Notas Sobre Práticas de Jardinagem, Relações Mercadológicas e Seus Efeitos Na Produção e Reprodução Da "Cultura Canábica"
Notas Sobre Práticas de Jardinagem, Relações Mercadológicas e Seus Efeitos Na Produção e Reprodução Da "Cultura Canábica"
Notas Sobre Práticas de Jardinagem, Relações Mercadológicas e Seus Efeitos Na Produção e Reprodução Da "Cultura Canábica"
Teoria e Cultura é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade
Federal de Juiz de Fora, destinada à divulgação e disseminação de textos na área de Ciências Sociais (antropologia, ciência
política e sociologia), estimulando o debate científico-acadêmico. O projeto editorial contempla artigos científicos,
verbetes, ensaios, resenhas, entrevistas, fotografias e traduções de textos da área de ciências sociais. A revista publica
predominantemente em português e é aberta a outras línguas, havendo justificativa editorial. A revista está classificada,
de acordo com a atual avaliação da CAPES, como QUALIS B2 em Sociologia.
EDITOR / EDITOR
Raphael Bispo
DIAGRAMAÇÃO / DIAGRAMMING
Bruna Damaceno Furtado
Eric Barbosa Fraga
REVISÃO / REVIEW
A responsabilidade final sobre a revisão dos textos
da Teoria e Cultura é dos próprios autores
Coordenador do PPGCSO
Paulo Cesar Pontes Fraga
Ficha catalográfica
Semestral
ISSN 1809-5968 (impresso/print)
ISSN 2318-101x (on-line)
4 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 15 n. 1 Junho. 2020 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
SUMÁRIO
TEORIA E CULTURA
Nota Editorial 07
Dossiê
Artigos
Resenhas
Dimensões legais e sociais sobre drogas, seus usos e suas políticas no 248
Brasil e em Portugal
Monique Prado
O segundo volume do ano de 2020 de Teoria e Cultura brinda seus leitores com o
dossiê Drogas: novas abordagens e novos desafios acadêmicos e sociais, organizado por
Paulo Fraga e Marcelo da Silveira Campos.
Na seção Artigos, de fluxo contínuo da revista, quatros instigantes artigos: Autoridade
e afeto em relatos de bullying: notas sobre a percepção dos professores; “Ceder”: um
instrumento para análise da ação; Judicialização da saúde: uma análise sobre o direito
social à saúde e acesso à justiça e A colonialidade do poder e suas subjetividades. Compõe
também este número a resenha de três livros contemporaneamente publicados por
editoras brasileiras.
Nesta edição, a equipe da revista contou com a preciosa colaboração e trabalho de
diagramação de Bruna Damaceno Furtado e Eric Barbosa Fraga, alunos do curso de
ciências sociais da UFJF. Oswaldo Zampiroli, Luiza Cotta Pimenta e Antônio Pilão
também compuseram a equipe de assistência editorial. A todos, agradeço a possibilidade
de contar com vocês nos bastidores de mais um número de Teoria e Cultura.
Boa leitura,
Raphael Bispo
Editor-Responsável de Teoria e Cultura
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TEORIA E CULTURA
Apresentação
Drogas: Novas abordagens e novos desafios acadêmicos e sociais
Paulo Fraga 1
Marcelo da Silveira Campos 2
A temática das drogas vem sendo tratada há décadas como prioridade por diferenciados
enfoques disciplinares. Expressão desse cuidado é o significativo número de estudos e de pesquisas
a tratar exclusivamente da questão, em suas variadas dimensões. Um dos desafios para a abordagem
do tema é lidar com sua dinâmica a envolver elementos sociais, jurídicos, criminais e de saúde
pública. A legalização e regulação do uso e da venda de determinadas drogas proscritas ou não,
para fins medicinais ou de uso adulto; os estigmas sobre populações e indivíduos; o uso religioso de
determinadas substâncias; os impactos no mercado do surgimento de novas drogas são questões a
estimular novas metodologias de estudos e demandam abordagens originais (ALVAREZ, FRAGA E
CAMPOS, 2017).
A questão das drogas, pela sua complexidade, portanto, exige tratamento acadêmico
interdisciplinar abrangendo diferentes campos científicos como a saúde pública, direito, ciências
sociais, psicologia, educação, assistência social e, claro, a segurança pública com base nos direitos
humanos. Embora a complexidade do problema imponha a urgência do enfoque acadêmico de
variadas disciplinas, as políticas públicas voltadas para os indivíduos na temática das drogas ainda
são portadoras de vieses repressivos, distanciando-se de estudos que passaram pelo debate científico.
Podemos citar como exemplo a questão do uso problemático ou abusivo de determinadas substâncias
e sua multicausalidade fenomênica, que alcançou avanços importante nas abordagens orientadas pelo
paradigma da redução de danos. No entanto, há indícios das mudanças dessa orientação, no país, de
modo que as políticas públicas para os usuários nos estados não sejam efetivamente baseadas na
harm reduction; bem como, a elaboração de penas alternativas à prisão para os casos de incriminados
por tráfico de drogas não representem riscos à sociedade. Atualmente, o encarceramento massivo no
Brasil, com uma população de 150 mil presos por drogas, é composta, em sua ampla maioria, por
mulheres negras e homens negros, jovens, moradores de bairros periféricos, réus primários, com
baixa escolaridade transitando entre ocupações do mercado de trabalho precárias e informais.
É nesse contexto que a ciência social envidou muitos dos seus esforços, especialmente, desde
o final do século XX para consolidar interpretações distintas, de cunho eminentemente acadêmico e
alternativas ao senso comum acerca da temática específica do uso de substâncias consideradas ilícitas
e lícitas, bem como, não negligenciou empenho para construir diagnósticos acadêmicos e abordagens
originais para fundamentar as políticas alternativas à proibição do comércio de drogas – especialmente
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a cannabis – em vigor hoje em países como Canadá, Portugal, EUA, Uruguai e Espanha para citar
TEORIA E CULTURA
os exemplos mais conhecidos. O debate sobre mudanças de legislações e de políticas nacionais sobre
drogas e novas orientações das Convenções da ONU Sobre Estupefacientes foi incrementado nas
últimas décadas, fazendo com que muitos países realizassem alterações profundas ou significativas
em suas leis, tendo como foco principal as ações e os programas de cuidado com a saúde pública.
Tais países, em diferentes contextos, optaram por alterar o status da cannabis (tanto medicinal como
de uso adulto) de ilícita para lícita em seus diferentes contextos de uso e comercialização tornando-a
uma substância não proscrita, descriminalizando seus usos ou passando a considerar o uso como
uma infração administrativa.
Esse cenário teve contribuições importantes, seja pela proeminência das políticas sobre o
uso de drogas – estabelecendo no final dos anos 90 do século XX a harm reduction como paradigma
fundamental de orientação ao cuidado e à saúde dos usuários –, seja pela perspectiva de priorizar os
aspectos de saúde em detrimento da abordagem penal.
Cabe destacar que é no mesmo período, no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, que
observamos a multiplicação de pesquisas no campo científico (neurociência, microbiologia, medicina)
sobre os potenciais terapêuticos dos cannabinóides e, posteriormente, da cannabis nos mais diversos
tratamentos à saúde e proliferação da vida. O Canadá, desde 2001, forneceu o ensejo com a legalização
da cannabis medicinal. Ao mesmo tempo, é também do início dos anos 2000 que notórios autores
da teoria social contemporânea (Wacquant, Christie, Garland, Hinton) irão descrever, utilizando
metodologias que lançaram mão de enfoques quantitativos e qualitativos, os efeitos da war on drugs
nos sistemas prisionais, nomeadamente no superencarceramento estadunidense, ponderando sobre
os principais impactos das leis e políticas públicas de drogas proibicionistas sobre o sistema de justiça
criminal e o visível viés racista e discriminatório dessa política. Isto porque, de acordo com Medeiros
et al( 2019), ainda que o consumo de psicoativos seja uma prática desde tempos remotos é ao longo
do século XX que o uso de algumas dessas substâncias se consolidou como um campo de atenção,
debate e preocupação social e estatal.
Talvez estejamos vivendo momentos de profundas mudanças, inclusive de paradigmas, em
relação às drogas, mas algumas questões se mantêm. O uso e a produção legal da cannabis para fins
medicinais e adulto, por exemplo, continuam a apresentar desafios, mesmo nos países e estados
onde houve mudanças jurídicas, no sentido da legalização da produção e uso de cannabis. No Sul
da Califórnia, três anos após a regulamentação do cultivo da planta para uso comercial e individual,
em 2019, a polícia estadual apreendeu um milhão de pés de maconha ilegais, ou seja, plantadas sem
licenciamento, um crescimento significativo em relação ao ano anterior. Avalia-se o incremento dos
cultivos ilegais como consequência do, ainda, dispendioso cultivo legal, cujo preço final incorpora
custo dos produtores com altas taxas e impostos. As despesas finais com o produto é alto, estimulando
um mercado paralelo ilegal operando, não raramente, com violência e com possibilidades de vendas
para outros estados do país, o que não é permitido para os cultivadores legais.
Não obstante, as ações de erradicação de plantios ilícitos foi, e continua sendo, uma das
estratégias mais utilizadas e tem buscado legitimar durante décadas a war on drugs. Inicialmente
executadas em países como México e Jamaica e, posteriormente, no Peru e na Bolívia, os seus
objetivos iniciais estavam centrados no princípio da maior facilidade de combater o tráfico ilegal
de determinadas substâncias nos locais onde as drogas originadas de plantas eram produzidas. Tais
prerrogativas classificou de forma arbitrária e estigmatizada os termos países produtores e países
consumidores.
Foi na Colômbia, entretanto, por meio do denominado Plano Colômbia, no início dos anos
2000, que as ações de erradicações encontraram seu apogeu em investidas dessa monta. Essas ações
apresentaram como consequências das operações militarizadas, graves ofensas à saúde e violação de
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direitos humanos das populações que viviam em regiões de plantios, por conta das aspersões químicas
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utilizadas nas atividades de destruição de cultivos (FRAGA, 2010), e com substantivos recursos
oriundos de financiamento externo para a compra de armamentos e equipamentos e insumos para a
destruição de plantações, notadamente de coca.
No Brasil, as ações de erradicação seguem seu curso há décadas. Focadas nos cultivos de
cannabis localizados no interior do Nordeste brasileiro, a destruição de plantios não apresenta
variações quantitativas significativas nos últimos anos, segundo dados da Polícia Federal (FRAGA,
2019), instituição responsável pela maioria das operações policiais de eliminação de plantios ilegais
de cannabis. Essas ações contínuas parecem ter efeitos sobre a desarticulação de quadrilhas locais,
mas pouco impacto na oferta de maconha nos mercados ilícitos locais pela presença mais significativa
da droga oriunda do Paraguai, em determinados mercados na Região Nordeste, produto, até então,
raro, em grandes capitais nordestinas.
Na última década, o Brasil, assim como países citados anteriormente e outros, enfrentou
o desafio de incorporar na agenda do ativismo social a legalização da maconha. Como é de
conhecimento, a cannabis ou maconha é a substância psicoativa proscrita mais utilizada no mundo
(UNITED NATIONS OFICE FOR DRUGS AND CRIME, 2016) e pela qual há uma grande demanda
pela liberalização do uso. As Marchas da Maconha (Global Marijuana March), cuja primeira edição
deu-se em Nova Iorque em 1990 (BRANDÃO, 2017), são eventos de alcance mundial que ocorrem
em várias cidades no mundo, cujo objetivo é a liberação da cannabis para uso legal e que representam
uma pressão social sobre parlamentos e poderes executivos. Essas manifestações são importantes
expressões sociais que reivindicam transformações sobre as ações repressivas e penais e o abandono
da prerrogativa do punitivismo e do proibicionismo nas legislações sobre drogas (FIORE, 2012).
No Brasil, os ativistas retiraram da ilegalidade a discussão. Inicialmente proibidas por juízes
que alegavam ser o movimento estímulo ao uso, mas permitidas em decisão do STF, as marchas
avançaram como importantes expressões democráticas por mudanças legais. No Brasil, as marchas
ganharam a adesão de pessoas que lutam pelo acesso à cannabis medicinal para si ou para parentes.
Segundo Policarpo (20019), a presença do movimento de mães para ter acesso aos cannabinoides
para seus filhos que tinham determinadas doenças como autismo, epilepsia, mudou o movimento
nas cidades brasileiras, fazendo-as incorporar essa dimensão da planta, até então pouco explorada
nessas manifestações. O incremento de casos em que há comprovadamente a melhora de pessoas
com determinadas doenças em que o uso de cannabinoides foi acompanhado por pesquisadores
(MENEZES, 2014; PAMPLONA, 2020) fez, no Brasil, novas pressões para que houvesse mudanças
legais. Outra questão emergente é o recurso aos habeas corpus preventivo para o cultivo de cannabis
para autoconsumo visando fins medicinais. Nos últimos anos esse foi um recurso que mobilizou
procuradores e a justiça.
Todas essas questões levam a considerar a questão das drogas como dinâmica e envolvendo
muito atores e campos disciplinares. Nesse sentido, o objetivo desse dossiê na Teoria e Cultura é refletir
criticamente sobre as propostas de administração estatal do uso de drogas do Estado brasileiro na
atualidade. De um lado, uma primeira virtude e urgência desse dossiê é justamente ele ser constituído
na intersecção entre vidas e políticas, entre as ciências humanas e as ciências da saúde, entre a lei e a
reflexão sobre as implicações práticas das políticas públicas criminais e de segurança pública. Nesse
sentido o que se pretende é inerente e latente: compreender os fatores intervenientes no fenômeno
do superencaceramento contemporâneo, desde os quais 30% dos presos estão incriminados por
infrações relacionadas ao uso e/ou comércio de drogas. É somente na interdisciplinaridade de
saberes, especialmente, na conjunção das ciências sociais com o direito que podemos começar a
minimamente compreender, elaborar conceitos, caracterizar e explicar os fatores do fenômeno do
encarceramento massivo como central na vida cotidiana brasileira.
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De outro lado, as mudanças e debates sobre o uso da cannabis medicinal, descriminalização
TEORIA E CULTURA
e mudança de frame nas políticas sobre drogas, especialmente sobre o uso e o não deslocamento do
usuário para o sistema de saúde pública (CAMPOS, 2019) recolam a importância das alternativas
postas em diversos países do globo ao longo dos últimos 20 anos tem sido majoritariamente a
escolha pela não incriminação do uso de drogas, optando pela permissão da posse em quantidades
legalmente estabelecidas e pré-definidas para cada tipo de uso de uma determinada substância.
Mais especificamente, a posse da cannabis como vemos nas experiências tão conhecidas como de
Portugal, Espanha, USA, Uruguai e Canadá. Ora, o que está em foco nos últimos anos em termos da
construção de uma nova agenda pública sobre o uso de drogas é definitivamente colocar a redução
de danos como paradigma orientador de políticas ao uso indevido de drogas (MOREIRA et. al, 2006,
p.814-815) centrado na abordagem do indivíduo em toda a sua complexidade, logo, independente do
uso.
“A atitude de um educador ou de uma escola que consegue incluir, manter ou renovar o seu vínculo com um
aluno que faz algum uso de substâncias psicoativas, lícitas ou ilícitas, pode ser o divisor de águas entre a parada na
experimentação e a migração para outros usos, incluindo uma futura dependência”. (MOREIRA, 2006, p. 814-815)
Sendo assim, a proposta do dossiê foi de receber artigos derivados de trabalhos empíricos
e teóricos, priorizando pesquisas que inovem na abordagem dessa ampla temática e que reflitam,
igualmente, as mudanças que vem sendo observadas nesse vasto campo de estudos e nas práticas
sociais. Esta chamada visou receber pesquisas inovadoras sobre temas variados.
O artigo Para além da discriminação: reflexões sobre as políticas de drogas, de autoria de
Marcelo Campos e Frederico Policarpo, abre o dossiê propondo uma reflexão sobre as políticas de
drogas no Brasil, construído a partir de críticas às propostas governamentais sobre o uso de drogas,
colocando em tela a urgência de mudanças no marco legal brasileiro.
Paulo Fraga, Rogéria Martins e Luzania Rodrigues analisando a narrativa dos jornais da
primeira metade do Sáculo XX, no artigo Discursos sobre a maconha na imprensa brasileira na
primeira metade do Século XX , avalia como vai sendo construída, por meio de matérias jornalísticas,
uma verdade sobre a maconha, a partir da ação policial.
Katerina Volcov apresenta em seu artigo Consumo de drogas por mulheres pertencentes às
camadas médias um tema por vezes negligenciado pela literatura acadêmica sobre drogas, a saber, o
sentido atribuído ao uso de drogas lícitas e ilícitas por mulheres dos setores médios da população.
O ato de consumir determinados medicamentos com o objetivo de melhorar desempenhos
cognitivos específicos é o tema do artigo A questão do aprimoramento cognitivo e uso de substâncias:
um estudo em torno da divulgação midiática brasileira sobre “smart drugs” e nootrópicos. Bruno
Castro e Elaine Reis Brandão mostram como a internet é um meio importante para a divulgação das
denominadas smart drugs.
Marcílio Brandão analisa as mudanças ocorridas no ativismo social atrelado à Marcha da
Maconha em Recife, em seu artigo Do lugar de maconheiro ao corredor dos movimentos sociais: a
Marcha da Maconha em Recife. O texto busca compreender o movimento como expressão de ações
que ultrapassam o próprio ato por suas repercussões e os atores envolvidos.
Guerra às drogas no Brasil contemporâneo: proibicionismo, punitivismo e militarização da
segurança pública de Luís Antônio Francisco de Souza, Carlos Henrique Aguiar Serra e Fernanda
Russo Cirillo, analisa como a nomeada guerra às drogas expõe elementos da letalidade do estado
brasileiro. O texto critica a militarização e o punitivismo como formas de enfrentamento à questão
das drogas.
Yuri José De Paula Motta e Marcos Veríssimo versam sobre a prática de cultivar maconha
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para uso próprio no Rio de Janeiro em Notas sobre práticas de jardinagem: relações mercadológicas e
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seus efeitos na produção e reprodução da “cultura canábica”. Os autores colocam em relevo na análise
o caráter não mercadológico desses empreendimentos e o objetivo de não se relacionar com redes
criminosas que vendem a droga na cidade.
Percepções sobre drogas, dependência química e busca de tratamento segundo elaborações
cosmológicas de católicos e pentecostais é um artigo baseado em duas etnografias em regiões periféricas
sobre uso crônico de drogas em ambientes identificados como catolicismo popular e o pentecostalismo.
Janine Targino e José Wellington de Souza compreendem nesses diferentes contextos de ideologias
religiosas formas distintas de perceber o uso de drogas.
Ana Paula Lopes da Silva Rodrigues, Ivonete da Silva Lopes e Victor Luiz Alves Mourão
analisam, com uso de metodologia qualitativa, as audiências públicas da ANVISA em 2019 para
regularizar o uso e venda de cannabis medicinal no artigo Eficácia, segurança e qualidade”: parâmetros
discursivos nas Audiências Públicas da Anvisa sobre regulamentação e pesquisas com cannabis para
fins medicinais. Os autores avaliam que a agência se utiliza de argumentos técnicos-científicos para
justificar sua decisão.
Sentidos da Redução de Danos nos CAPS AD do Distrito Federal: entre o escopo ampliado e
traduções conservadoras é o artigo apresentado ao dossiê por Maria Paula Santos e Roberto Rocha C.
Pires. O texto analisa como profissionais de cuidado à saúde atribuem sentidos ao termo redução de
danos. A perspectiva da autora e do autor é vislumbrar com a discussão questões relativas às políticas
públicas de drogas.
Utilizando metodologia qualitativa para o desenvolvimento do trabalho, Dayana Rosa
Duarte Morais e Martinho Silva analisam no artigo Etnografia com parlamentares sobre o problema das
drogas na CPI do Crack o debate no parlamento brasileiro, na ocasião de uma Comissão Parlamentar
de Inquérito. O texto versa sobre importantes aspectos acerca das motivações e valores morais que
direcionaram a conclusão dos trabalhos de deputadas e deputados.
Finalizando o dossiê,Trajectories of an addiction: ethnography of heroin use in Tangier (Morocco),
artigo de Khalid Mouna e Abdellah Essaouidi, analisa as profundas mudanças que ocorreram nas
últimas décadas sobre o perfil e as formas do uso e as principais drogas consumidas no Marrocos,
com o incremento significativo de consumo de cocaína e heroína. O trabalho está baseado em uma
etnografia desenvolvida em Tangier sobre o uso de heroína, suas motivações e sentidos.
Boa leitura!
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FIORE, M. O lugar do Estado na questão das drogas: o paradigma proibicionista e as alternativas. No-
vos Estudos – CEBRAP, 92:9-21. 2012.
FRAGA, P.C.P. “As ações de erradicação de plantios considerados ilícitos na América Latina e no
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GOMES-MEDEIROS, Débora; FARIA, Pedro Henrique de; CAMPOS, Gastão Wagner de Sousa
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HINTON, Elizabeth. From the War on Poverty to the War on Crime: the making of mass incarceration
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TEORIA E CULTURA
Resumo
O objetivo deste artigo será refletir sobre as políticas de drogas do Brasil atualmente em vigor e
suas alternativas no que diz respeito ao uso de drogas. A reflexão, portanto, está relacionada a um
empreendimento reflexivo-crítico de pensar alternativas que vão, ao mesmo tempo, em direção
e também além da descriminalização do uso de drogas no contexto da atual política de drogas
brasileira. Acreditamos que se trata, de fato, de um avanço fundamental em termos de direitos e
garantias constitucionais para os usuários de drogas retirando, de uma vez por todas, o uso e porte de
drogas para consumo pessoal enquanto uma conduta criminalizada legalmente. Ao mesmo tempo,
defendemos que somente a adoção de critérios explícitos e mais amplos em termos de quantidade
em conjunto com a exclusão definitiva dos critérios hierárquicos, subjetivos e discricionários é que
podem ser endossados na descriminalização do artigo 28 da Lei 11.343 de 2006.
The purpose of this article will be to reflect on the drug policies of Brazil currently in force and
their alternatives with regard to drug use. The reflection, therefore, is related to a reflexive-critical
enterprise of thinking about alternatives that go, at the same time, towards and also beyond the
decriminalization of drug use in the context of the current Brazilian drug policy. We believe that this
is, in fact, a fundamental advance in terms of constitutional rights and guarantees for drug users,
removing, once and for all, the use and possession of drugs for personal consumption as a legally
criminalized conduct. At the same time, we argue that only the adoption of explicit and broader
criteria in terms of quantity in conjunction with the definitive exclusion of hierarchical, subjective
and discretionary criteria can be endorsed in the decriminalization of Article 28 of Law 11.343 of
2006.
Introdução
1Professor adjunto da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e Professor convidado da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisador INCT - InEAC.
2 Professor do Departamento de Segurança Pública e do Programa de Pós-Graduação em Justiça e Segurança da
Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisador INCT - InEAC.
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O objetivo desse artigo é refletir criticamente local é fundamental para compreender as práticas
TEORIA E CULTURA
sobre as propostas de administração estatal do de uso quanto as formas estatais de se lidar com
uso de drogas do Estado brasileiro na atualidade. essas práticas. E que, logo, somente a adoção de
A ideia central do manuscrito, logo, é fazer um critérios mais amplos em termos de quantidade,
exercício de reflexão sobre a descriminalização. em conjunto com a exclusão definitiva dos
E, se possível, ir além dela. critérios hierárquicos, subjetivos e discricionários
Nesse sentido, acreditamos que se trata de presentes na Lei 11.343 de 2006 é que poderiam
avanço fundamental em termos de direitos e ser endossados na descriminalização para a
garantias constitucionais dos usuários de drogas legitimidade da adoção de critérios objetivos que
retirando-os, de uma vez por todas, o uso e estabeleçam para todas as drogas, parâmetros de
porte de drogas para consumo pessoal enquanto quantidade de uso mediante o tipo de substância
conduta criminalizada. As alternativas colocadas e permitida para a posse de drogas, tornando-a
em prática em diversos países do globo ao longo uma infração administrativa.
dos últimos 20 anos tem sido majoritariamente
pela não incriminação do uso pessoal e posse de O contexto internacional: do proibicionismo
drogas em quantidades legalmente estabelecidas à regulação
e pré-definidas para cada tipo de uso de uma
determinada substância. Mais especificamente, O contexto denominado de “Guerra às
a posse da cannabis como observamos nas Drogas” (declarada pelo governo de Richard
experiências tão conhecidas como as de Portugal, Nixon, em 19714) em mensagem ao Congresso
Espanha, USA, Uruguai e Canadá. Resumindo, norte-americano que “um ataque em todos
os autores defendem que é fundamental que seja os níveis ao problema do abuso de drogas nos
declarada a inconstitucionalidade do artigo 28 da Estados Unidos”. E o identificou como o “inimigo
lei 11.343 de 2006, uma vez que a criminalização público número um do país” nos anos 70.
é uma medida completamente inadequada Destacam ainda o Convênio sobre Substâncias
para prevenir o uso de drogas já que há outras Psicotrópicas (1971) e a Convenção das Nações
formas menos restritivas de direitos e garantias Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes
fundamentais para a administração estatal desse e Substâncias Psicotrópicas – “Convenção de
comportamento, logo, a redução de danos do uso Viena” (1988). É o período de intensificação da
de drogas como princípio basilar das políticas repressão aos traficantes de drogas, sobretudo,
de drogas e já contemplada no interior do no plano da chamada War on Drugs.
dispositivo atualmente em vigor, a lei 11.343 de O modelo internacional de controle do uso e
2006, articuladas com o SUS. circulação de entorpecentes adveio da Convenção
Ao mesmo tempo, chamamos a atenção de Genebra de 1936, na qual se estabeleceu
aqui que do ponto de vista socioantropológicoa o desenho básico da política que ainda hoje
criminalização aumenta os inúmeros estigmas subsiste: legislação restritiva da produção, do
sociais que recaem sobre os usuários num comércio e do consumo de entorpecentes,
processo de criminalização dos usuários de com a previsão de internação de usuários. A
drogas das prisões aos Centros de Atenção “Convenção Única sobre Entorpecentes” (1961),
Psicossocial Álcool e Drogas CAPSad3. o “Convênio sobre Substâncias Psicotrópicas”
Os autores defendem, portanto, que o contexto (1971) e a “Convenção de Viena” (1988) formam
3 Ver, por exemplo, MALLART, Fábio. Gestão Neuroquímica: pílulas e injetáveis na prisão. In: Mallart, Fábio; Godoi,
Rafael. (Org.). BR 111: a rota das prisões brasileiras. 1ed.São Paulo: Editora Veneta/Le Monde Diplomatique Brasil, 2017,
v. 1, p. 127-137.
4 O termo foi inicialmente veiculado pelo Presidente Richard Nixon em 17 de junho de 1971. s”. Sobre as relações drogas
e retórica presidencial americana ver: Whitford, Andrew B. and Yates, Jeff, Policy Signals and Executive Governance:
Presidential Rhetoric in the War on Drugs. Journal of Politics, University of Chicago Press, Vol. 65, No. 4, pp. 995-1012,
2003.
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a tríade de convenções entabuladas na ONU punitiva do que as convenções anteriores (a
TEORIA E CULTURA
5 Sobre o assunto ver também: HERZ, M. Política de segurança dos EUA para a América Latina após o final da Guerra
Fria. Estudos avançados, São Paulo, v.. 16, n.46, p. 85-104, 2002.
PEREIRA, P. J. R. Crime transnacional e segurança: aspectos recentes do relacionamento entre Estados Unidos e América
Latina. In: AYERBE, Luís Fernando. (Org.). De Clinton a Obama: políticas dos Estados Unidos para a América Latina. .
São Paulo: Editora Unesp, 2009. p. 129-157; CAMPOS, M. S.; KORNER, A. Segurança e guerra ao terror: um balanço da
literatura contemporânea sobre a América Latina após 11 de setembro. Revista Mediações (UEL), v. 16, p. 51-71, 2011.
6 Além das mencionadas convenções, foram assinados três Protocolos: o Protocolo de Genebra (1946), o Protocolo de
Paris (1948) e o Protocolo para a limitação e regulação do cultivo da papoula, da produção e das trocas internacionais e
do uso do ópio (1953). Nessesentido, ver BOITEUX, Luciana et al., 2009.
7 JOJARTH, C. Crime, War, and Global Trafficking: designing international cooperation. Cambridge: University Press,
2009.
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um dos países pioneiros a investir massivamente na legalização da venda da cannabis em todas
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em diversos programas de Redução de Danos as províncias do Canadá desde outubro de 2018
destinados aos usuários de drogas em cidades (BEAUCHESNE, 2017). Promessa de campanha
como Vancouver8; no ano de 2001 tornou-se o do primeiro-ministro do Canadá Justin Trudeau,
primeiro país do mundo a permitir o uso legal a legalização foi aprovada no Senado canadense
da maconha para fins medicinais9 por meio da por 52 votos favoráveis a 29 votos contrários.
política administrada pela agência de saúde A compra, agora, poder ser feita pela internet
do Canadá, a Health Canada (CAMPOS, 2019; e cada indivíduo adulto tem direito a andar no
HYPOLITO e AZEVEDO, 2019). espaço público com até 30 gramas de maconha.
No entanto, a partir de abril de 2014, os
usuários de maconha para fins medicinais Brasil nesse contexto: redução de danos e
puderam comprar diretamente em locais proibicionismo
autorizados a cultivar e vender maconha pela
Health Canada (uma espécie de ANVISA do É esse movimento “médico-preventivo” com
Canadá), de acordo com novas normas de enfoque na saúde pública como administrador
regulamentação por meio de uma nova política da forma mais racional possível, sobre o uso das
de regulação medicinal da maconha (New drogas que foi parcialmente responsável pela
Marihuana for Medical PurposesRegulations - nova Lei de Drogas Brasileira. No Brasil, a Lei
MMPR). Na época, em números, as estimativas de Drogas, promulgada em 2006, buscou, por
da agência do governo canadense apontavam um lado, endurecer o combate ao tráfico e, por
o crescimento do número de usuários por outro, eliminar o emprego da pena de prisão e
decorrência desta nova diretriz política: 477 de multa para os usuários, mas sem efetivamente
canadenses estavam autorizados para a posse de descriminalizar o uso.
marijuana para fins medicinais em 2002; em 2014 A partir da análise de dados dos sistemas
estimava-se que este número chegava a 41.384; de justiça criminal nas cidades do Rio de
e, em 2024, a projeção é de 308.384 (CAMPOS, Janeiro (GRILLO, POLICARPO e VERÍSSIMO,
2019). Tal movimento, como se sabe, culminou 2011) e de São Paulo (CAMPOS e ALVAREZ,
8 A cidade de Vancouver no Canadá possui há mais de 10 anos um programa de injeção supervisionada em locais
seguros e públicos destinados para os usuários de drogas injetáveis (stand-alonesupervisedinjection site - sis). Alguns
dos resultados desse programa são: ele é usado por aproximadamente 10.000 usuários; está sendo usado por pessoas
que injetam drogas comuns em público; reduziu os comportamentos de riscos, como o compartilhamento de agulhas
e oferece práticas de uso de injeção que sejam mais seguras para as vidas dos usuários. Também se verificou uma
redução das mortes por overdose, mais segurança para as mulheres usuárias de drogas injetáveis e não levou a um
aumento do uso de drogas ou da criminalidade (CARTER; MACPHERSON, 2013). Atualmente, o Canadá possui uma
série de organizações que pressionam o governo federal para a instalação um programa de distribuição de seringas
nos presídios federais que visa reduzir as mortes por infeção de HIV. Sobre o tema, ver o relatório Clean Switch: The
Case for PrisonNeedleandSyringePrograms inCanada produzido pela Canadian HIV/AIDS Legal Network. Disponível
em: <http://www.aidslaw.ca/publications/interfaces/downloadFile.php?ref=1496>. Acesso em: 11 out. 2014. A cidade de
Torontoregistrou cerca de 900 mortes por overdoses de drogas entre 2002 e 2010 . A iniciativa levou a Toronto Public
Health a estudar a implantação de um modelo como em Vancouver. Ver:<http://www.cbc.ca/news/canada/toronto/
report-suggests-toronto-test-out-safe-injection-sites-1.1326960>. Acesso em: 11 out. 2014.
9 Na época as novas regras foram resultado de uma decisão da justiça favorável ao uso medicinal da maconha em 31 de
julho de 2000 com a aprovação da legalização da maconha para fins medicinal em julho de 2001 - theMarijuana Medical
Access Regulations. Tudo começou com o caso, em 10 de dezembro de 1997, quando um juiz de Toronto determinou
que as pessoas deveriam ser capazes de acessar o tratamento médico necessário, sem medo de ser preso – chamado caso
Terrence Parker - que se tornou o primeiro canadense a ser isento de nova ação judicial para qualquer posse ou cultivo
de maconha. O homem havia sido acusado de porte de maconha diversas vezes e, como ele não fez segredo que usava
justamente para controlar seus ataques epiléticos. O objetivo da mudança legislativa em 2001 no Canadá era reunir
dados científicos para provar que a Cannabis Sativa ajudava no tratamento de pacientes com doenças como esclerose
múltipla, glaucoma, epilepsia, alguns tipos de câncer e AIDS. Dentre alguns efeitos conhecidos, a Cannabis Sativa evita
enjoos e alivia os efeitos colaterais da quimioterapia. Para mais ver: http://medicalmarijuana.ca/ehttp://www.bbc.co.uk/
portuguese/noticias/2001/010730_canada.shtml.
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2017) é possível corroborar a hipótese de que nas Ruas, os Centros de Referência de Assistência
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10 MJ, 2009; NEV USP 2011; GRILLO, POLICARPO e VERÍSSIMO, 2011; CAMPOS, 2015.
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um traficante de “classe média”, o crescimento de superar as posições antagônicas de modo a
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das aplicações terapêuticas da maconha, por se chegar a um consenso, mesmo que mínimo,
exemplo, servem para trazer à tona a discussão sobre determinados pontos.
e mobilizar as (quase sempre as mesmas) No caso das drogas, o que parece possibilitar
posições conservadoras e liberais em torno da a construção desse consenso é a aceitação, por
questão. Em 2019, essa discussão ganhou de parte da comunidade acadêmica, de que os
novo as manchetes com o anúncio do possível elementos socioculturais associados ao uso têm
julgamento pelo Supremo Tribunal Federal do papel decisivo para a compreensão do mesmo.
Recurso Extraordinário n. 635.659, que pode Diversas pesquisas têm chamado a atenção para
descriminalizar no país o porte de drogas para a relevância desse ponto: outros elementos, além
uso pessoal. das características químicas das substâncias, são
Em uma rápida pesquisa sobre o tema na fundamentais para se compreender o consumo
internet é possível observar a grande expectativa (BECKER, 2008; MACRAE e SIMÕES,2000;
que está sendo alimentada acerca desse VELHO, 1998; ZINBERG, 1984).
julgamento. Desde 2011, ano em que a Defensoria No que diz respeito aos tipos de drogas
Pública de São Paulo entra com a ação no STF, utilizados, os padrões e significados atribuídos
praticamente em toda reportagem, comentário ao uso delas, MacRae e Simões, fazendo uso da
jurídico ou artigo que tratou do assunto emergea terminologia de Norman Zinberg, apontam três
ideia de que o julgamento está prestes a acontecer. fatores determinantes:
Lá se vão quase 10 (dez) anos. a) a “droga” em si – isto é, a ação farmacológica
Se antes o debate público se baseava no da substância incluindo a dosagem e a maneira
avanço das garantias constitucionais da liberdade pela qual ela é tomada (endovenosa, aspirada,
individual e em pesquisas acadêmicas, como fumada por via oral, etc.);
apontam o posicionamento dos três ministros b) o set – isto é, o estado do indivíduo no
-Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Luiz momento do uso, incluindo sua estrutura de
Edson Fachin – que votaram favoravelmente a personalidade, suas condições psicológicas e
descriminalização do uso de drogas,atualmente físicas, suas expectativas;
a discussão é de manter o respeito aos preceitos c) o setting (cenário ou ambiente social) –
básicos da Constituição e o mínimo de referência isto é, o conjunto de fatores ligados ao contexto
aos critérios científicos mobilizados para tratar do no qual a substância é tomada, o lugar, as
tema do uso de drogas. O receio de pesquisadores companhias, a percepção social e os significados
e especialistas da área vai se concretizando: as culturais atribuídos ao uso. (2000, p. 29).
práticas em cuidado baseadas em programas de Ou seja, no exame de qualquer elemento
Redução de Danos perdem espaço para as de relacionado às drogas, é preciso considerar não
orientação religiosa e no ideal da abstinência; apenas a substância e o indivíduo usuário, mas
medidas para a despenalização são deixadas de também com a mesma importância, o contexto
lado em prol da expansão da criminalização. em que é realizado o uso.
É claro que a discussão em torno das Mas se, por um lado, apoiado na importância
drogas é, fundamentalmente, política e moral do setting para a pesquisa, deve-se considerar a
(CARNEIRO, 2018). É que, apesar disso tudo, possibilidade de múltiplos significados para o
ou talvez mesmo por conta disso, a forma de uso das drogas, por outro lado, é preciso levar
produção do conhecimento acadêmico-científico em conta um fator característico de nossa época
é tão importante para balizar decisões político- (ESCOHOTADO, 1996) e presente em nossa
morais (FIORE, 2018). Por exemplo, para que a sociedade: usar drogas é crime.
situação apontada acima, em que os argumentos Assim, as agências de controle se vêem
parecem sempre se repetir, seja superada é diante de um problema: como lidar com a
fundamental que exista um esforço na tentativa heterogeneidade dos significados associados ao
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uso de drogas (o que impossibilita, inclusive, O que queremos mostrar é que não há uma
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uma identificação geral entre usuários (VELHO, fórmula única para lidar com a questão. Mesmo
1998), através de uma determinação, compulsória no regime Proibicionista há espaços para
e homogeneizante? Como conciliar os diversos regulamentações alternativas à mera prisão e
contextos, que conferem diversos significados ao punição, mais atenta e embasadas cientificamente
uso de drogas, com uma só lei? na complexidade que envolve o uso de drogas.
Essa problematização sociológica é, muitas Os Estados fazem escolhas políticas baseadas em
vezes, descartada com a reconfortante perspectiva moralidades específicas sobre os modos de lidar
legalista e dogmática da lei: se é proibido, não com a questão das drogas. Esse ponto é muito
pode ser feito e ponto final. De modo fácil e sem importante para desnaturalizar as práticas de
esforço, apela-se para o asséptico e inalcançável controle que são familiares e que são adotadas
“dever ser” prescrito no texto legal, em detrimento sem muita reflexão. A negociação oficiosa, o
do que de fato “é”, que abarca a complexidade das encarceramento em massa e a morte, que são
situações concretas cotidianas (GEERTZ, 2002). características presentes na forma de controle
Essa orientação puramente repressiva retira no Brasil, são frutos de (des)caminhos seguidos
qualquer responsabilidade do aparato estatal, pelos governos, decisões políticas que provocam
que só reage para punir os infratores, vistos como consequências no cotidiano das pessoas. Não
os verdadeiros responsáveis pelo tráfico e pelos queremos dizer que a formulação de políticas
usos problemáticos. públicas seja um processo coerente e racional.
Contudo, considerando a extensa literatura Pelo contrário, são ambíguas e resultado de
acadêmica, não só nas Ciências Sociais, mas em muita negociação (SOUZA LIMA, CASTRO,
diversas áreas do conhecimento já realizada em 2015;GONÇALVES, 2008). Porém, analisando
diferentes países sobre as drogas, a importância as políticas de drogas no Brasil, fica nítido que
do setting, do contexto local é tão fundamental a orientação para a repressão, concentrando as
para compreender as práticas de uso quanto soluções no Direito Penal, é a tendência mais
para as formas de se lidar com essas práticas. O presente em nossas políticas desde a Constituição
conhecimento acadêmico, portanto, não se limita de 1988 (CAMPOS, 2010). Não há respostas
à abordagem relativizadora somente interessada simples e fáceis, mas prender mais e matar mais
em explicitar os sentidos conferidos ao uso pelos não precisa ser a única “solução”.
usuários, mas também de trazer à tona aspectos
históricos, políticos e culturais que informam as O mito da epidemia do uso de drogas no
práticas de controle sobre o uso. Brasil
Um exemplo bem conhecido é o da maconha.
De alguns anos para cá, o status legal da maconha Independente das preferências político-
está sendo revisto no Brasil, deixando para trás partidárias, é inegável o fato de que as redes
a conotação negativa de uma “droga” para uma virtuais, nos últimos anos, passaram a
positiva como “remédio”. Em 2015 o CBD e no desempenhar um papel importante na formação
ano seguinte o THC, que são os dois canabinóides da opinião pública. A eleição de Trump e
mais pesquisados da planta, foram reclassificados Bolsonaro e o Brexit são só alguns exemplos
e saíram da categoria de substâncias proscritas recentes do poder das mídias sociais no mundo
pela Anvisa. Além do uso da planta ser permitido contemporâneo. Esses resultados surpreenderam
em condições especiais, de “uso compassivo”, a grande parte dos analistas, já que não apareciam
pesquisa e a circulação dos dois canabinóides no nas pesquisas entre os favoritos. Além disso,
país foi facilitada. (POLICARPO, FIGUEIREDO, a surpresa também se deve a maneira pela
VERÍSSIMO, 2017). qual as tecnologias digitais foram utilizadas,
Em outros países, como mostramos acima, muito mais para disseminar opiniões e notícias
há vários exemplos de modelos de controle. falsas do que informações verídicas e seguras.
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As chamadas fakenews, notícias com ampla vingança dos negros pela escravidão imposta
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circulação e apelo imagético e não factível, não pelos brancos (SAAD, 2019;MACRAE e ALVES,
foram levadas à sério, mas tiveram um impacto 2016). Já a cocaína, inicialmente associada à um
fundamental na eleição presidencial e parecem “vício elegante” e “moderno” (RESENDE, 2006)
que continuam surtindo efeitos, como aponta a vislumbrado pela elite nacional do fim de século
atual investigação no Supremo Tribunal Federal XIX, perde o glamour durante o século XX
sobre as fakenews. Não nos interessa discutir esse quando passa a ser comercializada e consumida
assunto de maneira aprofundada, mas queremos por setores populares. Quando transformada
destacar que um desses efeitos da fakenews, que é em sua versão fumada, o crack, a cocaína vira
a sistemática suspeição sobre os dados científicos, o símbolo da desgraça, associada à doença e ao
especialmente no caso das políticas de drogas. crime.
Nos dias atuais, as chamadas drogas carregam Contudo, as pesquisas acadêmicas e
dois sentidos bem distintos: existem as drogas científicas brasileiras estavam entrando em cena
consideradas lícitas que passam pelo tabaco, no debate público, desafiando estereótipos e
álcool e os medicamentos farmacêuticos. De problematizando as premissas sensacionalistas
outro lado, existem as drogas consideradas de manchetes de jornais. Os estudos pioneiros de
ilícitas – as tradicionais maconha e cocaína são Elisaldo Carlini, na área das ciências biológicas,
as mais consumidas, e cada vez mais as sintéticas e de Gilberto Velho, na área de ciências
–, associadas ao universo do crime e controlado sociais, impulsionaram novas pesquisas sobre
por traficantes. drogas no país, com embasamento científico
O consumo das primeiras é infinitamente contemporâneo, a partir da década de 70.O
maior do que as segundas: cerca de um terço grupo liderado por Carlini, em colaboração
(33,5%) dos brasileiros declarou ter fumado com o grupo israelense liderado por Raphael
cigarro industrializado pelo menos uma vez na Mechoulam, contribuiu com as pesquisas sobre
vida e Mais da metade da população brasileira a maconha, que estão recebendo uma grande
de 12 a 65 anos declarou ter consumido bebida atenção atualmente devido às suas aplicações
alcóolica alguma vez na vida. Já as substâncias terapêuticas (MALCHER-LOPES, 2014), e as
consideradas ilícitas mais consumidas no Brasil pesquisas de Velho ajudaram a estabelecer uma
são a maconha: 7,7% dos brasileiros de 12 a 65 reflexão sociológica acerca dos usos de drogas
anos já a usaram ao menos uma vez na vida; e nas áreas urbanas (ALVES e PEREIRA, 2019;
em segundo lugar, a cocaína em pó: 3,1% dos ALVAREZ, FRAGA e CAMPOS, 2017).Desde
brasileiros já utilizaram ao menos uma vez na de então, foi possível notar um crescimento
vida (BASTOS et al, 2017). importante das pesquisas no país, criando um
Contudo, e talvez por isso mesmo, só os ambiente propício para o desenvolvimento de
consumidores das últimas ganham a alcunha de estudos científicos sobre esse tema, afastando as
“drogados”, acionada como categoria de acusação opiniões e a politização dos debates.
(VELHO, 2004). Assim, as drogas ganharam um Mas, com a forte tendência em colocar em
poder místico de ação, em um processo similar suspeição os dados científicos, que nos parece
ao que Misse (1999) apontou para “a violência”, uma característica do atual governo brasileiro,
deixando de ser somente um nome dado a certas a legitimidade e credibilidade da produção do
substâncias para ser um sujeito – “as drogas conhecimento acadêmico dos últimos 50 anos é
fazem mal”. colocada em dúvida. Análises bem fundamentas
No caso da maconha, esse imaginário foi sendo e com rigor científico acerca das drogas e seus
construído no Brasil pelos médicos no início do usos, bem como os próprios dados quantitativos
século XX, que apoiados no cientificismo racista sobre a circulação e o consumo de drogas são,
associaram o uso à degenerescência dos negros. simplesmente, desprezadas e desqualificadas.
Era urgente controlar o “vício”, visto como uma A polêmica envolvendo a divulgação do
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levantamento sobre uso de drogas realizado pela que a Fiocruz diz que não tem uma epidemia de
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Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em 2017é drogas, elas vão dar risada. É óbvio para a população
o exemplo mais contundente dessa suspeição que tem uma epidemia de drogas nas ruas. Eu andei
(BASTOS et.al, 2017). nas ruas de Copacabana, e estavam vazias. Se isso
A Fiocruz ganhou uma concorrência não é uma epidemia de violência que tem a ver com
pública lançada em 2014 pela Secretaria as drogas, eu não entendo mais nada. Temos que
Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), do nos basear em evidências.
Ministério da Justiça e Segurança Pública, para
a realização do 3° Levantamento Nacional sobre É importante pontuar que em nenhum
o Uso de Drogas pela População Brasileira11. O momento a Fiocruz entrou na polêmica sobre
levantamento foi feito entre maio e outubro de uma possível epidemia, ou não, de drogas.
2015, quando pesquisadores entrevistaram cerca Em nota pública13, defendeu a competência
de 17 mil pessoas com idades entre 12 e 65 anos, dos pesquisadores envolvidos e o resultado.
em todo o Brasil, com o objetivo de estimar e O problema do governo foram os dados. Os
avaliar os parâmetros epidemiológicos do uso dados mais alarmantes não foram do consumo
de drogas. Considerado o mais abrangente de maconha, cocaína em pó e crack, mas do uso
estudo epidemiológico sobre drogas no país, o não prescrito dos analgésicos opiáceos e dos
3º Levantamento ficou pronto no final de 2017. tranquilizantes benzodiazepínicos, apontando
Porém, e aqui começam as suspeições e tentativas para um padrão preocupante, e do consumo de
de desqualificação científica, o governo proibiu bebida alcóolica, que é alto e associado, direta
sua divulgação. e indiretamente, pela Organização Mundial de
Inicialmente, o governo acusou a Fiocruz de Saúde à danos de saúde que provocam morte14.
não respeitar as exigências do edital, em seguida Com a desaprovação do governo, a Presidência
colocou em questão a confiabilidade dos dados. da Fiocruz se viu obrigada a acionar a Câmara
O ponto central parecia ser que o levantamento de Conciliação e Arbitragem da Administração
não apoiava a ideia defendida pelo governo Federal (CGU/AGU), para intermediar esse
de que há uma “epidemia” de drogas no Brasil. conflito. Só em agosto de 2019, passados quase
Depois de muita especulação e de um crescente dois anos da conclusão, a Fiocruz conseguiu um
apoio público à Fiocruz, o então ministro da acordo para a divulgação da pesquisa15.
Cidadania, Osmar Terra, a voz no governo mais Esse exemplo, nos parece, indica uma
contrária à divulgação da pesquisa, deixou clara tendência do atual governo em não só ignorar,
que era essa mesma a discordância. Durante uma mas também desqualificar, os dados científicos
entrevista ao jornal O Globo12, ele fez a seguinte que poderiam ser utilizados como insumos para a
declaração durante: elaboração de políticas públicas sobre drogas. Saí
a ciência, entra a opinião. Assim, os parâmetros e
Eu não confio nas pesquisas da Fiocruz. Se tu falares critérios para a avaliação das políticas de drogas
para as mães desses meninos drogados pelo Brasil no país se tornam etéreos, podendo sempre
11 O 3° Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira (2017) foi coordenado pela Fundação
Oswaldo Cruz (Fiocruz) e contou com a parceria como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Instituto
Nacional de Câncer (Inca) e a Universidade de Princeton, nos EUA.
12 “Ministro ataca Fiocruz e diz que ‘não confia’ em estudo sobre drogas, engavetado pelo governo”, em: https://
oglobo.globo.com/sociedade/ministro-ataca-fiocruz-diz-que-nao-confia-em-estudo-sobre-drogas-engavetado-pelo-
governo-23696922
13 “Fiocruz assegura qualidade de pesquisa nacional sobre drogas”, em: https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocruz-assegura-
qualidade-de-pesquisa-nacional-sobre-drogas-0
14 “Pesquisa revela dados sobre o consumo de drogas no Brasil”, em: https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-revela-
dados-sobre-o-consumo-de-drogas-no-brasil
15 A consulta pode ser feita no Repositório Institucional da Fiocruz: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/34614
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se moldarem aos argumentos e justificativas os anos de 2004 a 2009 e com base em algumas
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particulares, baseados em um passeio pelas ruas variáveis sociais de desigualdade (gênero, idade,
de Copacabana. escolaridade e ocupação) observou que a grande
Nosso argumento aqui é que essa forma massa de criminalizados por drogas na capital
do estado brasileiro lidar com as questões paulista são homens (75%), solteiros (85%),
relacionadas às drogas está apoiada em um que possuem até 30 anos (70%), tendo como
modus operandi peculiar da justiça brasileira, escolaridade até o ensino fundamental (73%).
que também nos ajuda a compreender os dados Quanto à ocupação 52% dos incriminados estão
acerca da criminalização das drogas. relacionados a profissões de pouca escolaridade
e, pior ainda, 20% são desempregados. Quanto
“Quem me condena, não se lembra do à quantidade de drogas na cidade de São Paulo,
amanhã”16: sobre critérios objetivos para a temos que 50,7% (405 de um total de 799 casos18)
descriminalização do uso de drogas portavam consigo no máximo até 7 gramas
para todos os tipos de drogas recorrentes nos
O nosso ponto é, portanto, que a atual lei de registros (crack, cocaína e maconha). Cabe ainda
drogas prende e muito – cerca de 30% de toda a ressalva de que muitos desses registros das
população carcerária brasileira é criminalizada ocorrências não continham informações sobre a
por infrações relacionadas às drogas (DEPEN, quantidade efetiva de drogas em posse da pessoa
2016) – e, ao mesmo tempo, apreende-se muita criminalizada (CAMPOS, 2019).
pouca quantidade de drogas em possedas pessoas Já no Rio de Janeiro o relatório do Instituto
nas ruas. de Segurança Pública apontou que a maioria das
Esse processo não é somente um apreensões ocorreu em torno de 10 a 15 gramas –
“encarceramento em massa da pobreza”, a maior parte da droga no Estado criminalizada.
nem restrito tão somente a uma cidade do Se o Brasil seguisse os exemplos de Portugal
país (CAMPOS, 2019; POLICARPO, 2018, ou Espanha (25 e 100 gramas de maconha são
RODRIGUES e FRAGA, 2020), mas sim é a forma utilizados como parâmetros) haveria algo como
principal como a justiça brasileira faz coexistir 60% e 80% de casos registrados no Rio como
lógicas hierarquizantes e universalizantes de posse. O relatório ainda assinala que os registros
cidadania na aplicação da lei (KANT DE LIMA, de tráfico são os mais comuns no Rio, somando
1999). No caso da lei de drogas no Brasil pode-se entre 44% e 52% do total de ocorrências entre
afirmar, dessa forma, que o seu principal efeito 2008 e 2015, já que, o número de registros de
foi ter gerado como fenômeno social e político ocorrência chegou a 28.000 em 2015. Por fim, em
a intensificação massiva de homens e mulheres 50% das ocorrências em 2015 apreendeu-se até
presos por tráfico de drogas. E que negros são 10 gramas de maconha, a droga mais comum nas
mais condenados por tráfico e com menos apreensões no Rio de Janeiro19.
drogas, caso recente de São Paulo17. Por último, citamos a pesquisa da Associação
A análise com 1256 indivíduos incriminados Brasileira de Jurometria que ocorrências
por drogas pela polícia em São Paulo nos distritos registradas pela Secretaria da Segurança Pública
policiais de Santa Cecília e Itaquera, durante do Estado de São Paulo de 2012 a 2017. A
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pesquisa conclui com 1g comumente as pessoas incriminação no flagrante forem à quantidade
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são classificadas como usuárias. Quando alguém de dinheiro em espécie, ter celular em posse,
é pego com 23g, as chances de ser classificado estar em “atitude suspeita” (MARQUES, 2016)
como usuário ou traficante são iguais. E, a ou ainda o tipo de acondicionamento da droga
partir de 200g, as apreensões são mais raras e a pouco ou nada será modificado em termos da
classificação como traficante é dominante20. incriminação de homens e mulheres pobres,
Essas pesquisas científicas nos colocam a usuários de drogas das grandes e pequenas
problematização dos critérios objetivos para cidades do país.
ser definido o que é um traficante e o que é um Também entendemos que seria necessário
usuário. Como a própria lei de drogas de 2006 a exclusão do termo “circunstâncias sociais e
não estabeleceu nenhum critério para essa pessoais do agente” não somente no artigo 28,
diferenciação (Art. 28 § 2o Para determinar mas os diferentes verbos do artigo 33 (trazer
se a droga destinava-se a consumo pessoal, consigo, guardar) que levam a caracterizar
o juiz atenderá à natureza e à quantidade da condutas relacionadas ao uso como tráfico.
substância apreendida, ao local e às condições O que, por conseguinte, retifica as práticas
em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias atuais e arbitrárias em torno da atual lei de
sociais e pessoais, bem como à conduta e aos drogas mantendo o crescimento do número de
antecedentes do agente) os autores desse artigo pessoas encarceradas no Brasil por drogas. E não
entendem que a própria discussão dos critérios deslocando estes para a rede de tratamento de
deve ser problematizada. Em concordância com saúde pública.
a nota feita pela Plataforma Brasileira Política
de Drogas, salientamos que “Considerando a Prender e morrer: drogas, suspeição e
voracidade e a seletividade das polícias e do execuções
sistema penal brasileiro, o estabe¬lecimento de
critérios objetivos e/ou quantidades de drogas Muita coisa no Brasil mudou de 2011 para
não acarretaria, por si só, impactos significativos 2020. Uma delas tem assustado boa parte da
no crescente encarceramento de segmentos população brasileira, especialmente os moradores
populacionais vulneráveis, notadamente os de comunidades e favelas das grandes cidades:
jovens pobres e negros.” (PBPD, 2016). o extermínio cada vez mais explícito dos seus
Ora, somente a adoção de critérios moradores. Foram 80 tiros em um pai de família;
amplos em termos de quantidade e a exclusão a execução de um professor de jiu-jitsu no
definitiva dos critérios hierárquicos, subjetivos Complexo do Alemão. A justificativa “bandido/
e discricionários é que poderiam ser endossados traficante” tem aparecido constantemente para
como a legitimidade da adoção de critérios que “justificar” o extermínio das populações pobres
estabelecessem, para todas as drogas, parâmetros e periféricas. Em três anos, apenas 3,5% das
de quantidade de uso mediante o tipo de investigações do Ministério Público do Rio de
substância e permitida para a posse de drogas, Janeiro (MPRJ) sobre mortes em operações
tornando-a uma infração administrativa. Aliás, policiais chegaram à Justiça. Desde que o grupo
o termo “pequena quantidade” já era presente foi criado, em janeiro de 2016, o Grupo de
nos projetos de lei que originaram a lei 11.343 Atualização Especializada em Segurança Pública
de 2006 na tramitação no Congresso Nacional. (Gaesp) abriu 1.379 investigações e somente
Dito de outra forma: enquanto os critérios de 49 viraram denúncias e foram encaminhadas à
20 O Estado de São Paulo. 30/03/2019. Matéria: Marco Antonio Carvalho. Disponível em: https://www.estadao.com.br/
infograficos/cidades,sem-lei-que-cite-quantidades-policia-da-destinos-diversos-a-flagrados-com-droga,977293. Acesso
no dia 05/04/2019.
21 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/05/16/em-3-anos-mprj-so-consegue-denunciar-35percent-dos-
casos-de-morte-em-operacoes-policiais.ghtml
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Justiça21. De acordo com os dados do Instituto de BECKER, Howard S.Outsiders: Estudos de
TEORIA E CULTURA
Segurança Pública (ISP/RJ) o primeiro trimestre sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
de 2019 bateu o recorde histórico, desde 1998: a
polícia matou 434 pessoas em confronto; no ano BOITEUX, Luciana; CASTILHO, Ela;
passado, foram 368 mortes no mesmo período, VARGAS, Beatriz; BATISTA, Vanessa; PRADO,
de janeiro a março. Soma-se a isto a extinção Geraldo; JAPIASSU, Carlos Eduardo. Tráfico de
da Secretaria de Segurança Pública do Rio de drogas e constituição: um estudo jurídico-social
Janeiro (Seseg). do tipo do art. 33 da Lei de Drogas diante dos
Enquanto a categoria “drogado” for acionada princípios constitucionais-penais. Rio de Janeiro/
para essa guerra lucrativa e proibicionista que Brasília: Universidade Federal do Rio de Janeiro/
estamos assistindo nós entendemos que embora Universidade de Brasília, 2009.
a adoção de critérios objetivos seja importante,
esta não deve restringir-se à uma mera distinção CAMPOS, M. S.; ALVAREZ, M.C. Pela
jurídica entre traficantes e usuários. Distinções metade: implicações do dispositivo médico-
estas que baseadas no saber jurídico-penal, quase criminal daNova Lei de Drogas na cidade de São
sempre levam a procurar “traficantes” e a morrer Paulo. Tempo Social, v. 29, n.2,2017, p. 45-74.
seres humanos como Rafael, Evaldo Rosa, Jean
Rodrigo, Miguel. Afinal, cadê o Amarildo? CAMPOS, Marcelo da Silveira.Crime e
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Resumo
Este artigo objetiva analisar discursos sobre a maconha em material jornalístico da imprensa brasileira
entre os anos de 1910 a 1949. Avaliando 174 notícias de 12 jornais, o trabalho afirma que foi se
consolidando a construção de práticas discursivas que legitimam a relação entre drogas e crimes,
com o aumento das notícias policiais e, consequentemente, dando espaço para a consolidação de um
discurso policial sobre a maconha.
Discourses on marijuana in the Brazilian press in the first half of the 20th century
Abstract
This article aims to analyze speeches about marijuana in journalistic news from the Brazilian
press between 1910 and 1949. Evaluating 174 news from 12 newspapers, the text analyzes that the
construction of discursive practices that legitimize the relationship between drugs and crimes has been
consolidated, with the increase in police news and, consequently, consolidating the dissemination of
police knowledge about marijuana.
Keywords: Transcendental realism; critical naturalism; philosophy of the natural sciences; philosophy
of the social sciences; stratified ontology
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Introdução Entretanto, o debate sobre as propriedades
TEORIA E CULTURA
da planta não oculta o que está em jogo, ou seja, as
Nos últimos anos, foram produzidas relações sociais, o controle de condutas, os móbeis
importante historiografia e relevantes pesquisas morais e as decisões institucionais. Compreender
no campo das Ciências Sociais no Brasil sobre as as relações dos efeitos psicoativo das substâncias
origens, os hábitos e a cultura do uso da maconha, e suas implicações sociais é determinante para o
assim como, sobre a gênese da repressão na reconhecimento dos avanços das lutas políticas
utilização de cannabis (CARNEIRO, 2005; SAAD, em torno de mudanças no conjunto de práticas que
2013; FRANÇA, 2015; MACRAE E SIMÕES, convencionamos classificar de proibicionismo. O
2000 VIDAL, 2008). A esses estudos somaram- principal objetivo da nomeada guerra às drogas
se, ainda, intenso interesse de investigações parece não ser proscrever substâncias, seus
nas Ciências Humanas sobre as propriedades recursos e esforços voltam-se a acossar hábitos
medicinais da planta (FRAGA, 2016), o cultivo culturais e perseguir grupos étnicos, de gênero
extensivo e indoor da cannabis (FRAGA, 2006; e classes sociais (FRAGA, 2019). No entanto,
FRAGA, 2019; VERÍSSIMO, 2018; CASTRO, convém, atentarmos que os efeitos psicoativos
2019), o uso tradicional e religioso (GERBER, são elementos diferenciais na análise da política
2019), as iniciativas legislativas para regulação de banimento (FRAGA, SILVA E MARTINS,
(CAMPOS, 2019), entre outros temas que 2017).
colocaram os estudos sobre maconha em Este artigo busca, portanto, contribuir
evidência na produção acadêmica nacional. para o debate presente das implicações da
Esse esforço determinou, não obstante, proibição da maconha e seus efeitos sobre
um rico campo de debates, colaborando para a indivíduos, grupos e populações. Pretende-
discussão sobre o ativismo (BRANDÃO, 2014; se compreender os discursos existentes sobre
POLIARPO, 2019), as interações entre atores a maconha na imprensa do início do Século
públicos e privados e a crescente demanda para XX no Brasil e argumentar que, a partir dos
a descriminalização da venda e do uso da erva anos 1940, há uma maior presença das práticas
(FRAGA, 2014), assim como a reação de grupos policiais como produtora de uma verdade sobre a
políticos e de interesse que resistem a qualquer maconha. Apesar do discurso médico continuar
mudança do atual estado de tratamento legal da moldando o conhecimento sobre a planta, no
maconha. sentido da produção de uma subjetividade.
Os estudos acadêmicos sobre a maconha Apesar de utilizar fontes históricas
ou cannabis refletem, por um lado, a luta e se remeter a estágios institucionais de um
política pelas mudanças do legado ideológico do tempo passado, o objetivo é compreender ecos
tratamento dispensado à substância e do estigma e continuidades de práticas sociais no tempo
a que foram submetidos seus usuários (FRAGA, presente. Não há pretensões historiográficas,
2011) e, por outo lado, a entrada em cena de novos no seu sentido metodológico ou teórico. O
atores demandando pelo acesso às propriedades objetivo é mais analítico que arquivístico, pois
terapêuticas da planta (POLICARPO, 2019; pretende-se enfocar os elementos sociológicos
BRANDÃO, 2014). Está em disputa uma intensa das condições históricas de existência, dos quais
politização e lutas sociais que envolve o campo são dependentes as práticas contemporâneas
da segurança pública, da saúde pública, a disputa e motivados pela intenção de buscar rastrear
legal e os direitos humanos. elementos que compreendem as ações atuais
O campo da saúde e a segurança pública, de instituições e atores individuais e coletivos
assim como o judiciário, foram fundamentais (GARLAND, 2001).
para a consolidação de discursos, conhecimento Vale ressaltar a importância das fontes
e produção de subjetividades acerca a das drogas primárias e documentais e, nesse particular,
em geral e da maconha, em particular. dos arquivos e das instituições de custódia
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de documentação, para a produção de tempo e a ideias correntes, seja por refletirem os
TEORIA E CULTURA
conhecimento nas Ciências Humanas. Segundo temas a serem agendados em órgãos de imprensa,
Delmas (2010), eles podem apresentar quatro evidenciados em um determinado período
elementos que explicam a existência de arquivos peculiar prioridades temáticas (CAPELATTO,
e seus desdobramentos: a prova, a lembrança, a 1980; ROCHE, 1996; McCOMBS; SHAW,
compreensão e a identificação. Se a prova estaria 2000). Não obstante, os periódicos e fontes
diretamente associada aos princípios jurídicos de informações jornalísticas são, igualmente,
como recurso de construção de uma verdade percebidos como atores políticos e sociais, por
jurídica, na acepção da garantia de direitos, a registrarem e debaterem questões e assuntos sobre
lembrança vincula-se aos elementos específicos os quais têm posicionamentos ideológicos e por
da construção do cotidiano de uma determinada produzirem enfoques específicos (DARNTON;
pessoa ou de uma instituição. Entretanto, ROCHE, 1996; de CAMPOS, 2012).
a compreensão seria a base da produção do Esse artigo é proveniente de uma
conhecimento, em que subsidie as pesquisas e pesquisa mais ampla que objetivou compreender
os movimentos dos discursos de cada tempo. a dinâmica do plantio de cannabis no Brasil.
Segundo Le Goff , “o documento não é qualquer Para alcançar os objetivos elencados aqui, foi
coisa que fica por conta do passado, é um produto realizada uma busca na hemeroteca digital da
da sociedade que o fabricou segundo as relações Biblioteca Nacional, na coleção de periódicos,
de forças que aí detinham o poder” (LE GOFF, utilizando algumas palavras-chave para localizar
2003, p. 535-536). E, por fim, a identificação revela
matérias jornalísticas. Como o interesse inicial
a construção das representações registradas nos da pesquisa era identificar como os periódicos
documentos, revelando ações das relações sociais da primeira metade do Século XX abordavam
inscritas, sobretudo do ponto de vista moral. a maconha em suas matérias e reportagens,
Portanto, a função da compreensão e a foram empregadas as palavras cannabis, diamba,
identificação é assumida nesse trabalho como liamba, fumo de negro, pito de pango, maconha,
dispositivo importante na leitura das matérias cânhamo e daga, por corresponderem à tipologia
jornalísticas da primeira metade do Séc. XX, para de denominações da planta ou de seus produtos
buscar descortinar uma memória social sobre a no período pesquisado. Elegeu-se o período de
maconha no Brasil. 1910-1949, correspondendo à primeira metade
O artigo consiste em um estudo do Século XX. Para o referido período, foram
exploratório e vai de encontro aos limites encontradas 186 matérias das fontes disponíveis.
de fontes e arquivos disponíveis ou que foi Desse total 11 matérias não estavam relacionadas
possível identificar com a metodologia aplicada. ao Brasil, mas a cinco outros países, a saber,
No entanto, pretende contribuir com o rico México, Estados Unidos da América, Colômbia e
debate acadêmico existente sobre estigmas aos Chile. Eliminadas essas reportagens, organizou-
quais foram submetidas a maconha, enquanto se um banco de dados com 176 matérias
substância, notadamente os seus efeitos jornalísticas que foram classificadas por tipo,
psicoativos - alvo de intensas especulações ano de publicação, local de publicação, título do
e escassos estudos ao longo do Século XX -, jornal, título da matéria e conteúdo.
seus utilizadores e as implicações das ações de Foi realizada uma análise descritiva do
interdição no tempo presente. conteúdo das matérias, buscando avaliar aspectos
sociais, a produção de verdades e consolidação
Metodologia de conceitos, suas relações com outras narrativas
produzidas por atores chaves do campo de
Os jornais são considerados importantes produção de conhecimento sobre o tema.
fontes das pesquisas histórica e sociológica, seja A pesquisa contou com apoio do CNPq,
por compreender narrativas que se remetem a um que disponibilizou bolsas de iniciação científica
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e da Universidade Federal de Juiz de Fora no material recolhido. A primeira diz respeito ao
TEORIA E CULTURA
âmbito do Programa BIC. período referente do decênio 1900-1909. Embora,
inicialmente, a pesquisa visasse abranger a
As Matérias jornalísticas primeira metade do Século XX, eliminou-se a
primeira década, pois os registros estavam em
Um primeiro aspecto a se destacar refere- condições muito ruins para consulta e análise.
se à própria fonte da pesquisa. A Hemeroteca Assim, foram utilizados exemplares de jornais de
Digital da Biblioteca Nacional possui um rico 1910 a 1949, abrangendo 40 anos.
arquivo de fontes jornalísticas brasileiras. Há Em relação aos periódicos e matérias
nesse acervo exemplares de jornais de todos em que foram encontradas referências a uma
os estados brasileiros, cuja cobertura temporal das palavras-chave utilizadas, contabilizaram-
abrange, praticamente, a história da imprensa se 175 matérias jornalísticas, distribuídas em
no Brasil, remetendo-se a períodos anteriores 12 jornais, conforme a tabela 1. A pesquisa
ao Século XX. Entretanto, a disponibilidade de original inclui, também, a década de 19504, mas,
exemplares varia, havendo importantes hiatos como já referido, as matérias analisadas nesse
de unidades em coleções específicas. Assim artigo não contemplam esse período. Todavia,
como, em alguns jornais, as coleções iniciam- destaca-se, no referido decênio, o número de
se em datas que não correspondem ao início da matérias encontradas (204) ser superior à soma
circulação do mesmo. Além disso, há exemplares das matérias encontradas no período aqui
em que o conteúdo se apresenta muito precário analisado, parecendo denotar maior cobertura
em seu estado de conservação, o que denotou, da imprensa sobre a pauta da maconha ou maior
mesmo sendo identificada uma das palavras disponibilidade de jornais a serem pesquisados.
utilizadas para a busca, que o seu conteúdo não Em relação à distribuição das matérias
poder ser aproveitado devido à não compreensão por décadas, 11 matérias (6,2%) foram localizadas
da matéria. entre os anos 1910/1919, outras 18 matérias
Essas considerações iniciais buscam (10,3%) referiam-se aos anos 1920/1929,
explicar algumas carências e ausências no enquanto 9 matérias (5,2%) estão no decênio
Tabela 1 - Número de matérias por jornais/estado da federação
Título do Jornal Estado Frequência
Pacotilha Maranhão 27
O Jornal Maranhão 4
Correio São Paulo 1
Paulistano
O Imparcial Rio de Janeiro 1
A Federação Rio de Janeiro 5
A Noite Rio de Janeiro 55
Diário da Noite Rio de Janeiro 40
A Manhã Rio de Janeiro 14
Correio da Rio de Janeiro 8
Manhã
Diário Carioca Rio de Janeiro 9
Jornal de Rio de Janeiro 6
Notícias
Gazeta de Rio de Janeiro 5
Notícias
Total 175
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1930/1039 e 137 (78,3) localizam-se entre os anos notadamente como uma medida de controle de
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ocorrida no dia anterior na cidade de São Paulo. Wilson Coelho de Souza descreve problemas
TEORIA E CULTURA
Entre as comunicações importantes destacadas encontrados nas lavouras maranhenses. Como
na cobertura jornalística do evento encontra-se principal dificuldade, o autor da reportagem
uma conferência com menção à diamba. O trecho descreve a sífilis, que, segundo sua narrativa, pela
alude à apresentação oral de um congressista, falta de instrução, ignorância e superstições acaba
mencionando a região Norte do Brasil5 como o por levar à morte muitos operários rurais. Pelo
local de origem da planta no país. A diamba é, mesmo motivo alegado, ou seja, pela estupidez,
ainda, tratada no material como variedade da o escritor expõe o vício do álcool e da diamba
Cannabis Sativa. com grande preocupação, já que, segundo a
Conteúdo a se referir a outro Estado da reportagem, a aliança das duas substâncias estaria
Federação, distinto de seu local de sede, é a do ocasionando alto número de suicídios. Para o
jornal O Imparcial, do Rio de Janeiro, na sua autor da matéria, a diamba era mais comum nas
edição A0132, de 1919, cujo título é “O ópio lavouras e regiões praianas, atingindo “diversas
Brasileiro”. Em matéria opinativa, afirma-se que a ordens sociais” devido à sua alta possibilidade de
“diamba” é o “consolo da miséria”. Alerta para os lucro. A reportagem termina direcionando esses
perigos que a diamba pode causar a seus usuários, problemas como uma questão a ser resolvida pelo
alegando que seu uso e plantio é maior no Norte que classifica de “Profilaxia Rural”, no sentido da
do Brasil, principalmente, no Maranhão. A maior repressão ao uso, venda e plantio.
matéria afirma ser a planta violentamente tóxica, No mesmo periódico maranhense, em
com capacidade de tirar o raciocínio de quem sua edição 03146, já na década de 1920, do ano
a consome, trazendo malefícios ao rendimento de 1922, em um conteúdo jornalístico intitulada
do trabalhador sertanejo. Dessa forma, a droga Diamba e Diambista, há detalhes sobre o cultivo
traria um problema também à economia, pois da planta, o circuito de venda da erva, seus
a capacidade de trabalho torna-se diminuta. respectivos lucros e o perfil de seus principais
A reportagem alerta ainda sobre o prejuízo da consumidores em São Luís. A reportagem destaca
droga à saúde. os pescadores como categoria laboral de maior
A narrativa de periódicos dos decênios de público consumidor. Segundo a reportagem, esse
1910 e 1920 relaciona diretamente os hábitos de hábito entre os trabalhadores acarretava grandes
consumo da droga com os esstados nordestinos. riscos pessoais e para outras pessoas, pois, após
Alguns estudos já haviam feitos referência a este embriagados pela diamba, guiavam seus barcos
fato (MACRAE; SIMÕES, 2003; CARLINI, 2006). sob os efeitos alucinógenos da erva, tendo como
Mesmo em matérias jornalísticas de periódicos consequência diversos acidentes e até mesmo
de outros estados, há uma vinculação direta da grande número de naufrágios. A reportagem
planta com a região. esclarece que as leis impostas pelas câmaras
Nos anos 1920/1930, encontram-se municipais que proíbem o cultivo da diamba
matérias com claras preocupações dos possíveis não eram medidas suficientes para coibir os
malefícios da maconha sobre a produção dos problemas causados pela erva. Assim, a matéria
trabalhadores. Essa foi uma apreensão recorrente fazia um apelo mais intenso aos congressistas
nesse período. A preocupação com a disciplina pela proibição do cultivo da droga.
da força de trabalho era expressa nos assuntos Há, ainda, nesse período, cobertura de
jornalísticos. A matéria do jornal Pacotilha, iniciativas patronais ou de governos com estudos
em sua edição 00112, de 1919, o jornalista ou observações que alertam para a influência
5 O Brasil teve ao longo do Século XX distintas classificações de distribuição de seus estados em regiões que foram
estabelecidas em 1913 (Setentrional. Norte Oriental, Central, Oriental e Meridional), 1938 (Norte, Nordeste, Centro, Este
e Sul), 1942 (Norte, Nordeste ocidental, Nordeste Oriental, Centro-Oeste, Leste Setentrional, Leste Meridional e Sul) e
1969 (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste). Nesse artigo utilizamos a classificação de cada período, respeitando
a descrição das matérias jornalísticas.
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que o uso da diamba exerce sobre trabalhadores, a uma grande apreensão de maconha em um
TEORIA E CULTURA
solicitando punições àqueles que fazem uso da vapor, cujo condutor fora preso, em Maceió.
substância. A manchete “Um bom começo”, do A matéria continua concentrando-se na
jornal Pacotilha, de 1918, relata a assembleia questão do significado da própria maconha e
de inauguração da Sociedade Maranhense de suas propriedades. A reportagem se refere à
Agricultura. Entre as pautas discutidas, levanta- maconha como ótimo meio para cura de diversas
se a questão dos operários rurais. São realizadas moléstias, mas alerta para os problemas que
rigorosas críticas sobre os trabalhadores que gera, classificando-os como infernal. Denomina
se entregam ao álcool e à diamba, às péssimas a maconha como erva do sonho, diz ser futura
condições higiênicas e à jogatina. Além disso, substituta da cocaína. A reportagem continua
um palestrante, de nome Dr. Urbano Santos, atribuindo outros adjetivos à erva, tais como
continua a caracterizar o que classifica como “veneno verde” e “ópio nacional”. Outro enfoque
“pobre gente” e “classe vagabunda e insubmissa”, da reportagem é a disseminação da droga
apresentando como solução a criação de “colônias por conta da curiosidade até mesmo da elite
agrícolas e correcionais” a fim de disciplinar os carioca, porém a polícia já havia se prontificado
trabalhadores. para o combate dessa rápida disseminação. A
Essas três matérias citadas acima são reportagem termina com a seguinte questão:
ilustrativas da construção de uma narrativa “Que tal o nacionalismo do veneno?”
de aliar a maconha com problemas referentes O jornal A Federação, em sua edição 0064
ao desenvolvimento de atividades laborais e, de 1936, destaca em sua matéria “O governo de
consequentemente, da sua produção. Os jornais Alagoas resolveu proibir o cultivo da maconha,
parecem buscar edificar um discurso fortemente entorpecente nacional, a pedido da polícia
aliado com os interesses governamentais e de carioca”, que a maconha estaria dominando a
grupos patronais, elegendo a maconha como uma boemia elegante e suspeita do Rio. Além disso,
das responsáveis dos problemas de saúde da classe a polícia afirma que a droga estaria substituindo
trabalhadora. Em nenhuma dessas reportagens a cocaína no Brasil. Por isso, o pedido para o
discute-se as condições de trabalho, o número de Governo de Alagoas enfrentar de forma mais
horas trabalhadas e outros problemas advindos veemente o problema no Estado, culminando
da própria exploração do trabalho. com uma medida governamental de proibição à
Os jornais do período 1910/1930 droga no seu território.
constroem parte de sua narrativa sobre a planta Até o final dos anos 1920, não são raras
com preocupações claras da necessidade de as matérias opinativas, artigos e entrevistas com
criar mecanismos legais e disciplinadores para informações de associações médicas, referências
evitar a proliferação do uso da maconha e seus científicas e uma preocupação maior em difundir
efeitos maléficos sobre o setor produtivo e para informações sobre a planta. Nesse período, não
setores sociais até então não identificado com a obstante o número de matérias encontradas
utilização da droga. Duas reportagens dos anos não ser tão abundante, há relativa proporção
1920, também, destacam que o hábito de pitar a de matérias policiais e reportagens de cunho
droga estava deixando e ser algo restrito às classes informativo. Deixa-se transparecer o objetivo
populares e contaminando a elite do Distrito de dar maiores informações aprofundada aos
Federal. leitores,. O discurso médico ganha evidência e
A primeira é de 1930, cujo título legitimidade acerca das propriedades da planta
era “Ópio Nacional”, publicada no jornal A nos periódicos.
Federação, do Rio de Janeiro, na sua edição de
00163. A cobertura jornalística inicialmente Tipologia de matérias e a predominância das
refere-se à outra matéria publicada em sua reportagens policiais
edição 00161, na qual o conteúdo diria respeito
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As reportagens do levantamento foram como “bom moço”, quando em estado normal,
TEORIA E CULTURA
qualificadas em quatro categorias, segundo porém quando sob o efeito de embriaguez da
as suas características e objetivos. Designou- diamba e a cachaça era levado a atos violentos. O
se policial matérias aludidas à atuação da rapaz foi levado ao posto policial após atirar uma
polícia na apreensão de algum material ou pedra em um dos homens sentados no bar em
efetuação de prisão de pessoa ou a algum que estava no momento da prisão.
crime relacionado com a droga. As matérias Muitas reportagens sobre prisões de
classificadas como informativas são aquelas homens por vender, fumar, comercializar
cujos objetivos eram esclarecer os leitores ou por serem acusados de práticas de outros
sobre tema específico. As críticas/artigos eram crimes, mas com referências ao uso da maconha,
aquelas de caráter opinativo, assinada por um contudo, são curtas, sem maiores detalhes sobre
jornalista ou especialista no tema e as entrevistas o acontecimento. Essa é uma realidade e uma
relacionavam-se à busca de informações a partir rotina na maioria dos jornais até os anos 1940. A
de um diálogo com perguntas e respostas em que partir dessa década, contudo, além do aumento
um jornalista obtém informações diretamente de das ocorrências policiais nos periódicos, há
outra pessoa, geralmente especialista em algum relatos de associação da maconha com outros
tema relacionado à droga ou profissional da crimes, assim como do aumento das matérias
saúde ou da segurança pública. A tabela 2 expõe sobre tráfico.
a distribuição das matérias nas quatro categorias, As reportagens progressivamente no
além daquelas não classificadas em nenhuma tempo vão utilizando adjetivos ou alcunhas para
delas. a erva que expressavam os axiomáticos malefícios
Tabela 2 - Tipos de matérias de suas propriedades, assim como buscavam
aumentar o estigma sobre a planta e aqueles que
Tipo de Matéria Frequência
tinham relação com ela. Em várias reportagens
Policial 121 são usados termos como “erva maldita”, “erva da
Informativa 37 morte”, “terrível erva tóxica”, “erva da decadência
Crítica/artigo 8 moral”, “planta assassina”, “erva diabólica” e
Entrevistas 3 “cigarro da morte”.
Não é incorreto afirmar que uma verdade
Outras 6
sobre a maconha, desde os anos 1930, amplia-se a
Total 175
partir de fontes produtoras de uma determinada
verdade, como aquelas advinda das polícias,
As matérias policiais representam 69% notadamente de informações recolhidas de
dos do total das informações, seguidas daquelas boletins de ocorrência nos principais veículos de
de cunho informativo com 21% do total. Os imprensa. Se é possível perceber, nas primeiras
jornais priorizavam estampar em suas páginas décadas do Século XX, um esforço dos periódicos
conteúdos associando a erva às práticas criminais. em utilizar informações médicas, a maioria delas
Parte das notícias deste tipo associavam, também, sem estudos mais aprofundados, para construir
a droga às ações de violência perpetradas por uma narrativa negativa da planta, o discurso
alguém envolvido em um tipo criminal não policial ganha destaque nas décadas seguintes,
necessariamente vinculado à venda, à posse, ao especialmente a partir dos anos 1940, associando
cultivo e ao uso. a droga com o crime. Dória (2016) foi um dos
O periódico carioca O Jornal, em sua primeiros a associar o uso da maconha com
edição 00490, de 1919, em reportagem intitulada crimes no país. Em seu famoso artigo, orienta
“Enfastiado da liberdade, “Cacaraí” volta à prisão” que aos crimes praticados durante a embriaguez
relata a prisão de um rapaz cujo codinome era pela diamba devem ser aplicadas as disposições
“Cacaraí”. Faz referência a um jovem, descrito penais relativas à embriaguez alcoólicas em um
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estado de loucura ou insônia (Dória, 2016). Rio de Janeiro, em sua edição 12787, em 1948
TEORIA E CULTURA
Detalhamento maior sobre a atuação com o título “Erva da morte”. O texto tem como
da polícia e evidência de preleções de policiais objetivo informar sobre as origens, os efeitos e os
envolvidos em apreensões da droga, ou na prisão perigos do ato de fumar a erva. Com a referência
de suspeitos, são cada vez mais sendo observados continuada da maconha como “Erva da Morte”,
em matérias jornalísticas ao longo da primeira há ao longo do documento a associação do “vício
metade do Século XX. Vai conformando-se, como causa de diversos crimes”. A narrativa alia
assim, derivados das técnicas policiais ou da visão ainda a venda da droga com a acumulação de
das polícias sobre a maconha, um determinado grandes lucros para aqueles que a comercializam.
conhecimento sobre o tema, estabelecendo-se As duas reportagens anteriormente
práticas discursivas sobre a droga. Revela-se, do referidas estão inseridas em um contexto histórico
ponto de vista da construção de sensibilidade, de maior envolvimento e ação dos governos
um obstáculo para representação das novas federal e estaduais na repressão à maconha.
subjetividades, pela disposição negativa em Nos anos 1940, chama a atenção o aumento do
relação à erva, pelos valores pejorativos atribuídos número de matérias sobre crimes relacionados à
às condutas e aos comportamentos e pelo não posse, ao uso, ao cultivo e à comercialização da
reconhecimento de práticas culturais, recreativas maconha e, também, a cobertura mais ampliada
e terapêuticas. Nessa disposição discursiva na da preocupação dos governos com o tema,
hermenêutica das drogas, as representações implementando medidas e orientações.
vão sendo consolidadas sobre estigmas em Há um registro jornalístico do periódico
relação aos atores envolvidos (MARTINS, 2014). A Noite, do Rio de Janeiro, em sua edição
As novas sensibilidades para a mudança de 12524, de 1947, cujo título é “Repressão no
subjetividade acerca da maconha, no Brasil, só âmbito nacional da maconha”, referindo-se a
irão se consolidar décadas mais tarde. um importante comunicado escrito pelo próprio
A relação que as matérias jornalísticas vão Presidente da República, Eurico Gaspar Dutra,
estabelecendo entre a maconha com a destruição em que o chefe da nação transmite as pretensões
moral e física dos indivíduos acentua-se, na do governo federal em intensificar a campanha
cobertura jornalística, a partir de 1928. Nesse nacional contra a maconha. O pronunciamento
sentido, o jornal Pacotilha, em sua edição 00123, é breve e ainda faz referência ao fato de haver
de 1929, traz um tópico, em que relata o suicídio campanhas contra a maconha há mais tempo no
por enforcamento de um homem, vulgarmente Rio de Janeiro, entretanto, essas iniciativas não
conhecido por Chico Corneta. Segundo o texto, teriam alcançado resultados satisfatórios, haja
o indivíduo era fumante de diamba e, por esse vista que o uso havia aumentado, pois alega que a
motivo, com o passar dos anos, “seu cérebro fora droga era oriunda do Norte do país. A estratégia,
atingido pela erva”. A reportagem termina com segundo o comunicado, é concentrar a repressão
o seguinte alerta: “sirva este exemplo para as e o combate nessa região. O presidente termina
pessoas que cultivam um vício tão perigoso”. a declaração dizendo que as investigações
Essa matéria é peculiar de muitas do tipo seriam intensificadas a fim de “extirpar esse mal
policial em que se mobilizam valorações morais crescente”.
e associação da maconha com determinados O governo federal e governos estaduais
atos criminosos. A matéria tece um efeito da estavam mobilizados em envidar esforços e
maconha, comprometimento das funções estudos no sentido de buscar conter a produção
cerebrais, sem qualquer comprovação, com o de cannabis e seus usos (ROSA, 2019; FRAGA E
ato do suicídio. Por fim, a matéria faz um alerta SILVA, 2017; CARDOSO 1958). Nesse sentido,
eivado de julgamento moral. nos anos 1940, como já referido, a questão
Outro conteúdo jornalístico do tipo ganhou relevância e entra na pauta dos problemas
informativo foi publicado no jornal A Noite do sanitários a serem enfrentados pelo Ministério da
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Saúde e as Secretaria Estaduais. Não obstante as constituírem a maior parte dos eventos
TEORIA E CULTURA
preocupações de ordem da saúde pública, havia estudados, ganharam espaço significativo
o consenso de que o problema demandava ações nos temas relacionadas à maconha entre os
repressivas, notadamente, ao não cultivo da erva. decênios 1910 e 1940. No período 1910/1919,
Nos estados do que, hoje, é o Nordeste brasileiro, foram encontrados os mesmos números de
o tema ocupou espaço relevante nas discussões e eventos informativos e policiais. Na década
atenção das autoridades. seguinte, o número de reportagens policiais era
Em 1946, relatório oficial de uma Comissão o dobro de material informativo. Na década de
de Estados do Nordeste brasileiro, criada para 1940, todavia, 82% das matérias encontradas
tratar de procedimentos quanto ao uso e plantio estavam atreladas a eventos policiais. Assim, a
da cannabis, reconhecia a Região do baixo São cobertura de fatos dessa natureza ganhou maior
Francisco, nos estados de Sergipe e Alagoas, importância, associando progressivamente a
como uma das maiores regiões produtoras de maconha às práticas criminais. Dados sobre os
cannabis do Brasil, juntamente com Maranhão e efeitos terapêuticos da maconha, encontrados em
Pará (CARDOSO, 1958). A Bahia implementou matérias opinativas e informativas nas primeiras
em 1943 sua Comissão Estadual de Fiscalização décadas do Século XX, nos decênios 1910 e 1920,
de Entorpecentes (CEFE), com a presença de mesmo em reportagens que alertavam para os
diversos outros comitês de estados nordestinos efeitos, também, nocivos da erva, não foram
e do Presidente da Comissão Nacional de localizados nos anos 1940. Progressivamente vão
Fiscalização de Entorpecentes (ROSA, 2019). se abandonando subsídios que pudessem aliar a
Em 1946, relatório oficial de um comitê planta e seu uso com efeitos terapêuticos.
intergovernamental do Nordeste do Brasil, As matérias abordando o tráfico de
estabelecido para discutir procedimentos drogas ganham relevo nas páginas jornalísticas
relacionados ao uso e plantio de cannabis, destinadas às ocorrências policiais, ao longo da
reconheceu a área do baixo São Francisco de primeira metade do Século XX, na cobertura da
Sergipe e Alagoas como uma das maiores áreas imprensa. No entanto, eventos de porte e uso,
de produção de cannabis no Brasil, junto com com consequentes prisões de pessoas envolvidas
Maranhão e Pará (CARDOSO, 1958). como protagonistas na atividade, também estão
O relatório ainda destacava algumas ações em destaques na cobertura jornalística (tabela 1).
que deveriam ser conduzidas por polícias e outras
instituições governamentais, com destaque para a Tabela 3 - Atribuições de crimes por matérias
destruição das plantações de maconha, limitada policiais
a sua produção para fins médicos e industriais e
plantio reduzido sob inspiração das Comissões Tipo de crime Frequência
Estaduais de Fiscalização de Entorpecentes atribuído
(CEFE), para fins de estudos da maconha, nos Tráfico 67
pontos de vista farmacológico, clínico, psíquico Porte 16
e sociológico. Uso 14
No ano seguinte, a Comissão Nacional Cultivo 7
de Fiscalização de Entorpecentes (CNFE) Investigação 5
estabelece normas que seriam seguidas por todas Sequestro 4
as unidades da federação em relação à destruição
Homicídio 3
dos plantios (PERNAMBUCO FILHO, 1958).
Outros 5
Total 121
Maconha e as práticas criminais na imprensa
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José Pedro foi morto, segundo o jornal, “na penitenciária.
TEORIA E CULTURA
tentativa de resistir a uma prisão”. O cultivo já era perseguido no início
Nos anos 1940, ganha relevo matérias do Século XX com importantes iniciativas
de ocorrências policiais nos presídios, seja governamentais visando destruir plantios de
por comércio de maconha no interior do maconha (FRAGA, 2014). No entanto, , a partir
estabelecimento prisional ou quando agentes se dos anos 1910, as ações estavam orientadas
depararam com a droga em revistas realizadas no sentido de fazer uma divisão interna e
pelos agentes carcerários. Foram encontradas, no reconhecer o Norte, inicialmente no Maranhão e,
período, seis registros desse tipo. a partir dos anos 1930, também Alagoas e outros
Uma reportagem de 1947, do Jornal estados nordestinos, como a Região produtora
A Noite, com título “Motim na penitenciária e o Distrito Federal como principal destino de
de Alagoas”, descreve a ocorrência de motim consumo da maconha lá produzida . Nos anos
de apenados na penitenciária de Alagoas em 1940, há a intensificação das erradicações.
virtude da apreensão de maconha no interior do Matéria do jornal A Federação, em sua
estabelecimento. Segundo o jornal, o secretário edição 00064, com o nome de “O governo de
do Interior de Justiça notou que, através das Alagoas resolveu proibir o cultivo da maconha,
visitas à penitenciária, estava a droga sendo entorpecente nacional, a pedido da polícia
repassada aos presos. Conforme a reportagem, o carioca”, relata a solicitação da polícia do
conflito foi sangrento entre policiais e detentos, Distrito Federal ao governo alagoano. Segundo
tendo como consequência a morte do líder da a reportagem, a maconha estaria dominando a
rebelião e graves ferimentos em outros detentos. boemia elegante e suspeita do Rio. Além disso, a
Outra reportagem no mesmo periódico, polícia afirma que a droga estaria substituindo a
de 1947, em sua edição12713, intitulada “Presos cocaína no Brasil.
quando vendiam maconha na penitenciária” relata Nos anos 1940, então, com a intensificação
o flagrante efetuado pelo Inspetor Liberalino dos trabalhos da CNFE e das CEFE, como
Muritila, autor da prisão de um soldado do 7º já referido, aumentam as ações e iniciativas
Batalhão da Polícia Militar, do Distrito Federal, governamentais visando a erradicação de plantios
por ser pego passando maconha para o detento na região Nordeste. A Região do Vale do São
Adrivaldo Tavares. Francisco, onde hoje localiza-se a maior parte
A presença de drogas no interior do da produção nacional, já havia sido considerada
sistema carcerário, prática corriqueira e, em um local para o desenvolvimento do plantio de
muitas vezes, tolerada por determinadas direções cânhamo no Século XVIII (BURTON, 1977). No
dos estabelecimentos prisionais (FRAGA, 2015; início do decênio, mesmo antes das instalações
FRAGA, 2018), foi uma prática identificada da CNFE e das CEFE, já havia preocupações com
em mais de uma reportagem. A apreensão das as ações de destruição dos cultivos na Região.
substâncias, inclusive, foi o motivo, segundo a O jornal A Noite, em sua edição 11459,
imprensa de motins em penitenciárias os anos de 1940, em matéria cujo título era “A Maconha”,
1940. trata especialmente do cultivo e venda da
Outra reportagem do jornal Diário da Maconha no Vale do São Francisco. Um inquérito
Noite, em sua edição 4786, de 1948, relata a policial concluiu que a droga estaria sendo usada
prisão de Milton Rolim Martins, proprietário principalmente na Bahia, porém os traficantes
da empresa “Entregas Rápidas Milton”. A polícia são pessoas vindas do Norte, principalmente
surpreendeu Milton quando esse negociava Alagoas e Pernambuco. Segundo policiais, a
maconha às escondidas em um bar. Segundo a droga era vendida a preços altíssimos para os
matéria, a polícia teria encontrado em carteira viciados da Bahia, variando de 60 a 100 cruzeiros
anotações dos negócios que estaria relacionado o Kg. Grande parte dos traficantes já havia sido
a diversos pedidos de maconha vindos da presa.
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No entanto, a repressão aos plantios não (FRAGA E SILVA, 2017).
TEORIA E CULTURA
se limitava, no decênio, aos Estados do que, hoje, A moldagem dos textos contidos nos
denominamos região Nordeste, como verifica-se periódicos às ações da polícia não pode ser
no conteúdo da reportagem “Grande Plantações compreendida como o elo fundamental para uma
de Maconha”, do jornal A Noite, do Rio de crescente subjetivação à verdade que designa
Janeiro, em sua edição 12639, de 1947. O texto à maconha a pecha de droga, cujos efeitos são
versa sobre a descoberta de grandes plantações de incontroláveis ou atrelados às práticas violentas.
maconha na capital do Amazonas, Manaus. Sem Há, logicamente, outras narrativas e verdades
determinar exatamente o tamanho de extensão do produzidas nos discursos religiosos, da justiça,
cultivo, a matéria elogia o trabalho “impecável” das práticas de interações comunitárias, entre
da polícia do Amazonas, acrescentando que, além outros, que soam igualmente importantes. As
do plantio encontrado, foram apreendidos 20 Kg narrativas da imprensa, contudo, compõem o
do produto já preparado para a distribuição e o campo das influências. Por ouro lado, o alcance
consumo. de jornais ao grande público é algo que vai se
As notícias policiais, quando houve construindo ao longo do Século XX e não é tarefa
informações sobre o sexo da pessoa apreendida simples mensurar o impacto dessas notícias em
em alguma ação ou diligência da Polícia, um período de índices de alto analfabetismo.
referem-se, em sua quase totalidade, aos homens. Por fim, os jornais têm como importante
O levantamento identificou apenas 5 notícia, característica a capacidade de agendamento.
envolvendo mulheres. Em duas delas, publicadas Não obstante, os jornais foram
no jornal Diário da Noite, do Rio de Janeiro, importantes veículos para afeiçoarem o discurso
entre 1947 e 1949, as mulheres eram vítimas de policial sobre a maconha. Reforçaram a relação
violência de homens que as molestaram quando, maconha e violência, maconha e crime e puseram
segundo as informações jornalísticas, estariam as ações policiais em relevo no confronto à
sob efeito de maconha. Em outra cobertura droga. Essas configurações persistiram, ao longo
jornalística, do jornal A Noite, de 1948, em do Século XX, com o surgimento, inclusive, de
sua edição 13065, relata que um homem, de jornais especializados em notícias policiais. À
nacionalidade húngara, foi preso em flagrante ao medida que os jornais foram alcançando um
tentar vender maconha para algumas mulheres. público mais amplo, não é incorreto afirmar
No caso dessa reportagem não fica claro se a que esses discursos foram se consolidando (
mulher era usuária de maconha ou a prisão ANGRIMANI, 1995).
foi feita pela oferta do indivíduo, apenas, sem
nenhuma relação dela com o uso. Considerações Finais
Em apenas uma única matéria, uma
mulher é retratada como flagrada em ato Velho (1998) afirma que as representações
criminoso atrelado à maconha. Em sua edição da maconha foram se consolidando no Brasil
4432, de 1947, o jornal carioca Diário da Noite sob a égide de que a mera menção da palavra
relata a prisão da proprietária da “Pensão de significava uma categoria de acusação. Da
Iracema” por vender cigarros de maconha em seu legitimação do discurso médico à validade da
próprio estabelecimento. A matéria jornalística narrativa policial sobre a maconha, a imprensa
condena o fato de uma mulher estar envolvida representou importante aliado, não somente
com o tráfico e alerta sobre o perigo da erva. para divulgação, mas para consolidação dessas
Essas verificações carecem de ser analisadas em verdades.
um momento diferente do atualmente vivido, De outro modo, compreende-se que a
com altíssimos índices de encarceramentos proibição da planta no Brasil percorre caminhos
femininos (MARTINS, 2019) e com perseguições particulares, em certo sentido, da consolidação
a legalismos diferenciados no âmbito das drogas do proibicismo internacional. Como signatário
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das Convenções da ONU sobre drogas, o Brasil comparados Brasil e Portugal. Rio de Janeiro:
TEORIA E CULTURA
já havia proscrito a planta antes mesmo de Letra Capital, 174-186, 2019.
acordos internacionais. Logicamente que o que
convencionamos chamar de Guerra às drogas CAMPOS, R. D. DE. No rastro de velhos jornais:
consolidou medidas mais duras e permanentes. considerações sobre a utilização da imprensa não
Se, no Brasil, nota-se os avanços de pedagógica como fonte para a escrita da história
movimentos sociais para legalização da cannabis, da educação. Revista Brasileira de História da
a luta de mães de pacientes e de pacientes para Educação, v. 12, n. 1 [28], p. 45-70, 21 maio 2012.
ter acesso legal aos benefícios terapêuticos da
planta, noutros países e estados dos EUA pode- CAPELATO, M. H. R. O controle da opinião e
se observar a regulação do cultivo, uso e venda e os limites da liberdade: Imprensa Paulista (1920-
progressos ainda mais significativos. Este é o caso 1945)’. In: Revisita Brasileira de História. v.12.
do Estado de Illinois, que, ao regular à cannabis, n.23/24. São Paulo: Marco Zero, set.91/ago.92.
compromete-se com políticas públicas de reparos
aos atingidos por anos de proibição.Não obstante, CARDOSO, A J. C. A ideologia do combate à
ercebe-se o quanto, aqui e lá, em mais de cem maconha: um estudo dos contextos de produção
anos, consolidaram-se disputas de narrativas, de e desenvolvimento da ideologia do combate ao
resistências aos valores tradicionais e milenares consumo de maconha no Brasil. Dissertação
relativos à planta, possibilitando a continuidade (Mestrado em Medicina) - Faculdade de
da experiência humanna com a cannabis. Medicina, Universidade Federal da Bahia,
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alternativas, redefinição de conflitos no entorno
TEORIA E CULTURA
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TEORIA E CULTURA
Resumo
Enquanto os padrões, perfis e sentidos do uso de drogas lícitas e ilícitas têm sido amplamente
pesquisados entre os setores mais pobres e vulneráveis da população, tanto para fins acadêmicos
quanto para formulação/ implementação e acompanhamento de políticas públicas de segurança e
saúde, outros segmentos sociais estiveram tradicionalmente ausentes destas reflexões. Atento a este
problema, este trabalho procura, por meio do arcabouço da sociologia do cotidiano e do método de
entrevistas compreensivas, reconstruir os sentidos do uso de drogas lícitas e ilícitas por mulheres de
camadas médias em duas Regiões do país. Por meio destas narrativas, reconstruir o circuito que vai
do conhecimento dos fármacos aos usos, passando pelas formas de aquisição, o artigo reflete sobre a
atribuição de sentido à experiência do uso de drogas pelos sujeitos e a permanente (re)constituição
de seus laços sociais e subjetividades. Entre o consumo das lícitas e/ou das ilícitas, as mulheres
avaliam qual é substância mais apropriada para o seu consumo privado, pois há muito mais que um
modo capitalista em jogo, há um modo de vida que exige dessa usuária escolhas que, a princípio,
possibilitam que a mesma se individualize enquanto sujeito, concomitante à sua inserção na vida
social e cotidiana.
Abstract
While patterns, profiles and meanings of licit and illicit drug use have been widely researched among
the poorest and most vulnerable sectors of the population, both for academic purposes and for the
formulation/implementation and monitoring of public security and health policies, other social
segments have traditionally been absent from these reflections. Aware of this problem, this work
seeks, through the framework of everyday sociology and the method of comprehensive interviews,
to reconstruct the meanings of the use of licit and illicit drugs by middle-class women in two regions
of the country. Through these narratives, reconstructing the circuit that goes from the knowledge of
drugs to their uses, passing through the forms of acquisition, the article reflects on the attribution of
meaning to the experience of drug use by the subjects and the permanent (re)constitution of their
social bonds and subjectivities. Among the consumption of licit and/or illicit drugs, women evaluate
which is the most appropriate substance for their private consumption, because there is much more
than a capitalist mode at stake, there is a way of life that requires this user to make choices that, at first,
make it possible for him/her to be individualized as a subject, concomitant with his/her insertion in
social and daily life.
1 Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP) e, atualmente, pesquisadora de pós-doutorado pela
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
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Introdução ayahuasca, a maconha, a cocaína, o crack, as
TEORIA E CULTURA
drogas sintéticas, o tabaco, entre outras. Carneiro
Muito se pesquisa a respeito do (2005, p.5) esclarece que tudo que se ingere e que
consumo - abusivo ou não - de drogas e como não constitui alimento pode ser posto no escopo
ele se dá em contextos sociais de pobreza e da “droga”, embora alguns alimentos também
vulnerabilidade social. Por outro lado, há um possam ser designados como drogas como o
número considerável de notícias sobre o (ab) café ou o mate. Toda e qualquer substância
uso de drogas entre jovens da classe média alta que provoque um estado alterado/ ampliado/
e alta, principalmente em festas, etc. Com fins de diferenciado no funcionamento de um órgão
compreensão e, em muitos casos, como modo de ou de um sentido, pode aqui ser considerado
observar as dinâmicas sociais desse uso em meio uma droga a depender do seu uso e da relação
às políticas públicas de prevenção, de assistência desse consumo na esfera cotidiana da vida, com
social e de segurança, por conta dos dispositivos seus efeitos nos corpos, nas vidas e nas relações.
institucionais de controle executados pelas Estando sujeito ao consumo e ao contexto
áreas da saúde e da justiça, as camadas médias cultural, econômico, político e social, chocolate
e, em específico, as mulheres pertencentes a ou café, por exemplo, podem ser considerados
esse segmento estiveram menos presentes nos drogas.
estudos da temática, com exceções no que tange, O Informe Mundial sobre as Drogas
principalmente, ao consumo de drogas sintéticas publicado em 2019 pelo UNODC (Escritório das
ou das substâncias lícitas. Desse modo, busca-se Nações Unidas sobre Drogas e Crime) estima que
nesse artigo, a partir de uma pesquisa qualitativa há cerca de 35 milhões de pessoas que padecem
mais abrangente, pensar trajetórias e sentidos do de transtornos pelo uso de drogas e 271 milhões
consumo de drogas lícitas e ilícitas, por mulheres de pessoas com idades entre 15 e 64 anos haviam
das classes sociais mais abastadas. Observar consumido drogas em 2016. No relatório aponta-
quais seriam as estratégias de consumo nos se a preocupação com o número de opióides
respectivos usos de drogas na chamada “classe sintéticos que vem sendo desenvolvidos, ainda
média”, por mulheres com idades entre 20 e 40 que o mercado tenha se estabilizado em torno de
anos, a partir dos modos de acesso e dos usos em 500 substâncias no período 2015-2017 (UNODC,
seus respectivos cotidianos. 2019, p. 15), visto que o relatório da organização
A partir da polissemia que o vocábulo (UNODC, 2016) apontava a criação de, pelo
“drogas” abrange, considerando e concordando menos, 75 novas drogas sintéticas em 2015. Ou
com alguns dos estudos sociais recentes na seja, é significativa a expansão tanto na produção
temática (FIORI, 2006; FIORI, 2013; MALVASI, como no consumo dessas substâncias.
2012; RUI, 2012; VARGAS, 2001), e tendo como No Brasil, a partir dos anos 2000, o debate
pressuposto que a noção de “droga” que temos e os estudos sobre o consumo de drogas tem sido
hoje é resultado de um longo processo sócio- crescentes. A Lei No. 11.343 que instituiu a Política
histórico. Desse modo, considera-se nesse artigo Nacional de Drogas e o lançamento do Plano
droga qualquer substância de origem natural de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas,
ou que tenha sido processada de modo manual, em 2006 e em 2011, respectivamente, também
medicinal e/ou farmacêutica; sendo legal ou trouxeram perspectivas de novas pesquisas sobre
ilegal sua comercialização; de uso controlado a temática (ASKESIS, 2014), salientando que
ou livre; que cause dependência ou não, mas isso não significa que não houvesse produção de
que possibilite que a pessoa ao consumi-la sinta estudos anteriores ao período acima.
e perceba seus resultados no corpo, alterando Nesse sentido, a fim de saber um pouco
o funcionamento do sistema nervoso central. mais sobre os números do consumo de drogas no
Desse modo, englobamos na categoria “drogas” Brasil, em 2014 foi iniciado o 3° Levantamento
os ansiolíticos, os antidepressivos, o álcool, a Nacional sobre o Uso de Drogas pela População
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Brasileira, pesquisa realizada pela Fiocruz com como esse se relaciona com a dinâmica do
TEORIA E CULTURA
2 Os dados do 3º. Levantamento (FIOCRUZ, 2017) mostram que: cerca de um terço da população de 12 a 65 anos
declarou ter feito uso de cigarro industrializado pelo menos uma vez na vida, sendo 38,9% são homens e 28,4% mulheres
(FIOCRUZ, 2017, p.4); mais da metade da população brasileira de 12 a 65 anos (66,4% - IC95%: 64,8% - 68,0%), disse ter
consumido bebida alcoólica alguma vez na vida, o que equivale dizer que, cerca de 46 milhões de pessoas informaram
ter consumido pelo menos uma dose de bebida alcoólica nos 30 dias anteriores a pesquisa, sendo destes 38,8% homens e
21,9% mulheres; a estimativa do uso de medicamentos de uso controlado, não prescritos ou utilizados de forma distinta
da receitada pelo profissional de saúde, nos 12 meses anteriores à pesquisa, foi de 3,0%, para a população brasileira de
12 a 65 anos, sendo que o uso específico de tranquilizantes benzodiazepínicos nos 12 meses anteriores à pesquisa foi de
1,4%. Os tranquilizantes benzodiazepínicos (3,9%), os opiáceos (2,9%) e os medicamentos anfetamínicos (1,4%) foram
as classes de medicamentos mais consumidas de forma não prescrita ou consumidas de modo distinto da prescrita
(FIOCRUZ, 2017, p.5). Por fim, o levantamento apresenta que cerca de 4,9 milhões de pessoas, entre 12 e 65 anos, nos
últimos 12 meses anteriores à pesquisa haviam feito uso de alguma droga ilícita. Pela estimativa realizada pela instituição,
cerca de 3,8 milhões de pessoas entre 12 e 65 anos fizeram uso de maconha e 1,3 milhões de pessoas na mesma faixa
etária citada, nos 12 meses anteriores à pesquisa afirmaram ter consumido cocaína nos últimos 12 meses (FIOCRUZ,
2017, p.6). No que se refere ao crack, cerca de 172 mil pessoas pertencentes à mesma faixa etária citada consumiram crack
nos últimos 30 dias que antecederam à entrevista.
3 As autoras descartam as questões que envolvem o consumo e a venda de cigarros, bem como as abordagens referentes à
produção e à comercialização das drogas, por conta do grande número de investigações já realizadas, o que demandaria
um artigo à parte.
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por sua vez, investigou usuários de diversas de São Paulo e Salvador e buscaram compreender
TEORIA E CULTURA
drogas (heroína, maconha, álcool, entre outras) os diversos significados imputados a indivíduos
e pôde notar que a equação indivíduo, substância consumidores de psicoativos ilegais. Para eles,
e contexto social oferecem um “resultado” em o uso de maconha na sociedade brasileira é
que o consumo pode ou não ser controlado pelo um fato inconteste e possíveis campanhas de
próprio usuário. Tais investigações, por sua vez, prevenção, por exemplo, precisarão levar em
influenciarão a pesquisa pioneira desenvolvida conta a opção de que o usuário deseja continuar
por Gilberto Velho (2008 [1975]) – Nobres & com seu consumo e como esse uso pode se dar de
Anjos: um estudo sobre tóxicos4 e hierarquia - junto forma segura em um contexto legal-jurídico de
às camadas médias da sociedade brasileira que forte repressão.
busca responder quais são as visões de mundo e Nas pesquisas acima citadas, de
os estilos de vida de pessoas de classe média que algum modo, os usuários de drogas relatam
usam drogas em uma metrópole como o Rio de e compartilham com os pesquisadores seus
Janeiro e suas respectivas relações com os grupos respectivos “mundos”, seus hábitos, seus recortes
aos quais pertencem (VELHO, 2008, p.18). de realidade que a grosso modo chamamos de
Os dois grupos pesquisados - “a roda cotidiano. A rotina dos sujeitos passa por uma
intelectual-artístico-boêmia” e os jovens surfistas série de “fazeres” diários que, por sua vez, estão
frequentadores de uma lanchonete, os “nobres” e integrados às instituições das quais fazem parte.
os “anjos”, respectivamente - consomem drogas. Nas palavras de Berger e Luckmann (2012, p.
No entanto, tais “tóxicos” não são o tema central 70), “a humanidade específica do homem e sua
da tese de Gilberto Velho, mas os indicadores sociabilidade estão entrelaçadas intimamente.
de projetos culturais, que estabelecem limites O homo sapiens é sempre, e na mesma medida,
dentro desses dois grupos e em seus respectivos homo socius”5. Na medida em que se criam e se
contextos. O pesquisador observa que na efetivam os hábitos no cotidiano das pessoas,
sociedade carioca dos anos 70, o tóxico é um dos desenvolve-se a institucionalização dos mesmos.
pontos de contato e torna-se “marca de distinção” Desse modo, tomando de empréstimo as
quando associado a outros símbolos: de um dúvidas de Becker (2008, p. 34) em ‘Outsiders’,
lado, os consumidores podiam ser vistos como precisamos de um tipo de explicação de como
uma categoria oprimida pelo fato de viverem a uma pessoa chega à situação em que a droga
tensão da clandestinidade do consumo; de outro, é procurada ou lhe é oferecida, do porquê ela
a maneira como se consumia o tóxico marcava se dispõe a fazer uso desse recurso e, tendo-a
também outras fronteiras, podendo ser visto consumido, mantém seu uso continuo.
como símbolo de prestígio, inclusive. Ao desenvolver uma investigação sobre
Perceber que o tóxico se integra a um o consumo de drogas em camadas médias,
estilo de vida diferente do contexto de outros procurou-se encontrar pessoas próximas e/
locais em que consome drogas como a favela ou entre o círculo de amizades que pudessem
e o morro é o diferencial da tese, podendo se compartilhar suas trajetórias de uso, inseridas
pensar “como um item posto em contexto pode em um contexto semelhante ao da pesquisadora,
ter significados díspares, ajudando a relativizar o como no caso de Velho com seus anjos e nobres.
problema do tóxico” (VELHO, 2008, p.195). Em tal busca, foram pelas conversas
MacRae e Simões (2000) também informais com o grupo próximo que se deu
investigaram o consumo de maconha junto a o contato. Na medida em que se elaborava o
sujeitos pertencentes à classe média das cidades objeto de pesquisa, as leituras eram realizadas,
4 Nomenclatura dada por Gilberto Velho e que será adotada nesse texto enquanto se fizer alusão à sua obra.
5 As citações da obra de Berger e Luckmann neste artigo foram todas traduzidas do espanhol para o português.
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as descobertas eram compartilhadas, nossos do outro adquira significados e reações afetivas
TEORIA E CULTURA
6 Inserção nossa.
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sobre o ato em si, o indivíduo não está imerso do viver cotidianamente. Ao contrário, é no
TEORIA E CULTURA
na “corrente de duração pura”, porque não se possível ou encoberto desalinhamento que se
está vivendo em tal continuum. A apreensão, mostra o paradoxo do estar-e-fazer cotidiano,
distinção, acentuação das experiências são pois quando se trata de compreender o tema
marcadas e observadas umas em relação às “drogas” na contemporaneidade nota-se que
outras e a atenção se dirige a essas mesmas ações é no desalinhamento que se apresentam as
subjetivas de relevância para o indivíduo. Assim, turbulências passíveis de interpretação e análise
quando o sujeito nos descreve sua trajetória no da vida em sociedade (PAIS, 2005, p.72). Basta
consumo de drogas, ele já não faz parte da duree observar as comoções afetivas para o bem e para
– esse vir-a-ser contínuo – (SCHUTZ, 1979, o mal frente às notícias que envolvem drogas.
p.61) mas busca compreender dentro de sua Por meio de uma narrativa é possível
própria experiência e por meio de seu sistema contemplar e compreender as especificidades das
de relevância quais são as ações e motivações escolhas que cada sujeito faz e, consequentemente,
que o levaram a desempenhar aquela ou outra suas respectivas trajetórias, em que se está
atividade no mundo exterior na medida em que inserido nas tramas diárias do estar e viver em
narra sua própria experiência. O sentido que se sociedade, concomitante ao olhar que esse sujeito
dá à experiência em si é sempre delimitado e feito compreende a sociedade na qual está inserido,
a partir de uma retrospectiva e pois “o que está em jogo no uso do método
biográfico é a recuperação de memórias narradas
A possibilidade de recuperação pela memória é, do ponto de vista de quem as evoca. Mas em jogo
de fato, o primeiro requisito de toda construção está também a possibilidade de tornar visível o
racional. Aquilo que é irrecuperável – em princípio, que – de um ponto de vista positivista – nem
sempre algo inefável – só pode ser vivido, nunca sempre é empiricamente detectável” (PAIS, 2005,
“pensado”: é, em princípio, impossível de ser p. 87).
verbalizado (SCHUTZ, 1979, p.65). Na perspectiva da sociologia
compreensiva, cada sujeito ao narrar sua
Assim, o uso da biografia se apresenta trajetória leva em conta seu sistema de relevância
como um meio linear de linguagem, bem como e de expectativas, ou seja, “tipificações de
em “um processo de transformação retrospectiva. padrões de interação que são modos socialmente
(...) Os acontecimentos enfileiram-se numa aprovados de resolver problemas típicos, e são
sequência de linearidade, na busca de uma frequentemente institucionalizados” (SCHUTZ,
história que só ganha sentido pelos factos que ela 1979, p. 305). Para o estudioso, interpretar o
consegue enfileirar” (PAIS, 2005, p. 72). sistema social como rede entrelaçada de posições
O sociólogo português, José Machado faz com que uma tipificação socialmente
Pais, ao discorrer sobre a linearidade de uma aprovada de padrões de interação particulares
narrativa mostra sua respectiva complexidade: se faça, inclusive, sob especificadas exigências de
se por um lado as biografias são memórias posição e autoridade, hierarquizadas em domínio
escolhidas de modo sequencial pelos sujeitos de relevância, pois o sujeito já o faz na medida em
e carregadas de afetos, por outro, são dessa que organiza subjetivamente tais ordenamentos e
mesma forma porque exigem um encadeamento os expressa em forma linguística.
linguístico para o sentido que se propõem a Por isso, cabe ao investigador, por meio
dar. Isso equivale a dizer que, na medida em da entrevista e da sua “presença participativa”
que um sujeito escolhe determinada memória ou de sua relação etnográfica (AGIER, 2015, p.
a relatar, mostra-se a aparente conexão causa- 38), estar atento às sutilezas e nuances pelas quais
feito. Contudo, tal linearidade não significa seu interlocutor atravessa ou é perpassado pelas
um alinhamento ininterrupto num percurso circunstâncias de seu cotidiano.
de vida ou com ausências de desalinhamentos Ao mesmo tempo em que uma entrevista
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é um recurso para a obtenção de informações, das entrevistas são, portanto, dados discursivos
TEORIA E CULTURA
ela, em si, é um registro etnológico de um saber- que não refletem objetivamente uma realidade,
fazer-pesquisar. É na intrincada articulação mas que resultam de uma com-posição discursiva
entre instrumento, pesquisador e entrevistado e intersubjetiva, muitas vezes improvisada por
parte de ambos os intervenientes no decorrer da
que se dá a potencialidade da narrativa, razão
situação, configurando uma espécie de situação
que leva Kaufmann (2013, p.33) a afirmar que o
experimental, como lhe chama Kauffmann (1996)
“artesão intelectual é aquele que sabe dominar e
(FERREIRA, 2014, p.984).
personalizar os instrumentos que são o método e
a teoria, num projeto de pesquisa”. Entre 2013 e 2015, nove mulheres com
A entrevista na perspectiva compreensiva idades entre 20 e 40 anos, moradoras de capitais
não é somente o instrumento metodológico das Regiões Norte e Sudeste, com profissões
escolhido para a realização da pesquisa, como variadas como designer, jornalista, pedagoga,
faz parte do próprio método investigativo. Isso estudante de doutorado, entre outras, foram
significa que é por meio dela que o pesquisador entrevistadas em profundidade, em geral, em
adentra a realidade ou narrativa do sujeito. suas respectivas residências. As entrevistas foram
Ferreira (2014, p.981) esclarece que a gravadas, transcritas e enviadas para aquelas que
entrevista compreensiva vem como proposta solicitaram rever suas narrativas. A pesquisa
contra a tradição empiricista-abstrata aliada à seguiu os princípios éticos das pesquisas em
suposta imparcialidade e neutralidade científica Ciências Humanas e Sociais, do CONEP –
superando o formalismo metodológico oriundo Resolução No.510/ de 07 de Abril de 2016.
da perspectiva estrutural-funcionalista. Sendo
O traficante familiar, a biqueira e o delivery:
uma técnica qualitativa de coleta de dados que
o acesso e o conhecimento para consumo das
pressupõe um saber-fazer sob medida, em uma
drogas de estimação
conjugação de técnicas de entrevista semidiretivas
com aspectos de uma entrevista e construção de Tornar-se um(a) consumidor(a) de drogas
saber etnográficos, ela é o “resultado de uma passa por alguns estágios como: o conhecimento
composição (social e discursiva) a duas (por da existência da substância; o diálogo com
vezes mais) vozes, em diálogo recíproco a partir alguém que já fez uso; contar com alguém que
das posições que ambos os interlocutores ocupam possa indicar o uso da substância; e, ter o acesso
na situação específica de entrevista” (FERREIRA, à droga. É o que, grosso modo, Becker (2008) nos
2014, p.982). informa como alguém se torna um “usuário de
Não há um roteiro definido de perguntas, drogas”.
mas há questões potenciais de serem feitas Maya7, jovem de 23 anos e estudante de
na medida em que existe o objeto o qual arquitetura, teve seu primeiro contato com as
se deseja compreender e na medida com a drogas prescritas aos 14 anos. Foi em meio à
efervescência adolescente que Maya descobre as
qual se desenvolve o contato com o sujeito
pílulas de sua mãe:
(KAUFMANN, 2013), principalmente quando
se quer acessar a trajetória pessoal.
Então, minha mãe teve depressão pós-parto e
durante um bom tempo, quer dizer, durante toda
O informante não se limita a dar informações
a minha infância, minha mãe usou remédios e
sobre si próprio, mas implica-se num trabalho de
eu sabia disso. Assim: nunca foi uma coisa muito
fabricação identitária ao tentar ensaiar perante
conversada, mas eu sabia, né? Há detalhes que nunca
o entrevistador posições de unidade e coerência
ninguém falou. Logo, já com 14 anos, então, tinha
biográfica ou, pelo contrário, tentando dar conta
todos aqueles conflitos internos, externos: quero
da sua incoerência e contradição. Os resultados
fazer isso, não pode, o pai não deixa. De 14 anos
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para 15 meu pai teve câncer, eu nem sabia o que chorosa, a genitora resolveu levá-la a diversos
TEORIA E CULTURA
significava isso e era a época que eu queria ir para as médicos a fim de saber o que poderia estar
festas e tive meu primeiro namorado, então, aquela acontecendo com a filha. Cassandra fez diversos
confusão toda. Eu não sabia lidar muito bem com as exames e um neurologista, na ocasião, receitou-
minhas emoções e, poxa, brigava com o namorado,
lhe um calmante (lexotan) e um antidepressivo.
ficava de castigo, aí o quê fazer, né? Não podia
Qualquer irritabilidade fora de hora, “minha mãe
sair de casa para encontrar os amigos para fumar
me dava um, dois ou três comprimidos”. O uso
maconha. Então, ah, beleza, estou de castigo aqui,
dos medicamentos tornou-se o meio pela qual
pegava na gavetinha da mamãe os remedinhos lá,
que sei lá para que serviam, mas tinham uma tarja
era possível o alcance daquilo que se denomina
preta. É, e aí eu fui descobrindo que tomar aquilo ‘normalidade’.
e tomava e não sei o quê acontecia. Mas foram uns A doutoranda Agnes, de 29 anos, ademais
eventos, em que, teve um, por exemplo, que eu menciona que o uso de antidepressivos faz parte
tomei alguns, sei lá se briguei com o namorado, não de sua vida desde que ela era muito pequena.
lembro o porquê. Tomei mais de um [comprimido]. Seus pais tomaram todo tipo de antidepressivo
Tomei alguns e quando chegaram no meu quarto eu ao longo de sua infância.
estava caída. Eu tinha sentado na cadeira e depois
estava no chão. Não lembro como que aconteceu Era uma coisa que estava assim no meu horizonte
isso. Mas eu lembro que eu tomava, quando eu desde pequena, porque os meus pais foram
estava estressada. Eu já sabia onde recorrer. recebendo diagnósticos de depressão. Eu não
sabia muito bem como era a classificação que eles
Aos 18 anos, após um término de estavam recebendo dos médicos, só sabia que eles
relacionamento na Europa e de volta ao Brasil, estavam em tratamento, os dois, e que algumas
Maya foi levada ao psiquiatra por sua mãe. coisas começaram a funcionar menos em casa.
Então, eu via as caixinhas de valium, de rivotril,
Foi quando eu fiz 18 anos e minha mãe falou: “Olha,
numa prateleira da estante. [As caixinhas ficavam]
eu vou lhe levar no psiquiatra. Porque o seu pai
na sala, no banheiro, não sei. Sabia que alguns
não deixava antes eu levar você porque você era
eram remédios que o meu pai tomava; alguns eram
de menor, mas eu vou levar você para fazer uma
remédios que a minha mãe tomava, e que [ambos]
consulta”. Do nada. Porque a família dela tem todo
eram diferentes de outros remédios.
um histórico, na verdade. Então, todo mundo na
casa dela tem, minha bisavó teve Alzheimer, minha
Aos 32 anos, Verônica, pedadoga e
avó tomou remédio, não sei quem mais toma
funcionária de uma ONG, a seu modo, encontrou
remédio. Fui num psiquiatra, numa psiquiatra do
formas de alívio e “tecnologias para si” a fim
SUS, sei lá e aí ela falou que eu tinha uma distimia.
de solucionar a questão da enxaqueca que lhe
Distimia é o início de uma depressão. Tipo: é a
acometia há anos. Ela narra que quando parou
pessoa mal-humorada, meio sem, sei lá, qualquer
de usar o topiramato, teve uma semana de dor de
coisa. Então, ela me diagnosticou com distimia e me
cabeça mortificante.
mandou tomar fluoxetina.
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esse o meu sentimento. Não, eu acho legal! Não Eu acho. Eu acho que eu sou viciada em dorflex,
TEORIA E CULTURA
vou falar: “Eu acho horrível”. Não! Eu acho legal porque eu acho que é uma dependência. Talvez não
fumar maconha. Só que, assim... A questão dos num grau “Nossa!” ao ponto de tomar sem sentir
sentidos, você não dominar os seus reflexos. Ah, absolutamente nada. Isso eu não faço, entende? Não
você tá atrapalhada. Você tá sem memória. Sem tomo. “Ah, não tenho nada e vou tomar um dorflex”.
concentração. Você é incapaz. Sentir nesse estado, Não tomo. Realmente é sempre assim: com indícios
pra mim é desesperador. Então, como eu disse,
de ter uma dor. A dor existe. Mas é pouquinho. Que
eu prefiro continuar sofrendo com a enxaqueca.
daria pra passar sem, mas como eu sei que ela pode
E eu tinha certeza que ela viria porque eu parei
virar uma enxaqueca, eu tomo já.
abruptamente [o uso do topiramato] porque,
inclusive o médico já tinha avisado, né? “Você vai
ter que parar tomando. Você não pode porque você Muitas vezes Verônica tomou dorflex e a
vai sofrer com algum sintoma”. E vem com tudo: dor persistiu, no entanto ela não sai de casa sem
uma dor de cabeça de ficar de cama. Aí eu parei, ele: “Assim, se eu saio de casa e eu não tenho
mas mesmo assim eu já tava um pouco esperando dorflex, eu vou na farmácia e compro”. Ela calcula
isso e... Segurei a onda. E não tomei nada. Agora que consome duas cartelas e meia por mês, cerca
eu tomo muito dorflex. Tomo, tomo muito dorflex. de 25 comprimidos. “Quase todo dia, né?”. Um
Muito. Tipo muito. (risos) (...) Não dá pra dizer que dia chegou a tomar quatro drágeas porque sentiu
é todo dia, mas toda semana eu tomo. Só que ele, vir a crise de enxaqueca, no entanto a dor veio e
por exemplo, quando está começando a dor, ele é se instalou.
um remédio que me ajuda nesse sentido. Sei lá, é Em uma família com uma trajetória
um hábito que eu fui pegando por, é, sei lá, não sei medicalizada, o uso de fármacos torna-se um
se é ilusório, tomar o dorflex. Quando você calcula
procedimento comum: é a mãe que guarda as
que é um dia propício, você vai e toma o dorflex”.
pílulas na gavetinha; é o antidepressivo da mãe que
a deixa sonolenta; são as caixinhas de cada um à
Para ela, o dia propício é o dia provável de
mostra no banheiro. É o estoque de conhecimento
haver uma enxaqueca. O dia provável é o dia em
à mão. É a produção da sintomatologia no ethos
que se vale de um dorflex para prevenção. Trata-
doméstico com as subjetivações inerentes a esses
se da conduta razoável como ação de rotina para
processos. A família, nesse caso, desempenha
Verônica.
a função de atualizar o código de emoções no
O dorflex é um instrumento funcional
âmbito do cotidiano e das biografias (VELHO,
de alívio da dor, mas é também uma espécie de
1997, p. 67).
placebo para Verônica, pois é de seu estoque de
As atitudes de Maya, Agnes, Verônica e
conhecimento que ela sabe que o mesmo não fará
Cassandra são “condutas razoáveis” e deliberadas
efeito e ainda assim faz o uso. Tal conduta nos
por eles próprios (e os demais interessados de
leva a indagar porque as pessoas mesmo sabendo
seu círculo mais próximo) pela razão de serem
da ausência de resultados, ainda assim o realizam.
ações de rotina que “remete ao ato original
Verônica comenta que, pelo fato de ter
de deliberação, que procedeu a construção da
uma jornada de trabalho cansativa e fazer a pós-
fórmula tomada pelo ator como padrão para o
graduação aos sábados, às sextas-feiras dá-se o
seu comportamento atual” (SCHUTZ, 1979,
início de “uma dorzinha”. Ela precisa ter energia
p.129).
e “capacidade cognitiva para dar conta do fim de
Além da família como porta de entrada
semana” que precisa aguentar: “(...) então já tomo
para o uso de drogas prescritas como relatado
um dorflex, entendeu? É loucura, né?”. Sobre seu
acima, há outras possíveis formas de acessar
consumo de dorflex:
drogas controladas para uso distinto daquele
pela qual ela pode ser receitada. Em uma relação
Eu adoro dorflex. Eu não posso mentir. Se eu falar:
de confiança, o psiquiatra pode fornecer uma
“Não, eu tomo porque é dor”. Realmente eu, eu já
receita ao seu paciente. Cassandra tem essa
me entendo como uma pessoa viciada em dorflex.
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facilidade com seu psiquiatra que lhe assiste há de estimação personaliza a existência do hábito
TEORIA E CULTURA
mais de 15 anos. de consumo em drogas. O sujeito não fará uso
imediato, mas há uma necessidade da presença
Eu tenho liberdade para tomar um rivotril se dele na bolsa, na necessaire, na gaveta da cozinha,
eu tive um dia de merda. O psiquiatra acha no estojo, no porta-luvas do carro.
importante eu ter, para um momento mais A droga de estimação é moralmente
difícil, num momento pré-crise. Meu corpo aceitável pelos sujeitos em vista de sua ars
rejeita as drogas que as pessoas costumam usar alquímica e respectiva scientia pharmacos
para relaxar8. Ele diz que eu sou uma alma junk (DUNKER, 2016) na medida em que produz a
aprisionada num corpo careta. E ele sabe que normatividade do sujeito e as subjetivações com as
eu tenho responsabilidade. Então eu tenho quais se dá seu modo de viver. É a produção desse
liberdade para tomar um rivotril de vez em saber-poder – scientia pharmacos - que legitima e
quando, se eu quiser, porque eu estou bem. Eu reifica a possibilidade de que o sujeito encontre no
posso chegar em casa e tomar um desses pra dispositivo da droga o controle moral do mundo
ficar na boa ao invés de fumar um baseado. Até da vida cotidiana sendo reverberado no controle
porque se eu fumar um baseado não vou ter o moral interno do sujeito. O dorflex, por exemplo,
efeito. é um analgésico, um relaxante muscular vendido
sem prescrição médica que tem como objetivo a
Para Cassandra, ter uma receita de rivotril eliminação da dor. No entanto, mesmo ele sendo
é uma “condição conquistada” pelo fato do utilizado por Verônica para um possível alívio da
psiquiatra considerar que é possível lançar mão enxaqueca, visto que sua ars alquímica tem como
desse tipo de droga em um dia estressante: “Se eu foco a eliminação do sintoma, mesmo com a
peço uma receita de calmante, por ano, é muito. ausência do resultado esperado, Verônica persiste
Eu tenho como segurança, até como recreação. no uso. O dorflex como droga de estimação é
Mas não como uso contínuo”. um dispositivo na medida em que incrementa a
O dorflex de Verônica, os tarjas-preta capacidade do sujeito de agir no mundo de uma
de Maya e o rivotril de Cassandra podem ser determinada forma. A droga de estimação cria
consideradas as drogas de estimação dessas modos de vida que, por sua vez, são recriados a
mulheres. Lança-se mão do uso quando há uma partir da scientia pharmacos, como um sistema
potencial ocasião de estresse, de dor, de aflição, que se retroalimenta em contínuo devir.
de agonia, de ansiedade. As drogas de estimação Há no uso da droga de estimação
podem, inclusive, ser consumidas com ou sem um controle e reconhecimentos formais da
prescrição. Para uns, a aquisição será mediada dependência da existência dela junto ao sujeito,
por uma rede lícita e formal (especialista que se coloca como possuidor de direito de
fornece a prescrição ou se pode comprar em um usar quando e como quiser. Há, inclusive, um
estabelecimento sem necessidade de receita); discernimento sobre o próprio consumo; o sujeito
em outros casos, a mesma substância legal será tem autonomia para o consumo. O uso da droga
fornecida pela rede-amiga; noutros, o consumo de estimação não faz com que se deixe de realizar
se dará pela rede-amiga de forma ilegal, por se uma análise crítica; tampouco é possível dizer que
tratar de substância proibida pela legislação. uma (possível) dependência dela deva ser alvo
Trata-se de uma companhia que se faz necessária de controle e maior regulamentação jurídica ou
em específicas situações, é a materialidade da disciplina externas, pois os usuários convivem,
segurança e a prevenção de uma (possível) dor de certo modo, amigavelmente. Se por um lado
ou sofrimento, é a transferência psíquica de um há a menção à uma forma de dependência; por
sentimento em um objeto de consumo. A droga outro, essa mesma relação fornece ao usuário o
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benefício da segurança que ele não encontra em médica, seja a rede-amiga.
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outro meio. É a solução dada para que o sujeito A aquisição de drogas ilícitas, por sua vez,
seja, para si mesmo, funcional. passa pela ilegalidade e pelo crime organizado
Pelo fato das drogas prescritas contarem ou pela produção caseira da substância como
com uma legislação e um controle sanitário no caso da maconha, em que é possível que
específico como dispõe a Portaria No. 344, de o sujeito plante em casa; porém, no segundo
12 de maio de 1998, que aprova o Regulamento caso, há um risco envolvido na operação que é
Técnico sobre substâncias e medicamentos o enquadramento do sujeito como traficante,
sujeitos a controle especial, é interessante notar visto que a legislação penal brasileira proíbe a
que as narrativas aqui mencionam um início de produção doméstica do produto.
consumo que não está dentro das prerrogativas Entre a aquisição e o consumo
legais. Ao contrário, há um fornecimento e um propriamente dito, há um caminho que envolve
uso ilícito de tais substâncias que ocorre, muitas conhecimento, planejamento e avaliação
vezes, sem o conhecimento dos “proprietários” de riscos, exigindo do usuário um certo
dos fármacos ou com o próprio consentimento conhecimento do que se quer obter em termos
e disponibilidade oferecidos pelos mesmos. A de benefícios pelo uso, bem como dos possíveis
disponibilidade e o fornecimento, nesse caso, trajetos para a obtenção da droga. Trata-se de um
ficam atrelados à condição de que a anormalidade projeto (SCHUTZ, 2003, p.24) em que é exigida
do comportamento seja extinta, ou, na melhor uma ação, “uma conduta que se efetua de acordo
das hipóteses, que o comportamento daquele que com um plano de conduta planejada”.
irá usufruir da droga volte a fazer parte de um Com 23 anos, Yasmin que trabalha como
quadro social desejado e esperado pelo grupo na instrutora de yoga, procura se informar antes de
qual está inserido. tomar substâncias nunca d´antes consumidas.
O consumo de drogas prescritas passa A informação sempre vem pelos amigos. “Uma
pelo controle sanitário que torna possível a pesquisa empírica mesmo. Empírica deles, não
produção, a distribuição e a comercialização das é?! Tipo, ‘como é que você sentiu?’. Pesquisar
mesmas. Isso significa que somente profissionais mesmo. ‘Ah, você já? Mas onde? Era lugar
de saúde são autorizados a prescreverem o uso fechado? Era lugar aberto? Como você sentiu?’”.
de anorexígenos, antidepressivos e ansiolíticos, Faz cinco anos que Yasmin ora adquire
substâncias citadas pelas informantes dessa maconha por meio de seus amigos, ora vai à
investigação. No entanto, o uso desses fármacos, “biqueira”9 comprar. Ela explica que alguns
muitas vezes, está condicionado a outros modos amigos costumam se juntar para fazer uma
de aquisição, por meio de parentes como descrito compra conjunta, a “barca”, na qual cada um dá
anteriormente ou por meio de uma rede amiga quanto pode (em termos financeiros) ou quanto
que oferece a possibilidade de compra sem que quer de maconha, juntam-se os recursos e alguém
o usuário tenha de passar por uma consulta vai na “boca” e faz a compra. Quando Yasmin
médica. vai à biqueira, geralmente, ela vai acompanhada
A obtenção de uma prescrição médica de um amigo, pois já sentiu medo em uma das
sem ter de passar por uma consulta ou ter a receita ocasiões em que foi.
por meio de um pedido formal não é algo que as Flora, designer de 39 anos e mãe de duas
e os usuários de fármacos controlados comentem crianças, por sua vez, possui três fornecedores
ou exijam de modo aleatório. Ao que tudo indica, que a abastecem de maconha quando necessário.
a aquisição dos fármacos prescinde uma relação Contudo, sempre compra do mesmo traficante
de confiança e de discrição em ambos os casos porque confia na qualidade da droga. Os
com a rede na qual se está inserido. Seja a rede contatos se dão por telefone e a entrega é delivery.
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Para ela, o acesso é sempre fácil quando se quer o conhecimento sobre como realizar a compra,
TEORIA E CULTURA
alguma substância. Há uma relação de confiança onde e com quem, bem como sobre os possíveis
entre eles, dado que seus fornecedores avisam- riscos à saúde e à integridade física e moral do
na quando mudam o número de telefone: “Eles sujeito consumidor. Há nesse momento uma
mandam mensagem dizendo: ‘Olha, mudei meu avaliação econômica e moral do consumo de
telefone...’ Se eu quero apresentar algum amigo, drogas.
eu tenho de mandar uma mensagem: ‘Olha, você Frúgoli Júnior (2008, p. 7) nota que o
quer mais um cliente?’. Eles não querem porque consumo – conceito e/ou o ato de consumir
estão cheios de clientes. Eles têm uma demanda - muitas vezes é percebido a partir de um
muito grande”. enfoque moralista, naturalista e hedonista, ou
Para exemplificar como funcionam essas seja: respectivamente, o consumo é visto em sua
conexões de bons fornecedores, Flora comenta relação com a decadência e possível ausência
que numa festa de despedida de solteira foi de sensibilidade diante dos menos favorecidos;
montado um grupo de Whatsapp para tratarem associa-o à resposta diante de necessidades
de compra de MDMA. psicofisiológicas e, por fim, na sua relação com
a obtenção daquilo que se denomina “felicidade”,
Compramos 15 gramas do melhor MDMA que você isto é, ‘se eu consumo, logo sou feliz’. Nesse
possa imaginar. Com essas conexões de amizades, o paradoxo entre a liberdade que se faz das
cara que sempre cheirou vai ter um dealer bom do escolhas e o que o mercado oferece aos potenciais
padê; um cara que vai em rave todo fim de semana, consumidores é que o cardápio de drogas se
ele deve ter um canal de ecstasy bom; a pessoa que apresenta como objeto de consumo e de regimes
fuma maconha todo dia, certeza que vai fumar um de moralidade.
beque bom e não vai fumar bosta de vaca. Pelo apresentado, notamos que as
usuárias de drogas lícitas contam com uma
Por meio do seu círculo de contatos é diversidade de estratégias de compra e modos
que, geralmente, pessoas das camadas medianas de consumo diário. A publicização da solução
da sociedade fazem a aquisição de drogas, sendo do mal-estar pela indústria farmacêutica, a
que o consumo de substâncias ilícitas passa pelo criação de síndromes e transtornos e a massiva
estilo de vida do usuário. Esse círculo de contatos “diagnoticização” fazem com que possamos dizer
inclui a presença de alguém que fornece a droga que há uma sociedade voltada para o diagnóstico.
seja como um amigo-usuário, seja na figura de Por sua vez, a comercialização e o consumo
um traficante e o estabelecimento da compra e de drogas ilícitas também exige uma mensuração
venda exige uma relação de cuidado e confiança. de riscos no acesso e uso das mesmas. Porém, a
Um estudo de caso do mercado ilegal de proibição legal do consumo das mesmas não faz
drogas na classe média no Rio de Janeiro, por com que os sujeitos deixem de fazer uso. Há um
meio da observação participante e de entrevistas cuidado e modalidades de acesso distintas para
informais realizadas com traficantes em liberdade, que o uso se efetive. Esse cuidado é traduzido na
percebeu-se que “o zelo pela manutenção da busca de informações, na qualidade da droga, na
clandestinidade de tais empreendimentos confiança que se tem no amigo e/ou no traficante.
ilegais obriga a que quanto maior for o êxito do Ora, é notório que drogas podem vir a
traficante, maior seja o rigor na seleção dos seus causar mal à saúde física de seus usuários. O uso
revendedores” (GRILLO, 2008, p.58). do álcool e o tabaco são provas disso quando se
Na medida em que o usuário busca apresentam os números de mortes causadas por
um meio para adquirir maconha, cocaína ou acidentes de trânsito (no caso da primeira) e das
qualquer outra droga entram em cena diversas comorbidades referentes a ambas.
razões pelas quais irá comprar e fazer o uso (ou De fato, o uso excessivo, o chamado
não) e, dentro de tais justificativas estão incluídos abuso do consumo de drogas, pode acarretar
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sérios problemas à saúde do usuário. Porém, de 2011, quando se ultrapassa o referencial
TEORIA E CULTURA
notamos que o consumo recreativo ou diário proibicionista que dominava o debate público
como vários dos sujeitos de nossa pesquisa sobre as drogas no país.
relatam não é digno para denominá-los como Assim, se por um lado temos esse
um problema de saúde pública. Seja porque deslocamento de sentido do uso de drogas ilícitas
fazem parte de um grupo social economicamente para a consequente legalização e regulamentação,
mais favorecido (brancos, com curso superior ou no qual um corpo acadêmico-jurídico-
técnico, renda classe média), seja porque não governamental-civil apoia; por outro, no campo
desafiam a ordem e as normas jurídicas do país das lícitas, há veiculação de notícias, livros e
(não são traficantes, mas fazem parte de uma estudos sobre o excessivo consumo e testagem
rede de sociabilidade em que há contato com de fármacos, porém, sem a menção de que isso
traficantes), seja porque cumprem com suas seja pauta para uma política pública, bem como
obrigações domésticas e trabalhistas diárias, seja deva ser foco de atenção da saúde pública. Ou
pela existência de diferentes maneiras de se obter seja, o consumo de drogas não é um problema de
um controle do próprio consumo. A perspectiva saúde pública, a priori, principalmente, no que
de que o consumo de drogas seja um problema diz respeito ao uso das chamadas lícitas, mas faz
de saúde pública não se pode aplicar de forma parte de um regime de moralidades que perpassa
generalizada, mas os títulos noticiosos nos os saberes médico e jurídico. O uso prescrito
induzem a pensar desse modo. Mas também se o e regulado que, antes, era visto sob a rubrica
tema não é pautado como saúde, as drogas acabam do desviante, do doente ou do anormal, hoje,
sendo pautadas pelo econômico ou associada à passa a ser visto numa perspectiva “razoável”
editoria “estilo de vida”10. Mesmo com o marco (SCHUTZ,1979) em que a necessidade do uso
legal da Lei No. 11343 (que instituiu o Sistema impõe “um gosto de necessidade que implica
Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas – uma forma de adaptação à necessidade e, por
Sisnad), não é demais atentar para o fato de que conseguinte, de aceitação do necessário, de
no Brasil, atualmente, há uma série de propostas resignação ao inevitável” (BOURDIEU, 2013,
por mudanças legislativas que visam retroceder p.350). Lembremos que se pode lançar mão de
conquistas no campo dos direitos humanos e um rivotril ou de um dorflex, se houver desejo,
com tendências a aumentar o já altíssimo número por exemplo. Pode-se fumar um baseado desde
de presos por posse de drogas - que colocam o que o delivery leve até a residência.
Brasil na quarta posição no ranking mundial de A partir das narrativas apresentadas
encarcerados11, - e que, por isso, observa-se uma pode-se observar como a aquisição e o consumo
grande preocupação entre especialistas sobre de drogas são práticas sociais heterogêneas.
o tema da excessiva criminalização do uso de
drogas também no campo jurídico brasileiro. Noutras palavras, o uso “ritualístico”, “contextual” e
Observa-se na chamada “opinião pública”, “controlado” de drogas não é necessariamente um
um deslocamento da narrativa jurídica para uma privilégio de contextos supostamente tradicionais; e
narrativa biomédica de cuidado. Campos (2015) mesmo em contextos considerados potencialmente
também notou uma mudança nos regimes abusivos - como o caso das cenas de consumo
discursivos sobre o consumo de drogas a partir de crack, algumas chamadas pejorativamente
10 Como é o caso do jornal Valor Econômico, em que em uma simples busca pelo seu site na internet, o leitor se deparará
entre notícias que vão desde o mercado de drogas internacional (quanto o Colorado ou Washington poderão arrecadar
com impostos) ou a maconha como um objeto de consumo em meio a um estilo de vida da sociedade contemporânea.
11 Para mais informações ver: Levantamento Nacional de informações penitenciárias INFOPEN- Junho 2014.
Disponível em http://www.justica.gov.br/noticias/mj-divulgara-novo-relatorio-do-infopen-nesta-terca-feira/relatorio-
depen-versao-web.pdf
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cracolândias -, o uso de drogas é sempre de alguma Também vale mencionar que as noções
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maneira calculado e regulado, ainda que tensionado dicotômicas ou binárias, como denominam Rui
por relações de poder e por distintos efeitos da e Labate (2016), com as quais se está acostumado
violência estrutural. Estes controles não implicam, a se deparar quando se pesquisa consumo
ou não devem ser diretamente associados com de drogas, não atendem a ampla gama de
regulação estatal (RUI; LABATE, 2016, p. 38). recursos, estratégias e projetos de vida existentes
na sociedade, pois passa pela existência de
A grande mídia comercial, de modo “universos simbólicos que constituem áreas
geral, trabalha com categorias simplificadoras próprias que, embora ligadas à política,
e comumente binárias para entendimento/ economia etc., expressam necessidades sociais
entretenimento do seu público-leitor-leigo- peculiares” (VELHO, 1997, p. 61). De qualquer
consumidor. Para além dos binarismos, Velho modo, tais dicotomias ou oposições têm sua
(1997, p.21) aponta “há que perceber quais eficácia ideológica pois remetem às oposições
são, dentro dos diferentes segmentos de uma e binarismos difundidos no senso comum que
sociedade complexa, os temas valorizados, as fundamentam e legitimam uma determinada
escalas de valores particulares, as vivências ordem social (BOURDIEU, 2013, p.436).
e preocupações cruciais”. Por meio de suas Por fim, é importante sublinhar que
trajetórias, as mulheres entrevistadas puderam os “motivos para” a aquisição e o consumo de
apresentar que as categorias e os limites que as fármacos algumas vezes se diferenciam dos
abarcam são de uma espécie mais porosa e tênue “motivos para” a compra das drogas ilícitas, e em
que, por sua vez, convidam a pensar sobre suas outras vezes não. E, no entanto, as primeiras são
respectivas estratégias e, consequentemente, categorizadas e/ou vistas como imprescindíveis
propriamente de um cuidado de si. em um determinado momento da vida; enquanto
as segundas, não o são. Isso nos habilita a dizer que
Considerações finais o consumo de drogas, de modo geral, é permeado
de um regime de moralidades – geralmente
Nesse artigo, vimos que o consumo atrelado a um regime jurídico específico -, de
de drogas prescritas pode se dar de distintos aceitação e vínculo social para ambos os casos.
modos e nas mais variadas situações, de forma O consumo de drogas não está vinculado
recreativa e/ou medicamentosa. Pelas narrativas somente a contar com recursos financeiros para
apresentadas, observamos que há pelo menos fazer uso de um vinho por um determinado grupo
três possíveis modos de acessá-las e que não são social e, em outros, não contar com o dinheiro
excludentes uma das outras: a partir da existência e por isso consumir crack, por exemplo, ou
delas em um contexto doméstico; por meio da ainda consumir fármacos. Entre o uso de álcool,
rede de amigos ou familiares; e, pela prescrição maconha ou fármacos, a mulher avalia qual é
médica. Existem várias portas de entrada para o substância mais apropriada para o seu consumo
consumo e não somente uma costumeiramente privado, pois entre a biqueira e a farmácia mais
propagada pela grande mídia e isso vale tanto próxima há muito mais que um modo capitalista
para as drogas lícitas quanto para as ilícitas. em jogo, há um modo de vida que exige dessa
Ainda que não tenhamos dados para usuária escolhas que, a princípio, possibilitam
ilustrar, fica a hipótese de que, de modo geral, que a mesmo se individualize enquanto sujeito,
mulheres “classe média” terceirizam a compra concomitante à sua inserção na vida social e
de drogas lícitas por meio de amigos e deliveries cotidiana.
. Nesse caso, novas investigações poderão ser
realizadas a fim de comprovar (ou não) se isso
é uma diferença entre os gêneros nas suas
respectivas compras de drogas ilícitas.
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TEORIA E CULTURA
Resumo
Cognitive enhancement and substance use: a study around Brazilian media dissemination on
smart drugs and nootropics
Abstract
The use of drugs to improve mental processes, such as memory, concentration and alertness, has
been expanding through the Internet. The so-called smart drugs and nootropic drugs are used with
the expectation that better performance can be achieved in professional and academic tasks. The
aim of this article was to analyze the diffusion of cognitive enhancement drugs’ use from Brazilian
media publications. The methodology adopted was the qualitative documentary research, based on
scientific dissemination materials that include reports published between 2009 and 2017, in nationally
recognized media outlets. In the propagation of knowledge and practices related to the optimization
1 Doutorando em Saúde Coletiva pelo Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC) da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ)
2 Professora Associada do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva (IESC) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ)
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of cognitive performance through substance objetivos específicos que, em grande medida,
TEORIA E CULTURA
use, the Internet constitutes a potential media residem na expectativa de se obter maior
technology as a mean for the dissemination and eficiência e melhor desempenho em tarefas
socialization of such substances. The construction profissionais e acadêmicas. As chamadas “smart
of knowledge, notions and social representations drugs” ou fármacos nootrópicos têm se expandido
related to the theme addressed challenges the crescentemente mediante difusão pela internet,
hegemonic control instances of health care. In diante da divulgação de substâncias voltadas
the wake of the pharmacologization processes of para a otimização do desempenho cognitivo.
society, the public treatment of the subject makes Uma série de relatórios e artigos já surgiram em
it possible to draw an analogy with the “drug resposta a estes desenvolvimentos, abordando
issue” made illicit in contemporary times. as implicações éticas, jurídicas e sociais dos
medicamentos para aprimoramento cognitivo
Keywords: medicalization; nootropic agents; e o grau em que devem ser regulamentados
biomedical enhancement. (WILLIAMS et al, 2011). Com o objetivo
de melhorar o desempenho acadêmico e
Introdução profissional, não uma nova era de fármacos, mas
medicamentos antes comercializados têm sido
O desenvolvimento do conhecimento utilizados fora das indicações para os quais foram
científico, paralelo à expansão da indústria aprovados, em usos off-label3, em grande medida
farmacêutica, aliado à consolidação do que por indivíduos que não buscam o tratamento de
muitos autores chamam de complexo médico- quaisquer sintomas. Muitos fármacos utilizados
industrial (CLARKE et al, 2010; MIGUELOTE; no tratamento de condições específicas de saúde
CAMARGO JR, 2010), têm uma importância mental, tais como o metilfenidato (Transtorno
crucial na remodelação das relações sociais do Déficit de Atenção e Hiperatividade TDAH),
por meio das quais tentamos compreender donepezil (Alzheimer) e modafinil (narcolepsia)
a nós mesmos, nas sociedades ocidentais estão sendo utilizados por pessoas saudáveis
contemporâneas. A história da medicina tem para aperfeiçoar o desempenho cognitivo
sido ligada à história das formas com que os seres (WILLIAMS et al, 2011). Ademais, empresários
humanos têm tentado se tornar melhores do que e companhias diversas também buscam a
são (ROSE, 2013). As sociedades contemporâneas produção do seu “viagra para o cérebro” e
introduziram um horizonte de aprimoramento alguns já os prometem pela comercialização na
constante e uma necessidade permanente de internet (ROSE, 2013). As vendas internacionais
melhoria de nossas capacidades (BARROS; de suplementos para cognição, excluídos os
ORTEGA, 2011; ORTEGA et al, 2010). medicamentos anteriormente citados, excederam
Uma questão que atualmente chama atenção 1 bilhão de dólares por ano em 2015 e se mantêm
é a promessa de que fármacos e suplementos em crescimento (CHINTHAPALLI, 2015). Nos
alimentares possam ser utilizados para aumentar Estados Unidos, estima-se que as vendas desses
o estado de alerta, concentração, memória e suplementos tenham atingido 217 milhões de
outros aspectos do funcionamento cognitivo, dólares em 2018, com um aumento de mais de
configurados num recurso que podemos 40% se comparadas ao ano de 2017 (CHAKER,
denominar “aprimoramento cognitivo”. O 2019).
consumo de substâncias para aprimorar Na página eletrônica do Portal Regional da
a performance dos processos mentais/ Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), no atalho
neurocognitivos em indivíduos saudáveis tem destinado à consulta dos Descritores em Ciências
3 Constituem o uso de medicamentos para uma indicação não aprovada, um grupo etário não aprovado, uma dose não
aprovada ou uma forma de administração não aprovada, de acordo com o registro sob o qual um fármaco é licenciado no
órgão sanitário competente (FREITAS; AMARANTE, 2015).
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da Saúde (DECS), é possível encontrar a expressão de uma psicofarmacologia apta a possibilitar
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4 De acordo com a Portaria n.344 de 1998 da Secretaria de Vigilância Sanitária (SVS), do Ministério da Saúde.
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da chamada “invasão farmacêutica” (VARGAS, podem ser encaradas como uma lógica que
TEORIA E CULTURA
2008), uma vez que tal expansão propiciou une as diferentes percepções individuais de um
a partilha moral entre drogas de uso lícito e grupo (VÍCTORA et al, 2000). Como campo de
drogas de uso ilícito, mais especificamente pesquisa, a internet é um espaço diferenciado
entre drogas, medicamentos, condimentos, para a compreensão dos comportamentos de
alimentos e cosméticos. É nessa partilha que indivíduos e grupos, em que os conteúdos gerados
encaramos de um lado a criminalização das e propagados por consumidores e produtores
drogas tornadas ilícitas e de outro, o processo de dessas informações abrem a possibilidade para
invasão farmacêutica. É a partir desse ponto de criação de novas formas de sociabilidade e
vista que devemos analisar as relações existentes interação social. Ademais, constitui um campo
entre a proibição de determinadas substâncias aberto para a captação de documentos passíveis
psicoativas e a promoção de outras e em que de serem fontes para a pesquisa e o tratamento
medida esses sistemas se realimentam (COHEN analítico. A disponibilidade das informações,
et al, 2001). Nas relações de poder suscitadas a postura ativa dos indivíduos e a facilidade de
a partir da geração e circulação de diferentes acesso constituem oportunidades para dispersão
discursos acerca dos medicamentos e seus efeitos, e produção de conhecimento no ambiente virtual,
o consumo não terapêutico do que antes eram que se configura como tecnologia midiática
medicamentos aprovados para o tratamento de potencial.
determinadas condições se confunde com o uso O presente estudo utilizou a metodologia
medicamentoso ou não de substâncias tornadas qualitativa, em sua abordagem documental
ilícitas. Assim, o dispositivo das drogas cristaliza (SÁ-SILVA et al, 2009), sob uma perspectiva
a tensão existente entre drogas de uso lícito e socioantropológica, para captar as representações
drogas de uso ilícito. As mesmas substâncias se e práticas sobre o uso de medicamentos para
polarizam de um ponto ao outro e o consenso se aprimoramento cognitivo, a partir de reportagens
confunde na nebulosidade das fronteiras postas publicadas em sites de veículos de mídia
em questão. reconhecidos nacionalmente. Assim, o acesso
ao objeto de estudo ocorreu por intermédio
Metodologia da observação e análise de documentos em
páginas da internet com veiculação pública de
Os métodos qualitativos de pesquisa não medicamentos para aprimoramento cognitivo
buscam a mensuração de fenômenos em grandes no país. O material empírico foi coletado em
grupos, mas sim entender o contexto onde algum fontes de domínio público na internet, o que
fenômeno ocorre, o que permite a observação incluiu páginas/sítios com endereço eletrônico,
de vários elementos simultaneamente em um reportagens e vídeos publicados e relacionados ao
pequeno grupo e um conhecimento aprofundado tema. Como ferramenta para a coleta de dados, a
de um evento (VÍCTORA et al, 2000). Em pesquisa documental utiliza métodos e técnicas
sua aplicação à área da saúde, a metodologia para a apreensão e compreensão de documentos
qualitativa busca compreender o significado dos mais variados tipos. Recorre principalmente
individual ou coletivo de um evento na vida a fontes primárias, ou seja, materiais que ainda
das pessoas. Uma vez que, em torno do que as não receberam tratamento analítico (SÁ-SILVA
coisas significam, as pessoas organizarão de et al, 2009). A análise documental favorece a
certo modo suas vidas, incluindo seus próprios observação de indivíduos, grupos, conceitos,
cuidados com saúde (TURATO, 2005). Nesse conhecimentos, comportamentos, mentalidades,
sentido, as representações sociais, como formas práticas, entre outros (CELLARD, 2008). Embora
de conhecimento socialmente elaboradas e não seja possível restringir as representações
partilhadas por um grupo, funcionam como acerca do debate público sobre o assunto aos
orientadoras das práticas sociais. Também meios de comunicação de massa, é importante
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considerar a difusão e a produção de discursos à procura de notícias publicadas em veículos
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publicação. A produção científica nacional sujeitos a controle especial, metilfenidato e
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sobre os usos do metilfenidato está em grande modafinil, citados em 12 e dez reportagens,
medida vinculada às pesquisas sobre TDAH respectivamente. Outros da mesma categoria que
no Brasil (ORTEGA et al, 2010; ESCHER; aparecem são lisdexanfetamina5, quatro vezes,
COUTINHO, 2017). Essa pesquisa (ORTEGA e donepezil6, duas. Também são mencionados
et al, 2010), realizada em 2009, verificou que, de o piracetam (medicamento que não possui
72 reportagens publicadas em jornais e revistas controle especial pela legislação brasileira) e seus
de maior tiragem nacional, entre 1998 e 2008, derivados (substâncias que não possuem registro
apenas duas tratavam dos usos “não médicos” na ANVISA – Agência Nacional de Vigilância
do fármaco para melhorar o desempenho Sanitária) em seis textos.
cognitivo. Das 21 reportagens coletadas, sete tratavam
Dos documentos selecionados para a de substâncias de classificações diferentes
presente pesquisa, apenas uma reportagem foi perante à ANVISA – medicamentos sujeitos a
encontrada para o ano de 2009 e duas no ano controle especial, medicamentos vendidos sem
de 2011. Para os anos de 2012, 2013 e 2014, retenção da receita e suplementos alimentares
foram encontradas duas publicações por ano. O – numa mesma categoria, a partir da finalidade
ano com mais publicações foi 2015, com cinco de uso. Apenas duas faziam uma diferenciação
reportagens. O ano de 2016 teve três publicações não por essas classificações, mas pela ausência
e o de 2017, quatro publicações. O conjunto dos de efeitos colaterais significativos, pelo baixo
textos jornalísticos encontra-se listado no Anexo, potencial para causar dependência e pela baixa
em fontes consultadas. É possível verificar um toxicidade. Essas são as características principais
aumento nas publicações de mídia popular ao utilizadas na década de 1970, pelo médico e
longo dos anos, se compararmos os dados atuais pesquisador da indústria farmacêutica Corneliu
com aqueles da pesquisa que analisou os anos de Giurgea (1982), para enumerar o perfil da classe
1998 a 2008 (ORTEGA et al, 2010). Na presente dos nootrópicos. Tal caracterização reforça
pesquisa, a utilização em ambientes de estudo o perfil de baixa incidência de graves efeitos
foi a justificativa mais comum, sendo verificada adversos em comparação com os fármacos
em 13 dos 21 documentos. São estudantes em psicotrópicos lançados no mercado até então
preparação para vestibular e concursos públicos (GIURGEA, 1982). O fato de os nootrópicos não
e universitários. Esse dado reitera a abrangência possuírem efeitos farmacológicos expressivos e,
das pesquisas científicas já realizadas em outros potencialmente, não causarem dependência, os
países, que documentam o uso destas substâncias diferencia dos medicamentos de uso controlado
em indivíduos saudáveis e abrange estudantes que, dessa forma, não se encaixam completamente
secundaristas e universitários, havendo alguns nos critérios de definição dos nootrópicos
estudos que estimaram as prevalências de tais (GIURGEA, 1982). Esses seriam considerados
usos nessas populações (BATTLEDAY; BREM, como outro grupo dentro do universo mais amplo
2015; FARAH, 2015; SAHAKIAN; MOREIN- das smart drugs, apesar de, na atualidade, a classe
ZAMIR, 2015). dos nootrópicos ser mais relacionada à finalidade
Em menor grau, em oito das 21 publicações, de uso para aprimoramento cognitivo do que
são apontados ambientes de trabalho competitivos propriamente com uma classe de medicamentos
e com nível elevado de exigência, como no com características bioquímicas semelhantes.
caso de militares, médicos e trabalhadores Em 15 das 21 publicações, a opinião de
do mercado financeiro. Os fármacos mais especialistas da área biomédica marcava o perfil
reportados em ambas as situações são aqueles de alerta das reportagens quanto à segurança e
5 Comercializado no Brasil sob o nome Venvanse®, para o tratamento de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade). Fármaco sujeito a controle especial pela ANVISA.
6 Fármaco utilizado no tratamento da Doença de Alzheimer e sujeito a controle especial pela ANVISA.
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o risco da utilização de fármacos com objetivo no Brasil. Nela, o psiquiatra Dartiu Xavier, da
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de otimização do desempenho cognitivo. Essa UNIFESP, afirma que todo medicamento oferece
tendência confirma a legitimidade conferida ao algum risco de ocorrência de efeitos colaterais
argumento de autoridade dos saberes biomédicos e que os nootrópicos, medicamentos com a
no tratamento da “questão das drogas” na finalidade de proteger o cérebro em indivíduos
contemporaneidade, sejam estas lícitas ou ilícitas que sofreram danos neurológicos decorrentes de
(FIORE, 2006). doenças como Alzheimer ou derrames cerebrais,
Dois influentes pesquisadores do só seriam eficazes quando há deficiências como
aprimoramento cognitivo, os neurocientistas essas. Em outra reportagem, exibida no programa
Ruairidh Battleday e Anna-Katharine Brem, Saia Justa9, do canal televiso fechado GNT,
das universidades de Oxford e Harvard, em 14/05/2013, o neurocientista Carl Hart, da
respectivamente, afirmaram recentemente, numa Universidade de Columbia, é taxativo ao salientar
entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos7 , que que é preciso estudar os efeitos a longo prazo
smart drugs são substâncias com a função de do medicamento modafinil, pois ainda existem
aumentar ou ampliar as funções cognitivas em poucas informações a esse respeito. Os possíveis
pessoas saudáveis, sem causar efeitos colaterais benefícios clínicos da utilização de medicamentos
significativos. Os pesquisadores acenam para a para essa finalidade em indivíduos saudáveis não
possibilidade de o modafinil – um medicamento são bem comprovados pela literatura científica
sujeito a controle especial – corresponder a contemporânea (FARAH, 2015; FORLINI;
essa classificação, apesar das ressalvas sobre a GAUTHIER; RACINE, 2013; SAHAKIAN;
necessidade de mais informações sobre seus MOREIN-ZAMIR, 2015; BATISTELA, 2011).
efeitos colaterais em indivíduos saudáveis e Ao caracterizar o uso não medicamentoso e,
sobre seus efeitos a longo prazo. Tais afirmações em grande medida, off-label dessas intervenções
tornam ainda mais problemático algum consenso farmacológicas, é preciso considerar as
sobre as denominações e as categorizações dessas formas contemporâneas de utilização dos
substâncias quanto às finalidades de uso para medicamentos e as interações desses objetos
aprimoramento cognitivo. nas redes de significados individuais e
Parcela considerável das reportagens coletivos nas quais estão inseridos (COHEN
apresentou considerações sobre a segurança et al, 2001). É nesse sentido que se expressa a
e a eficácia das substâncias abordadas. Em 16 importância que os medicamentos exercem
textos, as observações sobre possíveis efeitos para a construção de identidades coletivas a
colaterais e a longo prazo são consideradas. Em partir do compartilhamento de experiências
15 destes, a opinião de especialistas corrobora relacionadas ao consumo de tais substâncias. A
tais ponderações, como na reportagem exibida produção de modos de subjetividade, a partir
no programa televisivo Fantástico8, da Rede dos discursos de verdade baseados no saber
Globo, em 05 de junho de 2016, ao afirmar que biomédico, permite a adoção de identidades
o tema do aprimoramento cognitivo pelo uso a partir da manipulação de estados corporais
de medicamentos e suplementos alimentares pela via farmacológica (CLARKE et al, 2010;
tem se tornado recorrente, principalmente em COLLIN, 2016; ROHDEN, 2017; CASTRO,
contextos individualistas e competitivos, como os 2020). Nessa direção, é importante ressaltar
de grande concorrência em concursos públicos que muitas páginas da internet podem ser
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simplesmente veículos de empresas comerciais, sua capacidade de atingir um efeito, mas também
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interessadas em divulgação de medicamentos, na sua interação com forças culturais e sociais
de novas tecnologias, ou mesmo valores morais que definem uma condição como justificada por
que levem os usuários a buscarem seus produtos resoluções farmacológicas (FOX; WARD, 2008,
(PEREIRA NETO et al, 2015). O nível crescente p.862, tradução nossa).
de atenção pública para o assunto, apesar de
um corpo limitado de evidências científicas Trata-se de ponderar a eficácia simbólica
é uma questão considerável nesse contexto. (LÉVI-STRAUSS, 1996) que esse processo
Pesquisas anteriores demonstraram que a mídia abarca a partir do que possa ser considerado
pode desempenhar um papel na disseminação efeito placebo e o que este representa na eficácia
de informações, estimulando o interesse e geral da droga, ao compor com o efeito químico
reforçando a deturpação do nível de evidência da substância (PIGNARRE, 1999). Por outro
(WADE; FORLINI; RACINE, 2014). Ademais, lado, a construção da eficácia também passa pelo
a disseminação cultural dos consumos de agenciamento dos sujeitos e pela forma como os
performance, principalmente entre a população saberes biomédicos são reconstruídos a partir
jovem, constitui um fenômeno cuja amplitude das experiências pessoais e coletivas relacionadas
vai além das práticas de consumo, haja vista o à interação entre essas drogas e os corpos dos
efeito de visibilidade e familiaridade pública indivíduos que as utilizam (FLEISCHER, 2012).
proporcionado pelos veículos midiáticos a estes Na relação com os contextos em que estão
meios terapêuticos e seus usos de performance. inseridos, os medicamentos são constantemente
No entanto, o acesso público a tais recursos interpretados e socializados, reconstruídos e
não se transforma em adesão ao seu consumo reelaborados, para além das moléculas que os
somente pelos mecanismos sociais de difusão. constituem (HARDON; SANABRIA, 2017).
Tal conversão advém da confluência de outros Para além desse eixo de análise, o conceito
mecanismos sociais, revelando a importância de dispositivo, resgatado pelo antropólogo
dos próprios contextos cotidianos dos indivíduos Eduardo Vargas (2008), a partir da noção
(LOPES; RODRIGUES, 2015; COELHO; LEAL, trazida por Foucault (2006), lança luz sobre
2015). De todo modo, as mesmas substâncias as relações ambivalentes que as sociedades
psicoativas podem, então, estar disponíveis em contemporâneas mantêm com as drogas – no
contextos variados de consumo, mesmo que sentido mais amplo do termo –, marcadas
se configure uma partilha moral que conforma pela repressão e pela incitação ao consumo e
discursos públicos específicos entre o estatuto cristalizadas nesta espécie de dispositivo das
social de drogas de uso lícito e drogas de uso drogas (VARGAS, 2008). O conjunto de noções,
ilícito (VARGAS, 2008; FIORE, 2006). Apesar saberes, discursos e representações sociais que
das questões sobre risco e segurança de tais conforma o discurso público sobre drogas – no
intervenções farmacológicas, suscitadas pelas sentido mais amplo do termo – se fundamenta
reportagens consultadas, a crescente atenção em grande medida pelo eixo medicalizante
pública dedicada ao tema demonstra a existência (FIORE, 2006). Apesar das constantes ressalvas
de um espaço propício para a transformação das autoridades médicas acerca do risco e
de condições, capacidades e potencialidades segurança desses usos, caracterizados como
humanas em oportunidades para intervenções intervenções farmacológicas, os conhecimentos
farmacológicas, na definição de um processo de sobre o aprimoramento cognitivo com o uso de
farmacologização da vida cotidiana (WILLIAMS fármacos ultrapassam os domínios dos atores
et al, 2011). Como dito pelos sociólogos Nick J. oficiais do cuidado em saúde, sejam médicos
Fox e Katie J. Ward: ou outros profissionais de saúde, haja vista a
crescente divulgação midiática sobre o tema.
o sucesso de uma droga reside não somente na Ademais, os saberes e práticas intersubjetivas
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vêm consolidar uma base de conhecimentos sido designadas por aqueles que pretendem
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as evidências observadas permitem apontar deprived subjects: a systematic review”. In:
TEORIA E CULTURA
para analogias que devem ser abordadas em European Neuropsychopharmacology, v. 25, p.
estudos futuros e que vão além da partilha moral 1865-1881, 2015.
que separa o lícito do ilícito. Nesse sentido, as
racionalidades que direcionam a gestão desses BIBLIOTECA VIRTUAL EM SAÚDE
usos ainda têm muito a explicitar sobre o (BVS). Portal Regional da BVS: informação e
entendimento dessas práticas. O progresso do conhecimento para a saúde. [S.l: s.n.], 2019a.
debate que envolve o uso drogas numa abordagem Disponível em: <http://pesquisa.bvsalud.org/
mais ampla, incluídos os medicamentos, depende portal/decs-locator/?lang=pt&tree_
das perspectivas trazidas pelos usuários, sem
deixar de considerar o poder de agenciamento ______. Portal Regional da BVS: informação
das próprias substâncias e os sentidos que lhes e conhecimento para a saúde. [S.l: s.n.], 2019b.
são atribuídos nos processos de socialização. Disponível em: <http://pesquisa.bvsalud.
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TEORIA E CULTURA
Resumo
Contando poucos anos de atuação no Brasil, o Movimento Marcha da Maconha está presente na
cidade de Recife. Em referência a uma década de manifestações deste Movimento no município, o
artigo analisa algumas mudanças que levam o autor a postular que tal Movimento tenha partido do
lugar de maconheiro e chegado até o corredor dos movimentos sociais – ampliando sua própria causa
de mobilização. Enfocando especialmente duas fases dessa história, o texto ressalta que a mudança
de percurso da Marcha da Maconha é uma forte demonstração de que seu objetivo se ampliou e tem
se guiado rumo a outras substâncias e problemas. Estruturado em cinco partes, além de introdução e
conclusão, o paper aborda as noções de “lugar de maconheiro” e “corredor dos movimentos sociais”
em Recife, descreve as fases de “ameaças” e “confirmação” da Marcha da Maconha nesta cidade, bem
como apresenta o Coletivo Antiproibicionista de Pernambuco e as conclusões do autor a partir de
alguns anos de observação participante desta experiência.
From the place of marijuana smoker to the social movements corridor: the Marijuana March in
Recife
Abstract
Counting few years of performance in Brazil, the Marijuana March Movement has been present in
Recife city. In reference to a decade of manifestations of this Movement in the municipality, the article
analyzes some changes that lead the author to postulate that this Movement has moved from the place
of marijuana smoker to the corridor of social movements – expanding its own cause of mobilization.
Focusing especially on two phases of this history, the text points out that the change in Marijuana
March path is a strong demonstration that its goal has expanded and has been guided towards other
substances and problems. Structured in five parts, in addition to introduction and conclusion, the
paper addresses the notions of “place of marijuana smoker” and “social movements corridor” in
Recife, describes the “threat” and “confirmation” phases of the Marijuana March in this city, as well
as introduces the Anti-Prohibitionist Collective of Pernambuco and the author’s conclusions from a
few years of participant observation of this experience.
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Introdução e reinvenção (a partir de 2016)5.
TEORIA E CULTURA
Em referência à primeira edição da
O Brasil está no mapa das manifestações Marcha da Maconha em Recife, não encontrei
organizadas em nome do Movimento Marcha registros de medidas impeditivas no âmbito
da Maconha (MMM) com objetivo de alterar judiciário ou policial. O juiz (Alípio Carvalho
normas proibitivas de transações com maconha. Filho) que julgou o processo sobre o tema, em
A primeira edição brasileira da Marcha da 2009, mencionou um parecer do Ministério
Maconha foi realizada em 2002, na cidade do Público de Pernambuco (de autoria da promotora
Rio de Janeiro2. Em 2008, dez3 ou onze4 cidades Andréa Karla Maranhão) (TV NOVA, 2009). Ele
brasileiras planejaram e divulgaram Marchas da afirmou que, em 2008, o MP-PE entendera como
Maconha, mas somente em Recife não houve desnecessária a proibição de tal Marcha. Assim, a
decisão judicial que enquadrasse este ato no primeira edição na cidade foi planejada, marcada,
crime de apologia à droga. Em seguida, outras comunicada às autoridades e realizada sem
dezenas (talvez centenas) de cidades, nas mais nenhum empecilho judicial ou policialesco. A
diversas regiões do país, organizaram marchas segunda edição não teve a mesma sorte e foi alvo
homônimas e se viram enredadas em uma intriga de tentativa de impedimento por parte do mesmo
judiciária que só se resolveu em junho de 2011 Ministério Público. A partir de provocações de
com a decisão do STF favorável à realização de parlamentares evangélicos a outros oficiais do
qualquer manifestação de opinião análoga à órgão, o MP-PE pleiteou o impedimento judicial
Marcha da Maconha (STF, 2011). por meio de medida cautelar visando à proibição
Para o caso específico de Recife, remontei da realização da Marcha da Maconha. Trata-
a um tempo mais adequado o surgimento de se do Processo 001.2009.109617-1, do Poder
sensibilidades, argumentos e práticas relativas Judiciário de Pernambuco (Comarca de Recife),
aos problemas com drogas (BRANDÃO, 2017). julgado no âmbito da 2a Vara dos Feitos Relativos
Assim, sei que não foi em 2008 que Estado e a Entorpecentes que, em caráter pioneiro no
sociedade se viram provocados e acolheram país6, não proibiu a realização daquele ato depois
demandas que contribuíram para configurar da solicitação por parte de agentes estatais
uma “arena” em que o tema dos direitos contrários aos objetivos almejados pelo MMM.
das pessoas que usam droga não é um tabu Não apenas na primeira e segunda,
intransponível. Porém, devido aos limites deste mas em todas as edições desta Marcha em
texto, focalizo o período de efetiva realização da Recife, os membros das polícias têm agido de
Marcha da Maconha em Recife, que se iniciou acordo com as determinações legais e judiciais.
em 2008 e pode ser apresentado sob três fases: Lembrando frequentemente algumas regras do
ameaças (2008-2011), confirmação (2012-2015) jogo da manifestação em espaço público, eles
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tentam e – em alguma medida – conseguem Gojoba, 19/05/2016), o que se baseou na ideia
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controlar a ocupação das ruas por onde passa de que se alguém apontasse: “‘Oh, ali tá cheio de
essa manifestação7, bem como ressaltam a gente fumando maconha’ [...] a gente podia dizer
possibilidade de incriminação e detenção por ‘Não, pô, eu fumo aqui todo final de semana’”
apologia e tráfico de maconha. Esta performance(entrevista Gojoba, 19/05/2016).
policial antes, durante e até depois da Segundo Leite (2007), reconhecer um
performance dos marchadores foi mais percebida determinado perímetro espacial como “lugar”
no início dessa história, na fase que denomino de
pressupõe o compartilhamento de significados
“ameaças”, mas – em menor frequência – persistepor um grande número de seus frequentadores.
até o presente. Assim, as fronteiras de um lugar podem se
Apesar da legislação relativa aos estabelecer de modo físico ou simbólico, pelos
direitos civis e políticos ser a mesma para limites objetivos de circulação ou por seus usos
todo o território nacional e não ter passado e limites simbólicos. Contudo, vale ressaltar
por mudanças substanciais durante o período que Leite (2007) não postula consenso absoluto
enfocado, a Marcha da Maconha estava sendo no “sentido de lugar”; ele reconhece dissenso e
proibida em várias cidades brasileiras, mas na conflitos internos por meio do que chama de
capital pernambucana, destarte a tentativa de “ruídos”. Neste sentido, o território identificado
parlamentares e promotores de Justiça, ela foi como “lugar de maconheiro” nas primeiras
executada em 2008 e vem acontecendo de modo edições desta Marcha da Maconha é uma
ininterrupto desde então. Assim, uma questão demarcação socioespacial ruidosa que ultrapassa
que motiva este trabalho é tentar entender “Porbastante os limites do planejamento urbano e
que a Marcha da Maconha nunca foi proibida constitui um desvio do projeto gentrificador da
em Recife?”. Como resposta que estrutura o área da cidade onde marchadores da maconha
argumento central deste texto, postulo que estaapresentaram suas reivindicações.
história se deve bastante à circunscrição inicial Depois de definirem o percurso em uma
do Movimento local a um lugar específico. reunião no início de 2008, os organizadores
daquela primeira edição resolveram pagar taxa
O “lugar de maconheiro” ao órgão municipal que regula a ocupação do
solo urbano, a Diretoria de Controle Urbano
Em 2008, não havia muitas reuniões (DIRCON)8. Fizeram este pagamento nos
para discutir a operacionalização da Marcha últimos dias da semana que antecedeu a
da Maconha em Recife. Isso não significa que passeata. Em seguida, difundiram informações,
ela ocorresse de forma desorganizada, pois especialmente para jornalistas, com o fito de fazer
seus protagonistas aproveitavam diversas com que os principais veículos de comunicação
ocasiões para tratar do tema e tomar decisões. repercutissem a notícia. Alguns jornais
Uma primeira decisão importante foi “fazer [a efetivamente transmitiram a informação9, devido
Marcha] num lugar de maconheiro” (entrevista ao caráter inovador da manifestação ou, talvez,
8 A DIRCON prevê o recolhimento de tributos por manifestações organizadas em espaços públicos de Recife. Os
organizadores da Marcha da Maconha nesta cidade pagaram esta despesa, conforme seus próprios relatos e notícia
veiculada pelo grupo Jornal do Commércio em 02/05/2008, sob o título “Organizadores da Marcha da Maconha no Recife
pagaram até taxa na DIRCON”. Disponível em: http://jc3.uol.com.br/blogs/blogjamildo/canais/noticias/2008/05/02/
organizadores_da_marcha_da_maconha_no_recifepagaram_ate_taxa_na_dircon_r_5200__20190.php. Acesso em: 13
de jun. 2012.
9 Dois dos maiores jornais de circulação estadual, o Jornal do Commércio e o Diário de Pernambuco noticiaram a
previsão de realização deste evento, bem como a imprensa nacional difundiu que “A Marcha deve acontecer apenas em
Recife (PE)” (Portal G1, 03/05/2008). Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL452646-5598,00.html.
Acesso em: 15 de ago. 2016.
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pelo fato apontado por um polêmico sambista Arsenal da Marinha, passando pelo Paço do Frevo,
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recifense que afirma que muitos jornalistas Torre Malakoff e chegando até o Cais do Sertão;
“adoram a massa” (João do Morro – “Lado B do um centro de convergência em torno do Marco
jornalista”10). Zero (Praça Barão do Rio Branco); e, finalmente,
Este e os quatro anos seguintes o polo cultural da Rua da Moeda. Deste último,
correspondem ao que denomino “fase de vale destacar o surgimento sem intervenção
ameaças” da Marcha da Maconha em Recife. O planejada pelos poderes públicos, a partir do
local de encerramento destas quatro primeiras Bar Pina de Copacabana, de propriedade de
edições locais da Marcha foi a Rua da Moeda, um notável animador cultural conhecido como
no bairro Recife, atualmente conhecido como Roger de Renor, segundo Leite (2007, p. 265).
“Recife Antigo” ou simplesmente “Antigo”, que, Trata-se de uma corruptela do “Polo Alfândega”,
como disse Gojoba, “depois do movimento planejado efetivamente pelos poderes públicos
mangue-beat virou point, o Antigo virou point, como sendo um dos polos culturais do que nos
pô, ali, a Tomazina, a Rua da Moeda; a Rua da anos 1990 chamavam de “Novo Recife”. O “Polo
Moeda é simbólica, né, Seu Rainha, a Soparia [...]” Alfândega”, assim como a denominação “Novo
(entrevista Gojoba, 19/05/2016). E, frente a outras Recife”, nunca chegou à “boca do povo”; o “Polo
sugestões que demandavam uma manifestação à Moeda” foi que efetivamente ganhou atividades e
beira-mar, na Avenida Boa Viagem, prevaleceu discursos populares na virada do século XX-XXI,
a ideia de se encontrar e marchar em trechos enquanto as figuras oficiais de “Polo Alfândega”
da cidade que já fossem reconhecidos como e “Novo Recife” se limitaram a documentos
“lugar de maconheiro” – era uma forma de administrativos e projetos de captação de
evitar problemas e repercussões negativas. O recursos para uma dita “revitalização” do bairro.
encerramento era o momento previsto para a Neste sentido, o Polo Moeda pode ser
maior concentração de manifestantes, pois seria compreendido como lugar de refúgio em uma
ao final da tarde e daria tempo para a chegada cidade que rende tributos ao capital. A alternativa
de eventuais retardatários ou desavisados que foi reconhecida pelo poder público municipal
estivessem pela área e resolvessem aderir ao ato. e diversas iniciativas artísticas vêm sendo
Devido a esta intenção e à expectativa de maior promovidas ou incentivadas pela Prefeitura
público, o local escolhido para o encerramento nesse Polo desde os anos 1990. Deste modo, até
foi “A Rua da Moeda, que tem essa simbologia o presente, o lugar abriga no Carnaval o Festival
de liberdade, liberdade, porque já é uma zona Rec-Beat e, nas festas juninas, apresentações de
mais escancarada [...] isso aí é parte da tática pequenas bandas, quadrilhas improvisadas ou
[de pensar onde pode ter uma repercussão artistas ditos “alternativos”, como D. Selma do
favorável]” (entrevista Gojoba, 19/05/2016). Coco, Mestre Salustiano e a Banda de Pífanos
O “Antigo” tem diferentes polos de uso: de Caruaru. Outra característica particular é a
muitos prédios de administração de serviços inversão do sistema de segurança: “Enquanto
públicos situados no Cais do Apolo (Prefeitura, no Bom Jesus a vigilância ocorria de fora para
TRF, Polícia Federal e Superintendência do Banco dentro, ou seja, ela era direcionada para quem
do Brasil); área de moradia, como Favela do Rato não estava no eixo delimitado, no Moeda ocorria
e Pilar; o polo de consumo na Rua do Bom Jesus; o contrário: a vigilância era exercida de dentro
um polo cultural que se estende da Praça do para fora” (LEITE, 2007, p. 267).
10 Na ausência de registros sobre a gravação desta canção em disco, referencio o áudio disponível no youtube.com.
Disponível em: https://youtu.be/b7lcwZsgkI0. Acesso em: 30 de ago. 2016. Reproduzo também um trecho da letra: “[…]
jornalista tem uma vida babado, é muita fechação / nos bastidores da mídia, é vida louca, rola tudo e rola pegação / […] a
turma puxa um beck pra tirar o estresse e espairecer / Eu tou tirando essa onda / tirando onda com essa raça / de homens
e mulheres e gays / de muitos que adoram a massa [...]”. Acrescento ainda que “massa” é um dos muitos sinônimos de
maconha.
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Constata-se, portanto, que não é nenhuma Fase de ameaças, 2008-2011
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de entorpecente é considerada crime pela nossa lei jornalistas e autoridades estatais. Os anos
TEORIA E CULTURA
especializada da área. Vamos trabalhar junto com seguintes registraram novos impedimentos
as Polícias Militar e Civil para que isso não ocorra. pelo Brasil afora, mas a marcha continuava
Não podemos, de forma nenhuma, concordar ininterrupta na capital pernambucana.
com esse tipo de manifestação. […] Vamos fazer o Em 2011, nova tentativa de interdição foi
possível para proibir” iniciada por religiosos, que se congregaram a um
O repórter Eduardo Machado puxa a corda lançada vereador e um deputado estadual, para apresentar
pelo companheiro e o Secretário dá uma rebolada a demanda ao MP. A experiência deste órgão
pra não dizer nem sim nem não. parece ter desencorajado os que tentavam cercear
“Então está proibida a Marcha da Maconha no o MMM e provavelmente foi um dos motivos
Recife?” da ausência dos parlamentares no momento
“[...] É dever da Secretaria de Defesa Social de produzir um “Termo de Ajustamento de
reprimir esse evento, no entanto, vamos consultar o Conduta” que adiou a manifestação em uma
Ministério Público sobre o tema e acatar a decisão semana devido ao fato de haver uma ampla
que eles tomarem sobre o assunto” (TABOSA, reunião pública planejada pela prefeitura
2010). municipal para o mesmo horário e local previsto
pelos organizadores da Marcha.
Assim que soube da declaração do chefe Além das resistências externas, havia
da segurança pública no Estado, Gojoba diz divergências no próprio Movimento. A decisão
que resolveram ligar para a Secretaria e solicitar de fazer “uma Marcha ordeira, pacífica e legal”
audiência com o titular da pasta. Não lembrando era uma das motivações de críticas internas dos
quem fez o telefonema, afirma que foram marchadores que não aceitavam a orientação de
prontamente atendidos e – junto a Flávio Campos negar o uso de maconha ou dizer que o Movimento
– debateu com o Secretário o que considerava ser estava de acordo com as leis. Deste modo, havia,
um direito de manifestar opinião: e ainda há, no interior do MMM, pessoas que
jamais aceitaram a recomendação de reservar
[…] a gente chegou lá e ele conversa e tal, educado, o fumo de maconha para espaços e momentos
né, mas contra. E a gente: “É, mas é seu papel diferentes da Marcha. Não reconhecem que
proibir?”. E ele: “Se vocês garantirem que ninguém esta postura seja adequada para expressar os
vai fumar na marcha”. E a gente: “Mas num pode” interesses de quem vai à manifestação. Assim,
e perguntou a ele “Tem quantos PM?”. E ele: “Tem não era evidente o sucesso dos organizadores na
cinquenta e tantos mil, tem outros da polícia civil”. orientação de fachadas pessoais que convergissem
[…] Ele falou quantos policiais tinha, acho que 6 com a fachada coletiva que estavam assumindo
mil ou 4 mil policiais civis. Aí eu disse: “É, o senhor de acordo com a ordem, a paz e a legalidade.
tem quase 60 mil homens aí, armados, salário pago, Para complicar a situação, em
com carro, num consegue fazer o pessoal parar de 2009 havia surgido uma charge que ofendeu
fumar maconha. Como é que a gente vai fazer? Isso alguns marchadores, notadamente aqueles que já
num é papel da Marcha, da organização, impedir acumulavam insatisfação com a fachada legalista.
que as pessoas fumem maconha, é da polícia. O que A charge era acrescida de duas pequenas frases
a gente garante é que ninguém vai fazer apologia”. preparadas pelo cartunista Victor Zalma, como
Esse era o debate que a gente fazia (entrevista se reproduz a seguir:
Gojoba, 19/05/2016).
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Figura 2: Charge de Victor Zalma, convite 2009-2012 palavras que indicam uma suposta adequação da
TEORIA E CULTURA
11 “Bandeiroso” é uma categoria de pessoa que usa maconha e não se esforça para disfarçar. O termo é usado por
Cavalcanti (1998) em oposição a “maconheiro oculto” e deriva da ideia de “dar bandeira”, isto é, demonstrar que faz algo
que não é considerado normal de acordo com padrões legais.
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debater esta charge e muitos outros aspectos que dado por si já aponta a festividade despolitizada
TEORIA E CULTURA
incidem na organização do Movimento. Por isso, da Marcha. Marchando de ponte em ponte numa
a internet foi base para coleta de informações de cidade esvaziada, os participantes criam uma
outros observadores do processo de organização simulação de manifestação política que se completa
das Marchas da Maconha em Recife, como num espetáculo oferecido às câmeras jornalísticas
se depreende dos trechos das mensagens bem posicionadas pra captar a festa exótica.
transmitidas por e-mail entre militantes e Enquanto isso nos microfones os “organizadores”
utilizadas pelo Ministério Público no processo insistem que se trata de um movimento ordeiro e
de 2009. pacífico, deixando nas entrelinhas que ao contrário
Veja-se, primeiramente, o convite de ser um movimento que incomoda o Poder é um
difundido por Gojoba: movimento que o elogia. Por que inclusive a Marcha
da Maconha parece ser um filho meio ovelha negra
Galera beleza, este ano estamos dando continuidade do Governo do Estado… (RESISTE, 2011).
a organização do movimento anti proibicionista
em nosso estado, a reunião vai rolar hoje as 19 h Na sequência desta publicação, alguns
no DCE da universidade católica de PE. Só com membros do Coletivo Recife Resiste resolveram
organização e agindo coletivamente, vamos avançar criar um espaço de discussões em plataforma
em nossa luta pela legalização da maconha (apud digital que fosse além da troca de e-mails e que
CARVALHO FILHO, 2009). aproveitasse melhor uma rede social que estava
se popularizando no Brasil: o Facebook. Assim,
Em seguida, vale destacar uma das deram início nesta plataforma de comunicação
respostas, apresentada como sendo de autoria de a um grupo aberto sob o nome de “União de
Álvaro Lobo: Coletivos da Marcha da Maconha Recife”, no
qual era possível a qualquer interessado acessar
Pô galera, na boa, não penso q esse assunto deva ser e difundir informações, marcando novas
tão grande importância, pois todo mundo sabe q atividades – além de reuniões para organizar a
vai ter polícia, isso é uma grande bobagem, pois em Marcha.
toda a marcha sempre se fumou [...] É até legal q a Em meio a tantas contendas, a Marcha
sociedade veja que numa grande reunião de fumacê, da Maconha venceu o que até o momento é visto
não acontecem grandes problemas, pelo menos por como sendo a fase mais difícil para a manutenção
parte dos maconheiros [...] (apud CARVALHO das manifestações. Esta vitória decorre de
FILHO, 2009). muitos fatores, valendo destacar, da parte de
seus protagonistas, a habilidade discursiva e a
Outros que participaram da organização capacidade de difundir informações favoráveis
de algumas edições esparsas e criticaram muitas ao direito de se manifestar, mas também o fato
decisões implementadas pelo Coletivo Marcha destes protagonistas da Marcha da Maconha de
da Maconha foram os ativistas do Coletivo Recife Recife terem trajetórias de destaque no meio
Resiste. Publicando um libelo contra as escolhas político local.
de organização no ano de 2011, criticaram desde
data e local da manifestação até seu caráter festivo, Fase de confirmação, 2012-2015
supostamente despolitizado e de acordo com a
legislação. Por fim, acusaram o Movimento de Até aqui, espero já ter demonstrado
ser governista, como se pode constatar no trecho que, na fase de ameaças, o principal aspecto que
a seguir: mereceu destaque e favoreceu a continuidade da
Marcha da Maconha em Recife foi a orientação
A Marcha da Maconha em Recife acontece uma vez geral de não fumar durante o evento. A partir da
por ano em dias de domingo no Recife Antigo. Esse confirmação judicial do direito de realização desta
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Marcha se iniciou uma transição importante. dos primeiros protagonistas; e, finalmente,
TEORIA E CULTURA
12 Excertos da canção “Malandragem dá um tempo”, o hit de Bezerra da Silva no álbum “Alô malandragem, maloca o
flagrante”, lançado em 1986, vendendo mais de 300 mil cópias. A letra é de autoria de Adelzonilton, Popular P e Moacyr
Bombeiro, mas a interpretação mais difundida é, sem dúvida, a do sambista, nascido em Recife e radicado no Rio de
Janeiro, que se tornou conhecido como “embaixador dos morros e favelas”. Muito ousado, Bezerra da Silva abordou temas
polêmicos, como preconceito racial, corrupção política, criminalidade violenta, delação de bandido, seletividade penal e
tráfico de drogas, notabilizou-se como defensor da maconha. Cf.: Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira.
Disponível em: http://dicionariompb.com.br/bezerra-da-silva/dados-artisticos. Acesso em: 30 de jun. 2016.
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que consomem maconha não fazem só isso nas haviam indicado ao Secretário de Defesa Social
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suas vidas. Ademais, a performance “legalista” de Pernambuco, eles não tinham como garantir
garantiu diálogos e algum nível de confiança de que não houvesse “consumo de entorpecentes” e
sujeitos que inicialmente eram muito resistentes é importante reconhecer que alguma maconha
às sugestões dos marchadores. parece ter sido queimada nestes atos pelo Brasil
A multiplicação de Marchas no Brasil afora. Por fim, vale dizer que foi possível constatar
levou o debate a esferas superiores de mediação a presença de homens e mulheres oriundos de
de conflitos: Ministério Público e Tribunais diversos segmentos sociais e classes etárias, cujas
de Justiça foram acionados para impedir a máscaras e fantasias se somavam às músicas, aos
manifestação em muitas cidades brasileiras até cartazes e às palavras de ordem para configurar
que o processo chegasse ao Supremo Tribunal manifestações criativas que tiveram bastante
Federal, por meio da Ação de Descumprimento repercussão nos meios de comunicação de massa
de Preceito Fundamental número 187 (ADPF e internet.
187). Iniciada pela Procuradoria Geral da Em Recife, o percurso da Marcha cresceu
República, em julho de 2009, a ADPF teve início a partir de 2011, chegando à marca de 1,8 km,
pela argumentação da Procuradora Deborah mas, como é possível observar na próxima figura,
Macedo Duprat de Britto Pereira postulando permaneceu muito próximo à região da cidade
que a proibição da Marcha da Maconha violava que fazia parte da tática relatada por Gojoba de
os artigos 5 e 220 da Constituição Federal, se manifestar onde já havia grande concentração
garantidores dos direitos de expressão e reunião de maconheiros.
(STF, 2011). Assim, começou mais um longo Apesar do trajeto ter continuado nas
processo na Suprema Corte nacional, cujo imediações do Recife Antigo, bem como a
desfecho favoreceu o Movimento Marcha da concentração e o encerramento continuarem
Maconha – que saiu da contenda fortalecido com no “lugar de maconheiro”, o novo percurso
a decisão expressa pelo STF, em 15 de junho de demonstrou que a Marcha da Maconha estava
2011, declarando por unanimidade a legalidade atravessando suas primeiras pontes na cidade.
de manifestações, como a Marcha da Maconha, Estas pontes simbolizam o início da transição
cujo foco seja a reunião pacífica para difundir para uma fase de mudanças em que o direito de
opinião. reivindicar novos direitos estava devidamente
A partir desta decisão da suprema reconhecido. Podia-se esperar que os marchadores
corte jurídica nacional, mais de trinta cidades dessem um passo maior do que a obviedade que
brasileiras testemunharam a realização de carecera de reconhecimento da cúpula judiciária
Marchas da Maconha apenas no ano de 2012 . nacional, mas não fizeram exatamente isso. A
Em geral, estas manifestações não representaram Marcha se manteve muito semelhante durante
ocasião especial para práticas ilícitas, tampouco o período de 2012 a 2015, aqui denominado de
este tipo de postura parece ter sido estimulado; “confirmação”. A preocupação de evitar fumo
realizaram-se passeatas mais ou menos volumosas de maconha continuou presente. A busca de
e bonitas, bem como pacíficas na grande maioria uma performance que não violasse pressupostos
dos casos. Porém, como os militantes recifenses legais continuava como uma das principais
13 Ainda houve tentativa de impedir a manifestação em Manaus e Diadema. Segundo o sociólogo Renato Cinco,
vereador na capital do Rio de Janeiro pelo PSOL (2013-2016) e envolvido com a organização da Marcha da Maconha
nesta cidade, o comandante da Polícia Militar do Amazonas ameaçou pessoalmente os organizadores em Manaus. Já
em Diadema, no interior de São Paulo, o prefeito Mário Reali (do Partido dos Trabalhadores) expediu ofício afrontando
decisão do STF e proibindo a manifestação. No Rio de Janeiro, ao final da passeata, a ação da polícia provocou conflito
com manifestantes e, em Belo Horizonte, houve problemas e dois ativistas foram presos. Cf.: CINCO, R. “Não Vamos nos
Intimidar!”. In: Hempadão. Disponível em: http://www.hempadao.blogspot.com.br/2012/05/nao-vamos-nos-intimidar-
observacoes-168.html. Acesso em: 13 de jun. 2012.
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características da manifestação. A inovação pra esse movimento”. E aí também dei uma afastada
mais significativa estava fora da Marcha, nos […] (entrevista Flávio Campos, 15/05/2012).
processos de organização e nas discussões que
a precediam. Também seria legítimo imaginar Assim, abriu-se espaço para a emergência
que a garantia do direito de expressão, atraísse de novas figuras nesse processo organizativo.
novos simpatizantes para a causa, mas isso não se Os pioneiros não acompanharam de perto o
verificou em termos numéricos. que passou a ser bastante repelido naquele
Os protagonistas das primeiras edições período: ideias e representantes de partidos
estavam afastados. Marcílio Cavalcanti já não políticos na organização e realização da Marcha.
participava da organização desde 2010. Gojoba Referidos como “dinossauros” por alguns novos
estava se envolvendo menos com as atividades organizadores, parecia que o tempo daqueles
do MMM porque se dedicava intensamente havia realmente passado, mas – ao chegar na
ao trabalho que realizava junto à Prefeitura. performance propriamente dita – víamos que
O jornalista Neco Tabosa, por sua vez, havia eram os militantes de partidos políticos que
delegado suas atribuições a outras pessoas melhor conheciam aquele palco e seus recursos.
desde 2012. E a presença de Flávio Campos Por outro lado, a fase de confirmação marcou a
na organização passou a ser questionada no diversificação de atividades e viu surgir um novo
momento em que ele assumiu que disputaria um Coletivo.
cargo na vereança da capital pernambucana, nas
eleições municipais de 2012. Como ele afirmou Coletivo Antiproibicionista de Pernambuco
sobre este período, constata-se que
Mais conhecido pela sigla CAPE, o
[…] outros coletivos chegaram pra participar, Coletivo Antiproibicionista de Pernambuco
chegaram pra construção da Marcha com muita nasceu, ao final do ano 2013, com um propósito
agressividade, dizendo que num quer, que num mais amplo que o de seu precedente maconhista.
pode, que partido num pode participar, quem é A ideia se originou do desejo de instalar em
de partido num pode participar, que tá servindo Recife uma ambiência de ação coletiva de
de trampolim político pra muita gente, que essas antiproibicionistas que não se limitasse aos
pessoas têm de sair… enfim. Eu fiz: “Oh, quer momentos de Marcha ou aos encontros para
saber? Eu num tou participando da Marcha pra tá organizá-la, pois, como disse Ingrid Farias, há
discutindo se a minha participação é legítima ou
num é legítima. Eu já dei minha contribuição pra […] potência em organizar reuniões pra organizar
esse movimento e agora toquem aí. Eu ajudo se a Marcha [...] é importante pra que as pessoas se
puder e como puder, mas já dei minha contribuição reconheçam organizando Marcha. Tem gente que
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se reconhece organizando Marcha, tem gente que 16/10/2013).
TEORIA E CULTURA
se reconhece fazendo lambe pra colar nas paredes
das ruas. Então é importante ter esse coletivo que se A motivação de criação do Coletivo
reconheça como ativista pra construir esse espaço de seria pensar e agir em alternativa a tudo isso.
rua, mas é importante também ter um coletivo pra O documento se encerra com a declaração de
construir o cotidiano, a luta diária […] (entrevista que este Coletivo nascente é uma iniciativa
Ingrid Farias, 01/07/2016). “permamentemente aberta a novos membros
e contribuições, organizado SEM hierarquia”
O novo coletivo assumia responsabilidades para debater “argumentos moralistas e interesses
de organização da Marcha, mas demonstrava econômicos” e “colocar a mão na massa para
pretensões mais amplas. Dentre os principais atores organizar outro tipo de sociedade” (CARTA
do CAPE, destacavam-se figuras interessadas na COLETIVO ANTIPROIBICIONISTA PE
construção de um movimento antiproibicionista À SOCIEDADE – 16/10/2013, caixa alta no
muito próximo da luta antimanicomial que original). A abertura às contribuições demonstra
lançou as bases da reforma psiquiátrica no Brasil um caráter de constante reinvenção deste grupo
e, ao mesmo tempo, estava se arraigando a outras que nasce – no Facebook em 27 de setembro de
causas, como o feminismo e as reivindicações 2013 – como Coletivo Deslegalize, insinuando
juvenis, mobilizadas principalmente por uma intenção de desobediência civil que esteve
estudantes. Vale ainda acrescentar a identificação poucos dias presente em sua denominação, pois,
desse novo movimento com a reivindicação em 04 de outubro de 2013, o perfil de Facebook teve
abolicionista de quem luta por um Direito Penal nome alterado para os termos que o identificam
menos encarcerador. Construir simultaneamente até o presente: “Coletivo Antiproibicionista de
estes movimentos correlatos, garantia a ativistas Pernambuco”.
do CAPE a possibilidade de difundir as pautas de Antes de ganhar um nome, o grupo
uns sobre os outros. teve uma ação, da qual vale destacar reuniões
Juntos, estes ativistas colaboraram na presenciais e discussões em ambiente virtual,
redação de um manifesto antiproibicionista, mas também um evento que é apresentado por
divulgado em 16 de outubro de 2013, pelo vários de seus membros como sendo o marco
Facebook, marcando o surgimento do CAPE. inicial da ação do CAPE: uma audiência pública
Dentre as ideias expostas naquele documento, há na Câmara Municipal de Recife, realizada por
referências solicitação – e com o apoio – do vereador Osmar
Ricardo (do PT) para discutir “Uso medicinal da
[…] a um sistema viciado, com imensos lucros maconha” a partir de intervenções do médico
[…], aos policiais e governantes corruptos, que Rodrigo Cariri, do sociólogo autor deste texto, do
são parte da folha de pagamento do tráfico; aos então Delegado responsável pelo Departamento
interesses imperialistas dos Estados Unidos, de Repressão ao Narcotráfico, Renato Melo, da
presente militarmente em diversas partes do redutora de danos Ingrid Farias e do vereador
globo supostamente para combater o tráfico de mencionado. Esta audiência aconteceu no dia 6
drogas; ao Estado, que utiliza [a proibição] de de maio de 2013, poucos dias antes da Marcha
maneira a segregar, encarcerar e mesmo assassinar daquele ano e projetou seus organizadores para
setores excluídos da sociedade; ao setor financeiro uma ação mais articulada. A partir dali, a presença
internacional, sustentado por uma complexa rede dos membros do que viria a ser o CAPE não
de corrupção e lavagem de dinheiro; aos donos seria mais secundária na Marcha da Maconha,
de clínicas, à indústria farmacêutica e das demais eles passaram a ocupar posições estratégicas,
drogas lícitas, todos aqueles que lucram com carregaram faixas, usaram bastante o microfone e
a desinformação alheia (CARTA COLETIVO foram referenciados em notícias que repercutiam
ANTIPROIBICIONISTA PE À SOCIEDADE – o ato.
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A entrada deste novo ator coletivo e, dá a Marcha da Maconha. A primeira edição,
TEORIA E CULTURA
sobretudo, a atuação de novos petistas nessa realizada em 2014, aconteceu na semana anterior
performance fez com que a difusão da pauta à Marcha, no grande auditório da faculdade das
maconhista nos órgãos públicos desenvolvesse freiras católicas (Faculdade Frassinetti do Recife –
um outro caráter. Não se tratava mais de FAFIRE). Os convidados para estimular o debate
percorrer guichês para comunicar percurso foram o mencionado delegado responsável pelo
e pagar eventuais taxas, mas sim de articular Departamento de Repressão ao Narcotráfico, a
com parlamentares e gestores públicos algumas médica uruguaia Raquel Peyraube, a assistente
condições de apoio à manifestação, suporte social e professora da UFPE Roberta Uchôa e
e garantia deste direito caso ele viesse a ser o médico pernambucano Rodrigo Cariri. Com
ameaçado. Assim, de 2013 em diante, a Marcha capacidade para 450 pessoas, o auditório ficou
da Maconha de Recife deixa de pagar taxa e muda completamente lotado com algumas pessoas
sua estratégia de comunicação com a gestão sentadas nos degraus das extremidades e do
pública estatal, bem como se consolida um novo corredor central do recinto. O governo estadual
percurso que vem marcando esta manifestação e uma prefeitura da região apoiaram o evento,
desde a edição daquele ano. garantindo passagem e hospedagem para a
convidada estrangeira, bem como a reserva do
“Corredor dos movimentos sociais” auditório e uma pasta com papel e caneta para os
participantes previamente inscritos. Em 2015, o
Dentre as ações realizadas pelo CAPE maior apoiador do seminário antiproibicionista
em seus primeiros anos de atuação, destaco foi a FIOCRUZ, por meio do Centro de Pesquisas
debates realizados após a exibição de trabalhos Aggeu Magalhães, localizado em Recife, onde
audiovisuais, seminários temáticos, ações de aconteceu a atividade com maioria de convidados
redução de danos em festas e espaços públicos, da região e programação que se estendia das 13
organização e realização de manifestações às 21 horas do dia 29 de maio, um dia inteiro de
coletivas em locais públicos, articulação de uma chuva torrencial na região, alguns dias depois da
Frente Pernambucana de Drogas e Direitos Marcha daquele ano. Mesmo sob forte chuva, a
Humanos e realização uma vez por ano, desde atividade foi realizada com, aproximadamente,
2014, do Festival de Cultura Canábica. 60 participantes que resistiram – em grande
As discussões a partir de trabalhos maioria – até o final da programação. Entre os
audiovisuais não eram propriamente uma convidados externos daquele ano, estavam a
novidade. Em anos anteriores foram organizadas advogada e professora da Faculdade Nacional de
exibições de filmes seguidas de debate, realizadas Direito (UFRJ), Luciana Boiteux, e o delegado
em diferentes locais da cidade, sob os nomes de de polícia do Rio de Janeiro, Orlando Zaccone.
“Cine Massa” e “Cine Sativa”, mas com o CAPE Em 2016, o seminário antiproibicionista foi na
este tipo de atividade se tornou mais frequente, verdade o Encontro Nacional de Coletivos e
ultrapassou as fronteiras de Recife e ganhou um Ativistas Antiproibicionistas, que durou três dias
nome que se consolidou em meio aos ativistas: e reuniu mais de 400 pessoas de 19 estados do país,
“THCine”. Além do nome, surgiram um logotipo com apoio de órgãos do governo federal, partidos
próprio, alguns protagonistas e um projeto políticos, mandatos parlamentares, ONGs, redes
de sustentabilidade que envolvia captação de pesquisa e organizações internacionais.
de recursos públicos por meio de editais da As ações de redução de danos em festas
Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico e nas ruas têm acontecido em parceria com
de Pernambuco para apoio a iniciativas de outros atores, desde o Governo do Estado (por
organizações sociais. meio do Programa Atitude), passando pela
Os seminários vêm sendo realizados Prefeitura de Caruaru e empresas que organizam
uma vez por ano, no mesmo mês em que se grandes festas conhecidas como raves. Neste
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campo, também vale destacar a participação de performance de colaboração com antagonistas e
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ativistas pernambucanos em iniciativas de outros o percurso que, em 2013, previa passagem pela
estados, notadamente Bahia e Ceará, bem como Ponte da Avenida Guararapes (Ponte Duarte
a colaboração de ativistas de outras regiões em Coelho) foi levemente desviado por orientação
atividades realizadas em Pernambuco. dos policiais militares que acompanhavam a
A articulação da Frente Pernambucana manifestação. Os marchadores andaram um
Drogas e Direitos Humanos se iniciou antes pouco mais e atravessaram o rio pela Ponte
mesmo que os participantes do CAPE tivessem Princesa Isabel, sob a ressalva e a formação de
lançado esta sua identidade coletiva. A Frente um cordão de policiais que impediam a passagem
teve uma atuação importante até o ano de 2015, pela frente do Palácio do Governo.
envolvendo atores muito diversos e demonstrando Nos anos seguintes, o final do trajeto
uma interação frequente e sistemática com oscilou, mas foi mantida a identidade com
movimentos sociais, notadamente aqueles dos vários outros movimentos sociais que marcham
campos antimanicomial, feminista, negro, e apresentando suas reivindicações por boa parte
partidário, com destaque para Partido Pirata, PT deste mesmo caminho. Por isso, postulo que
e PSOL, mas também com eventual participação este percurso tenha se tornado uma espécie
de membros do PSTU e PCB. Nesta Frente, de “corredor dos movimentos sociais” que
profissionais da Psicologia tiveram papel contestam o estado atual dos problemas sociais.
importante. Este corredor se estende da Praça do Derby até
A participação de lideranças do CAPE na a Ponte da Av. Guararapes, atravessando uma
articulação da Frente Pernambucana Drogas e área central da cidade pela Av. Conde da Boa
Direitos Humanos fortaleceu os argumentos que Vista e atrapalhando a circulação de veículos
os então petistas Ingrid Farias e Eduardo Nunes em um dos principais eixos viários, que é a Av.
haviam defendido em encontro tático eleitoral Agamenon Magalhães. Por este caminho também
do Partido dos Trabalhadores que em um mesmo marcharam, nos últimos anos, pernambucanos
ato, realizado em 2012, decidiu não lançar em defesa da democracia e contrários à
candidato próprio para disputar o Governo de deposição da Presidenta Dilma Roussef,
Pernambuco e aprovou uma moção de apoio à mulheres que organizam e realizam a Marcha
legalização da maconha em votação apertada14. das Vadias, trabalhadores e trabalhadoras rurais
Os Festivais de Cultura Canábica que realizam o “Grito da Terra” e “excluídos”
foram apresentações gratuitas de artistas que que fazem um ato de denúncia na data de
apoiam o MMM e concederam espetáculos comemoração da Independência do Brasil (o
para oportunizar a arrecadação de recursos “Grito dos Excluídos”). O final de percurso destes
necessários à realização das Marchas ou, após movimentos varia bastante, mas a Praça do
estas manifestações, para gerar ambiência de Derby e a Avenida Conde da Boa Vista têm sido
confraternização entre os ativistas. fortemente marcadas por estas manifestações.
O primeiro ano de existência do CAPE A articulação mais intensa com o
teve deslocamento e ampliação do percurso movimento feminista trouxe uma nova pauta
da passeata. A Marcha saiu do que Gojoba para o centro da passeata: o machismo. Em
denominou de “lugar de maconheiro” para o que 2014, surgiu a faixa e a prática de realizar um
eu classifico como “corredor dos movimentos encontro prévio de mulheres antiproibicionistas
sociais”. Os marchadores passaram a percorrer a partir do slogan “A guerra mata, o machismo
um trajeto quatro vezes maior que o dos primeiros também”. Discutindo e marchando juntas, estas
anos. Contudo, permaneceram características da mulheres agregaram uma dimensão provocadora
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de ação têm alimentado, qualificado e difundido significou a escolha de um “lugar de maconheiro”.
TEORIA E CULTURA
elementos presentes nas discussões prévias. Isto Em seguida, apareceram as estratégias que
tudo somado aos muitos “elementos de valor” moldaram a fachada da manifestação como
(para usar a expressão de TILLY, 2010[2009]) que “ordeira, pacífica e legal” – o que incluiu o
ocupam a Marcha, principalmente em sua ala polêmico convite para fumar maconha em “casa”.
terapêutica, asseguram maiores possibilidades Porém, esta Marcha é parte de um Movimento
desta manifestação se manter na agenda midiática e, portanto, está carregada de dinâmica. À
em uma época em que ela não é mais novidade medida que emergiam outras percepções sobre
nem parece mais associada a uma contravenção as possibilidades e limites de ação, surgiam
legal. novos discursos (incluindo argumentos, músicas,
palavras de ordem e cartazes) e mudavam as
Conclusões práticas. Além disso, afastavam-se uns atores,
agregavam-se outros; aqueles que continuavam
Espero ter deixado claro que o Movimento sofriam muitas mudanças. Surgia, portanto,
Marcha da Maconha não se restringe à realização um novo elenco, com uma distinta ordem de
de Marchas da Maconha e seus ativistas em apresentação no palco móvel desta performance.
Recife (assim como em muitas outras cidades) Assim, chegamos a um novo local de manifestação
organizam publicações, atos reivindicatórios, que atesta o crescimento da identidade do MMM
encontros de estudos e intervenções artísticas com outros movimentos sociais.
motivados pela ideia de abolir penas relativas a Na fase de ameaças, surgiu o modelo de
transações com droga. Inicialmente, uma única ação que descrevi como sendo “legal, ordeiro
substância ocupava o centro dessas iniciativas e e pacífico” – reproduzindo uma classificação
poderia fazer com que suas experiências fossem anteriormente difundida por um dos ativistas
qualificadas de “canabistas” ou “maconhistas”, investigados. Este modelo perdurou por
mas a temporada restrita à maconha durou quase toda a era de confirmação. Em seguida,
pouco e, progressivamente, as ações destes a emergência de novos atores à condição de
sujeitos ultrapassam as barreiras das drogas e protagonistas dessa performance agregou
configuram uma atenção a problemas sociais elementos que fizeram a experiência iniciar
ainda mais generalizados. O caso do Recife foi um período de reinvenção. Sem enfocar a fase
tomado como central devido à característica de reinvenções, gostaria de concluir este texto
ininterrupta desta manifestação no local, mas ressaltando que a mudança de percurso desta
também em função da proximidade do autor Marcha é uma forte demonstração de que
que – por meio da descrição de situações seu objetivo se ampliou fazendo com que esta
de que participou diretamente e objetivou manifestação se dirija rumo a outras substâncias
cientificamente – postula que o deslocamento e e a problemas ainda mais generalizados. Esta
ampliação da Marcha do “lugar de maconheiro” mudança se deu porque os objetivos em relação
para o “corredor dos movimentos sociais” é uma à maconha foram parcialmente atingidos.
característica devidamente identificada na capital Apesar de não haver mudança substancial das
pernambucana, mas também bastante provável leis relativas à maconha no Brasil recente, nota-
no conjunto do MMM. se que cresceu bastante a tolerância ao fumo de
Surgida como reação a um estado de coisas cigarros preparados com esta erva. Deste modo,
considerado problemático, a Marcha da Maconha vê-se que não é mais preciso se enclausurar em
teve as condições de sua realização em Recife “casa” ou no “lugar de maconheiro” para poder
definidas sob a pretensão de se fazer possível e fumar maconha. Assim, não precisando mais
sustentável, por isso seus pioneiros produziram se ocupar de pensar e agir para restringir o
algumas táticas e estratégias conformes ao fumo de maconha na Marcha da Maconha, os
ordenamento legal e social. A primeira tática organizadores se liberam para inventar práticas
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de reivindicar mudanças mais amplas. Janeiro: Rocco, 1997.
TEORIA E CULTURA
CARVALHO FILHO, Alípio. Despacho Processo STF. Supremo Tribunal Federal do Brasil. Inteiro
001.2009.109617-1, 24/04/2009. Recife: 2a Vara Teor do Acórdão – Argüição de Descumprimento
Criminal dos Feitos Relativos a Entorpecentes, de Preceito Fundamental 187 Distrito Federal.
2009. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2011.
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TV NOVA. Programa Pedro Paulo na TV, edição
de 15/05/2009. Tema: Marcha da Maconha.
Convidados: Alípio Carvalho Filho (Juiz TJ-PE),
Andréa Karla Maranhão (Promotora MP-PE),
Cristina Mendonça (Gestora da ONG Casa de
Passagem) e Neco Tabosa (Divulgador da Marcha
da Maconha).
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TEORIA E CULTURA
Resumo
Pretende-se refletir sobre a política de guerra às drogas no Brasil contemporâneo. Esta guerra às drogas,
que expõe de forma contundente a letalidade do estado, imbrica-se ao punitivismo e à militarização
da segurança pública no Brasil. Parte-se da premissa de que a sociedade brasileira desenvolveu um
dispositivo jurídico-penal, punitivista e militarizado, que reforça a distribuição desigual de poder,
considerando as variações nos padrões históricos da delimitação entre legal e ilegal. Assim sendo,
busca-se explorar a conexão entre as diversas estratégias de punição e a face mais perversa do que se
convencionou chamar de “guerra às drogas” em seus efeitos deletérios. Para pensar o quadro mais
amplo desta problemática, considera-se a tese da militarização da segurança pública como forma de
gestão biopolítica, em que o estado reivindica o monopólio legítimo da força física e exerce o mesmo
pela via da violência, que se materializa nas execuções, no extermínio e genocídio, compartilhada
com forças não-estatais. Os mecanismos militarizados e a punição disseminada se enquadram tanto
na eliminação do inimigo interno como numa ampla estratégia de gestão de riscos em que biopolítica
se articula com o estado de exceção.
Abstract
It is intended to reflect on the drug war policy in contemporary Brazil. This war on drugs, which
strikingly exposes the state’s lethality, is intertwined with punitivism and the militarization of public
security in Brazil. It is based on the premise that Brazilian society has developed a legal-penal,
punitive and militarized device, which reinforces the unequal distribution of power, considering the
variations in the historical patterns of the delimitation between legal and illegal. Therefore, it seeks
to explore the connection between the various punishment strategies and the most perverse face
of what has been conventionally called the “war on drugs” in its deleterious effects. To think the
broader picture of this problem, the thesis of the militarization of public security is considered as
TEORIA E CULTURA
state claims the legitimate monopoly of physical político dos subalternos na mesma medida em
force and exercises it through violence, which que se dá a liquidação dos direitos e garantias
materializes in executions , in extermination constitucionais. Com isso, novos regimes de
and genocide, shared with non-state forces. verdade, agora amparados pela democracia,
Militarized mechanisms and widespread colocam a segurança num lugar de destaque em
punishment fit both the elimination of the relação às antigas reivindicações dos movimentos
internal enemy and a broad risk management sociais em torno da saúde, educação, emprego e
strategy in which biopolitics is articulated with moradia.
the state of exception. Pretende-se analisar as complexas
relações existentes, no cenário político brasileiro
Keywords: public security; punishment; war; contemporâneo, entre o Estado de Direito,
drugs; militarization punição, militarização da segurança e a chamada
“guerra às drogas”. Busca-se refletir sobre as
Introdução aparentes incongruências entre a democracia e a
securitização da sociedade brasileira. A aprovação
“A guerra não é conjurada... uma frente de da Lei no. 8.072 de 25 de julho de 1990, conhecida
batalha perpassa a sociedade inteira, contínua e como a Lei dos Crimes Hediondos, representou
permanentemente.” (FOUCAULT, 1999, p. 58-59) o marco simbólico do delineamento de uma
política de segurança fundamentada na guerra
Pretende-se analisar as complexas e no inimigo. Esta Lei apresentou dispositivos
relações existentes, no cenário político brasileiro legais que se fundamentam no princípio da lei e
contemporâneo, entre o Estado de Direito, da ordem, segundo o qual o poder do Estado deve
punição, militarização da segurança e a chamada se contrapor à força da barbárie representada
“guerra às drogas”. Busca-se refletir sobre as pelo crime. Apesar das alterações legislativas
aparentes incongruências entre a democracia e a e pelos remendos de inconstitucionalidade, a
securitização da sociedade brasileira. A aprovação Lei de Crimes Hediondos apontou para uma
da Lei no. 8.072 de 25 de julho de 1990, conhecida tendência de políticas de segurança apresentadas
como a Lei dos Crimes Hediondos, representou como resposta “democrática” às demandas em
o marco simbólico do delineamento de uma favor da criminalização de grupos considerados
política de segurança fundamentada na guerra “perigosos”. A Lei dirigiu-se, fundamentalmente,
e no inimigo. Esta Lei apresentou dispositivos para os casos de crimes envolvendo drogas.
legais que se fundamentam no princípio da lei e A partir de então, aumentou, na sociedade
da ordem, segundo o qual o poder do Estado deve brasileira, o clamor por mais rigor e duração das
se contrapor à força da barbárie representada punições penais. A produção do encarceramento
pelo crime. Apesar das alterações legislativas em massa é um dos indicadores deste modelo
e pelos remendos de inconstitucionalidade, a de segurança que enfatiza o controle social e
Lei de Crimes Hediondos apontou para uma político dos subalternos na mesma medida em
tendência de políticas de segurança apresentadas que se dá a liquidação dos direitos e garantias
como resposta “democrática” às demandas em constitucionais. Com isso, novos regimes de
favor da criminalização de grupos considerados verdade, agora amparados pela democracia,
“perigosos”. A Lei dirigiu-se, fundamentalmente, colocam a segurança num lugar de destaque em
para os casos de crimes envolvendo drogas. relação às antigas reivindicações dos movimentos
A partir de então, aumentou, na sociedade sociais em torno da saúde, educação, emprego e
brasileira, o clamor por mais rigor e duração das moradia.
punições penais. A produção do encarceramento O Brasil possui a terceira maior
em massa é um dos indicadores deste modelo população carcerária do mundo, atrás apenas
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dos EUA e da China. Atualmente, segundo fontes punição disciplinar passa a atravessar todas as
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cadáveres humanos foram enviados de maneira segurança. As sociedades ocidentais, na esteira
TEORIA E CULTURA
tão inodora e com tal perfeição técnica do leito de do desmantelamento do estado de bem-estar
morte à sepultura (ELIAS, 2001, p. 30-31),” Que social, têm investido no modelo de controle
saberes e que poderes são esses que autorizam, social pelo encarceramento, pela vigilância e pela
nas sociedades contemporâneas, a aceitação da liquidação de direitos, o que reforça a obsessão
morte e da violência como parte do jogo pela por segurança e por punição (WACQUANT,
produção da vida? 1999). O governo da população e a gestão da
Um dos componentes destes saberes está vida correm paralelamente à aceitação dos
ligado à pretensão de preeminência dos militares custos altos das mortes como estratégia de
na gestão da força e dos riscos, em que a vida e a segurança. As sociedades ocidentais, na esteira
morte têm lugar de destaque. O dispositivo militar do desmantelamento do estado de bem-estar
funda novas fronteiras, porosas e imprecisas social, têm investido no modelo de controle
entre viver e morrer. É nesse sentido que não há social pelo encarceramento, pela vigilância e pela
uma contradição entre a politização da morte e liquidação de direitos, o que reforça a obsessão
a estratégia de poder biopolítica. A punição, a por segurança e por punição (WACQUANT,
violência policial e as condições degradantes que 1999).
imperam nas prisões fazem parte do dispositivo Embora as competências institucionais
militarizado e de exceção. A militarização dos da polícia e das forças armadas sejam claramente
aparelhos do Estado demonstra que o poder diferentes, as zonas de fronteira sempre existiram
de morte transforma-se sob um dispositivo de e continuam existindo nos dias atuais. A polícia
poder que valoriza a vida produtiva. O poder de tem o papel de manter a ordem pública e a paz
morte, confiscado pela polícia e racionalizado social, trabalhando contra o crime e na gestão
pelo militarismo, é pensado como uma gestão dos conflitos sociais de forma permanente e
da vida útil; por isso, a seletividade dos que são com vigilância constante. Mas o exército, de
punidos e, no limite, são mortos pelo Estado. outra forma, procura tem a função de manter
Paradoxalmente, matar é um dispositivo de a soberania contra a agressão e intervenção
controle da vida (e de mortalidade). de um inimigo externo. Neste sentido, as duas
instituições pretendem garantir o monopólio
As guerras já não se travam em nome do soberano estatal da força física por meio do uso legal,
a ser defendido; tratavam-se em nome da existência autorizado e proporcional das armas. Entretanto,
de todos; populações inteiras são levadas a embora a autorização para o uso da força seja uma
destruição mútua em nome da necessidade de viver. característica fundadora destas duas instituições,
Os massacres se tornaram vitais. (...) O princípio: é importante ressaltar que a polícia é caracterizada
poder matar para poder viver, que sustentava a tática pela ausência do uso sistemático da força
dos combates, tornou-se princípio de estratégia enquanto que o exército preconiza o uso da arma
entre Estados; mas a existência em questão já não é como instrumento dissuasório por excelência.
aquela – jurídica – da soberania, é outra – biológica Além do mais, a doutrina, armamento, instrução
– de uma população. Se o genocídio é, de fato, o e treinamento da Polícia e do Exército são
sonho dos poderes modernos, não é por uma volta, necessariamente distintos. A polícia não deveria
atualmente, ao velho direito de matar; mas é porque aprender nem usar táticas de guerra, assim como
o poder se situa e exerce ao nível da vida, da espécie, o Exército não deveria ensinar ou usar técnicas
da raça e dos fenômenos maciços de população. de policiamento em contextos urbanos? Mas, em
(FOUCAULT, 1985, p. 129) países como o Brasil, as competências policiais e
militares não estão totalmente definidas. O país
O governo da população e a gestão da adotou um modelo de polícia que ainda está
vida correm paralelamente à aceitação dos fortemente atrelado à defesa do Estado e não à
custos altos das mortes como estratégia de defesa do cidadão. É um modelo híbrido no qual
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convivem uma polícia investigativa de caráter Sendo assim, a coerção que barra a escolha
TEORIA E CULTURA
civil e uma polícia preventiva de caráter militar. sobre a experimentação de sensações produzidas
No Brasil, “o processo de policialização das pelas drogas se insere num mecanismo de
Forças Armadas ocorre simultaneamente ao de obsessão, que cria o próprio descontrole
militarização da Polícia” (ZAVERUCHA, 2005, individual, comodamente definido dentro
p. 19). Mas, o dispositivo militarizado apela para da problemática categoria psiquiátrica dos
os símbolos de poder militar, para a metáfora da transtornos. A proibição, portanto, cria seus
guerra permanente ao inimigo interno e para a sintomas e suas doenças. E mais, mecanismos
necessidade crescente de recursos financeiros são acionados através dos discursos e instituições
disponíveis, bem como para a suspensão de que afirmam, propagam, reforçam discursos
direitos para consecução de seus objetivos. elaborados sob a égide de uma política que é ao
Não há mais guerra e paz, mas mesmo tempo repressiva e disseminadora. Os
intervenção e segurança que, contudo, sinalizam discursos e práticas proibicionistas movimentam
concretamente para uma gestão militarizada instrumentos de repressão e de estímulo das
com suporte estratégico na ótica da guerra, na drogas, assim, a ação a ser reprimida acaba
fabricação incessante do “inimigo”. As mudanças se reforçando pela sua presença conspícua na
cruciais no mundo pós-queda do muro de Berlim realidade social, como uma maldição que recai
e fim da guerra fria implicam na intervenção sobre aquelas pessoas que são objetivadas como
em outros países ou na ordem interna de “vulneráveis”, para as quais são designadas ações
determinado país. A intervenção é um mecanismo preventivas, de controle e repressivas.
essencialmente militar, é a ponta armada de um O dispositivo estimula de forma
dispositivo geral de segurança. A segurança não permanente o consumo de drogas lícitas e, de
é essencialmente militar, pressupõe proteção, outro, se inclina à repressão às drogas ilícitas.
os meios para atingir a proteção e a condição A repressão está direcionada a certas práticas
das pessoas protegidas que são tomadas em sua sociais de risco relacionadas ao consumo e ao
condição de seres vivos. A segurança neste novo comércio ilegal. Sendo assim, o discurso da
contexto pressupõe a minimização dos riscos, proibição enraíza a crença de que as drogas são
mas não dispensa os custos da morte. Os estados o grande problema da humanidade, ativando
de violência recomendam a vigilância de cada toda uma produção social em torno dessa ideia
um e a multiplicação dos limites territoriais. insustentável sociologicamente. As pessoas de
A segurança pública torna-se supraestatal e a uma forma geral tendem não apenas recusar
guerra, local (GROS, 2006). tratar do assunto, mas também não conseguem
abordar a questão em outra chave interpretativa.
Dispositivo proibicionista como estratégia da As mídias e a indústria cultural reforçam este
exceção quadro, fazendo com que algumas drogas
consideradas ilegais sejam o caminho para
Associando esta discussão à noção o enquadramento biopolítico de grupos e de
de dispositivo da sexualidade (FOUCAULT, pessoas, ao mesmo tempo em que jogam o véu
1985), o dispositivo da proibição não reprime do silêncio em torno das drogas lícitas e seus
o uso da droga, mas, ao contrário, promove efeitos também perversos (FOUCAULT, 1985).
sua disseminação. A proibição estimula e As drogas ilícitas, no contexto da proibição,
incita o consumo, promovendo a droga como acionam discursos e práticas do campo religioso,
mercadoria econômica e política. Ela produz onde certas designações vão buscar novas ovelhas
uma distribuição diferencial das drogas, entre para oferecer-lhes saídas mágicas ou conforto
a indústria farmacêutica, médicos, psiquiatras, paliativo. Elas acionam todo um mecanismo
policiais e juízes. Toda uma excitação que se policial-penal, que coloca um grupo social
reverte em discurso moralizante e vice-versa. inteiro sob suspeita e sob ameaça de restrição
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de direitos, elaborando um imaginário sobre segregadas, pequenos criminosos, pessoas
TEORIA E CULTURA
riscos e sobre o crime que se alimenta do tráfico envolvidas com o comércio local etc. Esse tipo de
e de traficantes. A relação aparece como imediata política se internacionalizou no século XX, com
entre a droga e a destruição, a dependência e o o discurso do controle do comércio e de consumo
vício. A figura do usuário, então, personifica-se de substâncias perigosas.
como rotineira na mídia e nas falas do púlpito O proibicionismo e o discurso da
(BRANDÃO, 2016; CAMPOS, 2015a). Pensando dependência ganham força no cenário
em políticas públicas de saúde, o proibicionismo internacional. A ONU teve, neste assunto, papel
gerou uma construção perversa que mais destrói de destaque. Três Convenções determinaram o
vidas do que protege. As pesquisas especializadas controle internacional de drogas. A Convenção
sobre uso e consumo de drogas não são capazes Única de 1961, cuja ratificação foi ampliada em
sequer de aquilatar os efeitos da droga em 1971 e 1988, tornou-se o arcabouço jurídico
pessoas diferentes. Sabe-se que a relação entre mundial para a guerra contra as drogas (NEVES,
prazer e satisfação e a dependência não está 2015). A Convenção Única sobre Substâncias
estabelecida. E a própria dependência não pode Psicotrópicas submeteu as substâncias proibidas
ser confirmada de maneira absoluta, afinal, há a um regime internacional de interdição, um
muitas pessoas dependentes de atos que não são elemento fundamental na repressão que pretende
químicos, embora produzam efeitos químicos no combater as organizações de comércio do tráfico de
organismo, como sexo ou consumo. Certamente, drogas. Proibiu a produção, transporte, comércio,
as pessoas reagem de diferentes maneiras. Elas são porte ou uso de qualquer droga classificada como
influenciadas de diferentes modos. (CARLINI, ilegal/ilícita. As Convenções Internacionais
2006; CARNEIRO, 2012; RIBEIRO et all, 2015). destinadas ao controle e erradicação das drogas,
A proibição relega os usuários à condição de iniciativa norte-americana, tiveram impacto
de párias sociais, marcando-os com o estigma direto nos países latino-americanos, incluindo
e com sinais da abjeção. Em 1972, o presidente o Brasil. Os países, por força destas Convenções,
Richard Nixon declara que as “drogas” seriam o adaptaram seus ordenamentos jurídicos para
inimigo número um da sociedade estadunidense, acolher a perspectiva proibicionista, incluindo
porém, o interesse estava direcionado em alterações em seus Códigos Penais. A guerra às
governar a vida de determinadas populações, no drogas envolveu países latino-americanos, que
contexto das manifestações contrárias às decisões sofreram pressão para se adequarem ao padrão
americanas em relação ao Vietnã. Evidentemente, de combate às drogas, e assim, fortaleceram sua
o combate às drogas tinha também o objetivo imagem interna na medida em que mostravam
de assinalar o domínio imperial dos EUA estar preocupados com o perigo das drogas e dos
no subcontinente americano, sobretudo nos traficantes (FRAGA, 2007; RIBEIRO, 2014).
países produtores de coca. A atitude política do A proibição no Brasil ocorreu por
governo americano implicou na disseminação decisões políticas e institucionais que também
de um dispositivo proibicionista das drogas que foram influenciadas pela ação da guerra às
ainda hoje tem influência, até os documentos da drogas. As necessidades políticas e econômicas
ONU sobre o tema. O dispositivo proibicionista, do país colocavam-no numa posição subalterna
acionado pela guerra às drogas, pode ser remetido às políticas internacionais. A falta de autonomia
às políticas públicas de caráter repressivo, que do Brasil no que diz respeito à política de drogas
incluem a criminalização da venda, do consumo, fica clara com a Ditadura Militar, que acirra a
a penalização de comportamentos de risco, bem postura securitária e proibicionista, mesmo não
como a violência institucional, como formas de estando no centro, naquele momento, do tráfico
produção de controle social sobre determinados internacional de drogas (FRAGA, 2007). O
grupos sociais mais vulneráveis: prostitutas, modelo da proibição vigora no país durante mais
usuários contumazes, jovens de comunidades de 20 anos e só começa a ser rediscutido à luz da
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nova Constituição Federal de 1988 e a partir de dois modelos complementares, o da saúde e o do
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contorno; nas fronteiras, em áreas indígenas é antiga e vem se tornando norma. Desde as
TEORIA E CULTURA
e em assentamentos está atuando de forma intervenções militares da Eco-92, são constantes
recorrente. Oficiais das Forças tem presença os apelos aos militares para garantir a segurança,
significativa nas agências de inteligência e nas como ocorreu em 2014, na Copa do Mundo e
instituições da segurança, assim como policiais em 2016 nas Olimpíadas do Rio de Janeiro. Não
militares têm presença garantida em diferentes obstante, os indicadores de violência criminal
instâncias da administração pública, incluindo continuaram sua tendência de crescimento8.
os municípios. Os militares nunca deixaram Não podemos esquecer que em 2017, o Exército
o espaço da política e ainda ocupam posições brasileiro protagonizou uma intervenção nas
importantes na burocracia estatal, nos três favelas da Maré e no Morro do Alemão que
níveis de governo. Importante lembrar que esta custou aos cofres públicos mais de um bilhão de
não é uma tendência restrita ao Brasil, vários reais9.
países estão organizando suas polícias de forma A intervenção militar de fevereiro de
militarizada, sempre com a justificativa da luta 2018, em que, pela primeira vez na história do
contra o terrorismo, contra o crime organização pais há, de fato e de direito, um interventor
transnacional ou contra o poderio de fogo das militar sobre a segurança pública, caminha nesta
organizações criminosas (NOBREGA Jr, 2010). direção. É uma mistificação autoritária achar que
As forças militares brasileiras têm desempenhado o poderio militar de 36.000 homens em armas
papel na estabilização social e política do Haiti. poderá produzir qualquer efeito duradouro a
A segurança dos grandes eventos internacionais não ser a necessidade da duração infinita de
foi planejada e contou com a presença ostensiva novas intervenções. De fato, estamos diante de
das Forças Armadas. Apenas como ilustração: um estado de exceção permanente. As ações
a Copa das Confederações contou com uma militares são midiáticas, almejam visibilidade,
operação militar de defesa formada por 23 mil embora com resultados não exitosos e, em geral,
militares das três Armas e um investimento de apenas são estratégias para fazer a gestão da
R$ 710 milhões4; pelo menos 10 mil militares e pobreza numa das cidades mais desiguais do país,
6,5 mil policiais militares fizeram a segurança como forma de garantir, pela força, um exercício
do Papa Francisco na Jornada Mundial da de poder punitivo e que não possui legitimidade.
Juventude5. O Governador da Bahia mobilizou Estas estratégias de intervenção ficam patentes a
o Exército, juntamente com a Polícia Federal, cada incursão das forças policiais “da exceção”,
a Polícia Rodoviária, a Secretaria de Segurança como foi o caso da prisão de mais de 150 pessoas
Pública e o Ministério Público, para combater num pagode sob a justificativa de se tratar de
os assaltos na saída dos bancos durante greve uma festa de milicianos10.
da polícia6. As forças de reserva acabam ficando A intervenção, portanto, decorre de
permanentemente em alerta para atuação de uma tendência de militarização da segurança
policiamento cotidiano e regular. Os militares pública. E esta militarização está se prestando a
fazem a segurança dos principais prédios do violar direitos de cidadania, sobretudo quando
governo brasileiro em Brasília para garantir coloca as populações dos morros e periferias em
a segurança e evitar a depredação, durante as estado de sítio, sendo comuns as tentativas ilegais
manifestações de junho de 20137. Esta tendência de revista sistemática, invasão de domicílios,
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prisões arbitrárias e até mesmo identificação ótica dominante da política de segurança pública
TEORIA E CULTURA
em massa não autorizada pela lei. Sendo assim, do Rio de Janeiro, que a partir do governo
a militarização da segurança está contribuindo de Marcelo Alencar, com peculiaridades e
para elevar os níveis de infâmia dos moradores de singularidades, trazem pontos de contato: desde
periferia porque veem seus corpos cada vez mais 1995, no Rio de Janeiro, os sucessivos governos
circunscritos (CALDEIRA, 2001). Mesmo tendo estaduais optaram pela política do confronto,
uma face abertamente ilegal, as intervenções que se encontra estruturada no modelo bélico, na
militares na segurança são vestidas de legalidade lógica do inimigo e mais, na sacralização da pena,
a partir de ajustes legislativos infraconstitucionais na criminalização da miséria e numa política
que são, no mínimo, preocupantes, sobretudo no criminal de combate às drogas consideradas
que diz respeito à tentativa de furtar o julgamento ilícitas, sob a chancela do derramamento de
de crimes cometidos por militares em função de sangue, como afirma Batista (1998). Assim,
polícia da justiça comum. parece-nos muito pertinente uma genealogia da
O modelo das Unidades de Polícia pacificação. De fato, as etapas para implantação
Pacificadora, as UPPs, fazia parte de um projeto de novas UPPS no Rio de Janeiro são estruturadas
de engenharia social mais amplo que contava, em em primeiro lugar como “intervenções táticas”,
sua origem com intervenções policiais e sociais em segundo como “estabilização” e, em terceiro,
articuladas. Mas, sempre bom lembrar que “a “implantação”, com vistas à ocupação do
extensão ‘social’ do programa das UPPs ‘militares’, território através da tomada de pontos críticos
a qual, mesmo não estando a cargo da polícia, é de armas e drogas. O discurso oficial aponta para
pensada como um reforço necessário de combate a pacificação como “arma” contra a violência e a
ao crime”. (MACHADO DA SILVA, 2013). Desde centralidade do policiamento recai nos policiais
a implantação da primeira UPP, em 2008, no fardados, formados nas academias militares, a
morro Santa Marta, até o ápice das intervenções, despeito do discurso oficial indicar que as UPPs
em 2010, no complexo da Penha, a face social foi são tributárias do modelo de policiamento de
colocada para segundo plano e a face policial- proximidade. As conotações militares deste
militar se acentuou. Esta política pública que tem processo são evidentes e não precisam ser
como foco o sufocamento do mercado ilegal de reforçadas (RODRIGUES e SIQUEIRA, 2012). No
drogas, embora os discursos oficiais indiquem Brasil, não é novidade porque a lógica do inimigo
que o foco é o controle de armas e não das drogas, se inscreve na dupla ótica bélica e militarizada. As
a partir da presença permanente da polícia no UPPs são parte de um dispositivo punitivo e de
território das comunidades, substituindo as extermínio, posto em funcionamento, e erigido
incursões inopinadas da polícia militar, vem sob a marca de uma política de segurança pública,
passando por altos e baixos e provocado reações muito especificamente, no Rio de Janeiro, como
apaixonadas. Mas, não há para este modelo estratégia essencialmente de guerra (BATISTA,
alternativa à vista, pelo contrário, em vários 2012).
estados brasileiros, o modelo vem sendo adotado No cenário atual, com a crescente onda de
em versões mais ou menos genéricas, mesmo mobilização contra os governos do Estado e da
antes de uma avaliação mais criteriosa das cidade do Rio de Janeiro, já se pode perceber que
estratégias do modelo pudessem ser realizadas. alguns mitos, produzidos pelo projeto político
De toda forma, não é o propósito deste das UPPs, em certa medida, começam a ser
trabalho fazer uma avaliação das UPPs em termos submetidos a um processo lento de desconstrução.
de sua eficácia e de seus custos sociais, políticos Dois aspectos vêm sendo problematizados: 1) a
e institucionais. Pretende-se tão somente política criminal contra as drogas: esta, desde o
construir uma abordagem teórica no sentido da fim da guerra fria, tem a marca indelével da guerra
desconstrução de “um certo” consenso sobre as e houve dramaticamente e tragicamente uma
UPPs. Assim sendo, as UPPs se inscrevem na mudança identitária na construção do “inimigo”.
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Esta política, que é genocida, de extermínio, que Considerações finais
TEORIA E CULTURA
criminaliza a pobreza e a miséria, potencializa
mais e mais a exclusão das camadas populares, “O dom de despertar no passado as
não obstante dar sinais de esgotamento. A centelhas da esperança é privilégio exclusivo
política das UPPS vai ao encontro desta política do historiador convencido de que também os
criminal de combate às drogas, com a marca do mortos não estarão em segurança se o inimigo
derramamento de sangue; 2) outro aspecto que vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.”
vem sendo questionado diz respeito ao controle (BENJAMIN,1985)
punitivo agenciado pelas UPPs, que se direciona
exclusivamente às camadas populares e em Pretendeu-se mostrar que a militarização
grande medida tem as marcas do arbítrio e do envolve toda uma estratégia de gestão dos
autoritarismo (BATISTA, 2012; MACHADO DA subalternos por ações tipicamente militares como
SILVA, 2013). Os efeitos deste esgotamento são também pelo uso puro e simples de mecanismos
perceptíveis na retomada da violência policial, de segregação e violência. As intervenções
emoldurada pelos recentes casos de torturas militares e as estratégias de militarização, neste
e mortes de cidadãos dentro do território das sentido, operam a ampliação das margens onde
UPPs. se encontram o legal e o ilegal. “Todas as margens
A desconstrução deste modelo representa são perigosas”, já dizia Douglas (1976, p. 149). As
um passo decisivo no sentido de se findar com a margens, como a violência que emerge da ausência
ótica da guerra, que reifica a cultura do inimigo, de um rito sacrificial, apontam para rituais
e, portanto, torna-se imperativo politizar os seculares que “foram esvaziados de sentimento
conflitos e a existência humana. Desta forma, e significado (ELIAS, 2001, p. 36)”. Diante da
um passo decisivo para esta desconstrução é a perda da significação e da violência banalizada,
politização dos conflitos sociais e, portanto, um precisamos, portanto, seguir a recomendação de
retorno urgente à política enquanto atividade Foucault e inverter a proposição de Clausewitz:
imprescindível à sociabilidade humana, pois, a política é a extensão da guerra por outros
do contrário, continuaremos sob o império da meios. As relações de poder estão encontrando
lógica da guerra e da construção incessante sua ancoragem na guerra e nos dispositivos
de “inimigos” (SERRA e ZACCONE, 2012). militares e o exemplo das intervenções militares
A pesquisa etnográfica tem detalhado estes e da guerra às drogas demonstra isso de forma
efeitos e, inclusive, tem demonstrado os efeitos cabal. O poder político insere estas relações nas
perversos dele em termos da expulsão de instituições e as armas tornam-se os verdadeiros
moradores em razão da valorização dos imóveis juízes (FOUCAULT, 1999, p. 22-23), reforçando
na comunidade e nas vias de acesso, o que abre, o dispositivo do estado de exceção. Em outros
evidentemente, a discussão sobe os interesses termos, já que o militarismo, além de representar
econômicos que articulam a cidade ilegal e a o modelo de um estado de exceção, abre-se para
cidade legal (RODRIGUES e SIQUEIRA, 2012). toda uma ritualística fúnebre, que potencializa a
A pacificação é parte da lógica da guerra. Parte morte impune e a gestão violenta dos conflitos,
final, sem dúvida, mas a paz é processo contínuo em que usuários e traficantes de drogas são
de produção social e alimenta novas estratégias reduzidos à condição do homo sacer. Em outras
guerreiras enquanto houver os riscos. Sendo palavras, a política de guerra às drogas, ainda
assim, a noção de pacificação pode ser entendida vigente no Brasil, configura-se enquanto um
como um dispositivo discursivo que atualiza e dispositivo militarizado de controle punitivo
legitima a passagem, no interior das comunidades que potencializa em larga escala a letalidade
“servidas” pelas UPPs, do modelo da vida sob do Estado. Sendo assim, uma possibilidade
“estado de cerco”, para uma vida sob “estado de interpretativa diz respeito à constatação de que,
ocupação” (MACHADO DA SILVA, 2008, 2013). no Brasil, o Estado historicamente é um aparato
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punitivo e que traz consigo, portanto, toda uma CAMPOS, Marcelo Silveira. Pela metade: a Lei de
TEORIA E CULTURA
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Notas sobre práticas de jardinagem, relações
TEORIA E CULTURA
A presente proposta se estrutura a partir da interlocução, já construída pelos autores, com pessoas
que, no Rio de Janeiro, se dedicam, por diferentes motivos, a práticas de jardinagem visando
colher maconha (Cannabis sativa L.). Muitos destes cultivadores são também pessoas que militam
por formas menos proibicionistas de regular a produção, circulação, mercados e consumos dessa
planta. Para estes, plantar para consumo próprio, procurando não capitalizar as redes criminosas
que controlam a venda no varejo deste produto através das chamadas “bocas de fumo”, são palavras
de ordem postas em prática. Por isso quase que totalmente se mostraram refratários a práticas de
mercado envolvendo seus cultivos, embora este possa se configurar um negócio bastante lucrativo
na cidade do Rio de Janeiro. Neste trabalho que agora propomos, pretendemos, por outro lado, focar
em processos de cultivos domésticos dedicados à venda do produto em mercados clandestinos. A
metodologia empregada será a leitura de processos nos quais pessoas já incriminadas na justiça por
tais práticas figuram como réus, e também material produzido a partir de entrevistas com advogados
e ativistas antiproibicionistas.
Notes about gardening practices, market relations and their effects on the production and
reproduction of “cannabis culture”
Abstract
The present proposal is based on the dialogue already built by the authors with people who, in Rio de
Janeiro, dedicate themselves, for different reasons, to gardening practices aimed to harvest marijuana
(Cannabis sativa L.). Many of these cultivators are also people who militate for less prohibitive ways
of regulating the production, circulation, markets and consumption of this plant. For them, planting
for their own consumption, trying not to capitalize on the criminal networks that control the retail
sale of this product through the so-called “mouths”, are words of orders put into practice. This is why
they were almost totally refractory to market practices involving their cultivation, although this may
be a very lucrative business in the city of Rio de Janeiro. In this work we are now proposing, on the
other hand, we intend to focus on domestic cultivation processes dedicated to selling the product
in clandestine markets. The methodology employed will be the reading of cases in which people
already accused in court for such practices appear as defendants, as well as material produced from
interviews with lawyers and anti-prohibition activists.
1 Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/
UFF).
2 Doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense
(UUF) e Professor de sociologia da Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro.
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Keywords: Transcendental realism; critical em encontros sociais como aniversários, além de
TEORIA E CULTURA
naturalism; philosophy of the natural sciences; atos de ativismo, e experimentavam de maneira
philosophy of the social sciences; stratified compartilhada o produto de suas colheitas,
ontology elaborando assim sistemas classificatórios
que contribuíram para a produção de um
Introdução conhecimento refinado sobre as variedades da
Cannabis sativa L., que é o nome científico da
Este trabalho tem como objetivo analisar, planta conhecida no Brasil como maconha.
dentro das limitações impostas pelo campo, a O cientista social Sergio Vidal, em seu
prática de cultivo caseiro de maconha para fins pioneiro trabalho sobre cultivos domésticos de
comerciais na cidade do Rio de Janeiro. Conduta maconha e “cultura canábica” no Brasil, intitulado
tida como crime de acordo com o artigo 33, “Colhendo Kilobytes:o Growroom e a cultura do
inciso II, da Lei 11.343 de 2006, podendo quem cultivo de maconha no Brasil”, já chama atenção
a isto se dedica ser enquadrado na lei como para este posicionamento político e pragmático
traficante de drogas. Em trabalhos anteriores adotado por estes cultivadores e ativistas.
(VERISSIMO: 2017; MOTTA: 2020), tivemos a
oportunidade de descrever em parte os contextos (...) De 2001 para cá, alguns membros da
de sociabilidade da chamada “cultura canábica” comunidade foram presos e acusados de tráfico
com foco nos cultivos domésticos para fins de drogas e, em geral, foram submetidos a longos
“sociais” e “terapêuticos”, respectivamente3. períodos de encarceramento antes de conseguirem
Desse modo, até então tínhamos tomado como ser reconhecidos como usuários. Esses episódios
interlocutores apenas pessoas que, apesar de causaram grande comoção na comunidade e
correrem o risco de plantar maconha podendo o crescimento do interesse de que a figura do
ser incriminados como traficantes, através de cultivador passasse a ser reconhecida social e
seus discursos e condutas tornadas públicas, legalmente (VIDAL, 2010, p. 13).
rejeitavam veementemente a venda daquilo que
resultava da dedicação de seu tempo e seus afetos. Posteriormente, novos e decisivos fatores
Demonstravam, inclusive, relativo repúdio à foram introduzidos nesta discussão. Entre os anos
mercantilização dos produtos obtidos a partir de de 2014 e 2015, por conta da pressão popular, o
suas práticas refinadas de jardinagem. Estado brasileiro iniciou o processo de regulação
“Não compre, plante”, já dizia o título da importação do óleo de maconha para fins
da canção lançada em 1995 pela lendária banda terapêuticos. Nesse caso, tratando-se em grande
Planet Hemp, no álbum Usuário. Para além de parte de doenças como epilepsia refratária em
sua apropriação no cancioneiro popular, esta crianças, grupos de mães requisitaram na justiça
frase ilustra valores cultivados por aqueles que, o direito de cuidarem de seus filhos e filhas com
no Rio de Janeiro no início da corrente década um produto até então proibido no país, sendo
(2010-2013), plantavam maconha e realizavam necessária, portanto, a importação, muitas vezes
ativismo antiproibicionista (VERISSIMO, 2017). ilegal. Devido à lentidão burocrática e ao alto
Autossuficiência era uma palavra de ordem. custo do tratamento, muitas famílias lançaram
Havia troca de excedentes, mas nunca visando mão do cultivo doméstico para produzirem
o lucro monetário, e sim uma economia baseada artesanalmente o óleo, contando com o apoio
na dádiva e no prestígio (MAUSS, 2003). Os de associações canábicas que fornecem auxílio
cultivadores domésticos (growers) se reuniam médico e jurídico e também suporte técnico
3 As formas de denominar os usos aqui adotadas – “sociais”, “terapêuticos” – tratam-se de categorias nativas. A
primeira faz referência a usos comumente denominados como “recreativos”, denominação criticada por parte de nossos
interlocutores por supostamente infantilizar suas ações. A segunda tem como base a apropriação dos efeitos clínicos do
consumo da planta em diferentes terapias.
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de cultivo através de visitas à domicilio e com jornalistas e investigadores policiais.
TEORIA E CULTURA
on-line. Essas associações são formadas por Com o intuito de superar esta ordem
advogados, médicos, pesquisadores, ativistas, de dificuldades de acesso ao campo e a seus
growers, pacientes e seus familiares com o operadores nativos, que nos permitiria realizar
intuito de se apropriarem sistematicamente dos uma etnografia do contexto grower comercial,
conhecimentos gerados no meio grower sobre recorremos aos nossos interlocutores que
as propriedades da planta, ensejando também a realizam ativismo antiproibicionista por via do
autossuficiência na produção artesanal do óleo direito. Advogados que realizam o trabalho de
para tratamento (MOTTA, 2020). defender na Justiça aqueles que, por conta de
Não obstante o nosso foco em seus atos de jardinagem, são obrigados a dar
modalidades de produção e consumo de explicações formais em Inquéritos Policiais para
maconha não direcionadas à venda, não nos não serem presos como traficantes. Por meio
escapou a existência de growers que destinam de nossos interlocutores, e com permissão dos
parte de sua produção para fins comerciais. envolvidos que não quiseram falar diretamente
Sendo assim, esta constatação nos despertou o conosco, tivemos acessos a Inquéritos Policiais
interesse em descrever e interpretar a modalidade que continham investigações e acusações contra os
de cultivo mercadológica, com seus produtores, mesmos. Desse modo, o presente trabalho é sobre
mercadores e consumidores, como parte da pessoas que tiveram problemas com a justiça, e a
assim denominada “cultura canábica”. Cultivar descrição que faremos dos acontecimentos foram
maconha não é uma tarefa propriamente extraídas de documentos oficiais do Judiciário
simples, exigindo, inclusive, da pessoa que a isto complementados com conversas que tivemos
se dedica, boa parte do seu tempo, atenção, e em junto a nossos interlocutores, os advogados.
alguns casos, investimento em dinheiro. Se assim
o é para obtenção de autossuficiência visando Relações: entrando nos radares investigativos
o consumo próprio, no caso de produção para
pôr o produto em mercados clandestinos que Careca era um grower ativo e reconhecido
pressupõem a produção de excedentes em maior por grande parte daqueles que, como ele, no Rio
quantidade, este cuidado e dedicação pode, não de Janeiro da primeira década deste século, se
raro, assumir o status de atividade laboral. dedicavam à produção caseira de maconha. Sua
Desse modo, em nossas pesquisas presença virtual era marcante no site Growroom:
anteriores, nunca tivemos acesso a cultivadores seu espaço para crescer4, chegando a ter sido
que colocavam a venda seus produtos, um top post, ou seja, durante determinado
relativamente valorizados, sobretudo quando período de tempo foi o dono do perfil com mais
comparados ao prensado de origem paraguaia interações, publicações realizadas e visualizadas.
amplamente presente nos mercados clandestinos Ao contrário do que ditava o pensamento
através do nome de maconha. Afinal, faz dominante entre seus pares, Careca pensava
parte de certo profissionalismo, neste caso, se que a discussão sobre regulação da maconha no
resguardar para (com razão) evitar que sejam Brasil necessariamente deveria levar em conta o
incriminados e enquadrados no artigo 33 da estabelecimento de um mercado legal, incluindo
Lei de Drogas (tráfico). Portanto, está longe de o reconhecimento da jardinagem canábica
fazer parte de seus planos estabelecer conversas como uma atividade profissional com direitos
com pesquisadores como os autores do presente reconhecidos e remuneração condigna. Por
trabalho – não raro, erroneamente confundidos conta de tais posicionamentos, embora muito
4 Consiste o Growroom em um espaço cibernético onde, desde o ano de 2002, cultivadores caseiros de maconha
socializavam entre si através de fóruns e chats para trocarem experiências e saberes sobre esta prática. Além disso, serviu
de plataforma para a produção de ativismos não apenas no espaço virtual, a exemplo das marchas da maconha em
diversas cidades do país (VIDAL, 2010).
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ativo nas redes sociais, participava pouco de camarada” ao qual nos referimos, faz parte deste
TEORIA E CULTURA
encontros presenciais (festas, atos de ativismo tipo de trocas, onde o prestígio enquanto grower,
etc.) que à época começavam a se intensificar notadamente no que se refere ao comprador, é
entre os membros do Growroom, propiciando uma variante decisiva no estabelecimento dos
ao etnógrafo a ambiência para seu trabalho de preços neste mercado específico.
campo (VERISSIMO, 2017). “De grower para grower”: esta expressão
Além disso, Careca é portador de nos fora apresentada por nossos interlocutores,
patologia neurológica causadora de um quadro os advogados. E exprime o princípio de lealdade
epilético. Portanto, a definição de sua identidade estabelecido através de laços de confiança,
no campo é complexa: cultivador caseiro, compartilhados por meio de etiquetas e valores
consumidor para fins sociais, mas também associados à “cultura canábica”. É isso que faz
terapêuticos, e, há muito tempo, postulante com que haja este preço relativamente mais baixo
à legitimação dos fins lucrativos da atividade quando quem compra é também um cultivador
grower. Segundo nos relataram os advogados, reconhecido por esta rede. Careca teria feito
em um determinado momento, Careca, que por isso diversas vezes. Transar o excedente de
conta de sua doença tem dificuldades sérias para cultivos tratados com amor e dedicação durante
se manter no mercado de trabalho formal, decidiu meses não é, necessariamente, uma operação
vender parte de seu excedente como cultivador que envolva unicamente motivações utilitárias
de sucesso no mercado clandestino, obtendo (STUART MILL, 2007) em torno de ganhos
assim manutenção financeira. E assim se manteve monetários. Por isso, Careca era relativamente
por um tempo. Segundo nossos interlocutores, reconhecido neste seleto mercado de grower para
esta atividade jamais propiciou grande margem grower, por salvar os amigos que, por um motivo
de lucro a Careca. Havia demanda, ou seja, um ou outro, tiveram problemas no cultivo que os
considerável número de pessoas dispostas a pagar impossibilitou de colher.
relativamente mais caro por maconha proveniente Como demonstrado por Carolina Grillo,
de uma jardinagem atenta e afetiva efetuada pelos em “Fazendo doze na pista: um estudo de caso
cultivadores caseiros do que pelo prensado que do mercado ilegal de drogas na classe média”, o
predomina nos mercados clandestinos cariocas. tráfico realizado por jovens de classe média do
Mas nem por isso, afirmam, Careca demonstrou Rio de Janeiro, também prima pela confiança
disposição de praticar preços demasiadamente e pessoalidade como fiadores das relações, a
valorados. princípio mercantis. Por isso, diferentemente
Por diversas vezes vendeu o produto para do que ocorre no âmbito do trafico de drogas
seus pares (outros growers) a preços “camaradas”, praticado nas favelas por meio das bocas de fumo,
ou seja, relativamente baixos em relação aos a violência não figurava como uma linguagem no
valores praticados por outros agentes que seio destas relações. Em alguma medida, jovens
punham seus produtos neste mercado, onde, não de classe média da cidade do Rio de Janeiro
raro, o luxo de apreciar um cigarro proveniente também formam um grupo de pares, sendo que
de cultivos caseiros de maconha não costuma ser aquilo que Sergio Vidal chama de comunidade
barato. Como pesquisas anteriores demonstraram grower é um grupo de pares mais restrito ainda
(VIDAL, 2010; VERISSIMO, 2017; MOTTA, no universo dos jovens da classe média. No caso
2020) a jardinagem canábica, como todas as artes dos interlocutores com os quais estabelecemos
e todas técnicas humanas, contem o elemento relações no campo, predominam os jovens de
da imprevisibilidade, que faz com que uma rede classe média e profissionais liberais, mas há
de relações possa ser acionada caso intempéries aparentemente membros de variados estratos
(ambientais, técnicas, tecnológicas ou policiais) sociais.
aconteçam, tendo assim sua subsistência Certa manhã do ano de 2015, Careca
ameaçada (VERISSIMO, 2016). O “preço foi surpreendido por policiais que chegaram à
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sua residência portando mandados de busca e se iniciara meses atrás, Alemão havia entrado no
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figuram como altamente incriminadores, gerando que tem como finalidade realizar a denúncia,
TEORIA E CULTURA
descrições como a seguinte: “resta claro que o punir e reprimir a conduta criminalizada a partir
plantio não era somente para consumo pessoal, do ponto de vista das instituições policiais e de
reforça essa tese a presença da balança de pressão, seus agentes. Como pode perceber o leitor, a
apreendida no apartamento objeto da busca” própria narrativa aqui empregada para descrição
(Inquérito Policial: p. 96, vol. 1). Em outro caso, e análise é impregnada – como não poderia
os policiais, convertidos em testemunha, fazem deixar de ser – das lógicas e vocabulários de
ir para os registros a informação de que foram tais corporações. Trata-se de um procedimento
encontrados resíduos de maconha na balança. inquisitorial (FOUCAULT, 2002; KANT DE
Até mesmo a presença de moedas estrangeiras LIMA, 2008) que leva em consideração os “fatos”
de posse dos suspeitos pode contribuir para sua seletivamente, a partir de pontos de vistas e
incriminação por via da produção do inquérito. intencionalidades para além do institucional,
Os policiais utilizam todos os sentidos nesta repousando em grande medida nas crenças
coleta seletiva de evidências para a produção se e moralidades dos policiais que participaram
provas, até mesmo o olfato, em associações por da operação e realizaram as apreensões. Oito
vezes inusitadas. meses antes de Careca e Alemão serem presos,
o processo para produção de provas contra
(...) durante as buscas também foram encontrados os mesmos estava sendo aberto, onde escutas
valores em moeda estrangeira (dólar e euro), bem telefônicas serviam como principal fonte de
como reais. (...) tais moedas estavam impregnadas investigação.
com forte odor de maconha, indicando sua Os depoimentos dos agentes públicos
utilização em prováveis movimentações de drogas são registrados no inquérito policial como
(Inquérito Policial: p. 34, vol. I). testemunhas, sendo assim criados os fatos para
compor e dar forma aos processos jurídicos que
Os fatos são apresentados sob a ótica da são decisivos na produção das incriminações,
polícia, dona da narrativa na armação do processo cujo efeito prático é o encarceramento de sujeitos
(KANT DE LIMA, 2019) cuja consequência por anos de suas vidas. A isto se arriscam
prática pode ser a privação de liberdade de perigosamente aqueles que, no Rio de Janeiro,
pessoas que caem nas malhas da Justiça. se dedicam à jardinagem canábica com vistas
Contudo, a análise que nos propusemos fazer a comercializar o produto. Sendo uma atitude
de processos públicos e oficiais de construção já envolvendo alto risco de incriminação para
das verdades jurídicas a partir do viés policial, aqueles que se dizem contra a comercialização do
em complementaridade com nossa interlocução produto do cultivo, e até mesmo para aqueles que
junto a advogados que acompanharam os casos militam por formas mais liberais de regulação de
atuando profissionalmente na defesa dessas tais condutas, torna-se ainda mais temerária para
pessoas que passaram à condição de réus, nos quem decide participar de tais mercados.
mostra que há muito mais elementos nas condutas Uma das consequências disso é a
humanas e sociais do que o filtro policiaresco dificuldade para a produção de uma etnografia
pode ser capaz de explicitar. Ou, dito de outra sobre tal prática a partir de uma interlocução
maneira, do que é do seu interesse ressaltar. direta com os realizadores dos cultivos
inequivocamente visando consumidores que o
O filtro policial e judiciário comprem. A solução por nós construída para
superar esta dificuldade e realizar este estudo das
O processo jurídico ao qual foram relações sociais e econômicas engendradas a partir
submetidos os acusados, tomado aqui como base dos cultivos de canábis em escala caseira para
para a construção da seção anterior, é produzido a fins comerciais no Rio de Janeiro trouxe também
partir de uma narrativa normativa e padronizada suas consequências (e seus acréscimos). Afinal,
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podemos discutir também aqui o funcionamento Essa fórmula de investigação é encontrada nas
TEORIA E CULTURA
dos aparelhos jurídicos e policiais, em especial práticas jurídicas, que são segundo Foucault,
no que concerne, em parte, a repressão a práticas o modo pelo qual os membros das sociedades
enquadradas como tráfico de drogas (Artigo 33 ocidentais podem ser julgados em função dos
da Lei 11.343/2006). Gostaríamos de apresentar erros que cometem. Portanto, Foucault põe em
esta discussão, sem a pretensão de esgotá-las, na análise os processos de formação de sistemas
presente seção. jurídicos em sociedades que se tornaram
Foucault (2002) em “A verdade e as idealmente igualitárias, dando ensejo assim a
formas jurídicas” demonstra como as práticas formas processuais acusatoriais, sistemas que
sociais são compostas por domínios de saber que admitem “uma acusação, a qual é investigada
produzem novos objetos, conceitos, técnicas e publicamente, com a participação da defesa do
principalmente novos sujeitos de conhecimento acusado” (KANT DE LIMA, 2009, p. 46). Assim
que detêm o poder na produção da verdade o fazendo, rejeitando a lógica de privilégios
jurídica. São discursos e práticas que produzem encarnada nos processos judiciais predominantes
verdades, que por sua vez podem produzir duras no Antigo Regime.
consequências nas vidas das pessoas, incluindo a Já a atribuição de culpabilidades (mais
privação de sua liberdade. Já no primeiro volume do que responsabilidades) no Direito praticado
dos inquéritos de onde extraímos os elementos no Brasil se estrutura a partir de lógicas bastante
para nossa construção narrativa, observamos que distintas, através de regimes inquisitoriais,
o juiz da vara onde os processos são originados oriundas da influencia das tradições romana e
“MANDA” (escrito precisamente assim, com canônica. Consiste o modelo inquisitorial em
as letras maiúsculas) o delegado da Delegacia uma forma de produção de verdades segundo
de Repressão a Entorpecentes (DRE) da Polícia a qual, após efetivada a denúncia (podendo
federal “proceder a diligência ora ordenada, ser, inclusive, anônima) “efetuam-se pesquisas
podendo, se necessário, efetuar arrombamento” sigilosas antes de qualquer acusação, não só
(Inquérito Policial, p. 33, volume 1). para proteger a reputação de quem é acusado,
mas também para proteger aquele que acusa de
As práticas judiciárias – a maneira pela qual, eventuais represálias de um poderoso acusado”
entre os homens, se atribuem os danos e as (KANT DE LIMA, 2009, p. 46).
responsabilidades, o modo pelo qual, na história Pensamos não ser demasiado lembrar
do Ocidente, se concebeu e se definiu a maneira mais uma vez que, no início do século XIX, época
como os homens podiam ser julgados em função na qual as outras nascentes nações da América,
dos erros que haviam cometido, a maneira como se também de saída do julgo colonial, optaram
impõem a determinados indivíduos a reparação de pela via republicana, o Brasil foi o único país da
alguma de suas ações e a punição de outras, todas região a iniciar a história de sua independência
essas regras, ou se quiserem, todas essas práticas política em relação a Portugal em uma chave
regulares, é claro, mas também modificadas sem monárquica. Mais do que isso, o monarca
cessar através da história – me parecem uma das brasileiro que proclamou a independência (Dom
formas pelas quais nossa sociedade definiu tipos de Pedro I), por ser filho legítimo e primeiro nome
subjetividade, formas de saber e, por conseguinte, na linha sucessória de Dom João VI, monarca
relações entre o homem e a verdade que merecem português, pertencia à mesma dinastia da
ser estudadas (FOUCAULT, 1979, p. 8). monarquia dos tempos coloniais. Tal situação
perdurou de 1822 a 1889. Além disso, o país foi o
O inquérito policial que submeteu os ultimo do chamado ocidente a abolir a instituição
cultivadores ao processo de incriminação, do modelo escravagista de produção por meio
portanto, é a atualização de uma prática medieval do tráfico negreiro oriundo de terras africanas.
de busca da verdade no interior da ordem jurídica. Tais características, evidentemente, marcam
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profundamente as instituições judiciárias discretos podem levar a sua descoberta, denúncia
TEORIA E CULTURA
brasileiras. formal, e consequentemente a tais processos de
incriminação?
(...) O atual Código de Processo Penal, entretanto, As estratégias metodológicas para
apesar de afirmar que o processo é acusatorial, a produção deste trabalho foram de feitio
conformando-se, portanto, às disposições predominantemente qualitativo, com destaque
constitucionais, diz que tal processo pode ser para a leitura de peças processuais e a realização
precedido de um procedimento extrajudicial, de entrevistas com roteiro semi-estruturado,
conduzido pela autoridade policial, sob fiscalização visando assim, a partir desta dupla abordagem,
do promotor e do juiz, de caráter inquisitorial embasar descrições de inspiração etnográfica
(KANT DE LIMA, 2009, p. 46-47). sobre práticas e representações dos agentes
incriminados (cultivadores), bem como
Por isso, em conformidade com a também dos agentes incriminadores (policiais e
dogmática jurídica brasileira, a polícia pediu membros do Judiciário). Desse modo, o objeto
autorização à justiça para realizar escutas através desta proposta de trabalho são os cultivos
de grampos telefônicos de pessoas acusadas de clandestinos de maconha – bem como a
tráfico de drogas sem que os acusadores sejam repressão correspondente a isto interposta pelas
apontados nos autos do processo. Sem que a forças policiais – e sua contribuição, através de
origem da denúncia tivesse sido discriminada. práticas comerciais, para a difusão do que se
Por isso, ainda, embora o enquadramento da convencionou chamar, no Rio de Janeiro e em
conduta de Careca, de vender parte do excedente outros lugares do mundo, de “cultura canábica”.
de sua produção caseira de maconha, seja
inequivocamente efetuar o tráfico de drogas, não Os Modelos de Tráfico de maconha: morro,
é, por outro lado, inequívoco, que fizesse parte asfalto, jardim.
de uma organização criminosa. Mas assim indica
a acusação, feita com base no trabalho policial Ao mapear a discussão contemporânea
realizado inquisitorialmente no Brasil. Sobre a em torno do tráfico de drogas nas ciências
modalidade de grower pra grower de transações sociais, podemos encontrar diferentes pesquisas
comerciais tendo como objeto de prover antropológicas e sociológicas que descrevem
mercados e consumos de uma maconha de alta práticas mercantis onde produtos ilícitos são
qualidade, embora impregnada de significações postos a venda. O foco deste trabalho, como já
no meio nativo do cultivo caseiro carioca, o filtro foi pontuado, é descrever práticas de comércio
policial e jurídico é absolutamente insensível de maconha oriundas de cultivos domésticos,
para suas lógicas e valores. nos quais diferentemente do que geralmente
A partir dos contatos acadêmicos e de ocorre com os outros modelos de “tráfico” que
pesquisa com pessoas que exercem a advocacia em iremos apresentar aqui, a maconha cultivada
articulação com a militância antiproibicionista, em casa, se bem domesticada (VERÍSSIMO,
tivemos acesso a tais processos onde growers 2016), resulta em flores de alta qualidade que são
que cultivavam visando a comercialização do apreciadas por seu gosto, cheiro, textura e “onda”,
produto, respondem na justiça brasileira por em mercados movimentados por apreciadores
tráfico de drogas. Dessas peças processuais refinados (VELHO, 1998; VERÍSSIMO, 2017).
interessa também extrair, não apenas a matéria Por isso, a partir do material que pudemos
prima para nossa narrativa, mas também, a partir consultar, os inquéritos policiais, procuramos
de como os casos são registrados, alguns aspectos descrever, dentro de tais limitações, a existência
das ações policiais e judiciárias que produziram de redes de mercados de maconha em sua forma
os processos de incriminação. Que cursos de de flor e que funcionam independentemente
ação nos casos de cultivos ilícitos aparentemente das redes mais tradicionais do tráfico no Rio
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de Janeiro, predominantemente operadas por o processo de produção da verdade legal nas
TEORIA E CULTURA
5 Sobre esta modalidade de venda de maconha e outras drogas no Rio de Janeiro que são as “bocas de fumo”, ver: MISSE,
2006.
6 Nas cidades do Sul e do Sudeste do Brasil, prevalece nesse mercado o chamado “prensado”, canabis colhida em
latifúndios paraguaios e colocada numa prensa para depois seguir na forma de pedra para os mercados brasileiro,
argentino e uruguaio. Sendo assim, a maconha vendida ilegalmente no Rio de Janeiro, geralmente vinda do Paraguai, por
motivos de transporte sob condição de ilegalidade, é submetida, na origem, ao processo de prensagem, sem os devidos
cuidados na hora do cultivo e após a colheita. Por isso, quando comparadas ao “green”, ao “skunk”, não são considerados
um produto de qualidade, embora os consumidores de maconha na forma do prensado também façam distinção entre
“bons” e “maus” prensados.
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de fumo” (em alusão aos mercados de maconha gerente da maconha é inferior do que o do
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tradicionais de antes do fim da década de 1970), gerente da cocaína. O modelo apresentado por
a cocaína passou a crescer em importância, Misse (1997) consiste em uma estrutura que
reconfigurando tais pontos de venda no varejo, pode ser decomposta em três níveis: o “dono”
que também passam a ser chamados por e seus “gerentes” formam o primeiro nível da
muitos consumidores e mercadores apenas hierarquia; “os vendedores diretos” (“vapores” e
de “boca”, ou “movimento” (MISSE, 2006). “aviões”) e “soldados” formam um segundo nível.
Outra reconfiguração estrutural é o momento E por último os “endoladores”, uma parte dos
no qual, a partir de meados dos anos 1980, a “aviões” e os “fogueteiros” compõem o terceiro
maconha posta à venda no varejo, o “soltinho”, nível. Este modelo apresentado tem como
que era proveniente do nordeste brasileiro, característica principal as “ligações perigosas”,
foi definitivamente substituído nos pontos de termo cunhado para descrever conexões e
venda pelo produto oriundo do Paraguai, que contatos com a polícia através da negociação
passa a ser conhecido sob o nome de “prensado” de “mercadorias políticas”7 de segurança e
(BARBOSA, 1998; VERISSIMO, 2017). liberdade. É transacionando nesta modalidade
As drogas, nessa modalidade comercial de mercado que assim se configura (MISSE,
que é o varejo praticado nas “bocas”, são vendidas 1997; VERISSIMO, 2015), marcadamente
em unidades chamadas de “dolas”, no caso da territorializado em favelas e periferias da cidade
maconha, e “papéis”, “sacos” ou “pinos” no caso e sua região metropolitana, que um número
da cocaína, sendo que o trabalho de acondicionar muito significativo de consumidores de maconha
as unidades é chamado de “endolação”. O preço encontra o produto para poder consumi-lo.
das unidades depende da qualidade do produto Outra modalidade de transações onde
e das condições de oferta, onde as relações com a maconha (também entre outras drogas) é um
a polícia são um fator determinante para o valor produto posto no mercado, que ocorre sobre
final. A distribuição das drogas é descentralizada, bases sensivelmente diferentes das descritas por
portanto, nem sempre depende de contatos Michel Misse, é o chamado “tráfico da pista”, tal
intermediários. Ou seja, um fornecedor de como costuma ser nomeado no Rio de Janeiro.
maconha, cocaína ou armas pode subir a Descrito por Carolina Grillo em “Fazendo um
favela, procurar o “movimento” e vender seu doze na pista: um estudo de caso do tráfico de
estoque. A origem das mercadorias também é drogas na classe média” (2008), sua dissertação
diferenciada, podendo ser comprada na fronteira de mestrado pelo Programa de Sociologia e
por caminhoneiros não-vinculados ao tráfico Antropologia da UFRJ, orientada por Misse.
internacional, cargas que passam pelo circuito Esta pesquisa corresponde aos resultados de
“Rio-São Paulo” com destino a outros países e interlocuções realizadas no campo junto a
drogas apreendidas pela polícia (MISSE,1997). mercadores de maconha e outras drogas cuja
O comércio da maconha, segundo Misse identidade social os associa com a chamada classe
(1997), com o passar do tempo, se tornou menos média das cidades do Rio de Janeiro e Niterói. As
volumosos em recursos se comparado ao da análises da antropóloga se dão sobre os discursos
cocaína nessa modalidade varejista de venda. dos agentes com os quais foi possível conversar,
Os responsáveis pelas transações específicas buscando elucidar a dinâmica do mercado ilegal
envolvendo maconha são chamados “gerente de drogas praticado por jovens tidos como
do preto” (assim como há o “gerente do branco”, de classe média, assim como compreender os
responsável pela cocaína), onde o status do sistemas de referências compartilhados pelos
7 A “mercadoria política” consiste em um bem público que é privatizado para fins individuais. A oferta e a demanda
desses bens e serviços se distanciam do principio do mercado. A economia das “ligações perigosas” se alimenta das
próprias políticas de criminalização que demarcam esses mercados. (MISSE, 1997).
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mesmos, o que corresponde a um estilo de vida. pelos diversos espaços simbólicos que compõe o
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indicador de “sociabilidade normalizada” é a e são descritas como atitudes de quem assimila
TEORIA E CULTURA
ausência de armas nas negociações, mas não a consciência do mercado e contribui para
somente. A ajuda recíproca e a confiança também lubrificar os fluxos comerciais, estabelecendo
são palavras fundamentais para a compreensão relações de cooperação entre as partes envolvidas,
deste conceito, que também são características ou seja, corresponde um auxílio entre os pares
presentes e observadas em nosso estudo da sem perder de vista a noção de reciprocidade.
modalidade comercial de maconha oriunda de Adentramos neste assunto para explicar o que
cultivos domésticos. levaram Careca e outros envolvidos a serem
Essas redes da pista são marcadas presos. Careca vendeu para um conhecido alguns
pela instabilidade dos fluxos comerciais, que buds8 a preço de “grower para grower” para
geralmente são interrompidos por problemas de “adiantar” e “fortalecer” uma pessoa reconhecida
pagamento e flagrantes policiais que resultam no meio grower, como ele próprio. Este outro,
em perda de mercadoria e prisão. Além disso, ao adquirir as flores, não as consumiu. Ao invés
entre os agentes que formam os elos das redes disso, realizou um atravessamento para vender
de confiança e amizade por onde circula a para outra pessoa. Foi onde depararam-se com
maconha sendo transacionada, quando um dos um esquema de investigação que estava armado
deles decide deixar essa atividade, há uma quebra pela Polícia Federal visando desarticular uma
do equilíbrio entre demanda e oferta, que pode “quadrilha”.
ocasionar tempos de relativa escassez do produto. Nota-se que o que mais chama a
Ao mesmo tempo, o grau de sucesso e fracasso atenção da polícia neste caso não é circulação
depende das estratégias em evitar problemas com da maconha em si, mas sim o lucro gerado a
a lei. Sendo assim, o contexto descrito por Grillo partir destas transações. Nossos interlocutores,
(2008) possui diversos aspectos semelhantes à os advogados, ressaltaram que “o que chama a
modalidade comercial que estamos colocando atenção é a grana”, portanto, a descrição deste
sob análise: o tráfico de maconha proveniente de caso é marcado também pela incriminação do
cultivos domésticos. lucro, ideologia antiga e de origem canônica
Careca é cultivador de longa data e (SALVANY, 1979), mas ainda marcante nos
também é considerado por seus pares como processos de doutrinação na formação jurídica
membro da “cultura canábica”. Utiliza a maconha no Brasil (KANT DE LIMA, 2009). Com base
de forma terapêutica, como foi descrito, e dentro em nossas observações de campo, podemos
de sua trajetória da vida decidiu vender seu afirmar que até mesmo entre os cultivadores que
excedente. De acordo com nossos interlocutores, não comercializam o produto de suas práticas
os advogados, Careca foi seduzido por um de jardinagem é grande o número daqueles que
“cafetão de grower pobre” que atualmente vive na criticam aberta e entusiasticamente aqueles que
Europa. “Quem transa é quem ganha a grana, e vendem, precisamente porque lucram.
quem se arrisca é quem planta”, nos dizem nossos
interlocutores. Neste caso específico no qual Considerações Finais
o cultivador vende as flores cultivadas em sua
própria casa, não é raro que repassem ao preço Entendemos como “cultura canábica” um
da mercadoria o risco de possuir plantas e ser conjunto de consumos, práticas e representações
enquadrado como “traficante” caso seja alvo de apropriadas em um vasto conjunto de padrões
investigações policiais. de interações entre humanos e não humanos,
As categorias nativas “adiantar” e que incluem desde manifestações artísticas até
“fortalecer” são trabalhadas por Grillo (2008), potentes mercados (lícitos em alguns lugares do
mundo, ilícitos em outros), tudo isso em torno de
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uma planta, a maconha, ou canábis9. Trata-se de “cultura canábica” no Rio de Janeiro. Afinal,
TEORIA E CULTURA
planta proibida de existir no Brasil e em grande como resultado de seu paciente, dedicado e
parte do mundo por conta de leis locais e tratados amoroso trabalho junto às plantas leva novos
internacionais (LABATE; RODRIGUES, 2018). perfumes e sabores (muitas vezes frutados) às
Em nossos trabalhos anteriores, praias, concertos musicais e estádios de futebol,
estabelecemos interlocuções, que embasaram que fumantes (e até mesmo não fumantes)
nossas pesquisas, com cultivadores caseiros de reconhecem como sendo um produto distinto do
maconha, mas que, como já dissemos, se dedicavam prensado. Sendo assim, o mercado consumidor
à jardinagem canábica visando exclusivamente a de seu produto produz um consumidor refinado,
autossuficiência em relação a este produto, seja distinto do consumidor do morro e também
por motivos sociais (VERISSIMO: 2017), ou por de boa parte do da pista, capaz de reconhecer
motivos terapêuticos (MOTTA: 2020). Porém, e muitas vezes popularizar alguns traços da
ainda não tínhamos tido a oportunidade de “cultura canábica”, propiciando assim sua relativa
colocar sob descrição da “cultura do cultivo” da consolidação em escalas mais ampliadas.
maconha (VIDAL, 2010) sob a ótica daqueles Como nos disseram os advogados,
que plantam maconha para vender o produto em o ativismo antiproibicionista, assim como
um mercado bastante atraente a ponto de fazer aqueles que conscientemente se colocam como
com que muitos decidam se dedicar a tal prática, partícipes da “cultura canábica”, se dividem entre
a despeito dos riscos de incriminação que ela aceitar ou não práticas comerciais envolvendo a
implica. maconha de origem caseira. Os círculos growers
Este assunto em torno do direito que tem e os espaços frequentados, sejam virtuais ou
ou deixa de ter o cultivador caseiro de maconha presenciais, constituem lugares de interação e
de auferir lucro do excedente produzido com suas compartilhamento de saberes e técnicas que
práticas de jardinagens, justamente porque tais conectam atores a partir de suas experiências
práticas produziram-se a partir da circulação de pessoais com o processo de domesticação da
saberes entre pessoas que compartilham visões planta (VERÍSSIMO, 2017). O fato de Careca
de mundo, filosofias e moralidades (SALVANY, ter sido um membro ativo do Growroom o
1949), torna-se polêmico entre aqueles que possibilitou ser respeitado pela sua eficiência
pretendem construir, no Rio de Janeiro, a “cultura e sucesso no meio grower, fato que estreitou
canábica”. Além disso, os cultivadores que laços de amizades inclusive com pessoas que
plantam exclusivamente para uso social próprio condenavam o lucro da prática de cultivo de
e que repudiam a comercialização do produto do maconha.
seu trabalho – os quais optamos por não tratar Os advogados inclusive se consideram
no presente trabalho – não raro, são acusados pessoas que mudaram a percepção com relação a
de tráfico, a despeito de não comercializarem este tema, que antes do acontecido condenavam
nenhuma parte de sua produção (VERISSIMO, tal prática, e hoje afirmam que este mercado (flores
2016; 2017). Muitas vezes tal repúdio é também provindas de cultivos domésticos) inclusive
uma estratégia de distanciamento e redução de colabora para a “redução de danos sociais”, uma
riscos. vez que não capitaliza o chamado “narcotráfico”,
Não obstante, os cultivadores caseiros que mas também individuais, já que o produto
vendem seu produto, ainda que por razões óbvias comercializado é de alta qualidade. Portanto,
não entrem como tais nos ativismos em prol de segundo os advogados, quem cultiva para si está
formais mais liberais de regulação da circulação reduzindo os danos a partir de uma perspectiva
da maconha, participam, a seu modo, da individual e social, e quem comercializa está
produção e reprodução da assim compreendida reduzindo os danos a partir de uma perspectiva
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social. Nota-se que este é um argumento utilizado contribuir tanto para a disciplina antropológica
TEORIA E CULTURA
inclusive para defender cultivadores domésticos quando para os debates no campo das políticas
de sistemas jurídicos inquisitoriais que tem como públicas (WEDEL & FELDMAN, 2005).
objetivo a condenação dos mesmos.
Como sabemos, o consumo de maconha, Referências Bibliográficas
ou de qualquer substância de moderados ou
acentuados efeitos sensoriais, não se restringe BARBOSA, Antônio Rafael. Um abraço para
apenas a substância ou ao indivíduo que a todos os amigos: algumas considerações sobre
consome. Ao mesmo tempo há um contexto o tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Niterói,
relacional que atravessa o consumo das moléculas EDUFF: 1998.
que formam a substância, que só é acessível pela
experiência, não só de consumo, mas também do BECKER, H. Outsiders: estudos de sociologia do
que se faz para obtê-la (ZIMBERG, 1984), ou seja, desvio. Rio de Janeiro, Zahar: 2008.
no presente caso, através do mercado e do cultivo
de maconha. No Rio de Janeiro, associações FOUCAULT, M. A verdade e as formas jurídicas.
simbólicas marcantes fazem com que muita Rio de Janeiro, Pontifícia Universidade Católica
gente prefira fumar maconha oriunda de cultivo do Rio de Janeiro: 1979.
caseiro (mesmo se dispondo a pagar mais caro),
não só pela reconhecida melhor qualidade do GRILLO, Carolina. Fazendo doze na pista: um
produto, mas também porque assim o fazendo, estudo de caso do mercado ilegal de drogas na classe
deixa de estar contribuindo para a capitalização média. Dissertação (Mestrado em antropologia)
de grupos armados que realizam o mercado - Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
varejista do prensado. Antropologia, UFRJ, Rio de Janeiro, 2008.
E, vale destacar, que o intuito de descrever
aqui tais práticas passa longe de ter um caráter de KANT DE LIMA, Roberto. Ensaios de
denúncia sobre qualquer forma de “ilegalidade”, Antropologia e Direito. Rio de Janeiro, Editora
já que nossa proposta é estar além das visões e Lúmen Júris: 2008.
categorias que informam o direito, assim como
também não cabe a este trabalho propor formas ______ . A Polícia na cidade do Rio de Janeiro: seus
de resolver “problemas sociais”. Remi Lenoir, dilemas e paradoxos. Rio de Janeiro, Autografia:
em “Objeto Sociológico e Problema Social” 2019.
(1998), propõe que a Sociologia se abstenha a dar
soluções para conflitos sociais, se encarregando, LABATE, Beatriz; RODRIGUES, Thiago. (orgs).
portanto, de compreender tais conflitos a partir Políticas de drogas no Brasil: conflitos e alternativas.
do exercício de relativização da própria moral e São Paulo, Mercado das Letras: 2018.
dos próprios valores.
Por tudo isso, esperamos ter assim LENOIR, Remi. Objeto Sociológico e Problema
contribuído para um debate sociológico de Social. In:CHAMPAGNE, Patrick et al.. Iniciação
tais práticas estatais e sociais, tendo como fio à Prática Sociológica. Petrópolis, Vozes: 1998
condutor formas de socialização que estruturam
usos e regulações (legais e ilegais) em torno MACHADO DA SILVA, L. A. Criminalidade
da maconha. Desse modo, nossa proposta violenta e ordem Pública: nota metodológica.
foi abordar antropologicamente processos de Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v.13,
adesão a sistemas normativos e de crenças, novembro, 1999, p.115-124.
a fim de embasar discussões sobre Políticas
Públicas e Antropologia, considerando que o MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva: forma
desenvolvimento de uma pesquisa coerente pode e razão da troca nas sociedades arcaicas. In:
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 15 n. 2 Julho. 2020 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 117
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São e a cultura do cultivo de maconha no Brasil.
TEORIA E CULTURA
______. Crime e Violência no Brasil ZINBERG, N. Drug, set and setting: the basis
contemporâneo: estudos de sociologia do crime e for controlled intoxicante use. New haven, Yale
da violência urbana. Rio de Janeiro, Lúmen Júris: University Press: 1984.
2006.
118 Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 15 n. 2 Julho. 2020 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print)
Percepções sobre drogas, dependência química e busca
TEORIA E CULTURA
de tratamento segundo elaborações cosmológicas de
católicos e pentecostais
Janine Targino1
José Wellington de Souza2
Resumo
No presente artigo pretendemos apresentar um estudo comparado dos resultados encontrados por
duas etnografias realizadas em torno da questão do uso crônico de álcool e drogas entre moradores de
regiões periféricas. Ao mesmo tempo, iremos expor as interpretações que os usuários e suas famílias
tinham sobre as causas da dependência química. De antemão, é importante salientar que, nos dois
cenários onde os autores fizeram suas etnografias, as explicações encontradas para a dependência
química gravitavam em torno das elaborações religiosas do catolicismo e do pentecostalismo. No
entanto, no primeiro caso, onde a experiência religiosa dos indivíduos se fundamentava sobre os
preceitos do catolicismo carismático, identificamos uma retórica voltada para o uso da medicina e
da ciência de maneira geral como estratégias para lidar com a questão do uso sistemático de drogas,
ainda que a dependência química fosse vista como um resultado de fatores não só bioquímicos, mas
também emocionais e religiosos. Por outro lado, o segundo contexto observado era mais influenciado
por preceitos do catolicismo popular e do pentecostalismo e se referia ao uso de drogas como um
fenômeno apenas de ordem mágico-religiosa, o que justificaria o uso de recursos mágico-religiosos
para cuidar dos indivíduos usuários problemáticos de drogas.
Perceptions about drugs, chemical dependency and search for treatment according to
cosmological elaborations of Catholics and Pentecostals
Abstract
This paper aims to present a comparative study of the results found by two ethnographies on the
issue of chronic alcohol and drug use among residents of peripheral communities. At the same time,
we will expose the interpretations that users and their families had about the causes of chemical
dependence. In advance, it is important to point out that in the two scenarios where the authors made
their ethnographies, the explanations found for chemical dependence gravitated around the religious
elaborations of Catholicism. However, in the first case, where individuals’ religious experience
was based on the precepts of charismatic Catholicism, we identified rhetoric focused on the use of
medicine and science in general as strategies for dealing with the issue of systematic drug use, although
chemical dependence was seen as a result of not only biochemical but also emotional and religious
factors.The second context observed was more influenced by the precepts of popular Catholicism and
Pentecostalism and referred to the use of drugs as a magical-religious phenomenon only, which would
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justify the use of magical-religious resources to uma comunidade terapêutica criada e mantida
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care for individuals problem drug users. por um grupo religioso vinculado à Renovação
Carismática Católica (RCC). Nesta etnografia
Keywords: chemical dependence; charismatic tratamos especificamente da relação entre
catholics; pentecostal evangelicals. usuários de drogas em processo de recuperação
e as crenças do catolicismo carismático. Ali,
Introdução encontramos uma relação quase incestuosa entre
a tentativa de cura médica, via tratamento médico
No presente artigo pretendemos e acompanhamento psicológico, e a busca da
apresentar um estudo comparado dos resultados conversão espiritual de dependentes químicos à
encontrados por duas etnografias realizadas doutrina católica. Já a segunda etnografia trata-se
em torno da questão do uso crônico de álcool de um estudo sobre a formação de uma periferia
e drogas entre moradores de comunidades na cidade de Liberdade, Sul de Minas Gerais.
periféricas. Ao mesmo tempo, iremos expor as Neste estudo foram observadas as dificuldades
interpretações que os usuários e suas famílias de adaptação dos moradores, oriundos da zona
tinham sobre as causas da dependência química. rural e de sítios onde se produzia alimentos
De antemão, é importante salientar que, nos dois de subsistência, em relações de parceria ou
cenários onde os autores fizeram suas etnografias, camaradagem com os fazendeiros locais, à vida
as explicações encontradas para a dependência urbana e ao trabalho assalariado. Segundo as
química gravitavam em torno das elaborações conclusões da pesquisa, as novas condições de
religiosas do catolicismo e do pentecostalismo. vida e a inadequação desses ex-agregados à vida
No entanto, no primeiro caso, onde a experiência urbana e ao trabalho assalariado levou a muitos
religiosa dos indivíduos se fundamentava casos de usuários crônicos de álcool e, embora
sobre os preceitos do catolicismo carismático, em menor incidência, drogas ilícitas. De forma
identificamos uma retórica voltada para o uso semelhante ao observado na primeira etnografia,
da medicina e da ciência de maneira geral como as explicações de cunho religioso serviam
estratégia para lidar com a questão do uso para explicar o uso desregrado de substâncias
sistemático de drogas, ainda que a dependência entorpecentes e para oferecer formas de combatê-
química fosse vista como um resultado de fatores lo, embora no caso observado no Sul de Minas não
não só bioquímicos, mas também emocionais tenha sido acompanhada de nenhuma tentativa
e religiosos (TARGINO, 2014). Por outro de tratamento médico ou medicamentoso entre
lado, o segundo contexto observado era mais os moradores. Sendo assim, a principal conclusão
influenciado pelos preceitos do catolicismo que apresentamos neste artigo é que a perspectiva
popular e do pentecostalismo e se referia ao pentecostal e nuances diferentes do catolicismo
uso de drogas como um fenômeno apenas de apontam para diferentes formas de interpretação
ordem mágico-religiosa, o que justificaria o uso sobre a dependência química.
de recursos mágico-religiosos para cuidar dos
indivíduos usuários problemáticos de drogas Contextualizando o problema
(SOUZA, 2017).
Desta forma, a primeira etnografia trata- Pode-se dizer que o consumo de drogas3
se de um estudo realizado na região metropolitana é um fenômeno de todos os tempos e todos os
do Rio de Janeiro e diz respeito à observação de povos, uma vez que não existem registros de
3 Segundo Araújo (2012), em uma definição mais ampla toda e qualquer substância capaz de alterar o funcionamento
normal de um organismo são consideradas “drogas”. Assim, o termo “droga” pode ser usado como um sinônimo para
substância psicoativa, ou seja, aquela capaz de causar alterações de comportamento e/ou percepção, sejam elas lícitas ou
ilícitas, o que inclui nesta lista substâncias bastante consumidas na atualidade, como o álcool e o tabaco, por exemplo.
Seguindo orientação parecida, o Glossário de Álcool e Drogas (2006) publicado pela Organização Mundial de Saúde
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nenhuma sociedade humana – tenha ela deixado de obtenção de substâncias psicotrópicas
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uma história escrita ou oral – que não mencione compõem um cenário histórico-social bastante
a utilização de substâncias entorpecentes problemático da sociedade ocidental. Neste
(WEREBE, 1982: 231-232). Ao percorrermos a contexto, emergiram vários conflitos e desajustes,
história da civilização, encontramos a presença de dentre os quais está a toxicomania4 (COSTA
drogas em vários contextos, tais como o religioso, & GONÇALVES, 1988). Além disso, alguns
o místico, o social, o econômico, o medicinal, eventos ocorridos no século XX agravaram ainda
o cultural, o psicológico, o climatológico, o mais esse quadro. A Guerra do Vietnã, na qual
militar e o da busca do prazer (TOTUGUI, fileiras de soldados americanos foram lançadas
1988: 1). Historicamente, a modificação de ao uso de diversas drogas, e o movimento hippie,
comportamento, humor e emoção por meio que valorizava o uso de drogas com o objetivo
de drogas sempre tem sido uma prática muito de “abrir a mente”, são alguns exemplos de
comum em vários lugares do planeta. Um bom episódios históricos do século XX associados
exemplo disso é a utilização de plantas psicoativas ao consumo abusivo de drogas psicotrópicas
e alucinógenas pelos nativos em cultos indígenas (CHARBONNEAU, 1982).
e pagãos, uma prática muito comum desde os Também no século XX, no período
primórdios da colonização, tanto nas Américas imediatamente pós-guerras mundiais, ganham
quanto na Europa (RODRIGUES, 2006). força os valores hedonistas típicos de uma
Dessa forma, o consumo de drogas sociedade pós-moderna ou de alta modernidade
não se trata de um elemento inerente apenas à (GIDDENS apud ZALUAR, 2000), pós-ética e
sociedade contemporânea. Ao mesmo tempo pós-sociedade do trabalho (OFFE apud ZALUAR,
em que se trata de uma prática que atravessa a 2000). Segundo Zaluar, a partir deste momento
história, o consumo de substâncias psicoativas histórico “os controles morais que tornam o uso
se transmuta através do tempo e é influenciado da lei desnecessário pararam de funcionar e não
pelos contextos culturais, sociais e comunitários foram substituídos por uma nova ética, baseada
em diversos aspectos (BARRADAS, 2008). Assim, na liberdade pessoal e no entendimento com os
o que realmente há de novo na época atual é a outros, por meio do diálogo, da mutualidade,
surpreendente quantidade de drogas existentes, do respeito ao direito alheio” (ZALUAR, 2000:
assim como a viabilidade ampliada de sua 59). Ainda seguindo as indicações de Zaluar,
aquisição, o crescente número de dependentes de vemos que os compromissos de cada um com os
entorpecentes e a postura proibicionista acerca demais no espaço público e as responsabilidades
do uso de determinadas substâncias psicoativas partilhadas ficaram comprometidos já que o jogo,
classificadas como ilegais (MURAD, 1982). as drogas e a diversão tornaram-se o objetivo
Desde o século XIX, o advento para muitos setores da população, especialmente
da economia capitalista provocou grandes os mais jovens (ZALUAR, 2000: 60).
transformações sociais que repercutiram Contudo, outros fenômenos que vão à
profundamente nos padrões de comportamento. contramão da valorização do hedonismo também
O rápido processo de industrialização, o atuam ativamente na sociedade ocidental
crescimento urbano socialmente segregacionista, contemporânea tornando cada vez maior o
a veiculação de uma ideologia de consumo e a número de toxicômanos5. Um deles estaria
ampliação da produção e das possibilidades profundamente ligado à esfera da atividade
(OMS) define droga como todas as substâncias que afetam a mente e os processos mentais. Para as finalidades da pesquisa
que apresentamos, acreditamos que estas definições sobre o conceito de droga sejam as mais indicadas para orientar a
análise dos dados que serão expostos a seguir.
4 Para a construção de uma definição que atenda aos interesses das Ciências Sociais, Olivenstein (1984) nos indica que
a toxicomania deve ser entendida como o encontro de uma personalidade portadora de atributos específicos com um
produto em um determinado momento sociocultural.
5 O termo “toxicômano” é empregado para se referir ao indivíduo que sofre com algum tipo de toxicomania, ou seja, que
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profissional. Fatores como excesso de trabalho, nos bairros pobres do Brasil, em regiões semi-
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ou proibidas já estavam no rol de substâncias do batismo com o Espírito Santo. Fora este
consumidas pelo homem há séculos, mesmo assim acontecimento que motivou a entrada do Pe.
passaram a ser vetadas. É importante lembrar Eduardo Dougherty no movimento carismático
que o consumo e circulação de substâncias como católico e, quando retornou ao Brasil no ano de
a cocaína, o ópio e a maconha eram legais até 1969, ele e o Pe. Harold Rahn começaram um
o início do século XX, momento no qual eram trabalho em conjunto na organização de retiros
popularmente usadas com objetivos recreativos e chamados de Experiências do Espírito Santo.
medicinais. No entanto, já nos primeiros anos do Mais tarde, estes retiros ficariam conhecidos
século passado a tríade maconha, ópio e cocaína como Experiências de Oração, e passariam a
foi colocada na lista negra de substâncias a serem ser realizados por todo o Brasil (SALES, 2006;
completamente banidas (RODRIGUES, 2006). CARRANZA, 2000).
Assim, a raiz do surgimento da RCC no
Percepções sobre drogas, dependência Brasil está na experiência dos cursos de TLC
química e busca de tratamento entre católicos criados pelo Pe. Harold Rahn (CARRANZA,
carismáticos na região metropolitana do Rio 2000; SALES, 2006). Após a consolidação da
de Janeiro RCC no Brasil, fato que ocorreu no final da
década de 1980, o Pe. Harold Rahn se afastou do
Conforme Carranza (2000), a RCC movimento e adotou outra “missão” e, em sua
chegou ao Brasil no ano de 1969 através dos nova empreitada, passou a se dedicar a criação
esforços impetrados pelos padres jesuítas de comunidades terapêuticas destinadas ao
Harold Rahm e Eduardo Dougherty, na cidade tratamento de dependentes químicos (SALES,
de Campinas, São Paulo. De acordo com os 2006; CARRANZA, 2000).
dados biográficos apresentados por Carranza a Fora entre as décadas de 1970 e 1980
respeito dos responsáveis pela instalação da RCC que ocorreu a retomada do ideário de vida
em solo nacional, o Pe. Harold Rahn nasceu comunitária entre os católicos, caracterizada
em 22 de fevereiro de 1919, no Texas, Estados pela adoção de determinados espaços urbanos
Unidos, e chegou ao Brasil por volta de 1969, e pelo destaque atribuído ao que, dentro do
quando fundou o movimento de Treinamento de movimento religioso, é considerado carisma.
Lideranças Cristãs (TLC). Este movimento, que Este novo formato de vida comunitária ganhou
tinha como público alvo jovens que buscavam cada vez mais substância com o passar do tempo,
suscitar sua vivência espiritual, buscava reunir e isso fez com que estas Novas Comunidades
a Juventude Estudantil Católica e a Juventude se transformassem em alternativas à vida
Operária Católica e formar lideranças religiosas comunitária proposta pelas tradicionais Ordens
durante a ditadura militar brasileira. Nestes e Congregações da Igreja Católica (CARRANZA,
TLC’s, temas como a vocação cristã, a doutrina 2000; JESUS, 2012).
da Igreja e a inserção na comunidade eram os Via de regra, as Novas Comunidades
que ganhavam maior destaque (CARRANZA, são estruturadas segundo um modo de
2000). relacionamento no qual se torna necessário a
Já o Pe. Eduardo Dougherty nasceu em 29 presença de um líder e de regras que possibilitem
de janeiro de 1941 na Lousiana, Estados Unidos, manter o grupo religioso enquadrado no perfil
e se tornou sacerdote jesuíta aos 24 anos de idade. determinado pela liderança religiosa. Além
Sua primeira visita ao Brasil, numa estadia muito disso, as Novas Comunidades se dividem em
curta, ocorreu em 1966. Na sequência, passou um duas modalidades: comunidades de aliança e
período no Canadá a fim de realizar seus estudos comunidades de vida. De acordo com Carranza,
teológicos. Logo após sua estadia no Canadá, o as comunidades de aliança se caracterizam pelo
Pe. Eduardo Dougherty retornou aos Estados laicato, e seus membros mantêm sua participação
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profissional no “mundo” e constituem famílias foco o atendimento de pessoas que estejam
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Aprofundamento de Cura, Cursos de Crescimento permeada por aspectos inerentes à forma como
na Fé (Fonte: www.maranatharj.com. Informação a instituição religiosa em questão se refere à
disponível até o dia 02/12/2019). dependência química. Isso ficou evidente quando
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os internos entrevistados foram interrogados
Os caminhos percorridos pelos indivíduos sobre se eles se consideram recuperados do
que chegam ao Projeto Reconstruir são, em geral, vício de drogas e qual o papel que eles atribuem
atravessados pela ação de amigos e/ ou familiares à religião em todo o processo de tratamento
que possuem conhecimento prévio a respeito contra a dependência química. Embora todos
do trabalho realizado na instituição. Importante tenham literalmente expresso a opinião de que
salientar que os amigos e /ou familiares que sem a ajuda da religião não teriam conseguido
atuam no sentido de instruir o indivíduo na se afastar do uso de drogas, nenhum deles usou
busca por tratamento no Projeto Reconstruir a palavra “curado” para se referir ao momento
agregam aspectos proselitistas aos seus discursos, presente. De fato, nenhum dos internos
já que a adesão religiosa deles aparece como entrevistados se considera completamente
algo fundamental para o tipo de indicação que curado e esta percepção sobre os objetivos reais
oferecem. E, além disso, os conselhos para que do tratamento apresentada pelos internos está
se busque tratamento no Projeto Reconstruir associada à maneira como a instituição apreende
são, muitas vezes, atravessados pelos relatos a dependência química e a forma ideal de lidar
de casos de terceiros que, após passarem pelo com este problema.
tratamento proposto pelo Projeto Reconstruir, Os Doze Passos propostos pelos AA, que
obtiveram sucesso na superação da dependência também são aplicados pelos NA, constituem
química. Assim, ao saber das histórias de outras a base dos chamados Doze Passos do Cristão
pessoas que também passaram pelo tratamento, utilizados como uma espécie de filosofia de vida
os entrevistados indicaram que se sentiram no âmbito do tratamento aplicado pelo Projeto
mais confiantes para conferir credibilidade ao Reconstruir. Os Doze Passos do Cristão trata-
tratamento proposto pela instituição. se de um conjunto de instruções que buscam
orientar o dependente químico na melhor forma
Eu não conhecia o trabalho de recuperação que a de lidar com sua dependência química e com
Maranathá faz, eu só tomei conhecimento através os problemas provocados pelo uso abusivo de
de uma tia minha que sabia por tudo que eu estava drogas. Contudo, em nenhum momento este
passando com as drogas. Quando ela me disse conjunto de instruções fala sobre a possibilidade
que tinha um lugar muito bom pra eu me tratar de se alcançar a cura completa da dependência
eu fiquei curioso: que lugar é esse que a minha tia química, mas sim coloca ênfase na necessidade de
tá falando? Eu fiquei na dúvida, achei que eu ia construção do entendimento de que o dependente
perder meu tempo aqui (no Projeto Reconstruir), químico é frágil diante da droga e que o mesmo
mas minha cabeça foi mudando quando eu fiquei não pode se afastar do uso de entorpecentes sem
sabendo de outros casos de pessoas que tinham se a ajuda de um poder sobrenatural, a saber, Deus.
tratado aqui. Minha tia conhecia outras pessoas que Da mesma forma que o AA e o NA
fizeram o tratamento no projeto e saíram boas. Aí consideram a dependência química como uma
eu fiquei pensando que se tinha funcionado com doença (a doença da adicção), os Doze Passos
outras pessoas, por que não iria funcionar comigo do Cristão também admitem que o vício de
também? (Luiz7, interno do Projeto Reconstruir). drogas deve ser observado como uma doença
que, deve-se ressaltar, é impossível de ser
O tratamento contra a dependência curada. Em função disso, o real objetivo buscado
química começa assim que o indivíduo adentra pelo Projeto Reconstruir é que seus internos
o projeto e a maneira pela qual os entrevistados entendam a necessidade de manterem, dia após
descrevem os resultados do tratamento é dia, o afastamento do uso de entorpecentes
7 Nome fictício.
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sem a pretensão de alcançarem a cura plena ou do Projeto Reconstruir).
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8 Nome fictício.
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que seguiram rumo a nascente do Rio Grande das plantações de subsistência para a plantação
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em busca de ouro, pedras preciosas e índios, de capim e braquiária, que viriam a constituir
supostamente entre meados do século XVII, pastos para o gado, é que se passou a substituir,
e que acabaram se estabelecendo na região ao gradativamente, as roças de milhos, feijão e
encontrarem algumas jazidas de ouro. Com o abóbora, o que tornou desnecessária a mão
declínio da exploração aurífera, durante o século de obra da família de agregados, que foi logo
XIX, a região passou a sobreviver dos alimentos substituída pela mão de obra assalariada de
produzidos nas pequenas fazendas e sítios da alguns poucos braços destinados à manutenção
região, que funcionavam como unidades de do gado, à ordenha das vacas e à criação de silos
produção que buscavam ao máximo responder com capim e milho para os períodos de inverno.
todas as suas necessidades para a reprodução Em tal contexto, tornou-se desnecessária
da existência. Nesse contexto, estabeleceu-se no a permanência das famílias nas fazendas, em
universo da vida rural libertense uma estrutura sua condição de colono, tornando-se estes um
hierárquica que tinha por topo os fazendeiros estorvo que levava ao uso desnecessário de uma
com terras, animais e plantações, e em outro terra que poderia ser usada como pasto. Sobre
extremo os colonos sem terra, empregados como essa mudança do uso da terra parece não haver
mão de obra, recebendo parte de sua produção documentos, mas a informação é amplamente
como pagamento por seu trabalho e totalmente difundida entre os ex-agregados, fazendeiros
dependentes dos fazendeiros, donos da terra e ex-fazendeiros. Um ex-agregado chamou a
onde viviam como agregados. Na camada atenção para o fato de que na região onde fica a
intermediária, havia sitiantes donos de pequenas casa paterna, terras antes destinadas ao plantio
propriedades nas quais viviam e portadores de para a autossuficiência, são hoje locais de plantio
certo grau de autonomia que lhes permitia maior exclusivo de capim para o gado. Outro diz ter
mobilidade para trabalhar e escolher parceiros, sido seu pai obrigado a se mudar para a cidade
apesar de não terem terras suficientes para por não ter terras para plantar, pois o fazendeiro
reproduzir sua subsistência e precisassem aliar- com o qual plantava em parceria passou a
se, ou submeter-se a proprietários de terras mais disponibilizar-lhe para plantio somente terras de
vastas e férteis. baixa produtividade, próximas a brejos de onde
Tal panorama socioeconômico foi toda a família só colhia alguns litros de milho e
gradativamente se transformado ao longo feijão, que ainda assim eram obrigados a repartir
do século passado, com o início da criação com o fazendeiro.
mais intensiva de gado leiteiro, que levou a Foi a partir desse momento que teve
substituição da produção para o consumo início o processo de abandono massivo ou a
interno das fazendas pela produção de leite e expulsão de moradores agregados da zona rural,
derivados. Com tal substituição das atividades que se estendeu por todo o século passado e que
econômicas, a posse de terras só era significante ainda pode ser percebido. No caso do sitiante,
à medida que proporcionasse a conversão em proprietário de pequena extensão de terra e de
capital monetário, revertido em automóveis, alguns animais, o processo de abandono da terra
mobília importada e dinheiro que possibilitasse foi mais complicado e por vezes mais trágico do
a obtenção do título de “doutor”, pelo menos a que o processo do colono sem posses. Para se
um dos filhos do fazendeiro. Tais transformações ver livre do sitiante não bastava ao fazendeiro
coincidiram com um processo de urbanização e mandá-lo embora, já que ele era o dono da terra.
de alinhamento ao mercado capitalista moderno Era necessário comprar a terra, o que demandaria
(ALVEZ, 1993). certos gastos, e mesmo assim sempre havia a
Segundo afirmaram alguns ex-agregados, possibilidade de algum proprietário negar-se a
hoje moradores do bairro da Ponte, bairro vendê-la, o que resultou em uma série de conflitos
periférico e semi-rural de Liberdade, foi a partir e cenas de violência.
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Expulsos de suas moradias, os antigos Selecionamos um caso que apesar de
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colonos estabeleceram-se nas proximidades da sua peculiaridade pode ser muito instrutivo a
cidade, as margens do Rio Grande, formando este respeito. Trata-se de um homem jovem,
um bairro periférico onde passaram a morar sabidamente usuário crônico de bebidas
em casas de pau a pique ou adobe, penduradas alcóolicas, que apesar de residir na periferia
em barrancos que despencavam em períodos da cidade circula pelas ruas e bares do centro,
chuvosos, vivendo sem as benesses da cidade, considerada zona nobre da cidade.
como a luz elétrica, esgoto ou água encanada. Internado de forma compulsória por
Além do mais, tais ex-agregados encontravam-se intermédio da assistente social da prefeitura,
ainda destituídos de trabalho formal, sem espaço não por intermédio da família, ou por vontade
para plantar ou para criar animais, alimentando- própria, o homem em questão ficou alguns meses
se por vezes da caridade alheia, da ajuda da Igreja em uma clinica psiquiátrica na cidade de Quatis-
católica, ou de antigos patrões, seus compadres, RJ. Logo que recebeu alta, retornou à liberdade e
que lhes ofereciam parca ajuda, fosse por respeito recomeçou a embriagar-se e a vagar pelas ruas da
à antiga relação de compadrio, ou em troca da cidade.
fidelidade politica, motivações que muitas vezes Dias depois o encontramos parado à porta
se mostravam indistinguíveis, mas que, mesmo de uma loja do centro, embriagado e pedindo
na melhor das hipóteses, não se assemelhava ao dinheiro ao lojista. O homem da loja resistia em
apoio outrora oferecido aos antigos parceiros. dar-lhe dinheiro, argumentando que ele iria usá-
Embora as causas da adicção lo para comprar pinga, o que não estava certo,
entre jovens residentes nas periferias de pois devia parar de beber.
Liberdade-MG e as dos residentes na região “Mas eu não bebo mais!”, respondeu o
metropolitana do Rio de Janeiro contenham embriagado. O homem da loja então o questionou
certas semelhanças, especialmente em suas afirmando que ele estava visivelmente bêbado,
condições socioeconômicas e nas representações então como haveria de ter parado? “Parei de beber
simbólicas baseadas em elementos religiosos e em pinga, que é a bebida do demônio, mas continuo
explicações sobrenaturais que os jovens usuários e bebendo vinho, que é a bebida de Nosso Senhor
suas famílias lançam mão para explicar, entender Jesus Cristo”.
o fenômeno da adicção, que acaba por convergir Diante de tal afirmação, o dono da loja
na mudança de religião e transformação da vida, demostrou um inegável espanto, ao ser pego de
toma tons de “conversão religiosa”, como forma surpresa por uma argumentação tão sui generis,
de reversão de sua condição de vida e sua vitória que logo completou sua fala com novas. Segundo
definitiva em relação ao mal, algumas diferenças ele, “Deus criou o vinho e o demônio, com
importantes podem ser notadas. inveja, ao tentar reproduzir o feito divino, mas
Enquanto nos casos estudados na região falhando, acabou por criar a pinga”. A resposta do
metropolitana do Rio de Janeiro podemos notar homem embriagado é surpreendentemente rica
a caracterização, ou classificação do adicto, e detentora de significados subjacentes, e não se
que mesmo quando pautado em um sistema tratando de uma troça, como pode vir a parecer
causal movido por forças religiosas não carece num primeiro instante, o que pode ser constatado
de elementos explicativos oriundos de sistemas pela leitura de outros trabalhos etnográficos
modernos de classificação e terapêutica, que realizados na região, e que tiveram por objeto
acaba por definir o adicto como um doente a as representações religiosas da população de
ser medicado e tratado segundo a terapêutica origem rural, que hoje compõe a grande maioria
médica produzida pela modernidade, os casos dos moradores das áreas periféricas daquelas
observados na periferia de Liberdade-MG são, pequenas cidades.
quase que exclusivamente, definidos como De acordo com o que podemos ler sobre
religiosos. as condições de criação do mundo, segundo as
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definições daquilo que se convencionou chamar manifesta sob as diversidades de delitos
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de catolicismo popular, poderemos entender praticados pelos homens sob o efeito do álcool,
melhor o assunto. Segundo se conta: que vão de pequenos furtos à violência doméstica;
e enfermidades relacionadas ao uso abusivo do
No início, Deus criou o mundo e gerou os animais. álcool, que pode ser constatado por vários casos
O Diabo, entretanto, tomado de inveja, pôs- lembrados pelos moradores do bairro de homens
se a imitar as criações divinas, criando versões jovens mortos de infartos, cirroses, cárceres
distorcidas da sagrada criação. Assim, Deus criou ligados ao alcoolismo, além de acidentes, e de
os pássaros, e o Diabo, em uma tentativa de repetir um grau aparentemente elevado de suicídio,
a obra divina, acabou criando os morcegos. O comumente relacionado à bebida.
mesmo se deu com o resto da criação – Deus criou Na consumação, ou eminência, de tais
o peixe e, tentando imitá-lo, o Diabo criou a cobra; casos leva a explicações a respeito do mal da
Deus criou o cão, e o Diabo criou o gato; Deus criou bebida e da contenção de tal mal. As explicações
as borboletas, e o Diabo criou as mariposas; Deus passam, especialmente, por um viés religioso,
criou as galinhas, e o Diabo criou os patos, e assim assim como a tentativa de sua cura. Tem-se
por diante (informação verbal). então os recursos mais variados, que vão de
benzimentos e simpatias feitas na bebida, que
No entanto, tal enquadramento da pinga incluem a introdução de raspas de chifre e casco
como elemento de origem demoníaca, distinto de boi ou “a primeira bosta do dia, de uma
das demais bebidas alcoólicas, não é definitivo, galinha toda preta”, dissolvida em uma garrafa de
e a pinga tem importante valor simbólico entre pinga oferecida ao alcoólatra.
os moradores da periferia da cidade, estando Outro recurso é o apelo às almas santas,
intimamente ligada a símbolos de masculinidade por meio de missas, terços e promessas, algumas
e virilidade, sendo mesmo uma definição sagrada vezes pagas nos cruzeiros das igrejas, à meia-
e constituidora da condição masculina, numa noite, ou a busca de algum benzedor, que possa
sociedade onde o homem é, na grande maioria descobrir a causa da bebedeira exagerada, assim
das vezes, privado do trabalho e levado ao uso como uma forma de interrompê-la.
abusivo de bebidas alcoólicas. Outra história A introdução na cidade de algumas
religiosa explica a inclinação do homem à pinga e igrejas pentecostais e neopentecostais ofereceu
a obrigação da mulher de se dedicar ao trabalho. aos moradores uma nova opção de cura, por
Segundo se conta: meio das ofertas de exorcismos, cura e libertação.
Apesar de a grande maioria da população
Quando a Sagrada Família fugia de seus da cidade, incluindo a do bairro da Ponte, e
perseguidores, a mulinha que levava Nossa Senhora outros periféricos, ser declaradamente católica.
e o Menino Jesus atolou em um lamaçal. São José Especialmente em relação aos moradores do
tentou o mais que pode, mas não conseguiu soltá- bairro da Ponte, as incursões para a cura do
la. Nossa Senhora saiu, então, em busca de auxílio usuário crônico de bebidas alcóolicas acontece
para o seu divino esposo e encontrou um grupo de modo muito similar às incursões que essas
de mulheres lavando roupa na beira de um rio. pessoas, declaradamente católicas, fazem a
Contou a elas o que se passava e pediu ajuda. As centros de Umbanda, ou a benzedores que se
mulheres, no entanto, se negaram a ajudar, dizendo definem como seguidores dessa matriz religiosa,
que tinham muita roupa para lavar. Diante disso, a tratando-se não de uma adesão, ou conversão,
Virgem Maria lhes disse: “Roupa para lavar não há mas apenas de uma espécie de consulta, com o
de lhes faltar” (informação verbal). propósito específico, que pretendem que seja
resolvido pela introdução de uma fórmula
A benção da vida ociosa e da embriaguez, mágica.
entretanto, trás embutida uma maldição, Curiosamente, tal circulação entre as
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denominações religiosas acontece graças ao uso, Liberdade-MG. A circulação, que se dá entre
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pelos distintos grupos religiosos, de um arcabouço pastores, benzedores e padres, não soa como o
simbólico já consagrado coletivamente. É o rompimento ou a descrença em uma denominação
que acontece, por exemplo, com a ideia que se religiosa específica, pois, no entendimento dos
tem, entre os moradores do bairro da Ponte, a fiéis em questão, todos esses agentes religiosos
respeito da existência de um “espirito bebedor” compartilham de uma única verdade sagrada.
que possui um ente da família e o faz beber Em termos antropológicos, poderíamos
compulsivamente. Ora, tal perspectiva se alinha dizer que tais agentes religiosos compartilham do
à noção neopentecostal de maldição hereditária, mesmo universo simbólico, ou antes, dos mesmos
definida como maldição ou feitiço lançado sobre símbolos, que são agrupados em combinações
um individuo, sendo capaz de ser transmitido ao diversas, variações sobre o mesmo tema, como
longo de gerações, o que precisamos considerar se constituíssem uma língua comum, embora a
que não destoa da definição geral a respeito de diversificassem em variações de fala.
maldição presente no Velho Testamento. De tal forma que o benzedor, por exemplo,
Em um caso específico, um usuário não detém nenhum tipo de monopólio sobre o
de bebidas alcoólicas foi levado a uma igreja universo mágico, e sua versão sobre tal a realidade
neopentecostal que pretendia se estabelecer é enriquecida ao ser questionada pelos demais
na cidade. Na igreja, o jovem foi submetido a agentes que, mesmo pretendendo se apresentar
algumas sessões de descarrego e libertação, onde como opositores à lógica mágica defendida por
o pastor, sua família e os cinco ou seis membros ele, acabam mais próximos de tal lógica do que
da congregação tentavam convencer o jovem e gostariam de imaginar. Entre tais opositores se
seus familiares de que o motivo que realmente destacam os pastores das igrejas pentecostais e
levava o rapaz a se embebedar era a presença de neopentecostais, padres católicos e um grande
um espirito bebedor, que já havia se apossado número de leigos, cujas representações, por eles
de seu pai e de seu irmão, já mortos, e que agora produzidas e reproduzidas, vagam em um mesmo
abitava nele e buscava sua ruina. O diagnóstico universo simbólico, formado por constructos
já havia sido feito pela mãe do rapaz, católica e produzidos por todas as perspectivas religiosas
membro da Irmandade do Sagrado Coração de em jogo na comunidade.
Jesus. Neste quadro, o pastor se vê obrigado
O jovem foi a alguns cultos, na maioria das a lidar com um universo composto de santos e
vezes embriagado, e acabou não se convertendo, caboclos, cuja existência não pode negar com
apesar de ser convencido de que era perseguido um simples argumento de que a crença em tais
por demônios que desejavam destruí-lo, de entes é idolatria ou simples produto de folclore.
maneira que, quando embriagado, afirmava ver Esses seres são sentidos pelos moradores e se
demônios que o atacavam, o que o levava a reagir manifestam cotidianamente em suas vidas;
desferindo contra o ar golpes de machado, foice realizam milagres e atendem a desejos; trazem
ou pedaços de madeira, destruindo partes da casa o bem e o mal, o infortúnio e a vingança,
ou do jardim da velha mãe, que nessas ocasiões encontrando nos benzedores os agentes
o observava de longe e o aguardava até que ele responsáveis por sua instituição, como objetos
se acalmasse, para se aproximar e desferir contra legítimos ou legitimados de crença, de tal forma
a nuca do filho dois punhados de sal, um na que o pastor, mais próximo das representações
horizontal, outro na vertical, formando o sinal da populares, é obrigado a os combater e os
cruz, como forma de espantar o mau espírito. ressignificar, sem, no entanto, lhes negar a
A variação na busca da cura e libertação prerrogativa da existência.
em vários grupos religiosos parece ser uma Tal coexistência de elementos simbólicos
característica do catolicismo popular, ou pelo oriundos de variadas matrizes religiosas pode ser
menos o é entre os moradores da periferia de observada nos poucos cômodos das casas dos
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moradores do bairro da Ponte, onde disputam são elaboradas e compartilhadas sem que
TEORIA E CULTURA
o pequeno espaço das paredes, pintadas de cal interpretações de ordem cientificista moderna
colorido de azul, verde e rosa, figuras de santos sejam acionadas.
católicos; emblemas religiosos oriundos do Desvelar tais diferenças na maneira como,
meio pentecostal; pequenas imagens de gesso ou de um lado, catolicismo carismático e, de outro,
plástico; quadros simples de madeiras e papelão o catolicismo popular e o pentecostalismo se
encapados com plástico, de Santa Bárbara, São comportam em relação aos indivíduos usuários
Jorge e Iemanjá; e trechos do Livro dos Salmos, problemáticos de drogas mostra que mesmo
impressos em papel e pendurados na parede – nuances religiosas relativamente próximas
tudo isso adornado com fitas de Santos –; rosários; podem desenvolver respostas variadas diante da
ramos com os quais os fiéis acompanharam mesma questão. As semelhanças cosmológicas
a procissão de Domingo de Ramos durante a e doutrinárias existentes entre estes grupos
Semana Santa; cartões convidando para a missa religiosos definitivamente não impedem que seus
de sétimo dia de um parente morto, nos quais adeptos elaborem estratégias singulares quando
se pode ver a foto do morto junto ao Cristo, à confrontados pelos mesmos problemas.
Virgem e aos Anjos.
Referências bibliográficas
Considerações finais
ALVES, José. Serra da Mantiqueira: Liberdade
Diante dos dados expostos, é possível transformações e permanecias. Dissertação de
afirmarmos que a questão da dependência Mestrado, Universidade de São Paulo. São Paulo,
química arregimenta esforços de diversas 1993.
esferas na tentativa de “solucionar” aquele que
tem sido classificado como um dos maiores ARAÚJO, Tarso. Almanaque das Drogas. Rio de
problemas da sociedade contemporânea. A Janeiro: Editora Leya, 2012.
religião, enquanto uma fonte de significado para
os eventos da sociedade, insurge como portadora BARRADAS, Ana Miriam Pinto. Factores
de uma retórica sobremaneira relevante que influentes na permanência do toxicodependente
atua à maneira de um roteiro para ação dos em programas terapêuticos do Desafio Jovem:
indivíduos que anseiam por uma alternativa um estudo de caso. 2008. 161 f. Dissertação
para lidar com a dependência química. Entre (Mestrado Integrado em Psicologia) – Núcleo
as várias possibilidades de respostas oferecidas de Psicoterapia Cognitivo-Comportamental
pela religião ao ponto em questão, ilustramos a e Integrativa, Universidade de Lisboa, Lisboa,
performance de um grupo carismático católico 2008.
que busca afastar indivíduos toxicômanos do
uso de drogas em contraposição a um contexto BENEDETTI, Luiz Roberto; CARRANZA,
onde prevalecem interpretações fundamentadas Brenda; CAMURÇA, Marcelo. Perspectivas da
no pentecostalismo e no catolicismo popular. neopentecostalização católica. In; CARRANZA,
Notamos que ambos oferecem respostas Brenda; MARIZ, Cecilia; CAMURÇA, Marcelo
diametralmente opostas, visto que no primeiro (Org.). 233 Novas Comunidades Católicas: em
cenário encontramos um plano de ação orientado busca do espaço pós-moderno. 1ed. Aparecida:
pelo uso da perspectiva médico-científica em Ideias & Letras, 2009, v. 1.
uma parceria (que, como pudemos perceber, não
é de igual para igual) com os preceitos religiosos BEZERRA JUNIOR, Benilton. Identidade,
aplicados pelo catolicismo carismático. Enquanto diferença e exclusão na sociedade brasileira
no segundo as explicações mágico-religiosas contemporânea. In; ACSELRAD, Gilberta
para a dependência química dos ex-agregados (Org.). Avessos do Prazer: drogas, Aids e direitos
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TEORIA E CULTURA
O debate sobre a regulamentação do uso medicinal da Cannabis, assim como o cultivo para esse fim
e as pesquisas científicas com a planta no Brasil, deu um novo passo com as consultas e audiências
públicas 654 e 655 promovidas pela Anvisa entre junho e agosto em 2019. Deste modo, busca-se
identificar e analisar como as máximas do rigor científico da Anvisa (Eficácia, Segurança e Qualidade)
aparecem no posicionamento público dos representantes dos diversos segmentos da sociedade que
participaram do processo. O uso do software Iramuteq permitiu realizar a Análise de Conteúdo da fala
dos participantes e da Anvisa. Os resultados demonstram que a Anvisa busca resguardar suas decisões
e atitudes justificando que seu rigor científico é garantido pelas máximas, enquanto os representantes
da sociedade apontam que há outras possibilidades que poderiam ser complementares. A decisão
final da Anvisa autoriza a venda de produtos à base de Cannabis em Farmácias, mas proíbe o cultivo,
de forma que os substratos ainda precisarão ser importados.
“Effectiveness, safety and quality”: scientific rigor at Anvisa public hearings on medical
cannabis regulation and research
Abstract
The debate on the regulation of the medicinal use of Cannabis, as well as the cultivation for this
purpose and the scientific research with the plant in Brazil, took a new step with Anvisa’s public
consultations and hearings 654 and 655 between June and August in 2019. Thus, we seek to identify
and analyze how the maxims of Anvisa’s scientific rigor (Effectiveness, Safety and Quality) appear in
the public positioning of the representatives of the various segments of society that participated in
the process. The use of Iramuteq software allowed the content analysis of participants’ and Anvisa’s
speech. The results show that Anvisa seeks to safeguard its decisions and attitudes justifying that its
scientific rigor is guaranteed by the maxims, while representatives of society point out that there
are other possibilities that could be complementary. Anvisa’s final decision authorizes the sale of
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Cannabis-based products in pharmacies, but famosa devido à divulgação do documentário
TEORIA E CULTURA
prohibits cultivation, so substrates will still need Ilegal (2014), dirigido por Tarso Araújo e
to be imported. divulgado nacionalmente no Fantástico –
programa da Rede Globo de grande audiência
Keywords: medicinal cannabis; public positioning; exibido nas noites de domingo - e em outros
Anvisa; scientific rigor. programas televisivos (OLIVEIRA, 2016).
O caso de Anny Fischer acabou se tornando
Introdução inspiração para outras famílias que passavam
pelas mesmas dificuldades. Em parceria com
“A sociedade sabe mais sobre a ciência do que médicos, advogados e vários outros profissionais,
os cientistas sabem sobre a sociedade”. essas famílias formaram associações que lutam
Sarita Albagli pelo direito ao uso de derivados da maconha
medicinal e estabeleceram vínculos associações
Quão porosas são as relações entre o público que defendem o uso recreativo e industrial da
em geral e a comunidade científica? A epígrafe planta (OLIVEIRA, 2017)4. Tal configuração
deste artigo é uma colocação instigante da permitiu um re-enquadramento do debate sobre
autora Sarita Albagli (1996) que introduz a maconha no país, até então vinculada à tensão
com propriedade a discussão que embasa este entre legalização e proibicionismo do consumo
estudo. As demandas por pesquisas em ciência recreativo, colocando, à frente do debate, famílias
e tecnologia podem ser influenciadas por que buscavam tratamento de saúde e qualidade
diversos fatores, como tendências dentro de um de vida para suas crianças.
determinado campo de estudo (ie. agenda de Após a pressão desses movimentos e
pesquisa interna) ou até interesses econômicos, associações, com grande participação da mídia
políticos ou sociais em dada inovação ou e do sistema político nesse debate, a Agência
conhecimento. Por vezes, a motivação pode até Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa)
mesmo vir da luta de movimentos sociais por autorizou a importação controlada do composto
uma causa, por valores ou ideologia, ou ainda de em janeiro de 2015 para famílias cadastradas na
lideranças ou grupos sociais buscando acesso a agência (OLIVEIRA, 2016; 2017). Ainda que
serviços e produtos científicos que melhorariam tenha atendido a demandas dessas associações,
sua qualidade de vida. tal autorização criou uma situação regulatória
A exemplo dessa última motivação, em abril desajustada, já que se permite a importação do
de 2014, tornou-se conhecido em nosso país o Canabidiol para fins medicinais, ao passo que
caso da família Fischer, cuja filha caçula Anny o cultivo, a posse, o processamento, a venda e
(com apenas cinco anos na época) sofria de um a pesquisa permaneceram ilegais, salvo para
grave quadro de epilepsia refratária causada pela algumas poucas famílias e instituições que
Síndrome de Dravet. Tal enfermidade levava conseguiram esse direito por decisão judicial.
a menina a apresentar até 40 crises diárias de O debate permanece, mas com novos
convulsão, que foram controladas de forma enquadramentos, inclusive relacionadas com a
significativa após iniciar o tratamento com pesquisa, uma vez que essa proibição impede o
Canabidiol (CBD), uma substância derivada avanço dos estudos por parte de instituições de
da maconha (Cannabis spp.). Sua história ficou pesquisa públicas e privadas que têm interesse no
4 No caso da opinião pública sobre o consumo de drogas ilícitas no Brasil, após realizar duas pesquisas survey analisando a
opinião e a moralidade a partir de argumentos baseados em uso, Venturi (2017) concluiu que, no Brasil, os “proibicionistas,
usuários ou não, constituem a maioria da população, e estariam presos a padrões convencionais (eventualmente até pré-
convencionais) de julgamento moral; os antiproibicionistas, sobretudo se não usuários, expressariam postura descentrada
e moralmente autônoma, pós-convencional, socialmente minoritária”. Com esse empasse, o autor reafirma a dificuldade
de se criar, reformular ou discutir políticas públicas referentes ao tema.
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estudo dos benefícios e atributos da planta para informações e significações são precisamente
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fins medicinais e industriais. Face a essa situação, efeitos de suportes, conexões, proximidades,
a Anvisa abriu duas Consultas Públicas (CP) interfaces”. O Dicionário de Sinônimos Online5
em junho de 2019 a fim de averiguar a opinião enumera 55 sinônimos divididos em oito sentidos
pública a respeito do uso medicinal e da pesquisa da palavra conhecimento. Os sentidos são:
com Cannabis spp. no Brasil. A CP 654 avaliava ciência, sabedoria, compreensão, experiência,
uma proposta que dispõe sobre o procedimento convivência, notícia, noções e recibo. Pela
específico para registro e monitoramento de complexidade e abrangência do termo, neste
medicamentos à base de Cannabis spp., seus estudo, iremos nos concentrar em apenas duas
derivados e análogos sintéticos, enquanto a CP formas de conhecimento, que Van Dijk (2011)
655 discute uma proposta de requisitos técnicos classifica como a distinção entre o conhecimento
e administrativos para o cultivo da planta científico e o conhecimento comum. Segundo o
Cannabis spp. para fins medicinais e científicos. autor, tal distinção é social, pois é definida pela
Os resultados foram divulgados no início do mês comunidade detentora do conhecimento.
de agosto do mesmo ano. Apesar de existirem diversos meios de se
Os temas dessas consultas públicas também acessar o conhecimento (ciência, arte, filosofia,
foram discutidos nas Audiências Públicas teoria política, religião, mito, senso comum, etc.),
da Anvisa que ocorreram em Brasília no dia aquele que possui mais prestígio e legitimidade
31 de julho de 2019, com a participação de é o conhecimento científico. Isso se deve a
representantes da sociedade civil (pacientes propriedades tais “como ser (mais) abstrato, geral,
e familiares), dos âmbitos científico, jurídico, teórico, real, internacional, geralmente baseado
associações e empresas, além dos próprios em um critério mais rigoroso (em modelos) de
servidores da Anvisa. As contribuições são validação que, por exemplo, o conhecimento
avaliadas e corroboram a criação ou reformulação comum cotidiano” (VAN DIJK, 2011, p 31).
de leis e políticas para o acesso ao medicamento e Boaventura de Sousa Santos (2011) completa
o avanço do conhecimento, por isso, este estudo que, no imaginário científico da modernidade,
tem o objetivo de identificar e analisar como o este rigor está intimamente relacionado às
enquadramento das máximas do rigor científico medições e ao quantitativo, que o despojaria
da Anvisa aparecem no posicionamento público das subjetividades. Firmada em paradigmas,
dos representantes dos diversos segmentos da parâmetros coletivamente compartilhados de
sociedade que participaram da Audiência Pública investigação científica, a ciência moderna se
das CPs 654 e 655. desenvolve a partir de uma série de revoluções
científicas (KHUN, 1998), cuja “massa de
Sobre conhecimento, ciência e senso conhecimentos científicos existentes hoje é um
comum produto europeu, gerado nos últimos quatro
séculos. Nenhuma outra civilização ou época
Como definir conhecimento? Para David manteve essas comunidades muito especiais
Bloor, o conhecimento se refere a uma “visão, das quais provêm a produtividade científica”
ou visões, coletiva da realidade”, remetendo (KHUN, 1998, p. 210).
ao domínio da cultura e ultrapassando as Em uma crítica ao modelo paradigmático
experiências individuais ou as sensações que as de ciência moderna, Boaventura aponta que tal
aparências da realidade nos proporcionam (2010, modelo está passando por uma profunda crise,
p. 32-33). Levy (2010, p. 186), ao apresentar sua cujas características são de ordem qualitativa
teoria das interfaces, afirma que “aquilo sobre o e que, portanto, nem maiores investigações,
que versam as teorias do conhecimento: saberes, nem maior precisão dos instrumentos e nem
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o acúmulo de informações e dados seriam De acordo com Germano e Kulesca (2007),
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capazes de superar. Este autor defende que, para essa demanda seria resultado dos avanços
superar essa crise, precisamos nos distanciar da científicos que trariam inúmeros benefícios para
racionalidade cognitivo-instrumental que reduz a sociedade, cuja informação, entretanto, estava
a ciência à regulamentação, tanto por parte sendo distribuída de forma desigual. “Em tal
do Estado quanto do mercado, e aprofunda contexto, não é suficiente a busca do diálogo entre
a separação epistemológica sujeito e objeto, as várias áreas do conhecimento científico – o que
negligenciando os sujeitos e as comunidades e já não é simples – mas, exige-se uma ampliação
impedindo o estabelecimento de solidariedades desta busca até alcançar todos os setores da
e intersubjetividades. Neste caso, o autor propõe sociedade, principalmente os mais atingidos pelo
um conhecimento-emancipação que consiste processo de exclusão” (GERMANO; KULESCA,
na reinvenção do senso comum, devendo ser 2007, p. 8)
um “conhecimento prudente para uma vida A divulgação da ciência, segundo Albagli
decente” (SANTOS, 2011, p. 107), ou seja, um (1996), tem o papel social, educacional, cívico
conhecimento vinculado a questões éticas, de e de mobilização popular. Educacional por
responsabilidade, com propósitos solidários. propiciar ao público a compreensão do processo
Completa ainda que isso se torna possível, pois científico e sua lógica; Cívico por permitir que
“apesar de o conhecimento do senso comum ser o cidadão forme opinião crítica ao se informar,
geralmente um conhecimento mistificador, e podendo tomar decisões mais conscientes; e de
apesar de ser conservador, possui uma dimensão Mobilização Popular por ampliar “a possibilidade
utópica e libertadora que pode valorizar-se e a qualidade da participação da sociedade na
através do diálogo com o conhecimento pós- formulação de políticas públicas e na escolha de
moderno” (SANTOS, 2011, p. 108). Khun (1998), opções tecnológicas” (ALBAGLI, 1996, p. 397).
em contrapartida, considera ser inadequado A popularização da ciência (por meio da
classificar o senso comum como conhecimento, mídia, museus etc.) é uma forma mais ampliada
visto que este é um conhecimento baseado tão de democratizar o acesso e promover o debate
somente na experiência e no trajeto estímulo- sobre os avanços e descobertas científicas. As
resposta, sem regras ou teorias. audiências públicas, por outro lado, são espaços
Independente de visões teóricas divergentes, mais limitados de participação por atrair
acreditamos que tanto o senso comum quando profissionais e parte da sociedade que possuem
a ciência são construídos em contextos distintos, previamente interesse no debate proposto pela
mas que podem ser complementares: a ciência agência reguladora. Ainda assim é uma forma
pode, por exemplo, se inspirar no senso comum da sociedade participar da formulação dessas
para investigar potencialidades de determinada políticas, sobre as quais trataremos no tópico a
espécie de planta usada tradicionalmente seguir.
para cura de enfermidades. Por outro lado,
o conhecimento científico abstrato e teórico Consultas públicas: diálogo entre a Anvisa
possui uma linguagem muito específica que e a sociedade
dificulta a comunicação com a comunidade de
conhecimento comum (BUENO, 2010; KHUN, O que são consultas públicas? Respondendo
1998; VAN DIJK, 2011). Para criar uma ponte a essa pergunta, Collins e Pinch (2010) afirmam
entre cientistas e leigos, utiliza-se técnicas de que há especialistas que se dedicam a apontar os
popularização ou divulgação da ciência, que benefícios, assim como buscam caminhos para
consiste no uso de processos e recursos técnicos minimizar os riscos, enquanto outros especialistas
para a transmissão de informações sobre ciência apontam os riscos e pontos negativos que não
para o público amplo (ALBAGLI, 1996; BUENO, podem ser desconsiderados. Segundo os autores,
2010). o papel das Instituições quasi-legais ou agências
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federais é filtrar as evidências destes experts para públicas; (4) Formulário das Consultas Públicas
TEORIA E CULTURA
que o público faça sua escolha, uma vez que “os (atualmente já encerrado) e; (5) O resultado do
cidadãos, ao votar, precisam saber o suficiente formulário.
para decidir” (COLLINS; PINCH, 2010, p. 181). Em relação aos formulários online, as
A Anvisa, define as CPs que realiza da seguinte instruções disponibilizadas no próprio site
forma: da Anvisa descrevem que, para fazer uma
contribuição relevante, é preciso preparar sua
A Consulta Pública da Anvisa é o mecanismo contribuição com base em evidências concretas,
de participação que submete minutas de atos referências bibliográficas e argumentos concretos
normativos ao recebimento de comentários e (ANVISA, 2019)8. Como é possível inferir,
sugestões do público amplo por um período a importância do conhecimento científico e
determinado. As manifestações recebidas não são da divulgação da ciência é primordial para a
computadas como voto, e sim como subsídios e informação da comunidade que irá contribuir
informações da sociedade para a consolidação do para essa consulta, independente do segmento
texto final a ser submetido à decisão posterior da da sociedade que o participante represente. Além
Diretoria Colegiada da Agência. Atualmente, é disso, a Anvisa deixa claro que a contribuição será
utilizado o sistema eletrônico FormSUS para envio considerada para a formulação das resoluções,
das manifestações.6 mas o texto não está em votação. Sendo assim, os
números expressos neste estudo não pretendem
Tanto as consultas quando as audiências eleger ou vetar nenhuma resolução, apenas
públicas da Anvisa estão no site da agência no demonstram a participação popular nas consultas
campo reservado para esse tema e são divulgadas e audiências públicas.
na página de consultas e audiências e também Para a CP 654, foram obtidas 594 respostas,
em notas e notícias com pelo menos 30 dias de sendo 98,99% respondidas por brasileiros, 1,01%
antecedência. Entretanto, como nem todos os por estrangeiros e 0,17% não preencheu a origem.
interessados acompanham essa divulgação no Dentre as internacionais, tiveram participações
site da Anvisa, pode-se afirmar que outros meios advindas do Canadá, Estados Unidos, República
de comunicação, como jornais, programas de da Polônia e Uruguai. Já as nacionais, contaram
televisão, sites, redes sociais e até a indicação de com a participação de quase todos os estados,
amigos e conhecidos contribuíram para que mais além do Distrito Federal. Só não aparecem Amapá
pessoas tomassem conhecimento das CPs e das e Roraima. Já a CP 655 recebeu 560 respostas,
audiências. 99,11% nacionais, 0,89% internacionais (Canadá,
As CPs 654 e 655 da Anvisa ficaram abertas Estados Unidos, Itália e República da Polônia) e
no período de 21 de junho a 19 de agosto de 0,18% não respondeu.
2019, sendo que, no site oficial7, é possível O perfil dos respondentes em ambas as CPs
encontrar os seguintes documentos: (1) Votos foi composto majoritariamente por “cidadãos ou
dos Diretores William Dib e Fernando Mendes consumidores”9, confirmando a sua influência e
Garcia Neto para as duas consultas; (2) Slides interesse pelo assunto. Além disso, vale ressaltar
das apresentações que a Anvisa fez no início de que cerca de 80% dos participantes respondeu
cada audiência pública, ocorridas no dia 31 de que era a primeira vez que participava de uma
julho de 2019; (3) A chamada para as consultas consulta pública da Anvisa nas duas CPs. Na Figu
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TEORIA E CULTURA
Figura 1 – Perfil dos participantes das CPs 654 e 655 da Anvisa.
Fonte: Elaborado pelos autores, com base nos dados dos formulários das CPs.
ra 1, é possível observar todos os segmentos
participantes.
A Anvisa possui parâmetros estabelecidos
de validação de rigor científico que visam
garantir a segurança, eficácia e qualidade dos
medicamentos que ela certifica. Esses critérios
foram estabelecidos pela Resolução da Diretoria
Colegiada (RDC) 60/201410 e, como veremos,
são eixos fundamentais que organizam,
cognitivamente, o modo como as consultas e
audiências são realizadas11. É possível perceber
que esses critérios aparecem nas opções de
resposta a duas questões da CP 654: “Você é
a favor da regulamentação do uso medicinal
da Cannabis no Brasil?” e “Você é a favor do
enquadramento de produtos à base de Cannabis
spp., seus derivados e análogos sintéticos como
medicamentos?”.
10 Instituídos pela Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 60/2014. A norma atualiza e harmoniza os critérios técnicos
de qualidade, segurança e eficácia para o registro de medicamentos classificados como novos, genéricos e similares.
Disponível em: https://www20.anvisa.gov.br/coifa/pdf/rdc60.pdf. Acesso em 18 out. 2019.
11 Tal qual aconteceu com o documento governamental canadense em relação a legalização da maconha analisado
por Line Beauchesne (2017), a própria agência se antecipa aos efeitos públicos de uma mudança na regulamentação e
enquadra o debate a partir de determinados eixos, quais sejam, segurança e saúde. No caso aqui trabalhado, o pólo saúde
ficou em evidência pelo fato da Anvisa, enquanto agência sanitária estatal, ter levado adiante o debate a partir dos seus
próprios termos. No entanto, como pôde ser visto pela decisão final que proibiu o plantio, questão relativas à segurança
não foram excluídas da deliberação e tomada de decisão.
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classifica as informações levantadas; e Interpretação dos Resultados, fase em que se discute os dados
TEORIA E CULTURA
obtidos na etapa anterior.
Como pré-análise, optamos por analisar a participação do público na Audiência Pública das CPs
654 e 655 da Anvisa. Teve-se como fonte de dados a consulta pública pela internet (via formulário) e
o debate na Audiência, coletado via vídeo do Youtube12.
Optamos por omitir os nomes dos participantes, primeiro pela maioria ser cidadãos comuns, o que
dificultou a identificação e grafia correta de seus nomes. Além disso, o objetivo desse estudo é observar
como cada segmento se posiciona como um grupo, assim, as falas individuais foram agrupadas em
determinadas categorias: Anvisa, Associações, Empresas, Governo, Pacientes, Cientistas, Sindicatos e
Plataformas. Para quantificação dos dados, fez-se uso do software Iramuteq, tanto para contagem de
palavras quanto para formação de nuvens de palavras. Os demais gráficos apresentados foram feitos
em Excel. Os resultados são apresentados e discutidos no tópico a seguir.
Resultados e Discussão
A Audiência Pública das Consultas Públicas 654 e 655 tiveram a participação de vários segmentos
da sociedade. A fim de facilitar a visualização dos participantes, estes foram organizados no Quadro
1, o qual apresenta os segmentos e a instituição que representam no momento da Audiência.
12 Para coletar as falas, fez-se o download das legendas automáticas dos vídeos disponibilizados na íntegra pela página
da Anvisa no Youtube. As legendas foram revisadas pela autora, a fim de corrigir erros do reconhecimento automático.
Alguns trechos não foram passíveis de transcrição e foram assinalados como [inaudíveis].
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Pelo quadro 1, pode-se observar que as associações, empresas e institutos de pesquisa destacam-se
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Em relação ao universo de palavras utilizadas, assim como sua incidência, verificamos inicialmente
TEORIA E CULTURA
a presença do vocábulo “gente”, presente em todos os setores com exceção do governo. Inicialmente
soa trivial, entretanto, ao retornar a palavra para seu contexto de origem, percebemos que é a partir
dela que os participantes demarcam o seu posicionamento coletivo: “a gente acredita”, “a gente busca”,
“a gente está trabalhando”. Salvo alguns outros termos em comum (planta, medicamento, entre
outros), o vocabulário utilizado reflete interesses específicos de cada grupo. Por exemplo, as palavras
“uso” e “óleo” só se destacam na fala dos pacientes, já “pesquisa” e “universidade” são específicos
da fala da comunidade científica. Por fim, como só houve uma manifestação do Sistema político,
o programa não pode gerar uma nuvem, pois a única palavra que se repetiu foi “empreendimento”.
Apesar de não estar tão visível nas nuvens de palavras, existem três termos que decidimos
destacar, visto que representam um eixo de debate fundamental nas audiências, e que se referem aos
parâmetros de rigor científico da Anvisa. São eles: segurança, qualidade e eficácia. A agência justifica
e legitima suas escolhas e posicionamento baseada neste tripé em ambas as consultas:
“Os nossos fundamentos para a tomada dessa decisão foram baseados na proteção da saúde da população com a
garantia da qualidade, segurança e eficácia dos produtos que serão ofertados após a concessão do registro sanitário”
(Anvisa, CP 654, Tarde – Grifo nosso).
“Então só para lembrar que a competência desta casa é de fato cuidar de medicamento com segurança, eficácia e
qualidade” (Anvisa, CP 655, Manhã – Grifo nosso).
Qualquer sugestão dos participantes que demonstrasse ferir algum desses aspectos era vetada pela
agência. Por essa razão, muitas vezes os representantes dos segmentos argumentavam sobre a forma
como a Anvisa estipula tais critérios. Na Tabela 1, é possível observar a incidência dos conceitos nas
falas da Anvisa e dos participantes.
Tabela 1 – Incidência dos termos Eficácia, Qualidade e Segurança nas falas dos representantes
de cada segmento
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cultivo fechado, mesmo com plástico, por exemplo, serviço. Esses trechos foram selecionados para
TEORIA E CULTURA
já é um fator que eu acho que do ponto de vista demonstrar a preocupação dos segmentos em
agronômico não tem uma lógica, né? E também propor alternativas, entretanto estas não foram
não vai influenciar muito na questão da segurança, acatadas pela agência. Sobre o cultivo, a Anvisa
já que a gente está falando aqui segurança de desvios, propôs vetar as técnicas outdoor14, mas ficou
o acesso de outras pessoas e isso pode ser superado de considerar o método de Green Houses15. Em
pelo monitoramento (Associação, CP 655, Manhã relação ao transporte e entrega dos medicamentos,
– Grifo Nosso). a agência garantiu que a entrega direta aos
pacientes por intermédio dos correios e couriers16
Queria é dizer que a gente já está fazendo a teria que ser substituída pelas transportadoras
rastreabilidade do produto desde a semente até a autorizadas, e os pacientes teriam que retirar o
produção e minha preocupação tem sido porque as produto nas farmácias, mediante apresentação
associações elas atendem todo o Brasil. E a gente e retenção de receita, como ocorre com outros
não está vendo é sendo discutida a questão do envio medicamentos controlados.
através de dos meios como correios ou os couriers
particulares. Então a gente precisa de uma solução 2 - Eficácia
para isso, né? (Associação, CP 655, Manhã – Grifo
Nosso). Apesar de ter sido o critério menos
questionado pelos participantes, foi o segundo
[...] É muito importante que a gente entenda que mais citado pela Anvisa. Isso demonstra que
especialmente trabalhando em universidades, a Anvisa sempre reforça seu rigor científico,
como é o meu caso, o fácil acesso visual garante a relacionando a eficácia aos demais critérios. No
segurança gostaríamos também de falar que neste caso das participações, a eficácia foi questionada
caso para as plantas a abaixo de 0,3% [de THC] a respeito dos fitoterápicos e da limitada literatura
que poderia ser considerado o cultivo outdoor, uma sobre o uso medicinal da Cannabis. Esses aspectos
vez que essas plantas não tem a ação recreativa são exemplificados nos trechos abaixo:
ou ação adulta e gostaríamos também de pedir a
possibilidade da produção de sementes (Cientista, Então um medicamento fitoterápico ele tem
CP 655, Manhã – Grifo Nosso). constância e têm reprodutibilidade, ele tem controle
de eficácia. Fica esse ponto é pra que a gente não
O critério de segurança foi o mais debatido, caia novamente em interesses acima dos pacientes.
devido ao alto investimento necessário para (Associação, CP 654, Tarde – Grifo nosso).
cumprir as normas propostas pela Anvisa, tanto
em questão da construção do espaço para cultivo Agora não entendi o porquê dos misturar os
indoor13 , quanto em relação ao transporte por análogos sintéticos com o produto natural. Porque
transportadoras especializadas e registradas, com bem ou mal a gente diz que falta evidência sobre
autorização da própria Anvisa para realizar esse eficácia mas segurança acho que está confirmada e
13 “Trata-se do cultivo em ambiente fechado, onde luzes artificiais e temperatura criam o ambiente ideal para o
desenvolvimento das plantas. O exemplo mais comum são as estufas.” Disponível em: https://blog.plantei.com.br/cultivo-
indoor/. Acesso em: 2 dez. 2019.
14 “Cultivo outdoor é a arte de cultivar plantas a luz do sol, a céu aberto. É saber lidar com os fatores climáticos e estações
do ano, para que você possa ter a melhor colheita possível.” Disponível em: https://plantandobem.com.br/cultivo-
outdoor/. Acesso em 2 dez. 2019.
15 “Espaço anexo à casa que reúne estufa e sala de estar. Surgiu na era Vitoriana com a finalidade de proteger as
plantas dos rigores do inverno. Sua estrutura era montada com ferro e fechada com vidro.” Disponível em: http://www.
colegiodearquitetos.com.br/dicionario/2009/02/o-que-greenhouse/. Acesso em: 2 dez. 2019.
16 “Courier é a forma como também são conhecidos fretes expressos não entregues pelos Correios, entre as empresas de
courier temos DHL, Fedex, TNT, UPS, Shopfans Brasil Express entre outras.” Disponível em: https://compranoexterior.
com.br/courier-caracteristicas/. Acesso em: 2 dez. 2019.
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Cannabis é muito segura, nenhum registro de morte infraestrutura serão repassados ao consumidor.
TEORIA E CULTURA
(Cientista, CP 655, Manhã – Grifo nosso).
[...] em suma, regulamentação deve ser mais
Então uma das coisas que o médico segue quando ele acessível, inclusive possível que contemple as boas
avalia um paciente, ele olha o tipo de problema que práticas, medidas para o controle sanitário, padrão
o paciente tem, as contra indicações que ele tenha, de qualidade e segurança de quem trabalha e
o histórico das medicações que já usou, pra então não com condições impeditivas no que tange aos
indicar, baseado em estudos científicos de eficácia e investimentos e produção (Pacientes, CP 655,
segurança, comparativos entre as diferentes opções, Manhã – Grifo nosso).
qual seria aquela [espécie de Cannabis] indicada
para aquele usuário (Paciente, CP 654, Tarde – O primeiro medicamento que entrou no Brasil
Grifo nosso). para atender Brasileiros foi canabidiol feito a partir
do cânhamo. Fazemos também canabidiol a partir
A eficácia geralmente é comprovada para do lúpulo. A exclusão do cânhamo desse processo
a Anvisa mediante estudos clínicos e literatura de regulamentação trará ao consumidor final
específica da área médica e farmacêutica. [inaudível] a questão de qualidade e aumento de
Entretanto, pacientes e associações comprovaram preço (Empresas, CP 655, Manhã – Grifo nosso).
a eficácia dos derivados da Cannabis spp. com base
em experiência própria, indicados por médicos Em relação ao aumento dos preços, a Anvisa
como uso compassivo. Assim, não se tem muitas respondeu que se houver garantia de qualidade e
informações sobre efeitos a longo prazo, somente segurança, o medicamento poderá ser distribuído
os exemplos de resultados positivos apresentados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), garantindo o
pelos usuários. Por isso, o acompanhamento acesso para pacientes cadastrados, que possuem o
médico, a elaboração de novos estudos clínicos e a
direito garantido por lei de ter os custos com esse
constante troca de informações com a agência são medicamento cobertos pelo Estado. Vale lembrar
importantes para o avanço do conhecimento em que os produtos produzidos pelas associações
relação aos índices de eficácia dos medicamentos também apresentam um rigor científico, visto que
à base de Cannabis, seus derivados e análogos esse segmento possui uma equipe de profissionais
sintéticos. Em relação aos fitoterápicos, a Anvisa
nas áreas médica, química, bioquímica, farmácia
alegou que foge à sua competência reguladora, e engenheiros agrônomos responsáveis por
havendo outras resoluções17 que regulamentam garantir essa qualidade.
esse segmento específico. Apesar de não ser o sentido utilizado pela
Anvisa, destacamos que o termo qualidade
3 - Qualidade também foi utilizado no sentido de “qualidade de
vida”, discurso muito reforçado pelos pacientes,
Assim como a eficácia, a qualidade também familiares e associações para demonstrar os
é apresentada pela Anvisa associada à segurança, benefícios do canabidiol, principalmente a partir
ou seja, a agência defende que a qualidade do da divulgação do case Anny Fischer, que inspirou
medicamento deve garantir a segurança do vários outras famílias e segmentos da sociedade.
paciente. Entretanto, os participantes alegaram Como é exemplificado no trecho a seguir.
que as condições que garantem essa qualidade
podem tornar o medicamento pouco acessível, [...] porque infelizmente pareceres emitidos tanto
visto que os custos com investimento em pela associação nacional de psiquiatria tanto pelo
17 “No caso dos produtos fitoterápicos, as empresas vão seguir o RDC 26 de 2014, que traz de uma forma geral os requisitos
para registro de medicamentos fitoterápicos e ele é definido como o produto obtido de matéria-prima ativa vegetal,
exceto substâncias isoladas com finalidade profilática, curativa ou paliativa, incluindo um medicamento fitoterápico e o
produto tradicional fitoterápico” (Anvisa, CP 654, Tarde).
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conselho federal de medicina dizem que o CBD Cannabis no Brasil, seguindo os parâmetros
TEORIA E CULTURA
não tem ainda uma comprovação científica. Bem de qualidade, eficácia e segurança. A proposta
se não existe comprovação científica nós temos sobre plantio, entretanto, foi arquivada. Essas
testemunhos de pessoas que tiveram a melhoria da informações, assim como outros documentos
qualidade de vida quando começaram a usar o CBD sobre as consultas, podem ser acessadas pelo site
(Governo, CP 654, Tarde – Grifo nosso). da Anvisa.
A decisão final da Anvisa foi considerada
Assim, a partir da fala destacada acima, pelos especialistas, associações e pessoas que
é possível observar que, mesmo sem o rigor dependem dos medicamentos como “um avanço
científico comprovado, esses representantes tímido” ou até “excessivamente restritiva”,
dos segmentos sociedade que participaram da visto que foi aprovada a venda de produtos
Audiência acreditam nos benefícios dos produtos em farmácias, mas o cultivo e manipulação da
derivados da Cannabis spp. no tratamento de planta permanece proibido. Assim, por mais
algumas enfermidades específicas. que os medicamentos à base da Cannabis sejam
liberados, sua produção permanece dependente
Conclusão da importação do extrato da planta. Estudos
futuros podem explorar outros aspectos que
A partir da análise da Audiência Pública das venham a contribuir para engrandecer a análise
CPs 654 e 655 da Anvisa, foi possível verificar do processo de regulamentação.
alguns eixos de debate acerca do conhecimento
científico na temática da Cannabis spp., Agradecimentos
mesmo para segmentos da sociedade que não
possuem vínculo com a comunidade científica. O presente trabalho foi realizado com apoio
Percebemos, assim, que enquanto a participação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
nos formulários das CPs eram majoritariamente de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de
de cidadãos e consumidores, na Audiência Financiamento 001.
Pública, o destaque foi para as associações,
institutos de pesquisa e empresas. Referências bibliográficas
Ao relacionar suas decisões com critérios
de Segurança, Qualidade e Eficácia pré- ALBAGLI, S. Divulgação científica:
estabelecidos, a Anvisa resguarda seu papel informação científica para a cidadania? Revista
regulador na área sanitária, estabelecido a Ciência da Informação, Brasília, v. 25, n. 3, p. 396-
partir de um rigor científico na definição destes 404, set./dez. 1996.
critérios. Entretanto, isso não impediu os
participantes de questionar e se posicionar diante BEAUCHESNE, L. La légalisation du cannabis
desses critérios. Muitas vezes foram apresentadas au Canada: le défis politiques. Tempo Social, v. 29,
propostas alternativas àquelas estipuladas pela n. 2, p. 15-43, maio-ago. 2017.
Anvisa, tendo algumas sido consideradas, outras
negadas, mas todas contribuíram para o debate e BLOOR, D. Conhecimento e Imaginário
a reflexão sobre a regulamentação do cultivo, da Social. São Paulo: Editora Unesp, 2010.
produção, da pesquisa e do uso de medicamentos
à base de Cannabis spp., seus derivados e análogos BUENO, W. C. Comunicação Científica e
sintéticos no Brasil. Divulgação Científica: aproximações e rupturas
Durante a escrita deste artigo, a Anvisa conceituais. Revista Informação & Informação,
chegou à decisão final e aprovou o texto da Londrina, v. 5, n. 1, 2010.
regulamentação sobre os requisitos necessários
para a regularização de produtos derivados de COLLINS, H.; PINCH, T. O Golem: o que
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você deveria saber sobre ciência. Belo Horizonte:
TEORIA E CULTURA
Fabrefactum, 2010.
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TEORIA E CULTURA
Este artigo analisa os sentidos conferidos à categoria “redução de danos”, pelos profissionais do
cuidado que atuam em CAPS AD do Distrito Federal (Brasil); e nas práticas assistenciais que os
mesmos desenvolvem, a partir destes sentidos. Baseado em pesquisa de campo nos sete CAPS AD
do DF, e em entrevistas com seus profissionais e gestores, o estudo busca, de um lado, qualificar as
dificuldades de compreensão do conceito, mencionadas pelos interlocutores; e de outro, discutir as
implicações destas dificuldades para a realização dos objetivos mais amplos da política do Ministério
da Saúde para atenção a Usuários de Álcool e outras drogas, instituída em 2002. Orientado por uma
perspectiva de análise própria do campo dos estudos sobre implementação de políticas públicas, o
artigo pretende contribuir para o aprofundamento da compreensão sobre os desafios envolvidos na
implementação desta política específica.
Harm Reduction meanings in Federal District´s CAPS AD: between scope extension and
conservative translations
Abstract
This article analyzes the meanings given to the category “harm reduction”, by the care professionals
who work at CAPS AD in the Federal District (Brazil); and the care practices that they develop, based
on these senses. Based on field research in the seven CAPS AD in DF, and on interviews with its
professionals and managers, the study seeks, on the one hand, to qualify the difficulties in understanding
the concept, mentioned by the interlocutors; and on the other, to discuss the implications of these
difficulties for the realization of the broader objectives of the Ministry of Health’s policy for the care
of Users of Alcohol and other drugs, instituted in 2002. Guided by a perspective of analysis specific
to the field of studies on the implementation of public policies, the article intends to contribute to a
deeper understanding of the challenges involved in the implementation of this specific policy.
1 Técnica de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica aplicada- IPEA. Doutora em Ciência Política
pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro - IUPERJ
2 Técnico de Planejamento e Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica aplicada- IPEA. Doutor em Ciência Política
pelo Massachusetts Institute of Technology - MIT
3 Os autores gostariam de agradecer Luiza Gomes Luz Rosa que atuou como assistente de pesquisa em todas as etapas
do projeto.
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Introdução3 adotaria ainda, como orientação para o
TEORIA E CULTURA
cuidado, a chamada lógica da redução de danos
Até finais do século XX, as aflições - abordagem que privilegia a promoção da saúde
decorrentes do uso de álcool e outras drogas, e o engajamento dos usuários de álcool e outras
no Brasil, não haviam sido objeto de política drogas (UAD) em práticas de autocuidado, ao
assistencial específica do Ministério da Saúde invés de focar apenas no uso dessas substâncias6.
(MS). Computavam-se, até então, algumas Como ponto estratégico deste programa foram
iniciativas esparsas do antigo Conselho Federal instituídos os Centros de Atenção Psicossocial
de Entorpecentes – Confen (anos 1980 e 1990); para Álcool e Drogas (CAPS AD), equipamento
e de alguns estados e municípios (MACHADO articulado à rede de saúde e a outros serviços
e MIRANDA, 2007; PETUCO, 2019). No sociais. Esta se constituiria na primeira iniciativa
âmbito da oferta privada de serviços de saúde, brasileira a romper com o primado da abstinência,
os cuidados a pessoas afetadas por problemas como principal objetivo do cuidado a pessoas
relacionados ao uso destas substâncias eram afetadas pelo uso de álcool e outras drogas.
oferecidos em hospitais e clínicas psiquiátricos Ao longo das quase duas décadas que se
e em Comunidades Terapêuticas, geralmente seguiram à sua institucionalização, esta política
por meio de internações de média a longa seria implementada em todo o território nacional,
permanência. Contava-se, ainda, com grupos de em colaboração com estados e municípios, por
ajuda mútua, tais como os Alcoólicos Anônimos meio do Sistema Único de Saúde. Não obstante,
(AA) e Narcóticos Anônimos (NA) (VAISSMAN a oferta de cuidados ancorados em internação
et al., 2008). Todos estes recursos tinham como e abstinência de substâncias ainda persiste
principal estratégia a suspensão imediata do uso em instituições privadas (clínicas privadas e
de substâncias por sua clientela. Comunidades Terapêuticas), demonstrando a
A partir do Programa Nacional de Ação falta de consenso, no campo, acerca da “melhor”
Comunitária Integrada aos Usuários de Álcool terapêutica para os casos de uso abusivo de
e outras Drogas (MS, 2002a)4, lançado pelo drogas. No cerne deste dissenso tem estado a
Ministério da Saúde (MS), em 2002; e da política recomendação de uso da estratégia de redução
do mesmo ministério para a atenção integral a de danos.
usuários de álcool e outras drogas (MS, 2003), o Por outro lado estudos e avaliações, sobre
Ministério instituiu novo modelo de assistência a a implementação dos CAPS AD em diferentes
estas pessoas, no âmbito da área de Saúde Mental. partes do país, têm apontado dificuldades de
Tal modelo se pauta nos mesmos princípios que compreensão e de adesão à ideia de redução de
orientaram a Reforma Psiquiátrica, instituída em danos, seja por atores políticos responsáveis pela
2001 no país5: cuidado em liberdade, por uma condução das políticas sobre drogas (Conselhos
rede de serviços territoriais – evitando-se, assim, e gestores locais de políticas de drogas), seja por
as internações de longa permanência; e atenção parte de profissionais do cuidado (RAMOA,
psicossocial – a qual, para além do corpo (ou do 2005; PEREIRA, 2009; WORCKMAN et al.,
cérebro) dos sujeitos atendidos, incide também 2019).
sobre sua inserção social (COSTA-ROSA, 2002; Em função deste quadro, o presente artigo
AMARANTE, 2007). investe na análise dos sentidos conferidos à
Ao lado destas diretrizes, aquele Programa categoria redução de danos, pelos profissionais
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do cuidado que atuam em CAPS AD do Distrito da experiência vivencial dos sujeitos cuidados,
TEORIA E CULTURA
Federal; e nas práticas assistenciais que os mesmos em suas interações sociais, e não apenas o seu
desenvolvem, a partir destes sentidos. Baseado “organismo” (AMARANTE, 2007; COSTA-
em pesquisa de campo nos sete CAPS AD do DF ROSA, 2002).
e em diversas entrevistas com seus profissionais e A estes princípios e diretrizes, a política
gestores, este estudo busca, de um lado, qualificar de atenção a UAD incorporaria ainda a lógica
as referidas “dificuldades de compreensão”; e ampliada da redução de danos (MS, 2003). Assim,
de outro, dimensionar suas implicações para a as unidades de atenção a estas pessoas
realização dos objetivos mais amplos anunciados
pela política do MS de atenção a UAD, instituída (...) devem fazer uso deliberado (...) da lógica
em 2002. ampliada de redução de danos, realizando uma
Orientado por uma perspectiva de procura ativa e sistemática das necessidades a serem
análise referida ao campo dos estudos sobre atendidas, de forma integrada ao meio cultural e à
implementação de políticas públicas, este artigo comunidade em que estão inseridos (...) (MS, 2003,
pretende contribuir para melhorar a compreensão p. 6, grifos nossos).
dos desafios envolvidos nesta política específica.
Sendo assim, sua primeira seção trata da uma vez que
evolução da categoria redução de danos e sua
incorporação à política do Ministério da saúde A dependência de drogas é transtorno em que
para AD, de 2003. A seção II faz uma breve predomina a heterogeneidade, (...) que afeta as
exposição da abordagem teórica e das estratégias pessoas de diferentes maneiras, por diferentes
metodológicas utilizadas, tanto no levantamento razões, em diferentes contextos e circunstâncias”
quanto na análise dos dados. As seções III, IV e (MS, 2003, p. 8).
V trazem a análise dos discursos e das práticas
dos profissionais entrevistados, sobre o tema da E o que seria, afinal, esta lógica? As primeiras
redução de danos. Por fim, a seção VI discute os experiências de Redução de Danos (RD) se
achados e apresenta conclusões preliminares da destinavam ao controle da transmissão de HIV/
pesquisa. AIDS entre usuários de drogas injetáveis (UDI) e
consistiam, essencialmente, da troca das seringas
As diretrizes da Política de Atenção a usadas, promovidas pelas próprias autoridades
usuários de Álcool e outras Drogas (2002) e a sanitárias, com vistas a conter a propagação da
“lógica da Redução de Danos” epidemia do vírus, neste grupo populacional.
Adotada em diversos países europeus nas décadas
A Política do Ministério da Saúde de Atenção de 1970 e 1980, com significativo sucesso, esta
Integral a Usuários de Álcool e outras Drogas, estratégia foi incorporada ao Programa Nacional
instituída no início da década de 2000 (MS, 2002 de DST/AIDS, do MS brasileiro, a partir de 19947.
e 2003), organiza-se segundo princípios análogos Com o apoio do Ministério, disseminaram-se,
aos da política de saúde mental definida a partir por cerca de dez anos, grupos de RD pelo país,
da Reforma Psiquiátrica brasileira (Lei 10.216 por meio de organizações não governamentais,
de 2001). São eles: a) desospitalização, em que o mas com financiamento público, o que contribuiu
lócus do cuidado passa a ser uma rede de serviços para o reconhecido êxito da política brasileira de
comunitários, em vez de instituições asilares combate à AIDS (FERREIRA, 2018).
fechadas (AMARANTE, 2002; 2007); b) atenção Ao longo do tempo, o financiamento aos
psicossocial, que considera as diversas dimensões grupos de RD foi escasseando8, mas a estratégia
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já havia assumido objetivos mais amplos, de menos atentas que, no âmbito da política do
TEORIA E CULTURA
promoção da saúde e da cidadania das pessoas Ministério da Saúde para AD, haveria uma
usuárias de drogas (PETUCO, 2019). Segundo oposição entre os dois termos. Diferentemente,
Petuco (2019), o encontro da RD com a saúde o texto da Política apenas argumenta que “a
mental – selado na Política do Ministério da Saúde abstinência não pode ser o único objetivo a ser
de Atenção Integral a Usuários de Álcool e outras alcançado” (MS, 2003, p. 11) na assistência
Drogas (2003) – teria se dado a partir da busca dos a UAD, nem “a única meta possível e viável”.
próprios profissionais de saúde, por abordagens Ademais,
mais pragmáticas e menos traumáticas (como a
internação com abstinência imediata) para tratar (...) uma política de saúde que seja coerente, eficaz e
UAD. efetiva deve ter em conta que as distintas estratégias
Contudo, ao ser transposta para a política são complementares e não concorrentes, e que,
de saúde para UAD, a RD acabou por se tornar portanto, o retardo do consumo de drogas, a redução
uma categoria polissêmica e objeto de disputas dos danos associada ao consumo e a superação do
(FIORE, 2006). Assim, conforme colocado por consumo são elementos fundamentais para sua
Ferreira (2018), a RD na Saúde Mental não pode construção (MS, 2003, p. 9). [destaques nossos].
ser tomada como um protocolo de práticas, ou
um guia para a ação clínica, mas como expressão Neste contexto, a RD se mostra “promissora”
de uma “ética do cuidado”, uma “abordagem para o Ministério
clínico-política” (MS, 2003), que “busca valorizar
os próprios saberes e as experiências dos sujeitos Porque reconhece cada usuário em suas
que fazem uso de drogas e possibilitar que eles singularidades, traça com ele estratégias que estão
sejam cogestores (cogestão entendida como voltadas não para a abstinência como objetivo a ser
compartilhamento de poder) dos processos de alcançado, mas para a defesa de sua vida (MS, 2003,
produção da saúde”. (FERREIRA, 2018, p. 74). p. 11).
No texto da Política (MS, 2003), a tradução mais
direta do conceito é: Importante destacar, neste excerto, a
indicação de uma dimensão que ganhou especial
estratégia de saúde pública que visa a reduzir valor no paradigma de política de Saúde Mental
os danos causados pelo abuso de drogas lícitas introduzido pela Reforma Psiquiátrica, conforme
e ilícitas, resgatando o usuário em seu papel indicado anteriormente: o resgate da autonomia
autoregulador, sem a preconização imediata da do paciente (ou usuário dos serviços de saúde) e
abstinência e incentivando-o à mobilização social de seu protagonismo nas decisões que concernem
(...) um método clínico político de ação territorial ao seu tratamento.
inserido na perspectiva da clínica ampliada (MS,
2003, p. 25). Abordagem teórico-metodológica: o papel
transformador dos agentes de implementação
Ao longo do tempo, a não “preconização
imediata da abstinência” tornou-se a característica Este estudo orientou-se por uma indagação
mais notória da RD, o que favoreceu a propagação típica das pesquisas sobre implementação de
de um significado instrumental do conceito, que políticas públicas, qual seja: como políticas
se define por contraste com as abordagens que concebidas, em geral, nos gabinetes do Estado,
adotam exclusivamente a abstinência (FIORE, são efetivamente postas em prática localmente,
2006; SOUZA, 2007; PETUCO, 2019). Com e recepcionadas por aqueles a quem são
frequência, a expressão redução de danos aparece, endereçadas?
em discursos orais e escritos, como o inverso de Conforme a literatura deste campo, políticas
abstinência, acabando por sugerir a audiências e programas podem apresentar resultados
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diferentes daqueles que foram inicialmente esta perspectiva, o trabalho desses agentes se
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de atenção a UAD instituída no país desde 2002 processo se organizou em duas etapas: primeiro,
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– a implementação da lógica da redução de danos recorremos à codificação automática de todas
- a partir de uma ótica pouco usual nas pesquisas as menções ao termo “redução de danos” e
sobre assistência em saúde. seus correlatos13; em seguida realizou-se uma
Para entendermos como a lógica da redução “limpeza” manual, visando garantir que, de fato,
de danos - prescrita nos documentos da política as menções captadas fossem pertinentes ao tema
do MS para a atenção a UAD - é transformada em questão. Essa primeira etapa captou todas as
em práticas e ofertas terapêuticas, conduzimos menções induzidas por meio da pergunta: “O
pesquisa de campo nas sete unidades de CAPS que o/a Sr./Sra. pensa em relação a abordagem
AD do Distrito Federal10. Esta pesquisa envolveu: da redução de danos?”; e todas as menções
observação das atividades cotidianas em salas de espontâneas, ocorridas quando o entrevistado
espera e recepções, grupos terapêuticos, reuniões abordava o tema por iniciativa própria. As
das equipes e assembleias de usuários; e entrevistas tabelas abaixo apresentam alguns dados
com gerentes e profissionais. Esta amostra relativos a menções ao tema da redução de danos
não foi desenhada para ser estatisticamente encontradas nas entrevistas.
representativa da população de profissionais
atuantes em CAPS AD do DF, mas para Tabela 1 – Menções a “Redução de Danos”
maximizar a diversidade de perfis profissionais nas entrevistas
(TROST, 1986), ao garantir, no mínimo, cinco
tipos de profissionais de diferentes formações,
em cada unidade de CAPS AD estudada.
As entrevistas foram feitas com base
em roteiro semiestruturado, destinado a
captar trajetórias de formação e experiências
profissionais anteriores; rotinas de trabalho e
atividades ofertadas; caracterização do público
atendido; relações com outras instituições e
Fonte: Entrevistas. Elaboração dos autores.
serviços mobilizados (a “rede de serviços”)
no tratamento dos “pacientes”11; bem como as O que se observa na Tabela 1 é que todos
percepções dos entrevistados acerca de algumas os entrevistados mencionaram o tema redução
categorias organizadoras da política12. Sendo de danos pelo menos uma vez (quando
parte de um corpus empírico mais amplo, este perguntados); e, no máximo, nove vezes,
artigo focalizará exclusivamente a questão da durante uma entrevista. A média encontrada
Redução De Danos, a partir dos relatos coletados foi de três menções ao tema, por entrevista. Já a
em entrevistas e observações de campo. moda, número de menções por entrevista mais
A análise das entrevistas envolveu processo frequente na amostra, foi dois, tendo ocorrido
de codificação, conforme orientações da Teoria em 17 dos 48 casos. A segunda etapa do processo
Fundamentada em Dados (ou groundedtheory) de codificação procurou aprofundar o nível
(CHARMAZ, 2009) e suporte do software de análise, em busca dos sentidos, valorações,
para análise de dados qualitativos Atlas.ti. Este formas de entendimento e narrativas sobre as
10 A realização da pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa Fundação de Ensino e Pesquisa em Ciências
da Saúde (FEPECS/SES/DF), em 22/05/2018, por meio do parecer n. 2.666.904.
11 “Paciente” é a forma mais comum por meio da qual os profissionais dos CAPS AD no DF se referem aos usuários dos
serviços por eles prestados. Utilizaremos neste artigo o termo “nativo” para nos referirmos a estas pessoas.
12 As entrevistas tiveram duração média de uma hora. Todas foram gravadas com autorização dos entrevistados, via
assinatura em Termo de Compromisso Livre e Esclarecido. As entrevistas gravadas foram transcritas.
13 A busca automática envolveu um conjunto de termos como, por exemplo, “RD”, “redução”, “danos”, etc.
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práticas associadas à redução de danos pelos O que eles tentaram trazer? Uma realidade de HIV
TEORIA E CULTURA
profissionais. Esse segundo nível de codificação para álcool e drogas! Pode até ser que tem alguma
levou à identificação de 17 subunidades de coisa a ver, mas não é igual. Então foi desastroso,
sentido (códigos) associados a 272 fragmentos o nosso treinamento. Então, eu acho que a equipe
de texto (citações) que esmiúçam o conjunto de ficou meio assim, sabe? Eu acho que a gente precisa
menções (140) à redução de danos, encontrados conversar sobre isso, e tem que vir de treinamento,
nas entrevistas. É com base nos resultados desse de conversa, de palestra, para se colocar em prática
processo de codificação mais refinado que se (Gerente do CAPS AD #3).
desenvolveram as interpretações apresentadas
nas seções seguintes. E as famílias são sempre muito contra. Isso é um
ponto de tensão da equipe com a família, a redução
Entendimento e operacionalização de danos. Porque as famílias não toleram que seja
do conceito de Redução de Danos pelos essa a nossa proposta, e veem que os pacientes
profissionais de CAPS AD do DF usam isso também. Então, muitas vezes, a família
não acredita no tratamento do CAPS por causa da
Do conjunto das entrevistas, chamaram história da redução de danos (Psiq CAPS AD #6).
atenção, por sua grande frequência, menções a
dificuldades de entendimento e operacionalização A gente tem uma Unidade Básica de Saúde que
da categoria redução de danos (RD): 61% dos funciona do nosso lado e eles não entendem muito
profissionais entrevistados mencionou algum bem isso. Quando a gente faz o matriciamento, que
tipo de dificuldade neste sentido. tem as reuniões, a gente coloca a redução de danos
Ao expressarem tais dificuldades, os e eles ficam ´assim´ para a gente. Essa é a questão:
entrevistados mobilizaram, principalmente, três ‘você vai estar alimentando a droga’. Só que eles não
elementos de justificativa, apresentados de forma entendem que é um processo (Ger. CAPS AD #4).
entrelaçada, como pode ser verificado nas citações
a seguir. O primeiro se refere à percepção da RD Para além das dificuldades destacadas acima,
como um conceito novo e de difícil apreensão. as entrevistas revelaram outros dois elementos
O segundo menciona a ausência ou escassez de complementares. Quando perguntados sobre
oportunidades de capacitação dos trabalhadores quais seriam as referências teóricas e conceituais
oferecidas pela Secretaria de Saúde. Já o terceiro, que orientam e apoiam suas práticas de trabalho,
aponta o caráter contra hegemônico da RD - os entrevistados não indicaram nenhum material
que se contrapõe a abordagens terapêuticas específico do programa ou do MS. Referiram-se a
mais tradicionais - e para crenças, valores e alguns textos da OMS, alguns artigos acadêmicos
moralidades já consolidados entre pacientes e e a atos normativos, mas principalmente, ao
seus familiares, quanto ao tratamento para UAD. material didático do Curso Supera – curso online
oferecido pela Secretaria Nacional de Drogas,
Olha, redução de danos é uma coisa muito nova. em parceria com a UNIFESP14. Chamou atenção
Todo mundo tem preconceito em trabalhar com ainda a recorrência de menções ao Modelo
isso. Até quando você vai procurar artigo, alguma Transteórico de Mudança de Comportamento
coisa, são poucos (Gerente do CAPS AD #4). (PROCHASKA e DICLEMENTE, 1982), utilizado
pela psicologia cognitivo-comportamental
Quando a gente teve um treinamento, foi um como guia para interpretação e classificação
treinamento muito desastroso em redução de danos. do estágio motivacional dos pacientes para
14 https://www.supera.org.br/
15 Desenvolvido por James Prochaska, nos anos 70, este modelo, fundamentado em teorias comportamentais, visa
avaliar a prontidão do paciente para mudanças comportamentais e, assim, supostamente contribuir para a adequação das
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mudanças comportamentais15. Cabe assinalar sobre a colocação da RD em prática. Desta
TEORIA E CULTURA
que este modelo não é indicado ou mencionado análise, três tipos diferentes de postura valorativa
em nenhum dos documentos da Política do MS, se revelaram. A primeira poderia ser definida
ou em publicações de capacitação para estes como uma postura de resistência, apresentada por
profissionais, originárias do MS. profissionais que afirmam se oporem à RD. Como
Outro elemento, percebido na pesquisa pode ser visto abaixo, essa postura se afirma,
de campo, foi a ausência ou incipiência de apesar do profissional demonstrar ciência de que
supervisão técnica (clínica) sobre o trabalho a atenção prestada pelos CAPS AD deveria se
dos profissionais nos CAPS AD do DF. Também orientar pela lógica da RD. Estes profissionais se
foram muito comuns os relatos sobre a falta de dizem contrários à RD, não veem sentido na sua
diálogo e a “distância” existente entre os CAPS adoção, não acreditam que funcione e rejeitam
AD e a Diretoria de Saúde Mental (DISAM) abrir mão de uma ênfase exclusiva na abstinência.
da Secretaria de Saúde do DF, responsável pela
coordenação técnica do serviço16. Eu acho que não funciona muito. Eu particularmente
Na falta de oportunidades para que se acho que não deveria ter redução de danos. Deveria
estabilizasse um entendimento comum mesmo ser abstinência. Eu não sei opinar, porque
acerca da redução de danos, os desafios para a é o trabalho do CAPS, a redução de danos. E eu
operacionalização do conceito se avolumaram, acho que a equipe é um pouco dividida. E acaba
criando uma zona de indefinições sobre a prática que as condutas do pessoal têm choques aqui.
clínica orientada pela RD nestes serviços. Porém, Porque um profissional pensa de um jeito, outro de
como soe ocorrer nestes casos, esta zona não outro. Na minha opinião, eu acho que tinha que ter
restaria vazia, tendo sido preenchida por posturas abstinência total” (Farmac.CAPS AD #5).
valorativas e linhas de ação que variam entre os
profissionais - às vezes, dentro do mesmo serviço. Eu sou contra a redução de danos.Eu sei que tem
Para uma entrevistada, várias explicações, mas eu sou contra porque eu não
vejo lógica nisso. ‘Ah se você fuma dez cigarrinhos
O conceito [de RD] vai sendo construído com a de maconha no dia, se você conseguir fumar cinco
experiência, com a prática. E cada um enxerga a está bom’. Não vejo assim. Eu acho que vai chegar
prática de uma forma, cada um enxerga a experiência o momento que ele não vai conseguir mais ficar
de uma forma. Eu acho que, entre a gente, entre a naqueles cinco e vai voltar para os dez, ou para
própria equipe, tem, sim, conceituação diferente do quinze. Entendeu? Eu sou contra redução de danos.
que é redução de danos (Psicóloga CAPS AD #1). Eu acho que, se ele está aqui para tratar, então
vamos tratar tudo. Eu sou meio radical nesse ponto.
Variações de posturas em relação a RD no Se é para parar, vamos tentar parar com tudo e não
CAPS AD só reduzir (Téc. Enf. CAPS AD #5).
A existência de diferentes posturas valorativas Eu acho que ela [a RD] não se aplica e não funciona.
sobre a RD, entre os profissionais, tornou-se Porque todo paciente que a gente começa a
evidente quando da análise de suas percepções trabalhar com essa questão, ele fica um tempo sem
sobre esta categoria, e de suas considerações usar, depois ele volta a querer usar de novo. Vai ter
propostas terapêuticas aos diferentes sujeitos (ver PROCHASKA e DICLEMENTE, 1982; SZUPSZYNSKI e OLIVEIRA,
2008).
16 Em entrevista com atores que participaram do processo de expansão dos CAPS AD no DF, a partir de 2011, recebemos
a informação de que, entre 2013 e 2015, realizava-se mensalmente uma reunião do Colegiado de Gestão – formado por
todos os gerentes de CAPS AD do DF – e do Colegiado de Gestão Ampliado – gestores + técnicos dos CAPS AD – onde
as diretrizes do programa de atenção integral a usuários de álcool e outras drogas eram estudados e discutidos, assim
como as práticas terapêuticas e soluções administrativas eram intercambiadas entre gerentes e técnicos.
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uma recaída. O tratamento é não ter contato. Eu bastante críticos às internações e às exigências
TEORIA E CULTURA
sempre vejo que vai pra redução de danos, depois de abstinência, presentes nos modelos de
tem a recaída, e tem uso abusivo, e volta. Eu não tratamento aplicados em clínicas e comunidades
vejo a redução de danos como um tratamento. (Téc. terapêuticas. As justificativas apresentadas para
Enf. CAPS AD #4). esta preferência são o “realismo” da RD, frente
a um “mundo imaginário”, em que não haja uso
A segunda postura valorativa se situa em de drogas; o respeito à liberdade de escolha do
polo diametralmente oposto. Neste caso, os paciente, como parte de seu direito ao cuidado;
profissionais se mostram entusiastas da RD e de e a insustentabilidade da abstinência súbita e
sua inserção no tratamento oferecido pelos CAPS forçada, promovida nos espaços de internamento.
AD. Eles definem a RD como algo importante, Entre esses dois polos extremos, uma terceira
em que acreditam e que traz bons resultados, postura valorativa sobre a RD mostrou-se bem
enquanto avaliam a abstinência como ineficaz. mais difundida entre os entrevistados: a postura
pragmática. Esta não se pauta por uma defesa
Eu acho que é uma lógica mais realista. Eu acredito incondicional da RD, nem se opõe a ela. Para os
na redução de danos. Algumas pessoas interrompem profissionais que a adotam, a aplicação da RD
[o uso], seguindo a redução de danos. Outras, não. é condicional e mediada, seja pelo “desejo do
Outras, simplesmente seguem a redução de danos, paciente”, seja pela avaliação que o profissional
continuam com o uso e conseguem ter uma vida faz do paciente.
mais preservada, uma saúde mais preservada. Eu
gosto da ideia, da política, de tudo da redução de Eu entendo que redução de danos é uma
danos (Ass. Social CAPS AD #4). possibilidade. Eu não diria que ela é a única. A gente
trabalha com o que o paciente demanda (...). Quem
Eu acho que a redução de danos (...) é massa. Eu traz isso é o paciente, a gente faz um acordo com ele
gosto muito, porque trabalha com o real, com o (Ger. CAPS AD #2). [Grifos nossos].
verdadeiro. A gente não trabalha com o mundo
imaginário, o mundo em que as pessoas andam Eu acho que é uma técnica a ser utilizada de modo
do lado do tigre, igual aquelas folhinhas das muito pessoal. Tem que avaliar cada caso. Aqui a
testemunhas de Jeová. É o mundo de verdade, (...) gente não fala: nós do [CAPS AD #3] praticamos
essa droga está aí e está para todo mundo. A redução redução de danos. A gente vai caso a caso. Tem
de danos, eu olho pelo lado do afeto. Eu acho que paciente que, se você não negociar a redução de
ela é um afago na pessoa, de dizer assim: ‘então, danos, ele não vai conseguir. Então, eu não vou
vem com o que você tem, que a gente te entende da dizer assim: eu visto a camisa da redução de danos!
mesma forma. (Ass. Social CAPS AD #5). E nem que não visto. Eu visto para alguns e não
visto para outros (Psic. CAPS AD #3).
Eu acho que essa questão da redução de danos é
bem legal, porque a abstinência é bem complicada. Entendendo a RD como uma possibilidade,
Quando o paciente volta para o uso, a recaída é bem entre outras, a ser utilizada de modo muito pessoal
forte. Aí, quando ele sai da internação, ele vai lá e –, os discursos acima subordinam a adoção
usa de tudo, né? [Mas, se] a gente vai conversando da RD – diretriz oficial do cuidado, segundo a
com ele, aí ele vai reduzindo, tendo consciência que política - à primazia da demanda do paciente.
ele tem que reduzir, né? É melhor. Eu acho que é Esta operação discursiva desafia leituras mais
bem mais eficaz do que a abstinência total, do jeito lineares e esquemáticas, pois relativiza o papel
que é nas clínicas. (Téc. Enf. CAPS AD #4). da RD, no trabalho dos CAPS AD, mas o faz em
nome deste elemento que também é muito caro
Além de se declararem plenamente aderentes ao modelo desta instituição; e que, pode-se dizer,
ao primado da RD, estes profissionais se mostram constitui-se na própria justificativa para adoção
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da RD nesta clínica: a autonomia do paciente e
TEORIA E CULTURA
sua liberdade de escolha.17 Esta linha de ação e operacionalização do
Assim, se a RD está colocada para permitir a princípio da RD se ancora no entendimento
escolha do paciente, é franqueada a este paciente, desta categoria como uma estratégia que favorece
inclusive, a possibilidade de recusá-la. Desta à construção de vínculos entre profissionais e
forma, estes discursos articulam uma asserção pacientes, e que envolve, necessariamente, a
muitas vezes repetida, mas nem sempre bem apropriação crescente, pelo usuário, de seus
compreendida, de que a RD não se opõe a, nem direitos de cidadania, em sua aproximação
exclui, a possibilidade de um cuidado ancorado com Estado - para além de suas interações
na abstinência de substâncias, nos CAPS AD. nem sempre felizes com o aparato coercitivo
A postura pragmática, tal como expressa nos do mesmo. Espera-se que esta aproximação
discursos dos profissionais dos CAPS AD do se dê pelo acesso a serviços e bens públicos -
Distrito Federal, mostrou-se mais recorrente do alimentação, abrigo, benefícios assistenciais,
que as demais, e mais complexa do que aquelas serviços de saúde, etc. A apropriação de direitos
derivadas da simples oposição entre abstinência e o acesso aos serviços públicos comparecem
e RD. Situada numa zona intermediária e aqui como elementos indutores de um processo
indeterminada, tal postura possibilita ações mais amplo de reinserção social, de recuperação
e práticas variadas, com entrelaçamentos e de laços e reorganização da vida. Neste sentido,
articulações entre ideias e ações, que seriam o trabalho do profissional envolve (re)tecer,
improváveis num registro binário, ou de juntamente com o paciente, suas redes de suporte,
oposição entre posturas polares (resistentes ou articulando ofertas públicas de assistência e
entusiastas). apoiando a retomada, pelo sujeito, de relações
Na seção seguinte, procuramos explorar com sua família e sua comunidade. Os trechos
como se dá a tradução das diferentes posturas de entrevista transcritos abaixo trazem alguns
valorativas sobre a RD em linhas de ação. elementos que caracterizam esta linha de ação:
A RD em ação nos CAPS AD: escopo Então: a redução de danos é essa aquisição. Ele
ampliado versus caminho para abstinência vai se aproximando do próprio Estado – já que
antes ele nem entrava em uma instituição pública,
Para além das posturas declaradas pelos entende? E aí, às vezes, ele consegue um benefício,
profissionais, relativas a seu apreço (ou não), um benefício mesmo da assistência, um `auxílio
confiança (ou não) no princípio da RD, vulnerabilidade´. Aluga um quarto só, que é R$ 200;
procuramos identificar também quais linhas e com o que sobra, ele compra uma roupa, mesmo
de ação são adotadas no trabalho clínico, em que seja em um bazar. Então, só essa sensação dele
função dos diferentes entendimentos e posturas já é um benefício. Nem é do trabalho dele, (mas)
valorativas quanto à RD. Ou seja, como os é um benefício pra ele comprar, ir acessando, se
profissionais dos CAPS AD do DF traduzem a suas aproximando aos poucos (Ass. Social CAPS AD
concepções e avaliações sobre o princípio da RD #7).
em práticas cotidianas e estratégias de cuidado. A
análise das entrevistas e das notas de observação Pra mim, é quando ele consegue se reinserir
em campo sugerem a operação de duas diferentes socialmente, porque o uso, muitas vezes, tira eles da
linhas de ação: “RD de escopo ampliado” e “RD sociedade; e eles ficam ali, marginalizados. Às vezes,
como caminho para abstinência”. num mundo meio paralelo, vamos dizer assim.
E vivem aquilo ali. É quando eles conseguem se
1 - RD de escopo ampliado reinserir socialmente - às vezes, até continuando o
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uso, mas conseguem fazer um uso mais controlado. Redução de danos é para cada um. Não tem como
TEORIA E CULTURA
Tem gente que chega e que fala: “eu não vou fazer eu ter um conceito único do que é e tentar aplicar
uso controlado, não quero redução de danos, isso para todo mundo (Psic. CAPS AD 1).
não quero”. Beleza, então vamos trabalhar para
interromper o uso mesmo. Porque com a rede Para além dos discursos sobre as práticas,
enfraquecida eles têm dificuldade de fazer esse uso acessados por meio das entrevistas, a
controlado, realmente. Então, se você tem uma observação das atividades cotidianas dos
rede de apoio enfraquecida, às vezes é melhor você CAPS AD do DF revelou elementos adicionais,
tentar interromper o uso mesmo. Mas, para mim, que nos demonstraram, de forma bastante
um resultado bom é formação de rede de apoio, nítida, a operação desta linha de ação. Ao
reinserção social (Ass. Social CAPS AD # 4). acompanharmos, em um CAPS AD, as sessões
de psicoterapia de dois grupos distintos - um
Esta linha de ação supõe a ampliação do escopo composto por usuários apenas de álcool, e outro,
das práticas mais comumente identificadas à de usuários de múltiplas drogas - observamos
RD – como as trocas de insumos, ou a redução que o modo de condução da atividade, pelos
do uso. Sob esta perspectiva ampliada, abrem- profissionais, garantia um espaço confortável
se possibilidades de ação aos profissionais do aos participantes, quando traziam relatos sobre
cuidado que, indeterminadas a princípio, visam recaídas recentes. Os depoimentos recebiam
agregar qualidade de vida e saúde ao paciente. escuta atenta do grupo, que, por sua vez, evitava
Aqui, mira-se além do consumo de substâncias e julgamentos ou recomendações apressadas.
das condições de uso, em favor de uma variedade Reforçava-se, assim, a participação contínua
de pequenos ganhos que, cumulativamente, se dos pacientes na atividade, constituindo-a
sobreporiam aos prejuízos sociais e à saúde, como oportunidade de autorreflexão, via
adquiridos ao longo dos percursos de uso compartilhamento de experiências e percursos
problemático de drogas. individuais. Reconhecia-se, ali, que recaídas
No trecho abaixo, a interlocutora explicita acontecem e são parte da experiência desses
esta perspectiva, enquanto aponta também sujeitos; e que isto não compromete a sustentação
para equívocos que, muitas vezes, marcam a do apoio do grupo e da instituição – o CAPS AD
compreensão de profissionais dos CAPS AD, – que permanece incondicionalmente.
sobre redução de danos: Em outra unidade, pudemos testemunhar
uma reunião de equipe, em que uma profissional
Eles têm uma visão de que a redução de danos é se empenhava para defender “o direito humano
reduzir droga, é reduzir o consumo. Ou mudar o de acesso a água” de um paciente, para quem ela
consumo de uma droga mais pesada, mais danosa, atuava como “técnica de referência”. Em função
para uma droga mais leve, mais tranquila. Eu não da situação de privação de água em seu domicilio,
enxergo assim. A redução de danos é simplesmente este paciente vinha coletando alguma água dos
a redução de danos. Então, para mim, o paciente vir reservatórios do CAPS e levando-a para sua casa,
ao CAPS, ao invés de estar usando drogas, é uma para dela fazer uso privativo. O caso provocou
redução de danos. O paciente continuar usando uma discussão acirrada entre os profissionais da
e conseguir voltar a trabalhar, é uma redução de equipe, em torno da decisão de coibir ou permitir
danos. O paciente conseguir viver em família.... que ele continuasse a se servir da água do CAPS.
Qualquer ganho que ele tenha, com alguma ação Os técnicos favoráveis à coibição entendiam que
dentro do tratamento, da recuperação, é uma a cessão de água ao paciente não tinha nada a
redução de danos. É nesse sentido. Porque as ver com o seu tratamento. A profissional que
pessoas ficam muito limitadas a redução do uso e defendia a permissão, por sua vez, argumentava
isso vira um grande tabu. Vira um conceito rígido que, além de garantir um direito humano ao
e fixo, que as pessoas não conseguem transcender. paciente, a cessão da água contribuía para a
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manutenção do vínculo deste com o CAPS AD, distribuir para infecto [pessoas com doenças
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que assim lhe prestava suporte naquela situação infectocontagiosas], acho que não tem muita
de vulnerabilidade. dúvida. Tem que ser feito e é muito útil, é muito
Esta controvérsia foi bastante reveladora bom. Mas a redução de danos na dependência
da amplitude de possibilidades de ação prática, química, eu acho que às vezes ela é uma armadilha,
que podem estar contidas na perspectiva da RD sabe? Acho que a melhor estratégia é você pensar na
de escopo ampliado. Do mesmo modo, suscita abstinência como uma coisa assim: você caminha
questões relevantes sobre os limites de tal em direção à abstinência, mesmo que você nunca
perspectiva. Até onde pode-se ou deve-se ir, em chegue lá. Porque é muito fácil eles começarem
nome da redução de danos? a usar nossos discursos de redução de danos para
justificar, até para a família deles, a manutenção do
2 - RD como caminho para a abstinência comportamento (MPSI CAPS AD #6).
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de consumir álcool ou outras drogas. Uma das política.
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cuidados a UAD, muito menos sobre RD - seja no públicas, o caráter sempre incerto e transformador
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período de formação universitária, seja quando dos processos de implementação faz com que
já eram profissionais. Também afirmaram que, disputas entre modelos e paradigmas não se
quando ingressaram nos serviços do DF, só encerrem no momento da formulação e do
receberam alguma capacitação quando já estavam desenho da política, mas se prolonguem no
atuando nos CAPS AD, e graças à iniciativa dos micro contexto das operações cotidianas, pelas
colegas mais experientes. Foi também reiterado, ações dos profissionais e por suas interações com
diversas vezes, que nos últimos cinco anos não os usuários dos serviços. O caso da política de
tem havido qualquer supervisão sobre seu atenção integral a UAD não parece ser diferente,
trabalho clínico; e que a busca por soluções para como mostra o estudo dos CAPS AD do DF.
casos complexos se faz exclusivamente entre Outrossim, antes que uma “denúncia” sobre
colegas, no espaço das reuniões semanais das eventuais erros ou acertos na implementação
equipes – prática que é rigorosamente observada desta política no DF, estas observações visam
em todas as unidades do DF e que, acredita- contribuir para uma compreensão maior dos
se, atua fortemente em favor da convergência desafios envolvidos na incorporação da RD
entre as concepções e práticas individuais, ainda como princípio orientador das políticas públicas
que não tenha sido capaz de eliminar todas as de atenção e cuidado às pessoas que fazem usos
divergências. problemáticos de drogas.
A análise dos discursos acionados por meio das
entrevistas indica, portanto, que, nos CAPS AD Referências bibliográficas
do DF, a incorporação do princípio da RD como
uma ética do cuidado convive com percepções AMARANTE, Paulo. (org.) Saúde mental
tradicionais, mas ainda hegemônicas, sobre o e atenção psicossocial. Rio de Janeiro: Fiocruz,
lugar das drogas e de seus usuários na sociedade 2007.
– ou seja, percepções de que o uso de drogas é
necessariamente nocivo e totalmente indesejável, ______. (Org). Ensaios: subjetividade, saúde
e que o consumo compulsivo se caracteriza como mental, sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000.
uma doença que precisa ser curada. Do mesmo BRASIL. Lei 10.216 de 6 de abril de 2001.
modo, observa-se que sobrevivem também, Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas
nestes serviços, representações hegemônicas portadoras de transtornos mentais e redireciona o
sobre o tipo de cuidado que deve ser dispensado modelo assistencial em saúde mental. Disponível
a estas pessoas – isto é, um cuidado focado em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/
prioritariamente na conquista da abstinência de leis_2001/l10216.htm
SPA.
Desse modo, as inovações propostas pela BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria
política parecem parcialmente “filtradas” por Executiva Coordenação Nacional de DST e
uma tradução conservadora do princípio da AIDS. A política do Ministério da Saúde para
RD, expressa sob a forma da “RD como caminho a atenção integral a usuários de álcool e outras
para abstinência”. Se, por um lado, parte drogas. Brasília: Ministério da Saúde, 2003. 60 p.
dos profissionais construiu entendimentos e il. (Série B. Textos básicos de saúde)
práticas que dão concretude às diretrizes do
novo paradigma, por outro, as dinâmicas de BRODKIN, Evelyn. ”Implementation as
implementação não têm sido imunes à resiliência policy politics”. In: PALUMBO, D.; CALISTA,
das concepções de cuidado centradas na D. (Ed.). Implementation and policy process:
substância e seus usos, e apegadas à centralidade opening up the black box. Westport, United
da abstinência. States: Greenwood, 1990. p. 107-118.
Como já observado em outras políticas CAVALCANTI, Sérgio.; LOTTA, Gabriela.;
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Desigualdades: reprodução de desigualdades
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TEORIA E CULTURA
Etnografia com parlamentares sobre o problema das
drogas na CPI do Crack
Dayana Rosa Duarte Morais1
Martinho Silva2
Resumo
Enquanto uma parte da mídia nacional divulgava informações sobre “cracolândia” e espalhava a
ideia de que estávamos enfrentando uma “epidemia de crack”, na última década, um conjunto de
políticas de “combate ao crack” foi formulado. Uma Comissão Parlamentar de Investigação (CPI) foi
instalada em uma Assembleia Legislativa no sudeste do Brasil durante esse período, para investigar
as causas e consequências do consumo de crack. Realizamos uma etnografia nesta CPI, sobre a
construção de drogas como um problema público, com os parlamentares que a compunham e seus
assessores, acrescentando às entrevistas uma análise do relatório final, atas e gravações em vídeo. Para
compreender os bastidores da CPI, revelamos as motivações para sua instalação e os valores morais
e religiosos que determinaram seu curso. Ao censurar o termo “redução de danos”, a CPI colocou
aquele Legislativo Estadual em desacordo com o Poder Executivo Nacional vigente.
Ethnography with parliamentarians about the drug problem at Crack cocaine CPI
Abstract
While a portion of the national media spread information about “cracolandias” and spread the idea
that we were experiencing a “crack epidemic”, a set of “crack combat” policies have been formulated in
the last decade. A Parliamentary Commission of Inquiry (CPI) was installed in a Legislative Assembly
of the southeastern region of Brazil during this period, to investigate the causes and consequences
of crack consumption. We conducted an ethnography in this CPI, about the construction of drugs
as a public problem, with the parliamentarians who composed it and their advisors, adding to their
interviews an analysis of the final report, minutes and video recordings. In order to get to know the
backstage of the CPI, we reveal the motivations for its installation and the moral and religious values
that determined its course. By censoring the term “Harm Reduction,” the CPI placed the Legislative
Power in disagreement as the National Executive Power.
1 Doutoranda em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ)
2 Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social (IMS) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
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Introdução escritos por instituições poderosas para entender
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Redução de Danos (RD), tanto a Política quanto sobre internação compulsória de crianças e de
TEORIA E CULTURA
a expressão, em si. adolescentes usuários de drogas - essa Comissão
permanente foi autora de apenas um projeto
Comissões estatais e a CPI do Crack de lei (PL), em 2012, que “torna obrigatório
aos fabricantes de bebidas que contenham
As classificações e a forma como as como ingrediente o álcool, informarem aos
comissões são produzidas são aspectos relevantes consumidores com a frase ‘álcool é droga’,
da criação de “problemas sociais”, no caso da CPI bem como os malefícios causados com o uso
do Crack a preocupação com o consumo era da bebida nas embalagens dos produtos”. Ou
maior do que com o comércio ou o cultivo das seja, a Comissão permanente de “drogas” não
substâncias psicoativas. Para Bourdieu (2014) propôs nada que contemplava o debate acerca
as comissões estatais têm um papel relevante na da internação compulsória ou do crack, mesmo
fabricação dessas classificações, considerando-as naquele período em que se supunha uma
encenações de dramas públicos quando estudou “epidemia”. E não houve Comissão Especial que
as políticas de habitação na França do final do tratasse do tema do crack nem mesmo de outras
século XX. “drogas”.
Ainda segundo esse autor, “as pessoas Qual teria sido a motivação para a
que integram uma comissão elaboram uma nova instalação da CPI do Crack, ou seja, uma comissão
definição legítima de um problema público, de inquérito, levando-se em conta que já existia
propõem uma nova forma de fornecer aos uma comissão permanente sobre “drogas” e que
cidadãos os meios de satisfazerem aquilo que a suposta “epidemia” do crack naquela cidade
lhes é atribuído como um direito.” (BOURDIEU, havia sido tornada pública há pelo menos cinco
2014, p.51). Em outras palavras, os agentes anos? Estamos, então, falando da construção
sociais envolvidos neste processo e que elaboram do consumo do crack enquanto causa política
novas regras, “empreendedores morais” em uma CPI do Poder Legislativo estadual,
(BECKER, 2008) ou legisladores, por exemplo, assim como Lowenkron (2015) sinalizou em
conferem um esforço simbólico não só para sua pesquisa sobre a CPI da Pedofilia no Senado
gerir problemas públicos, como também para Federal.
elaborar um problema de uma maneira que ele Para um empreendedor moral, participar
seja considerado “público”, de todos, universal. de uma CPI pode servir a seus interesses políticos
Tomar comissões estatais como campo seria, e pessoais, bem como representa a possibilidade
então, uma maneira apropriada de compreender de criar uma regra através de PLs que podem ser
como o problema das “drogas” é tornado aprovados. Pode também servir como um meio
público e abordar os bastidores desse processo de se ascender publicamente, como foi o caso dos
no Poder Legislativo, no caso como o crack – até então prefeitos: do Rio de Janeiro, Eduardo
particularmente seu consumo – se tornou um Paes (PMDB); de Salvador, Antônio Carlos
problema público através dos bastidores de uma Magalhães Neto (DEM); e de Curitiba, Gustavo
CPI. Fruet (PDT). Eles foram sub-relatores da CPI dos
Na organização das Assembleias Correios, que investigou o “Mensalão”, em 2005.
Legislativas brasileiras, essas comissões estatais A CPI do Crack foi composta por sete
podem ser de três tipos: permanentes, especiais parlamentares, conforme sistematizamos no
ou de inquérito. Em 2002, esta Assembleia em Quadro 1.
específico criou a Comissão de Prevenção ao Uso
de Drogas e Dependentes Químicos em Geral,
uma comissão permanente. A partir de 2011 -
ano da implantação do programa federal Crack é
Possível Vencer e da resolução municipal carioca
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3 Cumpre destacar que, para identificarmos a relação do parlamentar em relação ao governo checamos se o partido em
que está filiado integrou a coligação eleita ou apoiou a chapa do governador e seu vice à época, embora reconheçamos que
os posicionamentos políticos tendem a se moldar de acordo com o momento histórico e conjuntural.
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do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), Social (OS).
TEORIA E CULTURA
e o parlamentar 3, do PT (Partido dos Ou seja, há CPIs sobre substâncias lícitas
Trabalhadores), relator e vice-presidente - as e ilícitas – medicamentos e crack, por exemplo –
outras figuras mais importantes hierarquicamente como também sobre a distribuição das mesmas
nesta composição - são de oposição e defendem – narcotráfico e contrabando – de maneira que,
pautas completamente opostas àquelas do talvez, possamos supor que a produção delas ainda
presidente, pela legalização das “drogas” e do não tenha sido tão suficientemente abordada
direito ao aborto, por exemplo. Essa constatação quanto o consumo foi na CPI do Crack. Ainda,
foi determinante para compreender os rumos partindo do pressuposto de que a visibilidade
que esta CPI traçava, considerando que em dada a uma CPI varia de acordo com os interesses
determinado momento o presidente deixa de políticos envolvidos, percebemos que as CPIs
participar da Comissão, passando a ser presidida que tinham caráter criminalizante receberam
por seu vice que, por sua vez, compartilhava de mais atenção dos meios de comunicação.
valores diferentes, no caso, valores liberais. Dentre estas CPIs, a de 2008 foi aquela
A principal peculiaridade da CPI do que mais repercutiu na mídia. Conhecida como
Crack em relação a outras comissões está em CPI das Milícias, ela foi responsável por ocasionar
eleger como objeto uma substância psicoativa o indiciamento de 218 pessoas, dentre elas
ilícita específica: o crack. Essa delimitação não parlamentares, policiais civis e militares. Nesta
esteve presente em CPIs anteriores, tanto na CPI as “drogas” foram relevantes principalmente
Câmara dos Deputados quanto nesta Assembleia, quando da sua distribuição, não sobre sua
pelo menos nos últimos 20 anos. Entretanto, produção e consumo, sendo que na avaliação da
medicamentos já foram assunto dessas Subsecretaria de Inteligência elas se expandiram
Comissões, ou seja, substâncias psicoativas nas comunidades possivelmente controladas
lícitas. Na Câmara dos Deputados, as duas pelas milícias, preferencialmente em áreas
últimas CPIs sobre tais substâncias foram a do onde não havia tráfico de “drogas”. Quanto aos
Narcotráfico e a de Medicamentos, ambas na 51ª usuários, o Relatório Final mostra que eles eram
Legislatura (1999-2003) – que na busca realizada alvo de eliminação física naquelas comunidades
no site, em 10/07/2016, era o período mais em que eram considerados indesejáveis.
antigo cujos documentos estão disponibilizados Na Câmara Municipal da capital
online no portal da Câmara. Nesta Assembleia, houve uma tentativa de realizar também
em 2008, foi instalada uma CPI destinada a uma CPI indiretamente relacionada ao crack.
investigar a ação de grupos armados designados “Indiretamente” porque tratava-se de uma CPI
“milícias”. Um ano depois, houve uma CPI criada sobre Internação Compulsória, proposta em
para “investigar o derrame de remédios falsos 2013, época em que as internações estavam
e contrabandeados vendidos por farmácias e inseridas no contexto da dita “epidemia de
possivelmente distribuídos por órgãos públicos”. crack”. Nessa ocasião, o parlamentar que estava
Já em 2011 deu-se início à CPI “com finalidade recolhendo assinaturas para instalar a CPI foi
de investigar o tráfico de armas, munições e entrevistado. Eram necessárias 17 assinaturas
explosivos e a consequente utilização desse (2/3 dos parlamentares), mas apenas 12 foram
arsenal por traficantes de drogas, milicianos obtidas – exatamente o número de vereadores
e outros bandidos, quadrilhas e organizações que faziam oposição ao governo.
perigosas”. Por fim, a CPI mais recente que Por que uma CPI que fale sobre o crack
aborde a questão das “drogas” neste estado foi foi aprovada nesta Assembleia e não foi aprovada
instalada, em 2014, “para apurar denúncias sobre na Câmara de Vereadores da capital? Ou seja,
compra de medicamentos acima do preço de por que no estado e não no município? O que a
mercado, pagamentos indevidos por serviços CPI do Crack traz de diferente que garanta sua
não prestados” referentes a uma Organização instalação? Pensando nisso, entrei em contato
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informalmente com um amigo que é assessor do O acesso ao Relatório Final não foi
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O Relatório a utiliza para expor as características e dois o municipal. Destacamos a proporção
TEORIA E CULTURA
dos consumidores dessa substância, sendo minoritária de representantes do estado em
que essa reprodução de dados é feita sem a relação aos outros níveis de governo.
preocupação de especificar a realidade do estado, Do mesmo modo como a pesquisa
descrevendo o cenário nacional. da Fiocruz foi uma referência central para a
Outra base que ocupa bastante espaço no elaboração do Relatório, o convidado mais
Relatório é o programa federal “Crack, é possível frequentemente citado foi o pesquisador da
vencer”. Na estrutura do documento existe um Fiocruz, cujas falas registradas no Relatório Final
tópico dedicado exclusivamente a esta política, da CPI extrapolam o domínio de sua área de
nos contando sobre o motivo de o programa ter conhecimento, quando ele é citado para abordar
sido criado, o que é o programa e quais são seus o tráfico de “drogas”, por exemplo. Em seu estudo
eixos de atuação. A apresentação deste programa no Congresso Nacional sobre a regulamentação
segue a orientação de traçar um panorama de anoregíxenos, ou seja, em outro cenário
do crack no cenário nacional, sendo também legislativo, sobre outras formas de controle em
resgatado pelo Relatório, inclusive quando relação a outros tipos de droga, Castro (2014)
aborda a “repressão ao tráfico”. também constatou a relevância da opinião de
Os convidados que integram o Relatório um especialista na tomada de decisão. A autora
Final, na ordem em que foram citados, são: comenta de que forma médicos clínicos criaram
1) o então secretário da Secretaria Estadual estratégias argumentativas para convencer a
de Prevenção à Dependência Química, citado Agência Nacional de Vigilância Sanitária quando
pelo documento quando comenta o histórico as retóricas “científicas”, com base em estudos
da Secretária a qual faz parte, as ações em populacionais de médicos epidemiologistas,
andamento e sobre o papel do governo enquanto obtiveram pouco êxito, facilitando que
indutor da adesão aos programas do Governo uma substância mudasse de estatuto para
Federal; 2) o diretor de Planejamento e Avaliação medicamento. Diferentemente, no caso da CPI do
de Políticas sobre Drogas da SENAD, sobre as Crack, um estudo populacional e o depoimento
ações de prevenção, rede de CAPS AD e sugestão de seu coordenador, um médico epidemiologista,
do programa paulista “De braços abertos” como foi fundamental para a elaboração do documento.
referência; 3) um pesquisador da Fiocruz que é Outros três especialistas são citados
coordenador da pesquisa nacional anteriormente pelo documento: Geraldo Mendes de Campos
citada, quando o documento se refere à prevenção e Edilaine Moraes são os autores do artigo
ao uso do crack entre estudantes e em ambientes “Como planejar um projeto de prevenção”, que
residenciais, sobre a internação compulsória e integra o livro “Prevenção ao Álcool e Drogas: o
também sobre o tráfico de “drogas” no estado; que cada um de nós pode e deve fazer”, ambos
4) O subsecretário da Secretaria Municipal de psicólogos e pesquisadores do Instituto Nacional
Desenvolvimento Social, sobre um programa de Pesquisa sobre Álcool e Drogas (INPAD); e
que articula políticas de saúde, educação e Mina Carakushansky, através de uma matéria
assistência social voltadas para juventude; 5) o jornalística produzida pela Empresa Brasileira de
vice-prefeito e secretário da Secretaria Municipal Comunicação (EBC) com o título “Especialista
de Desenvolvimento Social, quando comenta defende política de prevenção contra drogas no
um projeto de abordagem policial; 6) o delegado Brasil”. Esses pesquisadores citados são fontes que
da Delegacia de Combate às Drogas (DECOD) foram consultadas para as considerações sobre
e o Subchefe da Polícia Civil, citados quando políticas de prevenção especificamente, sendo
o documento lida com a questão do crack na que as contribuições de Carakushansky sobre a
capital na perspectiva da segurança pública. Os efetividade da campanha antitabagista no Brasil
convidados formam um grupo heterogêneo: dois foram aproveitadas na recomendação, ao final do
representam o nível nacional, três o nível estadual Relatório, para que o estado da federação na qual
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se encontra a Assembleia Legislativa promova de Atenção à Saúde, a Superintendente de
TEORIA E CULTURA
campanhas de rádio e televisão, dentre outros Atenção Básica, a Gerente de Saúde Mental,
meios, sobre os malefícios do uso do “crack e e duas defensoras públicas. Ou seja, todas as
outras drogas”. mulheres convidadas pela CPI não foram citadas
A partir da leitura do documento, sem que no Relatório Final, por mais que as áreas em que
tenham sido assim explicitadas, identificamos atuam sejam relevantes para o debate acerca das
como as principais causas do consumo de crack, “drogas”. Além disso, todas elas representavam
na ordem em que aparecem: 1) situação de rua; 2) justamente o nível estadual de gestão, conforme
conflito com a lei; 3) vulnerabilidade; 4) estrutura indicamos anteriormente como uma carência do
psicológica; 5) fatores biológicos; 6) rejeição de Relatório.
valores familiares, culturais ou religiosos; 7) uso Parte do material que tive acesso se
de “drogas” na família; 8) isolamento social; 9) refere às videogravações, que consistem em
falta de informações; 10) facilidade de acesso à resumos sobre as reuniões e entrevistas depois
substância; 11) desemprego/subemprego; 12) do encerramento. No total, foram realizadas onze
metas de produtividade inalcançáveis; 13) falta reuniões ordinárias, sendo que na sexta reunião
de supervisão ou disciplina; 14) ambiente escolar; a entrevista feita com secretária da SEASDH
15) fome e 16) falta de moradia digna. O quadro destacou um aspecto do consumo de “drogas” que
elaborado por Campos e Moraes (2014), sobre as até então não havia sido contemplado: o prazer.
“Perspectivas para prevenção ao uso de álcool e Ela diz que a maioria dos adolescentes que estão
drogas”, indica dez dessas 16 causas. na rua tem família e viveram em um lar violento,
Situação de rua, conflito com a lei, por isso muitos recorrem às “drogas” para aliviar
vulnerabilidade e desemprego também são a dor e saciar a fome: “Para tratar um dependente
apontados como principais consequências e químico é preciso admitir que a droga dá prazer.
não apenas causas do consumo de crack no É preciso encarar o problema com lucidez”.
documento. Outras consequências identificadas Outro aspecto relevante, também deixado
foram: 1) abandono precoce; 2) prisão; 3) de fora do documento final e trazido por uma
prostituição; 4) HIV e Hepatite C; 5) insegurança mulher, foi a contribuição da Defensoria Pública
nos espaços públicos; 6) trabalho infantil; no que se refere às estratégias para o serviço de
7) rompimento dos vínculos familiares e saúde que se dirige a pessoas que façam consumo
comunitários; 8) isolamento; 9) marginalização; de “drogas”. A defensora reafirma as diretrizes
10) perda dos valores sociais e 11) aumento dos da Reforma Psiquiátrica quando, por exemplo,
crimes. defende como meta a redução do número
A pobreza foi identificada como a de internações e a ampliação do número de
principal causa do consumo de crack destacada atendimentos ambulatoriais.
no referido Relatório, ao lado de vulnerabilidade Quando questionei um dos responsáveis
e exclusão social - termos que também aparecerão pela elaboração do Relatório quanto a inclusão
nas entrevistas e videogravação. ou não de depoimentos de pessoas na CPI, ele
disse que
O papel encenado: análise das videogravações e
entrevistas com parlamentares e seus assessores - O grande desafio era montar uma narrativa a
partir dos depoimentos da CPI. Foi complicado
Citamos anteriormente os convidados a porque.. era… era muito difuso, as perguntas, os
serem ouvidos pela CPI. Contudo, outras pessoas temas tratados pelos convidados. Era muito… é…
também foram convidadas, embora não tenham as perguntas e as respostas… Cada uma das sessões,
sido incluídas no Relatório Final da CPI. São elas não dialogavam entre si, então foi preciso um
elas: a Secretária de Estado de Assistência Social esforço. Eu preferi fazer nesse sentido, de buscar,
e Direitos Humanos (SEASDH), a Subsecretária a partir dos relatos, a partir dos depoimentos,
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construir uma narrativa a respeito de 3 focos: um na método para tratamento do uso abusivo de
TEORIA E CULTURA
prevenção, tratamento e reinserção social. E aí fui crack. Além disso, outra ausência de categoria
utilizando o que eu identificava com importante em nos chamou ainda mais a atenção, primeiro no
casa uma das entrevistas, na construção da narrativa Relatório e depois nas falas: a política de RD não
desses 3 tópicos. (…) Tem convidado que eu não foi mencionada no Relatório da CPI do Crack.
aproveitei nada, não utilizei todos. (Entrevista com
Assessor do Parlamentar 3, grifo nosso). - Olha, eu tô preocupado com um lugar ali que tem
Redução de Danos que a Igreja Católica não gosta,
Com as videogravações e entrevistas entendeu? Como é que a gente pode fazer?”. Só isso.
identificamos, portanto, o silenciamento de Única preocupação pontual. Então, preocupado
mulheres que trariam uma outra perspectiva com termos e expressões que talvez pudessem
para a abordagem às “drogas”, por considerarem trazer problemas pra ele [Parlamentar 1] com sua
o prazer, ao mesmo tempo em que representantes base eleitoral (Entrevista com Parlamentar 3).
do nível estadual de gestão – lembrando que a
CPI se ocupava justamente deste nível de gestão O que parecia uma simples ausência
– sublinharam a ampliação do atendimento revelou-se ser um veto que corresponde
ambulatorial em detrimento do procedimento da justamente à motivação moral e religiosa que
internação, ocultada no Relatório. Esta ampliação identificamos em discursos sobre a instalação da
diz respeito aos três focos mencionados CPI.
pelo assessor, pois, prevenção, tratamento e
reinserção social acontecem na rede ambulatorial - Teve uma polêmica, e foi a única coisa que eu
formada de consultórios na rua e Centros de precisei mudar no relatório que dizia respeito à
Atenção Psicossocial (CAPS) - sendo que a Redução de Danos. O “Parlamentar 1” levantou a
prevenção não compõe o elenco de ações da rede questão porque ele é contrário à política de redução.
hospitalar especializada, como as Comunidades Aí eu tive que mudar a palavra, usei outras palavras
Terapêuticas (CTs). O presidente da CPI defende que queriam dizer a mesma coisa. Só que ele é
as CTs, ou seja, a internação como procedimento um deputado de direita, né, pode-se dizer até de
principal e o risco – e não o prazer – como extrema direita. E esse pessoal, eles não aceitam, de
concepção hegemônica do fenômeno das drogas, modo algum, políticas como a de redução de danos.
já o relator e vice-presidente apoiam a ampliação Porque eles querem, na verdade, é uma guerra
dos CAPS. Se nas videogravações encontramos contra as drogas, qualquer política que não seja
o ocultamento do prazer e da rede ambulatorial, guerra contra as drogas eles não aceitam (Entrevista
nas entrevistas nos deparamos com o veto à com Assessor do Parlamentar 3).
Redução de Danos.
Ao total foram realizadas oito entrevistas, Ao discorrer sobre a política
com cinco dos sete parlamentares e três assessores internacional sobre “drogas”, Fonseca e Bastos
indicados pelos mesmos. Nem todos os deputados (2012) argumentam que na década de 1980 as
participaram, justificando a ausência por falta políticas supranacionais antidrogas entraram
de agenda, e nem todos assessores também em crise e a ascensão do movimento de RD em
foram ouvidos, pois houve parlamentares que resposta à epidemia de AIDS entre usuários de
preferiram não indicar ou não o julgaram drogas injetáveis era uma das razões (FONSECA
necessário. Ao longo das entrevistas identifiquei- e BASTOS, 2012). Os autores destacam que na
me exclusivamente como pesquisadora, não Comissão de Drogas Narcóticas da ONU (CND),
tendo acionado a identidade de assessora nem a assim como nas Assembleias Gerais, as decisões
de militante. são tomadas única e exclusivamente através de
Ao longo das entrevistas notamos a consensos. Aparentemente, na CPI do Crack,
ausência do debate sobre a abstinência como optou-se por acatar o veto do presidente da CPI
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em vez de buscar o consenso através de um debate comum no Poder Legislativo Federal: “De fato,
TEORIA E CULTURA
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relatos mostram que essa ausência pareceu do que fique montando equipamentos que não
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ser determinante para apontar os rumos que a funcionam. Por isso eu apoio que a Comunidade
Comissão tomaria. Nessa situação de ausência, a Terapêutica seja um suporte pra tentar atender esse
quem coube a função de presidir as audiências foi usuário. (Entrevista com Assessor do Parlamentar
o Parlamentar 2, do PSOL, um campo político- 2, grifo nosso)
ideológico avesso ao do presidente(PSC).
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comparação ao crack e outras “drogas”. Além
TEORIA E CULTURA
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S. Becker. Revista Dilemas, vol1, nº 1, p. 157-
TEORIA E CULTURA
171.2008.
Agradecimentos
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TEORIA E CULTURA
Khalid Mouna1
Abdellah Essaouidi2
Abstract
Since the 1980s, the landscape of illegal drug use has changed in Morocco. This has come about through
the introduction of new drugs and new modes of consumption. Morocco’s geographical position has
actively contributed to facilitating the transit of cocaine from the Sahel; heroin arriving through the
two enclaves of Sebta and Melilla; and psychotropic drugs from Europe or those transiting through
Algeria. The 2000s were marked by the “democratization” of certain drugs with the massive arrival
in Morocco of cocaine and heroin, which had until then been reserved for a wealthy clientele. Thus
“kahla/heroin”, introduced in the north at a price of around 20 dirhams (2 Euros) per gram, generated
a considerable number of injecting drug users, with all the attendant public health problems (HIV).
Using the city of Tangier as a working space, this article attempts to understand the process of heroin
addiction, and tries to answer the following questions: how do people become junkies? How it feels
to break the social link ?How do they experience the user-sick position?
Resumo:
Desde os anos 80, o cenário do uso ilegal de drogas mudou no Marrocos. Isso ocorreu através da
introdução de novos medicamentos e novos modos de consumo. A posição geográfica de Marrocos
contribuiu ativamente para facilitar o trânsito de cocaína de Sahel; heroína que chega pelos dois
enclaves de Sebta e Melilla; e psicotrópicos da Europa ou em trânsito na Argélia. Os anos 2000 foram
marcados pela “democratização” de certas drogas, com a chegada maciça de cocaína e heroína em
Marrocos, que até então estava reservada a uma clientela mais abastada. Assim, a “kahla / heroína”,
introduzida no norte a um preço de cerca de 20 dirhams (2 euros) por grama, gerou um número
considerável de usuários de drogas injetáveis. Usando a cidade de Tânger como espaço de trabalho,
este artigo tenta entender o processo do vício em heroína e tenta responder às seguintes perguntas:
como as pessoas se tornam viciadas? Como é romper o vínculo social? Como eles experimentam a
posição de usuário doente?
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Introduction3 visitors every year, among them thousands of
TEORIA E CULTURA
drug users from the northern cities. The latter,
Since the UNODC report in 2005, who become residents of this mausoleum, remain
Morocco has been described as the world’s chained there for months in closed and isolated
largest producer of cannabis. However, a new corners. Since the Ministry of Health closed down
reality has just been added to this position as the Bouya Omar in June 2015, 799 patients have been
world leader in cannabis: the massive arrival of removed from the mausoleum and dispatched
new drugs, including cocaine, crack cocaine, and to 27 public establishments specializing in the
psychotropic pills. The reasons for this change lie treatment of mental illness, with a total bed
first of all in: the country’s strategic position as a capacity of no more than 1,725 beds.
crossroads linking Africa and Europe, then the Today, the highest rate of drug addiction
economic development of the port platforms in is observed in the north of the country. This
the north of the country, particularly in Tangier, region is home to a large proportion of drug users,
which has accelerated the transformation of particularly heroin and injecting drug users.
Tangier into an important transit zone for goods There are mainly three sites: Tangier, Tetouan, and
but also for drugs, and finally the presence of Nador. According to the Hasnouna Association
the two Spanish enclaves Ceuta and Melilla, for Support to Drug Users (NGO/Tangier), there
which constitute a transit route for all kinds are more than 3,000 heroin users in Tangier.
of drugs4.Northern Morocco has become an According to the same source, and based on the
area for the consumption of drugs, particularly number of people seeking medical treatment,
heroin, with extremely low prices compared heroin and cocaine use affects all social classes
to the rest of Morocco. The cities of the North, and age groups. Despite the achievements made
specifically Tangiers, Tetouan and Nador, have in terms of the provision of care and medical
thus been caught up in a new dynamic of drug treatment, which have expanded considerably in
consumption, moving from cannabis as a socially recent years with the establishment of addiction
accepted product to injectable and sniffed drug centers and the adoption of opiate substitution
products. These new practices have given rise to treatment (methadone)6, Morocco maintains the
a real public health problem, with the presence of status quo in terms of the criminal treatment of
a large number of junkies5 occupying squatters drug users of all kinds. Drug use is still governed
and public spaces, stigmatized and outside by Decree Law No. 1-73-282 of 21 May 19747
the health care system, in a situation of social Article 8 of the said Decree punishes any use of
precariousness, breaking social bonds and also any substance or plant classified as a narcotic,
in economic precariousness. and the user is liable to a penalty of two months
Faced with the scarcity of care for this to one year’s imprisonment and/or a fine of 500
population, several families in the North resort to 5,000 dirhams. Nevertheless, in the second
to traditional therapy, and were the first “clients” paragraph of this article, the judicial authority
of the mausoleum of Bouya Omar in the Great may discontinue criminal proceedings if the
Atlas Mountains, where a 16th century marabout, accused, a drug user, consents, after a medical
to whom supernatural powers are attributed, examination carried out at the request of the
is buried. This place attracts more than 30,000 King’s Prosecutor, to undergo detoxification
3 We thank Dr. Azeddine Khalfaoui professor at Moulay Ismail University for his reading and corrections to the English
version of this text.
4 In 2018, Moroccan police seized 1.65 tons of cocaine and 1.3 million psychotropic hallucinogenic tablets and ecstasy.
An official account.
5 In the north, the term Junky refers to heroin-dependent users.
6 Methadone, see Ministry of Health guide.
7 Official Bulletin No. 3214 du 05/06/1974 – p. 928.
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for the duration necessary for his recovery. Anthropological work, despite the elementary
TEORIA E CULTURA
Such treatment must be carried out either in a nature of drug research, has succeeded in
therapeutic establishment under the conditions showing the differentiation between use, abuse,
laid down in article 80 of the Criminal Code or in and dependence. They have thus introduced
a private clinic approved by the Ministry of Public another nuance, shifting the focus from the
Health. In the latter case, the individual under product to the behaviours, but also pointing out
treatment must be examined every fortnight that not all drug users are drug addicts (Decorte
by an expert doctor appointed by the King’s 2002). This work has also rejected the dominant
Prosecutor. This doctor alone will be qualified idea of drug users as sick individuals. In this
to assess the state of recovery. If the drug user is study of the phenomenon, we focus on how users
again the perpetrator of an offence of drug use play on the sick category to gain social status.
or drug trafficking, within three years from the Indeed, it is important not to impose a theoretical
start of his medical treatment, a new criminal or analytical framework. We start from the
prosecution will be initiated, with cumulative premise that the diversity of the field gives us
penalties, both for the old offence and for the the opportunity to better understand drug use in
new offence. different cultural, social and economic contexts.
In the absence of specialized centers for The identity of a Junky is forged in the rituals and
the treatment of drug users, systematic recourse rules of drug use, and this identity is structured
to imprisonment remains the general rule, with in relation to the availability of the product, the
the exception of individuals from wealthy families places of consumption and the processes of self-
with links to power. It is worth recalling here regulation. The identity of the junkie results from
the tolerance of police officers and magistrates the socio-spatial context, that of life in squats. As
towards arrested persons, particularly when it soon as they start to drift, heroin or crack users
concerns only the use and not the trafficking of are involved in a double process of learning and
drugs and when the quantity seized does not distance. The learning process is a long one; we
exceed a few doses for personal and daily use. will describe the most important stages from the
Based on an ethnographic approach in the city of users’ point of view. In the first phase the junky
Tangier, this article attempts to understand how deconstructs himself according to a process of
the career of the Junkies takes place, and how interpretation of his state of withdrawal called
the social barriers that separate drug addicts, (L’Mono) followed by a second phase which is
particularly heroin addicts, from the rest of the integration of squats (kharba).
society are set up.
The Mono8
Junky: how do you become one?
Through observation and discussion
Rather than reducing addiction to the with junkie people, we come to understand
workings of political economy and biopower, what might be the common thread among all
addiction from a trajectory of learning and people who use drugs. It is true that the stories
socialization invites us to separate ourselves from are different from one junkie to another, but they
both “the forces that structure and determine the all agree on the issue of stopping taking drugs.
social phenomenon on beaten paths and those “You can’t stop taking heroin when you’re on the
that maintain the contingency and indeterminacy Mono. Thus, learning to feel the Mono is a kind
of those paths, allowing individuals to stray of rite of entry into the community knowing that
in unforeseen directions” ( Singer 2012: 8). the Mono is never defined and determined. It is
8 Withdrawal, locally called mono, is the medical and cultural term for drug dependence.
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a whole implicit practical rule to which one must I need for the whole week”.
TEORIA E CULTURA
credibly believe. And to believe it, one must learn
to feel it. What is Mono? How does the junky For subsequent use, Mono becomes a well-
describe it? How does he experience it? founded practical rule governing the relationship
The first uses: partying of the junky to the product consumed. In this
phase, obtaining cocaine or heroin becomes the
There are more or less conscious reasons drug addict’s only concern, in a state of extreme
for taking the drug. But, whatever the causes, when withdrawal. Thus, he or she reaches the status of
it comes to heroin and cocaine, the first uses are a true junky, busy trying not to end up in a state
generally in a festive and playful context. Often, of Mono. In this phase, the junkie adapts a victim
the setting of a discotheque or the atmosphere of posture ; they justify their conduct which they
a party facilitate initiation and help to achieve a consider deviant:
state of euphoria at all costs, especially as it is easy
to obtain drugs from friends and acquaintances “I know all junkies get their hands on “borşa”9(bag)
at parties. This festive atmosphere and the strong by stealing other people’s stuff, but you are forgiven.
sensations felt by the new initiates impress the It’s not our fault, it’s the drugs’. I wasn’t like that. I
spirits and provide a strong desire to repeat the worked like everyone else, with a salary and a family.
experience, and so on... The Junkies relate, with But drugs made us like this”. “When I got caught on
nostalgia and sorrow, the sensations they felt the Mono, I didn’t know what I was doing. May God
when they reached the flash point with their first forgive me. I sold everything I had in my room. I
doses of heroin or cocaine. From the very first sold my clothes. And how many times I took things
use, the initiate feels an irresistible urge to take from the house and sold them to get some heroin.
cocaine again. The symptom of Mono acting, One day, my brothers changed the keys of the door
the access to the drug and its use then proceed of the house and kicked me out. Since then I have
from an individual approach. And out of fear of been here in this corner”.
experiencing the horrors of Mono and reliving
the behavioral consequences, each insider buys From the very first takes, new junkies have
his or her doses for his or her own account. to undergo an initiation rite to discover Mono.
The following excerpt from our contact person Junkies also experience the state of Mono and
Ahmed eloquently illustrates the journey of a endure the psychological or behavioral changes
junkie living in a squat: induced by stopping taking heroin or cocaine.
A simple change in mood or a little boredom
“In the beginning we went to the disco every is then interpreted as symptoms of a craving
weekend with the colleagues I worked with in a call that can only be remedied by taking cocaine or
center. We buy a quarto (a quarter of a gram) for heroin. This repeated process will reinforce the
the whole night. Then you start bringing a gram need to take drugs as the only recourse. As a
of cocaine, especially when you’re with girls. And result, he becomes accustomed to describing any
since we work all day long, we wear a few shifts physical disturbance as resulting from Mono, and
to work so that we can use them during the rest every behavioral change, however insignificant,
hour and without being noticed by our colleagues is interpreted as a manifestation of a state of
and managers. After a few months, I still felt withdrawal.
uncomfortable to the point where I couldn’t work As soon as physical and behavioral
without taking a line of cocaine. Then I started to changes appear due to the effects of the first
get white powder on my own. And I buy everything drug use, the initiate anxiously expects that the
repetitive use of drugs will cause him to develop
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Mono, and as soon as he becomes aware of his reached so that the Mono state is never reached.
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behavioral and physical changes, he engages in a This state can also take various forms depending
permanent and repetitive use of heroin, for fear on the course of use of each junky and the
of being caught by the state of Mono. And when product used. For heroin users, they present
this becomes clear, the initiate reorganizes his their condition as a disease that affects their
entire physical and psychological lifestyle to the body to the point of putting them in a state of
rhythm of his heroin or cocaine use. anxiety. All junkies use the same language when
We witnessed a conversation between two they are about to smoke a plata of heroin: “I’m
junkies, Youssef, 19, and Tawfiq, 40, both from a going to get rid of the disease”, whereas users of
downtown squat in Tangier. The former has been “crack” or “free base”, whose craving state is less
using heroin (by smoking) for almost a month, painful, say “I’m going to erase the Mono”, which
and cocaine (by sniffing) for a few months. is a less pathological formulation. The dependent
The second is a heroin addict (by smoking) for consumer is then confronted with a whole
more than ten years. The first exchanges of their process of estrangement that he has to face. He or
conversation are quite edifying: she is labelled as a junky - an eminently pejorative
term - and is viewed with great distance by the
- Youssef: Hello Tawfiq. How are you brothers? community, which condemns him or her to a life
- Us: Hi Youssef, how are you? of reprobation. He must then resolve to live in
- Youssef: I’m fine, I’m fine, yesterday I couldn’t squat, a place of more or less community life, but
sleep. I spent the whole night throwing up so much also of accepted consumption, for years trying to
that I woke up the whole family. (Sadly) I don’t reduce this painful experience of isolation.
know what happened to me.
- Tawfiq: This is Mono my brother. Did you smoke Kharba: a lifestyle to be learned
this morning? Take a PLATA (a dose of heroin on
a piece of tin foil) and you’ll see, everything will be “It was the white powder, the cocaine, that ruined
fine. my life. It all started with parties and discos with
friends. Then I ended up in the kharba (squats)
No other diagnosis apart from that of the with the junkies, as you can see. Coca gives the
Mono from this experienced heroin addict. The impression of perfect well-being and joy. You feel
Mono, by the force of conviction it generates, happy and overexcited all night long, but when
makes it possible to conceptualize the meaning morning comes, you won’t be able to sleep. To
of drug use in the new initiate, who will then get there, you have to take Valium, an anxiolytic
become permanently addicted to drugs in order depressant. After that nothing relieves my Mono.
to avoid falling prey to the harsh symptoms To suppress it, a friend of mine offered me heroin.
of Mono. Paradoxically, the proven junky is I experimented with it and felt its effects. But this
not really worried about Mono, being always time the Mono is harder and unbearable. As soon as
looking for doses so as to never be in a situation I finish taking one dose, I think of the other”.
of withdrawal. The following terms with which
a junky calls on the services of the mobile harm As soon as pleasure gives way to Mono,
reduction team RDR during the implementation the junky creates his own squat which takes shape,
of the syringe exchange programme are a good at first, in his own room. He then finds himself
illustration of the sustained rhythm of heroin use alone and quickly forced to move elsewhere when
in relation to the feared prospect of Mono. “My he feels that his practice and his behavior are a
brother, Mono in my house is difficult, bring me disgrace to his family. Other users are simply
more syringes”. rejected and ostracized by their own families.
Mono is not a state of pain that must be These trajectories intertwine to continually
relieved, but a number of dosages that must be make and break addiction as a lived experience,
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experiential life trajectories constituted by the material possessions, but also of having his
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subjectivity of the actors (Raikhel and Garriott family’s link broken. It is obvious that this form of
2013). Thus, understanding the invisible and intimate violence, at once interior, profound and
unconscious coercion of what (Bourgois and traumatic, is not without lasting impact on the
Schonberg 2007) call intimate apartheid, allows life of the junky who, for want of anything better,
us to unravel the symbolic violence that blames finds in the kharba a substitute for life where he
users who are victims of different forms of can spend years and years. In such a situation, the
violence. person concerned carries with him the weight
Leaving willingly or by force, the junky of guilt for having damaged the integrity and
is forced to deprive himself of everything that reputation of his family and also for having lost
belonged to him, in a form of dramatic violence. everything: “I hate myself for the things I have
The majority of them present themselves to us done, but in spite of myself I continue to do
in the grip of terrible moral suffering for having them”. Certainly, this ambivalent feeling plays on
missed out on their life in society and betrayed the way the junky gives meaning and significance
their group of belonging. It is common to hear to Mono and life in kharba. So, what is kharba?
junkies say “I lost everything because of kahla10“. During the 90s, junkies humorously described
Kharba becomes the junky’s favorite exile, making how they indulged in heroin in public, especially
it a place to live and consume. But how does one in neighborhood cafés, without anyone noticing,
manage to live in kharba? The whole history of not even the police, except, perhaps, the insiders.
the junky is built around life in the squats. To start
using heroin or crack, the junky has to create his “After all the preparation, the heroin turns into a
own squat, out of sight of his family members. brown liquid on a piece of foil, everyone thinks it
At that point, a whole process of distancing and was cannabis oil. Especially the police officers when
estrangement begins. The forms of separation they intervene, they don’t know what it is”, says a
between family and junky are different from one junky who has been using heroin since the 1990s.
family to another. Some families will reserve a At that time, users didn’t need to squat to hide their
separate room for the user, often on the roof of practice. The stigmatizing judgment that has been
the house, while others prefer to pay for a rental passed on users since the early 2000s has changed
room away from home, to avoid being blamed the situation. Today squats are everywhere in the
by neighbors. In extreme cases, some junkies are city. As soon as some construction works make
imprisoned at the request of their own families. them disappear, others are created. The kharba is
The story of Bashir, ostracized and living alone at the same time a place of initiation, consumption
away from his family for several years, illustrates and a precarious, calamitous and miserable place to
a form of intimate violence to which some junkies live.
are subjected:
At first glance, the kharba appears to
“They told me, ‘you’re sick, fine. It’s not your fault, be a place for the marginalized and homeless,
it’s the drugs’, so we’re going to buy you a room without any other considerations. As soon as you
somewhere else where you can live quietly with approach it, you can better perceive its structure
your drugs. And as soon as you get out of it, you’re and its dilapidated state: here, a room with
welcome’”. decaying walls and a roof almost demolished,
the floor more or less broken, is strewn with used
When a junky voluntarily or involuntarily syringes, straws and small plastic water bottles
leaves his original place of residence, he faces commonly used to smoke crack. Aluminum
the risk not only of depriving himself of all his foil used to smoke kahla (heroin), left behind, is
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scattered all over the place. In addition, garbage with this calamitous situation, everyone adopts
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from elsewhere is collected in abundance, with a a lifestyle, sometimes disconcerting, but always
view to a hypothetical resale. assumed, as the following testimonies show:
The kharba are marginalized places,
they are the object of multiple interventions “To get the taste and feel the effects of the dose
by the police who constantly try to evacuate better, you must not change the smell of the skin”,
them, prioritizing those most exposed to “with the smell of the perfumes you never manage
public view, especially when the junkies are to suppress the withdrawal symptoms”, “To avoid
seen. Once evacuated, the junkies look in the falling into the state of Mono, you should never
same neighborhood or in the most peripheral take a shower, since the shower quickly suppresses
corners for another location. Thus, apart from the desired effects and you get caught in the Mono”.
a few visible squats where the junkies only pass “Mono to me is difficult, one or two borşa is not
through, the time to consume heroin, the hidden enough to suppress it. For one day, I need seven or
squats, more or less structured, nevertheless more”.
function as places of organized life and assumed
consumption. These types of squats are always The culture of resourcefulness: in search of
“administered” by a squat leader, who may be borşa
either a simple junky who actually has a place to
consume and live, or a dealer/consumer, whether When the junky believes that Mono is a
or not he lives there. The squat leader provides fatality he cannot manage, a firm belief in a new
reception and protection in the squat, which is “moral order” structures his entire daily life and
considered to belong to him and, in return, the gives meaning to everything he undertakes to
other junkies, occupants of the squat, pay him by obtain borşa. He invests all his time to respond
one or two borşas. The borşa can be considered to the urgent need to obtain the product. For this
as a pass allowing access to the squat: crossing the junky develops an original form of life in the
the control, use of drug-use areas... for very kharba.
dissocialized and wandering junkies. This type of To do this, the junky spends all his time
squat, whose appearances give the impression of looking in the garbage cans for a few items to
a forbidden place, can also be used occasionally resell to ensure the 50 dh, the cost of a borşa.
as a safe “stronghold”, especially for a quick sexual With a singular silhouette, with a cap on his
intercourse! head, a face darkened by the kahla, tired eyes
However, the kharba is also a place of often lowered and dry lips, he rushes to the “find”
initiation and consumption for some people who box, without looking away and without attracting
are used to the place, who are nevertheless socially the attention of those around him. In the street,
inserted users with work and family. These new wandering, he can be identified by his neglected,
or uninitiated people come here to get their crack even shabby clothes and the disheartening visible
or heroin supplies, and benefit from the know- parts: hair in a mess, an old, unshaved face,
how on the spot. And it is not uncommon to see marked by acne that has never been treated and
consumption sessions during which the visitors premature wrinkles, a fleeting, sometimes angry
of the moment bring their own dose of crack or (disgruntled) look, dirty and discoloured hands
heroin and share the water pipe when it comes and fingers... characteristic of the homeless. But,
to crack and the straw to smoke heroin. To paradoxically, when people come across him on
guarantee admission to the kharba, you have to the street, and even more so when they come into
pay borşa, however the squat leader always hides contact with him, they can only feel pity for him
his “subtle” methods of preparing the heroin or and implore God, merciful, and providence to
crack doses from his guests. The default choice to forgive him and help him to get out of it.
live in the kharba is not an easy one, and to cope The life of junkies is not limited to
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their activity in the kharba: out of necessity of This sad criminogenic reality leads, to put it
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subsistence, they routinely go out of the kharba, simply, to finding a causal link between the use
not only to beg for alms, but often to commit of drugs (heroin or cocaine) and the crime rate.
pickpocketing or burglary. It is worth noting This correlation is eminently truncated. Indeed,
the significant behavior of the junky, who, the acts of delinquency committed by junkies
before committing each robbery, uses drugs, are much more related to squats, to the mimicry
especially ecstasy, which is widely used in these effect that occurs there and to other elements of
circumstances: “Ecstasy is a substance that makes the lifestyle that develops there, than to drug use
me fall CARA - in the face,” explains one of them. in the strict sense of the term. This process can be
For the junky, the fact that he has to use presented in terms of the linear triptych: drug -
ecstasy almost systematically before committing squat - crime may help explain why substitution
his act of violence (a robbery, a burglary) treatment has not limited the crime rate among
highlights the complex relationship between, the junkie population still living in the kharba.
on the one hand, the intention to commit an However, this finding of causality must be put
aggression, which is presented by the person into perspective: the junkie, not having the
concerned as an obligatory passage since it is physical ability to commit theft, is forced to
“utilitarian” for him, and on the other hand, the engage in other practices such as begging, on the
correlative feeling of arduousness and guilt felt in streets. But this recourse to begging exposes him
carrying it out. Junkies thus distinguish between to hyper-visibility and hyper-vulnerability.
two types of drugs used in two different contexts. This situation of hyper-visibility and
While kahla is a necessary drug that brings hyper-vulnerability can provoke all sorts of
temporary serenity, ecstasy is a drug of means, it humiliations and different forms of violence
is used to produce a state of unconsciousness that coming from a fringe of society that is not
facilitates the transition to an act deemed violent. inclined to rub shoulders with marginality.
But the relationship between the Scenes of rejection are frequent next to cafés
necessities of life and the means the junky and restaurants, around bus stations or other
uses to satisfy them is of a completely different passenger areas. In these circumstances, the
dimension when the latter opts for a less violent women to whom the junkies beg, in particular,
“survival” behavior, such as begging, for example. often feel assaulted in this way and look nearby
Everyone has their own, sometimes even for a man who will know how to defend them.
paradoxical, rationality: “I’m telling you, frankly, The latter, invested with the legitimate role of
I’d rather steal than reach out my hand”. But this protector, then feels obliged to intervene “virally”,
does not mean, however, that the humiliating sometimes even violently.
act of begging is more difficult to assume than
the more or less violent act of delinquency. This Renegotiate the return to society
truth defended by many junkies shows one of the
properties of the concept of Mono, which should In the book “Addiction Trajectories”,
in no way be attributable to the drug itself, but to Raikhel and Garriott (2013) postulate three main
the pain felt from living with the drug in a squat types of what they call addiction trajectories.
and the desperate and endless efforts to relieve it. First are the epistemic trajectories marked by the
Depending on the junky’s state of mind, process of dependency as they evolve over time
all the acts (robberies, burglaries...) that he is and across institutional domains. In second place
brought in allow him to avoid missing the Mono. are the therapeutic trajectories that are linked to
The motives for taking action constitute, in a way, drug use. Finally, we find the experiential and
a moral order in the sense that these atrocities experimental trajectories of life constituted by
generated by the Mono are unbearable mortal the fields of dependence and subjectivity.
and that to save his body is the only priority. This approach does not take into
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consideration attempts by users to return to and representations, but has also created a new
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the dominant norm. The junky tries to find a category, that of user-patients. Drug use is now
new identity to renegotiate his return to society, regarded as a chronic disease that may require,
presenting his drug use as an illness requiring among other measures, hospitalization. In 2015
urgent medical intervention. In this sense, the in the Beni-Makada district, Tangier, dozens of
junky mobilizes a hermetic discourse, taking young heroin addicts organized a sit-in, chanting,
up his experiences of drug use, to defend his on the one hand, that they were victims of the lack
positions to the uninitiated and thus gain of medical services that could guarantee them
acceptance by society: “We are sick people and proper treatment and, on the other hand, they
we want to be cured. Imagine what Mono is like”, demanded methadone substitution treatment.
“you can’t imagine what you can do when you are They were screaming, “We are sick, we want
caught up in a state of withdrawal”. treatment, we want methadone”.
Heroin addiction leads the user to a These demonstrations reflect the
break-up. The fatal descent, characterized by unprecedented “cultural leap” that has taken
great precariousness and a calamitous way of life, place in Morocco with regard to drug use.
presents itself as a process of decomposition and Although, in material and legal terms, there
destruction which first affects social relations, have been no real changes, with the exception
especially with the family, and then the people of the creation of associations and health care
themselves, in their physical and moral integrity. institutions, we must nevertheless face the facts
However, this deadly situation never totally and agree that, at the level of popular perception,
destroys the hope, one day soon, of getting out a different way of apprehending and making
of it and thus renewing family and social ties. But value judgements with regard to drug users and
this return is never given definitively. consumers has taken place. They are no longer
To achieve this, the junky should invest seen as delinquent individuals or, at best, as
in a rehabilitation process that requires the marginalized secants, but as a distinct entity of
ability to assign himself the status of a “patient”. a health nature, constituting a category in its
In order to rebuild the social bond, he must “let own right. Based on this reality, it must be noted
go” through therapeutic action. This process of that the junky borrows new categorical devices
“patient” enables the junky to reconsider his to judge, classify and thus redefine his social
posture as a junky, his life in the kharba, his identity to restore self-esteem.
delinquent involvement in all forms, in order to However, the return to family and society
invest himself differently in the status of a fully- is not always without problems. If integration into
fledged patient. From this perspective, the use the treatment program allows the junky to find a
of methadone is seen as an instrument not only new place for himself, it is no less true that the
of treatment, but also of resilience. Methadone fact of starting to use heroin or crack again, even
produces a new symbolic order; it serves as occasionally, will reactivate his stigmatization
access to the category of patient. Immersed in as a junky and expose him to a new total social
this therapy, the junky makes a real effort to be breakdown. This is the case of Fayçal, who is a
recognized differently by his family, and more good illustration of this situation of recidivism,
broadly by society. By referring to the category which reinforces the fact that nothing can be
of patient he claims to be, he fiercely defends his taken for granted in this respect. Faiçal has been
behavior as that of a simple patient, with all the married for more than 15 years. He has been a
means and resources he will be able to use. heroin user for 20 years. He has started his opiate
This irreversible shift, which the substitution treatment with methadone for four
introduction of methadone into the treatment months. He describes, with emotion, the sad but
of heroin addicts in particular has produced, has no less painful episode that pitted him against his
not only had an impact on social perceptions wife Fatima:
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- Faiçal: I tell you Abdellah, I loved him very much Since the 1960s, the ethnographic
TEORIA E CULTURA
and I still love him today. I am not a son of a bitch to literature on street drug use has emphasized the
forget all that she did for me. We have been married importance of the lived worlds of consumption
for a long time out of love, she has been working and the personal identities of drug users.
forever. Before I could enter the treatment program, Subsequent anthropological work, based on field
she never forgot to leave me on the table the price ethnography, has emphasized the importance of
of borşa of the day before going to work. When my the cultural order of drug use (Preble and Casey
parents threw me out on the street, she was the one 1969). Others have used ethnography to better
taking care of me and our kid. understand and represent the world as it has
actually been seen and experienced by dependent
- Abdellah: But she should be happy that you are users (Friedman al 1986). In the various works
finally able to join the Treatment Programme. that followed, we note a stance that attempts
to counter simplistic stereotypes and narrow
- Faiçal: May God forgive me. I got a job two weeks pathological narratives about dependent users.
ago in a carpentry shop. I make good money and Our Tangier field work allowed us to observe
the boss pays me every week. And as soon as I have the diversitý of uses, routes and relationships to
money in my hand, I’ll go to the souk to do some products. This leads us to question what Decorte
shopping and bring food and everything else we (2002) calls the “worst-case scenario”, where drug
need for a week. The rest I give away so that I don’t use becomes associated with the marginalitý
have to think about borşa. This week, as usual I went model and exclusion. In conclusion, the
shopping, and God forgive me I went to the Beznass psychiatric analysis that dominates research on
(dealer) to get a gram of biat (white-Cocaine). Since drug use in Morocco has succeeded in creating a
I can’t take it home, I joined a close friend I have “fatalistic” view of drugs, imposing an association
known since childhood and whom I trust not to tell between drugs, marginality and disaffiliation or
anyone. We both spent the whole night smoking even anomie on the basis of schematic analyses.
crack. The next day, as soon as I got home with dark
eyes my wife asked me for the rest of the money. I’m References
telling you, I got nothing to tell her. I told the truth.
She started shouting out loud. She hit me violentlyBourgois P. “Violence, respect et sexualité chez les
and threw my clothes and objects into the street. revendeurs de crack portoricains d’East Harlem”,
You see these marks on my neck. I’ve been living Revue européenne des migrations internationales,
at my friend’s house ever since. I also stopped my vol 18- n°3, mis en ligne le 09 juin 2006, consulté
treatment and therapy process. le 01 octobre 2016. URL: http://remi.revues.
org/1610 ; DOI : 10.4000/ remi.1610, 2002.
The scene was all the more unbearable as
it took place in the middle of the day and in the __________. and Schonberg J. “Intimate
middle of the street, in full view of all the passers- apartheid. Ethnic dimensions of habitus among
by. Now he lives in a squat with a friend, who is homeless heroin injectors”, ethnography, vol 8(1),
also a crack addict. Indeed, for some families, pp 7–31, 2007.
seeing one of their members taking drugs again __________.and Hewlett C. “Théoriser la
while undergoing substitution treatment or violence en Amérique”, L’Homme 203-204, mis en
recovery is a sign of lack of willpower. This is a ligne le 03 décembre 2014, consulté le 06 janvier
sign of lack of willpower and a breach of trust, 2017. URL: http:// lhomme.revues.org/23121 ;
with rejection and increased stigmatization. DOI : 10.4000/lhomme.23121, 2012.
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: un cocktail explosif ? ”, Drogues, santé et société, Rivoirard A. “Le toxicomane : une figure de
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TEORIA E CULTURA
Autoridade e afeto em relatos de bullying: notas sobre
a percepção dos professores
Maria Claudia Coelho1
Johana Pardo2
Resumo
O artigo examina a percepção de professores de escolas públicas do Rio de Janeiro sobre episódios
de bullying. Dialogando com a perspectiva teórica que propõe o tratamento da violência como uma
categoria êmica, a análise examina a existência de um “deslizamento semântico” entre as categorias
“bullying” e “violência”. O foco está no problema do exercício da autoridade docente nesse contexto.
Os dados analisados são um conjunto de 11 entrevistas em profundidade realizadas com professores
da rede pública do Rio de Janeiro. Na conclusão, retomamos formulações da teoria social clássica, em
particular as obras de Max Weber e Bronislaw Malinowski, para explorar a forma como o exame do
exercício da autoridade docente diante de episódios de bullying pode contribuir para a percepção da
relação entre o afeto e a autoridade.
Authority and affection in narratives about bullying: notes on teachers’ point of view
Abstract
This paper analyzes how teachers from public schools in Rio de Janeiro describe and comment on
episodes of bullying. Based upon a theoretical perspective that advocates for the understanding of
“violence” as an emic category, analysis approaches the existence of a “semantic displacement” between
“bullying” and “violence”. Its focus is on how teachers impose their authority in these contexts. Data
is a set of 11 in-depth interviews conducted with teachers from public schools in Rio de Janeiro.
Classical theories on authority, such as Max Weber’s and Bronislaw Malinowski’s works, are referred
to in the final remarks in order to explore the way teachers’ strategies to enforce their authority
when confronted with bullying episodes may contribute to the deepening of the understanding of the
relations between affection and authority.
Introdução3
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Em texto seminal de revisão bibliográfica Debarbieux (2001). Discutindo a emergência
TEORIA E CULTURA
3 Constituem o uso de medicamentos para uma indicação não aprovada, um grupo etário não aprovado, uma dose não
aprovada ou uma forma de administração não aprovada, de acordo com o registro sob o qual um fármaco é licenciado no
órgão sanitário competente (FREITAS; AMARANTE, 2015).
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cotidianas, que o debate é mais vivo, em torno bullying, com atenção particular para o papel
TEORIA E CULTURA
da noção de incivilidade. De fato, as pesquisas de desempenhado pelo afeto no exercício da
vitimação demonstram que, se um número não autoridade.
derrisório de alunos e docentes são vitimados, Os dados analisados são um conjunto
na imensa maioria dos casos o que é considerado de dez entrevistas em profundidade com
como violência não emerge meramente do Código professores versando sobre episódios de
Penal, mas se agrupa sob as categorias cômodas da bullying presenciados, com foco nas estratégias
‘violência verbal’, ou até mesmo simplesmente do utilizadas para lidar com eles e nos sentimentos
‘clima’ ou da ‘falta de respeito’”. (DEBARBIEUX, suscitados nos entrevistados. Recorremos
2001, p. 177-78) também a uma entrevista realizada no âmbito
do projeto “A Violência nas Escolas do Rio de
Em projeto de pesquisa voltado para a análise Janeiro: dimensões do problema e percepção
da violência nas escolas do Rio de Janeiro, pela comunidade escolar”4. São três os pontos
encontramos uma problemática de natureza examinados: a) a trama conceitual entre as noções
bastante semelhante: a mescla entre “indisciplina” de “violência”, “indisciplina” e “bullying”; b) os
e “violência” nas narrativas solicitadas a recursos acionados para lidar com o bullying; e
professores (BOMENY, COELHO e SENTO- c) a emergência de uma “figura narrativa” chave
SÉ, 2010). A essa mescla nos referimos então nos relatos: o aluno-agressivo-domado-pela-
como um “deslizamento semântico”, cujo ponto conversa.
de contato pareceu-nos ser, naquele contexto, Nas considerações finais, discutimos de que
o desafio que ambas colocavam ao exercício modo esse exame da autoridade docente face
da autoridade docente, colocando em xeque a aos fenômenos do bullying e da violência nas
própria construção da identidade profissional do escolas pode contribuir para uma retomada da
professor. discussão, tão central nos clássicos da teoria
Nesse artigo, revisitamos esse problema social, sobre a relação entre autoridade e afeto. O
em uma nova configuração: um “deslizamento ponto estará na problematização da dissociação
semântico” entre a violência nas escolas e o entre ambos, tomando o exercício da autoridade
bullying. Segundo Rolim (2008), o bullying teria, docente como um caso em que a autoridade se
em sua definição, três componentes básicos, de exerce através do afeto, seja como sua motivação,
acordo com a Associação Médica Americana seja como seu instrumento.
(AMA):
Uma trama conceitual: violência,
“1) Um comportamento agressivo intencionalmente indisciplina e bullying
voltado à imposição de sofrimento por uma pessoa
ou grupo; A pergunta central do nosso roteiro pedia
2) Um comportamento oferecido de forma repetidaque o entrevistado relatasse episódios de bullying
e insistente contra as vítimas; que tivesse presenciado em sua sala de aula ou
3) Um comportamento entre pares que vitima as sua escola. De saída, chamou-nos a atenção
pessoas que possuem menos poder.” (ROLIM, 2008, uma marca recorrente na forma de relatar esses
p. 15-16) episódios, muitas vezes precedidos de negativas
variadas quanto à sua relevância ou mesmo
O foco do texto é discutir o lugar da autoridade existência.
nessa trama conceitual urdida em torno das Uma primeira negativa afirma ser o bullying
concepções êmicas de violência, indisciplina e um problema “menor” diante de outros
4 Esse projeto foi realizado em 2007-2009 com apoio da FAPERJ, sob coordenação de Helena Bomeny e participação de
Maria Claudia Coelho e João Trajano Sento-Sé como pesquisadores. Agradecemos aos colegas Helena Bomeny e João
Trajano Sento-Sé a autorização para utilizar aqui essa entrevista.
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problemas que marcariam o cotidiano escolar em 6)
TEORIA E CULTURA
escolas da “periferia”:
Outras entrevistadas explicitam a dificuldade
Infelizmente a questão do bullying, ela está de se perceber a ocorrência de bullying em sala
diminuída em relação aos problemas e aos de aula:
enfrentamentos e aos desafios da violência do
próprio ambiente que é muito mais agressivo Muitas vezes o bullying acontece a gente nem
que o próprio, que o próprio bullying. Na escola percebe, porque às vezes é uma implicância que
da periferia, o bullying, eu acho, é o menor dos é feita quase que sussurrada, não é algo que é
problemas. Eu estou sendo sincero. (...) Porque gritado para que todo mundo ouça, muitas vezes
o bullying, na minha opinião, na minha opinião, é aquela implicância que chega apenas no ouvido
não pesquiso violência escolar, eu sou afetado da pessoa. Então em uma sala de aula com uma
por ela, mas o que eu penso, na minha reflexão, turma de 40 alunos é difícil você perceber quando
eu acho que o bullying é o menor dos problemas está acontecendo. A gente consegue sentir alguma
pros enfrentamentos que temos diante aí, diante de coisa tá errada, por exemplo, quando um aluno
termos violência, da violência de acontecer ontem, mesmo tem essa iniciativa, ele diz “olha a professora
por exemplo. De um aluno arriar a calça e estar de fulano tá falando isso, assim assado de mim” (...)
cueca no meio da sala de aula. (Entrevista 6) (Entrevista 2)
O mesmo entrevistado afirma explicitamente Nesses casos não dá para perceber porque assim,
que o bullying não seria uma “grande questão” não foi um caso, essa turma, que eles pegavam a
diante das “violências” e dos “problemas sociais”, pessoa, não, é um caso de agressividade coletiva, eu
estas sim responsáveis pela evasão, entendida não sei se chega a ser o bullying, eles são agressivos
de modo mais amplo como uma espécie de entre eles, eles são agressivos com os professores,
“descrédito da educação”: eles fogem ao, sei lá, a toda, tudo que a gente tenta
fazer ali dá errado, visivelmente errado. (Entrevista
(...) na verdade a evasão, pelo bullying, eu acho 1)
que não é uma grande questão. A grande questão
é o problema social que faz com que as pessoas E você já presenciou algum caso de bullying?
saiam da escola. E aí é problema social mesmo, é Então, eu leio um pouquinho sobre esse negócio.
a necessidade do trabalho, que empurra as pessoas E, assim, é difícil de você definir bem o que que
pro trabalho e dificulta a vida... a vida escolar, né? é bullying, diferenciar bullying de violência, de
São as violências, aí, é... (pausa) é... de vida, né? Que incivilidade, de indisciplina. É... na sala de aula a
a pessoa... a dificuldade de vida. Violência que eu gente ouve os alunos o tempo todo falando sobre
falo aí é a dificuldade que a pessoa enfrenta num bullying: “olha professor, ele praticou bullying
mundo cão, né? (...) Pior que o bullying, entendeu? comigo”. Mas muitas vezes... a gente ouve isso na sala
Acho que tudo... essa questão da violência é que faz dos professores também. Mas muitas vezes a gente, a
com que a pessoa deixe a escola. Por que? Porque partir das leituras que eu tenho, né, a gente vê que o
o bullying... se uma pessoa está triste porque uma termo é meio que jogado aos quatros ventos, quatro
pessoa está triste porque não foi aceita por aquele cantos, sem noção muito do que significa. Bom,
grupo, ela vai mudar de escola. Mas a evasão dentro do que eu acho que seja bullying, se eu vejo
mesmo, a evasão, de deixar de estudar e de... e de... isso, sim, vejo isso na sala de aula. Na rede pública,
deixar de estudar também acontece por conta de municipal, né, a gente tem muitos problemas, é...
não acreditar na potencialidade que a educação desse tipo de... de ofensa, de... de um aluno contra o
pode promover de transformação. E aí o que eu acho outro, de um grupo contra um aluno, é... então sim,
que tem acontecido é que o estado promove uma me deparo com isso, por vezes, mais de uma vez no
política violenta contra as populações. (Entrevista dia, assim. (Entrevista 9)
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Os relatos suscitados apareciam também não mais histórias de bullying que teriam sofrido
TEORIA E CULTURA
mesclados a episódios que, de um ponto de em outros momentos de suas biografias, como
vista conceitual estrito, não poderiam ser estudantes, mas histórias de agressões por parte
considerados bullying (tal como definido pela de seus alunos de que são alvo, como no caso de
literatura especializada, de acordo com o exposto uma entrevistada que emenda comentários sobre
por Rolim [2008]), gerando, assim, a necessidade agressões ocorridas entre os estudantes com
de recorrermos à perspectiva já comentada de agressões cometidas pelos mesmos contra ela:
Éric Debarbieux, acerca da violência nas escolas,
de se atentar para a dimensão êmica da noção de Eles eram bem agitados e a maior parte deles tinha
bullying. É assim que surgem relatos de episódios uma atitude bem agressiva um com o outro mesmo,
de bullying sofridos pela professora entrevistada aquilo que eu falei, um cortou o cabelo já ia zoar o
quando era aluna: cabelo do outro de falar coisas, assim, agressivas, né!
Eles chegaram a falar coisas agressivas para mim.
Como você se sente quando vê uma agressão assim E tinha pessoas... o que falavam agressivo para você?
de bullying? (...)
Eu fico muito irada, é uma coisa que mexe muito É, eu vou falar, mas assim é aleatório demais, porque
comigo, porque eu sei o que eu sofri, eu sofri de eles fazem isso por fazer, não é, você vê que não é...
diversas formas, não só verbal, como física também Ah, o aluno falou para mim que o meu bebê ia nascer
e assim era gratuita não tinha absolutamente nada morto (risos), um aluno dessa turma. Estava todo
que justificasse agressão. (Entrevista 2) mundo aí eu cheguei, aí eles falaram “ah tá grávida”,
não sei o que, aí ele virou para mim e falou “o seu
Já teve alguma situação em sala de aula que tenha bebê vai nascer morto” (risos). Aí então é o que eu
mexido emocionalmente com você? estava falando, eles têm uma postura agressiva entre
Então, esse caso aí, esse caso me tocou bastante, eles, com os professores (...) (Entrevista 2)
porque me toca diretamente a questão da
negritude, foi a primeira vez que eu presenciei um Mas você estava falando que o bullying era
caso de racismo e por mais que o aluno tenha se bilateral...
arrependido, ter negado o fato, de dizer que ele não Sim, sim, eu falei, a criação influencia muito nesse
era racista ele assumiu que fez, mas mesmo assim ele aspecto, muitos alunos veem o professor como um
quis enfatizar que ele não era racista, mesmo assim inimigo, né ou como alguém a ser combatido. Eles
foi algo que me tocou, porque de onde vem esse não têm a menor ideia do porquê eles fazem isso, é
discursos que chegam na boca de um adolescente? um comportamento que vem sendo reproduzido,
Vem de algum lugar, então, está na sociedade, reproduzido, reproduzido, reproduzido... Sei
um outro que me toca diretamente, é a questão que muita gente não gosta quando falo isso, mas
da sexualidade, né, quando alguém é ofendido eu acho que é um comportamento que é muito
pela sua sexualidade, isso me toca, porque eu sou dessa pedagogia de Paulo Freire que para mim é
homossexual, isso me toca diretamente porque eu uma pedagogia completamente distorcida, em que
sofri com isso a vida inteira, na escola, né, a escola coloco o aluno como um oprimido, e o professor
foi um lugar de opressão para mim, então ver isso com um opressor ,eu não vejo isso eu vejo isso, eu
como professor é muito cruel, que hoje eu falo de vejo o professor e aluno como equipe, sendo que
outro lugar eu sou adulto, sei lidar com isso, e eles? cada um desempenha seu papel, então eu nessa
(Entrevista 4) escola municipal que inclusive eu não trabalho
mais, eu pedi exoneração, porque eu não aguentei,
Surgem também, nesse contexto de eu não aguentei, o fato é esse, eu vi que ia ficar
entrevistas sobre bullying das quais participam doente, e é justamente sabe, ou ficar realmente
como professores, histórias de agressões sofridas ou estressado ou deprimido ou alguma coisa, eu
por eles mesmos enquanto professores, ou seja, já não aguentei o tranco e eu pedi exoneração, por
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exemplo casos que aconteceram comigo, ah, vai ter estou falando muito sério que eu não quero que isso
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Então... aí eu tive que suspender a aula. E o aluno não que chega pra explicar o que é tá acontecendo em
TEORIA E CULTURA
foi suspenso. Não foi suspenso. Sim, foi advertido, relação à direitos deveres como aqueles devem ser
chamou a pessoa da administração chamou para comportar o que é que visa lei, o que diz o estatuto
conversar e tal, chamou hoje porque ele fugiu. da criança de adolescente então a gente procura,
Ainda por cima ele invadiu a escola, porque não tem sempre orientar, apresentar pra eles os direitos que
inspetor para segurá-lo, também não posso ficar eles têm e mostrar também os deveres que eles têm,
mantendo uma pessoa. (...) Ele saiu e eu suspendi. a maneira como eles têm que se comportar, entender
E agora o que eu vou fazer, é uma medida, é que eu que ali na escola não é um espaço onde eles vão
preciso fazer uma medida repressiva. Eu apesar de fazer acontecer, e que isso precisam respeitar aquele
ser um cara democrático, liberal e tudo, mas eu vou espaço e respeitar a si mesmos. (Entrevista 2)
ter que, vou ter que fazer uma medida repressiva
de aplicar uma prova oral, de fazer ajustes, vou Não, tratamento não. A única coisa que eu fiz foi
ter que reprimir na nota porque infelizmente conversar na sala. Parei a aula, né, pra a gente ter
porque porque vou ter que colocar aí uma prática uma conversa, buscando a interação de todo mundo
educativa, vou dizer repressiva e tradicional, e fazer e tentando fazer, fazer com que eles entendam que
exigências e tudo. Porque o que acontece, eu estou as pessoas são diferentes, você tem que respeitar
sendo sincero, se ficar uma pedagogia muito livre, essa diferença, tanto religiosa, como de orientação
daqui a pouco eles estão me batendo e eu não tou sexual. (Entrevista 7)
sabendo reagir a isso, porque, porque isso chega até
a mim, entendeu? (...) E aí eu trouxe essa portaria Tem uma situação mais grave que tenha saído do
para a escola. (...) (Entrevista 6) controle?
Em meu caso não, porque você combate a confusão
Já teve alguma situação de bullying em sala de aula com serenidade, imagina está todo mundo gritando
que tenha mexido com você emocionalmente? e você grita também, vira um manicômio, a sala de
Não, o que eu sinto é efetivamente quando começa aula, ela perde completamente o contexto, vira um
o bullying é essa raiva que vem porque eu me manicômio, assim, um bate no outro, todo mundo
lembro do que eu passei, então primeiro sentimento grita, você grita junto, quer dizer (...) você tem que
é a raiva, “caramba porque que o cara está fazendo ser firme, você tem que ser incisivo, fulano vem cá,
isso?”, mas como a situação não cresce, ela não se não é gritar às vezes é você mudar um pouco o tom
torna insustentável, eu consigo dominar na conversa, de voz, mostrar para o aluno que você está falando
evitar a partir dali, “não quero saber de bullying”. sério (...) (...) você imposta a tua voz, você projeta
Então eu nunca presenciei nada que fizesse, por a tua voz, mas, mas sempre projeta no volume
exemplo, um aluno a começar a chorar em sala audível, no volume que dê para você se fazer,
ou agredir o outro por conta disso, antes mesmo entender, num tom sério, mas sereno, eu acho que
de começar eu falo “parou”, para eles entenderem não dá pra combater confusão com confusão, grito
que ali não era o espaço para resolver dessa forma. com grito, o sucesso é zero (...) (Entrevista 3)
E se fosse alguma coisa que eu percebesse que ali
na sala de aula manter os dois ali quietos não ia Como se pode notar, o espectro de medidas
adiantar de nada, eu tirava, chamava o inspetor ou passíveis de adoção é amplo e inclui a conversa
a coordenação e explicava o que tinha acontecido, em várias instâncias (com a família, com a
e pedia para alguém da direção conversar com professora, com a administração da escola e até
aqueles dois alunos para tentar entender e fazer com mesmo com a Guarda Municipal) e diversos tipos
que eles se entendessem também. (Entrevista 2) de medidas institucionais, previstas no regimento
escolar (provas, suspensões, advertências) ou até
Ajuda sim, porque a gente segue todos os trâmites, mesmo portarias, ou seja, regras extrínsecas ao
a gente fala o que é pra falar dentro da lei, a gente às regimento da escola.
vezes tem palestras e do pessoal da guarda municipal Chama a atenção, em particular, o status
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ambivalente ocupado pela conversa. Searle expulsão, cabendo até mesmo o acionamento de
TEORIA E CULTURA
(1976) propõe uma taxonomia dos atos instâncias externas à escola, tais como a portaria
ilocucionários com base em seu ponto, ou ou a Guarda Municipal.
seja, aquilo que o falante pretende produzir no A conversa, contudo, parece passear por esse
mundo. O ponto ilocucionário, assim, pode ser continuum. Se ora aparece como o primeiro
a descrição de algo (atos representativos) ou a recurso, a ser tentado antes das medidas mais
assunção de um compromisso (atos comissivos), severas previstas no regimento escolar ou
entre outros. A categoria que nos interessa aqui mesmo na lei, também pode ocasionalmente ser
é a dos atos diretivos, cujo ponto é, segundo definitiva – como no caso da entrevistada que
Searle, “a tentativa do falante de conseguir que o afirma “dominar na conversa” (“antes mesmo de
ouvinte faça algo” (p. 11, tradução nossa). Entre começar eu digo ‘parou’”) – ou, ainda, ocupar
os verbos que demarcam atos pertencentes a essa a outra extremidade do continuum, acionada
classe estão: pedir, mandar, ordenar, suplicar, diante do aluno de agressividade incomum,
implorar e aconselhar. Evidentemente, a força diante do qual todos os outros recursos falham.
ilocucionária pode ser mais ou menos branda, É essa forma de exercício da autoridade, por
como na diferença evidente entre pedir ou meio da conversa, que examinaremos agora na
mandar que alguém faça alguma coisa. figura de uma “função narrativa” recorrente nas
Em outro lugar (COELHO, SENTO- entrevistas: o “aluno-agressivo-domado-pela-
SÉ, SILVA e ZILLI, 2013), recorremos a essa conversa”.
classificação de Searle para discutir a forma
particular do exercício da autoridade por outra O exercício da autoridade docente: afeto,
categoria profissional: os policiais integrantes das conversa e confiança
equipes da Operação Lei Seca no Rio de Janeiro.
Na análise ali empreendida, mostramos que a Nessas narrativas sobre o bullying,
ênfase na polidez como estratégia de imposição marcadas por negativas e evasividade, por vezes
da autoridade se apoiava em orientações e contraditórias, há um tema que emerge com
explicações, bem como em pedidos e convites, clareza: a agressividade, em suas formas variadas,
ao invés de ordens. Orientar, explicar, pedir e exercida pelos alunos entre si ou contra os
convidar compartilhariam, assim, o mesmo professores. E, como em toda narrativa-padrão,
ponto ilocucionário – levar o ouvinte (no caso, essa também tem um “protagonista”, uma espécie
o cidadão parado na blitz) a fazer algo, ou de “função narrativa” chave: o aluno-agressivo-
seja, acatar as normas da Operação Lei Seca domado-pela-conversa.
(apresentar os documentos, soprar o bafômetro,
etc) -, porém com força mais branda do que a E eu me lembro de uma outra aluna que eu tive,
proferição de uma ordem. logo que eu iniciei no município, comecei no
A ênfase posta pelos professores aqui parece município uma das primeiras turmas que eu tive
cumprir uma função semelhante. Conversar com em 2002/2003, por aí que ela era um bicho do
o aluno surge, em alguns depoimentos, como mato, ela era arredia e agressiva com todo mundo,
uma primeira estratégia de convencimento, de ninguém se aproximava dela. Ela vinha com o
conseguir que faça algo (ou que não faça, o que cabelo dividido ao meio todo largado, ela não tinha
talvez aqui seja mais adequado). O insucesso nenhuma feminilidade, ela vinha como se fosse
dessa estratégia daria então lugar a recursos mais selvagem mesmo como se dissesse “não me toca”,
incisivos, como o acionamento de mecanismos não encosta perto de mim”, “eu não quero contato”,
explícitos de sanção, seja da ordem dos atos e ela foi minha aluna por dois anos, foram dois anos
de fala – as advertências – seja da aplicação seguidos, que eu dei aula para ela em sala. (...) E eu
de penalidades – a suspensão, a mudança de tentei ir na contramão disso, cada vez que era ela
turma, a transferência de escola ou, no limite, a agressiva eu ia na docilidade cada vez que ela vinha
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na agressividade eu ia na docilidade, até num dado ah, arranjei um emprego tal, tô fazendo um curso
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momento ela se modificou tanto, que nesse ano técnico não sei aonde - aí ele vem aqui e me fala.
que ela não foi mais minha aluna ela passou a me (Entrevista 11)
procurar pela escola e ela vinha sempre com algum
presentinho que ela tinha feito. (Entrevista 2) Dessa história retiramos o fio condutor do
último ponto que gostaríamos de discutir aqui:
Naquela pesquisa sobre violência nas escolas o modo como autoridade e afeto se entrelaçam
realizada há cerca de dez anos (BOMENY, nessa forma de exercício da autoridade docente,
COELHO e SENTO-SÉ, 2010), encontramos por meio da conversa e da confiança. Para isso,
também esse personagem. Recorremos aqui reproduzimos inicialmente duas passagens
a uma entrevista em particular do conjunto de dois relatos distintos oferecidos na mesma
então realizado na qual há um pequeno e muito entrevista. A primeira é uma história de
sugestivo elenco de histórias dessa natureza, ou uma menina descrita pela entrevistada como
seja, histórias de alunos e alunas descritos como “altamente comprometida”, e que insistia em
muito agressivos, cujas revolta e agressividade tratar a professora como “tia”:
teriam sido contornadas (contidas? controladas?)
pela entrevistada por meio da conversa. Um E aí a tia, a tia sempre num sentido afetivo. Eu
exemplo paradigmático: trabalhava - eu não sou a sua tia - então essa
mudança de sou a sua tia é assim difícil de desligar.
Ele era uma fera, uma fera dentro da sala.... fera de Mas no momento que ela diz: “tia, eu te amo”! Aí
briga, assim uma fera mesmo. Irritadiço, tudo ele você diz assim: por que que você me ama? “Porque
questionava, ele brigava com o professor, toda hora você fala com o coração”. (...) Então aí você vê, você
saía de sala. Aí eu passei a fazer o seguinte, sempre falou com o coração. Aí eu não sou a autoridade. Eu
quando ele entrava ali eu dizia João, vem cá, vamos sou, eu fui na época, o vínculo de família que eles
bater um papo. “Ah, eu vou pra aula”. Aí eu dizia, tanto precisam. (Entrevista 11)
não vai pra aula hoje não. Eu dizia pra ele: eu te
dispenso. Vem pra cá, eu te dispenso. Aí ele dizia: A segunda passagem é retirada de uma
“tá bom”. Você vai subir, não vai aprender nada, história sobre um aluno sobre o qual só após
não vai aprender coisa nenhuma, você vai pra lá e algum tempo de convivência a entrevistada fica
a tua professora vai se aborrecer, você vai agredir sabendo que frequenta a escola em situação de
a tua professora, a tua professora vai agredir você. liberdade assistida.
Então fica aqui comigo, vamos bater um papo. Aí eu
começava: você viu o jogo? -não tinha nada a ver- “Ah, eu preciso conversar com você” (...). Larguei
Você viu o jogo de vôlei? Você viu o jogo daquilo? tudo pra conversar com ele. Uma hora conversando
Você sabe disso que tá acontecendo? Ou seja, tudo com ele e ele não olhava pra mim. Aí eu disse, você
diferente de escola, de trabalho de casa. Nada tinha já percebeu – e aí eu olhei pro relógio- nós estamos
a ver com nada. Começou a ir lá. Aí ele fala: “ah! conversando há uma hora e você não olhou nem
Puxa vida eu sou Fluminense e tal”. Alguma coisa um instante pra mim. Aí ele olhou, eu disse, bom
de interesse dele. Aí quando ele começava a relaxar agora eu vou falar o que eu estou sentindo: Ontem
ele dizia: “eu vou pra sala”. Aí eu dizia: não vai hoje você agrediu a direção da escola, você não agrediu
não, amanhã você vai. Vai te embora, relaxa. (...) a professora Maria, você agrediu a autoridade que
Esse menino então passou, quando ele chegava e a naquele momento eu estava representando. Aí ele
coisa não tava boa ele olhava pra mim com aquela abriu: eu tenho horror à autoridade. Eu disse: você
carinha e dizia assim: “vamos bater um papo?” Aí tem horror à autoridade, então é porque na sua
eu largava tudo, porque eu largo tudo que tiver casa manda.....você é mandado em casa. Isso pra
fazendo, e dizia: vamos conversar. Quantas vezes ele poder...eu queria exatamente que ele falasse,
esse menino, tudo que acontece de bom com ele - né, aí ele disse: é, isso mesmo; todo mundo resolve
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mandar, agora todo mundo manda, eu chego aqui e com isso a atender à professora de maneira
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de modo formalmente igual para ‘cada qual’, isto linear da sociedade em questão.
TEORIA E CULTURA
é, cada qual dos interessados que efetivamente O direito paterno seria, para Malinowski,
se encontram em situação igual – é assim que o uma formação de perigo potencial, uma vez
funcionário ideal exerce seu cargo”. (1999: 147) que conjuga afeto e autoridade em uma mesma
figura masculina. Já no direito materno, esses
Em sua tipologia, o espaço do afeto parece dois elementos estariam dissociados, sendo
ser aquele da dominação carismática, definida distribuídos por duas figuras masculinas – o pai e
como uma “relação comunitária de caráter o irmão da mãe. Essa seria a configuração afeto-
emocional” (p. 159). Essa seria uma relação na autoridade no direito materno:
qual há “confiança no líder”, cujas qualidades são
reconhecidas por meio de “uma entrega crente e “Mas a autoridade masculina não é necessariamente
inteiramente pessoal nascida do entusiasmo ou a do pai. (...) Nas sociedades em que a autoridade
da miséria e esperança” (p. 159). está nas mãos do tio materno o pai pode continuar
Uma outra forma de dissociação entre a ser o ajudante doméstico e o amigo de seus
autoridade e afeto aparece na discussão filhos. O sentimento do pai para com os filhos
empreendida por Malinowski sobre os direitos pode desenvolver-se simples e diretamente. As
materno e paterno. Para ele, a cultura exige que a primeiras atitudes infantis amadurecem gradativa
família realize “um processo de educação no qual e continuamente com os interesses da adolescência
a ternura, o amor e o cuidado dos pais já não e da maturidade. O pai na vida mais tarde
são mais suficientes” (1973: 210). O elemento desempenha um papel em grande parte semelhante
que vem substituir o afeto e colocar em prática a ao que tem no limiar da existência. A autoridade, a
socialização é, justamente, a autoridade. ambição tribal, os elementos repressivos e medidas
Para o autor, a natureza quase incompatível coercitivas estão associados com outro sentimento,
entre afeto e autoridade aparece com clareza na centralizam-se em torno da pessoa do tio materno
seguinte passagem: e se constituem ao longo de linhas inteiramente
diferentes”. (p. 212)
“Não há necessidade talvez de desenvolver este
ponto, de mostrar como é difícil unir a confiança A par da enorme distância temática entre as
com os poderes repressivos, a ternura com a discussões propostas por Weber e Malinowski,
autoridade, a amizade com o domínio (...) Também podemos sublinhar um problema comum: a
aqui não é fácil a formação da relação, que, partindo dissociação entre afeto e autoridade. Em Weber,
do fundamento inicial de ternura e de resposta a ausência do afeto praticamente define, como
eficiente, tem de transformar-se em atitude de vimos, a forma da dominação na qual poderíamos
repressão”. (p. 213) classificar a autoridade exercida por professores e
diretores no ambiente escolar; em Malinowski,
Na construção de Malinowski, o gênero afeto e autoridade parecem não poder coexistir,
desempenha um papel crucial nessa “divisão com a ternura sendo incompatível com a
do trabalho” entre o afeto e a autoridade, com “repressão” exigida pelos processos educativos.
o masculino tornando-se gradualmente “o Aqui, o direito materno, ao introduzir o irmão da
princípio da força, da distância, da procura da mãe como figura de autoridade, se por um lado
ambição e da autoridade” (p. 211). Mas, para complica a questão do ponto de vista fenomênico,
ele, essa associação entre feminino-ternura por outro a torna cristalina do ponto de vista
e masculino-autoridade não guarda uma teórico, acentuando a incompatibilidade entre
correspondência estrita entre as figuras da mãe e afeto e autoridade.
do pai, podendo ganhar uma configuração mais À luz dessas considerações, como fica
complexa – e, para os propósitos desse texto, mais então o exercício da autoridade docente? Que
rica – em função da concepção de descendência balanceamento realiza entre a autoridade e o
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afeto? Aí eu disse: agora – isso olhando olho no olho –
TEORIA E CULTURA
O conjunto de histórias narradas na última agora eu tou te mandando descer. Aí ele falou um
seção sugere que o afeto pode ser um recurso palavrão e “não vou descer”. Aí eu falei mais baixo:
para o exercício da autoridade, em vez do seu agora, eu vou te jogar lá embaixo. Aí parti pra cima
avesso conceitual (como na tipologia de Weber) dele. (...). Aí ele saiu gritando: “bem que disseram
ou do seu antagonista, aquilo que deve ceder o que essa mulher era maluca. Ela é maluca”. Mas
lugar para a emergência da autoridade (como nas eu ia jogar ele lá embaixo mesmo. Porque eu tinha
reflexões de Malinowski). toda certeza que ele tava né. Que era. Eu não sei o
Mas as dificuldades da autoridade docente que ia dar, mas também eu não podia nem pensar.
nos sugerem ainda uma outra forma de nuançar Era uma escola com quinhentos e tantos alunos e
essa relação entre afeto e autoridade. Vejamos eu vou tá pensando? Tenho que pensar é nos meus
uma última história. alunos isso sim. E não pensar num cara que tá ali
A professora conta que, em dado período tentando. (Entrevista 11)
de sua vida profissional, quando exercia o cargo
de diretora de uma escola, teve que lidar com A história termina com a professora nos
a coexistência de alunos pertencentes a três contando que, após esse episódio, pediu
facções ligadas ao tráfico de drogas. Em uma transferência da escola.
dada ocasião, um rapaz tentou entrar com um Quer dizer: não estamos diante de uma
“embrulho” na escola. Ela o impediu, dizendo: bravata. Ela teve medo, o que, segundo Miller
(2000), faz parte da “psicologia da coragem”.
Aí eu chamei e conversei com ele e eu disse que não: Mas de onde essa professora tirou a coragem
você não pode, aqui na escola nem o Presidente da de ameaçar fisicamente um traficante, sozinha,
República entra sem passar pelo gabinete. Gabinete desarmada? Ou, colocando de outra forma, por
do diretor. O presidente da República se quiser que fez isso?
entrar na escola o primeiro lugar que ele vai é no A história começa por um relato em que
gabinete do diretor. Porque mesmo ele sendo sua autoridade como diretora da escola é
presidente da República e ele querendo entrar, é desafiada. Ela o chama para conversar e afirma
ético ele passar. Eu estar recebendo o presidente. contundentemente a autoridade que o cargo
Então você não vai subir. (Entrevista 11) lhe confere sobre o espaço escolar: ali, “nem o
presidente da República”. Na ocasião seguinte, ele
Dois dias depois, o rapaz retorna à escola. Ela a desafia negando explicitamente a autoridade do
o encontra com uma mochila e o interpela, ao cargo: “ela não é ninguém para mandar nele”. Ela
que ele responde: revida com o cargo: é a “diretora da escola”. E vai
num crescendo: um “pedido”, um “favor”, uma
Aí ele disse que ia entregar. Que eu não era ninguém “ordem”, uma “ameaça”.
pra mandar nele. Eu disse: mesmo, eu sou a diretora O próprio Searle dificilmente conceberia um
da escola. Esse ninguém que você está falando eu exemplo melhor para explicar o que é o ponto de
não sou, eu sou a diretora da escola. Isso eu fui um ato ilocucionário diretivo e a importância de
tentando colocá-lo pra beirada, porque ele entrou atentarmos para as diferenças de força. Ela vai
no segundo andar né. Aí eu fui conversando com em um crescendo, até impor sua autoridade a
ele e ele foi se afastando porque ele ficou com medo ele, que acaba fazendo o que ela pede/ exige e se
que eu fosse tirar o embrulho dele né. Aí ele foi pra retira da escola.
beira da escada. Aí eu consegui fazer ele ficar na Mas: onde está o afeto aqui? Se estamos
beira da escada. Aí eu disse: agora eu vou te dizer discutindo a relação entre afeto e autoridade
uma coisa, primeiro eu vou te pedir pra descer. no ambiente escolar e no exercício da prática
Você faz o favor de descer. “Já te falei mulher que docente, qual o trabalho teórico que essa história
eu não vou descer”, isso na maior agressividade. (...) que termina com uma ameaça de agressão física
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– não contra a diretora, mas por ela – tem a fazer João Trajano.; SILVA, Anderson.; ZILLI, Bruno.
TEORIA E CULTURA
em nosso argumento? “Autoridade policial, riso e polidez - notas sobre
Nos outros relatos, a autoridade é exercida interações entre polícias e cidadãos na operação
por meio do afeto. Aqui, ela é exercida por causa Lei Seca no Rio de Janeiro”. Análise Social, v. 209,
do afeto. Proteger seus alunos é o que faz essa 2013, p. 900-920.
professora, sozinha, ameaçar fisicamente um
traficante. DÉBARBIEUX, Éric. “A Violência na Escola
A autoridade docente nos dá, assim, caminhos Francesa: 30 anos de construção social do objeto
alternativos para se pensar em maneiras de (1967 – 1997)”. Educação e Pesquisa, São Paulo,
associar afeto e autoridade, problematizando vol. 27, no. 1, p. 163-193, jan./jun. 2001.
suas alocações em campos opostos feitas por
dois de seus maiores teóricos em meio aos MALINOWSKI, Bronislaw. Sexo e Repressão
clássicos da teoria social. Ora como meio, ora na Sociedade Selvagem. Petrópolis: Vozes, 1973
como motivação, esse conjunto de histórias de [1927].
professores e suas agruras no ambiente escolar
nos sugere que pode haver mais coisas entre o MILLER, William Ian. The Mystery of
afeto e a autoridade do que supõe nossa vã teoria Courage. Cambridge: Harvard University Press,
social. 2000.
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TEORIA E CULTURA
Resumo
O presente artigo tem como objetivo propor um instrumento para a análise de certas ações e
categorização de formas de agência que não têm necessariamente a resistência à norma como alvo
inicial. Ainda durante a confecção de minha dissertação de mestrado (em que entrevistei três homens
trans), me deparei com a declaração, de um de meus informantes, de que, em dadas circunstâncias
da vida social, suas opções se resumiam a “lidar ou morrer”. Partindo, então, das noções de sujeito e
reconhecimento em Judith Butler (2015, 2017), procuro aqui sugerir como algumas pessoas que nem
sempre são reconhecidas dentro de determinados ambientes normativos, ainda assim exercem agência
– através do que chamei de “ceder”. Para tanto, busco sustentação nas concepções de identidade de
Stuart Hall (2005) e, novamente, Butler, bem como em noções de interação social (MEAD, 2018) e
representação (GOFFMAN, 2002). Por fim, me valho do entendimento de agência de Saba Mahmood
(2006) - um que expande a noção de agência para além da lógica de subordinação e subversão das
normas, como presente no pensamento feminista pós-estruturalista.
Abstract
This article aims to propose an instrument for the analysis of certain actions and categorization of
forms of agency that do not necessarily have resistance to the norm as an initial target. Still during
the writing of my master’s dissertation (for which I interviewed three trans men), I came across
the statement made by one of my informants that, in some situations of social life, his options were
“dealing or dying”. Drawing from the notions of subject and recognition in Judith Butler (2015,
2017), I seek to suggest how some people who are not always recognized within certain normative
environments, nevertheless exert agency – through what I called “ceding/giving in”. For that, I seek
support in the conceptions of identity from Stuart Hall (2005) and, again, Butler, as well as in notions
of social interaction (MEAD, 2018) and representation (GOFFMAN, 2002). Finally, I draw on Saba
Mahmood’s (2006) understanding of agency - one that expands the notion of agency beyond the logic
of subordination and subversion of norms as present in poststructuralist feminist thinking.
Introdução
1 Mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCSO) da Universidade Federal
de Juiz de Fora (UFJF).
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Este trabalho deriva de minha dissertação de não querer que levasse a namorada em casa
TEORIA E CULTURA
mestrado em Ciências Sociais, na qual analisei as (anos antes, quando ainda se identificava como
histórias de vida de três homens trans, Bernardo, mulher lésbica), com efeito, como me apontou o
Ian e Richard2. A partir de seus relatos, analisei Prof. Dr. Raphael Bispo, ficava claro que o jovem
certas de suas ações, como me foram narradas, cedia em favor de uma aceitação familiar. Ele
através uma série de premissas específicas. também renunciava à sua própria identidade de
Explico-me: as narrativas construídas por aqueles gênero no trabalho, uma vez que seus chefes da
sujeitos compuseram cenas para que pudesse época não permitiam que se identificasse como
aplicar tais premissas – que conformam o que, homem: ele cedia porque precisava trabalhar.
entendo, seria uma ferramenta de análise de sua Em outras circunstâncias, contudo, o seu “lidar”
capacidade de ação em dadas situações sociais. tomava os feitios de um enfrentamento franco.
No texto que constituiu minha dissertação, Bernardo lidou, por exemplo, com o fato de seu
comecei a esboçar o conceito de “ceder” (tal nome de registro constar nas listas de chamada
ferramenta), que aqui apresentarei. não respondendo a elas e exigindo que fossem
Neste texto, em particular, não farei uso mudadas – e chegou quase às vias de fato quando
extensivo de material etnográfico. A intenção uma colega de faculdade começou a chamá-lo
primeira deste artigo é a apresentação das bases por esse nome e espalhar para quem quisesse
teóricas para um instrumento analítico. Ainda ouvir um nome o qual não o identifica (ou com o
que seja verdade que foi das falas de meus qual não se identifica).
interlocutores que nasceu a ideia de analisá-las A questão do nome social, a propósito, ajudou
(e as ações narradas) desde certo prisma, devo a sustentar um padrão que já se manifestava nas
admitir que o presente artigo será composto situações que mencionei: sua “lida” com relação
mais da bibliografia estudada com o fim de a ele mudava segundo mudava o ambiente,
sustentar o que propõe, do que da etnografia sobretudo ao cruzar as fronteiras do lar. Em
feita para a minha dissertação, da qual me casa, alguns deslizes passavam batidos – e seus
servirei brevemente apenas, quando me parecer familiares, à época, nem sequer conseguiam
necessário. chamá-lo pelo nome que escolheu; fora dali,
Dito isso, de onde vejo, o que chamei de era inaceitável que o chamassem por qualquer
“ceder” forçou, de fato, sua entrada em meu coisa que não Bernardo, ou Bê, e seu nome de
trabalho a partir das observações retiradas da registro era assunto que evitava a todo custo – a
primeira entrevista que realizei: em um ponto de menos que uma situação específica lhe impusesse
seu relato, meu primeiro e principal interlocutor, a necessidade de expô-lo, cedendo. A mim, isso
Bernardo, insinuou que embora problemas como pareceu falar, talvez, sobre uma gradação do
erros de identificação de seu gênero fossem “ceder”: além de aparecer de formas diferentes,
incômodos para ele, ao encará-los duas opções o “ceder” também teria graus, dependendo do
se apresentavam: era uma questão de “lidar ou ambiente e do público.
morrer”. Naquele momento, disse, morrer não
era uma opção, tinha de lidar. Mas o “lidar” ***
de que falava, percebia-se – em se lhe dando a
devida atenção –, tomava uma imensa variedade Para, concisamente, começar a delinear a
de formas. proposta que aqui faço, posso dizer que parto da
E, assim, quando, ainda no primeiro capítulo, ideia de que uma ação deve ser estudada a partir
refleti sobre a falta de uma posição mais crítica, de um instrumento analítico: no caso, o “ceder”.
da parte de Bernardo, quanto ao fato de sua mãe Com isso, deixa de ser a “ação em si mesma” o
2 Richard foi o único que, quando perguntado sobre a utilização de seu nome, pediu anonimato e me solicitou que usasse
um fictício. O nome Richard foi sua sugestão para o uso em minha dissertação.
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objeto de estudo, transferindo-se tal estatuto A primeira premissa de que parto diz respeito
TEORIA E CULTURA
ao próprio “ceder” – como aquilo no que se vai à noção de sujeito. A que utilizo neste trabalho é
focar ao observar o trânsito do sujeito pelas a de um sujeito formado nas relações e que não
diferentes situações e ambientes: uma ação muito pode existir fora dos quadros normativos que
específica (uma categoria de ação) ou resultado estabelecem os termos de seu reconhecimento
primário (mas não último) de uma ação às e condicionam sua capacidade de reconhecer
vezes aparentemente ausente. Com isso, em – a si mesmo e ao outro. Trato aqui do sujeito
certo sentido, faço um movimento semelhante em sua relação com o “regime de verdade” que
ao de Joan Scott, para quem, nota Suely Kofes, dita os termos em relação aos quais acontece
“mulher, como grupo ou categoria, (...) não teria o reconhecimento de si – e que baseiam o
um estatuto de objeto em si mesmo, e quando, e reconhecimento intersubjetivo. Assim, o sujeito
se, pesquisado, seria através de um instrumento realiza um “trabalho sobre si mesmo”, que, em sua
analítico - gênero” (KOFES, 1995, p.21). Da leitura de Foucault, afirma Judith Butler (2017) –
mesma forma que Kofes entende o fruto de tal e eu a acompanho –, “acontece no contexto de
manobra, também aqui, quero entender que, um conjunto de normas que precede e excede
tendo o “ceder” como instrumento analítico, o sujeito”. Segue a autora: “[essas] normas
vai-se chegar a “um conhecimento que não se estabelecem os limites do que será considerado
parcializa pelo seu objeto empírico” (Ibid.). Não uma formação inteligível do sujeito dentro de
sugiro que uma categoria de ação equivalha determinado esquema histórico das coisas”. Isto
a categorias como as de gênero, apenas que é, não há poiesis sem sujeição: “não há criação
acompanho a mesma lógica para alcançá-la. de si fora das normas que orquestram as formas
É assim que a ação precisa ser estudada desde possíveis que o sujeito deve assumir” (BUTLER,
determinado prisma: uma ação não carrega 2017, p. 29).
significado intrínseco – isto é, sem relação com Isto posto, não haveria, então, como
o ambiente normativo que a torna possível (e, investigar o que quer que fosse, sem o devido
com efeito, condiciona suas possíveis formas). respeito ao contexto histórico e geográfico – ou
Tampouco é ela possível sem o veículo do corpo do quadro normativo que se insinua sobre o
que a performa – e muito bem poder-se-ia dizer sujeito da investigação. Essa injunção funciona,
que, da mesma forma, não é possível sem um de certa forma, como uma espécie de agente
“outro”, imaginado que seja. Nenhuma ação externo que propicia a relação do “eu” consigo
pode ser vista isoladamente, num vácuo que mesmo. Assim, não atua sozinho sobre o sujeito
concerniria a uma impossível relação exclusiva – que, como vê Foucault (apud BUTLER, 2017),
consigo mesma – ou mesmo a um impossível também age: responde à injunção aplicada sobre
sujeito em isolamento, efetivamente incapaz de si e desenvolve, a partir daí, tal relação (do “eu”
qualquer forma de agência, como quer que se consigo mesmo), que é o modo da sua própria
queira definir o que seja esta. criação. A reflexividade que funda o sujeito é,
No tópico a seguir, apresentarei as premissas então, introduzida pela injunção – mas não
básicas através das quais tentei observar as ações puramente determinada por ela, e, portanto,
narradas por meus informantes; posteriormente, também não o é o sujeito. Esclarece Butler: “[a]
tentarei melhor definir o que entendo por norma não produz o sujeito como seu efeito
“ceder”, suas especificidades, e como a ação assim necessário, tampouco o sujeito é totalmente
categorizada pode ser vista como uma forma de livre para desprezar a norma que inaugura sua
agência. reflexividade” (Ibid., p. 31).
O “reconhecimento de si” só é, assim, possível
Premissas básicas quando a forma de ser do sujeito que entra em
contato com as normas de reconhecibilidade
1 - Sujeito, reconhecimento e norma disponíveis vai ao encontro dessas normas. O
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regime de verdade que apresenta os termos fracasso eu, idem. Assim que, sendo essas normas
TEORIA E CULTURA
do reconhecimento restringe as formas de pretensamente universais, tais “falhas na prática
ser possíveis, colocando algumas como não de reconhecimento, marcam um lugar de ruptura
reconhecíveis. Explica Butler que: no horizonte da normatividade”, que é o lugar
de sua contestação e transformação. “Algumas
[...] o regime de verdade fornece um quadro para vezes”, assinala Butler,
a cena do reconhecimento, delineando quem será
classificado como sujeito de reconhecimento e pôr em questão o regime de verdade pelo qual
oferecendo normas disponíveis para o ato de se estabelece minha própria verdade é um ato
reconhecimento [...] Nesse cenário, nossas decisões motivado pelo desejo de reconhecer o outro ou ser
não são determinadas pelas normas, embora as reconhecido pelo outro. A impossibilidade de fazê-
normas apresentem o quadro e o ponto de referência lo de acordo com as normas disponíveis me obriga a
para quaisquer decisões que venhamos a tomar. Isso adotar uma relação crítica com essas normas (Ibid.,
não significa que dado regime de verdade estabeleça 38).
um quadro invariável para o reconhecimento;
significa apenas que é em relação a esse quadro Com base nas definições acima, pode-
que o reconhecimento acontece, ou que as normas se dizer que meus entrevistados eram pessoas
que governam o reconhecimento são contestadas e que, muitas vezes, não eram capazes de receber
transformadas (Ibid., p. 35). reconhecimento, por não se encaixarem no
quadro normativo vigente, que determina as
Embora sejam as normas presentes em formas possíveis que pode assumir o sujeito.
determinado regime de verdade virtualmente Localizados exatamente na ruptura aberta no
onipresentes, como aquilo dita os termos do horizonte normativo, entram em conflito direto
reconhecimento e da inteligibilidade do sujeito, com os termos de reconhecimento disponíveis,
é sobretudo na troca intersubjetiva que entramos numa luta própria para superá-los. E, conquanto
em contato com elas e entram elas em efeito. E pudessem ter (e, de fato, tivessem) uma relação
é na cena do reconhecimento que começam a crítica com relação às normas, muitas vezes
surgir os questionamentos: as normas muitas buscar ativamente subvertê-las não era uma
vezes se demonstram falhas no momento em que opção – nesses momentos, apenas duas opções se
se as aplica – e ponho, então, em questão o regime apresentavam: “lidar ou morrer”, uma afirmação
de verdade porque não consigo reconhecer o que, ao mesmo tempo, confirma a dificuldade de
outro (ou ser reconhecido por ele) dentro do receber reconhecimento e revela uma vontade de
quadro que se me apresenta. Tanto quanto só se sobrevivência, mesmo na falta desse.
pode ser reconhecido como sujeito em relação
às normas, é também, e tão-somente, na relação 2 - Identidade de gênero
com elas (regulando a relação intersubjetiva)
que se pode falhar na cena do reconhecimento. A segunda premissa, penso, se desdobra
Dependemos da existência de um outro para em duas noções: identidade e interação. No
dar-nos reconhecimento, mas a “dimensão próximo tópico comentarei sobre a noção de
social da normatividade precede e condiciona identidades culturais, como elaborada por Stuart
qualquer troca diádica”, afirma Butler. Os termos Hall, que também adoto. Mas aqui acompanho,
que aplico para reconhecer o outro não são só mais uma vez, Judith Butler (2015). Toda sua
meus, mas são os mesmos usados pelo outro elaboração teórica acerca das identidades de
para me reconhecer. Se ele fracassa ao tentar me gênero torna quase inevitável que através delas se
reconhecer e não posso, assim, ser entendido exemplifique a forma que a autora compreende
como sujeito, fracassaram antes as normas que a problemática da identidade como um todo.
determinam os termos do reconhecimento. Se De maneira simplificada, pode-se dizer que os
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“problemas do gênero”, sua fluidez e instabilidade nenhum atributo masculino ou feminino – mas
TEORIA E CULTURA
insuperáveis, são igualmente verdadeiros para são esses atributos apenas parte da ficção de
qualquer forma de identidade. Assim que substância, produzida discursivamente pelos
toda identidade parece, por certo, ser um ideal ideais de gênero e projetada artificialmente sobre
normativo. A identidade de gênero, seguindo o os corpos sexuados, através de atos performativos
exemplo mais à mão, é amparada por noções, realizados cotidianamente na tentativa de
ou ideais abstratos, de “masculino” e “feminino”, alcançar esses ideais. Paralelamente, o sistema de
que passam a ser entendidos, na sua reificação heterossexualidade compulsória ao mesmo tempo
pela performance, como conjuntos de atributos deriva do binarismo de gênero como imperativo
naturais de, respectivamente, machos e fêmeas de complementaridade e sustenta tal sistema
da espécie humana. No interior desta lógica, até sob a mesma falsa premissa, num frágil ciclo de
há algum espaço para que, por exemplo, uma retroalimentação. Assim é que a identidade de
fêmea apresente certos atributos considerados gênero da norma é formada, a princípio, como
masculinos – mas não muitos. Seu gênero, ideal normativo: uma convincente fantasia que
contudo, só pode ser um e ele tem de decorrer de imputa um falso status ontológico a predicados
seu sexo: este homo sapiens em questão só pode, anatômicos cujos significados não podem ser
assim, ser uma mulher. Melhor explica a autora: anteriores ao discurso que os produz.
Mas ideais normativos são precisamente
A noção de que pode haver uma “verdade” do isso: ideais; utopias inatingíveis imaginadas
sexo [...] é produzida precisamente pelas práticas dentro de determinado quadro de normas,
reguladoras que geram identidades coerentes por consequentemente transformadas em imperativos
via de uma matriz de normas de gênero coerentes. de coerência – neste caso, identitária. Se se repele o
[...] A matriz cultural por meio da qual a identidade imperativo, se se rechaça a perseguição dos ideais
de gênero se torna inteligível exige que certos tipos – ou bem, se se vai atrás de um que não apresente
de “identidade” não possam “existir” – isto é, aqueles a clara coerência arbitrária imposta pelas normas
em que o gênero não decorre do sexo e aqueles em –, a inteligibilidade do sujeito é dificultada e seu
que as práticas do desejo não “decorrem” nem do próprio status ontológico (seu reconhecimento
“sexo” nem do “gênero” (Butler, 2015, p. 44). enquanto sujeito) fica prejudicado.
Em nossa primeira entrevista, Bernardo
Em outras palavras, essa noção de identidade comentou que os donos da lanchonete em que
depende da produção das categorias de sexo como trabalhava não o deixavam apresentar-se com
naturais e substanciosas – isto é, como resultado seu nome social – que implica uma identidade
imediato e, de alguma forma, significativo da de gênero (o nome Bernardo é masculino). Pela
genitália. É dizer que dela derivariam os atributos necessidade de trabalhar, ali voltava a ser uma
geralmente conferidos às categorias de gênero pessoa que, repetidamente afirmava, não existe
– tornando rapidamente óbvio ao menos um (uma com um nome que sugeria que seu gênero
paradoxo: se tais atributos pertencem ao gênero e era feminino, negando sua identidade). Pela
não à genitália, como o primeiro pode resultar da violência que lhe foi impingida pelos chefes –
segunda? É evidente que não pode. E não resulta. uma violência da qual eles talvez nem tivessem
A ideia de que na genitália está condensada ciência, já que prevista e prescrita nos nossos
qualquer verdade sobre o “Ser” é insustentável. quadros normativos – tornava-se um não-sujeito
A implicação disso é que as categorias de sexo (ou um sujeito cuja identidade que assumiu para
não podem possuir substância – logo, tampouco si era negada por um outro, mas que, a bem
é possível que o construto social do gênero parta da verdade, jamais abdicou de sê-lo). Dada a
delas. O gênero não é uma função do sexo, mas, “descontinuidade” percebida entre seu gênero e (a
pelo contrário, o sexo é generificado: nele não presunção de) seu sexo – conceitos estabilizadores
está contida nenhuma informação de gênero, que, em sua continuidade, sustentam certa noção
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de “identidade” (Butler, 2015) –, a identidade De modo que o mais importante aqui é sua
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de gênero de Bernardo tornou-se um problema concepção da interação mesma do indivíduo com
com o qual seus chefes, neste caso, não souberam o que chama de o “outro-generalizado” – grosso
lidar. Dentro desse entendimento, o que se vê é modo, a sociedade em que se vive – e outros
a tentativa de recuperar uma noção de “pessoa” sujeitos específicos. Ambos moldam a maneira
que se torna demasiado confusa na presença de da interação. Esclarece que:
tal descontinuidade. Desse modo, seus chefes,
presumivelmente, pensaram apenas que seria Possuímos uma série de relacionamentos diferentes
melhor restabelecer a ordem e fazer com que com pessoas diferentes. Somos uma coisa para um
Bernardo ao menos parecesse retornar à coerência homem e outra coisa para outro. Existem partes do
– sem notar a violência que lhe infligiam. self que existem apenas para o self em sua relação com
si mesmo. Dividimo-nos a nós mesmos em diversos
3 - Interações e representação nas diferentes selves diferentes, de acordo com nossos contatos [...]
situações sociais existe toda sorte de selves diferentes, respondendo a
todo tipo de reações sociais diferentes. É o próprio
É importante lembrar que a perspectiva de processo social que é responsável pela aparência
análise aqui sugerida é também composta da do self; não há um self separado desse tipo de
ideia de que haveria uma gradação no “ceder”. experiência (Ibid., p. 66, tradução do autor).
Esta ideia (ou premissa) está relacionada a
inúmeras problemáticas e teorias erigidas por Em outras palavras, não existe self fora
diversos autores, visto como remete à necessidade do processo social. E a cada interação, pode
de apresentar (ou representar, poderia dizer ser que um self diferente apareça – e, de fato,
Goffman (2002)) a si mesmo e ser reconhecido aparece, visto como nenhuma relação é idêntica
nos diferentes espaços e momentos da vida a outra e nenhum tipo de experiência social
social. Por ora, não me aprofundo nem me fixo se repete exatamente da mesma forma. Para
em nenhuma dessas teorias, mas trago, bastante repeti-lo, “somos uma coisa para um homem
sucintamente, algumas das que me parecem úteis e outra coisa para outro”. Isso ocorre porque,
à minha proposta. no desenvolvimento do self, aprendemos (ou, à
Começo, pois, com George Herbert Mead. O nossa maneira, processamos) o que é a sociedade
autor desenvolve sua teoria da construção do self e formamos uma ideia do que é esperado de
como processo de interação social, entendendo, nós dadas as particularidades de cada situação.
em primeiro lugar, que não pode o self emergir Assim, agimos de determinada maneira porque
fora da experiência social. “O self é algo que nosso “self social” entende que tal é a maneira
possui desenvolvimento”, afirma, “ele não está correta de se agir dentro daquelas circunstâncias
presente de início, no nascimento, mas surge que se oferecem, mas agimos também de formas
no processo da experiência e atividade social, diversas de acordo com o interlocutor – ou com
isto é, desenvolve-se num dado indivíduo como a audiência, dando a deixa para Goffman, para
resultado de suas relações com tal processo cuja teoria eu sigo, com o perdão pelo extremo
num todo e com outros indivíduos dentro desse aplanamento das noções apresentadas e pela
processo” (MEAD, 2018, p. 63-64, tradução do celeridade com que passei e continuarei passando
autor). Considerado como essencialmente uma por teorias um tanto mais intricadas do que como
estrutura social, o self de Mead é formado pelas eu as aqui apresento.
relações sociais e, de certa forma, provê a si Goffman (2002), de modo similar, também
mesmo as próprias experiências sociais futuras indica que o indivíduo age de formas diferentes
– no sentido em que seu entendimento de cada em diferentes situações – e ele é, no fim das
nova situação é uma tentativa de recriação contas, diferente para uns e para outros, de acordo
adequada de situações semelhantes anteriores. com o “papel” que assume nos diversos tipos
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de interação em que toma parte. Para o autor, do que a situação que se lhe apresenta pede dele.
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a capacidade de um indivíduo de passar uma Isto é, também parte de uma compreensão prévia
impressão de si, de exercer sua expressividade, se do que é esperado que seja seu desempenho,
desdobra em “transmissão” e “emissão”. Explica de forma geral, como em termos de normas
que: de civilidade, por assim dizer, mas igualmente
considerando que, de acordo com sua audiência,
A primeira abrange os símbolos verbais, ou seus diferentes representações podem e devem ser
substitutos, que ele usa propositadamente e tão-só desempenhadas.
para veicular a informação que ele e os outros sabem Por último, dentre vários autores (GIDDENS,
estar ligada a esses símbolos [...] A segunda inclui 2002; CUCHE, 2012; etc.) que dão centralidade
uma ampla gama de ações, que os outros podem à questão da “identidade” em seus trabalhos,
considerar sintomáticas do ator, deduzindo-se que a trago aqui Stuart Hall e sua visão do assunto.
ação foi levada a efeito por outras razões diferentes Em primeiro lugar, acompanho Hall quando
da informação assim transmitida (GOFFMAN, afirma que “a identidade plenamente unificada,
2002, p. 12). completa, segura e coerente é uma fantasia”
(HALL, 2006, p. 13 apud BITTENCOURT, 2014,
A atividade de um indivíduo na presença de p. 133). A ideia de uma coerência interna ao
outras pessoas que possam ser “impressionadas” indivíduo já foi colocada anteriormente aqui, com
de algum modo por ele, Goffman chama de Butler, como uma ilusão produzida no interior do
“representação”. Dentro deste conceito está outro: discurso da norma. Renato Nunes Bittencourt,
o de “fachada pessoal”, que pode ser entendida em análise do conceito de identidade cultural de
como o conjunto dos atributos particulares Hall, analogamente, segue para explicar que:
do ator – que incluem as ferramentas para
as duas formas de expressão supracitadas; o Uma vez que as identificações são normatizações
“equipamento expressivo” que o ator utiliza culturais e lingüísticas axiologicamente
durante a representação. A “fachada pessoal”, insuficientes em consequência da própria fluidez
todavia, compreende grande quantidade de daquilo que denominamos “eu”, o mais plausível
sinais que ele tenta controlar para passar a seria afirmarmos o caráter conflitante que perpassa
impressão desejada, mas que muitas vezes não o processo de nossa subjetivação e interiorização
consegue controlar por completo – bem como, psicológica, assim como nossas relações sociais
obviamente, não consegue controlar a forma no âmbito da vida cotidiana. O sujeito está
como são recebidos pela plateia. necessariamente em interação societária com outro,
e somente assim é possível se separar as esferas do
A execução de uma prática apresenta, através de “eu” e do “tu”, que, por sua vez, acabam se tornando
sua fachada, algumas exigências um tanto abstratas indissociáveis (BITTENCOURT, 2014, p. 134).
em relação à audiência, que provavelmente lhe são
apresentadas durante a execução de outras práticas. As identidades culturais pós-modernas de
Isto constitui um dos modos pelos quais uma Hall são, num certo sentido, uma expansão da
representação é “socializada”, moldada e modificada noção de sujeito de teóricos interacionistas, como
para se ajustar à compreensão e às expectativas da o próprio Mead. Uma transformação imposta
sociedade em que é apresentada (Ibid., p. 40). pelo fato de que neste momento em que Hall julga
que estamos – a pós-modernidade –, não caberia
Aqui é possível perceber o mesmo tripé mais a compreensão de sujeitos formados pela
básico estabelecido por Mead: o “self ”, o simples interação de um “eu” com a sociedade.
“outro-generalizado” e o interlocutor/ situação Em sua leitura de Mead, Hall vê um “eu” interior
específica. Nos termos de Goffman, o “ator” que é produzido e transformado no contato com
assumiria um papel com base no entendimento mundos culturais exteriores – mas permanece
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enquanto essência. Para ele, por outro lado, a se estamos vivendo com pessoas do presente,
TEORIA E CULTURA
identidade é “uma ‘celebração móvel’: formada pessoas de nossa própria imaginação, pessoas do
e transformada continuamente em relação às passado, varia, é claro, com indivíduos diferentes.
formas pelas quais somos representados ou Normalmente, dentro do tipo de comunidade
interpelados nos sistemas culturais que nos como um todo à qual pertencemos, existe um self
rodeiam” (HALL, 2005, p. 13). A sutil mudança unificado (MEAD, 2018, p. 66, tradução do autor).
é que agora “somos representados”, ao invés de
realizarmos nós mesmos nossa representação. Além disso, a percepção, por parte de Hall, da
Em Hall, como em Butler, aparentemente somos formação do sujeito no interacionismo simbólico
despossuídos desse “si-mesmo” pré-socializado, de Mead como a mera relação entre um “eu”
que se tornaria uma identidade após a interação essencial e a sociedade, deixa coisas demais de
social. Em outras palavras, não há identidade fora. A parte do self que Mead entende como uma
alguma fora dos “sistemas de significação e “identidade social”, o “Eu”, precisa de um outro
representação cultural” os quais não controlamos para se realizar – através do reconhecimento.
ou criamos, mas, ao contrário, fornecem os termos Exatamente como em Hall, portanto, também
com que nos identificamos posteriormente – e, não existe fora de “sistemas de significação e
muitas vezes, apenas momentaneamente. Assim representação cultural”, já que os termos do
que, reconhecimento são dados por tais sistemas. Isso
fica bastante claro quando Mead afirma que essa
O sujeito assume identidades diferentes em identidade “tem de ser reconhecida pelos outros
diferentes momentos, identidades que não são para receber aqueles valores que nós gostaríamos
unificadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de ver atribuídos a ela” (MEAD, 1973, p. 248
de nós há identidades contraditórias, empurrando apud HONNETH, 2009, p. 147). Para usar outra
em diferentes direções, de tal modo que nossas vez os termos do próprio Hall, somente temos
identificações estão sendo continuamente uma identidade reconhecida pela forma como
deslocadas (Ibid., p. 13). “somos representados” – se entendermos tal
expressão como ter em nós percebidos quaisquer
Abrindo aqui um rápido parêntese, não dos valores difusa e arbitrariamente atribuídos
creio que Mead necessariamente objetaria as às identidades sociais, no momento em que
proposições de Hall. Não é sem motivo que Mead procuramos nos adequar a uma.
usa precisamente o termo “self” (um não presente Mas importa realmente neste ponto é pensar
no nascimento, mesmo assim, e cujas formas de que as variadas situações em que nos encontramos
apresentação variam constantemente), e não cotidianamente moldam nossa forma de agir
identidade, para tratar do que trata – os termos, tanto quanto qualquer outra coisa. É partindo
de forma alguma, se equivalem. Curiosamente, dessa premissa básica que proponho analisar o
quando usa o termo “personalidade”, que num “ceder” também em termos de uma gradação.
certo sentido pode se aproximar da ideia de
“identidades” fluidas – embora tampouco se Definindo o “ceder”
igualem –, é para argumentar que, normalmente,
ela é múltipla e variável, ainda que continue a ser Anteriormente, afirmei que o “ceder” seria
parte de um self unificado. um instrumento analítico: uma ferramenta que se
sobreporia à “ação em si mesma”, assumindo para
Uma personalidade múltipla é, em certo sentido, si o estatuto de objeto da análise. Caracterizo,
normal, como acabei de salientar. Geralmente, assim, “instrumento” como um arranjo de
existe uma organização de todo o self de acordo premissas (em certo sentido, substantivas)
com a comunidade à qual pertencemos e à situação através do qual se observa a ação de um sujeito
em que nos encontramos. O que é a sociedade, – oferecendo-lhe significado dentro de um
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enquadramento normativo. Visto como uma não pode ser relevado – e que, a bem da verdade,
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ação não pode ocorrer no vácuo, e não possui é de suma importância para o que, me parece,
significado intrínseco, fica entendido, pois, que é seria uma compreensão adequada do “ceder”: a
esse arranjo mesmo o que se vê. E tal é o “ceder”: noção de interseccionalidade.
uma modalidade de ação significativa – ou o Se existe uma possibilidade de escolha é
significante de certo tipo de ação. evidente que onde menos precise ceder e menor
Percorridas as premissas que o compõem, seja, consequentemente, a carga de tolerância
esclareço que onde o “ceder” se encontra, afinal, exigida, é ali que se vai preferir estar. Não
é no ato – na ação muitas vezes aparentemente obstante, na necessidade fica nítido que o ceder
ausente – de fazer uma concessão ou de sujeitar- é imperativo.
se a algo como meio para um fim – uma Se a necessidade é de trabalho, por exemplo,
negociação em andamento. Quando falo em uma parece que muito absorvente se torna esse
gradação do “ceder”, o que quero dizer é que as imperativo – o que, sem dúvida, soa extremamente
diferentes situações sociais exigem concessões óbvio. Quero dizer, quando há necessidade de
que variam também em grau, tanto quanto que se trabalhe para garantir a sobrevivência,
na forma (que é o que se torna mais evidente). parece óbvio que “ceder” é imperativo. Por
Entendo, como dito, que o “ceder” caracteriza outro lado, similarmente, quando se já tem a
uma modalidade de ação – no sentido estrito (e sobrevivência garantida, há uma menor pressão
restrito) de um agir produtivo –, consciente ou para que se trabalhe e o “ceder” é reduzido.
não. Mas entendo também que o “ceder” tem um Classe social tem papel importante aqui. E,
desenrolar e a isso chamei “tolerar”. “Tolerar”, por isso, tem tanto relevo para esta análise a
se caracterizaria, nesta leitura, como, de fato, noção de interseccionalidade – cruzando os
a falta de ação (novamente, no sentido mais marcadores sociais, mas não simplesmente
restrito), como uma aceitação passiva – o que somando uns e subtraindo outros. Por exemplo,
não significa, porém, que dali não possa resultar no fato de Bernardo ser branco e transexual,
um produto. De forma interessante, contudo, o primeiro marcador (sua branquitude),
essa ausência de ação também pode (e, creio que geralmente associado ao privilégio, não anula
deve) ser entendida como resistência – algo que o segundo (sua transexualidade), que traz
o “ceder” sozinho não poderia alcançar. Por isso, consigo um estigma. O segundo também não se
ainda, gostaria de entender o “tolerar” como um sobrepõe necessariamente ao primeiro. Situações
mecanismo subjacente ao “ceder” – e essencial ao específicas pedem apreciações específicas, como
seu funcionamento. Se a ação de ceder se coloca à salienta Almeida (2012):
pessoa como um meio para alcançar um objetivo
– e “habitar a norma” sem literalmente ceder a A perspectiva interseccional [...] permite o abandono
ela –, a tolerância é a força que impede que essa do raciocínio aritmético simples e mecanicista, que
pessoa sucumba de todo: uma resistência que faz equivaler a maior vulnerabilidade à simples
não é a do puro questionamento da ordem, da soma dos marcadores sociais, sem problematizar
execução de algo que é o seu oposto. sua interferência na particularidade dos contextos
No mais, diga-se, nada aqui é preto no branco. estudados (ALMEIDA, 2012, p. 515).
Ambos o “ceder” e o “tolerar” são inconstantes e
variáveis: não se cede a tudo jamais, mas sempre No caso de Bernardo, todavia, fica evidente
se cede a algo – uma gradação provavelmente um “ceder” em função de sua identidade de gênero
incalculável existe entre o máximo que se pode – mesmo que seja impossível afirmar o quanto
ceder e o mínimo. O mesmo vale para a tolerância. pesaram os outros marcadores percebidos em
cada uma das situações a que se submeteu. Um
*** outro homem hipotético em situação idêntica
Antes de prosseguir, existe mais um fator que à que se encontrava Bernardo na lanchonete,
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porém sem o marcador da transexualidade, mecanismo de seu próprio funcionamento.
TEORIA E CULTURA
cederia ainda, pela necessidade de trabalhar, Como também já foi dito, o sujeito se forma em
mas passaria sem o extraordinário “ceder” de relação às normas, e mantém, necessariamente,
ter sua própria condição ontológica posta em uma relação íntima com elas ao longo da vida.
questão. Falando ainda hipoteticamente, em Cada ação individual tem seus termos ditados
alguma outra situação exemplar (e perfeitamente pelo sistema de normas que vigora na sociedade
imaginável, diga-se), a negritude poderia ter em que é realizada. Assim é que o “ceder”, como
o papel semelhante de um “ceder” extremado qualquer outra ação, é também uma negociação
em sua função. Nada disso é dizer que certos com as normas. De modo algum, contudo,
marcadores se sobrepõem a outros – apenas que essa negociação efetivada pelo “ceder” é de
a apreciação do contexto dirá quais terão maior obediência cega, de curvar-se às normas sem
ou menor peso. fazer perguntas. Pelo contrário, o “ceder” é uma
Quando Bernardo descreve seu cotidiano, a forma de manipulação estratégica das normas
afirmativa de que ceder é imperioso na necessidade em busca de uma sobrevivência que o sistema
de trabalhar se torna quase frívola tamanha sua normativo poderia facilmente impugnar.
obviedade: “vou pra faculdade de 8 ao meio-dia. O entendimento mais matizado da noção de
Aí desço correndo pra cá [também recebe uma agência, de Saba Mahmood (2006), é de imensa
bolsa para trabalhar na reitoria], fico de meio- utilidade para a compreensão do que venho
dia às 2. Aí desço correndo pro centro, aí fico de expondo – o “ceder” por certo se encaixa em sua
2 e 45 até as 11. Aí eu subo”. Outro fato óbvio é ideia de agência. E essa ideia, é importante dizer
que ele não é a única pessoa que se sujeita a uma – visto como existem inúmeros entendimentos
rotina como essa – um sem número de pessoas do que constitui agência –, é uma que parte da
tem rotinas semelhantes. Este é o marcador de tradição do pensamento feminista e dos estudos
classe. Para a classe trabalhadora, é uma grande de gênero.
parte da vida que se cede em favor do trabalho – De modo a possibilitar sua análise do
mas, mesmo aqui, em variados graus e formas, movimento feminino das mesquitas, no Egito,
de acordo com a maneira na qual se alinham os a autora sugere “que pensemos na agência não
demais marcadores sociais da diferença. Como como um sinônimo de resistência em relações de
já observei, tanto a qualidade (forma) como a dominação, mas sim como uma capacidade para
quantidade (grau) do “ceder” variam de acordo a ação criada e propiciada por relações concretas
com as normas de inteligibilidade social. E de subordinação historicamente configuradas”
dependendo da primeira, a segunda pode ser (MAHMOOD, 2006, p. 123). Completa, adiante,
maior ou menor. que essa noção da agência humana que propõe
explora “modalidades de agência cujo significado
1 - Encontrando agência no “ceder” e efeito não se encontram nas lógicas de subversão
e ressignificação de normas hegemônicas” (Ibid.,
Se o “ceder” é aqui entendido como uma p. 123). Seu entendimento da agência humana
ação tomada pelo sujeito, não deve, assim, parte, assim, de um questionamento acerca de
ser entendido como passividade no sentido uma noção de agência presente no pensamento
expresso nos dicionários: como um obedecer feminista pós-estruturalista, que se apoia
sem reagir e nem pensar – tampouco como um sempre em padrões de oposição binária como
agir complacente, cujos resultados só podem ser subordinação e subversão e procura enquadrar
aqueles de reafirmar as normas que comandam toda ação humana dentro da lógica da repressão
esse agir. Já a tolerância passiva que sugeri como e da resistência.
subjacente (ou concomitante) a essa ação, não Embora se oponha a esse entendimento
deve ser vista insularmente, posto que é uma da agência, Mahmood afirma que os argumentos
espécie de extensão da ação que a produz – como de Judith Butler, provavelmente ainda hoje a
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principal proponente dele, são fundamentais ao discordaria desta constatação e eu também penso
TEORIA E CULTURA
seu trabalho. Mahmood acompanha Butler, e seu que não – me parece que as abordagens podem
uso de Foucault, na compreensão da formação coexistir. Certamente as normas não são “apenas
do sujeito através das relações de poder, ao consolidadas e/ou subvertidas”, mas dentre
mesmo tempo garantindo sua subordinação todas as formas de se observar as relações entre
e fornecendo os termos que tornam possível sujeito e norma, Butler apenas explora uma que
sua existência. Em Butler, todavia, a agência serve a um determinado fim, como Mahmood
encontra sua base na noção de performatividade perfeitamente aponta: a “identificação das
– ou, melhor dizendo, na instabilidade inerente possibilidades de resistência ao poder regulador
à forma de reificação e propagação das normas da normatividade” (Ibid., p. 136).
sociais. Como explica Mahmood: Ao longo do ensaio, Mahmood apresenta
as histórias de algumas mulheres egípcias para
Na medida em que a estabilidade das normas exemplificar modalidades de agência que não se
sociais é resultado da sua representação continuada, enquadram na lógica da resistência às normas.
a agência, para Butler, assenta na abertura essencial Na última seção antes de sua conclusão, a
de cada iteração e na possibilidade de esta falhar autora investiga o sofrimento e a sobrevivência,
ou ser reapropriada ou ressignificada para outros que como coloca, são em geral vistos como “a
propósitos que não a consolidação das normas. antítese da agência”. No ambiente de extrema
(Ibid., p. 134) desigualdade de gêneros em que Mahmood nos
apresenta tais modalidades de existência, fica
O que Butler faz é transformar o inegável a agência de suas interlocutoras – que,
paradoxo presente na formação do sujeito – ter por motivos diversos e de maneiras diversas, não
sua existência tornada possível pelas mesmas agem no sentido de subverter ou ressigificar as
estruturas que garantem sua subordinação – em normas sociais, mas as leem e vivem da forma
outro, ao colocar tais estruturas como reféns da que entendem melhor. Uma delas, Nadia,
falibilidade humana. Se, por um lado, o sujeito mostra formidável clareza acerca das condições
depende das normas para existir, é também de vida das mulheres egípcias. Quanto a como
somente através do sujeito que busca performar agir dentro de um sistema que vê uma mulher
os ideais normativos que as normas sociais se não casada aos trinta anos de idade com maus
mantêm e se consolidam – e eventualmente olhos, mas não lhe permite que tome a iniciativa
desmoronam. de procurar um marido, Nadia defende o cultivo
Mahmood anda ombro a ombro com Butler da virtude do çabr. Segundo Mahmood, o termo
pela maior parte da teoria desta, mas entra é de difícil tradução, sendo “paciência” (sua
em tensão com ela pelo fato de, por um lado, tradução mais comum) insuficiente, visto como
Butler, em suas palavras, “enfatizar a iniludível çabr tem um sentido muito mais amplo: “o de
relação entre consolidação e desestabilização perseverança, estabilidade e tolerância perante
das normas e, por outro, debater a questão da as dificuldades, sem queixume” (ibid., p. 145).
agência focando aquelas operações de poder que Questionável do ponto de vista feminista da
ressignificam e subvertem as normas” (Ibid., p. libertação da mulher do jugo patriarcal, esta é
135). Fica claro que na proposta de Mahmood tal apenas uma das formas de agência que foge à
relação está presente. A autora, contudo, localiza lógica da resistência às normas, ao favorecer uma
a agência humana para além lógica de subversão ação voltada à sobrevivência num meio hostil –
ou desconstrução das normas: seu ponto é que habitando-as, sem exatamente subvertê-las ou se
as “normas não são apenas consolidadas e/ submeter a elas.
ou subvertidas, mas também performadas, Se o “ceder” pode ser entendido como agência
habitadas e experienciadas de várias maneiras”. nos termos de Mahmood, invertendo um pouco
Mahmood afirma pensar que Butler não as posições, a virtude do çabr toma os contornos
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de uma forma de “ceder” com fundo religioso. possa ser uma ferramenta útil para a análise de
TEORIA E CULTURA
Nadia compreende que a sociedade egípcia certas ações e categorização de formas de agência
é injusta para com as mulheres e sua defesa que não têm como objetivo central a resistência
consciente do çabr é a maneira que encontra de à norma. Espero que o que foi apresentado
sobreviver apesar disso – e não de corroborar neste trabalho possa ser não apenas de utilidade
as injustiças que percebe com nitidez, ainda para pesquisadores das Ciências Sociais, mas
que, tampouco, sem desestabilizar o sistema também que possa instigá-los a dar seguimento,
normativo. É verdade que, como princípio qual seja o caminho que se lhes apresente, no
religioso, a virtude do çabr não tem como seu desenvolvimento da noção de “ceder”. A mim,
fim primeiro oferecer um meio de sobreviver às me parece que muitos caminhos podem ser
dificuldades e injustiças. Seu cultivo e sua prática traçados a partir deste esboço inicial. Existem
são considerados simplesmente atitudes boas extensos estudos nos campos da sociologia, da
e corretas, o que se deve fazer, ao passo que o psicologia e da filosofia acerca dos temas aqui
conforto que provê em momentos de dificuldade, abordados. Cada um desses estudos, de um sem
é visto como uma “consequência secundária” número de linhas de pensamento, pode, sem
e até como uma recompensa divina. Isto posto, dúvidas, contribuir para dar mais profundidade
simplificando e secularizando a virtude do çabr, e vigor ao que proponho. Podem também levar
poder-se-ia argumentar que “perseverança, a caminhos completamente diversos deste que
estabilidade e tolerância perante as dificuldades, eu escolhi – inclusive o de descartá-lo em sua
sem queixume” são um conjunto de virtudes integralidade. De todo modo, o ingresso do
altamente valorizado em nossa sociedade. E o “ceder” em minha pesquisa de mestrado se me
“ceder” de que venho falando pode certamente mostrou útil. Não é ainda um conceito fechado,
conter todas elas. mas espero que sua apresentação neste trabalho
A postura usual de um dos homens que tenha sido suficientemente clara.
entrevistei para minha dissertação, Ian, era de Para resumir, notei que o “ceder” teria uma
evitar as queixas e o enfrentamento aberto. Ian gradação – variável de acordo com o tipo de
acreditava na “lei da atração” e sua crença em tal ocasião, por motivos sempre distintos, mas (mais
lei, em geral, parecia fazer com que tolerasse muito ou menos) facilmente observáveis. Em minha
do que poderia ser entendido como dificuldades dissertação, restringi a três domínios as ocasiões
que a vida lhe apresentava, na sociedade em examinadas, embora creia que algum grau de
que vive; no mais, ele aguardava pacientemente “ceder” está sempre presente qualquer que seja a
os eventos positivos que, dada sua atitude, situação social que se apresente: o da família, o do
deveriam lhe ocorrer. Ele apenas cede e cede, trabalho e o dos estudos (ou em locais/ contextos
e enxergar algum tipo de agência nos seus atos de estudo). Mais tarde, acrescentei o domínio das
pode ser tarefa difícil. Mas, se acompanhamos relações amorosas, no qual também acreditei ser
Mahmood, toda a atividade acima descrita, aqui possível enxergar o “ceder”. Nos relatos de meus
compreendida em termos de uma gradação do entrevistados, família e trabalho apresentaram as
“ceder” (dentro das variadas formas que toma), situações em que mais se cedia. Foi nas falas de
não é senão uma maneira de habitar as normas, Bernardo que tal ficou mais evidente. Em termos
manejando-as para garantir algum conforto e de uma gradação, o “ceder” de Bernardo variava,
sobrevivência – agência como “capacidade para na minha análise, do grau mais alto nas relações
ação criada e propiciada por relações concretas familiares ao mais baixo nas relações estabelecidas
de subordinação historicamente configuradas”. na universidade que frequentava. Com Ian, meu
segundo entrevistado, tal gradação já se tornava
Conclusões bem menos nítida.
São os feitios do “ceder” que mudam
Acredito que o que venho chamando de “ceder” drasticamente de situação para situação. Não é,
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de maneira alguma, pelas mesmas razões que se, imaginar que todas as vidas estejam em
TEORIA E CULTURA
se cede em cada uma das esferas analisadas. As negociação com as normas. Na verdade, do ponto
negociações são múltiplas – e é, provavelmente, de vista adotado para este trabalho, tal afirmativa
impossível uma sua catalogação. Pode poderia ser feita sem mal-entendido algum – tanto
parecer, assim, que graduar o “ceder” seja um quanto o fato da estreita relação com o outro ser
empreendimento vão. Em determinados casos, é condição da sobrevivência (existência) de uma
plausível que seja. Em outros, todavia, é bastante pessoa. Contudo, a desigualdade na condição de
evidente que há diferenças perceptíveis. Não precariedade entre as pessoas (BUTLER, 2015)
proponho uma regra geral que englobe todas as faz com que certos grupos tenham sua capacidade
experiências ou uma categoria analítica capaz de de sobrevivência dificultada – e, daí, desenvolvam
determinar de antemão as ações exercidas por uma maior necessidade de barganhar com as
sujeitos individuais em situações particulares normas, numa negociação que nem sempre pode
dentro de um contexto amplo. Mas, observando ser de resistência (MAHMOOD, 2006). O que
de uma perspectiva interseccional, pode ser chamo de “ceder” é, basicamente, isso. Os tipos
possível – se é que é interessante – discernir de negociação variam, porque variam os cenários
o que cede determinado sujeito em situações e os personagens. Mas alguma forma de barganha
em que aparentemente nenhuma ação é sequer pela sobrevivência, sobretudo em condições de
praticada. Quando, por exemplo, um homem precariedade maximizada, está sempre presente
trans se sujeita a um “processo de aceitação”, em algum grau.
para não cortar laços familiares, ao escrutínio
de possíveis empregadores ou toma parte em Referências bibliográficas
relacionamentos amorosos, ele se coloca em
posições potencialmente degradantes, por razões ALMEIDA, Guilherme. “‘Homens trans’:
completamente outras que um homem cis, e com novos matizes na aquarela de masculinidades?”
tal potencial presumivelmente mais elevado. In: Estudos Feministas, v. 20 n. 2, 2012, p.513-523.
Em outras palavras, ele já começa o processo
cedendo mais. O o que não é, obviamente BITTENCOURT, Renato Nunes. “Stuart
quantificável. Mas me parece que é sensível notar Hall e os signos da identidade cultural na pós-
o quanto esse o que é valioso a ambas as partes de modernidade”. In: Revista Espaço Acadêmico, v.
uma troca diádica e, assim, se se cede e o quanto 13, n. 154, 2014, p.129-138.
se cede (a gravidade da demanda, por assim
dizer) em função dele. Com efeito, pelo fato de BUTLER, Judith. Problemas de gênero:
serem trans, todos os meus três interlocutores feminismo e subversão da identidade. Rio de
passaram por situações, em circunstâncias como Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
as mencionadas, em que sua possibilidade de
ação não poderia ter sido outra que não a de um ______. Quadros de guerra: quando a vida
“ceder” elevado – porque, antes de qualquer coisa, é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização
sua própria inteligibilidade como pessoas estava Brasileira, 2016.
em jogo, na mão do outro para decidir sobre ela.
Para melhor aclarar o que estou dizendo, é ______. Relatar a si mesmo: crítica da violência
necessário lembrar aqui que o “ceder” deve ser ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
entendido como capacidade para ação pautada
pela relação do sujeito com determinado quadro CUCHE, Denys. A noção de cultura nas
normativo. Em muitos contextos, as normas ciências sociais. Bauru: Edusc, 2012.
vigentes não garantem a sobrevivência de
todos os sujeitos – nem que todos sejam sequer GIDDENS, Anthony. Modernidade e
considerados como tais. Não é impossível, diga- identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
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GOFFMAN, Erving. A representação do eu na
TEORIA E CULTURA
vida cotidiana. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
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Judicialização da saúde: uma análise sobre o direito
TEORIA E CULTURA
Resumo
O presente trabalho, através de uma metodologia teórica e explanatória, analisa o papel desempenhado
pela Constituição Federal de 1988 no cenário das políticas públicas, uma vez que consagra os direitos
sociais como direitos fundamentais, explorando-se as causas do crescente processo de judicialização
das políticas públicas no Brasil, em especial da saúde, e sua relação com o acesso à justiça. Em razão
da ampliação da atuação do Poder Judiciário, adentra-se nas discussões que permeiam o tema da
legitimidade democrática da função jurisdicional, que se difere substancialmente do ativismo judicial.
Quanto ao tema do acesso à justiça utiliza-se como norte a judicialização da saúde, em razão de sua
grande recorrência e de seu caráter individualizador. Nesse aspecto, e limitando o objeto de análise,
discute-se se os Juizados Especiais Estaduais revelam-se, em verdade, como uma ferramenta social
adequada e efetiva para a concretização desse direito constitucionalmente assegurado. Para tanto,
averigua-se a estruturação do referido órgão, com o objetivo precípuo de identificar suas dificuldades
estruturais, administrativas, procedimentais e de execução na condução dos processos de saúde nele
interpostos.
Palavras-chave: políticas públicas; judicialização da saúde; acesso à justiça; juizados especiais
estaduais.
Abstract
The present work, through a theoretical and explanatory methodology, analyzes the role played by
the Federal Constitution of 1988 in the public policy scenario, since it enshrines social rights as
fundamental rights, exploring the causes of the growing process of Judicialization of public policies
in Brazil, in particular public policies related to health, and its relationship with access to justice. Due
to the expansion of the Judiciary, it enters the discussions that permeate the subject of the democratic
legitimacy of the judicial function, which differs substantially from judicial activism. Regarding
the access to justice, the guide is the judicialization of health, due to its great recurrence and its
individualizing character. In this respect, and limiting the object of analysis, it is discussed whether
the state special courts actually prove to be an adequate and effective social tool for the realization
of this constitutionally guaranteed right. To this end, the structure of this body is verified, with the
primary objective of identifying its structural, administrative, procedural and execution difficulties
in the conduct of health processes brought in it.
Keywords: public policy; judicialization of health; access to justice; state special courts
1 Advogada. Doutoranda em Ciências Sociais pela PUC-RJ. Mestra em Ciências Sociais pela UFJF (2019), Pós-graduada
em Direito Administrativo pela Estácio (2018), Bacharela em Direito pela UFJF (2016)
2 Advogada. Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2016). Pós-graduada em Direito Processual
pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (2018).
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culminando, ainda, em um aumento expressivo
TEORIA E CULTURA
Introdução dessas atribuições ao Judiciário.
As políticas públicas são ordinariamente A judicialização das políticas públicas
definidas como ações e programas reflete que questões de cunho político e/ou social
governamentais estatais, nacionais, estaduais ou estão sendo levadas ao Judiciário para que este
municipais, com a participação direta ou indireta conceda decisões definitivas por meio de suas
de entes públicos ou privados, desenvolvidas instâncias, capazes de assegurar a efetivação dos
para concretizar os direitos sociais, ligados à direitos previstos na Constituição. Nesse sentido,
cidadania, que estão previstos na Constituição traça-se uma breve diferenciação entre ativismo
Federal. Na atualidade, o reconhecimento e a judicial e judicialização, em razão da comum
proteção dos direitos do homem e, em especial, confusão existente entre tais temas, e se investiga
dos direitos sociais, estão na base de diversas os limites referentes à legitimidade democrática
Constituições democráticas modernas. Nota-se, do Judiciário na concretização dos direitos sociais,
dessa maneira, que essas políticas assumiram, ao perpassando pelos princípios constitucionais que
longo do tempo, grande importância na vida dos circundam o tema, que, ressalte-se, ainda é muito
indivíduos e no desenvolvimento do Estado. discutido e controverso.
As exigências de novos direitos originam- Em relação à judicialização das políticas
se, mormente, a partir de novos anseios e públicas e a questão do acesso à justiça, utiliza-se
necessidades, em razão das alterações das como norte a judicialização da saúde, em razão
condições sociais e quando o desenvolvimento do seu caráter individualizador, e por ser este um
técnico permite satisfazê-los. Nesse sentido, caso corriqueiramente presente nas demandas
vislumbra-se que o ordenamento jurídico judiciais pra tutelar um direito social, qual seja,
brasileiro seguiu essa tendência, uma vez que o direito à saúde. Discutir-se-á se a implantação
os direitos sociais estão fortemente presentes dos juizados especiais para a tutela do direito
na Constituição Federal de 1988. Em face do fundamental à saúde oferta e viabiliza o acesso
valor que as políticas públicas representam para à justiça, ou se a simplificação, racionalização e
a efetivação dos direitos sociais, delineia-se a demais princípios inerentes a essas instituições
respeito da função da CRFB/881 na agenda das concorrem em flagrante violação à garantia
políticas públicas brasileiras, destrinchando a constitucional do acesso a esta.
conjuntura em que foi elaborada e atentando-
se quanto aos problemas enfrentados para sua As políticas públicas brasileiras e o papel da
efetivação. Constituição Federal de 1988
Tendo em vista o desenvolvimento de um
progressivo processo de judicialização da política Conforme Maria Paula Bucci (2002,
e das relações sociais no Brasil em um contexto p. 38), as políticas públicas são “arranjos
constitucional fortemente marcado pela previsão institucionais complexos, que se expressam em
de direitos sociais, passa-se a analisar o tema da estratégias ou programas de ação governamental
judicialização das políticas públicas brasileiras. e resultam de processos juridicamente definidos
Isso, pois, é insuficiente a mera convicção da para a realização de objetivos politicamente
necessidade de novos direitos, mesmo que com determinados, com o uso de meios à disposição
previsão normativa, se inexistirem meios para a do Estado.” As políticas públicas enquanto
sua efetividade. Dessa maneira, observa-se que conjuntos de ações, programas e decisões do poder
para sua realização prática, os direitos sociais público, visam assegurar ou promover direitos de
exigem a ampliação dos poderes do Estado, cidadania assegurados na Constituição, sendo
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elaboradas, ordinariamente, em meio a conflitos da Defensoria Pública ao patamar de instituição
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As causas da crescente judicialização das Judiciário ocorre, principalmente, em razão da
TEORIA E CULTURA
relações sociais necessidade de concretizar os direitos e valores
da democracia, bem como em face de uma
A Assembleia Nacional Constituinte de espécie de crise das instituições democráticas,
1988 optou por um Estado Social Democrático que tem gerado um sentimento de descrédito
de Direito, de modo que com a promulgação da com o sistema político. O alargamento da
referida carta constitucional foi implementado atuação do Poder Judiciário ocorre também
um Estado Social e Constitucional, exigindo como uma maneira de evitar o desgaste político
do Estado uma intervenção maior nas relações com questões delicadas, referente a assuntos
sociais. A Constituição de 1988 passou a que não encontram unanimidade na sociedade,
desempenhar papel de centralidade no direito transferindo para o Judiciário o poder de decisão
contemporâneo e no sistema jurídico. Nesse (SOARES, 2010).
cenário, o Poder Judiciário, que até então era Verifica-se no Brasil o desenvolvimento
considerado neutro politicamente, passa a ganhar de um processo crescente de judicialização da
atribuições de destaque, assumindo funções política e das relações sociais, que, de acordo
inéditas. com Luís Roberto Barroso (2008), compreende a
Tal poder tem seus limites expandidos, ampliação dos poderes do Judiciário, em prejuízo
uma vez reconhecida a importância de um dos demais poderes, Legislativo e Executivo.
Judiciário autônomo, capaz de concretizar os Esse fenômeno, de forma ampla, expressa que
valores democráticos, assegurando a efetividade consideráveis questões referentes ao ponto de
dos direitos constitucionais. Contudo, tal poder vista político ou social estão sendo levadas ao
depara-se com a complexa tarefa de adaptar Poder Judiciário no intuito de obter decisões
sua estrutura organizacional e seus critérios de definitivas por seu intermédio.
interpretação diante de situações inéditas nas A esse respeito, importa esclarecer as
relações sociais, “fruto do desenvolvimento diferenças existentes entre o ativismo judicial e o
urbano-industrial que fez surgir uma sociedade processo de judicialização, visto o entrelaçamento
marcada por profundas contradições econômicas, dos temas e os comuns equívocos e confusões
que exige cada vez mais tutelas diferenciadas para existentes no tratamento desses assuntos.
novos direitos sociais e a proteção de interesses Segundo Roberto Barroso (2008), o ativismo
difusos e coletivos” (RIBAS; SOUZA FILHO, judicial se instala em situações de retração do
2014, p. 37). Poder Legislativo, de modo a impedir que as
Segundo Ferraz Júnior (1994), em um demandas sociais sejam atendidas de maneira
Estado Social Democrático de Direito a atividade insatisfatória. Para ele, “a ideia de ativismo
do Poder Judiciário deve estar em consonância judicial está associada a uma participação mais
com os propósitos do próprio Estado, não sendo ampla e intensa do Judiciário na concretização
mais possível se falar na neutralidade de sua dos valores e fins constitucionais, com maior
atuação. Espera-se do Poder Judicial uma atuação interferência no espaço de atuação dos outros
mais proativa, com o intuito de dar validade e dois Poderes” (BARROSO, 2008, p.4). Assim,
efetividade aos fins previstos na Carta Magna. o ativismo judicial pode ser definido como um
Assim, o Judiciário encontra-se, na atualidade, modo específico e proativo do Poder Judiciário
constitucionalmente vinculado à política estatal de interpretar a Constituição, expandindo,
(FERRAZ JÚNIOR, 1994). muitas das vezes, seu sentido e seu alcance.
A despeito da seriedade dos problemas Esse tipo de atuação, sob um ponto de
sociais e econômicos enfrentados na atualidade, vista mais garantista, pode ser considerado um
as políticas públicas brasileiras têm assumido importante elemento no desenvolvimento dos
uma perspectiva tão somente assistencialista. direitos e garantias fundamentais. Contudo,
Desse modo, o alargamento da atuação do Poder também sofre severas críticas, dentre elas, a
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descabida interferência do Poder Judiciário de poder em demandas não só entre indivíduos
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na esfera dos demais, ofendendo, a priori, a privados, como também entre estes e a esfera
separação dos poderes, tendo em vista a atuação pública.
de magistrados e Tribunais sem a provocação Dessa forma, diante da ineficiência das
necessária. Nesse sentido estão as ponderações políticas públicas que visem assegurar o acesso
de Elival da Silva Ramos (2015) que considera à saúde aos cidadãos de maneira efetiva, estes
que o ativismo judicial ultrapassa as linhas recorrem ao Judiciário, fazendo uso de outra
democráticas da função jurisdicional, tanto no garantia fundamental, qual seja, o acesso à justiça,
que se refere à função legislativa quanto à função para, só então, obterem a prestação do bem da vida
administrativa, ocorrendo uma descaracterização pretendido. De acordo com Mauro Cappelletti e
da função típica do Poder Judiciário. Bryant Garth (2002, p. 12-13), considerados os
A judicialização, em contrapartida, maiores expoentes doutrinários sobre o tema do
corresponde à atuação do Poder Judiciário na “acesso à justiça”, tal direito passa a “ser encarado
resolução de questões de grande repercussão como o requisito fundamental – o mais básico
política ou social, ordinariamente pertencentes dos direitos humanos – de um sistema jurídico
às instâncias políticas tradicionais, tais como o moderno e igualitário que pretenda garantir, e
Congresso e o Executivo. Mas, ao contrário do não apenas proclamar os direitos de todos”.
ativismo, na judicialização o Poder Judiciário Assim sendo, o acesso à justiça ao
é devidamente convocado a se manifestar, ganhar proteção constitucional como um direito
fazendo-o nos limites dos pedidos formulados. humano e essencial ao completo exercício da
Uma vez preenchidos os requisitos de cabimento, cidadania, concebendo aos indivíduos não
o Tribunal não pode se eximir de conhecer ou somente o acesso ao Judiciário, mas também ao
não as ações, devendo pronunciar-se sobre o aconselhamento, à consultoria e à pacificação
mérito das mesmas. social; somados à evolução e complexidade das
Também é importante considerar relações sociais, bem como à ineficiência das
outro aspecto contributivo ao fenômeno da políticas públicas, foram fatores contributivos
judicialização, qual seja, o compartilhamento para o atual contingenciamento do Judiciário
pelo Poder Político de obrigações que como um todo, prejudicando, por consequência,
preliminarmente lhes seriam competentes, em o processamento das demandas de saúde, como
especial no que se refere à efetivação das políticas será aduzido oportunamente.
públicas ao direito à saúde. A redemocratização Consubstanciando os entendimentos
brasileira, ao expandir a gama de direitos e aclarados, Giovanna Ribas e Carlos Souza Filho
garantias sociais na Carta de 1988, também foi (2014) aduzem que inúmeras causas explicam o
responsável pela ampliação do acesso à justiça fenômeno da judicialização de questões políticas
e, consequentemente, pelo aumento da própria e sociais. Algumas delas revelam uma tendência
atuação do Judiciário. Isso, pois proclamou o mundial, outras, por outra perspectiva, são
acesso à justiça como um direito fundamental, oriundas do sistema institucional brasileiro.
prevendo ainda outras garantias, tais como No Brasil, esse aumento apresenta maiores
devido processo legal, contraditório, ampla proporções em razão da redemocratização do
defesa, assistência judiciária gratuita e duração país, da constitucionalização abrangente2 e pelo
razoável do processo, viabilizando, com isso, o sistema de controle constitucional adotado3
crescente contato dos cidadãos com essa esfera (BARROSO, 2008).
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Nessa toada, o processo de jurisdicional na tutela desses direitos.
TEORIA E CULTURA
redemocratização, ao reavivar na sociedade o O princípio da separação dos poderes foi
espírito de cidadania, alargando a atuação do essencial para a constituição do Estado Moderno,
Ministério Público, devolvendo à magistratura tanto para definir sua estrutura quanto para a sua
suas prerrogativas, garantias, e demais fatores, organização de poder, evitando a concentração
fortaleceu o Poder Judiciário, aumentando a de atribuições em apenas um deles. Segundo
demanda por justiça social. A sociedade brasileira, referido princípio a função típica do Judiciário
mais arguta e informada, passou a demandar consiste na interpretação e respeito às leis,
por mais proteção e garantia de seus direitos. resolvendo conflitos por meio da observação
Ademais, a constitucionalização abrangente das normas jurídicas. Outra função é resguardar
trouxe para o centro da CRFB/88 conteúdos que os direitos fundamentais dos indivíduos. Desse
eram de decisão exclusiva da política majoritária, modo, nenhuma lesão ou ameaça a direitos,
tendo em vista a preocupação do Constituinte de especialmente os consagrados na Constituição,
atribuir o máximo de garantias na nova Carta. poderá ser afastada da apreciação do Poder
Portanto, o fenômeno da judicialização não é Judiciário, sendo este poder o guardião da
uma escolha do Judiciário, uma vez que deriva do Constituição e do ordenamento jurídico como
modelo institucional vigente adotado e de outros um todo.
fatores conjunturais, conforme demonstrado. Embora constitua um fundamento
do constitucionalismo clássico, e dada a sua
A ampliação da atuação do Poder Judiciário e importância histórica, o Princípio da Separação
sua legimitidade democrática dos Poderes já passou por modificações que
atenuaram sua rigidez. Para Paulo Bonavides
A Carta de 1988 elencou um extenso rol (1993), a separação de poderes é uma técnica
de direitos e garantias fundamentais, em especial em declínio, pois pautada em razões de
os direitos sociais. Conquistou força normativa, formalismo na proteção de direitos individuais,
mas pecou em efetividade - embora seu art. 5º, §1º em conformidade com o liberalismo clássico.
aduza que tais normas possuam aplicabilidade Conforme o constitucionalismo passou a se
imediata -, vez que a mera positivação não atentar com o seu conteúdo, e não apenas com
traduz que os direitos fundamentais, por si a forma, abarcando novas esferas da realidade
só, transformem-se em realidades jurídicas social, tal princípio passou a ter interesse
efetivas. O que se vislumbra é a inércia do Poder secundário, deixando de corresponder ao sentido
Legislativo na elaboração de leis e diretrizes que da organização democrática vigente.
garantam a tutela desses direitos, e do Poder Na atualidade, de acordo com o art. 2º,
Executivo, na execução e implementação de tais da CRFB/88, o princípio deve ser compreendido
previsões, levando a um crescente movimento com um sistema de freios e contrapesos, como
de judicialização e na ampliação da atuação do forma de equilíbrio em certos momentos, pois
Poder Judiciário. os poderes devem ser harmônicos entre si, e de
Torna-se necessário que as normas interferência noutros. Tal princípio, conforme
constitucionais deixem de ser vistas como José Afonso da Silva (2009, p. 110),
integrantes de um documento meramente não configura mais aquela rigidez de outrora. A
político, passando a desfrutar de aplicabilidade ampliação das atividades do Estado contemporâneo
direta e imediata por tribunais e magistrados. Os impôs nova visão da teoria da separação de
direitos constitucionais e os direitos sociais em poderes e novas formas de relacionamento entre
particular, convertem-se em direitos subjetivos, os órgãos legislativo e executivo e destes com o
comportando tutela específica acionável judiciário, tanto que atualmente se prefere falar em
judicialmente. Para tanto é preciso investigar a ‘colaboração de poderes’ [...] cabe assinalar que nem
respeito da legitimidade democrática da função a divisão de funções entre os órgãos do poder nem
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sua independência são absolutas. Há interferências, Para o autor (1962), além de ser
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1994, p. 19). É necessário um redimensionamento discrepância entre a cobertura real e a teórica
TEORIA E CULTURA
do papel do Poder Judiciário para que se alcance (MARTINS, 2008). As causas dessa situação
a eficácia das normas constitucionais, até mesmo decorrem dos mais variados fatores, mas, em
quando isso envolver a efetivação de direitos suma, “os problemas de ordem econômico-
sociais por meio da judicialização de políticas financeira associados à efetivação ou eficácia
públicas. A Constituição deve ser compreendida social dos direitos fundamentais sociais podem ser
sob um ponto de vista construtivista, devendo o reconduzidos à alegada insuficiência de recursos”
intérprete, na figura do Poder Judiciário, buscar (DUARTE, 2011, p. 143-144). Para oferecer tais
sempre a solução que produza o melhor resultado serviços de saúde aos indivíduos, o Estado precisa
para a sociedade, estando, dessa maneira, além de dispor de verbas satisfatórias para tanto,
democraticamente legitimado. elaborar um planejamento adequado.
Em detrimento da previsão constitucional
Uma análise do caso da judicialização da saúde do direito à saúde, igualitário e universalizado,
e a garantia do acesso à justiça pelo qual o Poder Público deve concretizar
sua execução através de políticas públicas e
Com a promulgação da Constituição demais serviços executados pelos seus órgãos,
de 1988, pela primeira vez os direitos sociais na maioria das vezes os cidadãos acabam
são dispostos no rol dos direitos fundamentais, recorrendo ao Judiciário na busca da efetivação
institucionalizando-os, e o direito à saúde é de seus direitos, que não são oferecidos ou o são
elevado ao status de direito social fundamental. com má qualidade. Nesse sentido, o fenômeno da
Para tornar mais eficazes esses direitos, a CRFB/88 judicialização encontra-se diretamente atrelado à
dispõe em seu bojo vários dispositivos tratando ampliação do acesso à justiça e do aumento do
da matéria, como a previsão de recursos para a rol de direitos sociais, frutos da Constituição de
seguridade social, com aplicação obrigatória nas 1988 que, ao prever em seu art. 5º, inciso XXXV
ações e serviços de saúde. “Até a Constituição que “a lei não excluirá da apreciação do Poder
de 1988, nenhuma outra Constituição havia Judiciário lesão ou ameaça a direito” consagrou
se referido expressamente à saúde como parte o acesso à justiça como um direito que deve ser
integrante do interesse público e como princípio- garantido e efetivado a todos os cidadãos, como
garantia em benefício do indivíduo.” (MARTINS, relatado alhures.
2008, p. 47). Porém, deve-se ressaltar que o direito
O núcleo dos direitos sociais, no atual ao acesso à justiça deve ser compreendido não
sistema constitucional brasileiro, é constituído somente como a possibilidade de demandar, mas
pelo direito ao trabalho e à seguridade social, também de obter a devida prestação jurisdicional,
gravitando em torno deste outros direitos sociais, satisfazendo-se as pretensões materiais dos
dentre eles, o direito à saúde. De acordo com o indivíduos. Nesse sentido, Mauro Cappelletti
art. 196 da CRFB/88, a saúde pressupõe políticas e Bryant Garth (2002, p. 12) elucidam que tal
públicas sociais e econômicas que busquem “à expressão serve para determinar duas finalidades
redução do risco de doença e de outros agravos e pilares do sistema jurídico, quais sejam, (I)
ao acesso universal e igualitário às ações e serviços deve o sistema ser igualmente acessível a todos,
para sua promoção, proteção e recuperação” (II) produzindo, ainda, resultados que sejam
(SOARES, 2010, p. 15). Além disso, do artigo 198, individual e socialmente justos.
podemos abstrair que a saúde é “direito público A judicialização da saúde traduz-se na
subjetivo oponível ao Estado” (MARTINS, 2008, busca do Poder Judiciário como alternativa para
p. 47). a efetivação e alcance do direito social à saúde,
Entretanto, os meios adotados nem em especial para “obtenção do medicamento ou
sempre têm conseguido, na prática, dar cobertura tratamento ora negado pelo SUS, seja por falta
de saúde a todos os indivíduos, existindo de previsão na RENAME (Relação Nacional de
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Medicamentos), seja por questões orçamentárias” nos recursos públicos, comprometendo a sua
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tanto, investiga-se a judicialização da saúde nos enfrentar o formalismo, instituindo como base
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Juizados Especiais, concentrando-se o estudo um procedimento informal, célere e simples,
nas hipóteses em que os indivíduos se valem do voltado sempre que possível, à conciliação. Nesse
instituto do jus postulandi, como também nos contexto, observa-se que os Juizados Especiais
casos em que recorrem ao apoio da Defensoria possuem arcabouço para viabilizar o acesso da
Pública para tanto. Busca-se, dessa forma, sociedade às demandas sociais, inclusive no que
indagar em que medida os Juizados Especiais se refere a algumas políticas públicas.
tem sido capazes de promover a verdadeira tutela Atrelado ao acesso à justiça encontra-se o
jurisdicional no que diz respeito ao direito à acesso à saúde, direito que não traduz a simples
saúde, e se esta se dá de forma acessível a todos, utilização do serviço de saúde, abarcando ainda
com resultados justos e aptos a promover o acesso uma visão voltada para a justiça social e para a
e efetivação dos direitos sociais. equidade. Isso se deve às mudanças feitas não
apenas no setor da saúde, mas em toda a área
O acesso à saúde nos Juizados Especiais social, pela ordem jurídica brasileira a partir da
Carta de 1988. A saúde, elevada ao patamar de
Em virtude das mudanças sociais, direito fundamental da pessoa humana, é então
econômicas e políticas, o procedimento comum considerada como um direito de todos e dever
tornou-se um instrumento inadequado para do Estado, a ser garantido através de políticas
a tutela de determinados interesses, inclusive sociais e econômicas visando à redução do
no que tange aos pleitos referentes à tutela à risco de doença e de outros agravos. Ademais,
saúde, haja vista o formalismo exacerbado, o a Constituição deixou claro que o acesso às
alto custo processual e a demora na resolução da ações e serviços para a promoção, proteção e
lide. Por tais razões, o constituinte foi instigado recuperação da saúde deveria ser universal,
a buscar uma forma diferenciada de prestação integral e igualitário.
jurisdicional, em que o juiz pudesse mediante Apesar de todas as responsabilidades
compressão procedimental atender ao clamor conferidas aos entes federados na área da saúde,
pela celeridade, instituindo, assim, a criação dos tais atribuições não são suficientes para sanar
Juizados Especiais. as dificuldades que a população brasileira já
Além disso, fez-se necessário o vinha enfrentando para ter concretizado, na
fortalecendo e a reestruturação tanto do prática, o direito fundamental. Dessa forma, os
Ministério Público, como órgão essencial à indivíduos passam a requerer, judicialmente, a
função jurisdicional do Estado (arts. 127, caput, assistência à saúde que lhes tenha sido negado
e 129, CF/88), quanto da Defensoria Pública, ou conferido de forma insuficiente pelas políticas
também como instituição fundamental à função públicas prestadas nos postos de saúde, hospitais,
jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a farmácias populares e demais órgãos, dando
orientação jurídica, a promoção dos direitos ensejo, assim, à já aclamada “judicialização da
humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e saúde”.
extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, Como uma solução para viabilizar e
de forma integral e gratuita (art. 134 e parágrafo facilitar o acesso à saúde, os Juizados Especiais
único, CF/88). adquiriram competência para as demandas
Os Juizados Especiais Cíveis Estaduais relacionadas à saúde, limitadas ao valor de
descendem dos Juizados Especiais de Pequenas sua alçada. Importante salientar, no entanto,
Causas, criado pela Lei n. 7.244, de 7 de novembro que dentre os principais princípios da referida
de 1984. São regulamentados pela Lei 9.099/95, instituição, encontra-se o do jus postulandi,
cujos artigos 3º e seguintes versam acerca de compreendido como uma faculdade dada à
sua competência. O diploma legal dos Juizados parte de poder demandar sem o patrocínio de
Especiais, a partir da sua principiologia, visou um advogado. Tal princípio, no entanto, não
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deve ser aplicado de maneira estanque, uma vez sob supervisão do Juiz Coordenador do foro e do
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que exige uma postura Estatal positiva, que se Escrivão. No entanto, devido à elevada demanda
incline no sentido de promover meios materiais processual, estes não conseguem, no mais das
e instrumentos processuais que efetivamente vezes, supervisionar e analisar detidamente todos
assegurem a prestação jurisdicional socialmente os processos e atuações daqueles.
justa aos postulantes, possibilitando a devida Deve-se considerar ainda que não apenas
apreciação do direito por eles pretendido. a hipossuficiência econômica como também a
A esse respeito, Mauro Cappelletti e jurídica atinge a população. Nesse caso, poderá
Bryant Garth aduzem que os obstáculos criados o indivíduo recorrer ao aparelho judiciário, mas
pelo sistema jurídico à tutela jurisdicional sem saber ao certo reconhecer a existência de
demonstram-se atingir, em maior pronúncia, as um direito juridicamente exigível, bem como os
pequenas causas e os postulantes individuais, e meios processuais adequados para a sua tutela.
que a vontade política de transposição daqueles, Desse modo, as peças realizadas a termo podem
não pode, no entanto, se dar de forma isolada. deixar de conter informações, pedidos ou defesas
Tendo em vista serem inter-relacionados, tentar que façam parte da pretensão do indivíduo,
solucionar um problema específico e deixar outros restando este prejudicado.
de lado pode resultar apenas em uma aparente As comuns falhas nas exordiais
melhoria, tendo em vista o aperfeiçoamento elaboradas sem o intermédio de um patrono vão
de uns, mas o agravamento dos demais. Nesse desde o erro grosseiro de português, passando
sentido, pela ausência de juntada de documentação capaz
de se comprovar o alegado – retardando ou até
[...] uma tentativa de reduzir custos é simplesmente mesmo inviabilizando o julgamento -, até a falta
eliminar a representação por advogado em certos de pedidos, como por exemplo, de concessão de
procedimentos. Com certeza, no entanto, uma liminar nos casos de extrema urgência. Da mesma
vez que litigantes de baixo nível econômico e forma, na peça contestatória e na impugnação,
educacional provavelmente não terão a capacidade verifica-se a ausência de defesa de determinadas
de apresentar seus próprios casos, de modo eficiente, alegações realizadas pela parte contrária, pois
eles serão mais prejudicados que beneficiados por comumente redigidas com conteúdo genérico.
tal “reforma”. Sem alguns fatores de compensação, Nesse sentido, quanto ao direito de demandar
tais como um juiz muito ativo ou outras formas da parte nos Juizados Especiais, Paulo Cezar
de assistência jurídica, os autores indigentes Pinheiro Carneiro (2007, p.180) assevera que “a
poderiam agora intentar uma demanda, mas lhes improvisação é a tônica nesse campo: estagiários
faltaria uma espécie de auxílio que lhes pode ser e serventuários, em regra não adequadamente
essencial para que sejam bem sucedidos. Um estudo preparados, exercem funções de orientação
sério do acesso à Justiça não pode negligenciar o jurídica, bem como elaboram a petição inicial,
inter-relacionamento entre as barreiras existentes sem qualquer supervisão.”.
(CAPPELLETTI; GARTH, 2002, p. 29). Importante ressaltar ainda que erros
processuais são passíveis de ocorrer mesmo que
Essa problemática apresentada pelos a parte possua advogado constituído nos autos.
autores pode ser claramente evidenciada no No entanto, na ausência de procurador, inexistirá
cotidiano forense. Na prática dos Juizados a garantia de que, na hipótese de ocorrer ação ou
Especiais, por exemplo, não tendo a parte omissão no exercício da advocacia, ainda restará a
condições de arcar com a assistência de advogado, possibilidade de representar administrativamente
ou quando simplesmente opta por demandar o causídico responsável perante a Ordem dos
sozinha, as peças processuais são comumente Advogados do Brasil (artigo 17, Lei 8.906/94).
redigidas a termo por estagiários de Direito ou Isso se deve ao fato de que, quando o indivíduo
serventuários da Justiça, no Cartório do juízo, assina a pretensão reduzida a termo ao demandar
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fazendo uso do jus postulandi, fica ciente de que a sem riqueza de detalhes e é com base nelas que os
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demanda correrá por sua conta e risco. magistrados costumam conceder liminarmente
A advocacia, por ser uma atividade de uma medida terapêutica. Assim o fazem com
meio e não de fim, rechaça qualquer promessa a finalidade de evitar maiores prejuízos pela
de resultado. Não obstante, constitui dever demora na prestação jurisdicional, diante da
do causídico a informação ao seu cliente, de relevância do bem da vida em discussão. No
forma clara, objetiva e inequívoca, a respeito mesmo sentido, a ratificação, ao final, da liminar
dos eventuais riscos e consequências da sua concedida e as sentenças, não raras vezes, são
pretensão. Do contrário, poderá responder pelos proferidas sem que a devida, exigida e suficiente
atos em que, no exercício profissional, tiver etapa probatória seja realizada.
praticado com dolo ou culpa, podendo ainda o Desse modo, embora resultado de boa
cliente prejudicado representá-lo por imperícia intenção legislativa, a adoção pelos Juizados
e pleitear respectiva indenização (artigo 32, Especiais de competência na área da saúde, da
Lei 8.906/94). Nesse sentido, constata-se que forma como atualmente se encontra, perpetra
garantir o jus postulandi ao postulante comum, práticas que afastam a jurisdição do conceito
em inobservância do sistema jurídico como de verdadeiro ato de justiça, clamando por
um todo, não transpõe as barreiras do acesso à medidas que propiciem melhorias em todo o seu
Justiça, podendo, até mesmo, agravá-las, haja aparato. Dentre elas, a primeira das propostas
vista privilegiar o acesso formal em detrimento vislumbradas é direcionada às políticas públicas
do material. de uma forma geral, objetivando refrear o
Insta ressaltar, também, que os Juizados processo de judicialização crescente, advindo da
foram criados prezando pela simplicidade ineficiência/ ausência das políticas estatais. Assim,
e celeridade, não permitindo a normativa deve o Estado repensar suas políticas públicas,
da instituição que os postulantes realizem bem como sua administração e contenção de
a mesma produção de prova admitida no gastos, não sendo suficiente a reserva de recursos
procedimento comum. Nesse contexto, nasce para o atendimento a mandados judiciais.
outra problemática. Os casos mais complexos, Em seguida, defende-se o destaque
mas que se enquadram no valor de alçada, são para a assistência judiciária gratuita, mediante
julgados pelo procedimento especial, mesmo contraprestação do Poder Público. A demanda no
tendo o magistrado dificuldade decisória, haja Judiciário é crescente, não possuindo os poucos
vista a escassez de provas. Lado outro, os casos Defensores Públicos condições de desempenhar
mais simples, que não requerem forte análise com o devido zelo todos os procedimentos a
probatória ou revelem alta complexidade, apenas eles inerentes pela profissão. Imperioso se faz,
pelo fato de extrapolarem o valor de 40 (quarenta) deste modo, um emergente aparelhamento da
salários mínimos, são julgados pela justiça Defensoria Pública, somado à instauração de
comum, através do procedimento ordinário, concursos públicos que ampliem o número de
mais lento e oneroso. Consubstancia-se, assim, vagas tanto de Defensores quanto de serventuários
uma incongruência legislativa, haja vista que as assistentes, e impliquem na consequente
causas menos complexas não se confundem com nomeação, posse e exercício da profissão por
as causas de menor valor, pois não serão estas estes. No mesmo sentido, a terceira medida
necessariamente simples, tampouco singelas e revela a necessidade do aumento no número de
irrelevantes. nomeações de defensores dativos, para atuação
Ademais, tem-se que a grande maioria supletiva, mediante devida, justa e temporária
dos processos de saúde instaurados nos contraprestação daqueles profissionais por parte
juizados possuem pedidos de tutela de urgência do Poder Público.
e apresentam, como lastro probatório, uma Como a ampliação no número de
prescrição médica elaborada de forma simples, Defensores Públicos e de nomeações de
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advogados dativos pode resultar em um governamental reflete-se no grande número de
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circunstâncias estritamente envoltas a ela, como
TEORIA E CULTURA
também demanda uma melhor distribuição ARANTES, Rogério Basto; COUTO, Cláudio
de renda, fortalecimento da educação e Gonçalves. Uma constituição incomum. In:
conscientização social, estruturação urbana e CARVALHO, Maria Alice Resende de; ARAÚJO,
rural, dentre vários outros fatores a ela conexos. Cícero; SIMÕES, Júlio Assis (orgs.). A constituição
A partir do momento em que estas de 1988: passado e futuro. São Paulo: Editora
políticas, direta ou indiretamente relacionadas à Hucitec, 2009. p. 17-51.
saúde, não são implementadas, ou o são de forma
ineficiente, os indivíduos necessitam utilizar BARROSO, Luís Roberto. “Da falta de
outra garantia fundamental para que consigam efetividade à judicialização excessiva: direito à
alcançar o bem da vida pretendido, recorrendo, saúde, fornecimento gratuito de medicamentos
assim, ao acesso à justiça, fenômeno conhecido e parâmetros para a atuação judicial”. Revista
como judicialização da saúde. Denota-se, assim, Interesse Público, Belo Horizonte, n. 46, p. 31-61,
que o fenômeno da judicialização, em especial da 2007.
judicialização das políticas públicas, não foi uma
escolha do Judiciário, tendo derivado do modelo _____________________. “Judicialização,
institucional vigente adotado e de outros fatores Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática”.
conjunturais, conforme elucidado. Revista Consultor Jurídico, 2008. Disponível
Visando uma maior efetivação da saúde, em: https://www.conjur.com.br/2008-dez-22/
os Juizados Especiais adquiriram competência j u d i c i a l i z a c a o _ at i v i s m o _ l e g it i m i d a d e _
para as demandas relacionadas à matéria, democratica?pagina=4. Acesso em: 09 abr. 2018.
limitadas ao valor de sua alçada. Nesse sentido,
embora fruto de boa intenção legislativa, ainda __________________. “Neoconstitucionalismo
existem barreiras que inviabilizam o pleno e e constitucionalização do Direito: O triunfo tardio
efetivo acesso à justiça pelos cidadãos nessas do Direito Constitucional no Brasil”. Revista
instituições. A crescente judicialização no Jus Navigandi,2005. Disponível em: https://jus.
âmbito dos Juizados Especiais, especialmente com.br/artigos/7547/neoconstitucionalismo-e-
quanto à tutela do direito fundamental à saúde, constitucionalizacao-do-direito. Acesso em: 13
demanda otimização tanto das políticas públicas de abr. 2018.
desenvolvidas e ofertadas pelo Estado, quanto da
estrutura, organização e administração daquela BICKEL, Alexander. The Least Dangerous
instituição, bem como de seus órgãos auxiliares. Branch: the Supreme Court at the bar of politics.
Tais medidas revelam-se necessárias para que os New Haven & London, 1962.
indivíduos possuam chances ainda maiores de
obterem a efetivação de suas demandas, evitando- BOBBIO, Noberto. A era dos direitos. Tradução
se o descrédito na justiça e o agravamento da de Carlos Nelson Coutinho; apresentação de
situação, resultante, via de regra, da inexistência Celso Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.
ou insuficiência das políticas públicas, o que
contraria os preceitos sociais e garantistas da BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado
Constituição 1988. Social. Belo Horizonte: Del Rey, 1993.
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TEORIA E CULTURA
A colonialidade do poder e suas subjetividades
Bruna Soraia Ribeiro Maia1
Vico Dênis Sousa de Melo2
Resumo
No presente artigo propomos expor as variadas vertentes do eurocentrismo e de que maneira ele se
coloca em nosso cotidiano influenciando nosso modo de ser, de pensar e agir, a partir das abordagens
de autores descoloniais, como Quijano (2005), Fanon (2008), Mignolo (2008), Mama (2010), Cunha
(2012) e Crenshaw (2004). Intentamos uma reflexão acerca desses autores e das explicações que
propõem para nos fazer compreender como a as influências do período colonial ainda são dominantes
mesmo após o seu fim e a independência dos países colonizados, buscando ressaltar como os padrões
coloniais são impostos a nós de maneira naturalizada sem que tenhamos um olhar crítico sobre esse
processo. Como base fundamental para o desenvolvimento deste trabalho utilizamos o conceito de
colonialidade do poder, cunhado por Quijano (2005).
Abstract
In this paper, we propose to expose the various aspects of Eurocentrism and how it appears in our
daily lives, influencing our way of being, thinking and acting, based on the approaches of decolonial
authors such as Quijano (2005), Fanon (2008), Mignolo (2008), Mama (2010), Cunha (2012) and
Crenshaw (2004). We intended to develop a reflection on these authors and their explanations to
make us understand how the influences of the colonial period are still dominant, even after its end
and the independence of the colonized countries, seeking to emphasize how the colonial standards
are imposed on us in a naturalized way, without any critical view of this process. As a fundamental
basis for the development of this work, we used the concept of coloniality of power, designed by
Quijano (2005).
Introdução
A partir das reflexões dos autores e das autoras descoloniais: Quijano (2005), Fanon (2008),
Cunha (2012), Crenshaw (2004) e Ballestrin (2013) , é possível afirmar que a dominação colonial
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não se encerrou com a independência dos países Discussão
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consequentemente também seus traços fenotípicos, o colonizador e o colonizado, o civilizado e o
TEORIA E CULTURA
bem como suas descobertas mentais e culturais. primitivo. Nesse sentido, o autor afirma que “O
Desse modo, raça converteu-se no primeiro critério propósito da descolonização e do movimento
fundamental para a distribuição da população anticolonialista poder-se-ia epilogar numa única
mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura palavra que a possibilitou: a abertura do mundo”
de poder da nova sociedade. Em outras palavras, (MBEMBE, 2014, p. 58, grifo do autor).
no modo básico de classificação social universal da O filósofo camaronês explica que essa
população mundial. (QUIJANO, 2005, p. 118). abertura do mundo se trata de reconhecer
como ser pertencente ao mundo e protagonista
O conceito de raça é o pressuposto que dele, refere-se ao aparecimento do novo. Esse
legitima todas as formas de dominação pela é o cerne do pensamento anticolonialista e da
colonialidade sobre os povos colonizados. descolonização. A intenção é a de validar e
Quijano (2005) destaca que o colonialismo tornar visível toda a cultura e o conhecimento
colocou a Europa como centro do mundo, criando do indivíduo colonizado, fazendo-o perceber-se
um eurocentrismo que surgiu com a colonização como dono de si e como parte do mundo. Para
e permanece até os dias atuais, caracterizado conseguir sair desta situação subalternidade é
como marca de poder hegemônico. A partir necessário desvencilhar-se do aprisionamento
dessas bases criadas na colonização, a população caudado pelo conceito de raça.
das Américas e do mundo foi classificada nesse
novo padrão de poder europeu. Padrão que é A naturalização do conceito de raça e o seu
naturalizado por todos e cria identidades novas, impacto sobre os povos colonizados
hierarquias, papéis sociais. Lugares que antes
eram definidos geograficamente passam a ser Como já exposto, segundo Quijano (2005)
definidos através da classificação de raça. o conceito de raça foi o fator principal de
Achille Mbembe (2014) ao falar dos modelos legitimação da dominação dos colonizadores
de racismo na França no contexto do século XIX, sobre os colonizados. Partindo desse pressuposto,
coloca que esta realidade estava completamente compreendemos o que discute Fanon (2008)
imbricada à realidade da época. Dentre os ao abordar a naturalização dessa inferioridade
fatores principais destaca a colonização, a criada através do conceito de raça pelos povos
industrialização e ascensão da família burguesa, colonizados. O autor expõe os modos de vida
que fizeram eclodir as diferenças em geral e e de costumes dos colonizados na perspectiva
as diferentes qualidades raciais. “A raça era de sempre querer se tornar ou se assemelhar ao
simultaneamente o resultado e a reafirmação da branco europeu, em todos os modos e âmbitos
ideia global da irredutibilidade das diferenças possíveis, nos modos de ser, de pensar, de agir
sociais” (MBEMBE, 2014, p. 57). Todos aqueles e se relacionar na busca do embranquecimento.
que possuíam características diferentes à Em sua obra, Fanon (2008) mostra a
realidade social, racial e cultural eram definidos realidade do negro antilhano na França, na busca
como externos e excluídos à nação. O autor incansável de se tornar um branco francês. Esta
ressalta que na colônia, inclusive, a identidade tentativa se efetiva a partir de diversas frentes e
nacional e a cidadania estavam intimamente uma delas é o embranquecimento da população
relacionadas a ideia racial de brancura. Para negra através do relacionamento com brancos.
o autor, a expressão do nacionalismo francês Vejamos o trecho em que mostra a atitude da
e um pensamento da diferença racial resultou mulher negra em relação ao homem branco:
em um universalismo francês que é produto do
pensamento racial que colocou a França como Antes de mais nada temos a negra e a mulata. A
centro e referência de mundo como nação e primeira só tem uma perspectiva e uma preocupação:
cultura em detrimento dos demais – classificando embranquecer. A segunda não somente quer
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embranquecer, mas evitar a regressão. Na verdade, uma naturalização dos preconceitos e violências
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há algo mais ilógico do que uma mulata que se casa promovidas pelo branco. Um domínio
com um negro? Pois é preciso compreender, de uma psicológico em que não nos reconhecemos mais,
vez por todas, que está se tentando salvar a raça. como aponta Quijano (2005):
(FANON, 2008, p.62).
Aqui a tragédia é que todos fomos conduzidos,
É perceptível os danos causados pela sabendo ou não, querendo ou não, a ver e aceitar
colonização ao criar a ideia imaginada de aquela imagem como nossa e como pertencente
diferença de raças favorecendo uma em unicamente a nós. Dessa maneira seguimos sendo
detrimento da outra. A perspectiva da negra o que não somos. E como resultado não podemos
ao se relacionar com o branco é a de “salvar a nunca identificar nossos verdadeiros problemas,
raça” de um mal, o mal da negritude. Os negros muito menos resolvê-los, a não ser de uma maneira
e as negras em razão da tamanha opressão que parcial e distorcida. (QUIJANO, 2005, p.130).
sofriam e como meio de se inserir na sociedade
acabam por negar a si próprios e supervalorizar Negamos a nossa cultura, as nossas
o branco e tudo que é característico dele, em um características físicas na busca incessante de ser
processo de sobrevivência. Ainda segundo Fanon o que não somos procurando embranquecer. E a
(2008) essa atitude perpassa o psicológico do criação do conceito de raça foi fundamental para
indivíduo, por meio de uma manipulação branca: que se criassem e permanecessem todos esses
preconceitos dicotômicos e polarizantes do que
Qualquer que seja o domínio considerado, é bom e do que é ruim, do válido e do inválido.
uma coisa nos impressionou: o preto, escravo “Os povos colonizados e dominados foram
de sua inferioridade, o branco, escravo de sua postos numa situação natural de inferioridade,
superioridade, ambos se comportam segundo uma e consequentemente também seus traços
linha de orientação neurótica. Assim, fomos levados fenotípicos, bem como suas descobertas mentais
a considerar a alienação deles conforme descrições e culturais” (QUIJANO, 2005, p.118).
psicanalíticas. O preto, no seu comportamento, Mbembe (2014) ressalta que a colonização
assemelha-se a um tipo neurótico, ou, em outras exerceu um papel de subjugar e de apagar toda a
palavras, ele se coloca em plena neurose situacional. cultura do colonizado, fazendo com que mudasse
Há no homem de cor uma tentativa de fugir à sua sua razão de viver e que também mudasse de
individualidade, de aniquilar seu estar aqui. Todas as razão:
vezes que um homem de cor protesta, há alienação.
Todas as vezes que um homem de cor reprova, há É, em parte, graças a sua fantástica capacidade de
alienação. (FANON, 2008, p. 66). proliferação e metamorfose que faz estremecer o
presente daqueles que escravizou, infiltrando-se
Fanon destaca que esse processo de até nos seus sonhos, preenchendo seus pesadelos
inferiorização do negro em relação ao branco mais medonhos, antes de lhes arrebatar lamentos
é patológico. E podemos dizer que é recíproco atrozes. Por sua vez, a colonização não passou de
no sentido de que um se acha inferior e o outro uma tecnologia ou de um simples dispositivo, não
superior e ambos reforçam essa concepção passou de ambiguidades. Foi também um complexo,
de si e do outro. À medida que o negro é uma trama de certezas, umas mais ilusórias do que
sistematicamente – e por meio de diferentes outras: a força do falso. (MBEMBE, 2014, p.19).
estratégias –inferiorizado, também se inferioriza
e superioriza o branco que se sente superior. O colonialismo dividiu o mundo em dois, a
O negro passa a negar e a desvalorizar as suas partir da ideia de raças diferentes. O mundo é
raízes, características e costumes, realizando o fragmentado a partir dos que fazem parte da raça
que o branco deseja sem questionar. Promovendo branca e os demais indivíduos que não fazem
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parte. Existe uma desvalorização e o futuro do poder e, inseparablemente, de la colonialidad del
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indivíduo que é determinado pela sua cor. Esse género. (Lugones, 2008, p.73)
padrão determina papéis na sociedade, o branco
e o negro têm seus futuros predeterminados, Para a autora, é preciso considerar a
como destaca Fanon (2005) em “Os condenados interseccionalidade de raça, classe, gênero
da terra”: e sexualidade nos movimentos feministas,
compreendendo que a mulher negra sofre
[...] Quando se observa em sua imediatidade o preconceito de maneira distinta à mulher branca.
contexto colonial, verifica-se que o que retalha o No caso africano, Paulina Chiziane (2013, p.
mundo é antes de mais nada o fato de pertencer 199) destaca que os problemas de desvalorização
ou não a tal espécie, a tal raça. Nas colônias a da mulher surgem desde o princípio da vida
infraestrutura econômica é igualmente uma por meio de mitos sustentados com base na
superestrutura. A causa é consequência: o indivíduo divindade, que mascaram uma ideologia de
é rico porque é branco, é branco porque é rico. poder, garantindo ao homem uma posição
(FANON, 2005, p.62) hierárquica superior – motivo pelo qual a autora
explica que as diferenças de gênero existem desde
A criação da ideia de raça permanece viva antes dos colonizadores, mas as práticas coloniais
e é base para que sejamos expostos aos mais intensificaram e demarcaram relações de poder
variados preconceitos e dicotomias, bem como a ainda mais complexas.
naturalização desses padrões estabelecidos pelo A autora Crenshaw (2004) intenta com seus
colonizador e que perpassaram a colonização trabalhos promover uma reflexão sobre como a
e a independência dos povos colonizados. colonialidade está diretamente relacionada com
Diante disto, é pertinente pensarmos numa o preconceito não só de raça, mas de gênero. E
desconstrução de todos os modos de exclusão a para isto, cunhou o termo interseccionalidade
que o povo colonizado é exposto. de raça e gênero. Conceito que explica que a
discriminação existe não apenas em relação ao
A influência da colonialidade na indivíduo negro em si, mas que considera as
desigualdade de gênero diferenças e especificidades entre o preconceito
sofrido pelo homem negro e pela mulher negra.
A partir do que foi supracitado percebemos Portanto é necessário levar em conta que a
que a colonialidade refere-se a um complexo violência é interseccional.
processo que perpassa as mais variadas vertentes Para modificar a realidade vivida é preciso
da nossa vida. E uma dessas vertentes de exclusão entender a partir dessa perspectiva e Crenshaw
está no preconceito de gênero, que coloca a (2004) aponta que as políticas públicas não se
mulher numa posição inferior e de submissão ao atentam nem se adequam a essa realidade de
homem. Isto se dá em razão de uma criação da opressão e preconceito:
sociedade colonial patriarcal que resultou numa
dicotomização que desqualifica a mulher. A prática dos direitos humanos no campo do
María Lugones (2008) define colonialidade gênero, por exemplo, desenvolveu-se afirmando
do poder como: que “os direitos humanos são direitos das
mulheres” e que “os direitos das mulheres são
la interseccionalidad entre raza, clase, género direitos humanos”. Isso reflete o fato de que,
y sexualidad con el objetivo de entender la tradicionalmente, o entendimento era que quando
preocupante indiferencia que los hombres as mulheres vivenciavam situações de violação dos
muestran hacia las violencias que sistemáticamente direitos humanos, semelhantes às vivenciadas por
se infringen sobre las mujeres de color, es decir, homens, elas podiam ser protegidas. No entanto,
mujeres no blancas víctimas de la colonialidad del quando experimentavam situações de violação
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dos direitos humanos diferentes das vivenciadas estavam sofrendo discriminação racial e, depois,
TEORIA E CULTURA
pelos homens, as instituições de defesa dos direitos que estavam sofrendo discriminação de gênero.
humanos não sabiam exatamente o que fazer. Isso gerou um problema óbvio. Inicialmente, o
Se uma mulher fosse torturada por suas crenças tribunal perguntou: “Houve discriminação racial?
políticas da mesma maneira que um homem, esse ” Resposta: “Bem, não. Não houve discriminação
fato podia ser reconhecido como uma * violação racial porque a General Motors contratou negros,
dos direitos humanos. Se ela fosse estuprada ou homens negros”. A segunda pergunta foi: “Houve
forçada a engravidar ou a se casar, as instituições discriminação de gênero? ” Resposta: “Não, não
de defesa dos direitos humanos não sabiam como houve discriminação de gênero”. A empresa havia
lidar com esses fatos, porque eram especificamente contratado mulheres que, por acaso, eram brancas.
relacionados a questões de gênero. (CRENSHAW, (CRENSHAW, 2004, p. 10).
2004, p. 09).
Como exposto, embasadas na ideia criada
São evidentes as diferenças de discriminação pela colonização de raças superiores e inferiores,
e violência sofridas por mulheres em relação aos as indústrias excluíam todos aqueles que
homens; porém, não há aparato das políticas faziam parte da raça negra. As oportunidades
púbicas, visto que não há uma compreensão eram direcionadas à população branca. Porém
dessas subjetividades. Mas o que existe é uma observamos também que os tribunais e as políticas
generalização de ocorrências específicas. Em sua públicas não se atentavam à interseccionalidade
análise, Crenshaw aponta que a discriminação da discriminação, mas, ao contrário, buscavam
não era incomum no contexto das indústrias, realizar recortes ao preconceito. Crenshaw
as pessoas eram segregadas em razão do seu (2004) denomina esse tipo de acontecimento
gênero e raça. Quando havia cargos para de sobreposições e o tribunal não se atentou
homens, essas vagas não podiam ser ocupadas a essas sobreposições. Entre suas conclusões
por homens negros; e quando havia cargos para sobre os casos analisados, está no entendimento
mulheres, não podiam ser contratadas mulheres que se a experiência das mulheres negras não
negras. Vejamos o exemplo da autora de uma haviam sido a mesma dos homens negros e
ação movida contra a empresa General Motors, que se a sua discriminação de gênero não havia
nos Estados Unidos, em razão da exclusão de sido a mesma sofrida por mulheres brancas,
mulheres negras: basicamente elas não haviam sofrido qualquer
tipo de discriminação que a lei estivesse disposta
Na General Motors, os empregos disponíveis aos a reconhecer. As mulheres negras se viram diante
negros eram basicamente o de postos nas linhas de da situação de ter sofrido uma discriminação
montagem. Ou seja, funções para homens. E, como racial baseada unicamente nas experiências de
ocorre frequentemente, os empregos disponíveis homens afro-americanos e uma discriminação
a mulheres eram empregos nos escritórios, em de gênero baseada unicamente nas experiências
funções como a de secretária. Essas funções não de mulheres brancas. É dessa maneira que a visão
eram consideradas adequadas para mulheres negras. tradicional da discriminação opera, no sentido de
Assim, devido à segregação racial e de gênero excluir essas sobreposições que são fundamentais
presente nessas indústrias, não havia oportunidades para o entendimento da interseccionalidade.
de emprego para mulheres afro-americanas. Por Cunha (2012) discorre de forma mais
essa razão, elas moveram um processo afirmando delimitada e especifica o feminismo a partir
que estavam sofrendo discriminação racial e de de relatos de mulheres que tiveram suas
gênero. O problema é que o tribunal não tinha como vozes invisibilizadas no período das lutas por
compreender que se tratava de um processo misto independência. Seu trabalho visa dar visibilidade
de discriminação racial. O tribunal insistiu para a elas e às suas vivências oportunizando um
que as mulheres provassem, primeiramente, que espaço de interlocução dessas narrativas não
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oficiais das mulheres pelas lutas à independência, alvos do desarme das gramáticas estéticas com que
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mais especificamente em Moçambique e em narram as suas vidas, conhecimentos e memórias.
Timor Leste. A autora faz uma crítica às ausências (CUNHA, 2012, p. 69).
e negligências dos autores coloniais que resistem
nos feminismos eurocêntricos, ou seja, que Como exposto, a perspectiva que a autora
abordam o feminismo a partir apenas da mulher defende é a de que é preciso mostrar o que está
branca negligenciando as especificidades do oculto para a história e para a sociedade. É
feminismo da mulher negra. E busca através de importante fazer ouvir as suas vozes, ao que a
um feminismo descolonial contar as histórias colonização ocultou e invisibilizou e que, mesmo
dessas mulheres, personagens do período de após o seu fim, ainda persiste obliterando. A
lutas partindo de um novo olhar, de novas colonização efetivou essa ocultação de tudo
narrações e histórias. A autora faz uma crítica à aquilo que não era seu, que fazia parte do outro
atual maneira de se fazer e defender o feminismo, através da construção de estigmas daquilo que é
atentando para uma maneira generalizada e válido, seja no campo dos saberes, dos gêneros e
eurocentrada, que se desenvolve de forma a da raça. Cunha (2012) reivindica que as culturas
negligenciar características e situações que são dos povos colonizados devem por direito ser
próprias e decorrentes da vivência de mulheres valorizadas e validadas, buscando defender
negras e colonizadas. Cunha faz uma alerta direito daqueles que foram roubados de si
sobre essa busca de igualdade que tem no seu mesmos pelo colonialismo.
centro a desigualdade à medida que generaliza Cunha destaca que ao entrevistar as mulheres
perspectivas de lutas por afirmação da mulher em Maputo e em Dilí, evidenciou que o relato
na sociedade, sem que haja uma preocupação das guerras para essas mulheres é também o
em diferenciar e valorizar os diversos contextos relato de guerras de memórias, visto que as
femininos de luta existentes. mulheres ficam em constante silêncio temendo
Cunha (2012) também discute que a falar. Para elas o exercício de relembrar esses
colonização e as violências passam a existir acontecimentos, que na maioria das vezes são
“dentro e fora de casa”, nas palavras da autora. O desastrosos, é despertar e trazer à tona dores que
silenciamento dessas mulheres é dentro de casa, estavam guardadas nos seus silêncios. Em razão
tendo persistido mesmo após a independência disto, as mulheres preferem na maior parte das
de seus respectivos países, através de uma entrevistas não serem protagonistas das histórias
invisibilização que as assola no contexto do seu que contam, sempre utilizam uma outra pessoa
cotidiano: para protagonizar as histórias vivenciadas por
elas próprias, que são intoleráveis de serem ditas
Parece ser perfeita a presunção da sua obediência, e assumidas.
pois que, mandadas calar, parecem ficar tão Segato (2012) discute acerca da colonialidade
silenciosas que se tornam invisíveis tanto fora do poder e sua relação com os padrões
como dentro das suas casas. O outro do outro é a estabelecidos de gênero e sobre como é possível
representação retórica possível de quem existe sem realizar uma desconstrução dessa colonização
recursos, sem nomes, sem identidade e sem exegese partindo da compreensão de como essas relações
(Gandhi, 1998: 110). Deste modo não é de espantar se estabeleceram e foram postas ao longo da
que persista a ideia de que as figuras insolventes história. Segundo a autora, o mundo dentro da
correspondam narrativas impertinentes. Muitas estrutura binária encontra o mundo múltiplo
mulheres continuam a ser desarmadas das do outro, acaba por modificá-lo, na tentativa de
suas palavras ou a sabê‑las classificadas de adequá-lo ao padrão da colonialidade do poder,
impronunciáveis ou de incoerentes; mandadas sistema que possibilita exercer uma influência
calar através do esquecimento forçado das línguas maior sobre o outro. Desse modo, o mundo que
maternas (Tzvetan, 1990: 153), têm permanecido se encontra organizado a partir da lógica colonial
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encontra a diversidade do outro, que acaba caso de modificar este ordenamento, a “identidade”,
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sendo modificado para adequar-se aos padrões como capital político, e a cultura, como capital
coloniais que exercem maior dominação sobre simbólico e referência nas lutas pela continuidade
todos. enquanto povo, veriam-se prejudicadas, debilitando
assim as demandas por território, recursos e direitos
Nesta nova ordem dominante, o espaço público, como recursos. (SEGATO, 2012, p. 127).
por sua vez, passa a capturar e monopolizar
todas as deliberações e decisões relativas ao bem A autora defende que esses padrões que
comum geral, e o espaço doméstico como tal se colocam os homens no centro de tudo, como
despolitiza totalmente, tanto porque perde suas protagonistas, e as mulheres em situação de
formas ancestrais de intervenção nas decisões que submissão sempre existiram, porém com o
se tomavam no espaço público, como também colonialismo essa situação ganhou legitimidade
porque se encerra na família nuclear e se isola na e essa opressão agravou-se. Como exemplo a
privacidade. Passa-se assim, a normatizar a família e autora cita as aldeias indígenas em que o poder
a impor novas formas imperativas de conjugalidade e a hierarquia imposta por anciões, caciques
e de censura dos laços extensos que anteriormente e homens em geral ganha mais força com os
atravessavam e povoavam a domesticidade (Maia, padrões coloniais, já que também colocam o
2010 e Abu-Lughod, 2002), com a consequente homem numa posição de superioridade. “É, por
perda do controle que o olho comunitário exercia isso, necessário ensaiar uma habilidade retórica
na vigilância e julgamento dos comportamentos. considerável para fazer compreender que o efeito
A despolitização do espaço doméstico o converte de profundidade histórica de certas tradições é
em vulnerável e frágil, e são inumeráveis os uma ilusão de ótica, que serve para consolidar as
testemunhos dos novos modos e graus de crueldade novas formas de autoridade dos homens e outras
na vitimização que surgem quando desaparece o hierarquias da aldeia” (SEGATO, 2012, p. 128).
amparo do olhar da comunidade sobre o mundo
familiar. (SEGATO, 2012, p. 127) Uma perspectiva descolonial de
epistemologia
O espaço público torna-se o detentor do
poder e o definidor de ordem e posições que O pensamento dos autores e das autoras aqui
prevalecem e são aceitas e obedecidas. As famílias retomados nos mobilizam sobre a maneira como
são construídas a partir de padrões binários. Ao a colonialidade faz parte de um sistema mundo e
mesmo tempo em que o âmbito doméstico é de como se engendra nos nossos mais subjetivos
arremetido de fragilidade e vulnerabilidade. Por contextos de vida cotidiana. Reconhecendo
meio dessa transformação histórica, cria-se uma isto, buscam promover uma reflexão e uma
invenção de continuidade por meio de uma falsa discussão sobre uma proposta de descolonização
estrutura em que as mulheres se veem obrigadas de todos os âmbitos e vertentes. O conceito de
a se submeter com base na desculpa reafirmada colonialidade do poder é datado em 1989, como
pelos homens de modo a naturalizar a maneira destaca Ballestrin (2013) “Ele exprime uma
como as relações são construídas e organizadas. constatação simples, isto é, de que as relações de
Trata-se da manutenção de um regime dito colonialidade nas esferas econômica e política
“tradicional” e hierárquico que coloca o homem não findaram com a destruição do colonialismo.
como superior por meio de um lugar de ” (Ballestrin, 2013, p. 99-100). Segundo a autora,
prestígio construído historicamente e que lhe é os estudos foram empreendidos a partir do grupo
legitimamente próprio: de estudos modernidade/ colonialidade, o qual
fazem parte autores descoloniais, como Quijano,
Daí deriva uma chantagem permanente dirigida às Mignolo e Boaventura de Souza Santos, que
mulheres que as ameaça com o suposto de que, em tratam sobre “noções, raciocínios e conceitos que
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lhe conferem uma identidade e um vocabulário na busca de excluir e desqualificar tudo que
TEORIA E CULTURA
próprio, contribuindo para a renovação analítica está posto para nós, mas promover um novo
e utópica das ciências sociais latino-americanas olhar sobre aquilo que está fadado a um único
do século XXI” (Ballestrin, 2013, p. 99). modo de ver. Intentam buscar novas respostas e
Como parte destes estudos, Mignolo opções epistemológicas de entender as múltiplas
(2008) busca promover uma descolonização do realidades, sem generalizações e sem uma
conhecimento através de uma desobediência inversão de papeis em que o oprimido toma o
epistêmica, partindo do pressuposto de que lugar do opressor.
somos baseados numa matriz epistemológica Mama (2010), assim como Mignolo
fundamentalmente eurocentrada. (2008), aborda a questão do eurocentrismo na
homogeneização do conhecimento, discutindo
A opção descolonial é epistêmica, ou seja, ela se a relação entre a produção de conhecimento e
desvincula dos fundamentos genuínos dos conceitos ética, para propor uma reflexão acerca do que é
ocidentais e da acumulação de conhecimento. produzido sobre o continente africano vindo de
Por desvinculamento epistêmico não quero fora dele. A partir de dados estatísticos, mostra
dizer abandono ou ignorância do que já foi que o continente africano tem uma porcentagem
institucionalizado por todo o planeta (por exemplo, mínima de publicações científicas. Afirma que
veja o que acontece agora nas universidades isto se dá em razão da forte exclusão e resistência
chinesas e na institucionalização do conhecimento). da aceitação da produção de conhecimentos
Pretendo substituir a geo-e a política de Estado vindos da África.
de conhecimento de seu fundamento na história
imperial do Ocidente dos últimos cinco séculos, É claro que os levantamentos quantitativos
pela geo-política e a política de Estado de pessoas, internacionais daquilo que se publica não incluem
línguas, religiões, conceitos políticos e econômicos, a totalidade da pesquisa realizada e passada a
subjetividades, etc., que foram racializadas (ou seja, escrito pelos autores africanos. Há, por certo,
sua óbvia humanidade foi negada). (MIGNOLO, muitas teses que não chegam a ser publicadas
2008, p. 290). e há, presentemente, muitos trabalhos que são
encomendados fora das instituições acadêmicas.
A proposta de Mignolo (2008) é uma Existe em África muita massa cinzenta para
desvinculação de conceitos fundamentados em explorar, desenvolver e difundir, e existe também
realidades eurocêntricas e que são naturalizados uma clara tradição de questionamento não só da
e impostos às realidades particulares de definição de ‘ciência’ mas também do controle do
maneira a promover uma descolonização das acesso exercido pela indústria global da edição.
epistemologias. Uma opção descolonial de (MAMA, 2010, p. 606).
saberes que propõe um olhar para além do
que é difundido tradicionalmente como válido Essa desigualdade de produção do
que busca dar visibilidade aqueles que foram conhecimento é fruto de uma realidade material
invizibilizados e vistos como incapazes de caracterizada por desigualdades institucionais e
produzir conhecimento. financeiras. Situação que tem como pressuposto
A perspectiva de Mignolo (2008) é destacar o padrão de poder colonial e patriarcal que
e valorizar às culturas, costumes e subjetividades exclui intelectuais de todo o mundo e impede
que foram desclassificadas historicamente por que o potencial intelectual dos africanos chegue
uma construção racial colonial. Porém, o que a se realizar (MAMA, 2010). E os conteúdos
o autor busca, bem como os demais autores e sobre África vindos de fora dela criam conceitos,
autoras aqui abordados, não se trata de uma paradigmas e metodologias que fazem com que
descolonização através da promoção de novas o continente seja posto de forma reducionista e
vertentes, conceitos que devem ser naturalizados homogeneizante (MAMA, 2010).
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Através das reflexões de Mama (2010) característica do pensamento abissal é o fato
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autônomas. Como condição fundamental para dos autores e autoras supracitados neste artigo, é
TEORIA E CULTURA
a consolidação de um pensamento pós-abissal, possível promover uma reflexão sobre as variadas
Santos (2007, p. 85) destaca a “co-presença dimensões do colonialismo e da colonialidade
radical”, que trata de considerar os agentes e do poder, compreendendo a perspectiva
suas práticas, de ambos os lados da linha, como desse conceito, cunhado por Quijano (2005).
contemporâneos e igualitários. Perspectiva que se fundamenta, como vimos, em
Assim como Mignolo (2008) busca uma uma dominação mundial que abrange variados
validação do conhecimento que foi historicamente âmbitos da nossa vida social, que é resultado
invalidado, contudo, sem que haja uma exclusão da colonização e que nos influencia e domina a
inversa, que desconsidere o pensamento já partir de múltiplas vertentes, dentre as quais a
consolidado, Santos (2007) busca promover partir da economia, da desqualificação com base
com o conceito de “ecologia dos saberes” uma na classificação de raça, no gênero e que, muitas
credibilidade para os conhecimentos que não são vezes, pode ser interseccional, como aponta
considerados científicos sem que isto implique Crenshaw (2004).
no descrédito ao conhecimento científico. Mas ao Como evidência de que esse movimento
contrário disto, a sua perspectiva baseia-se numacrítico está sendo percebido e desenvolvido foi
contra hegemonia. Trata-se, nas palavras do autor,
o fato de os autores trabalhados neste artigo
de “explorar a pluralidade interna da ciência, isto
serem de diferentes partes do globo, como
é, as práticas científicas alternativas que têm se
Argentina, Peru, continente africano e Portugal
tornado visíveis por meio das epistemologias e ambos possuírem em comum a reflexão sobre
feministas e pós-coloniais, e, por outro lado, os padrões historicamente criados e atualmente
de promover a interação e a interdependência ainda naturalizados. Cabe também ponderarmos
entre os saberes científicos e outros saberes, não-
que, com base na nossa interpretação das
científicos. ” (SANTOS, 2007, p.87). perspectivas dos autores e autoras utilizados, o
movimento discutido neste artigo não se trata
Considerações finais do estabelecimento de um novo padrão, desta
vez descolonial, mas as discussões propostas
Diante dos autores e das autoras buscam considerar o que foi desconsiderado e
descoloniais aqui expostos, é coerente afirmar invisibilizado pelo colonialismo a partir de uma
que a colonialidade é um sistema mundo relação de horizontalidade.
que permanece vivo e potente mesmo após a
independência dos países colonizados. Delimitá- Referências bibliográficas
lo a um único aspecto é não compreender a
sua complexa dimensão. A colonialidade está BALLESTRIN, Luciana. América Latina e
presente em nossas vidas desde o micro ao macro o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência
ou vice-versa, se apresenta em nosso cotidiano Política. Brasília, n. 11, p. 89-117, mai. /ago. 2013.
nas experiências e vivências mais subjetivas,
estabelecendo papéis para cada sujeito na CRENSHAW, Kimberle. A intersecionalidade
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tudo o que é válido e inválido, digno e indigno Cruzamento: raça e gênero. Brasília: Unifem,
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perpassando as divisões de classes, de raça e Crenshaw.pdf >. Acesso em: 18 Mai. 2018.
de gênero. Além de ser fundamentado através
de uma epistemologia que lhe promove a CUNHA, Teresa. As memórias das guerras e
legitimidade necessária para a sua existência. as guerras de memórias. Mulheres, Moçambique
A partir do panorama apresentado por meio e Timor-Leste. Revista Crítica de Ciências
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Sociais, n.96, p. 67-86. 2012. Acesso em: 09 Mai. 2018.
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TEORIA E CULTURA
RESENHA
Maconheiros, fumons e growers: um estudo
comparativo do consumo e de cultivo caseiro de
canábis no Rio de Janeiro e Buenos Aires
1 Doutorando em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCSO) da Universidade
Federal de Juiz de Fora (UFJF)
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uma colheita satisfatória, sempre comparando apresenta mais sistematicamente o prisma da
TEORIA E CULTURA
as raízes cariocas, entre maconheiros e canas, e comparação que atravessa os demais capítulos.
portenhas, ao meio de fumons e trotskistas. Na A floração, para os cultivadores domésticos
seção “Usos e mercados” deste capítulo, destaca de maconha, é o período que se estende das
que mesmo na ilegalidade a maconha é capaz de primeiras flores que brotam dos galhos até os
mobilizar mercados lucrativos dentro e fora da dias em que a planta é colhida e tratada, mas
lei, sendo os dentro da lei aqueles movidos em ainda não está pronta para ser consumida,
tabacarias que supostamente são voltadas para onde Buenos Aires e Rio de Janeiros são vistas
o tabaco, mas que na realidade comercializam como florações diferentes em jardins também
produtos para os usos de maconha, e os fora diferentes. O primeiro desdobramento desse
da lei pelo que ficou conhecido como tráfico de capítulo enfoca as distintas sensibilidades das
drogas, onde a maconha pode ser comercializada interações no “espaço público” e o significado
ilegalmente para seus diferentes usos. A partir do que é este espaço, de acordo com a variação
das intervenções legais nos costumes atrelados de como os atores percebem as leis que proíbem
aos usos de maconha, surgem os contornos entre suas práticas de cultivo. O ethos estruturante
a ilegalidade e a possibilidade de altos ganhos portenho do compartilhamento dos espaços
monetários dos traficantes, e as leis dos dois públicos perpassa pelas noções de individualismo
países comparados aparecem como mediadoras e privacidade, pois ao consumir maconha na
de comportamentos, pois oferecem proscrições rua, os atores sempre tomavam cuidado para
e contornos para os mercados e consumos de não deixar o porro à vista das pessoas e policiais,
maconha na cultura canábica. Nesse meio os mas geralmente nunca eram incomodados por
autocultivos domésticos de maconha aparecem estes. Já no Rio de Janeiro a prática ocorre com
como uma opção daqueles que tanto relutavam uma pessoa só e em movimento, dificilmente
em abandonar o consumo dessa planta proibida três pessoas ficam paradas na esquina fumando
pela lei quanto pela procedência insalubre da maconha, apontando diferenças nas experiências
maconha oriunda do tráfico de drogas, isto é, e significados nos contextos dos usos de
como estratégia de redução de danos. Então ocorre maconha no espaço público. No Rio de Janeiro,
a troca da mediação do traficante pela mediação onde várias formas de apropriação do espaço
do tempo de trabalho dedicado ao cultivo da público são naturalizadas, fumar um baseado na
planta. Tanto no Rio de Janeiro como em Buenos rua é fruto de um processo de negociação das
Aires os atores que cultivam a própria maconha, relações entre público e privado, assim como
numericamente falando, são ínfimos entre os dos usos particularizados e coletivizados no
consumidores, constituindo uma amostra muito espaço público da cidade, exibindo palcos de
pequena, e a grande maioria desses atores não conflitos e aceitações diversos. No Rio de Janeiro
expõem que cultivam, muito menos “militam”, e em Buenos Aires, nessa perspectiva, a fixação
apenas plantam e fumam, alguns plantam e dos limites entre público e privado, coletivo e
vendem, podendo estes últimos fumar ou não. particular, lícito e ilícito, se dão em arranjos
Ainda, despende-se de uma análise dos idiomas, sempre originais e peculiares. As próximas
significados e tráficos simbólicos intrínsecos aos duas seções desse capítulo mostram como os
usos de maconha nas duas cidades, destacando portenhos e os cariocas, respectivamente, buscam
uma notável variação nas formas de se referir ser reconhecidos ao buscarem reivindicações
aos diferentes itens no consumo de maconha, de de desopressão de suas práticas. A “THC: la
modo que o baseado e o porro são vistos como revista de cultura cannabica” é uma aclamada
artefatos culturais distintos dentro de sistemas revista argentina que cumpre um papel difusor
sociais igualmente distintos. da cultura canábica, abordando assuntos como
No terceiro capítulo, intitulado “Floração: práticas de cultivo, qualidade de vida, maconha
aspectos sociológicos cariocas e portenhos”, o autor medicinal, redução de danos, informações
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sobre usos de drogas, abusos policiais, dentre Na primeira seção do capítulo é apresentada uma
TEORIA E CULTURA
outros, e cumpre na América Latina um papel discussão conceitual sobre os usos da categoria
central na divulgação de conhecimento atrelado cultura e sua pertinência nesse trabalho, uma
aos usos de maconha, visando constituir um vez que os cultivadores caseiros de maconha se
público de leitores formados e críticos para muniam da categoria “cultura canábica” e o autor,
enfrentar, no âmbito da esfera civil, a proibição dada sua formação em antropologia, estranha
da maconha. No Rio de Janeiro, em contraste, o a noção de “subsistência” atrelada à noção de
ativismo também explicita os conflitos-motores “cultura”, e construiu um olhar comparativo
da mudança, enfatizando o bloco carnavalesco para entender melhor esse aparente paradoxo
Planta na Mente, ou Planta, que toca marchinhas categórico e conceitual. Fora das ciências sociais
carnavalescas antigas em forma de paródias para existe o uso e abuso da categoria “cultura”,
abordar de forma lúdica o tema da legalização da algumas visando o empoderamento de grupos
maconha. Esse ativismo acabou ultrapassando sociais distintos, pois ter uma cultura implica em
os limites do carnaval, e o chamado Coletivo portá-la, preservá-la, divulgá-la e sentir orgulho
Antiproibicionista convidou esse bloco para em relação à mesma como política de atitudes
participar das Marchas da Maconha no Rio de identitárias nas arenas públicas contemporâneas.
Janeiro. As duas próximas segmentações do Seja em Buenos Aires ou no Rio de Janeiro, os
capítulo tratam, primeiramente, Buenos Aires atores concebem e pensam ao seu modo o que
como a “última fronteira do mediterrâneo”, é “cultura canábica”, assim como os conflitos
aludindo a experiência emancipatória da que surgem daí. Para a transformação do
Argentina em relação ao Reino Espanhol, mundo que lhes são dados, atores e grupos
amparada nas noções de igualdade e liberdade, empreendem culturas, criando animais ou
em correlação ao despeito do otimismo dos plantas, domesticando espécies e esperando o
empreendedores e ativistas canábicos portenhos tempo necessário para colher seus frutos. Nesse
que clamam por uma nova lei para regular suas sentido, cultura é ação e é necessário empreendê-
práticas e sociabilidades e, segundamente, o la, reafirmá-la, reformular ou revolucionar
Rio de Janeiro como a “única monarquia das os valores que a fundamentam ou a limitam.
Américas”, apresentando a vinda do Príncipe Cultura é também o esforço de engendrar outras
Regente Dom João VI para esta cidade junto culturas através dos empreendedores culturais.
com a corte portuguesa, fugindo de Napoleão O consumo de maconha ou outras drogas ilícitas
Bonaparte, como marco da configuração cultural aparecem como um traço dentro da chamada
carioca, que diferentemente da argentina, contracultura. Na cultura específica do cultivo
construiu seu imaginário na naturalização da caseiro de maconha existe um ponto trágico,
desigualdade e dos privilégios, e o consumo de pois o namoro do cultivador com a planta
maconha oriundo da “cultura do cultivo” carrega termina sempre em assassinato, ainda mais se
o imperativo de que plantar a própria maconha for uma planta de maconha é macho, pois a vida
é um privilégio para lutar contra a violência deste é sempre mais curta e, sendo fêmea, para a
deflagrada pelo narcotráfico da cidade. felicidade do cultivador, a planta é cortada ao final
O quarto capítulo é titulado de “Secado: em da floração, todas as folhas e galhos são cortados
torno dos usos do conceito de cultura e de sua no processo de manicura. A partir destas noções
pertinência no presente estudo” e é construído em de cultura, o autor pensa antropologicamente nos
analogia com o período no qual, após a colheita e usos que os grupos sociais fazem deste conceito,
devidamente tratada, a planta é colocada em um pois se fala da “cultura canábica”, “cultura grower”,
ambiente próprio para a secagem para eliminar “cultura do cultivo de maconha” ou dos aspectos
o sabor da clorofila e os líquidos presentes “contraculturais” do consumo de maconha e o
nos tecidos vegetais para o assentamento das denominador comum de todos os usos da noção
propriedades psicoativas presente nas resinas. de cultura é que possuem uma materialidade
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marcante, pois engendra sistemas econômicos contraste com a ideia portenha, que considera
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de outros universos e visões de mundo quando um processo de domesticação da planta que,
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começam a cultivar a própria maconha, o também, os domesticam. Desse modo, a principal
ativismo perpassado pela manifestação pública “magia” do jardim canábico não é propriamente
ao criticarem o proibicionismo, assim como a produção da planta, e sim a domesticação do
dos atos de difusão da cultura canábica, tanto cultivador, pois um não existe sem o outro. Dessa
no Rio de Janeiro quanto em Buenos Aires. A maneira, Veríssimo, a partir de um tema original,
última ramificação deste capitulo é intitulada analisa e explana a relação entre cultivadores e
“O canabier e a quebra de estereótipos”, e chama maconha de forma igualmente original, pioneira,
atenção para algo que tem enfatizado ao longo do inovadora e criativa.
trabalho que colher e fumar a própria maconha
não é um trabalho fácil, muito pelo contrário,
das muitas pessoas que tentam plantar e colher
a própria maconha, poucas têm sucesso, pois
cuidar da planta adequadamente é um trabalho
árduo e extremamente difícil. Outro aspecto
é que muito atores que cultivam a própria
maconha tentam fugir do estereótipo “bicho-
grilo” da cultura hippie dos anos 1960 e 1970 e
a grande maioria dos atores entrevistados, na
sua pesquisa, são integrados aos seus grupos
familiares, profissionais e de vizinhança, ou
seja, não são maconheiros “desajustados”. Sendo
assim, para aderir práticas e sistemas que torna
um maconheiro, um cultivador, está relacionado
com disciplinar-se para libertar-se, fechando-se
num círculo que constrói a independência do
mercado ilícito de maconha.
Nas considerações finais, Veríssimo apresenta
duas seções. Na primeira ele salienta “Os
processos de estruturação de indivíduos e pessoas”
retomando as noções do Rio de Janeiro como
“a única monarquia das Américas” e de Bueno
Aires como “a última fronteira do mediterrâneo”
para exemplificar os processos de estruturação
e configurações culturais destes lugares, que são
particulares e originais, assim como os paradoxos
dessas análises. Na outra seção considera a
transição “Do desvio à domesticação”, salientando
que ao cultivar a própria maconha e se tornarem
independentes do mercado ilícito, esses atores
foram se tornando cultivadores domésticos e,
mutuamente, também foram domesticados pela
adesão a práticas, crenças e filosofias de vida.
Nessa perspectiva, esses atores, apontados como
portadores de comportamentos desviantes,
correm ainda mais riscos ao terem plantas
proibidas em suas casas e são transformados por
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RESENHA
Dimensões legais e sociais sobre drogas, seus
usos e suas políticas no Brasil e em Portugal
Monique Prado1
Drogas e Sociedade: estudos comparados Brasil países, que apesar de possuírem uma história em
e Portugal apresenta ao leitor uma coletânea comum, seguiram caminhos na adoção de suas
de textos baseados em estudos comparados políticas e programas de drogas que revelam
nos dois países que colocam em perspectiva distanciamentos culturais, estruturais e políticas
suas diferentes legislações e experiências no significativos. Portugal optou, logo no início do
tratamento e atenção às drogas. século XXI, por descriminalizar o uso de todas
A proposta do livro é a de apresentar estudos as drogas, substituindo sanções penais por civis
de especialistas sobre temas que estão atrelados e investindo prioritariamente na promoção
a questão das drogas em suas dimensões legais, da saúde. Enquanto que no Brasil, apesar da
sociais e de saúde pública, em Portugal e no implementação de uma lei (11.43/2006) que
Brasil, apresentando com riqueza de dados visava diminuir a penalização ao usuário e
empíricos e qualitativos pontos muito sensíveis distingui-lo do vendedor ilegal, paradoxalmente
para se compreender o cenário da política de houve um aumento no número de pessoas presas
drogas em ambos os países. Observa-se que cada por envolvimento com o tráfico, especialmente
artigo da parte I possui um correspondente com mulheres.
objeto de estudo similar na parte II, o que auxilia O livro é dividido em duas partes. Na primeira,
na compreensão das particularidades, diferenças “Portugal e os desafios do enfrentamento às
e semelhanças existentes nas modulações sociais drogas”, estão os textos que se debruçam sobre
e político/ legais das drogas no Brasil e em as particularidades e impactos sociais do modelo
Portugal. português, em que se descriminalizou o uso de
Na apresentação, os organizadores Paulo todas as drogas, ainda no ano 2000, com foco nos
Fraga2 e Maria Carmo Carvalho3, resumem direitos humanos e na promoção da atenção à
as principais diferenças na trajetória dos dois saúde dos usuários. Já na segunda parte, “O Brasil
1 Mestre em Sociologia e Direito pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito (PPGSD) e bacharel em
Segurança Pública e Social (SP).
2 Professor e coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais (PPGCSO) da Universidade Federal de
Juiz de Fora e doutor em Sociolo¬gia pela Universidade de São Paulo.
3 Professora da Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Católica Portuguesa – Porto, membro da Associação
Kosmicare. Doutora em Psicologia pela Universidade do porto.
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e os dramas do Proibicionismo”, estão reunidos no tratamento de algumas patologias (como
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textos sobre os impactos do proibicionismo a epilepsia) foi pressionando a comunidade
expressos na atual lei de drogas (nº 11.343/2006) científica a se debruçar sobre a planta, assim
para a sociedade, especialmente grupos socais como organizações internacionais (como a
que historicamente já são vulnerabilizados pelo ONU) e vários países, a revisitarem seus quadros
Estado. jurídicos e regulatórios pautados por uma
O livro apresenta temas que ajudam a lógica genérica da proibição. Isso estimulou
contrastar as dimensões legais e sociais sobre investigações médicas e farmacológicas que
drogas em Portugal e no Brasil, sendo eles: descreveram com profundidade o CBD e o
cannabis medicinal, uso de drogas em ambientes THC, duas entre, pelo menos, outras quinhentas
festivos, economia e regulação de drogas, substâncias presentes na planta, o que revela que
encarceramento feminino por envolvimento com ainda há muito a ser desvendado sobre a cannabis.
o tráfico de drogas e caracterização do consumo Um exemplo é o efeito entourage, mecanismo que
de drogas. revela a importância da interação de todos os
componentes da planta, e não só de canabinoides
1) Cannabis medicinal isolados, para obter resultados mais eficazes para
o tratamento de pacientes.
Em Regulação da canábis medicinal em A Lei nº 33/2018, que regula a utilização de
Portugal: mistério e proveito, João Taborda da medicamentos, preparações e substâncias à base
Gama e Joana Albernaz Delgado explicitam da cannabis para fins medicinais, ao contrário
que os desafios a serem enfrentados pela Lei de outras propostas semelhantes, conseguiu
(33/2018), que permitiu a prescrição médica e alcançar um consenso transversal e ser aprovada
regulou a manipulação de derivados da planta ao diferenciar o uso da planta para fins medicinais
no país, tem origem em tratados internacionais e recreativos. Ainda assim, os autores explicam
para o controle das drogas, amparados pela que anteriormente a aprovação dessa norma, as
ONU, como: A Convenção Internacional do leis portuguesas já previam a prescrição médica
Ópio (1912), a Convenção Única sobre os da cannabis, mas nunca criaram condições para
Estupefacientes (1961) e a Convenção sobre que a mesma se efetivasse.
Substâncias Psicotrópicas (1971). Apesar da intenção da lei (33/2018) ter
Esses tratados foram responsáveis por sido a de regular a cannabis medicinal, os
impedir que pesquisas desnudassem alguns autores descrevem alguns pontos que só foram
mistérios sobre a planta cannabis, utilizada desde esclarecidos com a aprovação de uma legislação
o início da humanidade para diversos fins, mas complementar mais detalhada (08/2019). O
que ainda é subaproveitada por haver muito que corrobora a percepção dos autores de que o
desconhecimento sobre os seus canabinoides, maior desafio para a regulamentação da cannabis
terpenos e outros compostos com finalidades está na forma com que ela irá se consolidar e se
terapêuticas. Além disso, também motivaram articular no nível nacional e supracional. Algo
alterações no direito português que pavimentaram que Portugal conseguiu alcançar com êxito ao
a trajetória da regulação da cannabis medicinal equilibrar a concessão do acesso à cannabis com
em Portugal, em um terreno composto por a proteção dos pacientes. Uma vez que o regime
decretos que estabeleciam o combate à droga e às jurídico dos medicamentos foi se alterando e
suas utilizações ilícitas, não deixando de regular se tornando mais exigente ao longo dos anos,
“o mercado lícito e da utilização das drogas enquanto a proibição impediu que a ciência
para fins médicos e científicos” (Decreto-Lei n.º conferisse relevância à cannabis como uma planta
430/83). com finalidades terapêuticas há mais tempo.
Contudo, o crescimento do número de Em O debate em torno da maconha no Brasil:
casos que comprovam a eficácia da cannabis um breve panorama das controvérsias e disputas
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atuais, Frederico Policarpo esboça um panorama apoio institucional de universidades públicas,
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que podem desencadear o risco rodoviário e No contexto de festas, as ações de RD são
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a mortalidade juvenil nesses espaços, que são direcionadas para as festas rave ou de música
materializados por poderes privados que buscam eletrônica em geral. O início dessas ações
lucrar sem preocuparem-se com o controle e começou nos anos 1960, com esforços de equipes
proteção social. que chegaram a atuar no primeiro Woodstock
Por isso, enfatiza a necessidade de se valorizar para auxiliar em experiências psicodélicas difíceis
o conhecimento produzido por cientistas (EPD) ou bad trips como são conhecidas. No
sociais sobre a ecologia desses espaços, para Brasil, os primeiros festivais de música eletrônica
promoção de estratégias e políticas públicas que começaram na década de 1990 e as primeiras
proporcionem o bem-estar e possam proteger ações de RD em um festival ocorreu em 2006.
seus participantes. O que pode evitar que a auto Posteriormente vários coletivos de RD foram
regulação e iniciativas de ONGs, com recursos criados, especialmente após o ano de 2016, como
limitados, sejam as únicas formas existentes é apresentado pelo autor em mapas e tabelas.
para a administração, prevenção e resolução dos O Coletivo Brisa, vinculado a Associação
conflitos em espaços de uso e possível abuso de Psicodélica do Brasil (APB), é descrito com
SPA. profundidade pelo autor, que atua em ambos.
Em Redução de danos em festas no Brasil: A APB foi criada no RJ em 2015, inspirada pelo
panorama e a experiência do projeto Brisa, Coletivo MAPS e fruto de ações desenvolvidas
Fernando Rocha Beserra explica a abordagem por militantes que se encontravam na ala
da redução de danos por meio do trabalho psicodélica da Marcha da Maconha para
de ONGs que atuam em festas, destacando o defender a legalização de outras drogas. As ações
Coletivo Brisa, sediado no Rio de Janeiro. O de RD da APB e do Brisa focam na testagem das
autor descreve a redução de riscos ou danos (RD) substâncias dos usuários para averiguação, assim
para os consumidores de substâncias psicoativas como na defesa, garantia e regulação da redução
(SPA), lícitas ou ilícitas, como uma importante de riscos e dos usos terapêuticos e sociais das
ferramenta de saúde pública e política de cuidado, SPA.
distinta da repressão, que enfatiza a dignidade e No final do texto, Beserra enfatiza o destaque
os direitos humanos de usuários que se optam ou do Brasil na redução de danos em festas, apesar
não conseguem se abster do uso de SPA. da falta de financiamento e outras dificuldades
Beserra introduz o texto descrevendo a origem para essas ações, como a fragilidade legal
da RD no mundo e no Brasil. Ela se iniciou na para a testagem de SPA, falta de treinamento e
Europa em dois momentos; o primeiro, em 1926 capacitação contínuas e rigorosas, ampliação
na Inglaterra com o Relatório Rollestom, que da articulação em redes entre as associações.
recomendava a prescrição médica de opiáceos Somado a isto, o contexto político brasileiro se
para ajudar os usuários a lidarem com suas vidas tornou ultraconservador com a eleição de Jair
de forma produtiva. E o segundo, em 1970, em Bolsonaro, que privilegia o investimento público
cidades holandesas que enfrentavam problemas em entidades religiosas de cunho manicomial,
com o compartilhamento de seringas para uso de as Comunidades Terapêuticas, para a atenção e
SPA injetáveis, que acarretavam na proliferação o cuidado com os usuários farmacodependentes.
do vírus da hepatite e da imunodeficiência
humana (VIH). Já no Brasil, a RD teve início 3) Economia e regulação de drogas
em 1989, em Santos (SP), período em que se
desconstruía a lógica manicomial, foi lá que se O artigo de Ana Lourenço e Ricardo
iniciou a primeira prática de troca de seringas. Gonçalves, A avaliação de políticas da droga
Apesar da incidência de VIH entre os usuários em Portugal: reflexão sobre um processo de
de SPA injetáveis, o Ministério Público processou investigação, apresenta a metodologia utilizada
judicialmente os coordenadores dessas ações. e as conclusões de um trabalho de investigação
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para averiguar os custos sociais do consumo a replicabilidade da pesquisa, o que esclarece o
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erradicação de plantações com o desenvolvimento “correios-de-drogas”, sendo, portanto, o tráfico
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regional e a falta de programas agrícolas voltados internacional o crime mais frequente entre elas, e
ao pequeno agricultor, como o incentivo ao possuem entre 30-39 anos. Mas também podem
plantio de culturas agrícolas legais, programas ser estrangeiras residentes em Portugal há anos,
de desapropriação para a reforma agrária e em geral de origem africana, que atuam no tráfico
financiamentos que criem uma alternativa como freelancers. Dados de 2017 indicam que
ao cultivo ilícito. Uma vez que essa atividade 52,7% é oriunda de países do continente africano
representa uma estratégia de sobrevivência com destaque para Cabo-Verde, seguindo-se de
para os agricultores adquirirem renda em uma países da Europa (23,6%) com ênfase na Romênia,
região semiárida, onde a ação estatal produz e América do Sul (20,3%), em especial o Brasil.
desigualdades, por exemplo, quando privilegia o Em comparação com as reclusas portuguesas, a
investimento no agronegócio e não na agricultura maior parte delas atingiu ou concluiu o ensino
familiar. superior.
Ao considerar o impacto negativo das ações A inserção nessa atividade econômica ilegal
de repressão, Fraga constata que uma mudança na em geral é motivada pela obtenção de recursos
política de drogas e na ação estatal beneficiariam financeiros em condições sociais desfavorecidas,
a agricultura familiar nessas regiões. normalmente para o sustento da família. Já entre
Especialmente com a legalização da cannabis, as mulheres mais jovens, evidências empíricas
para fins medicinais e comerciais, que poderia se demonstram que as motivações variam entre uma
tornar um produto importante para promover o possibilidade de negócio, dependência de drogas
desenvolvimento local e impactar positivamente ou violência conjugal. Ao final do texto, a autora
o nordeste brasileiro, que concentra 70% dos busca diferenciar as condições de estrangeiras
agricultores familiares. e de imigrantes, enfatizando que, de acordo
com estudos empíricos, é errada a percepção
4) Encarceramento feminino por estereotipada de que pessoas vindas do exterior
envolvimento com tráfico de drogas são mais propensas a cometer crimes.
O texto de Rogéria Martins, A vida na prisão
Raquel Matos e Manuela Ivone Cunha, no de reclusas por tráfico de drogas: um estudo de
capítulo O tráfico de droga no panorama da caso a partir dos guichets do sistema prisional,
reclusão de mulheres de nacionalidade estrangeira trata sobre o encarceramento de mulheres por
em Portugal: algumas linhas de força e tendências, tráfico de drogas no Brasil, que corroborando o
apresentam dados que ajudam a elucidar quem são texto anterior, representa 62% das condenações
as mulheres estrangeiras encarceradas por tráfico femininas, o de associação ao tráfico 16% e tráfico
de drogas em Portugal. O estudo demonstrou internacional 2%. Com base em estudos de casos
que, em Portugal e internacionalmente, o tráfico no presídio de Viçosa em MG, a autora utiliza o
de drogas é o crime mais associado a reclusão conceito sociológico de guichet para interpretar
das mulheres. Outro ponto é que no início do as relações estabelecidas entre instituição, agentes
século XXI houve um aumento na proporção institucionais e presas, na tentativa de revelar as
de reclusas de nacionalidade estrangeira em relações de poder em jogo, na qual a condição
Portugal (25,6%), estando mais representadas feminina é atravessada por desigualdades e
que a população masculina estrangeira na mesma naturalizada pela subalternização feminina
condição. O que possui relação direta com o nesses espaços.
decréscimo da população feminina no universo O guichet é um espaço de aceso às demandas
prisional, especialmente de mulheres nativas. de usuários do sistema prisional, a pesquisa de
Sobre o perfil das mulheres de nacionalidade Martins se debruçou por esse serviço quando
estrangeira reclusas em Portugal, em geral prestado pelo Estado, mas esclarece que na falta
protagonizam um tráfico de pequena escala, são deste, existem outros meios, como pelas facções
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criminosas, que regulam as ações no interior das 60 e 80, e ainda influenciam a forma com que
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prisões. Portanto, o guichet, aqui representado várias nações administram essas questões
pelo Comissão Técnica de Classificação (CTC), repressivamente, proibindo o uso de drogas.
auxilia a visualizar as interações rotineiras Segundo a autora, o que se observa
entre os operadores da burocracia, os usuários atualmente é uma deslocação das políticas de
e o serviço público representado pelo sistema tolerância zero para as políticas de redução
prisional. O CTC é o espaço em que se realiza de riscos, afastando medidas punitivistas e
o plano individualizado da pena privativa de apostando em intervenções que promovem mais
liberdade ao preso, no momento de ingresso no responsabilidade social e comunitárias em relação
sistema prisional para fins de orientação. ao uso e abuso das drogas. Tendência que muitos
Segundo Martins, a condição feminina no países estão seguindo ao equilibrar estratégias
sistema prisional é marcada pela invisibilidade que problematizam os danos associados ao
acrescida do estigma e o fato de estabelecerem consumo e os provocados pelo próprio regime
uma relação assimétrica com os operadores do proibicionista. Um exemplo é a cannabis, que
sistema prisional responsáveis pela produção cada vez mais países passaram a enquadrar em
de serviços. A autora exemplifica com o relato novos arranjos legais orientados por mecanismos
de reclusas que são mães e têm suas demandas de despenalização, descriminalização e regulação
silenciadas pela ameaça da retirada dos filhos, que se adequam a cada contexto e cultura.
assim como o impedimento de acesso a Portugal foi um desses países que no passado
dispositivos ressocializadores, como a educação legitimou políticas repressivas contra as drogas
ou trabalho, que também ajudam na remição e seus usuários. Essa posição foi revista pela
da pena. O que demonstra que essas mulheres Estratégia Nacional de Luta contra a droga
são subjugadas pela sua condição de privadas (ENCT,1999), que auxiliou na implementação
de liberdade nesses espaços, que reproduzem de uma política (expressa na Lei nº 30/2000) e
e acentuam elementos de desigualdade já se tornou referência dentro do próprio regime
impressos pela classe, raça e gênero, reforçando proibicionista, mas adotando um modelo que
um estigma que as acompanha mesmo após a priorizava a atenção à saúde e reinserção social
saída do sistema prisional. dos usuários de drogas, o que foi reforçado pela
iniciativa de descriminalizar o uso de todas as
5) Legislação de drogas drogas, não só a cannabis.
Ainda assim, hoje o crime de consumo se
Em O movimento transformador do sistema mantém em vigor, a descriminalização ocorreu
internacional de controle das drogas – desafios para a posse e consumo de quantidade de drogas
para o modelo português de descriminalização para consumo médio individual para 10 dias e
e para a intervenção em dissuasão, Purificação o cultivo de substâncias psicoativas permanece
Anjos introduz o texto narrando que atualmente ilegal, o que a autora considera ser um equívoco,
tratados e convenções das Organizações das porém, afirma que ainda assim o modelo
Nações Unidas (ONU) e organizações, inclusive português é uma referência de alternativa
não governamentais (ONGs) com suas agendas reformista, com especificidades e limitações,
reformistas, já analisam e discutem novos mas que possui o mérito de buscar combater às
dados, abordagens e tratamentos, quanto aos drogas, sem deixar de priorizar a saúde e o bem-
utilizadores de drogas, inseridos em desenhos estar social, com êxito.
políticos mais efetivos. Uma mudança positiva Marcelo Campos da Silveira faz um estudo
com alguns desafios, especialmente quando aprofundado do comporta¬mento parlamentar
se relembra que marcos legais e sociais com brasileiro na ocasião da votação da Lei de
diretrizes proibicionista, em relação as drogas, Drogas de 2006 em seu artigo A Lei de Drogas e o
foram decididas por convenções entre os anos Parlamento Brasileiro. Nele, esboça um histórico
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detalhado da tramitação da referida lei no 6) Caracterização do consumo de drogas
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Congresso Nacional e quais foram seus impactos
sociais. Olga Souza Cruz, em seu texto Consumo de
A emergência de uma nova lei de drogas substâncias psicoativas em Portugal: caracterização
foi fundamentada pela necessidade de uma de tendências e discussão da sua complexidade
abordagem menos punitiva e mais preventiva e heterogeneidade, analisa que as mudanças
com foco na saúde dos usuários de drogas. No nos padrões de consumo e a compreensão das
texto inicial da lei já se pretendia extinguir a pena pessoas sobre a questão foram influenciadas
de prisão ao usuário de drogas e manter a pena pelas políticas de drogas implementadas desde o
mínima para o tráfico fixada em 3 anos. Porém, início do Século XXI.
essa pena mínima para o tráfico foi aumentada A Estratégia Nacional de Luta contra a
para 5 anos no final da tramitação do projeto que droga (ENCT,1999) surgiu como resposta a
se tornou a atual Lei de Drogas, nº 11.343/2006. representações sociais que consideravam a
Outro ponto importante foi a falta de estipulação toxicodependência, especialmente por drogas
de uma quantidade de drogas que pudesse injetáveis como a heroína, um grave problema
diferenciar um usuário de um traficante, o que social no qual os usuários eram associados a
impele os operadores da lei a realizarem essa criminalidade. A implementação da lei (33/1999)
diferenciação por meio de critérios subjetivos. provocou grande debate internacional, com
O autor explicita que a interseção entre o perspectivas contrárias e favoráveis, ainda que
saber político, médico e jurídico/ criminal que após essa reforma a situação portuguesa tenha
estruturou essa nova lei de drogas, de um lado permanecido igual ou melhor que a de outros
possui características de um poder positivo países europeus.
que busca zelar pela saúde do usuário, e do A autora apresenta alguns dados que revelam
outro, de um poder repressivo que visa prender a representação social acerca das drogas, as
e combater o traficante de drogas. Na prática fontes de obtenção, os contextos, consequências
após a implementação desta lei em 2006, houve e as tendências de consumo. Apresenta, por
o aumento progressivo do encarceramento exemplo, a faixa etária com que se inicia, duração,
massivo de pessoas socialmente vulneráveis, continuidade, dependência e a intensidades
predominantemente negros e pobres, por drogas dos riscos (se autos ou baixos), indicadores que
no país. Como o uso não foi descriminalizado, as revelam que Portugal estão abaixo da média dos
pessoas identificadas como usuários deixaram de padrões de consumo dos demais países europeus,
ser penalizados com reclusão e multas, passando com exceção da cannabis (especialmente entre
por sanções mais brandas (advertência, prestação os jovens e mulheres) e o álcool. Já a população
de serviços à comunidade e comparecimentos a reclusa apresenta dados mais elevados.
programas educativos). Em relação a legislação Outros pontos apontados são: a redução da
anterior (Leis nº 6.368/1976 e nº 10.409/2002), mortalidade e infecções associadas a dependência;
ao serem encaminhados para a delegacia assinam a representação social sobre o consumo, que em
um termo de circunstanciado que funciona como geral deixou de ser associado a criminalidade;
um “boletim de ocorrência” e o comparecimento e o relativo desconhecimento acerca da lei
ao Juizado Especial Criminal (JECRIM). de drogas entre os jovens, especialmente em
O autor conclui que no Brasil, apesar da relação a descriminalização do consumo. Neste
intenção inicial do novo dispositivo médico/ sentido, a autora esclarece que um entendimento
jurídico das drogas ter sido a de deslocar o compreensivo demonstra que a lei não possui
tratamento para instituições médico/ preventivas, poder exclusivo de influência sobre os padrões de
observou-se o hiperencarceramento de setores já consumo, que podem ter múltiplos fatores, como
vulnerabilizadas da sociedade. os pessoais, os socioculturais e os relacionados
com as próprias dinâmicas de consumo. Também
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destaca que de modo geral, os consumos interrompe a abstinência e se retorna ao uso, mas
TEORIA E CULTURA
problemáticos tendem a estar associados a este termo não consegue abarcar todas as formas
circunstâncias socioeconômicas desfavoráveis de cuidado existentes. Pela ótica da Redução de
e que existem pessoas que conseguem conciliar danos, a “recursividade” assume outro prisma,
o consumo com a manutenção de um bom uma vez que se percebe que o usuário tem o
ajustamento nas esferas de sua vida, o que direito de fazer escolhas relativas a minimização
demonstra uma heterogeneidade de consumos. de danos advindos do uso, o que pode ou não
No artigo Padrão de consumo de drogas com incluir a escolha pela abstinência, não sendo ela a
ênfase no crack e a recursividade deste padrão, única opção. Logo, a recursividade é um conceito
Rossana Carla Rameh-de-Albuquerque e Solange que está ancorado na perspectiva da RD e não da
Aparecida Nappo apresentam estudo sobre o abstinência.
padrão de consumo de substâncias psicoativas no As autoras compreendem a recursividade
Brasil, analisando especificamente o uso de crack, como um processo que envolve mais que um
e discutem aspectos referentes aos utilizadores aspecto bioquímico da droga, envolve aspectos
abusivos de drogas e a recursividade. subjetivos e pode estimular o autoconhecimento
A partir da análise de indicadores, as autoras dos usuários, que podem ressignificar e
traçam o perfil predominante dos usuários experimentar outros desfechos para o que estão
de crack, que são homens, jovens, advindos vivendo a cada repetição do uso de drogas.
de famílias desestruturadas, de baixo poder
aquisitivo, com baixa escolaridade, e sem vínculo ***
formal de trabalho. O dinheiro para compra
da droga é derivado de roubos, prostituição ou O livro concentra pesquisas com a utilização
tráfico. Os locais de venda são diversos, podem de metodologias diversificadas para analisar
ser bares, boates, restaurantes ou favelas, com e interpretar a “questão das drogas” em todas
certa omissão da polícia. E quando comparados as suas dimensões da vida social, como a legal,
com os usuários de cocaína intranasal, os usuários de consumo e de saúde, o que facilita ao leitor
de crack apresentam um padrão de consumo mapear e explorar várias de suas modulações
mais grave, maior chance de se envolverem no contexto brasileiro e português. Do mesmo
em atividades ilegais, com prostituição, de modo, a apresentação das metodologias das
apresentarem consequências adversas ao uso, e ciências sociais escolhidas pelos autores podem
de já terem estado ou estarem em situação de rua. ser úteis para indicar a um pesquisador iniciante
Contudo, as autoras informam que apesar quais são as melhores formas de investigação
de o crack ser uma droga com enorme potencial para a produção de conhecimento sobre “drogas”
de desenvolvimento de riscos derivados do e suas dimensões políticas e sociais.
uso, como a dependência, existem usuários que As pesquisas também demonstram, a partir
possuem um padrão de consumo controlado da apresentação de dados consistentes, que
ou esporádico, o que minimiza os danos à vida uma regulamentação que tenha a defesa dos
social, como as relações sociais, de trabalho, direitos humanos e a promoção da saúde como
familiar e demais exigências diárias. Eles são os princípios norteadores é mais eficaz no combate
usuários funcionais. aos problemas sociais derivados do consumo e
O fenômeno da “recaída” é comum entre abuso de drogas para os pacientes, como ocorre
os usuários de crack, especialmente motivadas com o modelo português. Enquanto que, no
por dificuldades em lidar com seus problemas Brasil, o contrário é observado mesmo com
individuais e a vulnerabilidade que os cerca, a aprovação da Lei nº 11.343/2006 que, após
não necessariamente tendo relação com uma diminuir as sanções para os usuários, provocou
“necessidade” pela substância. A recaída pode o aumento do número de pessoas encarceradas
ser entendida como o momento em que se por tráfico, sem que com isso, houvesse a redução
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dos problemas sociais derivados da repressão
TEORIA E CULTURA
fomentada pelo marco proibicionista.
Além disso, a legislação brasileira também
prejudica o acesso de pacientes à cannabis
medicinal; coloca consumidores de drogas em
risco pela falta de controle de qualidade das
substâncias utilizadas; estimula a segregação
social de usuários de drogas como o crack e
impede que agricultores rurais possam superar
as condições de pobreza em que vivem ao
trabalharem em cultivos de maconha.
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TEORIA E CULTURA
RESENHA
Sujeitos de direitos: a constituição da população
“LGBT” no Brasil contemporâneo
A obra propõe uma densa análise a respeito da em 20073, onde se convocava a I Conferência
mobilização dos atores políticos envolvidos nos Nacional GLBT. O período de investigação
debates em torno dos “direitos LGBT2” ou direitos sistemático se deu início no ano de 2008, quando
das pessoas “LGBT”. Considera-se, neste sentido, finalmente aconteceu a conferência, mobilizando
como esta população começa a ser administrada paralelamente uma tentativa de localizar outras
e adaptada no interior de uma morfologia propostas em esferas governamentais que se
de Estado (Rios, 2008) onde se estabelecem referissem à essa população. Demonstra-se de
novos mecanismos de tratamento por conta da que maneira os processos sociais e políticos
burocracia público-estatal. Aguião procura, ao produzem e legitimam a população LGBT como
longo do livro, demonstrar e contextualizar as sujeitos de direitos, não menosprezando jamais o
diversas dinâmicas que produzem o Estado (e papel do “Estado”, que absolutamente não assume
uma imagem determinada/desejada de Estado), a faceta de um elemento estático e coeso, mas um
no qual se subjazem diversas relações de poder ator performático (e em determinados momentos
entre grupos distintos. Neste contexto, o “Estado” problemático) que em sua tentativa de produzir
assume diferentes formas, lugares, objetos, “direitos”, também corporifica “identidades” para
objetivos e pessoas, “produzindo” aqueles aos o funcionamento de sua burocracia, acarretando
quais administra, mas também não reduzindo a em benefícios a determinados segmentos e
agência daqueles que são levados pelo fluxo de prejudicando outrem. A investigação pretendeu
sua burocracia. revelar elementos-chave nos quais se sobressaem
A pesquisa etnográfica iniciou-se através estratégias organizacionais e/ou coletivas,
de um acompanhamento da autora com a estabelecendo performances de “se fazer”
mobilização criada pelo decreto presidencial politicamente. O processo envolve disputas
1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCSO) da Universidade Federal de Juiz de Fora
(UFJF).
2 População designada no momento da pesquisa como: lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros.
3 Ver Brasil (2008).
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internas e negociações nas quais são formuladas estadual do programa federal.
TEORIA E CULTURA
linguagens e semióticas distintas, manipuladas Como resultado dessas três distintas
pelos atores em diversos momentos para tratar perspectivas, a investigação foi divida em três
suas próprias necessidades. Assim, é comum a partes: a primeira, enfatizando a “dinâmica
formulação de alianças e também de diferenças, própria de constituição de direitos para
dado que o campo político LGBT nunca pode determinados sujeitos”; a segunda, a produção
ser interpretado de maneira uniforme e coesa; discursiva dos atores; enquanto a terceira envolve
por exemplo, um questionamento importante uma análise densa de uma política pública no
é: “Qual a medida do sofrimento a ser colocada qual podemos ver a interação entre diferentes
como parâmetro para a criação de mecanismos atores. Desta forma, é possível acompanhar como
de proteção e garantia de direitos”? A resposta é tal população é moldada pelo entrelaçamento de
que o sofrimento não é medido, ele é negociado direitos, sendo a coletividade um sujeito político.
e também “disputado”, pois o reconhecer da dor Ademais, uma das pistas para a instauração da
(por parte do Estado) é também uma forma pesquisa foi à disputa institucionalizada entre
de visibilidade onde é possível a produção diversas identidades agregadas através da sigla
de políticas públicas específicas para atender LGBT evidenciada em decretos e regimentos,
determinada população. ainda em 2008. Tal perspectiva foi crucial para
Poder-se-ia dizer que as ponderações intrigar a autora, que começara a perceber como
metodológicas e/ou as denominadas “entradas” as disputas e diferenciações eram um elemento
de análise foram cruciais para a produção de marcante no processo de atender as demandas
uma etnografia riquíssima em intersecções entre desse público.
sujeitos localizados em diversas instâncias. Ao Na primeira parte da pesquisa tem-se
focalizar as relações entre diferentes atores, são uma análise comparativa que possibilitou
exploradas tanto nuances micro quanto macro um direcionamento para as etapas seguintes
políticas, produzindo por consequência um do trabalho, no qual a atenção da autora se
panorama complexo de uma rede de atores, redobra para tentar identificar quem são essas
analisada por três perspectivas distintas: A) pessoas, como as diferenças são negociadas para
análise documental de documentos considerados reivindicar direitos através de uma coletividade
relevantes, como por exemplo, programas e e, por fim, que mecanismos são acionados
planos de governo, anais de eventos, decretos, para determinadas marcas sociais que outrora
portarias, etc; B) observação de eventos podem ter maior ou menor relevância. Através
como seminários, congressos, conferências e de uma análise das reuniões/ conferências que
audiências públicas, destacando-se a seleção de mobilizaram tal problemática, pode-se ver
espaços nos quais concentram a representação de como a relação entre concepções de gênero,
organizações tais como “academia/ universidade”, sexualidade, raça, etnia e outros marcadores
“ativismo/ militância” e “governo/ estado”; sociais da diferença se mobilizam. Não menos
C) a implementação de uma política pública importante, também é feita uma analise de
específica, o programa Rio sem Homofobia, que documentos4 para acompanhar as mudanças de
é caracterizado pela autora como uma versão vocabulário da referida população.
4 Os documentos foram as três versões do Programa Nacional de Direitos Humanos (1996, 2002 e 2009); o relatório
da participação do Brasil na Conferência de Durban (2001); o programa federal Brasil Sem Homofobia (2004); o Plano
Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de LGBT (2009) e os relatórios finais das duas conferências
nacionais LGBT realizadas até o momento de finalização da pesquisa (2008 e 2011). Tal análise documental é importante,
pois sistematizam um percurso para uma “política LGBT”, que acontece desde os anos 1990, que se desenvolve com ainda
mais intensidade na última década, onde o “sucesso” de tais políticas não necessariamente advém da realização efetiva
das mesmas pelo “Estado”, mas sim como instrumento de pressão e visibilidade, mesmo que seja para cobrar o que foi
prometido e nunca efetivado. De tal forma, é possível acompanhar a instauração de uma agenda cada vez mais progres-
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Desta maneira, primordialmente temos Na segunda parte do livro o foco está na
TEORIA E CULTURA
uma análise da primeira conferência, no qual linguagem e gramática dos atores, explorando
se enfatiza o que é dito e feito nos discursos suas respectivas estratégias argumentativas. A
de abertura e também nas falas dos painéis produção discursiva é definitivamente moral,
expositivos; e, na segunda, os destaques são onde mesmo havendo as tensões e disputas,
falas e cenas dos debates ocorridos na plenária há o estabelecimento de uma coletividade
final. Possivelmente tal diferença está ligada ao que considera inaceitável qualquer tipo de
processo de “trabalho de campo”, dado que na discriminação por orientação sexual e/ou
primeira reunião a autora estava adentrando identidade de gênero. Curiosamente, em cada
em um “terreno desconhecido”; e na segunda, subcapítulo dessa etapa, há a representação de
diferentemente, já havia uma maturidade que se enunciados recorrentes presenciadas no campo
traduziu em um caráter mais seletivo do que é ou da autora, onde as expressões integram um
não relevante. Essa prerrogativa é determinante conjunto de frases de efeito – ou “atos de fala”
para a produção de uma diferenciação - que, pela repetição, performatizam e reúnem
mais sistemática entre ambas as reuniões, significados que condensam algumas das
enriquecendo o trabalho ao produzir sentidos estratégias argumentativas da luta por direitos
e disputas opostas entre os atores envolvidos. (Austin, 1962). As falas foram oriundas dos
Por exemplo, na primeira temos um “clima” de registros do caderno de campo entre 2008 e
vitória, no qual se destaca o papel do Presidente 2011, de eventos públicos onde se reuniam atores
Luiz Inácio Lula da Silva que, ao discursar, é do ativismo, do governo e das universidades
interpretado por diversos participantes como públicas. E em contrapartida com as falas desses
um exemplo do “reconhecimento” marcante atores, são acionados alguns opositores-chave,
pelo Estado. Já na segunda, a presidente Dilma que se manifestam em maior ou em menor grau,
Vana Rousseff é ausente, que se traduz em um contrariamente a tal agenda.
“clima” de disputa e tensões, onde era explicitado Inicialmente são expostas as considerações a
(pelos interlocutores) o não comprometimento respeito da I e II Marcha Nacional pela Cidadania
do seu governo com a causa LGBT. Ainda mais, LGBT e contra a Homofobia em Brasília no qual
neste segundo momento ocorre uma insatisfação a pertinência desses eventos é o seu caráter de
sistemática com as políticas públicas em curso, mobilização e pressão, possibilitando um impacto
no qual diversos participantes acusavam que a tanto no Poder Legislativo quanto no Judiciário.
conferência somente servia como um mecanismo Fomentando o debate de pautas consideradas
para legitimar o que “eles quisessem fazer”, sendo importantes para esse público, produzindo efeitos
“eles” um sujeito não muito claro que pode apontar “pedagógicos” em diversas esferas e também
ora para o governo, ora para determinados manifestando um exímio caráter simbólico. A
setores partidários, ou para alguma liderança do primeira marcha foi indicada por diversos atores
movimento social. Essas reuniões funcionavam como um momento decisivo para esta população,
com um espaço deliberativo com diversas onde se manifestaram diversas pautas tais como:
limitações para o aprofundamento de discussões a “garantia do Estado laico”, o “combate ao
que forneceriam, ao final, um plano de ações. fundamentalismo religioso”, o “cumprimento
Negociações e (des)articulações promoveram, do Plano Nacional LGBT em sua totalidade”, a
segundo a autora, a manutenção de uma “trama”, aprovação imediata do PLC 122/2006 (Combate
em um sentido contínuo de construções naqueles a toda discriminação, incluindo a homofobia) e
que sustentam e participam da esfera LGBT. decisões favoráveis do Judiciário “sobre união
4 sista e também espaços de participação popular, instaurando uma relação produtiva entre a sociedade civil e o poder
público, tentando-se a institucionalização de demandas e também a “produção” de sujeitos pela burocracia: há a
proliferação de classificações identitárias ao mesmo tempo em que é feita uma tentativa de criar uma identidade coletiva.
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estável entre casais homoafetivos, bem como a esta lógica se deu por proximidade da autora
TEORIA E CULTURA
mudança de nome de pessoas transexuais”. Já na das redes de ativismo e de pesquisadores do Rio
segunda, o caráter mais envolvente é a estratégia de Janeiro, e também pela ampla divulgação do
bem-sucedida de visibilização massiva, na qual os programa pelo governo, celebrado como uma
ativistas enfaticamente ressoam sobre a violência espécie de modelo de implementação e gestão de
e assassinatos da população LGBT, em um tom políticas públicas para este público.
de moralização para fornecer instrumentos Os Centros de Referência de Combate à
de pressão política. Nesse sentido, é feita uma Violência e Promoção da Cidadania LGBT
coletivização de aspectos individuais, além de foram um esforço por parte do governo de
produzir uma dimensão espetacularizada que produzir um aparato institucional capaz de
tem como objetivo principal impactar parte da atender as demandas dessa população, o que
opinião pública em prol da causa LGBT. não impediu os “jogos da política” de estarem
Ainda foi possível analisar algumas “tramas” atrelados a conexões pessoais, “climas favoráveis”,
institucionalizadas no plano executivo. Foi negociações e arranjos políticos de variadas
possível acompanhar o plano administrativo ordens. Um exemplo marcante seria as diversas
governamental, ilustrando os tipos de desafios solenidades de instauração do programa, onde há
e disputas relacionadas às criações de instâncias a manifestação de diversas autoridades, que além
administrativas nos níveis estaduais e municipais de aglutinar exímia autoridade, manifestam um
para atender demandas e promoção de direitos. O compromisso do poder público e a instauração de
desafio maior foi à relação entre a administração um marco político-social. Tais centros tinham os
pública e suas técnicas com o modus operandi objetivos principais de acolher e encaminhar as
de movimentos sociais. Por exemplo, em uma demandas dos sujeitos através de um atendimento
reunião dos “Gestores LGBT” na sede da interdisciplinar e também de funcionar como um
Secretaria de Direitos Humanos em Brasília, centro que promoveria e produziria informações
vê-se a articulação entre movimento social e relevantes para a mobilização de políticas
gestão pública, que se uniram para fazer um públicas de combate à homofobia e promoção
lobby em uma questão política. Tais “gestores” da cidadania LGBT. Contudo, devido à extrema
no passado apresentavam certa história pessoal “pressa” para atender esta população, por outrora
de militância com organizações LGBT ou de não havia os procedimentos necessários para
mulheres, o que não impediu por parte desses realizar suas demandas. Pesquisadores também
gestores de continuamente se converterem foram articulados para a criação de uma comissão
burocraticamente (em um sentido weberiano). de monitoramento e avaliação, especialmente
Outra prerrogativa foi perceber como os atores sob a forma de reuniões.
se envolveram em um progressivo aprendizado A criação do Laboratório Integrado em
do funcionamento administrativo, onde há Diversidade Sexual e de Gênero, Políticas e
uma adaptabilidade institucional para atender Direitos (LIDIS) na Universidade do Estado do
demandas, especialmente aprender a linguagem Rio de Janeiro (UERJ) foi determinante para
administrativa como suas operações, além da a operacionalização desta parte da pesquisa,
instauração de redes de contatos e influências. devido à aproximação da autora como
Na terceira parte a ênfase é o acompanhamento pesquisadora-colaboradora, acompanhando as
do Programa Rio Sem Homofobia. As reflexões ações de apoio a implementação do centro de
caem sobre a população LGBT que é gestada referência, percebendo, por conseguinte, como
e gerida pela administração governamental. houve o estabelecimento de redes de parceria
Tenta-se prioritariamente apreender as funções, entre diferentes atores, tais como ativistas
papéis e objetivos da população alvo e a demanda sociais e a esfera de gestão pública. Foi possível
daqueles que necessitam ser atendidos pelo estar presente em alguns dos encontros de
poder público. A escolha operacional de abarcar supervisão e formação da equipe de profissionais
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que atuavam no serviço, onde se manifestavam tanto para apoiar, implementar e avaliar a
TEORIA E CULTURA
dúvidas a respeito das classificações, protocolos política pública quanto contribuir para a
de funcionamento e de identificação, formação acadêmica dos estagiários-estudantes,
encaminhamento de demandas, etc. em um intercâmbio produtivo tanto em um
O processo seletivo dos profissionais é um sentido acadêmico-científico quanto para a
ponto de destaque, isso pela configuração interna produção de legitimidade para a política pública
que possibilitou futuramente disputas. Por um em si. Mesmo assim, nem todas as tentativas de
lado, havia profissionais contratados para o intervenções da UERJ foram levadas adiante pela
atendimento aos “usuários” tais como psicólogos, gestão dos centros, evidenciando, portanto, que
advogados e assistentes sociais – os que detinham o conflito entre “técnicos” e “políticos” também
o saber “técnico”. Por outro, haveria aqueles permaneceu sob esta esfera.
que além de formação acadêmica também Por fim, produz-se como resultado
tinham um passado de militância política em uma etnografia necessária e coesa, onde é
movimentos sociais - os “políticos”. Os primeiros demonstrado um panorama denso da produção
afirmavam que não tinham suas competências de uma “população” LGBT. A sensibilidade
valorizadas e faltava autonomia, enquanto os de ser “afetado” condiz com a trajetória
segundos “atacavam” a falta de experiência de acadêmica da autora, pois desde sua graduação
seus “subordinados”. Depois da instauração do ela vem se dedicado a questões relacionadas
serviço, é comentado que parte das reuniões à (homo)sexualidade, ao gênero, à cor/raça e à
envolvendo os diversos agentes girava em torno mestiçagem. Tem-se a perspectiva de alguém que
de discussões como as melhores maneiras de há muitos anos se envolve sistematicamente com
formatar rotinas de atendimento, fichas de a análise de como diferentes marcadores sociais
cadastro, atribuições de cada cargo da equipe de produzem desigualdades e assimetrias entre
profissionais dos centros etc, ou seja, questões pessoas, elucidando os diversos reveses, conflitos
práticas que emergiam do cotidiano dos serviços. e adesões de diversos atores que desejam suas
A disputa entre “técnicos” e “políticos” resultou demandas atendidas, que nada mais são do que
em resistência de ambos os lados para a resolução os mesmos direitos daqueles legitimados pelo
de problemas no cotidiano das atividades. Desse status quo vigente. A leitura deste trabalho é
processo, além das disputas internas por parte da impreterível para todos aqueles que buscam
própria burocracia, é possível perceber através da compreender a constituição da população LGBT
análise minuciosa da autora, que a esfera pública nas últimas décadas.
foi incapaz de abarcar todas as demandas feitas
por aqueles que optaram pelo serviço, no qual a Referências Bibliográficas
violência física (contra essa população) não era o
principal desafio enfrentado, mas sim a garantia AGUIÃO, Silvia. Fazer-se no “Estado”: uma
de direitos em práticas cotidianas diversas, como etnografia sobre o processo de constituição dos
por exemplo, a união estável e retificação de “LGBT” como sujeitos de direitos no Brasil
registro civil. contemporâneo. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018.
Além do mais, foi possível também analisar
a produção (especialmente de trabalhos de AUSTIN, John Langshaw. How to do things
conclusão de cursos) de estudantes-estagiários with words. Oxford: Oxford University Press,
que promoveram serviços pela política do 1962.
Rio Sem Homofobia. Capta-se neste momento
que o serviço nasceu sem estrutura e métodos BRASIL. Direitos humanos e políticas
definidos, mas aos poucos foi se modelando públicas: o caminho para garantir a cidadania
conforme a necessidade do público. O papel GLTB. Anais da Conferência de Gays, Lésbicas,
da universidade pública (UERJ) foi importante Bissexuais, Travestis e Transexuais - GLBT.
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Brasília, 2008.
TEORIA E CULTURA
GREGORI, Maria Filomena. Prazeres
perigosos: erotismo, gênero e limites da sexualidade
(tese). Universidade Estadual de Campinas, 2011.
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NORMAS PARA PUBLICAÇÃO uso do português e do inglês.
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A Revista “Teoria e Cultura” do Programa de Pós- Palavras-chave: o texto deve conter entre 3 e 5
Graduação em Ciências Sociais da Universidade palavras-chave assim como Keywords e Palabras-
Federal de Juiz de Fora é uma publicação semestral clave (Motsclés), sobre o tema principal, sempre
dedicada a divulgar trabalhos que versem sobre separadas, por ponto.
temas e resultados de pesquisas de interesse para a
Sociologia, a Antropologia e a Ciência Política. Esta Texto: o texto deve possuir uma extensão entre
revista está aberta para receber artigos, ensaios, 5.000 e 9.000 palavras para artigos e de 3.000 a
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and 10520:2002.
Abstract: The article must be accompanied of the
abstract in the language that it was written (150- Notes: The notes should be used only if necessary,
250 words) and its translation for a foreign language and should always come as footnotes, using this same
(abstract and title). If the article is in Portuguese, the font (Times New Roman or Arial) in size 9.
abstract need to be in the same language. Moreover,
the abstract must be translate to the English and
Spanish and alternatively for the French. If the article
is in English, the abstract need to be in the same
language and mandatorily is necessary to translate
it for the Portuguese and, in alternative cases, to the
French or Spanish. Finally, if the text is in Spanish,
the translation of the abstract has to be in English and
Portuguese.
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - UFJF v. 15 n. 2 Julho. 2020 ISSN 2318-101x (on-line) ISSN 1809-5968 (print) 265