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ARTIGOS LIVRES

O PODER FEMININO Fábio de Souza


Lessa
NA “ANDRÔMACA”  fslessa@uol.com.br
DE EURÍPIDES Universidade Federal do
Female Power in Euripides' "Andromache"
Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Resumo Abstract

Encenada durante a guerra do Staged during the Peloponnesian War,


Peloponeso, a tragédia Andrômaca de Euripides' tragedy "Andromache" fosters
Eurípides permite a discussão acerca das debate on power relations established
relações de poder estabelecidas entre between legitimate wife and concubine,
esposa legítima e concubina, mulheres e women and men, and also Spartan and
homens e também espartanas e troianas. Trojan women. The purpose of this
Neste artigo, propomos estudar essas article is to study these relations of
relações de poder feminino na Atenas feminine power in classical Athens. The
clássica. A disputa de poder entre power struggle between Hermíone and
Hermíone e Andrômaca tem como base Andromache is based on marriage and
o casamento e a condição de esposa the status of legitimate wife, motherhood
legítima, a maternidade e os espaços and the areas of activity of Greek women.
de atuação das mulheres gregas. Há There is also a conflict of power between
ainda um embate de poder entre a the culture of the Greeks and that of the
cultura dos gregos e a dos não gregos, non-Greeks, referring to discussions
nos remetendo às discussões acerca do about the concept of ethnicity.
conceito de etnicidade.
Keywords: Gender, ethnicity, Classical
Palavras-chave: Gênero, etnicidade, Athens, Greek theater.
Atenas Clássica, teatro grego.

História (São Paulo), v.40, e2021032, 2021. ISSN 1980-4369


DOI: https://doi.org/10.1590/1980-4369e2021032
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O PODER FEMININO NA “ANDRÔMACA” DE EURÍPIDES

Que gosto tenho então em viver? Para onde devo olhar?


Para as presentes ou passadas desgraças?
(EURÍPIDES. Andrômaca, vv. 404-06)

A
presentada durante a Guerra do Peloponeso (431-404 a.C.), possivelmente
na primeira metade da década de 430-20 a.C., a Andrômaca1 de Eurípides
aborda dois motivos do mito da guerra de Troia de forma agregada: um sobre
a viúva de Heitor (Andrômaca), sua vida como exilada na Grécia e concubina do filho
de Aquiles, Neoptólemo; outro sobre o casamento de Neoptólemo com Hermíone e
seu assassinato por Orestes, a quem Hermíone tinha sido originalmente prometida
em casamento (CHONG-GOSSARD, 2015, p. 143). Na realidade, Andrômaca coloca no
centro de sua ação um conflito familiar enraizado na própria instituição matrimonial.
A epígrafe que inicia este texto, uma fala de Andrômaca na iminência da morte de
seu filho com Neoptólemo, faz referência às desgraças vivenciadas pela personagem
no passado frente à destruição de Troia, e àquelas do presente, notadamente a morte
de seu filho e a sua condição de cativa de guerra. Esse jogo entre passado e presente
é certamente uma metáfora para o poeta fazer com que os atenienses ponderassem
sobre duas guerras: a de Troia, no imaginário homérico, e a do Peloponeso, vivenciada
no momento pelos helenos. Até mesmo porque a “sua própria atividade literária [...] foi,
como veremos, fortemente influenciada pela laceração interna do Estado ateniense
durante a guerra do Peloponeso” (DI BENEDETTO, 1971, p. ix).
Tucídides, com tons realistas de sua narrativa historiográfica, descreve as atrocidades
vivenciadas devido à guerra: morte dos homens capturados em idade militar e redução
de mulheres e crianças à escravidão (cf. TUCIDIDES. V, 116). Logo, enquanto os heróis,
mortos em combates, serão recompensados pela memória coletiva; mulheres e
crianças, diante da morte de seus pais e esposos, ficam relegados à escravidão e à
morte (SILVA, 2013, p. 361). A própria personagem Andrômaca (vv. 396-7) admite que,
em tempos de guerra, os filhos não são bem-vindos, porque somente contribuem
para aumentar o sofrimento que afeta às suas mães.
É nesse cenário que Eurípides nos propicia uma reflexão sobre as relações de
poder estabelecidas entre mulheres – Andrômaca versus Hermíone -, entre homens
– Peleu versus Menelau -, entre mulheres e homens – Andrômaca versus Menelau
– e entre gregos e não gregos / gregos e bárbaros. Todas essas relações de poder
nos remetem a dois conceitos teóricos norteadores deste texto, a saber: gênero e
etnicidade, ambos discursos de poder construídos socioculturalmente.
No plano ideológico/simbólico, a sociedade helênica parece ter assumido
prioritariamente uma polaridade antagônica e desigual entre homens e mulheres
(GURINA, 2008, p. 11). Polaridade essa que também pode ser estendida para as
relações entre gregos e não gregos. Podemos resgatar Jean-Pierre Vernant (1999, p.
9) quando afirma que a tragédia “não poderia refletir uma realidade que, de alguma
forma, lhe fosse estranha”.

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Lin Foxhall (2013, p. 1) afirma que a questão do gênero2 é fundamental para a


nossa compreensão da Antiguidade, como o é para o mundo que nos rodeia hoje. O
passado e o presente estão engajados em uma conversa complexa neste domínio. A
helenista ainda ressalta que a Antiguidade clássica tem sido evocada para justificar
construções específicas do gênero nos últimos tempos, e nossa redescoberta moderna
e pós-moderna do gênero no passado tem sido estimulada, em grande parte, pelas
mudanças revolucionárias ocorridas em nossa sociedade a partir de fins do século
XX. O que com certeza permitiu, conforme afirma Violaine Sebillotte Cuchet (2018,
p. 143), que as pesquisas realizadas a partir dos anos 2000 sublinhassem ao mesmo
tempo a capacidade de ação das mulheres na esfera pública e a existência de uma
definição feminina no vocabulário da cidadania.
Podemos considerar que a categoria gênero procura evidenciar que a construção
do feminino e do masculino aparece interligada3; isto porque cada um dos gêneros
é definido, a partir da organização cultural, em função do outro. Ao refletir sobre
a dimensão cultural presente na categoria de análise gênero, Violaine S. Cuchet
(2014, p. 60) afirma que este “... é às vezes empregado para designar o fato de que
características físicas, comportamentais ou culturais, recebem a conotação de feminino
e masculino”. Dessa forma, no mundo grego, fraqueza e moleza, mais consentâneas
com o ambiente doméstico, são associadas ao feminino, enquanto valentia e coragem,
exigidas por uma atuação mais coletiva e exterior, ao masculino.
Gênero é um dos objetos mais difíceis do estudo histórico, uma vez que é quase
impossível de nos separarmos dele e, ao mesmo tempo, é ainda um dos aspectos mais
fascinantes do mundo antigo – e do passado em geral -, que muitas vezes se apresenta
como particularmente acessível porque se constitui em uma parte essencial de todas
as nossas relações socais, bem como de nossas identidades pessoais. Lin Foxhall
(2013, p. 2) atenta para o fato de que a presença do elemento biológico no gênero
- "masculino", "feminino" e seus corpos físicos - significa que há algo relativamente
fixo e compartilhado sobre o gênero ao longo da história humana.
Concordamos com L. Feitosa e M. Rago (2008, p. 108) quando afirmam que as
discussões propiciadas pela categoria gênero atuaram efetivamente no processo
de autonomização do sexo, enfatizando teoricamente que as diferenças sexuais
resultam de construções culturais, sociais e históricas, se distanciando das explicações
essencialistas de cunho puramente biológico e possibilitando, assim defendemos,
a desconstrução da divisão dos sexos que se constituía no cerne do pensamento
político helênico. O feminino e o masculino se caracterizam pela pluralidade, cabendo
aos especialistas reconhecer diferenças dentro da diferença, ressaltando que mulher
e homem constituem grupos heterogêneos; isto é, não são simples aglomerados
(MATOS, 2006, p. 14).
Joan Scott (1995, p. 86; 1994, p. 20) já havia apontado para essas questões ao
constatar que “o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas
diferenças percebidas entre os sexos” e ainda que “o gênero é uma forma primária de
dar significado às relações de poder”. Assim sendo, gênero adquire a conotação de
uma organização social da diferença sexual, baseada nos saberes, nas instituições,

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O PODER FEMININO NA “ANDRÔMACA” DE EURÍPIDES

no poder e práticas produzidas pelas culturas sobre as relações entre homens e


mulheres/masculino e feminino.
Também construído historicamente, o conceito de etnicidade é fundamental para
entendermos a tensão que se estabelece entre Andrômaca - uma cativa trazida de
Troia como espólio de guerra - e Hermíone – espartana, filha de Menelau e Helena.
No que se refere à relação entre tragédias e alteridades, Vidal-Naquet (1997, p. 119)
afirma que cada tragédia ateniense apresenta uma reflexão sobre o estrangeiro, sobre
o Outro. Não seria errôneo afirmar que a dinâmica essencial do teatro grego consiste
na representação do Outro, da alteridade, nas suas diversas nuances: gregos e não
gregos, masculino e feminino, livres e escravos, esposas e concubinas... Interessante
é observarmos que o drama euridipiano oferece, assim como ressalta Lidia Gambon
(2009, p. 17), um amplo leque de caracteres que cobre todos os estatutos, desde
deuses e reis a cidade/cidadãos e escravos; as origens mais variadas, gregos e não
gregos, atenienses e não atenienses; todos os grupos sociais, desde idosos a crianças.
As últimas décadas têm se dedicado também à reflexão acerca das discussões
sobre etnicidade. Philippe Poutignat e Jocelyne Streiff-Fenart (1998, p. 86) chamam a
atenção para o fato de que para alguns autores “a etnicidade refere-se a um conjunto
de atributos ou de traços tais como a língua4 , a religião, os costumes, o que a aproxima
da noção de cultura, ou à ascendência comum presumida dos membros, o que a torna
próxima da noção de raça”. Outros estudiosos a definem em termos de comportamentos,
de representações ou de sentimentos associados à pertença, ou ainda em termos de
um sistema cultural, sendo a cultura entendida como “simultaneamente um aspecto da
interação concreta e o contexto de significação desta mesma interação...” (POUTIGNAT;
STREIFF-FENART, 1998, p. 86, 109-10).
O conceito deriva do termo grego éthnos. Há certa unidade em suas definições. A.
Bailly (2000, p. 581) o traduz como “raça, povo, nação, tribo”. Liddell & Scott (1992, p.
480) acrescentam às traduções anteriores mais uma noção, a de “número de pessoas
vivendo juntas”. Já Pierre Chantraine (1983, p. 301) opta por traduzi-lo como “grupo
mais ou menos permanente de indivíduos, pessoa estrangeira, bárbara” ou ainda
“estrangeiro ao gênos, à família”. A literatura grega concede à dicotomia entre helenos
e bárbaros um destaque relevante, em especial a dramática. Edith Hall (2004, p. 3-4)
sublinha que o gênero trágico no século V a.C. demarcava os gregos do resto do
mundo através da polaridade gregos versus bárbaros. Neste sentido, Eurípides é um
testemunho singular, pois “... a sua noção de ‘estrangeiro’ é mais geral, representada
por um conjunto de elementos estereotipados, que sobretudo produzem com o modelo
grego pontos de divergência e conflito”. Importante é destacar que, com o tempo
e com um conhecimento (SILVA, 2005, p. 18) mais próximo do estrangeiro, o teatro
começa a tender para a redução da dicotomia grego/bárbaro e a considerar que o
que de fato distingue os homens não é propriamente a cultura, mas a circunstância
em que, como seres humanos, são chamados a agir. Porque todos, gregos e bárbaros,
diante da crise agem da mesma maneira.
Nos versos iniciais da tragédia (vv. 1-4), Eurípides já apresenta a sua protagonista
– Andrômaca – como não grega. O seu passado está vinculado com Troia, pois foi

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esposa de Heitor e mãe dos seus filhos. Na Ilíada (6. 429-30) observamos uma clara
dependência de Andrômaca em relação a Heitor: “Heitor, tu para mim és pai e excelsa
mãe; és irmão | e és para mim o vigoroso companheiro do meu leito”.5 A sua absoluta
dependência pode ser explicada por dois fatores interligados: primeiro, porque a morte
de Heitor e a previsível derrota de Troia serão, para Andrômaca, fonte de sofrimento,
conforme vemos na narrativa de Eurípides; segundo, porque o mundo da personagem
tem um único centro e esse é Heitor, haja vista a citação acima (DESERTO, 2012, p.
94). Importa lembrar que, na Ilíada, a cidade de proveniência de Andrômaca, Tebas,
foi antes arrasada por Aquiles e os seus parentes, mortos. O mesmo Aquiles será
responsável pela morte de Heitor. É, portanto extremamente penoso que Andrômaca
venha a caber em sorte ao filho de Aquiles, o seu pior inimigo.
A fidelidade ao passado troiano e à memória de Heitor sobressai na construção
da personagem euridipiana e se justifica pela sua condição de nobre e de esposa
legítima do filho de Príamo. Ela própria destaca que “digna de inveja, no tempo
passado, era Andrômaca” (v. 5).

O gênero feminino em confronto: Andrômaca versus Hermíone


Duas personagens femininas fortes em conflito - Andrômaca e Hermíone -
constituem o fio condutor da Andrômaca de Eurípides. A força de Andrômaca se
encontra inclusive na etimologia do seu nome: ele reúne o homem – anér - e o
combate – máche (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 79), significando “aquela que luta/guerreia
com homens”.6 Assim, ela se distanciaria da noção idealizada de esposa, pautada na
ideia de fraqueza e debilidade. Mas, apesar dessa constatação, no mundo grego “às
mulheres não era permitido tomar a palavra na assembleia, votar, ser magistrada ou
participar do exercício cívico” (CUCHET, 2018, p. 154). Apesar dessas limitações formais,
defendemos que as esposas atenienses agiam social e civicamente. Entendemos
cívico como uma esfera que excede à formalidade política.
Andrômaca e Hermíone possuem características marcantes e opostas. O quadro
busca sistematizar tais oposições:

Andrômoca Hermíone
Troiana (vv. 1-4) Espartana (vv. 29-30)
Bárbara (vv. 174/80, 261, 631, 869-74) Grega (vv. 29-30, 243)
Cativa de guerra (vv. 12, 96-102, 110-11, 136-40, Nobre (vv. 869-74)
155-60, 185-87, 399-407, 582, 869-74)
Trazida para coabitar com Neoptólemo - Esposa legítima (vv. 619-21)
Concubina (vv. 12-15)
Mãe (vv. 26, 68, 70, 74-5, 310, 339/40...) Estéril (vv. 29-30, 155-60, 355-56, 710, 711-12)
Impedida de falar (vv. 185-87) Pode falar livremente (vv. 152-3)
Mais velha Jovem (v. 238)
- Mulher malvada / respira arrogância (vv. 189-91)
Fraca7 (v. 755) -

Tabela 1. Confronto Andrômoca versus Hermíone

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O PODER FEMININO NA “ANDRÔMACA” DE EURÍPIDES

Podemos dizer que Andrômaca é uma obra que gira em torno de uniões malfadadas
que conduzem à ruína de uma casa (RODRÍGUEZ CIDRE, 2010, p. 60). O início da
obra (vv.1-56) já apresenta esse quadro: Andrômaca se encontra no altar da deusa
Tétis suplicando pela vida do filho e pela sua própria, pois Hermíone decidiu matá-los
para salvaguardar a sua condição de esposa legítima. A diferença de status entre
as personagens pode ser entendida como o elemento estruturante da peça e não
propriamente o contexto da guerra em si, mesmo que tenha sido a guerra de toda
a questão envolvendo as duas personagens. Talvez o cerne da questão esteja na
discussão acerca do estatuto da concubina que gravita entre o da esposa legítima
e o da hetaira (cortesã). De fato, o conflito se encontra entre dois leitos de status
diferentes. No prólogo, Andrômaca evidencia essa diferença: “Mas desde que o meu
senhor desposou a lacônia Hermíone, | desprezando o meu leito servil, sou por ela
perseguida com insultos cruéis” (vv. 29-31).8
Para um cidadão ateniense manter uma esposa legítima e uma concubina, com
o conhecimento da própria esposa, era algo comum. Porém, a tensão se dá pela
coabitação no oîkos do casal. Certamente é uma afronta para uma esposa conviver
com outra mulher no seu espaço de administração e atuação. Orestes afirma na
tragédia que “má coisa disseste: um homem possuir dois leitos” (v. 909).
A diferença de status entre as personagens é inquestionável na tragédia, porém
o conceito grego para concubina, pallaké, se encontra ausente9 , talvez porque o
termo pallaké se refira a uma mulher livre que possa conceber filhos igualmente
livres. Eva Keuls (1993, p. 268-69) menciona a ausência do concubinato escravo na
documentação, mas assinala que a palavra grega pallaké não tem um significado
legal preciso e pode se referir a mulheres que vivem em relações não legalizadas,
quer tenham status de escrava, livre ou liberta. O importante é destacar que é comum
nas tragédias as mulheres cativas de guerra compartilharem o leito com os seus
senhores, podendo fazê-lo como concubina e/ou escrava. Em parte, isso dependerá
de sua condição social prévia. No caso de Andrômaca, ela pertencia a um grupo social
elevado em Troia, o que a transforma em concubina e não em uma simples escrava, em
se tratando de sua nova situação social (RODRÍGUEZ CIDRE, 2010, p. 54). A tragédia
acaba reafirmando os riscos desta ausência de diferenciação de status entre esposa
legítima e concubina, ao apresentar uma cativa convivendo sob o mesmo teto de uma
esposa e, dessa forma, anular a distância espacial que demarca a separação entre
ambas (GAMBOM, 2009, p. 174).
Esse conflito se agrava com a oposição maternidade versus esterilidade. É sabido
que a principal função social feminina é a concepção de filhos, em especial do sexo
masculino, e que o casamento visa a continuidade do grupo doméstico e da comunidade
política. Não nos esqueçamos de que “a capacidade de gerar crianças cidadãs é o
direito político fundamental reservado aos cidadãos/cidadãs” (CUCHET, 2018, p. 148).
Reforçamos tal aspecto porque o conflito entre as duas personagens se encontra
essencialmente na esfera da maternidade, algo interditado a Hermíone. Apesar de
Andrômaca ter mais idade do que ela (v. 238), o seu potencial fértil é indiscutível. É
salutar destacar que neste aspecto de faixa etária observamos no universo trágico

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um distanciamento do comumente encontrado na sociedade ateniense. O comum


é o casamento de um homem mais maduro – em torno dos 30 anos ou mais – com
uma mulher bem mais jovem, por volta dos 12/14 anos de idade. No caso da relação
Andrômaca-Neoptólemo, essa situação se inverte: ela é bem mais idosa do que o
marido10 . Talvez essa relação apresentada por Eurípides fosse possível em se tratando
de uma concubina e não de uma esposa legítima. Até mesmo porque no casamento
se busca a concepção de filhos, o que teoricamente uma jovem esposa estaria
mais apta a realizar. Teoricamente porque neste caso também Eurípides, na relação
Andrômaca-Hermíone, subverte a “normalidade”.
Diferente da filha de Helena, que é na peça estéril, Andrômaca foi mãe no seu
casamento com Heitor e viu o seu filho Astíanax ser lançado pelos gregos do cimo das
elevadas torres de Troia (vv. 10-11); agora é novamente mãe, do filho de Neoptólemo
(vv. 26, 68, 70, 74-5, 310, 339-40...). Pierre Vidal-Naquet (2002, p. 79) salienta este
aspecto para a Andrômaca homérica: “Dessa multidão de troianas, Andrômaca é, com
exceção de Hécuba, a única a ser identificada pelo poeta da Ilíada como esposa e mãe”.
A esterilidade de Hermíone (vv. 29-30, 155-60, 710, 711-12) gera a sua tentativa de
assassinar Andrômaca e o filho. A acusação é o uso de drogas secretas pela cativa
para gerar a sua esterilidade e para que pudesse expulsá-la do seu tálamo (vv. 33-35,
355-56).11 Tal atitude da espartana revela o seu conhecimento de que, sem filhos, o
seu casamento se tornava inócuo. Vale reforçar que o casamento entre os gregos
possuía implicações outras. Em dois momentos da tragédia observamos que as
uniões matrimoniais resultavam de uma aliança (vv. 619-21) que não pressupunha a
consulta às jovens, pois “dos meus esponsais meu pai cuidará, e não me pertence a
mim [Hermíone] decidir” (vv. 988-89).
Como defesa, Andrômaca evoca a sua condição de escrava e questiona a
responsabilidade de Neoptólemo sobre o fato, pois “partilhei, forçada – bíai -, o leito
com o meu senhor; e então queres matar-me a mim e não a ele, que é o culpado disto?”
(vv. 390-92). Logo, a união de Andrômaca com Neoptólemo não atende aos quesitos
de um acordo matrimonial. A Andrômaca de Eurípides se mantém fiel à memória de
Heitor (vv. 36-38), aceitando essa nova relação com Neoptólemo essencialmente
por necessidade. No contexto homérico, Heitor podia imaginar todo o desfecho da
situação de sua esposa no pós-guerra e o seu sofrimento como cativa. O que sua
imaginação não alcançou foi o fato de que depois de sua morte, Andrômaca contrairia
um novo matrimônio e conceberia novos filhos (SCODEL, 1998, p. 139). A personagem
também destaca a crueldade que caracteriza o gênero feminino quando se trata de
rivais do leito conjugal (vv. 185-87). Mesmo que resultante de uma relação forçada, o
contato sexual com o filho de Aquiles atua no sentido de representar parte do aceite
por Andrômaca da sua escravidão (GAMBOM, 2009, p. 188).
Esta discussão alcança os filhos nascidos de uniões com concubinas. Há toda
uma reflexão sobre o direito ou não à cidadania por parte dos filhos desse grupo
feminino. Sarah Pomeroy (1999, p. 109), por exemplo, enfatiza que após as leis sobre
cidadania de 451-50 a.C12 , os filhos de concubinas não poderiam ser considerados
cidadãos e tinham a sua capacidade legal para herdar questionada. Porém, como já

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O PODER FEMININO NA “ANDRÔMACA” DE EURÍPIDES

dito, Andrômaca é encenada durante a guerra do Peloponeso e o contexto bélico


impõe a necessidade de população masculina nos exércitos para a defesa da pólis nos
exércitos. Certamente nesses contextos prevalecia, como critério para a cidadania, ser
apenas filho de pai ateniense. Há ainda outro argumento que se costuma usar para
esta decisão: a necessidade de uma cidade democrática, que garantia regalias aos
seus cidadãos, definir e restringir a comunidade abrangida por essas prerrogativas.
Paralela a essa questão, a pertinência de uma mulher na sociedade grega passava
fundamentalmente pelo seu papel na reprodução (JUST, 1994, p. 47). Dessa forma, “a
esposa deve demonstrar que serve como mulher sendo mãe” (RODRÍGUEZ CIDRE,
2010, p. 67).
O contexto de guerra com os espartanos se faz presente na Andrômaca e evidencia
um arraigado sentimento antiespartano, não somente na composição do personagem
Menelau, mas nas críticas às mulheres espartanas e à Helena, em especial. Além de
ser vista como uma mulher malvada e que respira arrogância (vv. 189-91), a espartana
Hermíone é caracterizada negativamente por Eurípides por ser filha de Helena. Peleu
teria dito a Neoptólemo, seu neto: “... nem para a casa trazer a cria de uma mulher
malvada [Helena]: transportam com elas as vergonhas maternas – metroi oneíde”
(vv. 620-22). A Helena é atribuída toda a responsabilidade pela guerra de Troia:13

Para a excelsa Ílion Páris não esposa mas um flagelo levou, ao


conduzir Helena para o tálamo. | Por sua causa, ó Troia, tomada
a ferro e fogo, te destruiu o rápido Ares da Hélade de mil naus.
Destruiu também a meu marido Heitor, desventurada de mim,
a quem, em torno das muralhas, arrastou com seu carro o filho
da marinha deusa Tétis (vv. 104-09).

A fuga de Helena para se unir com Páris (vv. 601-10) gera, na visão de Eurípides,
a destruição de Troia – “... durante dez anos, andaram os jovens em armas. E nunca
os tálamos teriam ficado desertos e órfãos de filhos os velhos” (vv. 305-07); “Muitas
lágrimas me correram nas faces, por deixar em cinzas a cidade, casa e marido!” (vv.
111-14) – e todo o sofrimento de Andrômaca – viúva, escrava e na eminência de ver mais
um de seus filhos assassinados. Interessante é pensarmos no sentido da guerra. Ela
é, para as famílias, separação e ruptura. Os dois campos de batalha estão sujeitos a
igual ruptura, porque a guerra é impiedosa e devora as pessoas (SILVA, 2013, p. 363-4).
A visão negativa de Helena se estende ao conjunto das espartanas. É resgatado
o tipo de vida feminino lacedemônio, da prática dos exercícios físicos junto com os
homens, frente ao ateniense, mais caracterizado pela reclusão no interior do oîkos:

E mesmo que o quisesse, nenhuma donzela espartana poderia


ser casta. Elas na companhia dos rapazes, abandonam as casas
de coxas nuas e peplos flutuantes, para estádios e palestras
– o que para mim é intolerável – | frequentarem em comum
(vv. 596-601).

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Fábio de Souza LESSA

Tal crítica é recorrente na literatura ateniense, evidenciando a alteridade nos


comportamentos femininos esperados pelas duas póleis. A ocupação de espaços
tipicamente masculinos para os exercícios físicos – estádios e palestras -, a própria
prática de uma educação mais física permitindo a aquisição de corpos mais rígidos, a
nudez somada à convivência entre os homens gera um estranhamento para o público
ateniense. E essa “licenciosidade” teve como consequência a própria guerra de Troia.
Hermíone apresenta uma visão negativa das mulheres, ao ponto de o Coro a
censurar por isso: “Com excesso soltaste a língua contra o teu próprio sexo” (v. 954).
A espartana ressalta que os maridos nunca devem permitir a frequência de outras
mulheres em suas casas, pois “elas são mestres de males” e, em decorrência dessas
visitas, os oîkoi adoecem. Continua a personagem afirmando que “visitas vindas de
fora nada de bom trazem às mulheres, antes são causa de muitos males” (vv. 945-
53)14 . As mulheres são vistas nesta peça como “uma funesta calamidade” (vv. 352-55)
e tendo a sua existência totalmente vinculada à presença do marido: “... mas, se lhe
falta o marido, falta-lhe a vida” (vv. 373-75).
Fica evidente o afã de Eurípides em atacar Esparta e os espartanos, o que se torna
compreensível no contexto bélico que opõe os atenienses aos lacedemônios. Além
dessa feição, o contraste entre Andrômaca e Hermíone também adquire aquela que
confronta gregos e bárbaros.
De tudo o que discutimos até o momento, concluímos que é fundamental refletir o
gênero como uma categoria que põe em destaque os grupos femininos, permitindo-
nos pensar a sociedade com homens e mulheres. Todas as formas de dominação
são de interesse das relações de gênero, sejam elas entre homens e mulheres, livres
e não livres; estando homens e mulheres presentes no interior dessas últimas duas
categorias (CUCHET, 2018, p. 10 – grifo da autora). Acrescentamos a essas formas
de dominação, aquelas entre gregos e não gregos.

Gregos e não gregos: a barbárie no feminino


Andrômaca é por definição bárbara, mas Eurípides a constrói sem carregar nos
traços negativos da barbárie. Ao contrário, é Hermíone, a nobre grega, quem é descrita
como capaz de cometer um duplo assassinato na ausência de seu marido, incluindo
dentre as vítimas o único filho de Neoptólemo (RODRÍGUEZ CIDRE, 2010, p. 60-1).
Este é um exemplo da tal relativização que Eurípides faz da dicotomia grego/bárbaro.
A colocação de Elsa R. Cidre pode ser constatada a partir até mesmo de uma leitura
descompromissada da peça, porém nos insere na segunda forma de relação de poder
que nos propomos a considerar: aquela entre gregos versus bárbaros. Polarização
essa considerada por Edith Hall (2004, p. 11) como um popular topos na tragédia.
O período de guerras marca a possibilidade daqueles que se julgavam superiores
adotarem um comportamento de verdadeiros bárbaros. Assim, o termo bárbaro
nomeou um comportamento selvático e animal a que todo o ser humano, em tempo de
guerra, está sujeito (SILVA, 2005, p. 48). É o que de certa forma vemos, por exemplo,
no comportamento da grega Hermíone. Mas vale ser destacado que antes do século

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O PODER FEMININO NA “ANDRÔMACA” DE EURÍPIDES

V a.C. o termo bárbaro não tinha sido usado no plural, isto é, como um nome que
denotava um mundo não grego (HALL, 2004, p. 9).
À Andrômaca fica claro que ela se encontra em uma terra estranha - xénas – na
condição de cativa de guerra – dmoìs (vv.136-140). Ela, uma nobre troiana, agora vivendo
sem liberdade na Hélade. Interessante é refletirmos sobre a posição, geográfica e
cultural, de Troia na avaliação dos gregos. Ela ocupa um espaço meio fronteiriço entre
o não ser grego e o ser grego, pois “embora asiática e estrangeira, a cidade de Príamo
sempre gozou, dentro do critério grego, de um estatuto que tendeu a aproximá-la,
em termos de estádio de progresso, da própria Hélade e a colocou na posição de
um inimigo à altura” (SILVA, 2005, p. 44).
Os troianos não eram, para os helenos, bárbaros de mesmo patamar que os
persas, por exemplo. Ou seja, Troia nunca foi vista sob o estigma de selvagem e/ou
primitiva. Logo, Troia era bárbara apenas por não ser grega. Vidal-Naquet (2002, p.
37-8) menciona que tanto para Heródoto quanto para os poetas trágicos – Ésquilo,
Sófocles e Eurípides -, os troianos são bárbaros, apesar de Eurípides se questionar
acerca do valor desta relação de oposição. Em Homero, por exemplo, não encontramos
claramente uma diferença marcante no que se refere à oposição gregos e bárbaros.
O helenista (VIDAL-NAQUET, 2002, p. 39) faz uso de dois argumentos para defender
essa proximidade entre gregos e troianos em Homero. O primeiro é a inexistência de
problemas de comunicação entre as duas sociedades, isto é, não há alusão ao fato
de falarem línguas diferentes. Emílio Crespo (2004/2005, p. 36) também ressalta tal
similitude: “Os personagens falam a mesma língua”. O segundo, o fato de Heitor não
ter sido para a posterioridade o nome de um bárbaro. Quanto à questão de helenos
e troianos falarem uma mesma língua, isso pode ser um recurso literário que atende
ao público receptor dos poemas de Homero. Se autor e receptores são helenos, era
comum que a língua utilizada na epopeia fosse aquela do domínio do emissor e de
seu público.
Podemos vislumbrar em Troia uma arquitetura que a aproximava de uma pólis
com suas muralhas, obra dos deuses (EURÍPIDES. Troianas, vv. 4-6, 814), um convívio
social com valores semelhantes àqueles presentes nas comunidades tidas como
civilizadas à época, como a xenia. Segundo Cuchet (2006, p. 57), a muralha troiana
(alta, intransponível) pode ser concebida como metáfora do seu povo, oferecendo a eles
um sentimento de invencibilidade que possivelmente era entendido como arrogância.
Para além da língua, Emilio Crespo (2004/2005, p. 36-7) enumera outras semelhanças
entre helenos e troianos: veneram os mesmos deuses e oferecem os mesmos tipos
de sacrifícios; alguns heróis gregos e troianos compartilham uma genealogia comum;
vestimentas, costumes e armas são semelhantes; a organização cívica dos troianos
parece mais complexa do que a dos gregos, mas isso pode se dar pelo fato de os
helenos estarem em acampamento militar.
Apesar das semelhanças, a imagem dos troianos é construída a partir de diferenças
com os gregos: os gregos atacam em silêncio, já os troianos ruidosamente; Aquiles
enfatiza que eles oferecem cavalos vivos ao rio Escamandro; Príamo é polígamo; os
troianos são arrogantes diante da vitória enquanto os gregos são prudentes; e, os

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Fábio de Souza LESSA

gregos, diferentemente dos troianos nunca suplicam pela vida, abraçando os joelhos
dos vencedores, quando capturados (CRESPO, 2004/2005, p. 36-7; MORAES, 2009,
p. 65).
Porém o que melhor exprime o bárbaro é a sua condição de escravo, conforme
Eurípides reforça na Andrômaca em uma das falas de Menelau (vv. 664-66):15“... se
minha filha [Hermíone] não der à luz e desta nascerem filhos, sobre a terra da Ftia |
serão eles soberanos e, bárbaros pelo nascimento, vão governar os gregos?!”.
Não obstante o seu comportamento de excessos que seria mais condizente com
os bárbaros do que com os helenos, Hermíone caracteriza a raça bárbara como aquela
em que pai une-se à filha, filho à mãe, irmã ao irmão e os parentes matam-se uns aos
outros, não havendo leis que impeçam tais costumes (vv. 174-76). Esta caracterização
feita pela personagem, além de reiterar a desvalorização do bárbaro ante o heleno,
nos remete ainda ao narrado por Heródoto (3. 31) acerca de Cambises que teria se
unido à sua própria irmã. Aqui os persas são recuperados como alteridade máxima
dos gregos. A ausência de leis e de uma sociedade organizada remete a uma situação
de barbárie frente à complexidade políade. Na vida civilizada em pólis, segundo
ainda Hermíone, não é decente que um só homem coabite com duas mulheres (vv.
177-80). Destaca-se que a pólis é elemento fundamental para a construção do sentido
de ser grego.
Segundo Renata Cardoso de Sousa (2019, p. 159), “embora Hermione frise o
discurso helênico acerca do bárbaro, ela mesma é mostrada no limiar entre os dois
grupos étnicos, justamente porque o espartano é, cada vez mais, visto como um
Outro”, principalmente no contexto da Guerra do Peloponeso. De forma semelhante,
Andrômaca e os troianos têm o seu estatuto de bárbaro reforçado; ele é ratificado,
isto porque, ainda na interpretação de Renata C. de Sousa, “a tragédia euripidiana
reforça as fronteiras étnicas entre os bárbaros para, ela mesma, aproximar aqueles
que estão contra os atenienses a eles”.
Para Edith Hall (2004, p. 1, 2 e 11), quando os gregos escreveram sobre os bárbaros
- que são vistos como seus opostos -, eles estavam experimentando um exercício
de autodefinição. A helenista enfatiza que tal invenção teria sido forjada a partir
das Guerras Greco-Pérsicas (490-479 a.C.)16 . Mas como as peças de Eurípides são
marcadas pela atualidade e a realidade atual do poeta é a da Guerra do Peloponeso17,
essa invenção do bárbaro ganha novas matizes.
Com os conflitos entre atenienses e espartanos e seus respectivos aliados, “a
apreciação etnográfica e a esquematização que transforam os não-gregos, tornados
os bárbaros ou o bárbaro, em puro instrumento crítico em um discurso dos gregos
sobre os gregos” (PESCHANSKI, 1993, p. 58). A partir desse momento temos o discurso,
no qual as tragédias de Eurípides se inserem, que transforma os não-atenienses
em bárbaros. O bárbaro agora é o próprio grego, o que permite ao poeta construir
Hermíone, uma espartana, com traços barbarizados, conforme vimos anteriormente.
Assim como Jonathan Hall (2000, p. 33), também compreendemos a etnicidade como
um fenômeno relacional, isto é, constituído a partir do contato com os Outros e é a

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O PODER FEMININO NA “ANDRÔMACA” DE EURÍPIDES

partir desse contato que ela também se define e se mantém. E esses Outros, no caso
de Eurípides, são os gregos não-atenienses.
No seu embate com Hermíone, o que sobressai é o fato de Andrômaca, apesar
de estrangeira e supostamente bárbara, se mostrar mais grega nas atitudes, na sua
moderação e na sua virtude, do que a princesa espartana. Esta opta pela violência
desmedida e por toda a espécie de excessos que eram entendidos pelos gregos
como esperados de um bárbaro. Os gregos barbarizados de Eurípides invertem a
tese aceita de que os helenos são superiores ao resto do mundo, um cânon tantas
vezes sublinhado pelos poetas trágicos nas suas celebrações dramáticas de uma
identidade coletiva grega (HALL, 2004, p. 222-23).
O que percebemos na Andrômaca é a guerra atuando no sentido de criar uma
nova ordem sem fronteiras na qual predomina a ideia do grego/barbarizado e do
bárbaro/civilizado. A noção da barbárie no Outro dá lugar à barbárie no próprio grego,
afinal são os helenos matando e escravizando helenos. Algo que para a ideologia da
comunidade política seria uma anomalia.

Conclusão
Andrômaca, assim como outras tragédias de Eurípides, coloca em relevo um dos
traços característicos do poeta: a concessão de espaço de ação às personagens
femininas. Por mais que Hermíone dependesse de seu pai, Menelau, para concretizar
o seu plano de assassinar Andrômaca e o filho e que a viúva de Heitor tenha sido
salva por Peleu, os personagens masculinos não são aqueles responsáveis pelo
desenvolvimento da narrativa na peça. As ações determinantes são femininas.
Complexa é a composição da personagem Andrômaca. Ela é bárbara - porque é
cativa troiana -, mas possui um comportamento mais esperado de uma esposa ideal
grega. E acima de tudo, ela é capaz de discorrer em defesa do casamento grego:

Não é pelos meus fármacos que teu marido te odeia, mas por
não seres dotada para viver em comum. Filtro também é o
seguinte: não é a beleza, mulher, mas as virtudes que alegram
os companheiros do leito. (...) Deve a mulher, ainda que dada
a alguém de baixa condição, amar o marido e não ter com ele
discussões sobre nobreza (vv. 205-14).

Sob o filtro de Eurípides, Andrômaca, mesmo quando isso parecia completamente


improvável, assume a defesa de ideais que não seriam do seu universo cultural.
Neste aspecto nos encontramos diante de um contraste com Hermíone que mais
se assemelha, em atitudes, àquilo que culturalmente se esperava de um bárbaro.
Tal contraste vem ao encontro do que Barbara Cassin e Nicole Loraux (1993, p. 10)
defendem ao afirmar que “é-se grego por cultura e não por natureza”. Logo, qualquer
grego pode então barbarizar, independente de natureza, solo ou sangue. E a literatura
– aqui expressa na tragédia euridipiana – permanece como um espaço essencial de
expressão das diferenças (TEZZA, 2018, p. 22).

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Fábio de Souza LESSA

Concubinato e esterilidade constituem dois temas relevantes na Andrômaca.


Esses temas aliados marcam a possibilidade da presença dos Outros – Menelau,
Peleu, Orestes - no grupo doméstico do ausente Neoptólemo, e enfatiza a alteridade
de Andrômaca como concubina, escrava e bárbara, assim como a de Hermíone
como esposa legítima. Alteridades essas que são permeáveis, de acordo com os
comportamentos assumidos pelas personagens: o da bárbara que defende a cultura
grega e o da grega que age como bárbara.
Assim sendo, podemos enfatizar que Andrômaca se encontra próxima do contexto
da domesticidade mais comum, mais próxima daquilo que o público identificava como
sendo o ideal de esposa ateniense, apesar de não a ser. Andrômaca é o inesperado:
é a outra como escrava e bárbara, é subversiva e ameaçadora como toda mulher,
mas mantém domesticada a sua natureza.

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Notas
1Muitos helenistas defendem que a peça Andrômaca, de Eurípides, não possua uma unidade
(PHILLIPPO, 1995, p. 355).
2 Ver: GILHULY (2009); SCHMITT PANTEL (1990, p. 591-603); MATOS (2006, p. 9-23).
3 Além de relacional e historicamente construído, o gênero é plural; isto porque, “existem muitos
‘femininos’ e ‘masculinos’, e esforços vêm sendo feitos no sentido de se reconhecer diferenças
dentro da diferença, apontando que mulher e homem não constituem simples aglomerados:
...” (MATOS, 2006, p. 13).
4Dentre os diversos fatores neste quadro de oposições entre gregos e bárbaros, temos a língua
a marcar a diferença e a distância: “... no critério helênico, o bárbaro, ao mesmo tempo que
articula sons que obedecem a uma cadeia incompreensível, realiza um processo mental que o
distingue do grego” – SILVA (2005, p. 15). Ver também: HALL (2004, p. 3-4).
5 Tradução de Frederico Lourenço (2013).
6Segundo P. Vidal-Naquet (2002, p. 79), “impossível não ligar o seu nome ao que se pode
chamar de supermasculinidade do seu círculo”, isto devido ao fato de ela possuir sete irmãos e
viver em um universo masculinizado. Seus irmãos, além do próprio pai, teriam sido mortos por
Aquiles (cf. Ilíada. 6. 413-24).
7 Certamente Andrômaca se vê como fraca por sua condição de escrava, mulher e concubina.
8 Todas as citações da tragédia Andrômaca foram traduzidas por José Ribeiro Ferreira (2010).
9 Quanto a esta questão, ver: RODRÍGUEZ CIDRE, 2010, p. 63-64.
10Podemos também pensar, a título de exemplo, na relação Fedra e Hipólito, além de Jocasta
e Édipo.
“Pois diz que, por meio de drogas secretas, a torno estéril e odiada ao marido e que desejo
11

habitar esta casa, em sua vez, expulsando-a à força do seu tálamo” (vv. 33-35).
12 A partir desta lei atribuída a Péricles, somente seriam cidadãos os filhos de pai e mãe atenienses.
13Consultar também os versos 248, 595-601, 601-10, 631, 680-85. Em Hécuba a situação se
repete nos versos 265-70, 441-43 e 943-51.
14Num diálogo entre Andrômaca e a Escrava, Eurípides não deixa de mencionar os artifícios
femininos para as saídas de casa (vv. 84-85).

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Fábio de Souza LESSA

15 Sobre essa questão, cf. Helena, v 276, Troianas, v. 933, Ifigênia em Áulide, vv. 1400-401.
16Jonathan M. Hall (2000, p. 44) também é partidário de que o conceito de bárbaro tem por
referencial as Guerras Greco-Pérsicas. Consultar também: PESCHANSKI, 1993, p. 56. Já François
Hartog (1999), defende que as Guerras Greco-Pérsicas não foram o marco dessa diferenciação,
visto que ela já ocorria antes.
17“E as peças de Eurípides estão marcadas pela atualidade, seja pela guerra (a do Peloponeso),
seja pelas ideias sofísticas, predominando a presença concreta do sofrimento humano, venha
ele da paixão, da guerra, do erro ou dos deuses” (LESSA, 2016, p. 48).

Fábio de Souza Lessa é professor Doutor – ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4829-6651.


Laboratório de História Antiga (LHIA) do Instituto de História (IH) e dos Programas de Pós-Graduação
em História Comparada (PPGHC) e de Letras Clássicas (PPGLC) da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. E-mail: fslessa@uol.com.br.

Submissão: 18/10/2019
Editores: Karina Anhezini e André Figueiredo Rodrigues Aceite: 05/12/2019

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