Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Iniciaçao Religiosa

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 22

DOI: 10.

48006/978-65-86602-16-6-21

Iniciação religiosa. Vestição e metamorfose


identitária: usos e símbolos de um rito de
passagem1

Danielle Rives

Eu disse meu nome de religião.


Ele me perguntou também o da minha família[…]
Eu o disse bem alto sem corar, pois, num tal encontro, é quase
confessar o nome de Deus, confessar o nosso, quando queremos
desonrá-lo por causa dele.2

A maior parte das regras monásticas femininas comporta uma descrição


do cerimonial de tomada de hábito. “Da Recepção ao hábito”, “Maneira de
dar o hábito”, “Cerimonial de vestição e profissão” –, esses diversos títulos
enfatizam a solenidade de uma celebração durante a qual as candidatas, no
sentido primeiro do termo, mudam de estado. Nossa reflexão vai, portanto,
incidir sobre essa metamorfose identitária, suas aparências, bem como sua
materialidade.
A tradição, cujas origens remontam aos primórdios da instituição
monástica, toma as formas sob as quais a conhecemos por volta do concílio
de Trento. Ela perdurará até o Vaticano II, quando os decretos sobre a vida

1 Este capítulo foi redigido em 2013 após uma estadia de ensino e pesquisa na Universida-
de Federal de Santa Catarina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. Gostaria ainda de agradecer a Miriam Grossi e Agnès Fine
por esta iniciativa à qual elas generosamente me integraram.
2 D’ANDILLY, Angélique de Saint Jean Arnauld. Aux portes des ténèbres: Relation de
captivité. Paris: La Table Ronde, 2005 [1954]. p. 30-31.

[ VOLTA AO SUMÁRIO ]

466
religiosa do último concílio buscam reencontrar a simplicidade original do
procedimento das primícias monacais: aliás, ela parece não ter desapareci-
do em algumas comunidades.
Rito de passagem cuidadosamente formalizado pela regra, tanto em
seus gestos quanto em seu discurso, a vestição associa estreitamente a pos-
tulante, sua família, seus amigos e o conjunto da comunidade que a acolhe
numa dramaturgia cuja encenação articulará nossa primeira reflexão.
Para além do cerimonial e de sua cenografia espiritual, é necessário
compreender o alcance e o sentido verdadeiros da mutação identitária vivi-
da pela noviça. Assim, num segundo momento, interrogaremos a maneira
como essa nova identidade é rejeitada nos atos ordinários da vida monásti-
ca e como a religiosa assume essa dupla personalidade.
Reflexão de antropologia histórica considerada na longue durée, este
estudo busca fazer emergir as recorrências de uma prática observável des-
de o fim do século XV. Este trabalho se apoia conjuntamente na explora-
ção de diversos fundos de arquivos e em testemunhos recolhidos ao longo
dos últimos meses junto a religiosas que viveram essa mudança identitária.
O corpus das fontes consultadas se alimentou das séries, nacionais e de-
partamentais, consagradas ao clero regular, em particular os registros de
vestição regularmente mantidos a partir do século XVIII. A secularização
revolucionária acarretou intensas trocas entre a administração e as comu-
nidades, trocas que se reforçaram ainda mais a partir da reconciliação re-
ligiosa sob o Consulado e o Império: os Arquivos Nacionais possuem um
extenso arquivo sobre essas relações, muitas vezes tumultuosas. Os fundos
privados também fornecem, especialmente através de correspondências e
de certos inventários, preciosas informações.

A dramaturgia da vestição

Ao termo de um período probatório de alguns meses, ao longo do qual a


postulante avalia sua própria vocação, ao mesmo tempo em que é observa-
da pela comunidade, que por sua vez a acolhe reunida em capítulo e decide

467
se a receberá ou não. Caso decida que sim, a data da cerimônia é fixada.
O ritual que preside à vestição não mudou fundamentalmente desde a época
moderna: manuscrito encadernado3 ou texto impresso, ele organiza minu-
ciosamente a iniciação religiosa nos seus mínimos detalhes.

Os preparativos da celebração

Todos os cerimoniais se destinam a fixar a imutabilidade das atitudes e


dos movimentos de cada participante, o estrito teor das palavras pronuncia-
das por cada um, a ordem dos cantos e das preces, a fim de não deixar nada
ao acaso. Essa ritualização extrema participa ao mesmo tempo do desejo de
afirmar, mas também de confirmar aos olhos de todos a coesão do grupo,
como se sua própria existência residisse na constância de seus costumes.
Os dias que precedem a tomada do véu são um tempo de retiro para
a futura religiosa. Após uma última estadia no mundo, ela volta para sua
comunidade e consagra seus últimos dias seculares a meditar sobre seu
porvir espiritual.
Durante esse tempo, os preparativos comunitários se intensificam:
a roupeira do convento dá os últimos retoques no hábito, procedendo por
vezes à sua prova, e conta cuidadosamente o número de alfinetes neces-
sários para prender o véu. Josette, irmã da congregação de Saint-Joseph,
conta sua própria experiência. Fortemente solicitada por sua tia, mestra das
noviças de sua comunidade, ela veste o hábito para responder ao desejo de
sua mãe.

Minha tia me ajudou, pois, no começo, é complicado: desci


à sala onde minha mãe me esperava. Ela me olhou sem dizer
nada e me mostrou o espelho. Fui até ele: quando me vi toda de
preto, caí no choro e subi de volta para meu quarto.4

3 Manuscrito de magnífica caligrafia, como aquele das irmãs de Sainte-Élisabeth do qual


encontramos um exemplar do século XVIII conservado nos fundos dos Arquivos Nacionais.
4 Entrevista com a irmã Josette, novembro de 2004.

468
A superiora, por sua vez, envia os convites à família, aos benfeitores e
aos amigos do mosteiro, além de combinar com a despenseira e a cozinheira
a preparação da refeição da festa5.
Chegado o dia, tudo é ordenado de uma maneira que as últimas de-
cisões conciliares não alteraram substancialmente e que, para algumas or-
dens, se manteve até o último terço do século passado6.

No dia em que se deverá dar o hábito [...], as Sacristãs ornarão


o Altar desde a manhã, como para uma Festa solene; prepara-
rão também um Genuflexório com um Tapete no meio da Cape-
la, & um Castiçal com um Círio de uma libra bem ao lado.7

Preparam-se cuidadosamente os lugares da cerimônia e a sacristã


põe à esquerda do altar “uma pequena Mesa coberta por uma Toalha branca
[...] sobre a qual serão colocados os hábitos da Terceira Ordem, com uma
Pia de Água Benta, & o Aspersório”8.
A recepção das novas recrutas podia ser individual ou coletiva. No
Antigo Regime, parece que as celebrações eram, na maior parte do tempo,
cerimônias individuais: foi assim que, em 1737, no monastério de Notre-
-Dame de Carentan, na Normandia, foram recebidas cinco postulantes en-
tre julho e dezembro. Nos séculos XIX e XX, tornam-se coletivas, decerto
devido à abundância das vocações. Em 1943, por ocasião do centenário da
congregação, o convento das dominicanas de Gramond, no Aveyron, re-
cebe, no dia 17 de agosto, doze noviças, numa cerimônia de que as mais
antigas se lembram com emoção.

5 Algumas comunidades, sobretudo no século XIX, recusam-se a considerar essa cerimô-


nia como um dia diferente do normal, excluindo as ágapes que habitualmente seguem à
celebração.
6 Uma pesquisa realizada no fim dos anos 1990 numa comunidade da Ordem da Anuncia-
ção da região parisiense permite observar essa continuidade (ROTH-HAILLOTTE, 1998).
7 Cérémonial du Tiers-Ordre de Ste Terese, Fonds Périgord, microfilm, M F 1704. p. 109.
8 Ibidem, p. 109-110.

469
A família participa ativamente da celebração. Conduzida ao pé do al-
tar por seu pai, Josette se lembra de sua tomada de hábito em agosto de
1953, em Villecomtal, perto de Rodez: “Éramos quatro e sempre me recor-
darei porque é uma lembrança dolorosa: entrei na igreja com um vestido de
noiva e saí toda de preto9”.
Se o vestido nupcial desapareceu, o simbolismo do casamento perma-
nece inalterado10. A maior parte dos cerimoniais insistia outrora fortemente
no tema da ruptura com o mundo. A cerimônia começa com acentos alegres
de esponsais, como nesse dia de maio de 1623 em que “Anne Le Roux [...] foi
conduzida com os violinos, como uma noiva, desde a casa do Sr. Castelão
até Sainte-Ursule, estando acompanhada de seus pais (VACHEZ, 1891).
A saída da capela era seguida, no caso das contemplativas, da trans-
posição simbólica da clausura: a postulante, recebida por suas futuras com-
panheiras, era conduzida até o coro da capela conventual para a sequência
da cerimônia. Em seu diário, Hélène Massalka, futura princesa de Ligne, se
lembra da vestição da senhorita de Rastignac na Abbaye-aux-Bois, em 1778:

No dia da profissão, todos os Hautefort do mundo enchiam a


igreja, pois ela era parente próxima deles. A senhorita de Guignes
carregava seu círio e lhe servia de madrinha, o conde de Hautefort
foi seu cavalheiro. Ela tinha uma bela aparência; primeiro foi à
igreja de fora sobre um genuflexório, com um vestido de crepe
branco bordado de prata e coberto de diamantes. Aguentou muito
bem o sermão feito pelo abade de Marolle, em que esse lhe dizia
que era um grande mérito aos olhos de Deus renunciar ao mundo
quando se era feita para ser adorada nele e para ser seu encanto
e ornamento [...]. Depois do sermão, o conde de Hautefort lhe
deu a mão e conduziu-a à porta da clausura. Assim que entrou,
fecharam a porta de maneira estrondosa atrás dela e puseram os
cadeados brutalmente, pois é uma gentileza que nunca deixam

9 Entrevista com irmã Josette, novembro de 2004.


10 A comunidade dominicana do monastério de Unterlinden, em Colmar, conserva em seus
arquivos a foto de um vestido de noiva comprado por uma postulante por ocasião de sua
tomada de hábito em 1980! Informação recolhida por J. Andlauer (2002).

470
de fazer em semelhantes ocasiões. Ela entrou no pátio mais morta
do que viva. (PEREY, 1887 apud REYNÈS, 1987, p. 74)

O ritual da porta se encontra em numerosos cerimoniais no Antigo


Regime. O das religiosas de Sainte-Élisabeth de Toulouse indica: “A Postu-
lante, estando à porta do monastério, bate para pedir que a recebam, toda
sua família e seus amigos estando perto dela”11. Na Ordem da Anunciação
essa prática perdurou até os anos 1970 (ROTH-HAILLOTTE, op. cit., p. 128).

As etapas da passagem

A partir de então, começa a cerimônia da mudança de estado propriamen-


te dita: um diálogo se instaura entre postulante e celebrante, compassado
pelas preces e pelos cantos litúrgicos. O uso do latim, língua dos homens e
do sagrado, contribuía para solenizar o momento e materializava para essas
mulheres o hiato entre o universo que deixavam e aquele que passariam a
habitar. A celebração se desenvolvia então ao ritmo lento das renúncias su-
cessivas, pontuadas de gestos e de palavras simbólicas que materializavam
a morte para o mundo.
O abandono dos trajes seculares constituía a primeira etapa desse
percurso. Associando estreitamente “o santo hábito” à necessidade de
“morrer para o mundo, para seus parentes, amigos e para si mesma”, o
celebrante convidava a noviça a se “revestir ao mesmo tempo de Jesus
Cristo”, reforçando a carga simbólica do gesto12. A vestição se dava ao abrigo
dos olhares. Prosseguindo seu relato, Hélène Massalka conta:

Quando chegou à grade do coro, fecharam-na para despi-la; en-


tão se apressaram em despojá-la de seus ornamentos mundanos.
[...] Vestiram-na com os hábitos da ordem, colocaram-lhe o véu

11 Cérémonial des religieuses de Saincte Elisabeth du Tiers-Ordre de St François establi en la


ville de Tolose touchant a la manière de donner l’habit et profession aus dites Religieuses
Toulouse, BEP, Rés. D XVII., 1629, p. 519.
12 Constitutions pour la congrégation des sœurs de Saint-Joseph, Rodez, p. 483-486.

471
e uma coroa de rosas brancas, abriram então a grade e a apresen-
taram ao padre que a abençoou. (PEREY, op. cit., p. 74)

Esses “hábitos da ordem” não são ainda os trajes definitivos, mas um


“novo hábito”, signo de um estado liminar na fronteira entre o mundo se-
cular, a que pode voltar se ela ou sua comunidade assim o desejarem, e o
estado religioso que a profissão confere13. Assim, Roselyne Roth-Haillotte
nos recorda que:

embora a noviça tenha vestido o hábito da Ordem da Anuncia-


ção, a ausência de certos elementos sinaliza que ainda não está
plenamente consagrada. O véu ainda é branco, ela não por-
ta nem a medalha da Virgem Maria, nem o anel de prata, nem
o manto branco. [...] Essa evolução do vestuário prova apenas
[...] suas aptidões a ser aceita e afiliada em sua comunidade.
(ROTH-HAILLOTTE, op. cit., p. 129)

É preciso esclarecer também o sentido da coroa evocada pela princesa


de Ligne. Em muitos casos, usava-se duas coroas, uma trançada de flores,
outra de espinhos. Alguns cerimoniais convidavam a noviça a escolher
entre elas.

Antigamente, a tomada de hábito e a profissão se faziam no ca-


pítulo, em presença apenas da Priora e da comunidade [...]. An-
tes que lhe coloquem o véu branco, ela se aproxima da janela da
Comunhão, e o Superior corta-lhe uma mecha de cabelos [...].
Apresenta-lhe a seguir duas coroas, uma de rosas, outra de espi-
nhos. A noviça escolhe essa última.14

A alusão é clara e a escolha conforme a aspiração daquela que pre-


tende partilhar o sofrimento de Jesus. Em certas comunidades, a coroa

13 A maior parte das constituições precisa, na rubrica consagrada às missões da roupeira,


a necessidade de conservar e de marcar cuidadosamente “os trapos” da noviça até a
profissão.
14 Cérémonial à l’usage des sœurs dominicaines du second ordre, Poitiers, Oudin, 1871,
chap.III, art. 1. Citado por Andlauer (op. cit., p. 161).

472
aparece como um acessório privilegiado do cerimonial: igualmente asso-
ciada à profissão, a tradição quer que ela seja deposta sobre o corpo da reli-
giosa falecida durante sua exposição no coro, repetição do rito para a última
passagem (Ibidem, p. 160).
O sacrifício dos cabelos constitui a segunda renúncia “às pompas e
vaidades do mundo15”. A senhorita de Rastignac “tinha longos cabelos loi-
ros [...]. No momento em que a mestra das noviças pôs a tesoura neles, ela
estremeceu. Puseram seus cabelos numa grande bandeja de prata” (PEREY,
op. cit., p. 75). A oferenda desse atributo maior da sedução feminina repre-
senta um momento forte em todos os cerimoniais de vestição. Por vezes, à
maneira de um holocausto, os cabelos são queimados numa espécie de ri-
tual purificador: assim, esse sacrifício participa diretamente da rejeição do
corpo, “esse abominável traje da alma”, que deve ser negado antes de ser
disciplinado (DELUMEAU, 1983). Elizabeth Kuhns evoca a permanência da
tradição numa comunidade de Clarissas: “Algumas freiras Clarissas man-
têm a tradição de cortar seus cabelos na profissão e coloca-los numa cesta
durante a noite com um crucifixo abençoado.16”.
A etapa seguinte participa, aliás, dessa vontade de desfazer tudo o
que poderia contribuir para identificar a pessoa: cumprindo o ritual mile-
nar da clausura simbólica, a superiora coloca sobre a cabeça da pretendente
o capuz e o véu, relegando de certa forma seu antigo rosto ao mundo que
ela acaba de abandonar. Então, erguendo a noviça ajoelhada, ela a abraça
em sinal de agregação à comunidade com a qual está, a partir de então, em
completa harmonia de vestição.
A metamorfose da identidade física é finalmente coroada por aquela da
identidade patronímica. Apoteose da renúncia, a mudança de nome constitui
a última etapa dessa temática da morte para o mundo. “Não portareis mais o
nome de vosso pai”, como se a mutação nominativa garantisse a transferência

15 Cérémonial des sœurs de St-Joseph, p. 485.


16 “Algumas religiosas clarissas conservam a tradição do sacrifício de seus cabelos, colo-
cando-os à noite numa cesta junto com um crucifixo abençoado.” (KUHNS, 2005, p. 116).

473
espiritual da religiosa e a integrasse definitivamente a sua comunidade17.
A atribuição do nome religioso conclui a mudança de estado da noviça, asse-
gurando a passagem de sua família de carne a sua família de graça18.
Embora o ritual dos adeuses atrás da grade tenha, de modo geral, de-
saparecido e não se fechem mais simbolicamente as cortinas, a separação
está consumada19. A comunidade soleniza a recepção daquela que acaba de
agregar ao grupo: “A Superiora e as Irmãs vão para a sala de Comunidade
onde a noviça as saúda e abraça modestamente20”. Uma nova mãe e novas
irmãs, sua família de substituição, a recebem, oferecem-lhe pequenos pre-
sentes espirituais e partilham o banquete da festa21.
Assim, a vestição é essa dupla celebração da morte e da vida. Por um
lado, ela exprime a morte para o mundo, simbolizada por gestos fortes: não
está tão distante o tempo em que a noviça, após ter vestido o hábito, dei-
tava-se no piso frio da capela, recoberta por um sudário, e deixava o coro
sob os acentos fúnebres do De profundis. Mas essa cerimônia exprime tam-
bém o renascimento, o que justifica a ideia de novo batismo e a atribuição
do nome de um santo padroeiro àquela que acaba de renascer. A vestição
é, portanto, uma festa que celebra a passagem do mundo daqueles que vi-
vem e morrem no século àquele daquelas e daqueles que já estão à espera
de eternidade. Não é à toa que o capuchino Nicolas de Dijon termina um de
seus sermões de vestição com estas palavras:

17 Cérémonial des sœurs de St François d’Assise, gardes-malades de Rodez. Rodez: Carrère,


s.d. p. 34.
18 Constitutions des Sœurs de l’Union. Établies à Saint-Geniez. Rodez: Carrère, 1887. p. 155.
19 O cerimonial das religiosas de Santa Elisabete de Toulouse termina com estas frases
patéticas: “As irmãs, apagando seus círios, retiram-se, deixando a noviça em seu lugar
enquanto seus parentes a observam à vontade. Então fecham as cortinas e a Mestra
de Noviças permanece perto dela instruindo-a a não responder às perguntas de seus
parentes enquanto tiver o rosto descoberto”. (Cérémonial des religieuses de Saincte
Elisabeth…, op. cit.).
20 Constitutions pour la congrégation des sœurs de Saint-Joseph…, op. cit., p. 490-491.
21 Jeanne Andlauer descreve as imagens pias distribuídas por ocasião da vestição, assim como
os pequenos objetos de devoção que participam diretamente desse rito de passagem.

474
Tolerai, portanto, meu caro Irmão, que [...] eu acompanhe vossa
iniciação na Religião com as mesmas palavras que a Igreja acom-
panha uma alma cristã em sua saída do mundo. Profiscicere ani-
ma christiana de hoc mundo. Ide, ó alma religiosa, saí da prisão
de vosso corpo, já que o céu vos oferece vossa liberdade. (DIJON,
1695 apud DOMPNIER, 1993, p. 64)

À imagem de seus irmãos capuchinhos, as religiosas não vivem “na


terra apenas com seu corpo, pois, diz Eusèbe de Césarée, suas almas já en-
traram, de uma maneira secreta, nos céus22”?
O estado religioso, portanto, não foi concebido durante séculos se-
não através da mudança identitária, o nome escolhido ou imposto no dia da
tomada de hábito devendo significar simbolicamente, aos olhos de todos,
essa metamorfose.
Para além da ritualização desejada, destinada a separar a noviça do
mundo e a prepará-la para a etapa seguinte, da profissão e dos votos, é pre-
ciso tentar agora compreender o sentido profundo dessa ruptura: como se
opera essa mutação e de que maneira ela é vivida.

Materialidade da nomeação: os diferentes


registros do nome

Se o hábito sempre “fez a monja”, a renúncia ao nome de batismo nun-


ca foi uma obrigação em qualquer comunidade feminina. As cistercienses,
por exemplo, jamais renunciaram a seus patronímicos originais. Não existe
qualquer texto canônico destinado a organizar um ritual que cabe a cada
instituto escolher. O nome religioso se impõe progressivamente desde o fim
do século XV, e triunfa após a Revolução, em particular ao longo do século
XIX, que assiste à apoteose dos institutos femininos. Signo de aliança ideo-
lógica, verdadeiro estandarte militante, o nome religioso, para além de sua

22 Dictionnaire de spiritualité ascétique et mystique, t. 16, col. 511-516, art. Vêtement.


Paris : Beauschêne, 1981. [Abreviado de agora em diante como D.S.A.M].

475
significação espiritual, aparece como uma arma apontada contra um mun-
do laicizado que tentara aniquilar a instituição monástica.
As regras e constituições, até onde sei, nunca regulam formalmente
essa prática, sendo que algumas sequer a mencionam23. A maioria daquelas
que indicam a mudança o faz em termos bastante neutros: entre os Domi-
nicanos de Gramond, o capítulo consagrado à recepção das noviças precisa:
“a postulante receberá ali, para melhor significar a mudança de vida que se
opera nela, um nome Religioso pelo qual será designada a partir de então
em todos os atos da vida regular, precedido pela palavra irmã24”. Da mesma
forma, o uso público do nome religioso está mais ligado a circunstâncias ou
oportunidades particulares do que a um código preciso.

O lugar do nome na mutação identitária

Qual o lugar do nome nessa virada supostamente capaz de assegurar esse


estado de perfeição que a vida religiosa confere25? A resposta não figura em
qualquer manual de direito canônico, nem tampouco em qualquer dicio-
nário. Por vezes, encontramos, ao acaso das leituras, um esboço de respos-
ta. Assim, Philippe Lejeune propõe sua concepção do nome religioso: “Um
pseudônimo é um nome diferente daquele do estado civil [...] O pseudôni-
mo é um nome de autor. Não é exatamente um nome falso, mas um nome
artístico, um segundo nome, exatamente como aquele que uma religiosa
ganha ao entrar numa ordem” (LEJEUNE, 1975, p. 24).
O nome religioso, portanto, não seria mais do que uma maneira de
encerrar a monja num nome de empréstimo, à maneira desse véu que, ou-
trora, escondia cuidadosamente a maior parte de seu rosto: um nome de
intérprete, um nome de autor e – por que não? – um nome de ator para essa

23 A consulta de numerosas regras monásticas, tanto para o período moderno quanto para
os séculos XIX e XX, confirma essa constatação.
24 Règles et constitution des religieuses du Tiers-Ordre de Saint Dominique. Congrégation
de Gramond, diocèse de Rodez. Nevers, Lyon: Lécuyer, 1934. p. 137.
25 Dom Cabrol, Dictionnaire de théologie catholique, t. XIII-2, art. religieux, religieuses,
2157-2182.

476
peça de devoção representada num palco dissimulado atrás dos altos mu-
ros do monastério. Deixemos a palavra às interessadas. Josette afirma com
veemência: “O nome é mudado com a mudança de traje: é indissociável.
Deixamos nossos hábitos e nosso nome de batismo! A mudança de hábito
é indissociável da mudança de nome e é algo extremamente violento, que
marca uma ruptura com a vida anterior26”.
Para Madeleine, religiosa providente que trabalha num apostolado
junto a famílias desfavorecidas de um bairro pobre de Toulouse, “o impor-
tante é o chamado a que não se pode resistir. Escolhi o nome de Madeleine
porque tinha uma simpatia particular pela padroeira de todos os pecadores:
mas o importante não é isso. Eu tinha uma vida antes, gostava de rapazes; é
preciso fazer escolhas, renunciar a muitas coisas, não é fácil27”.
Testemunhos comoventes, mais de cinquenta anos depois do acon-
tecimento, de mulheres que sentiram, cada uma à sua maneira, a inten-
sidade da transformação. Iniciar-se na religião equivale, portanto, a fazer
escolhas, a renunciar, por conhecimento de causa, àquilo que era sua vida
anterior, para responder ao chamado de uma pequena voz: estamos a qui-
lômetros de distância do pseudônimo!
Deixar sua família, abandonar seus hábitos seculares e seu nome
constituem, portanto, um todo.

Deixai, pois, estes vãos ornamentos com um santo desprezo, não


querendo mais ter nenhuma relação com a vaidade do século:
deponde-os num movimento de obediência, que deveis ao voto
que fizestes no Batismo de renunciar ao Mundo e a suas pom-
pas, voto que talvez jamais tenhais cumprido. (PARIS, 1648 apud
DOMPNIER, op. cit., p. 72)

Os textos normativos denunciam a frivolidade e a ostentação dos


trajes seculares para melhor negar o corpo através do hábito. Aniquilar a
identidade da mulher sob o burel, tal foi por séculos o desejo da instituição.

26 Entrevista com irmã Josette, novembro de 2004.


27 Entrevista com irmã Madeleine, dezembro de 2004.

477
O requinte de precisões para descrever os tecidos, as cores, as formas, o
comprimento de cada peça do vestuário, traduz claramente a preocupação
de modelar um ser sem identidade que deve se fundir no universo comuni-
tário. François de Sales considera o hábito como uma espécie “de insígnia
que nos fixa no interior da alma e traduz do lado de fora suas disposições
sérias ou frívolas28”. A túnica preta, cinza ou marrom destina-se a ajudar a
religiosa a “se lembrar de que um dia ela morrerá29”.
Entrando no convento, a jovem deixa suas antigas roupas na porta e
renuncia a seu nome que, outrora, pelo batismo, fizera-a entrar na grande
família dos cristãos.

Aqueles que, pela Profissão, recebem o novo ser de Religiosos, e


se vestem com o hábito, devem ter, e é conveniente que tenham,
um nome que responda à santidade de seu estado e de seu hábito.
O nome que nos é imposto na Profissão, e que é nosso segundo
nascimento, deve ser recebido com respeito, portado com vene-
ração e imitado com fidelidade nas virtudes que significa. (PARIS,
ibidem, p. 77)

A tradição da mudança de nome só se impôs muito lenta e desigual-


mente segundo as famílias religiosas. Se a ordem carmelita adota de entrada
a ruptura onomástica numa lógica espiritual de aniquilamento, a da Visita-
ção se mostra bem mais moderada. Por ocasião da canonização de François
de Sales, a Madre Marie-Jacqueline Favre, segunda religiosa fundadora da
Visitação ao lado de Jeanne de Chantal, testemunha:

Ele não quis que fôssemos chamadas como várias outras reli-
giosas reformadas, a quem foram dados nomes como Catherine
de Jésus, Marguerite de la Croix, e assim por diante, e sim
Jeanne-Françoise, Marie-Marguerite, acrescentando o nome
de algum santo àquele que a irmã recebeu no santo batismo.30

28 François de Sales à Jeanne de Chantal, citado em D.S.A.M., t. 2, art. Vêtement, col. 2365.
29 Jérôme de Marcella, (D.S.A.M.), ibidem.
30 Informação amavelmente comunicada por Patricia Burns, arquivista do Convento da
Visitação em Annecy.

478
A escolha do nome: critérios e intervenientes

No interior da ordem, as diversas casas organizam a prática da mutação


nominativa como bem entendem. Assim, as Clarissas do monastério de
Millau, em Rouergue, só adotam o nome religioso no finalzinho do século
XVII, enquanto as de Castelnau de Magnoac, perto de Toulouse, conservam
no século seguinte o patronímico e termos de tratamento seculares,
testemunho da permanência de uma sociabilidade inteiramente profana31.
Revelador das origens e das práticas devocionais, o nome pode ser
um marcador privilegiado para certas comunidades. Ele pode mesmo to-
mar a forma de uma nomeação totêmica. A tradição beneditina, sequiosa
de manter a memória da Ordem, atribui frequentemente às religiosas os
nomes ilustres de seus fundadores, de Scholastique a Mechtilde ou Benoît
[Escolástica, Mectildes, Bento]. A maneira de construir a nomeação religio-
sa constitui igualmente um precioso indício. A Visitação, muito apegada ao
culto do Sagrado Coração, popularizado por Marguerite-Marie Alacoque,
insere às vezes esse sufixo junto ao nome de santo escolhido32.
O exame do registro das vestições e profissões mantido pelo monas-
tério das irmãs de Notre-Dame, em Carentan, traz a lume tendências sig-
nificativas nas práticas de nomeação no século XVIII33. A congregação de
Notre-Dame, fundação monástica pós-tridentina de religiosas professoras,

31 P.-E. Viviers, “Notes sur les Clarisses de Millau avant la Révolution”in Sainte Claire en
Rouergue, (colloque de Millau, 1993), p. 193. Fonds de Pointis, A.D.H.G., 1J 644. Esse caso
não é excepcional: encontramos outros exemplos desse tipo, especialmente nas fórmu-
las de tratamento de cartas enviadas a diversas prioras e superioras. Ver especialmente
o rolo “correspondências” no fundo das Tiercerettes nos Arquivos departamentais da
Haute-Garonne , 212 H 2.
32 Irmã Marie du Sacré-Cœur, monja do convento de Bourg-en-Bresse, relançou sua de-
voção dedicada à canonização de Marguerite-Marie. Musée des Pays de l’Ain, Ma fille
qu’es-tu venue faire ici ? Scènes de vie au couvent (catálogo de exposição no museu de
la Bresse, 1999), p. 19.
33 M. de Pontaumont, Livre de raison des Filles de la Congrégation de Notre-Dame de
Carentan [Livro de razão das Filhas da Congregação de Notre-Dame de Carentan],
(Cherbourg : A. Mouchel, 1860).

479
ilustra muito bem as correntes espirituais do Grande Século. Cinquenta e
uma noviças tomam o véu entre 1737 e 1783. Dessas, treze incorporam um
prenome masculino a seu nome religioso, respeitando talvez as instruções
do conselho de Trento que denuncia a feminização abusiva de prenomes
que não correspondem mais à imagem do modelo que cada uma deve imi-
tar34. Se examinamos a lista dos prenomes femininos mais recorrentes, po-
demos pensar que as obras de devoção colocadas à disposição das religiosas
evidentemente contribuem para guiar suas escolhas (BONS, 2000).
No registro das devoções que participam da construção da nova iden-
tidade, mais da metade associa o nome de Jesus àquele do santo escolhido e,
se acrescentamos a isso as referências ao Santo-Sacramento, constatamos a
proporção esmagadora dos cultos cristológicos35. Em segundo lugar, a ve-
neração de Maria e a dos anjos ficam quase empatadas com oito e sete ocor-
rências, enquanto José deve se contentar com uma só, assim como Pierre
Fourrier, um dos fundadores da congregação. As referências aos dogmas
não fazem sucesso, mas os pais da Igreja se saem melhor ao passo que os
episódios da vida de Cristo são ilustrados por algumas menções.
Essa dupla nomeação, que coloca a religiosa sob a proteção de um
santo, modelo e protetor, ligando-a ao mesmo tempo a uma espiritualida-
de transcendente, revela a vontade de inscrever sua identidade bem além
da simples mudança de estado. Nomear-se Adélaïde de Jésus ou Colombe
du Saint Sacrement inscreve o ser numa genealogia divina que o distingue
não apenas do comum dos mortais, mas das outras monjas cujos nomes
permanecem mais normais. Seria, aliás, interessante pesquisar em quê as
variantes onomásticas podem contribuir para desvelar as origens sociais e
culturais dos indivíduos. A modesta amostra do monastério de Carentan e
as informações fornecidas pelo registro de vestição oferecem alguns indí-
cios, mas essas nos parecem insuficientes para tentar essa abordagem aqui.

34 O que não impede duas religiosas de tomar o nome de Augustine.


35 Entre os filhos e corações de Jesus, encontramos uma curiosa denominação com a irmã
Amante de Jesus que toma o véu em 1771.

480
Na escolha do nome religioso, quais são os intervenientes? A deci-
são depende ao mesmo tempo da época e da comunidade (RIVES, 2008). O
nome pode ser atribuído pela hierarquia, o mais das vezes pela superiora.
Essa situação parece ter sido a regra geral no século XIX, especialmente nas
ordens contemplativas. Do lado oposto, situa-se a livre escolha deixada a
cada uma, com as comunidades, no entanto, buscando se preservar dos ex-
cessos místicos ou fantasistas de certas recrutas36. É a modalidade mais fre-
quente hoje. A meio caminho, finalmente, existe a eleição negociada entre a
impetrante, a madre das noviças ou a superiora. Em algumas comunidades
subsistiu por muito tempo a prática da lista proposta pela postulante a par-
tir da qual as responsáveis efetuavam a escolha final37.
Mas, seja imposto, negociado ou totalmente livre, o nome deve ser
plenamente assumido por cada uma.

O nome assumido e seus usos

Na verdade, a questão equivale a se interrogar sobre o estatuto do nome


dessas religiosas, tanto para aquelas que o portam quanto para aqueles que
devem designá-las através dele.
Recusando-se a subscrever o lugar comum de que, no século XIX, a
iniciação na religião se aparentava a um “retiro medroso” de mulheres que
não suportavam o mundo, J.-P. Peterson propõe considerar sua atitude

como o meio de uma afirmação muito forte, embora muito par-


ticular, de si mesmas. Algo como uma ruptura decisiva com um
estatuto humilhado (gostaria quase de dizer uma revolta contra
ele), nem que fosse pela via heroica de uma anulação de si mais
radical ainda, de uma humildade absoluta, mas, desta vez, uni-
camente em nome de Deus. (PETERSON, 1984, p. 9)

36 “evitar-se-ão os nomes demasiado longos, bizarros ou de um misticismo afetado”


(Constitutions des Sœurs de Saint-Joseph..., op. cit., p. 59).
37 O monastéstio da Divina Providência de Ribeauvillé, na Alsácia, associava, na medida do
possível, os prenomes dos pais da futura religiosa em sua nova nomeação. Entrevista de
janeiro de 2005 com a irmã Marie-Alberta.

481
Se aplicamos essa proposição ao nome, esse torna-se então um meio
de afirmação que assume a dupla função de signo e instrumento dessa me-
tamorfose. Nessa hipótese, ele serve para identificar não apenas a religio-
sa, mas também o ser em sua globalidade, tanto no seio de sua comunida-
de quanto diante do mundo que ela abandonou. O século XIX nos oferece
muitos exemplos dessas fundadoras de congregações cujo nome religioso
se tornou uma espécie de porta-estandarte no combate travado para fazer
triunfar seu ideal espiritual. Longe de ser um retiro tranquilo, o convento é
para essas mulheres o meio de exprimir plenamente seu ego (TURIN, 1989).
Algumas entrevistas confirmam essa abordagem. Entre minhas in-
terlocutoras, algumas parecem considerar, sem ter disso uma consciência
clara, o nome religioso como um atribuidor de estatuto social. Oriundas,
por vezes, de famílias rurais modestas, elas vivem sua entrada no convento
como uma promoção, e a escolha do nome participa dessa integração valo-
rizadora. Françoise-Thérèse explica minuciosamente as razões espirituais
de sua escolha, assim como aquelas pelas quais ela não retomou seu nome
de batismo depois do Vaticano II: “Éliette não era um nome religioso; estava
reservado à família38”. Em outros termos, trata-se de não confundir a esfera
familiar e o estado religioso, do qual o nome reflete toda a dimensão.
É igualmente interessante tentar apreender o estatuto desse nome
aos olhos do mundo, em particular do poder político.
Se nenhum texto canônico define claramente a identidade monás-
tica, o poder monárquico precisa suas regras desde 1736. A declaração ré-
gia obriga as comunidades regulares a manterem um duplo registro das
vestições e das profissões e a remeter um exemplar desse registro a cada
cinco anos ao bailio39. Ora, o texto régio só leva em conta a identidade pa-
tronímica, sem qualquer menção ao nome religioso. Isso não impede as
comunidades de, às vezes, darem mais ênfase a esse último do que à
identidade original.

38 entrevistas com religiosas do convento de Gramond (Aveyron), dezembro de 2004.


39 Durand de Maillane. Dictionnaire de droit canonique et de pratique bénéficiale . Lyon:
1770, 2e éd.. p. 277-291.

482
O poder político, inclusive sob o Antigo Regime, exprimiu por vezes
sua desconfiança em relação a uma prática que tendia a separar uma par-
te da população da lei geral. Quando da fundação de Saint-Cyr, Luís XIV
exige que as constituições da nova ordem rejeitem oficialmente o uso do
nome religioso, sendo as damas convidadas a conservarem seu patronímico
(REYNÈS, op. cit., p. 250).
Através dos registros de vestição, tomamos consciência das diversas
formas de apego ao nome: sobriedade de alguns que apenas aplicam a regra
fixada, exuberância de outras para as quais a declinação identitária oferece
a oportunidade de exaltar as origens prestigiosas de seu recrutamento.
A República também manteve uma relação frequentemente ambígua
com essa nomeação e as relações com a autoridade pública reservam várias
surpresas, o uso do nome duplo podendo dissimular pequenas e grandes
fraudes.
Finalmente, a inscrição identitária não concerne apenas aos registros
capitulares, sendo muitas as oportunidades de enunciar a identidade
(RIVES, op. cit.). Qual é, entre outros, o estatuto da nomeação das religio-
sas no seio de sua comunidade?
Dos usos cotidianos, não reteremos mais que as maneiras como as
religiosas se designam entre elas. Estas são por vezes cuidadosamente co-
dificadas nos textos normativos: é notadamente proibido usar “qualquer
nome além daqueles que a ordem impõe40”. Em Saint-Geniez, “as irmãs
falam sempre em francês, jamais se tratam informalmente, nem se interpe-
lam com outros nomes que não seus nomes religiosos ou de suas funções41”.
Mais ou menos bem respeitadas, essas práticas constituem sob muitos as-
pectos um espelho para a comunidade. Quer trate-se de responsáveis ou
de irmãs que executam uma tarefa particular, algumas religiosas são de-
signadas de maneira privilegiada pela sua função na casa. Esse modo de

40 A.D.H.G., 1J 581, Constitutions de colège et monasterre des sœurs religieuses de Ste


Ursule de l’ordre de St Augustin de Granade, f. 38.
41 Constitutions des sœurs de l’Union, op. cit.

483
designação tende, portanto, a enfatizar, acima de qualquer noção de iden-
tidade, o lugar e a categoria de cada uma no seio de uma hierarquia. A con-
trario, a utilização do nome próprio, patronímico ou nome religioso, reve-
la outra coisa, pondo o acento na individualidade do ser em sua dimensão
concreta e espiritual.
Outra circunstância propícia de denominação, as crônicas necroló-
gicas mantidas pelas comunidades quando do falecimento das religiosas
também são bastante reveladoras. A ordem da Visitação conserva em seus
arquivos numerosos exemplares desses Abrégés de vie et vertus [Resumos
de vida e virtudes] redigidos pelas superioras e que descrevem as etapas da
vida religiosa de cada uma: titulação e extensão das notícias são amplamen-
te determinadas pelas origens sociais ou pelas funções exercidas pela de-
funta. Se as irmãs de coro oriundas de famílias respeitáveis merecem longas
crônicas exaltando sua espiritualidade exemplar, as irmãs domésticas, em
geral, contam apenas com resumos concisos que sublinham seu melhor ou
pior “espírito de submissão42”.
Titulações e maneiras de nomear se expressam finalmente através das
relações estabelecidas com o “mundo” (RIVES, op. cit.). As correspondên-
cias enviadas ou recebidas constituem uma preciosa fonte de informações.
Em 27 de outubro de 1690, Decomps, jurista de Bordeaux, redige assim o
cabeçalho de uma carta às responsáveis do convento das Tiercerettes de
Toulouse: “Senhoras de St Jehan Superiora e de St Jehan-Baptiste vicária
do monastério das religiosas da Terceira Ordem de Toulouse”. Encarregado
de defender os interesses da comunidade, ele expede um relatório oficial a
suas mandatárias utilizando um modo de nomeação reservado à esfera mo-
nástica: ora, nós sabemos que qualquer ato público requer o uso exclusivo
do patronímico. A prática comunitária se encontra assim transferida para o

42 Em 1706, a superiora do convento da Visitação em Villefranche-de-Rouergue redige as


notícias necrológicas de duas religiosas; quase cinco páginas são consagradas ao “re-
sumo das virtudes de nossa mui honrada irmã Jeanne Marguerite Déléris”, apenas meia
àquele “de nossa cara irmã Marie Christine Chicard, rodeira”! Arquivos do monastério da
Visitação de Annecy comunicados por Patricia Burns.

484
domínio público. Acontece também de os termos de tratamento associarem
as duas identidades43. Essas maneiras de agir revelam a complexidade de
um processo que amalgama, fora de toda regra, conscientemente ou não, a
dupla identidade dessas mulheres.
O nome religioso coloca, portanto, a questão da identidade monás-
tica. Em sua maior parte, as religiosas não parecem ter uma consciência
clara dessa identidade desdobrada, umas negando sua realidade, outras as-
sumindo- a coisa sem dificuldade. A despersonalização operada ao longo de
todo o cursus, da noviça à professa, vai bem além da perda do nome de ori-
gem. Tempo de reflexão, o noviciado é também, por sua duração e as formas
que reveste, um tempo de aprendizado da renúncia de si enquanto pessoa.
Ele é destinado a “normalizar” cada uma pelo abandono daquilo que faz sua
individualidade própria: não mais pensar, não mais agir enquanto si, mas se
tornar um simples átomo da comunidade. Mais que seu nome, é seu ser que
a futura religiosa deve abandonar na porta do monastério: esse despoja-
mento explica o sofrimento de muitas e sua dificuldade de aceitar a negação
de si. Afora a saída antes dos votos e o retorno, sempre difícil, à vida secu-
lar, a solução reside para algumas na fuga da comunidade e no exercício de
um apostolado, mais ou menos solitário, no coração da cidade: Madeleine,
visitadora de prisões, ou Marie-Lucien, enfermeira num consultório de vi-
larejo, ilustram essa escolha. Para as outras, foi preciso se integrar ao grupo,
seja apagando-se, seja dominando-o, mas sempre em nome do Senhor!
O abandono do nome, por certo, vai de par com aquele das roupas,
ambos participando da mesma ruptura com o mundo, mas os comporta-
mentos individuais das monjas são complexos no que tange a essa dupla
tradição. A possibilidade de renunciar ao nome religioso suscitou muitas
controvérsias, logo após as decisões do Vaticano II. A eventualidade de re-
tomar seu nome original e de abandonar o hábito opôs os defensores do

43 A.D.H.G. H212/2. Exemplos extraídos do rolo “correspondência”. Uma carta de 16 de


janeiro de 1730 é endereçada a Madame de Manerie de Ste Margueritte religieuse au Tiers
Ordre à Toulouze.

485
costume àqueles que contestavam sua validade espiritual. Algumas religio-
sas nos falaram da alegria que tiveram ao abandonar esses dois marcado-
res identitários, considerando que eles tinham mais a ver com um rigo-
rismo formalista do que com uma atitude significativa. Mas, para outras, o
abandono do nome religioso apareceu como uma espécie de renegação e,
se trocaram de bom grado o hábito pelos trajes seculares, elas continuam
atribuindo certa sacralidade a esse signo que é o nome religioso. Para elas,
não é o hábito que faz a religiosa, mas o comprometimento que passa pelo
nome que as conecta com seu estado. Além disso, como já dissemos, o nome
foi muitas vezes provedor de um estatuto social para algumas, outorgando-
-lhes reconhecimento e dignidade, não apenas aos olhos dos outros, mas
também a seus próprios. Essas posições revelam toda a complexidade da
transformação identitária vivida por essas mulheres em nome de um ideal
que as transcende.

Referências

ANDLAUER, J. Modeler les Corps. Reliquaire, canivets et figures de cire des


religieuses chrétiennes. 2002. Tese de Doutorado – Ecole des Hautes Etudes
en Sciences Sociales, Paris.

BONS, Renée. Les religieux et leurs livres à l’époque moderne. Saint-


Etienne: Presses Universitaires Blaise Pascal, 2000.

D’ANDILLY, Angélique de Saint Jean Arnauld. Aux portes des ténèbres:.


Relation de captivité. Paris: La Table Ronde, 2005 [1954].

DELUMEAU, Jean. Le Péché et la Peur: la culpabilisation en Occident,


XIIIe-XVIIIe siècle. Paris: Fayard, 1983.

DOMPNIER, Bernard. Enquête au pays des frères des anges:.les capucins


de la province de Lyon aux XVIIe et XVIIIe siècles. Saint-Etienne:
Publications de l’Université, 1993.

KUHNS, Elisabeth. The habit: a history of the clothing of catholic nuns.


New York: Image Books, Doubleday, 2005.

486
LEJEUNE, P. Le pacte autobiographique. Paris: Seuil, 1975 [1996].

PARIS, Bernardin de. Le parfait novice instruit des voies qu’il doit tenir
pour arriver à la perfection de son état. Paris: 1648.

PEREY, L. Histoire d’une grande dame au XVIIIe siècle : la princesse


Hélène de Ligne. Paris: Calmann Lévy, 1887.

PETERSON, J.P. “Prefácio”. In: ARNOLD, Odile. Le corps et l’âme: la vie


des religieuses au XIXe siècle. Paris: Seuil, 1984.

REYNÈS, Geneviève. Couvents de femmes, la vie des religieuses cloîtrées


dans la France des XVIIe et XVIIIe siècles. Paris: Fayard, 1987.

RIVES, Danielle. “Mourir au monde et renaître au divin : le nom en


religion”. In: FINE, Agnès. (Dir.). Etats civils en questions. Papiers,
identités, sentiment de soi. Paris, éditions du CTHS, coll. «Le regard de
l’ethnologue», 2008.

ROTH-HAILLOTTE, R. La matérialisation de l’absence. Les moniales de


l’Annonciade: étude ethnologique d’une communauté religieuse. 1998.
Dissertação de Mestrado em Sociologia – Université Paris VIII, Vincennes.

TURIN, Yvonne. Femmes et religieuses au XIXe siècle: le féminisme en


religion . Paris: Historique, nouvelle cité, 1989.

VACHEZ, André. Les livres de raison dans le Lyonnais et les provinces


voisines. Lyon : Brun & Cote, 1891.

487

Você também pode gostar