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Ozymandias

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Ozymandias
Por Brian Belancieri

“Man is something that should be overcome.”


― Friedrich Nietzsche, Thus Spoke Zarathustra

Arte de Eirian-Stock
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O poema

Ozymandias

I met a traveller from an antique land


Who said: — Two vast and trunkless legs of stone
Stand in the desert. Near them on the sand,
Half sunk, a shatter’d visage lies, whose frown
And wrinkled lip and sneer of cold command
Tell that its sculptor well those passions read
Which yet survive, stamp’d on these lifeless things,
The hand that mock’d them and the heart that fed.
And on the pedestal these words appear:
“My name is Ozymandias, king of kings:
Look on my works, ye mighty, and despair!”
Nothing beside remains: round the decay
Of that colossal wreck, boundless and bare,
The lone and level sands stretch far away.

— Percy Bysshe Shelley


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A tradução

Ozymandias

Encontrei um viajante vindo de uma antiga terra


Que me disse: — Duas imensas e destroncadas pernas de pedra
Erguem-se no deserto. Perto delas, sobre a areia
Meio enterrado, jaz um rosto despedaçado, cuja carranca
Com lábio enrugado e sorriso de frio comando
Dizem que seu escultor soube ler bem suas paixões
Que ainda sobrevivem, estampadas nessas coisas inertes,
A mão que os escarneceu e o coração que os alimentou
E no pedestal aparecem estas palavras:
“Meu nome é Ozymandias, rei dos reis:
Contemplai as minhas obras, ó poderosos e desesperai-vos!”
Nada mais resta: em redor a decadência
Daquele destroço colossal, sem limite e vazio
As areias solitárias e planas se espalham para longe.

— Tradução colaborativa da Wikisource


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Os temas

Ozymandias, soneto publicado em 1818, traz temas como


transitoriedade e efemeridade da vida e do poder, e se utiliza de
uma estátua como metáfora das obras do faraó Ramses II
(Ozymandias é o nome grego), marcas de sua potestade, orgulho
e ambição. Em escala maior, sinaliza que todas as coisas, reinos,
regimes políticos, povos e culturas, eventualmente sucumbirão:
sem deixar traço da existência, exceto ruínas. Utiliza-se de
contraposições entre o discurso e a coisa efetivamente mostrada.
Notamos que toda grandiosidade anunciada encontra paralelo
com a própria decrepitude daquilo que se afirma: o grande Rei
dos Reis agora é um torso quebrado, e uma cabeça afundada, em
vias de tornarem-se, ao legado dos anos, apenas areia.

A noção derradeira do orgulho que precede a queda, da curva que


se eleva e depois se achata, é muito bem ilustrada pelos elementos
da cultura historicamente acumulados, feito o tempo que mina o
poder, a areia que dissolve a estátua, as culturas que se vão
dominando umas às outras, na marcha da história. Há ainda um
paralelo com todos os opositores simbólicos da história, sendo o
principal, Satã — cuja empreitada contra o Rei dos Reis é bem
conhecida na Bíblia.

Por fim, um dos traços da condição humana, a prepotência


infinita, que transparece no poema, partindo do elemento mais
concreto (a estátua), até a metanarrativa do leitor. Percebam que
essa prepotência surge precisamente da assunção que podemos
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— ou que é possível — adquirir o senso total e imutável do


significado das coisas: a estátua que se propõe ser eterna e
monumental para sempre, Ozymandias que declara-se Rei dos
Reis para sempre, o escultor que admite ter realmente lido bem
as paixões do faraó, e você e eu, leitor, que achamos que
conseguimos exaurir todos os significados da leitura e
contemplação do poema, feito como coisa efêmera, produto de
decrepitude, símbolo da queda, etc.

Modéstia de lado, sei que fui longe para destruir este poema. Mas
precisamente ao afirmar isso, percebo que o poema nos engana
outra vez: caídas todas as obras, os versos ainda permanecem, e
mais sólidos que muita pedra bem trabalhada.

Em todo caso, feito ao modo das bonecas russas, sempre


acharemos mais alguma coisa se descermos ao centro do poema.
E essa é a contradição maior: vasculhando e afirmando a
fugacidade, Ozymandias, transitando de efemeridade em
efemeridade, se torna perene.

Matéria bruta

Ozymandias é um soneto escrito em pentâmetro iâmbico, que


significa dizer cinco grupos de silabas no modelo ‘fraco-forte’.
Vocês sabem exatamente como ele soa, pois é o mesmo padrão de
batidas do coração: da-dum.
Por se tratar de um soneto, possui uma forma já estabelecida pelo
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tempo, de modo que bebe de duas tradições: o soneto


‘petraquino’, baseado nas obras de Petrarca, e no soneto Inglês,
ou Shakespeariano. Ozymandias mescla as duas formas em algo
bastante inovador para a época. É petraquiano pois é dividido em
uma oitava (os oito primeiros versos) e um sexteto (os seis
últimos versos). O esquema de rimas começa por um molde
shakespeariano: ABAB. Logo varia, adquire combinações
incomuns e se completa por ABABACDCEDEFEF.

O formato métrico não é todo regular em pentâmetros iâmbicos,


variando ao longo do poema, ao ponto de (não sem razão)
notarmos um verso de onze sílabas — ‘My name is Ozymandias,
king of kings:’ — Ozymandias lê-se o/zy/man/di/as, com acento
no /di/.

Talhando cada verso

‘I met a traveller from an antique land


Who said: — Two vast and trunkless legs of stone
Stand in the desert.’

Observamos, antes de mais nada, o direcionamento do olhar. A


escolha das palavras com a dicção prodigiosa cria uma cadência
ritmada e estável, ressaltada por fonemas consonantais oclusivos,
de ponta de língua (meT a Traveller, anTique), aliterados em T,
mas também em L. Junto disso, aquilo que constitui a essência
técnica da poesia: as melhores palavras na melhor ordem.
Conhecemos o viajante, entendemos o peso de um povo ancestral,
e ele nos diz: mas o que ele diz, diz mostrando. Trunkless nos
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dirige o olhar para aquilo que não está lá, e então descemos até as
pernas, por fim, olhamos ao redor, o deserto infinito para todos
os lados.

A sensação causada por essas escolhas fonéticas ajuda a situar-


nos, em imaginação, a cena. O som da areia, aliterando-se em /s/,
a dicção do /t/, trucada, remete ao que é pedra. Os fonemas em
/l/ e /f/ dão fluidez ao discurso do viajante, que nos seduz em
duas linhas e nos convida a chegar até o fim. Somos levados a ler
até o fim.

[…] Near them on the sand,


Half sunk, a shatter’d visage lies, whose frown
And wrinkled lip and sneer of cold command

O olhar vertical se torna horizontal, e o verso aliterativo e rítmico


dá lugar ao tipo de cadência da voz, onde importa menos o verso
cuja acentuação está feita, do que o verso cuja acentuação se faz.
Não é verso livre, nem liberado, é cadência pura da voz —
lembremos que para nós esse tipo de cadência é comum, já que o
português é uma língua cujas sílabas fortes, em encontro com
outras sílabas fortes, se suavizam, criando intensidades
diferenciadas que ultrapassam o simples ‘forte/fraco’. Aqui
vemos um pouco da genialidade de Shelley e sua dicção
prodigiosa. O jogo de contradições aparece quando percebemos o
olhar, o gesto e a face imperiosa, soterrados pela metade.
Tell that its sculptor well those passions read
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Which yet survive, stamp’d on these lifeless things,

Um personagem, o escultor, aparece. O mérito maior do artista, a


capacidade de ver coisas que são da própria coisa ignoradas, está
muito bem representada aqui. As impressões que temos de
Ozymandias foram cuidadosamente construídas por alguém que
soube entender as características que as expressões faciais
realmente significavam, e por isso mesmo, é a estátua que acaba
nos dizendo não sobre ela mesma, mas sobre a capacidade do
artista. É uma inversão sutil que se perderia em voz passiva:

Tell that its sculptor well those passions read

não teria o mesmo impacto se fosse:

Says these passions were well read by the sculptor

E, ademais, o verso seguinte contém sutilezas e detalhes que


podem passar despercebidas, se não formos atentos. Vou isolá-lo:

stamp’d on these lifeless things

Este verso em específico ressoa ‘stomp on these lifeless things’, e


se eu pudesse definir o que é o poder em sua forma mais básica,
eu diria que é a capacidade de pisotear quem se queira. Lifeless
Things é uma ótima forma de se referir aos pobres coitados que
foram governados pelo rei-deus. Mas esta é uma interpretação
mais distante. Sobre interpretações, eu tenho uma recomendação
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a fazer, que estará no final do artigo. Continuemos:

Há um deslocamento do pé rítmico entre survive e stamp’d, cuja


mudança do local do acento altera também a cadência do
discurso. É uma técnica shakespeariana conhecida, sobretudo
quando a fala do personagem ou o próprio personagem,
adquirem seriedade mortal. Podemos ver este mesmo uso no
discurso das bruxas em Macbeth.

Essas coisas sem vida são os fragmentos que se vão erodindo da


estátua, são a própria estátua, que ainda sim guarda a expressão
última, impressa pelo escultor. Seguimos:

The hand that mock’d them and the heart that fed.

Olhem bem:
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O nome dele é Ozymandias, o ousado. Um dia espero ver estátuas do Menino Neymar, e
seu sorriso de puro drible.

Aqui estão estampadas todas as coisas que, apesar da ideia de


efemeridade, sobreviveram. Há algo mais, sendo construído
desde o início do poema: o tipo de personificação empregado na
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estátua, o foco no escultor e os tipos de verbos e cesuras utilizadas


após a abertura do poema (desde o terceiro verso), intentam
quebrar a proximidade (geralmente empática) que temos com o
sentimento do poema. Se não fosse feito deste jeito, talvez nos
colocaríamos no lugar de Ozymandias, e acabaríamos apreciando
a figura histórica. Mas não é isso que deve acontecer: para que o
efeito da inevitabilidade do tempo se abata sobre a obra, é preciso
que ela seja revestida de arrogância. Voltem para a imagem acima
e confirmem.

Um último detalhe está na justaposição da imagem do escultor


(The hand that mock’d them), e na colocação do verbo ‘to mock’,
que é ao mesmo tempo zombar e imitar. A mão do escultor imita
na mão do faraó aquilo que o próprio zombou, zombando dele no
processo. E a zombaria final é saber que nada disso durará, pois
o artista, enquanto profeta da condição humana, sabe o que será
o futuro, pois sabe o que é o passado. Sabe que as coisas se
repetem.

O ‘coração que alimentou’ é, em todo caso, um paralelismo


irônico, junto da mão que zomba: também a mão que pode cessar
uma desgraça com um gesto, e o sangue e carne produzidos pela
intempestividade daquele que governa.

(E, entretanto, que tudo desapareça, a poesia ainda permanece,


etérea e eterna — a grande contradição deste poema: efêmero é o
que tem valor duradouro). Seguimos, seguimos:
And on the pedestal these words appear:
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“My name is Ozymandias, king of kings:


Look on my works, ye Mighty, and despair!”

O melhor trecho: reparamos, de início, que o viajante não é


egípcio, pois chamaria Ozymandias de ‘Ramsés II’ —
provavelmente era algum grego ou latino, e nos mostra a inscrição
do pedestal dessa figura megalomaníaca e egocêntrica. Tão
megalomaníaca que o verso ‘My name…’ rompe a caracterização
do decassílabo: destaca-se, com uma sílaba extra, pontuando
estar acima do restante dos versos. Olhem as obras dele! (os
inúmeros templos e estátuas dele mesmo), e fiquem pasmos!

Nada disso sobreviveu.

Nothing beside remains: round the decay


Of that colossal wreck, boundless and bare,
The lone and level sands stretch far away.

O olhar sai da placa, e se volta ao redor. O que vemos? Para além


da ambição colossal de Ozymandias, só o deserto. Notemos, antes
de encerramos a leitura, que neste trecho os pares aliterativos
estão presentes. E mais: que sílaba por sílaba, verso por verso, a
dicção vai se esticando, indo até o infinito. The looone and leeevel
saaands stretchhhh faaaaaaar awaaaaaaaaaaaaay. É
melopéia em seu melhor momento. As sílabas longas vão acabar
por desaparecer no silêncio, igual nosso olhar no horizonte.

Os recursos poéticos
— Cavalgadura. Observamos que o soneto tenta ser bem rígido em
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sua proposta de decassílabos, mas frequentemente estende seus


períodos frasais para outros versos. Esse prolongamento
reproduz uma questão interna do poema, que é de limites, de
fronteiras e de espaço. O poema todo é espacial, e vai rompendo
os lugares que esperamos nos concentrar: o viajante dialoga com
o Eu-Lírico, e o escultor com o viajante. O faraó conosco, e nós
com o poema. Cada linha, com a próxima, na próxima.

— Cesuras. Cada cesura traz uma ideia psicológica no ritmo


humano do poema. A primeira, em ‘Who said: — ’, força uma
parada que pode ser o movimento do viajante em lembrar o que
lhe foi dito. O segundo, em ‘Stand in the desert.’ pontua um
pequeno silêncio estratégico que aumenta a sensação de
isolamento. Em ‘Look on my works’ a quebra de expectativas, é
sobre o faraó, não sobre a civilização.

— Acentuações estratégicas. Nosso senso de escuta acostuma-se


muito rápido com o ritmo impostos. Em dois versos, já
conseguirmos adiantar, mesmo que de forma não-consciente, o
que virá em seguida, ou onde a rima cairá. Por isso mesmo, a
quebra de ritmo desloca o sentido do verso, fundindo significado
e pulsação: ‘Stand in the desert’. Stand, enquanto verbo, é
acentuado no ritmo oposto dos dois versos anteriores, de tal
modo que o ‘Stand’ caia no pé acentuado. Vemos um movimento
pulsional-tensional, chamado de Logopeia, que faz sentirmos o pé
sendo batido no chão: the feet stand:
I MET a traveller from an antique land
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Who SAID: — Two vast and trunkless legs of stone


STAND in the desert. Near them on the sand,

— Aliterações.

— Sinedoque. Mão e coração equivalem ao faraó.

— Alusão. O inscrito do pedestal é uma referência ao texto do


historiador grego Diodorus Siculus, descoberto lá pela época do
Napoleão.

— Tom. Medo e solenidade. Grandeza.

— Imagética aguçada. Uma estátua, deserto, expressões afiadas,


o movimento dos olhos no cenário.

— Acordes cromáticos: Sépia, mármore, areia, argila, basalto.


(Sobre o acorde cromático ainda escreverei um artigo, mas
somente para os alunos do Masterclass).

— Imagens sonoras, também conhecidas como Melopeia. Areia,


vento e silêncio.

— Personificação. A estátua é dotada de vida, mesmo sendo


apresentada como pedaço quebrado de pedra.

— Assonância. Aliteração de vogais, como vocês sabem: wreck,


boundless and bare, the lone and level sands stretch far away.
Os últimos detalhes
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Creio ter coberto 75% do poema com esta pequena análise. No


futuro tentarei cobrir 100%.

Boa leitura!

Brian.

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