Iniciaçao Religiosa
Iniciaçao Religiosa
Iniciaçao Religiosa
48006/978-65-86602-16-6-21
Danielle Rives
1 Este capítulo foi redigido em 2013 após uma estadia de ensino e pesquisa na Universida-
de Federal de Santa Catarina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Gostaria ainda de agradecer a Miriam Grossi e Agnès Fine
por esta iniciativa à qual elas generosamente me integraram.
2 D’ANDILLY, Angélique de Saint Jean Arnauld. Aux portes des ténèbres: Relation de
captivité. Paris: La Table Ronde, 2005 [1954]. p. 30-31.
[ VOLTA AO SUMÁRIO ]
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religiosa do último concílio buscam reencontrar a simplicidade original do
procedimento das primícias monacais: aliás, ela parece não ter desapareci-
do em algumas comunidades.
Rito de passagem cuidadosamente formalizado pela regra, tanto em
seus gestos quanto em seu discurso, a vestição associa estreitamente a pos-
tulante, sua família, seus amigos e o conjunto da comunidade que a acolhe
numa dramaturgia cuja encenação articulará nossa primeira reflexão.
Para além do cerimonial e de sua cenografia espiritual, é necessário
compreender o alcance e o sentido verdadeiros da mutação identitária vivi-
da pela noviça. Assim, num segundo momento, interrogaremos a maneira
como essa nova identidade é rejeitada nos atos ordinários da vida monásti-
ca e como a religiosa assume essa dupla personalidade.
Reflexão de antropologia histórica considerada na longue durée, este
estudo busca fazer emergir as recorrências de uma prática observável des-
de o fim do século XV. Este trabalho se apoia conjuntamente na explora-
ção de diversos fundos de arquivos e em testemunhos recolhidos ao longo
dos últimos meses junto a religiosas que viveram essa mudança identitária.
O corpus das fontes consultadas se alimentou das séries, nacionais e de-
partamentais, consagradas ao clero regular, em particular os registros de
vestição regularmente mantidos a partir do século XVIII. A secularização
revolucionária acarretou intensas trocas entre a administração e as comu-
nidades, trocas que se reforçaram ainda mais a partir da reconciliação re-
ligiosa sob o Consulado e o Império: os Arquivos Nacionais possuem um
extenso arquivo sobre essas relações, muitas vezes tumultuosas. Os fundos
privados também fornecem, especialmente através de correspondências e
de certos inventários, preciosas informações.
A dramaturgia da vestição
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se a receberá ou não. Caso decida que sim, a data da cerimônia é fixada.
O ritual que preside à vestição não mudou fundamentalmente desde a época
moderna: manuscrito encadernado3 ou texto impresso, ele organiza minu-
ciosamente a iniciação religiosa nos seus mínimos detalhes.
Os preparativos da celebração
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A superiora, por sua vez, envia os convites à família, aos benfeitores e
aos amigos do mosteiro, além de combinar com a despenseira e a cozinheira
a preparação da refeição da festa5.
Chegado o dia, tudo é ordenado de uma maneira que as últimas de-
cisões conciliares não alteraram substancialmente e que, para algumas or-
dens, se manteve até o último terço do século passado6.
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A família participa ativamente da celebração. Conduzida ao pé do al-
tar por seu pai, Josette se lembra de sua tomada de hábito em agosto de
1953, em Villecomtal, perto de Rodez: “Éramos quatro e sempre me recor-
darei porque é uma lembrança dolorosa: entrei na igreja com um vestido de
noiva e saí toda de preto9”.
Se o vestido nupcial desapareceu, o simbolismo do casamento perma-
nece inalterado10. A maior parte dos cerimoniais insistia outrora fortemente
no tema da ruptura com o mundo. A cerimônia começa com acentos alegres
de esponsais, como nesse dia de maio de 1623 em que “Anne Le Roux [...] foi
conduzida com os violinos, como uma noiva, desde a casa do Sr. Castelão
até Sainte-Ursule, estando acompanhada de seus pais (VACHEZ, 1891).
A saída da capela era seguida, no caso das contemplativas, da trans-
posição simbólica da clausura: a postulante, recebida por suas futuras com-
panheiras, era conduzida até o coro da capela conventual para a sequência
da cerimônia. Em seu diário, Hélène Massalka, futura princesa de Ligne, se
lembra da vestição da senhorita de Rastignac na Abbaye-aux-Bois, em 1778:
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de fazer em semelhantes ocasiões. Ela entrou no pátio mais morta
do que viva. (PEREY, 1887 apud REYNÈS, 1987, p. 74)
As etapas da passagem
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e uma coroa de rosas brancas, abriram então a grade e a apresen-
taram ao padre que a abençoou. (PEREY, op. cit., p. 74)
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aparece como um acessório privilegiado do cerimonial: igualmente asso-
ciada à profissão, a tradição quer que ela seja deposta sobre o corpo da reli-
giosa falecida durante sua exposição no coro, repetição do rito para a última
passagem (Ibidem, p. 160).
O sacrifício dos cabelos constitui a segunda renúncia “às pompas e
vaidades do mundo15”. A senhorita de Rastignac “tinha longos cabelos loi-
ros [...]. No momento em que a mestra das noviças pôs a tesoura neles, ela
estremeceu. Puseram seus cabelos numa grande bandeja de prata” (PEREY,
op. cit., p. 75). A oferenda desse atributo maior da sedução feminina repre-
senta um momento forte em todos os cerimoniais de vestição. Por vezes, à
maneira de um holocausto, os cabelos são queimados numa espécie de ri-
tual purificador: assim, esse sacrifício participa diretamente da rejeição do
corpo, “esse abominável traje da alma”, que deve ser negado antes de ser
disciplinado (DELUMEAU, 1983). Elizabeth Kuhns evoca a permanência da
tradição numa comunidade de Clarissas: “Algumas freiras Clarissas man-
têm a tradição de cortar seus cabelos na profissão e coloca-los numa cesta
durante a noite com um crucifixo abençoado.16”.
A etapa seguinte participa, aliás, dessa vontade de desfazer tudo o
que poderia contribuir para identificar a pessoa: cumprindo o ritual mile-
nar da clausura simbólica, a superiora coloca sobre a cabeça da pretendente
o capuz e o véu, relegando de certa forma seu antigo rosto ao mundo que
ela acaba de abandonar. Então, erguendo a noviça ajoelhada, ela a abraça
em sinal de agregação à comunidade com a qual está, a partir de então, em
completa harmonia de vestição.
A metamorfose da identidade física é finalmente coroada por aquela da
identidade patronímica. Apoteose da renúncia, a mudança de nome constitui
a última etapa dessa temática da morte para o mundo. “Não portareis mais o
nome de vosso pai”, como se a mutação nominativa garantisse a transferência
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espiritual da religiosa e a integrasse definitivamente a sua comunidade17.
A atribuição do nome religioso conclui a mudança de estado da noviça, asse-
gurando a passagem de sua família de carne a sua família de graça18.
Embora o ritual dos adeuses atrás da grade tenha, de modo geral, de-
saparecido e não se fechem mais simbolicamente as cortinas, a separação
está consumada19. A comunidade soleniza a recepção daquela que acaba de
agregar ao grupo: “A Superiora e as Irmãs vão para a sala de Comunidade
onde a noviça as saúda e abraça modestamente20”. Uma nova mãe e novas
irmãs, sua família de substituição, a recebem, oferecem-lhe pequenos pre-
sentes espirituais e partilham o banquete da festa21.
Assim, a vestição é essa dupla celebração da morte e da vida. Por um
lado, ela exprime a morte para o mundo, simbolizada por gestos fortes: não
está tão distante o tempo em que a noviça, após ter vestido o hábito, dei-
tava-se no piso frio da capela, recoberta por um sudário, e deixava o coro
sob os acentos fúnebres do De profundis. Mas essa cerimônia exprime tam-
bém o renascimento, o que justifica a ideia de novo batismo e a atribuição
do nome de um santo padroeiro àquela que acaba de renascer. A vestição
é, portanto, uma festa que celebra a passagem do mundo daqueles que vi-
vem e morrem no século àquele daquelas e daqueles que já estão à espera
de eternidade. Não é à toa que o capuchino Nicolas de Dijon termina um de
seus sermões de vestição com estas palavras:
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Tolerai, portanto, meu caro Irmão, que [...] eu acompanhe vossa
iniciação na Religião com as mesmas palavras que a Igreja acom-
panha uma alma cristã em sua saída do mundo. Profiscicere ani-
ma christiana de hoc mundo. Ide, ó alma religiosa, saí da prisão
de vosso corpo, já que o céu vos oferece vossa liberdade. (DIJON,
1695 apud DOMPNIER, 1993, p. 64)
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significação espiritual, aparece como uma arma apontada contra um mun-
do laicizado que tentara aniquilar a instituição monástica.
As regras e constituições, até onde sei, nunca regulam formalmente
essa prática, sendo que algumas sequer a mencionam23. A maioria daquelas
que indicam a mudança o faz em termos bastante neutros: entre os Domi-
nicanos de Gramond, o capítulo consagrado à recepção das noviças precisa:
“a postulante receberá ali, para melhor significar a mudança de vida que se
opera nela, um nome Religioso pelo qual será designada a partir de então
em todos os atos da vida regular, precedido pela palavra irmã24”. Da mesma
forma, o uso público do nome religioso está mais ligado a circunstâncias ou
oportunidades particulares do que a um código preciso.
23 A consulta de numerosas regras monásticas, tanto para o período moderno quanto para
os séculos XIX e XX, confirma essa constatação.
24 Règles et constitution des religieuses du Tiers-Ordre de Saint Dominique. Congrégation
de Gramond, diocèse de Rodez. Nevers, Lyon: Lécuyer, 1934. p. 137.
25 Dom Cabrol, Dictionnaire de théologie catholique, t. XIII-2, art. religieux, religieuses,
2157-2182.
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peça de devoção representada num palco dissimulado atrás dos altos mu-
ros do monastério. Deixemos a palavra às interessadas. Josette afirma com
veemência: “O nome é mudado com a mudança de traje: é indissociável.
Deixamos nossos hábitos e nosso nome de batismo! A mudança de hábito
é indissociável da mudança de nome e é algo extremamente violento, que
marca uma ruptura com a vida anterior26”.
Para Madeleine, religiosa providente que trabalha num apostolado
junto a famílias desfavorecidas de um bairro pobre de Toulouse, “o impor-
tante é o chamado a que não se pode resistir. Escolhi o nome de Madeleine
porque tinha uma simpatia particular pela padroeira de todos os pecadores:
mas o importante não é isso. Eu tinha uma vida antes, gostava de rapazes; é
preciso fazer escolhas, renunciar a muitas coisas, não é fácil27”.
Testemunhos comoventes, mais de cinquenta anos depois do acon-
tecimento, de mulheres que sentiram, cada uma à sua maneira, a inten-
sidade da transformação. Iniciar-se na religião equivale, portanto, a fazer
escolhas, a renunciar, por conhecimento de causa, àquilo que era sua vida
anterior, para responder ao chamado de uma pequena voz: estamos a qui-
lômetros de distância do pseudônimo!
Deixar sua família, abandonar seus hábitos seculares e seu nome
constituem, portanto, um todo.
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O requinte de precisões para descrever os tecidos, as cores, as formas, o
comprimento de cada peça do vestuário, traduz claramente a preocupação
de modelar um ser sem identidade que deve se fundir no universo comuni-
tário. François de Sales considera o hábito como uma espécie “de insígnia
que nos fixa no interior da alma e traduz do lado de fora suas disposições
sérias ou frívolas28”. A túnica preta, cinza ou marrom destina-se a ajudar a
religiosa a “se lembrar de que um dia ela morrerá29”.
Entrando no convento, a jovem deixa suas antigas roupas na porta e
renuncia a seu nome que, outrora, pelo batismo, fizera-a entrar na grande
família dos cristãos.
Ele não quis que fôssemos chamadas como várias outras reli-
giosas reformadas, a quem foram dados nomes como Catherine
de Jésus, Marguerite de la Croix, e assim por diante, e sim
Jeanne-Françoise, Marie-Marguerite, acrescentando o nome
de algum santo àquele que a irmã recebeu no santo batismo.30
28 François de Sales à Jeanne de Chantal, citado em D.S.A.M., t. 2, art. Vêtement, col. 2365.
29 Jérôme de Marcella, (D.S.A.M.), ibidem.
30 Informação amavelmente comunicada por Patricia Burns, arquivista do Convento da
Visitação em Annecy.
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A escolha do nome: critérios e intervenientes
31 P.-E. Viviers, “Notes sur les Clarisses de Millau avant la Révolution”in Sainte Claire en
Rouergue, (colloque de Millau, 1993), p. 193. Fonds de Pointis, A.D.H.G., 1J 644. Esse caso
não é excepcional: encontramos outros exemplos desse tipo, especialmente nas fórmu-
las de tratamento de cartas enviadas a diversas prioras e superioras. Ver especialmente
o rolo “correspondências” no fundo das Tiercerettes nos Arquivos departamentais da
Haute-Garonne , 212 H 2.
32 Irmã Marie du Sacré-Cœur, monja do convento de Bourg-en-Bresse, relançou sua de-
voção dedicada à canonização de Marguerite-Marie. Musée des Pays de l’Ain, Ma fille
qu’es-tu venue faire ici ? Scènes de vie au couvent (catálogo de exposição no museu de
la Bresse, 1999), p. 19.
33 M. de Pontaumont, Livre de raison des Filles de la Congrégation de Notre-Dame de
Carentan [Livro de razão das Filhas da Congregação de Notre-Dame de Carentan],
(Cherbourg : A. Mouchel, 1860).
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ilustra muito bem as correntes espirituais do Grande Século. Cinquenta e
uma noviças tomam o véu entre 1737 e 1783. Dessas, treze incorporam um
prenome masculino a seu nome religioso, respeitando talvez as instruções
do conselho de Trento que denuncia a feminização abusiva de prenomes
que não correspondem mais à imagem do modelo que cada uma deve imi-
tar34. Se examinamos a lista dos prenomes femininos mais recorrentes, po-
demos pensar que as obras de devoção colocadas à disposição das religiosas
evidentemente contribuem para guiar suas escolhas (BONS, 2000).
No registro das devoções que participam da construção da nova iden-
tidade, mais da metade associa o nome de Jesus àquele do santo escolhido e,
se acrescentamos a isso as referências ao Santo-Sacramento, constatamos a
proporção esmagadora dos cultos cristológicos35. Em segundo lugar, a ve-
neração de Maria e a dos anjos ficam quase empatadas com oito e sete ocor-
rências, enquanto José deve se contentar com uma só, assim como Pierre
Fourrier, um dos fundadores da congregação. As referências aos dogmas
não fazem sucesso, mas os pais da Igreja se saem melhor ao passo que os
episódios da vida de Cristo são ilustrados por algumas menções.
Essa dupla nomeação, que coloca a religiosa sob a proteção de um
santo, modelo e protetor, ligando-a ao mesmo tempo a uma espiritualida-
de transcendente, revela a vontade de inscrever sua identidade bem além
da simples mudança de estado. Nomear-se Adélaïde de Jésus ou Colombe
du Saint Sacrement inscreve o ser numa genealogia divina que o distingue
não apenas do comum dos mortais, mas das outras monjas cujos nomes
permanecem mais normais. Seria, aliás, interessante pesquisar em quê as
variantes onomásticas podem contribuir para desvelar as origens sociais e
culturais dos indivíduos. A modesta amostra do monastério de Carentan e
as informações fornecidas pelo registro de vestição oferecem alguns indí-
cios, mas essas nos parecem insuficientes para tentar essa abordagem aqui.
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Na escolha do nome religioso, quais são os intervenientes? A deci-
são depende ao mesmo tempo da época e da comunidade (RIVES, 2008). O
nome pode ser atribuído pela hierarquia, o mais das vezes pela superiora.
Essa situação parece ter sido a regra geral no século XIX, especialmente nas
ordens contemplativas. Do lado oposto, situa-se a livre escolha deixada a
cada uma, com as comunidades, no entanto, buscando se preservar dos ex-
cessos místicos ou fantasistas de certas recrutas36. É a modalidade mais fre-
quente hoje. A meio caminho, finalmente, existe a eleição negociada entre a
impetrante, a madre das noviças ou a superiora. Em algumas comunidades
subsistiu por muito tempo a prática da lista proposta pela postulante a par-
tir da qual as responsáveis efetuavam a escolha final37.
Mas, seja imposto, negociado ou totalmente livre, o nome deve ser
plenamente assumido por cada uma.
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Se aplicamos essa proposição ao nome, esse torna-se então um meio
de afirmação que assume a dupla função de signo e instrumento dessa me-
tamorfose. Nessa hipótese, ele serve para identificar não apenas a religio-
sa, mas também o ser em sua globalidade, tanto no seio de sua comunida-
de quanto diante do mundo que ela abandonou. O século XIX nos oferece
muitos exemplos dessas fundadoras de congregações cujo nome religioso
se tornou uma espécie de porta-estandarte no combate travado para fazer
triunfar seu ideal espiritual. Longe de ser um retiro tranquilo, o convento é
para essas mulheres o meio de exprimir plenamente seu ego (TURIN, 1989).
Algumas entrevistas confirmam essa abordagem. Entre minhas in-
terlocutoras, algumas parecem considerar, sem ter disso uma consciência
clara, o nome religioso como um atribuidor de estatuto social. Oriundas,
por vezes, de famílias rurais modestas, elas vivem sua entrada no convento
como uma promoção, e a escolha do nome participa dessa integração valo-
rizadora. Françoise-Thérèse explica minuciosamente as razões espirituais
de sua escolha, assim como aquelas pelas quais ela não retomou seu nome
de batismo depois do Vaticano II: “Éliette não era um nome religioso; estava
reservado à família38”. Em outros termos, trata-se de não confundir a esfera
familiar e o estado religioso, do qual o nome reflete toda a dimensão.
É igualmente interessante tentar apreender o estatuto desse nome
aos olhos do mundo, em particular do poder político.
Se nenhum texto canônico define claramente a identidade monás-
tica, o poder monárquico precisa suas regras desde 1736. A declaração ré-
gia obriga as comunidades regulares a manterem um duplo registro das
vestições e das profissões e a remeter um exemplar desse registro a cada
cinco anos ao bailio39. Ora, o texto régio só leva em conta a identidade pa-
tronímica, sem qualquer menção ao nome religioso. Isso não impede as
comunidades de, às vezes, darem mais ênfase a esse último do que à
identidade original.
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O poder político, inclusive sob o Antigo Regime, exprimiu por vezes
sua desconfiança em relação a uma prática que tendia a separar uma par-
te da população da lei geral. Quando da fundação de Saint-Cyr, Luís XIV
exige que as constituições da nova ordem rejeitem oficialmente o uso do
nome religioso, sendo as damas convidadas a conservarem seu patronímico
(REYNÈS, op. cit., p. 250).
Através dos registros de vestição, tomamos consciência das diversas
formas de apego ao nome: sobriedade de alguns que apenas aplicam a regra
fixada, exuberância de outras para as quais a declinação identitária oferece
a oportunidade de exaltar as origens prestigiosas de seu recrutamento.
A República também manteve uma relação frequentemente ambígua
com essa nomeação e as relações com a autoridade pública reservam várias
surpresas, o uso do nome duplo podendo dissimular pequenas e grandes
fraudes.
Finalmente, a inscrição identitária não concerne apenas aos registros
capitulares, sendo muitas as oportunidades de enunciar a identidade
(RIVES, op. cit.). Qual é, entre outros, o estatuto da nomeação das religio-
sas no seio de sua comunidade?
Dos usos cotidianos, não reteremos mais que as maneiras como as
religiosas se designam entre elas. Estas são por vezes cuidadosamente co-
dificadas nos textos normativos: é notadamente proibido usar “qualquer
nome além daqueles que a ordem impõe40”. Em Saint-Geniez, “as irmãs
falam sempre em francês, jamais se tratam informalmente, nem se interpe-
lam com outros nomes que não seus nomes religiosos ou de suas funções41”.
Mais ou menos bem respeitadas, essas práticas constituem sob muitos as-
pectos um espelho para a comunidade. Quer trate-se de responsáveis ou
de irmãs que executam uma tarefa particular, algumas religiosas são de-
signadas de maneira privilegiada pela sua função na casa. Esse modo de
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designação tende, portanto, a enfatizar, acima de qualquer noção de iden-
tidade, o lugar e a categoria de cada uma no seio de uma hierarquia. A con-
trario, a utilização do nome próprio, patronímico ou nome religioso, reve-
la outra coisa, pondo o acento na individualidade do ser em sua dimensão
concreta e espiritual.
Outra circunstância propícia de denominação, as crônicas necroló-
gicas mantidas pelas comunidades quando do falecimento das religiosas
também são bastante reveladoras. A ordem da Visitação conserva em seus
arquivos numerosos exemplares desses Abrégés de vie et vertus [Resumos
de vida e virtudes] redigidos pelas superioras e que descrevem as etapas da
vida religiosa de cada uma: titulação e extensão das notícias são amplamen-
te determinadas pelas origens sociais ou pelas funções exercidas pela de-
funta. Se as irmãs de coro oriundas de famílias respeitáveis merecem longas
crônicas exaltando sua espiritualidade exemplar, as irmãs domésticas, em
geral, contam apenas com resumos concisos que sublinham seu melhor ou
pior “espírito de submissão42”.
Titulações e maneiras de nomear se expressam finalmente através das
relações estabelecidas com o “mundo” (RIVES, op. cit.). As correspondên-
cias enviadas ou recebidas constituem uma preciosa fonte de informações.
Em 27 de outubro de 1690, Decomps, jurista de Bordeaux, redige assim o
cabeçalho de uma carta às responsáveis do convento das Tiercerettes de
Toulouse: “Senhoras de St Jehan Superiora e de St Jehan-Baptiste vicária
do monastério das religiosas da Terceira Ordem de Toulouse”. Encarregado
de defender os interesses da comunidade, ele expede um relatório oficial a
suas mandatárias utilizando um modo de nomeação reservado à esfera mo-
nástica: ora, nós sabemos que qualquer ato público requer o uso exclusivo
do patronímico. A prática comunitária se encontra assim transferida para o
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domínio público. Acontece também de os termos de tratamento associarem
as duas identidades43. Essas maneiras de agir revelam a complexidade de
um processo que amalgama, fora de toda regra, conscientemente ou não, a
dupla identidade dessas mulheres.
O nome religioso coloca, portanto, a questão da identidade monás-
tica. Em sua maior parte, as religiosas não parecem ter uma consciência
clara dessa identidade desdobrada, umas negando sua realidade, outras as-
sumindo- a coisa sem dificuldade. A despersonalização operada ao longo de
todo o cursus, da noviça à professa, vai bem além da perda do nome de ori-
gem. Tempo de reflexão, o noviciado é também, por sua duração e as formas
que reveste, um tempo de aprendizado da renúncia de si enquanto pessoa.
Ele é destinado a “normalizar” cada uma pelo abandono daquilo que faz sua
individualidade própria: não mais pensar, não mais agir enquanto si, mas se
tornar um simples átomo da comunidade. Mais que seu nome, é seu ser que
a futura religiosa deve abandonar na porta do monastério: esse despoja-
mento explica o sofrimento de muitas e sua dificuldade de aceitar a negação
de si. Afora a saída antes dos votos e o retorno, sempre difícil, à vida secu-
lar, a solução reside para algumas na fuga da comunidade e no exercício de
um apostolado, mais ou menos solitário, no coração da cidade: Madeleine,
visitadora de prisões, ou Marie-Lucien, enfermeira num consultório de vi-
larejo, ilustram essa escolha. Para as outras, foi preciso se integrar ao grupo,
seja apagando-se, seja dominando-o, mas sempre em nome do Senhor!
O abandono do nome, por certo, vai de par com aquele das roupas,
ambos participando da mesma ruptura com o mundo, mas os comporta-
mentos individuais das monjas são complexos no que tange a essa dupla
tradição. A possibilidade de renunciar ao nome religioso suscitou muitas
controvérsias, logo após as decisões do Vaticano II. A eventualidade de re-
tomar seu nome original e de abandonar o hábito opôs os defensores do
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costume àqueles que contestavam sua validade espiritual. Algumas religio-
sas nos falaram da alegria que tiveram ao abandonar esses dois marcado-
res identitários, considerando que eles tinham mais a ver com um rigo-
rismo formalista do que com uma atitude significativa. Mas, para outras, o
abandono do nome religioso apareceu como uma espécie de renegação e,
se trocaram de bom grado o hábito pelos trajes seculares, elas continuam
atribuindo certa sacralidade a esse signo que é o nome religioso. Para elas,
não é o hábito que faz a religiosa, mas o comprometimento que passa pelo
nome que as conecta com seu estado. Além disso, como já dissemos, o nome
foi muitas vezes provedor de um estatuto social para algumas, outorgando-
-lhes reconhecimento e dignidade, não apenas aos olhos dos outros, mas
também a seus próprios. Essas posições revelam toda a complexidade da
transformação identitária vivida por essas mulheres em nome de um ideal
que as transcende.
Referências
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LEJEUNE, P. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975 [1996].
PARIS, Bernardin de. Le parfait novice instruit des voies qu’il doit tenir
pour arriver à la perfection de son état. Paris: 1648.
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