela cultura pop para revelar uma potência estético-
comunicativa (FERNANDES, 2009) que toma corpo nos eventos de cultura pop. É isso que
permite que inúmeras pessoas com gostos tão variados se congreguem em uma mesma festa,
já que “a ética da estética faz do sentir algo junto com outros um fator de socialização”
(MAFFESOLI, 2005, p. 23). Essas pessoas podem fazer parte de uma ou mais tribos urbanas
que mantêm-se em certa medida passíveis de se distinguir e, por outro lado, dissolvem-se num
todo maior, de ethos e modos de ser (ou apenas estar) partilhados, numa unicidade que não se
reduz à unidade.
126

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