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Linguistica Aplicada - Linguistica

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LINGUÍSTICA

1
Sumário
Linguística Aplicada: constituição e ressignificação como campo de estudos
linguísticos ................................................................................................................. 3

Linguística Aplicada: considerações iniciais ............................................................... 3

Ressignificação da Linguística Aplicada: um novo olhar sobre o objeto dos estudos


linguísticos ................................................................................................................. 4
Teorias linguísticas e ensino de Língua Portuguesa na escola: a língua como objeto
social ........................................................................................................................ 11

Ancoragem teórica da ação pedagógica: considerações iniciais ............................. 11

Fundamentos do pensamento bakhtiniano: uma epistemologia ancorando a busca de


uma mudança no ensino de Língua Portuguesa ...................................................... 12
O conceito de gêneros do discurso: desdobramentos teóricos e implicações
pedagógicas ............................................................................................................. 20
Elaboração didática: um olhar praxiológico .............................................................. 42
REFERÊNCIAS ............................................................................................. 47

1
NOSSA HISTÓRIA

A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de empresários,


em atender à crescente demanda de alunos para cursos de Graduação e Pós-
Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como entidade oferecendo
serviços educacionais em nível superior.

A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de


conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a participação
no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua formação contínua.
Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos que
constituem patrimônio da humanidade e comunicar o saber através do ensino, de
publicação ou outras normas de comunicação.

A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma


confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base
profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições
modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica,
excelência no atendimento e valor do serviço oferecido.

2
Linguística Aplicada: constituição e ressignificação
como campo de estudos linguísticos

Linguística Aplicada: considerações iniciais


Ao final desta Unidade, você deve ser capaz de reconhecer o percurso de
desenvolvimento da Linguística Aplicada, bem como conceituar esse campo de
estudos, definindo seu escopo no quadro das ciências linguísticas.

Refletir sobre Linguística Aplicada requer, preliminarmente, considerar que a


linguagem ocupa lugar central na vida humana; afinal, é ela que nos permite a
simbolização do real, uma vez que viabiliza a formação de conceitos, a abstração e a
organização cognitiva das representações do mundo extramental. A linguagem
permite-nos, ainda e fundamentalmente, a interação social, condição para a vida em
sociedade. Em razão, sobretudo, dessas funções, a linguagem tem sido,
historicamente, uma questão muito estudada pelo homem, no entanto, somente no
final do século XIX e no início do século XX – com a contribuição de Ferdinand de
Saussure –, estabeleceu-se oficialmente a ciência linguística, tendo como objeto de
estudo a língua.

Após essa fase inicial de consolidação da Linguística como ciência, em


meados do século XX, começaram a surgir estudos que partiam da abstração do
conhecimento linguístico para a aplicação desse conhecimento em situações reais de
uso de linguagem. Desse movimento emergiu a Linguística Aplicada como recorte
dos estudos linguísticos. Entendemos, hoje, a Linguística Aplicada como campo e
não mais como disciplina. Essa compreensão deve-se às atuais propostas de
trans/inter/indisciplinaridade que marcam as discussões dos linguistas aplicados,
como poderemos ver ainda nesta Unidade.

Focalizamos, no início deste nosso estudo, o processo histórico de


delineamento da Linguística Aplicada e a instauração desse campo de estudos sob
as bases do que optamos chamar, para fins desta disciplina, de concepção habitual,
construto que se desenhou a partir dos anos cinquenta do século XX. Em seguida,
ainda nesta Unidade, discutiremos o que optamos por chamar de a concepção
emancipadora da Linguística Aplicada, a qual tem ganhado espaço em reflexões
contemporâneas e ainda se mostra em fase de legitimação.

3
Ressignificação da Linguística Aplicada: um novo olhar sobre
o objeto dos estudos linguísticos
Vimos, na seção anterior, que a Linguística Aplicada, na segunda metade do
século XX, foi concebida como usuária de construtos da Linguística teórica. Essa
concepção aplicacionista e fracionada vem sendo objeto de discussão entre os
linguistas aplicados da modernidade. Parece voz corrente a busca pela
ressignificação do objeto de estudo da Linguística Aplicada, tanto quanto, em boa
medida, a busca pela ruptura das fronteiras disciplinares bem marcadas até pouco
tempo nesse campo.

Discutir a nova postura da Linguística Aplicada implica considerar reflexões


que vêm sendo empreendidas sobre práticas de investigação nesse campo, a
exemplo do que propõem Signorini e Cavalcanti (1998). Tais reflexões têm
potencializado nova compreensão sobre a atividade do linguista aplicado. Segundo
Rojo (2007), isso se dá especialmente em razão da delimitação do interesse primário
de pesquisa em Linguística Aplicada, agora um universo que transcende o ensino de
línguas; da discussão dos tipos de objetos de pesquisa selecionados, agora na
sociedade em geral; e do debate acerca do caráter inter ou transdisciplinar das
investigações, antes, disciplinares.

Para essa pesquisadora, “[...] parece haver um consenso entre os diferentes


autores sobre as duas primeiras questões – o interesse primário de pesquisa e os
objetos selecionados para estudo –, mas um conflito de posições e definições no que
tange ao caráter inter, multi, pluri, trans ou indisciplinar das pesquisas” (ROJO, 2007,
p. 1761, grifos nossos).

Em nosso entendimento, esse conflito traz consigo implicações que têm a ver
com a forma como a Linguística Aplicada foi concebida ao longo da segunda metade
do século XX. Tem relações, ainda, com o fato de a condição de campo interdisciplinar
suscitar polêmicas em torno das fronteiras e dos contornos do que maioria das vezes,
sob um olhar positivista segundo o qual, sob vários aspectos, cada ciência deve ater-
se a seu objeto de estudo e a seu método de abordagem, ambos devidamente
delimitados e especificados. seja ciência, tomada, na Para Rojo (2007), a atividade
do linguista aplicado, na última década, tem convergido com o interesse em entender,
explicar ou solucionar problemas, objetivando a criação ou o aprimoramento de

4
soluções para tais problemas, tomados em sua contextualização, em sua relevância
social, o que confere às soluções condição de conhecimento útil a participantes
sociais efetivos. Assim, “[...] a orientação para o problema como abordagem
dominante na LA substituiu gradualmente a orientação para a teoria” (ROJO, 2007,
p. 1761).

Desse modo, o embate clássico entre a produção de teorias e o uso de teorias,


a que fizemos referência na seção anterior, dá lugar à priorização de problemas para
os quais o linguista aplicado propõe-se a buscar soluções. “A questão é: não se trata
de qualquer problema – definido teoricamente –, mas de problemas com relevância
social suficiente para exigirem respostas teóricas que tragam ganhos a práticas
sociais e a seus participantes, no sentido de uma melhor qualidade de vida, num
sentido ecológico.” (ROJO, 2006, p. 258).

Inferimos que essa postura implicita um posicionamento político, uma


concepção de conhecimento que revela preocupação com a repercussão no entorno,
isto é, uma produção de conhecimento que, de algum modo, contribua para qualificar
a vida humana. Moita Lopes (1998 apud ROJO, 2007), nesse sentido, atenta para a
responsabilidade social da pesquisa, argumentando que tal responsabilidade
estende-se desde o recorte do problema – o que merece, de fato, ser estudado – até
a própria estrutura da investigação. Considerar a atividade científica sob essa
perspectiva implica, assim, promover mudanças na seleção e no enfoque dos objetos
a serem investigados.

Escreve Rojo (2007, p. 1762):

Trata-se, então, de se estudar a língua real, o uso situado da linguagem, os


enunciados e discursos, as práticas de linguagem em contextos específicos,
buscando não romper esse frágil fio que garante a visão da rede, da trama, da
multiplicidade, da complexidade dos objetos-sujeitos em suas práticas.

Como podemos observar, a redefinição do objeto de estudo da Linguística


Aplicada foge, em grande medida, das relações quase biunívocas que estabelecia
com o ensino de línguas no início de seu processo de instauração como disciplina de
estudo. Agora, esse campo do conhecimento extrapola o universo escolar para
ganhar espaço na sociedade em seu desenho mais amplo, focalizando os usos da

5
língua nas diferentes instâncias, nos diferentes contextos, nas mais variadas
interações e nos problemas suscitados nesses universos múltiplos.

Ao final de suas considerações, na citação anterior, Rojo (2007) faz alusão a


inter-relações entre diferentes disciplinas, componente dessa nova visão da
Linguística Aplicada, mas, diferentemente do que se dá com a redefinição do objeto
de estudo, tais inter-relações são motivo de embate, como veremos na seção a
seguir.

A busca dos fios da rede: interpenetração das disciplinas no campo da


Linguística Aplicada

Signorini (1998), a exemplo de outros estudiosos da área, advoga em favor da


ruptura de fronteiras em Linguística Aplicada no que diz respeito a uma visão
disciplinar. A autora critica a tradição analítica que compartimenta o conhecimento e
que zela para que não haja interpenetrações – cada ciência deve manter-se nos
limites de seu objeto de conhecimento e de seu método. Segundo a autora, é preciso
contemplar a mistura que tece o mundo, ou os elementos híbridos em que se
entrelaçam o mundo dos objetos e o mundo dos sujeitos, implicados numa mesma
trama.

E o que isso significa de fato? Em nosso entendimento, a Linguística Aplicada,


na contemporaneidade, propõe revisão de seu objeto de estudo, distinguindo-se da
concepção habitual a que nos referimos em seção anterior, para assumir uma postura
de diálogo com as diferentes ciências na investigação de problemas linguísticos
social, cultural e historicamente relevantes. Essa ressignificação exige que o estudo
da língua em uso transcenda fronteiras disciplinares para promover o imbricamento
entre diversas áreas do conhecimento. Desse modo, a Linguística Aplicada transita
da condição de mais uma disciplina dos estudos linguísticos para a condição de
campo de conhecimento, que se erige em uma perspectiva
inter/multi/pluri/transdisciplinar e no bojo do qual várias disciplinas se entretecem, se
enovelam.

Com relação a tal trama, esse novo olhar sobre a Linguística Aplicada suscita
polêmica entre os próprios linguistas aplicados no que diz respeito à natureza do
diálogo entre as diferentes disciplinas. Moita Lopes (1998 apud ROJO, 2007, p. 1763)
escreve o seguinte:

6
[...] não se pode fazer LA transdisciplinarmente. Pode-se, contudo, como
linguista aplicado, atuar em grupos de pesquisa de natureza transdisciplinar que estão
estudando um problema em um contexto de aplicação específico para cuja
compreensão as intravisões do linguista aplicado possam ser úteis.

Mas o que significa, de fato, a transdisciplinaridade que Moita Lopes nega?


Celani (1998 apud ROJO, 2007, p. 1763) pontua que a

Transdisciplinaridade envolve mais do que a justaposição de ramos do saber.


Envolve a coexistência em um estado de interação dinâmica, o que Portella (1993)
chamou de esferas de coabitação. [...] Novos espaços de conhecimento são gerados,
passando-se, assim, da interação das disciplinas à interação dos conceitos e, daí, à
interação das metodologias.

Trata-se, enfim, da ruptura de limites, da interpenetração entre as diferentes


disciplinas de estudo, o que provoca a construção de novos conceitos, agora comuns
a todas ou a parte dessas mesmas disciplinas. O enfoque transdisciplinar não se
limita a “empréstimos” conceituais entre as disciplinas, mas a construções conceituais
conjuntas. Dá-se um movimento dialético, uma espécie de simbiose, um processo de
união, de perda de oposições, e não apenas uma interface, uma justaposição.

Nessa nova fase da Linguística Aplicada, parece não haver embates quanto à
ressignificação do objeto: o foco, agora, não se limita ao ensino de línguas; estende-
se a problemas linguísticos social, cultural e historicamente relevantes, para os quais
o linguista aplicado busca soluções. Seguramente, porém, há embates sobre os fios
da rede: de que modo essa nova abordagem promove o diálogo entre diferentes
disciplinas de caráter aplicado? Trata-se de transdisciplinaridade que supõe simbiose,
perda de oposições entre as disciplinas), de interdisciplinaridade (o que supõe
interfaces entre as disciplinas) ou indisciplinaridade (o que supõe negação das
disciplinas como tais)?Nosso propósito, nesta abordagem introdutória, seguramente
não é dar respostas a essa questão, mas registrar a existência dessa discussão sob
tais perspectivas. Inferimos tratar-se de um caminho em construção, o qual, dadas as
profundas mudanças que traz a reboque, demanda tempo para equilibração e
legitimação.

7
Rojo (2007, p.1763, grifos da autora), por exemplo, distingue práticas
transdisciplinares e práticas interdisciplinares:

[...] práticas de investigação interdisciplinares enfocam o objeto a partir de


múltiplos pontos de vista disciplinares, com ou sem interação entre esses pontos de
vista, mas não chegam a (re)configurar o objeto no campo de investigação da LA,
constituindo-o como complexo, isto é, como “um todo mais ou menos coerente, cujos
componentes funcionam entre si em numerosas relações de interdependência ou de
subordinação”. Já os “percursos transdisciplinares de investigação geram
configurações teórico-metodológicas próprias, isto é, não coincidentes com, nem
redutíveis às contribuições das disciplinas de referência”.

Segundo a autora, enfim, os percursos transdisciplinares de investigação


produzem teoria no campo aplicado e não simplesmente a consomem. Em nossa
compreensão, no entanto, a questão mais importante não é a discussão que define
se a nova Linguística Aplicada é transdisciplinar, interdisciplinar ou indisciplinar, mas
o fato de que esse novo olhar traz consigo o convite para a permeabilidade entre
diferentes áreas do conhecimento na busca de soluções para problemas linguísticos
socialmente relevantes.

Um novo caminho em construção

O novo status que a Linguística Aplicada constrói paulatinamente representa,


com a licença da metáfora, um “rompimento do cordão umbilical” mantido com a
Linguística teórica, mais precisamente, um rompimento com a condição de disciplina
derivada de. Moita Lopes (2006) defende ardorosamente essa nova condição,
sugerindo um posicionamento, sob muitos aspectos, político. Esse estudioso propõe
uma concepção de Linguística Aplicada que transcenda a clássica discussão entre
aplicação da Linguística e Linguística aplicada. Escreve ele:

A compreensão de que a LA não é aplicação da Linguística é agora um truísmo


para aqueles que atuam no campo [...]. Tendo começado sob a visão de que seu
objetivo seria aplicar teorias Linguísticas [...], a LA já fez a crítica a essa formulação
reducionista e unidirecional de que as teorias Linguísticas forneceriam a solução para
os problemas relativos à linguagem com que se defrontam professores e alunos em
sala de aula. O simplismo aqui é claro. Como é possível pensar que teorias
Linguísticas, independentemente das convicções dos teóricos, poderiam apresentar

8
respostas para a problemática do ensinar e do aprender em sala de aula? Uma teoria
Linguística pode fornecer uma descrição mais acurada de um aspecto linguístico do
que outra, mas ser completamente ineficiente do ponto de vista do ensinar e do
aprender línguas. (MOITA LOPES, 2006, p. 18).

Moita Lopes (2006) segue sua reflexão denunciando o que chama de equívoco
aplicacionista, decorrente, segundo ele, do entusiasmo que a Linguística despertou
em seu surgimento no início do século XX. O que aconteceu, segundo esse estudioso
da área, foi uma compreensão apressada e pouco lúcida de que tal aparato teórico
poderia focalizar questões que estavam além de seu próprio alcance. Destaca, ainda,
“[...] ser possível explicar essa relação unidirecional entre teoria Linguística e a prática
de ensinar/aprender línguas, típica da chamada aplicação da Linguística, que não
contempla [...] a possibilidade de a prática alterar a teoria [...]” (MOITA LOPES, 2006,
p. 18-9).

O autor chama a atenção para o fato de que, no Brasil, a Linguística Aplicada


tem ganhado territórios para além da sala de aula, tais como empresas, clínicas de
saúde, delegacias de mulheres. Assim,

a questão de pesquisa, em uma variedade de contextos de uso da linguagem,


passou a ser iluminada e construída interdisciplinarmente. Tal perspectiva tem levado
à compreensão da LA não como conhecimento disciplinar, mas como indisciplinar [...]
ou como antidisciplinar e transgressivo. (MOITA LOPES, 2006, p. 19, grifos do autor).

Para os estudiosos que, como Moita Lopes, movem-se na reivindicação de um


novo status e de um novo perfil para Linguística Aplicada, é preciso considerar que
essa área, contrariamente ao que propunha a concepção habitual, tem um construto
que objetiva encaminhar soluções para os problemas com os quais se defronta ao
focalizar a língua em uso. A Linguística Aplicada cria inteligibilidades sobre tais
problemas, a fim de que alternativas para esses contextos de uso da linguagem
possam ser vislumbradas. Assim, ao que parece, a concepção de que esse ramo de
estudos não produz teorizações precisa ser criteriosamente revisto, porque não
parece mais ser essa a questão central. Nesse sentido, Moita Lopes (2006, p. 21)
assevera que:

9
A necessidade de repensar outros modos de teorizar e fazer LA surge do fato
de que uma área de pesquisa aplicada, na qual a investigação é fundamentalmente
centrada no contexto aplicado [...] onde as pessoas vivem e agem, deve considerar a
compreensão das mudanças relacionadas à vida sociocultural, política e histórica que
elas experienciam.

Essa Linguística Aplicada contemporânea seria, no entendimento desse


pesquisador, mestiça, ou seja, capaz de interagir com outras áreas do conhecimento,
como a antropologia, a sociologia, a etnografia. Trata-se da necessidade de explodir
a relação entre teoria e prática, porque “[...] é inadequado construir teorias sem
considerar as vozes daqueles que vivem as práticas sociais que queremos estudar;
mesmo porque, no mundo de contingências e de mudanças velozes em que vivemos,
a prática está adiante da teoria [...]” (MOITA LOPES, 2006, p. 31). A Linguística
Aplicada, nesse novo contexto, toma o sujeito social como heterogêneo, fragmentado,
um sujeito historicamente inserido em um contexto.

Rajagopalan (2006) entende que esteja se formando um consenso entre os


estudiosos da Linguística Aplicada de que cabe a esse ramo de estudos evoluir da
condição de mediador das relações entre a Linguística, tomada em seu isolamento
científico, e a sociedade, marcada pela necessidade de soluções práticas para seus
problemas. Nessa perspectiva, é papel da Linguística Aplicada contemporânea

[...] intervir de forma consequente nos problemas linguísticos constatados, não


procurando possíveis soluções numa Linguística que nunca se preocupou com os
problemas mundanos (e nem sequer tem intenção de fazê-lo), mas teorizando a
linguagem e formas mais adequadas àqueles problemas. [...] Dito de outra forma: a
LA precisa repensar o próprio lugar da teoria e não esperar que seu colega “teórico”
lhe forneça algo pronto e acabado para ser “aplicado”. (RAJAGOPALAN, 2006, p.
165, grifos do autor).

Como podemos observar, trata-se de uma proposta de efetiva mudança em


relação à concepção habitual de Linguística Aplicada. Entendemos que essa
mudança tem subjacente um posicionamento claramente político que confere aos
estudos desse campo comprometimento com a busca de soluções para problemas
linguísticos de cunho social relevante. O foco da guinada que observamos nesse
campo de estudos não é mais a dicotomização entre produção de teoria e uso de

10
teorias, mas o olhar sobre tais problemas e o estudo de formas
trans/inter/indisciplinares de resolvê-los.

Em nossa compreensão, trata-se de um movimento rumo a uma Linguística


Aplicada que se assume cientificamente como um novo campo de estudos,
transcendendo a condição de disciplina dos estudos linguísticos e se propondo a
dialogar com outras ciências e a produzir teorizações nas inteligibilidades que
apresenta para os fenômenos estudados em seu objeto: a problematização da língua
em sociedade.

Teorias linguísticas e ensino de Língua Portuguesa na


escola: a língua como objeto social

Ancoragem teórica da ação pedagógica: considerações


iniciais
Esta Unidade veicula a ancoragem teórico-epistemológica de nossa proposta
de ensino e aprendizagem de língua materna em uma perspectiva de uso social,
concebendo esse mesmo ensino sob uma dimensão sociointeracional. O foco são
fundamentos de dois eixos teóricos (e seus desdobramentos) que sustentam nossas
discussões: teorizações sobre gêneros do discurso– com base no pensamento do
Círculo de Mikhail Bakhtin e pesquisadores contemporâneos afiliados a essa
perspectiva teórica – e teorizações sobre o fenômeno do letramento – com base
especialmente em estudos de Brian Street, David Barton, Mary Hamilton, Ângela
Kleiman e Magda Soares. Discutimos, também, implicações pedagógicas desses
temas no ensino e na aprendizagem de Língua Portuguesa, particularizando reflexões
sobre análise linguística, o que nos remete ao conceito de elaboração didática, já
prenunciado em Unidades anteriores deste livro-texto.

Discutimos, nas duas Unidades anteriores, a respeito do foco da Linguística


Aplicada contemporânea em problemas linguísticos socialmente relevantes.
Refletimos também sobre o ensino e a aprendizagem da modalidade escrita na
escola, no que respeita a dificuldades e obstáculos para que esse processo
ressignifique indicadores oficiais que sugerem uma formação escolar lacunar em se
tratando dessa modalidade. Empreendemos, ainda, um percurso de retomada da

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constituição da disciplina de Língua Portuguesa no país e nos embrenhamos, mesmo
que brevemente, por encaminhamentos institucionais para o ensino de língua
materna, registrados nos Parâmetros Curriculares Nacionais.

Como pudemos observar, ao longo das duas Unidades anteriores, a


abordagem que propomos, neste livro-texto, para o ensino e a aprendizagem da
língua materna está ancorada em uma perspectiva teórica que concebe a língua como
objeto social. É, assim, objetivo desta terceira Unidade particularizar em que consiste
essa mesma perspectiva, destacando dois eixos teóricos de significativa repercussão
nos estudos de nossa área contemporade base bakhtiniana, e teorizações sobre o
fenômeno do letramento. As três primeiras seções que constituem esta Unidade
tratam desses temas; as duas seções finais focalizam outro recorte teórico-
metodológico que converge para essa discussão, os conceitos de prática de análise
linguística (FRANCHI, 2006a [1991] e 2006b [1988] e GERALDI, 1985; 1993) e
elaboração didática (HALTÉ, 1998).

Fundamentos do pensamento bakhtiniano: uma epistemologia


ancorando a busca de uma mudança no ensino de Língua
Portuguesa
Embora a produção intelectual do Círculo de Bakhtin tenha ocorrido entre 1919
e 1974, sua divulgação no ocidente começa a partir da metade da década de 1960 e,
no Brasil, passa a ser estudada de modo mais intenso a partir de 1980.

Vale lembrarmos que Círculo de Bakhtin: é a expressão cunhada por


pesquisadores contemporâneos para se referir ao grupo de intelectuais russos que
se reunia regularmente no período de 1919 a 1929, do qual fizeram parte Bakhtin,
Volochínov e Medvedev. Bakhtin faleceu em 1975, Volochínov, no final da década de
1920 e Medvedev, provavelmente, na década de 1940. A opção pelo nome de Bakhtin
para se referir ao grupo deve-se, em certa medida, à autoria de algumas obras de
Volochínov (Marxismo e Filosofia da linguagem, por exemplo) e Medvedev, atribuídas
também a Bakhtin por alguns estudiosos, e pelo fato de a maioria dos textos do
Círculo ser de autoria de Bakhtin. Os livros mais conhecidos do Círculo no Brasil são
Marxismo e filosofia da linguagem (BAKHTIN [VOLOCHÍNOV]), Estética da criação
verbal (BAKHTIN), Questões de literatura e estética (BAKHTIN) e Problemas da
Poética de Dostoievski (BAKHTIN). Neste livro-texto, usaremos tanto a expressão

12
cunhada pelos pesquisadores quanto o nome Bakhtin para nos referirmos à
teorização sobre a linguagem empreendida pelo grupo. Nas referências das obras em
que pesa a questão da autoria, seguiremos a opção indicada pelo tradutor da obra,
com a indicação da dupla autoria entre parênteses.

Rodrigues (2005) argumenta que podemos considerar Mikhail Bakhtin como


problematizador e interlocutor produtivo no campo da Linguística Aplicada, mesmo
que o centro das discussões do grupo não tenha sido diretamente o campo dos
estudos aplicados. É a concepção de linguagem, de sujeito e outras concepções
correlacionadas, como a de dialogismo e gêneros do discurso, que produzem esse
diálogo produtivo contemporaneamente, pois dialogam teoricamente com as
pesquisas no campo da Linguística Aplicada: a linguagem situada em contextos de
uso e em práticas socioculturais específicas.

A autora ainda comenta que, mesmo que Bakhtin não tenha tido como foco o
ensino de línguas, como mencionado no parágrafo precedente, há em seus textos
considerações acerca da temática, que surpreendem pela atualidade, como podemos
observar nos excertos que reproduzimos a seguir:

Em suma, um método eficaz e correto de ensino prático [neste excerto autor


está se referindo ao ensino e aprendizagem de línguas estrangeiras] exige que a
forma seja assimilada não no sistema abstrato da língua, i. é, como uma forma sempre
idêntica a si mesma, mas na estrutura concreta da enunciação [enunciado],como um
signo flexível e variável.(BAKHTIN [VOLOCHÍNOV], 1988 [1929], p. 95).

A língua materna – sua composição vocabular e estrutura gramatical – não


chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas, mas de
enunciações concretas [enunciados concretos] que nós mesmos ouvimos e nós
mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos
rodeiam. Nós assimilamos as formas da língua somente nas formas das enunciações
[enunciados] e justamente com essas formas. As formas da língua e as formas típicas
dos enunciados, isto é, os gêneros do discurso, chegam à nossa experiência e à
nossa consciência em conjunto e estreitamente vinculadas. Aprender a falar significa
aprender a construir enunciados (por que falamos por meio de enunciados e não por
orações isoladas e, evidentemente, não por palavras isoladas). (BAKHTIN, 2003
[1979]. p. 282-83).

13
Esses excertos, além de lançarem luz sobre o ensino e aprendizagem de
línguas e o modo como nos apropriamos da linguagem, indicam a concepção de
linguagem e de sujeito que os fundamentam. Retomando o que já anunciamos, uma
das grandes contribuições de Bakhtin para os estudos da linguagem e, de modo
particular, para o ensino e aprendizagem de língua materna de natureza operacional
e reflexivo é a concepção de linguagem. Para o Círculo, a função central da linguagem
não é a de expressão do pensamento nem a de instrumento de comunicação, mas a
de interação entre sujeitos situados historicamente. Em Marxismo e Filosofia da
Linguagem, Bakhtin (Volochínov) afirma que

A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato


de formas linguísticas [a língua como sistema de formas, tal como concebida pelo
estruturalismo] nem pela enunciação monológica isolada [a língua como expressão
de uma consciência constituída individualmente], nem pelo ato psicofisiológico de sua
produção [atividade mental interiorizada], mas pelo fenômeno social da interação
verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal
constitui assim a realidade fundamental da língua. [...] A língua vive e evolui
historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato
das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes. (BAKHTIN
[VOLOCHÍNOV], 1988 [1929], p.123-124, grifos do autor).

Vamos tentar entender essa concepção de linguagem e o diálogo que ela


estabelece com outras correntes teóricas. Ao não concordar que a função central da
linguagem seja a de expressar o pensamento, Bakhtin (Volochínov) não nega a
relação entre pensamento e linguagem, mas a função da linguagem postulada pelo
subjetivismo individualista: expressar o pensamento, ou melhor, externalizar para
outrem ou para si o conteúdo do pensamento, que pode existir sem uma expressão
semiótica, ou seja, que pode se constituir sem uma linguagem; e que há primazia
desse conteúdo interior sobre sua objetivação, já que todo ato de objetivação
(expressão) procede do interior para o exterior. Para o autor, a tese do subjetivismo
individualista acerca da função da linguagem é redutora, uma vez que ela
circunscreve a função da linguagem à tradutora do pensamento (que existiria fora da
linguagem). E mais, “[...] a linguagem é considerada do ponto de vista do falante,
como que de um falante, sem a relação necessária com outros participantes da
comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 270).

14
Na concepção do Círculo de Bakhtin, o conteúdo a exprimir e sua objetivação
externa são criados de um mesmo e único material: a linguagem; logo, não é somente
a atividade mental que é expressada, exteriorizada com a ajuda de uma linguagem,
mas a própria atividade mental existe sob a forma de signos (verbais e não verbais),
que os sujeitos vão se apropriando e internalizando a partir dos processos
interacionais de que participam. Bakhtin (Volochínov) (1988 [1929], p. 49, grifos do
autor) argumenta que

[...] o psiquismo subjetivo localiza-se no limite do organismo e do mundo


exterior, vamos dizer, na fronteira dessas duas esferas de realidade. É nessa região
limítrofe que se dá o encontro entre o organismo e o mundo exterior, mas esse
encontro não é físico: o organismo e o mundo encontram-se no signo.

Não existe, por isso, um abismo, nem ruptura qualitativa (do não semiótico para
o semiótico) entre a atividade mental e sua expressão externa. Há, sim, uma mudança
quantitativa, ou seja, o discurso interior adapta-se às condições sociais da situação
de interação. Assim, a natureza da linguagem não pode ser reduzida à meio de
expressão do pensamento, uma vez que o pensamento já é constituído/organizado
pela linguagem, no curso histórico do sujeito nas suas relações sociais com os outros
e seus discursos. Sintetizando: a linguagem expressa a exteriorização do
pensamento, mas se o pensamento é constituído pela linguagem, a natureza/função
da linguagem não pode ser a de traduzir para signos o pensamento, que já é sígnico.
Além do mais, o discurso interior constitui-se a partir das relações interativas com o
outro (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 270).

Já ao questionar a função da linguagem como instrumento de comunicação,


Bakhtin (Volochínov) toma como parâmetro de crítica à perspectiva do objetivismo
abstrato (de que o estruturalismo é representante) a compreensão de que ela abstrai
(retira) a língua do intercurso das relações sociais. Para essa corrente, a língua é vista
como um sistema de signos (a langue) cujas relações e valores (linguísticos) se
estabelecem no interior desse sistema, que se constitui como norma de todas as
outras manifestações da linguagem. Grosso modo, para se enunciar, o falante faz uso
de e realiza esse código da língua no propósito de se comunicar com o outro. Para
Bakhtin (2003 [1979]), os esquemas da comunicação propostos por essa perspectiva
representam os dois parceiros da comunicação, emissor e receptor, por meio de um
esquema ativo do locutor e passivo do receptor – aquele que recebe a fala/escrita e

15
a decodifica, por meio de processos passivos de percepção e de compreensão da
fala do locutor.

O autor salienta que não se pode dizer que esses esquemas estejam errados
e que não correspondam a certos aspectos reais da comunicação, mas quando esses
esquemas pretendem dar conta, representar o todo da linguagem (ou, ainda, ser a
sua norma, poderíamos acrescentar), esses esquemas passam para os limites da
ficção. Assim, “Aquilo que o esquema representa é apenas um momento abstrato do
ato pleno e real da compreensão ativamente responsiva, que gera a resposta (a que
precisamente visa o falante) [...] o papel ativo do outro no processo de comunicação
discursiva sai extremamente enfraquecido” (BAKHTIN, 2003 [1979], p. 272-273, grifos
do autor). Entre outras razões, apontaremos duas das apresentadas pelo autor: o
ouvinte que recebe e compreende a significação (linguística) de um enunciado
simultaneamente adota, para esse discurso, uma postura de resposta ativa,
construída a partir dos seus horizontes axiológicos (valorativos). Para Bakhtin,
compreender é contrapor às palavras do outro a nossas contra palavras.

Além disso, o locutor/autor, ao produzir seu enunciado, postula, conta com


essa resposta ativa do outro, que já é constitutiva do seu enunciado (falamos e
escrevemos levando em conta o outro: o que ele espera de nós, o que esperamos
dele etc., o que interfere no que é dito e no modo como é dito.). Ele não espera que
o outro apenas duplique sua fala, numa espécie de eco, o que apenas dublaria o que
o locutor diz na mente do destinatário, mas que este tome uma resposta ativa (de
adesão, de rejeição etc.), seja ela imediata ou não, seja verbal ou não verbal, ou
traduzida em uma ação (mas mediada pela linguagem) etc. Ainda, o próprio
locutor/autor já é um respondente, na medida em que seus enunciados vêm de outros
enunciados já-ditos. Por essas razões, cada enunciado é um elo da cadeia complexa
de outros enunciados, princípio da noção de dialogismo.

Para o Círculo de Bakhtin, os sujeitos, ao se enunciarem, não tomam as formas


da língua de um sistema de signos abstraído das relações sociais e interativas, pois
as formas linguísticas se lhes apresentam como elementos de interações e
enunciados particulares, situados em contextos socioideológicos precisos. A língua,
no seu uso, é inseparável desses contextos de uso, dos seus falantes e dos valores
ideológicos. Bakhtin, em “O discurso no romance”, texto traduzido no livro Questões
de literatura e estética, diz que

16
Para a consciência que vive nela [língua], a língua não é um sistema abstrato
de formas normativas, porém uma opinião plurilíngue concreta sobre o mundo. Todas
as palavras evocam uma profissão, um gênero, uma tendência, um partido, uma obra
determinada, uma pessoa definida, uma geração, uma idade, um dia, uma hora. Cada
palavra evoca um contexto ou contextos, nos quais ela viveu sua vida socialmente
tensa; [...] Em essência, para a consciência individual, a linguagem enquanto
concreção sócio ideológica viva e enquanto opinião plurilíngue, coloca-se nos limites
de seu território e nos limites do território de outrem. (BAKHTIN, 1993 [1975], p. 100).

Para Bakhtin (Volochínov) (1988[1929]), o enunciado é o produto da interação


de dois (ou mais) sujeitos socialmente organizados. A palavra, o discurso, dirige-se a
um interlocutor, seja ele imediato ou não, situado socialmente. Não há, pois,
enunciado dirigido ao abstrato; o outro, mesmo que seja presumido ou um
desdobramento do próprio eu, é a contrapartida, a medida da nossa fala. Com essas
considerações, aponta para a relação ativa do outro (interlocutor) nos processos
interacionais e como a possível reação-resposta desse outro é constitutiva na
produção do enunciado. A orientação da palavra/discurso para o interlocutor na
interação é explicada pela metáfora da ponte entre os interlocutores: ela se apoia
tanto no locutor quanto no interlocutor; ela é o território comum dos dois. Assim,

[...] toda palavra comporta duas faces. Ela é terminada tanto pelo fato de que
procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui
justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de
expressão a um em relação ao outro. (BAKHTIN [VOLOCHÍNOV], 1988 [1929], p.
113, grifos do autor).

Convém ressaltar que a assunção da concepção de linguagem como interação


social não deve ser compreendida estreitamente como interação face a face (embora
esse diálogo da interação face a face também seja de natureza interacional), mas
como sendo a “[...] dinâmica de múltiplas inter-relações responsivas entre posições
socioavaliativas. Na interação vista pelo olhar bakhtiniano, não se trocam mensagens,
mas se dialogizam axiologias [valores, pontos de vista]” (FARACO, 2005, p. 219).
Através da linguagem o sujeito pratica ações/atos que não existiam antes de sua fala,
bem como age sobre seu interlocutor. Também a interação não pode ser vista a partir
de duas ou mais pessoas autossuficientes, pois a interação é a condição da
possibilidade de sua existência, que se constitui como tal na medida em que o sujeito

17
só se constitui na relação com outros, por isso sua identidade e sua individualidade
se definem na relação com a alteridade.

Em resumo, a concepção de linguagem como interação humana, em que


sujeitos situados historicamente se constituem e dialogizam com o outro, tem como
fundamentos:

a) A relação constitutiva com a situação social: Os enunciados não são


produzidos no abstrato, mas em situações sociais de interação. Essa
situação social de interação mais imediata e o meio social mais amplo
determinam a constituição do enunciado, pois as esferas sociais (escolar,
religiosa, científica etc.) e os participantes da interação, como elementos
constitutivos da interação, moldam os enunciados. Os elementos
linguísticos, com seu relativo significado, tomam sentido nas interações. A
palavra queridinho, nos enunciados Como você é queridinho, proferido pela
mãe a seu bebê, por exemplo, num momento de ternura, tem sentido
diferente do que o proferido pela namorada após o namorado tê-la deixado
esperando na porta do cinema por mais de uma hora além do horário
combinado. A diferença de sentido, expressada pelos diferentes tons que a
palavra assume nos dois enunciados, reflete a diferença das situações de
interação e da valoração que lhe corresponde. Além disso, se a linguagem
se constitui historicamente nas interações sociais, por outro lado, por um
processo dialético, ela materializa, dá acabamento a essas interações, que
não existiriam sem a linguagem.

b) A relação constitutiva com a ideologia: considerando, de forma geral, as


ideologias como modos socialmente construídos de ver e perceber
(interpretar e valorar) o mundo, como “[...] a expressão, a organização e a
regulação das relações histórico-materiais dos homens” (MIOTELLO, 2008,
p. 171) cuja existência se materializa em signos sociais, há uma relação
constitutiva e dialética entre linguagem e ideologia. Esta não tem existência
fora de uma linguagem; e a linguagem, por sua vez, é marcada pelos
valores ideológicos. Disso decorre que a linguagem não é neutra, mas
marcada axiologicamente, por isso não há enunciado neutro: todo
enunciado é ideológico, pois é proferido dentro de uma esfera

18
socioideológica (seja de uma das esferas da vida cotidiana, seja de uma
das esferas especializadas e formalizadas, como a escola, a ciência) e
expressa uma posição avaliativa. Por essa razão, Bakhtin (1993[1952-
1953]) entende que um enunciado é verdadeiro ou falso, belo ou disforme,
sincero ou malicioso, franco, cínico, autoritário etc., pois ele apresenta uma
posição axiológica de quem o proferiu. Como lembra Faraco (2003), as
diferentes axiologias tornam os signos socialmente plurivalentes, uma vez
que as muitas “verdade sociais” se encontram e se confrontam no mesmo
material semiótico. Isso faz com que o material semiótico possa ser o
mesmo, mas, na sua enunciação concreta, dependendo da voz social em
que está ancorado, seu sentido seja diferente. Lembremos, por exemplo,
dos diferentes sentidos que a palavra terra pode adquirir em enunciados
proferidos por sujeitos em diferentes posições axiológicas: latifundiário,
sem-terra, astronauta, pessoa se afogando etc.

Retomemos, agora, a relação que indicamos no início desta seção: a


concepção de linguagem como interação e o ensino e aprendizagem de língua na
escola. Se a escola é uma esfera escolar, com sua finalidade outorgada socialmente
(a educação formal) e se, como vimos, não há discurso neutro, a construção de um
projeto pedagógico a, b, ou c não é um ato neutro, mas construído axiologicamente.
Pensar em um projeto político de democratização efetiva da educação é considerar:
para quem é essa escola, qual a finalidade dessa escola, por que ensina a e b? Do
que necessitam os sujeitos dessa escola para sua inserção social plena nas diversas
esferas sociais?

Repensar a disciplina de Língua Portuguesa na escola, hoje, em uma


perspectiva sociointeracionista da linguagem implica, antes de tudo, uma postura
axiológica (não há enunciados neutros) diferenciada frente aos alunos, uma vez que
a linguagem é o lugar de construção de relações sociais e de subjetivação. Logo, o
aluno já não pode mais ser visto como sujeito passivo a quem cabe aprender os
conteúdos, mas como interlocutor que, com seu horizonte axiológico, traz à escola
conhecimentos de mundo e valores com os quais a escola precisa interagir para
construir pontes dialógicas que propiciem a aprendizagem de alunos e professores,
em contextos sociais histórica e socialmente situados, a partir do respeito à
diversidade de saberes, culturas e valores.

19
Em segundo lugar, implica considerar as finalidades da disciplina, ou seja, por
que ensinamos o que ensinamos hoje aos nossos alunos? Ainda, mais precisamente,
se tomarmos os alunos como interlocutores do processo interativo de ensino e
aprendizagem, do que esses alunos necessitam hoje para inserir-se nos diversos
campos de uso da linguagem e para o qual a disciplina pode desempenhar um papel
socialmente relevante? Como já discutido anteriormente, essas questões nortearam,
em grande medida, na década de 1980, a proposição do ensino de natureza
operacional e reflexivo da linguagem.

Em terceiro lugar, por ser a teoria da linguagem do Círculo de Bakhtin uma


teoria que concebe a linguagem a partir dos processos interacionais e dos usos
sociais da linguagem, ela nos permite repensar conteúdos de ensino e aprendizagem
relevantes para a inserção dos sujeitos nas diversas esferas sociais, cujas interações
são mediadas pela linguagem nos processos de produção e recepção dos discursos.
Nessa perspectiva, a linguagem situada em contextos de uso e em práticas
socioculturais específicas, produzida nas práticas de escuta, leitura e produção
textual que medeiam as interações sociais, transforma-se em objeto de ensino e
aprendizagem, na medida em que é o domínio das práticas dessas interações sociais
que pode permitir ao sujeito sua inserção efetiva nos diferentes espaços sociais, o
que, em última instância, tem implicações de cidadania.

Por essa razão, a leitura, a escuta e a produção textual, além de serem as


grandes unidades de ensino e aprendizagem na disciplina de Língua Portuguesa,
como já discutido na Unidade B, devem ser também, junto com outras noções teóricas
a elas relacionadas, como as teorias de gêneros do discurso e letramento, objeto de
formação teórica e pedagógica na habilitação do professor. Na seção seguinte
trataremos de uma dessas noções, os gêneros do discurso.

O conceito de gêneros do discurso: desdobramentos teóricos


e implicações pedagógicas
Se na década de 1980 os discursos e as práticas focalizaram a mudança das
finalidades e dos conteúdos da disciplina de Língua Portuguesa, a partir na década
de 1990, incidiram sobre os modos de operacionalização dessa nova perspectiva, ou
seja, sobre a elaboração didática, e, conjuntamente, por um processo dialético,

20
retroagiram sobre a releitura das finalidades e dos conteúdos da disciplina propostos
na década anterior.

Retomando o que discutimos na Unidade B, às perguntas dos professores


acerca do “E, agora, o que vamos ensinar?”, a proposta do ensino da linguagem de
natureza operacional e reflexivo aponta o texto como unidade de ensino e os usos da
linguagem como objeto de ensino e aprendizagem, por meio das práticas de escuta,
leitura, produção textual e análise linguística. A essa resposta, novas perguntas
vieram se somar, como, “Diante da extrema diversidade e heterogeneidade de textos,
quais escolher como unidades de leitura?”; “Como elaborar nova prática de ensino e
aprendizagem de produção de textos, de modo a explorar a linguagem situada em
contextos de uso e em práticas socioculturais específicas, uma vez que a prática da
redação escolar não atende a essas novas demandas teórico-pedagógicas?”

Nesse contexto, o conceito de gêneros do discurso entra como um dos


elementos favorecedores da releitura da proposta do ensino da linguagem de
natureza operacional e reflexivo, propiciada por professores e pesquisadores do
campo da linguagem, especialmente por linguistas aplicados, dos quais destacamos
Roxane Rojo. Para abordar a noção de gêneros, cumpre-nos relacioná-la com outro
conceito-chave da teoria bakhtiniana ainda não apresentado, e com o qual o gênero
mantém uma relação constitutiva, a noção de enunciado. Dedicaremos as duas
seções seguintes à apresentação desses dois conceitos.

O texto na sua condição de texto-enunciado: unidade da interação


humana

Para Bakhtin (2003 [1979]), o uso da língua materializa-se na forma de


enunciados, pois o discurso materializa-se na forma de enunciados concretos e
singulares, pertencentes aos sujeitos discursivos de uma ou outra esfera da atividade
humana. O autor afirma que os sujeitos não se enunciam por palavras e orações, mas
por enunciados (embora os enunciados verbais sejam compostos por palavras e
orações), que são as unidades concretas e reais da comunicação discursiva, ou seja,
da interação. Assim, “Aprender a falar significa aprender a construir enunciados (por-
que falamos por enunciados e não por orações isoladas e, evidentemente, não por
palavras isoladas)” (BAKHTIN, (2003 [1979]), p. 283).

21
Da perspectiva da eventicidade, como as interações são irrepetíveis, também
cada novo enunciado se constitui em um novo acontecimento, um evento único e
irrepetível da comunicação discursiva (embora possa ser citado/mencionado por
outros enunciados, nos processos dialógicos de que participa, em que se manifesta
como um novo acontecimento). Ele representa a participação, uma postura ativa do
falante dentro de uma ou outra esfera da atividade humana. Nessa perspectiva, o
enunciado constitui-se em um elemento inalienável e singular, pois é uma nova
unidade da comunicação discursiva contínua, contribuindo para a sua existência e
mudança.

Mas é também como elemento inalienável que, da perspectiva da historicidade,


o enunciado representa apenas uma fração, um elo, na cadeia complexa e contínua
da comunicação discursiva, não podendo ser separado dos outros elos, que geram
atitudes responsivas e ressonâncias dialógicas. Nascido na inter-relação discursiva,
o enunciado não pode ser nem o primeiro nem o último, pois já é resposta a outros
enunciados; surge como sua réplica, e é construído como tal. Bakhtin (2003 [1979])
metaforicamente diz que o locutor não é um Adão mítico, que teria sido o primeiro a
se enunciar e a nomear as coisas; ou seja, que poderia falar de um dado objeto sem
que esse já fosse significado e valorado por outros enunciados (para autor, o nosso
acesso aos objetos do discurso é mediado e valorado pelos enunciados com os quais
interagimos). Ademais, o próprio discurso interior do locutor se constitui a partir da
interação com os enunciados dos outros. Assim, o objeto do seu discurso se torna o
ponto onde se encontram as opiniões de interlocutores imediatos ou não, as visões
de mundo, as tendências, as teorias etc.

Além disso, estão no seu horizonte os enunciados que o seguem, pois todo
enunciado está orientado para o(s) outro(s) participante(s) da interação, e conta com
a sua compreensão concreta e ativa; por isso cada enunciado é dialógico, pois se
origina de outros enunciados e é dirigido a outra pessoa; a sua compreensão e a sua
resposta. Essa orientação interfere no modo como o enunciado se constitui: sua
finalidade, seu tom, seu estilo, o modo de abordagem do objeto do discurso, sua
extensão etc. Exemplifiquemos: Um médico especialista no tratamento da AIDS, em
uma dada situação de interação, profere palestra de prevenção e tratamento da AIDS
a jovens da cidade onde reside e, em outra situação de interação na sua instituição,
como um congresso sobre os novos meios de prevenção e tratamento da AIDS,

22
profere palestra apresentando resultados de pesquisa a seus pares da ciência.
Embora os dois enunciados produzidos pelo médico sejam nomeados como palestra,
as diferentes situações sociais de interação provocam a produção de enunciados
distintos, pertencentes a gêneros distintos, apesar do mesmo nome: para os jovens,
um enunciado menos formal e menos técnico, mais informativo e com um tom
apelativo para os modos de prevenção que os jovens devem tomar; para seus pares
da academia, um enunciado mais formal, com o uso da metalinguagem da área, cuja
finalidade é apresentação dos resultados de pesquisa. Como podemos observar, a
diferença de situação de interação, de que fazem parte os diferentes interlocutores
imediatos citados, interfere na produção dos enunciados.

Esse princípio do dialogismo dos enunciados, semelhantemente à noção de


interação, não pode ser reduzido ao diálogo face a face (embora esse diálogo também
seja dialógico), pois, como mencionado, o dialogismo é um princípio da constituição
dos enunciados. Um romance publicado em livro, por exemplo, é um enunciado, pois
é um elo da comunicação verbal. Ele é resultante de outros enunciados com os quais
seu autor se relacionou e conta com a reação-resposta dos interlocutores, a leitura-
apreciação estética, que se manifesta no discurso interior, em conversas face a face,
nas resenhas publicadas nos jornais etc.

Tal como o enunciado não pode ser desconectado de sua relação dinâmica
com os outros enunciados, pertencentes aos outros participantes da comunicação
discursiva, da mesma forma, como vimos no exemplo anterior, ele não pode ser
separado da situação social de interação. Não se pode compreender o enunciado
sem correlacioná-lo com a sua situação social, pois o discurso, como fenômeno de
comunicação social, é determinado pelas relações sociais que o suscitaram. Há um
vínculo efetivo entre enunciado e situação social, ou melhor, a situação se integra ao
enunciado, constitui-se como uma parte dele, fundamental para a compreensão de
seu sentido. Todo enunciado é composto de duas dimensões inextricáveis, sua
dimensão verbal (ou outro sistema semiótico, como a música, a pintura, o desenho
etc.) e sua dimensão social. Fazem parte dessa dimensão o horizonte espacial e
temporal do enunciado (quando e onde foi proferido), o horizonte temático (quais seus
objetos/temas de discurso) e o horizonte axiológico (em que esfera social é proferido,
que valores atribui ao que enuncia, uma vez que não há enunciados neutros). Essa

23
dimensão social corresponde à situação social de interação do enunciado, que deve
ser vista não como elemento externo ao enunciado, mas como integrante dele.

Para o Círculo de Bakhtin, se desconsiderarmos essa dimensão social,


perdemos a noção de enunciado, pois, abstraída da situação de interação, a
dimensão verbal perde a sua condição de unidade de interação para se tornar uma
estrutura textual apenas. No manuscrito “O problema do texto na Linguística, na
Filologia e em outras Ciências Humanas”, publicado no livro Estética da criação
verbal, Bakhtin aborda essa questão, também relevante para a formação do professor
de Língua Portuguesa e sua atuação em sala de aula. Embora o termo texto esteja
presente hoje em vários campos do conhecimento e na esfera escolar, o Círculo
usava predominantemente os termos enunciado e obra (quando a temática girava em
torno da arte) para se referir às unidades de interação. Duas hipóteses podem ser
levantadas para tal situação: o termo texto ainda não tinha a grande circulação que
tem hoje, ou foi uma opção teórica para se distanciar da perspectiva mais imanente
com que era tratado pela Filologia (e pela Linguística Textual nas suas primeiras fases
de atuação, poderíamos hoje acrescentar).

Para Bakhtin (2003[1979]), o texto (verbal – oral ou escrito – ou também em


outra forma semiótica) é a unidade, o dado primário e o ponto de partida para todas
as disciplinas do campo das ciências humanas, apesar das suas finalidades
científicas diversas. Ele é a realidade imediata para o estudo do homem social e da
sua linguagem, pois a constituição do homem social e da sua linguagem é mediada
pelo texto. Na continuidade do manuscrito, o autor salienta que dois aspectos
determinam um texto como um enunciado: o seu projeto discursivo (o querer dizer do
locutor) e a realização desse projeto (marcada pelas condições sociais e do gênero
do discurso), sendo que a inter-relação entre eles imprime o caráter do texto como
enunciado. Assim, o texto visto na sua condição de enunciado tem uma função
ideológica particular, tem autor (locutor) e interlocutor; mantém relações dialógicas
com outros textos (textos-enunciados) etc., isto é, tem as mesmas características do
enunciado (texto e enunciado, nessas condições, podem ser considerados como
termos sinônimos), pois é concebido como tal.

Essa possibilidade de olhar teoricamente o texto na sua condição de enunciado


ou fora dela deve-se, segundo o autor, aos dois polos (ângulos) a partir dos quais o
texto se constitui: o polo da língua como sistema e do texto na sua imanência, e o

24
polo da língua como discurso e do texto na sua condição de enunciado. O primeiro
polo do texto, abstraído (retirado) da sua situação social, está relacionado com tudo
aquilo que é e pode ser reproduzido e repetido no texto, ou seja, a língua como
sistema de signos e o texto como sistema de signos e estrutura textual. O segundo
polo do texto é o do acontecimento irrepetível do enunciado, que pertence ao texto,
mas que só se manifesta na situação, na interação com outros textos (enunciados).
Os dois polos do texto aparecem como algo absoluto e incondicional para Bakhtin:
sem um sistema de signos não há interação, do mesmo modo que a língua e o texto
abstraídos da situação de interação perdem sua condição de mediadores e
constituidores dessa interação.

Desse modo, quando Bakhtin salienta que a constituição do homem social e


da sua linguagem é mediada pelo texto, que o texto é o ponto de partida para o estudo
do homem social e da sua linguagem, ele está se referindo ao texto na sua condição
de enunciado. Segundo o autor, na análise científica, pode-se ir tanto para o primeiro
quanto para o segundo polo do texto. Na primeira orientação, pode-se ir para a análise
da língua do autor, de uma época, da língua nacional ou ainda para a potencial língua
das línguas (abordagem do estruturalismo). Na segunda orientação, pode-se ir para
a análise do enunciado, das relações dialógicas, dos gêneros do discurso etc.
Rodrigues (2001) sintetiza essa perspectiva do autor a partir de uma representação
gráfica, que apresentamos ao lado.

Essa discussão em torno dos diferentes olhares que se pode ter acerca do
texto tem implicações diretas na atuação do professor de Língua Portuguesa. Se o
professor, nas aulas de leitura e produção textual, concebe o texto como sistema
fechado e estrutura textual, ele o abstrai da situação social de interação, dos
participantes dessa interação e das relações dialógicas que o engendraram e dos
valores socioideológicos que o perpassam, que é a condição de existência do texto
como enunciado, ou seja, como unidade de interação. Na perspectiva do ensino da
linguagem de natureza operacional e reflexivo, ao se postular que o texto é a unidade
de trabalho, compreende-se o texto visto na sua condição de enunciado.

Por fim, uma leitura apressada da noção de enunciado como evento único e
irrepetível poderia levar a crer que sua produção e compreensão sejam livres, ou seja,
que não haveria princípios norteadores da produção das interações e dos usos da
linguagem. Bakhtin (2003[1979]) destaca que a construção do enunciado, apesar da

25
vontade discursiva (intenção discursiva) do falante, não pode ser considerado como
uso e combinação absolutamente livres das formas da língua e nem como um ato
individual no sentido estrito desse termo, opondo-se ao conceito de social. Nem os
processos de compreensão se dão fora do âmbito social. A construção dos
enunciados e sua compreensão são produzidos segundo certas condições sociais,
certos modos sociais de dizer e agir; em outros termos, os enunciados possuem
formas típicas para a sua constituição, os gêneros do discurso. Trataremos desse
conceito na próxima seção.

Os gêneros do discurso: mediadores da interação e da produção de sentidos

Como mencionado ao final da seção anterior, Bakhtin estabelece relação


constitutiva entre enunciados e gêneros do discurso ao afirmar que todos os
enunciados possuem formas típicas para a estruturação da totalidade discursiva,
relativamente estáveis e normativas, necessárias tanto para a sua produção (do
enunciado) quanto para sua compreensão, os gêneros do discurso.

Vamos tentar explicitar essa relação constitutiva entre enunciados e gêneros e


a compreensão do conceito de gêneros na teoria dialógica da linguagem (com
atenção para os sentidos que as expressões formas típicas, tipos de enunciados,
formas relativamente estáveis e normativas adquirem nesse quadro teórico).

Embora os estudos de gêneros sejam antigos, eles foram res- significados pelo
Círculo de Bakhtin, que ampliou seu escopo ao propor que todos os nossos
enunciados são construídos a partir de um gênero do discurso (e não apenas os
enunciados do âmbito da literatura e da retórica) e buscou entender os gêneros não
a partir de aspectos formais comuns fixos e imutáveis dos textos (produto, abstraído
da situação de interação), mas como constituídos por e constituidores das interações
humanas.

Faraco (2003), em uma pequena digressão etimológica, lembra que o termo


gêneros remonta à base indo-europeia *gen-, que significa ‘gerar’, ‘produzir’.
Acrescenta que, em latim, relaciona-se com essa base o substantivo genus, generis
(que significa ‘estirpe’, ‘linhagem’) e o verbo gigno, genui, genitum, gignere (que
significa ‘gerar’, ‘criar’, produzir’). Observa que “[...] esse segmento vocabular se
desenvolve a partir da semântica do processo de gerar (procriar) e dos produtos da
geração (da procriação)” (FARACO, 2003, p. 108). Por essa breve digressão

26
etimológica do termo, podemos observar duas noções (conceitos) teóricas distintas
de gêneros do discurso que se constituíram historicamente: uma centrada no produto,
de visão taxionômica, e outra centrada no processo, de visão interativa.

A respeito da noção de gêneros como unidade de classificação – reunir entes


diferentes, no caso, textos, com base em traços comuns, resultando em tipos
(taxionômicos) de textos, que compõem as diferentes tipologias textuais –, Faraco
(2003) diz que ela deriva da noção de estipe (linhagem) para o mundo dos objetos
literários e retóricos, pois “[...] como as pessoas podem ser reunidas em linhagens
por consanguinidade, o mesmo se pode fazer com os textos que têm certas
características ou propriedades comuns” (FARACO, 2003, p.108). O autor observa
ainda que, salvo algumas exceções (entre as quais podemos incluir os trabalhos de
Aristóteles), na história da teoria dos gêneros literários e retóricos, eles foram
interpretados muito mais na perspectiva dos produtos que dos processos. O foco de
atenção foram, por conseguinte, as propriedades formais, o que levou os estudiosos,
em vários momentos históricos, a interpretá-los a partir a uma forte propensão
reificadora e, por consequência, normativa das produções artísticas e retóricas: as
características formais dos gêneros foram tomadas como propriedades fixas, com
padrões inflexíveis, aos quais restava aderir in totum.

Não é a essa noção de gêneros que se filia a teoria de gêneros do Círculo de


Bakhtin, uma vez que ela não toma as propriedades formais dos gêneros em si (o
produto das atividades humanas apartado das suas condições de produção), mas o
processo de produção dos gêneros no âmbito das atividades humanas mediadas pela
linguagem: o processo de constituição dos gêneros correlacionado às funções das
interações sociais no interior das esferas sociais e, uma vez constituídos [os gêneros],
à função mediadora que exercem nessas interações sociais. Passemos ao
desdobramento dessa noção.

Em “Os gêneros do discurso”, Bakhtin estabelece relação constitutiva entre os


usos da linguagem e as atividades humanas: todas as esferas da atividade humana
estão relacionadas com a linguagem (ou seja, não há interação sem linguagem), que
se materializa nos enunciados produzidos nas interações; os enunciados refletem as
condições específicas e as finalidades dessas esferas (o conteúdo temático, o estilo
e a composição do enunciado estão correlacionados às condições específicas e às
finalidades dessas esferas).

27
Os gêneros, vistos como tipos relativamente estáveis dos enunciados
singulares, constituem-se historicamente a partir de situações da vida social não
totalmente estáveis, ou seja, dentro dos diferentes intercâmbios comunicativos
sociais, que se realizam nas diferentes esferas sociais. Os gêneros se constituem,
estabilizam-se (relativamente) e se modificam historicamente no interior das esferas
sociais (esferas cotidiana, religiosa, artística, escolar, jornalística, científica, política
etc.). Cada esfera social, com sua função socioideológica e discursiva particular
(estética, educacional, jurídica, religiosa, jornalística, cotidiana etc.) e suas condições
concretas específicas (organização socioeconômica, relações sociais entre os
participantes da interação, desenvolvimento tecnológico etc.), historicamente formula
na/para a interação verbal (ou outra materialidade semiótica) determinados gêneros
do discurso, que lhes são específicos. À medida que a esfera se amplia e se
complexifica, ou seja, que novas situações sociais de interação vão emergindo, novos
gêneros vão se constituindo (bem como outros vão se extinguindo à medida que as
interações sociais que eles medeiam de ter função interativa). Busquemos
exemplificar a relação entre gêneros e esferas sociais:

a) A relação de constituição entre gêneros e esferas sociais: os gêneros


escolares e os gêneros jornalísticos não preexistem à constituição da
escola e do jornalismo como instituições sociais, com suas finalidades
atribuídas pela sociedade.
b) A dinâmica dos gêneros no interior das esferas sociais: gêneros vão se
extinguindo, surgindo ou se reacomodando como resultado das dinâmicas
interativas no interior das esferas sociais. Por exemplo, na esfera cotidiana,
o gênero diálogo de salão dos séculos passados extingue-se na medida em
que essa interação social deixa de existir como evento social; o e-mail
reconfigura a função da carta impressa; na esfera da arte literária, deixa de
existir como gênero produtivo a epopeia ao passo que novos gêneros vão
se consolidando, tais como o romance; na esfera escolar, com o advento
das novas tecnologias de interação, os processos de ensino e
aprendizagem passam a ser mediados por novas possibilidades interativas,
como o fórum educacional.

Diante dessa ressignificação da noção de gêneros, percebemos que a


variedade e a riqueza dos gêneros é extremamente grande, porque as possibilidades

28
da atividade humana são inesgotáveis e porque, como já discutimos, em cada esfera
existe um repertório de gêneros particulares que se diferencia e cresce à medida que
a própria esfera se desenvolve e se complexifica. É assim que se encontra uma
grande variedade de gêneros, diversos entre si, criados pelos diferentes intercâmbios
comunicativos sociais, como, por exemplo:

a) na esfera do trabalho: a ordem, padronizada e normativa;

b) na esfera íntima: o diálogo, marcado pela relação simétrica (ou não)


entre os interlocutores;

c) na esfera literária: o romance, em que um estilo individual faz parte do


seu objetivo;

d) na esfera jornalística: a carta do leitor, curta, orientada para a editoria e


os leitores;

e) na esfera escolar: o livro didático, gênero que, intercalado ao gênero


aula, interpõe-se como produtor dos processos de elaboração didática dos conteúdos
escolares.

Mas como surgem e (relativamente) se estabilizam os gêneros? Por que


Bakhtin os definiu como tipos de enunciados? Em Marxismo e filosofia da linguagem,
ao mencionar a constituição de gêneros da esfera cotidiana, Bakhtin (Volochínov)
(1988 [1929], p. 125) diz que só podemos falar da existência desses gêneros “[...]
quando existem formas de vida em comum relativamente regularizadas, reforçadas
pelo uso e pelas circunstâncias”. Em Estética da criação verbal, Bakhtin afirma que
os gêneros correspondem a situações típicas da comunicação discursiva. Como
mencionamos nos parágrafos precedentes e na citação anteriormente exposta, os
gêneros do discurso se constituem a partir do surgimento e relativa estabilização de
novas situações sociais de interação no interior das esferas sociais. De maneira
simplificada, podemos dizer que a cada situação social de interação corresponde um
gênero do discurso. Assim, é do ponto de vista da dinâmica das interações sociais e
de sua historicidade que podemos entender o termo tipo na definição de que os
gêneros correspondem a situações típicas de interação: ele não assume o sentido de
taxionomia das interações humanas, mas tipificação social, resultado dos processos
interativos realizados pelos sujeitos, que vão constituindo certas regularidades.

29
Como vimos na unidade anterior, os enunciados são a unidade de interação
no interior das situações sociais. No parágrafo anterior, definimos que os gêneros
correspondem às situações sociais de interação, pois nascem no seu interior.
Busquemos aproximar essas duas noções de modo a explicitar a razão de Bakhtin
ter definido também os gêneros como tipos relativamente estáveis e normativos dos
enunciados singulares ou tipos temáticos, estilísticos e composicionais de enunciados
(BAKHTIN, 2003[1979]). Pensando na consolidação de uma nova situação social de
interação, os enunciados que se produzem a cada novo acontecimento dessa
situação aproximam-se de enunciados de outros gêneros próximos àquela situação,
até que, aos poucos, junto com a relativa estabilização dessa situação social de
interação, estabiliza-se também um certo modo de se enunciar, um certo uso dos
recursos linguísticos, uma certa composição enunciativa dos participantes da
interação etc, ou seja, um certo modo de os enunciados se produzirem, que constitui
um novo gênero do discurso. O vínculo entre gênero e enunciado só pode ser
compreendido nessa relação histórica. Eles são tipos de enunciados relativamente
estáveis que se constituíram historicamente, pois surgem desses enunciados
primeiros; e, dessa forma, compartilham das propriedades sociodiscursivas dos
próprios enunciados, bem como, por um processo dialético, funcionam e agem sobre
a produção dos novos enunciados dessa situação social de interação, como veremos
adiante. A noção de tipo, tal como já comentado acerca da relação entre gêneros e
situação social de interação é entendida como tipificação (regularidade) social e não
como taxionomia dos enunciados a partir de uma dada propriedade formal (ou não)
entre eles.

Bakhtin (2003[1979]) salienta que o enunciado se caracteriza por três


dimensões constitutivas: seu tema (referido a objetos e sentidos), seu estilo (seleção
dos recursos léxicos, fraseológicos e gramaticais da língua, para os enunciados
verbais) e sua composição (seleção dos procedimentos composicionais para a
organização, disposição e acabamento da totalidade discursiva e para levar em conta
os participantes da comunicação discursiva). Vale lembrar, entretanto, que, como elo
da comunicação discursiva, produto da interação verbal em um tipo particular de
situação social, ele é construído, inscreve-se dentro de uma formulação genérica (de
gênero) específica e partilha de características de gênero comuns aos outros
enunciados daquela situação de interação. Assim, o tema, o estilo e a composição de

30
cada enunciado estão vinculados necessariamente à totalidade do enunciado e ao
gênero do qual esse enunciado é um representante. O autor afirma que, por essa
condição, o enunciado também estabelece relações dialógicas com os outros
enunciados do mesmo gênero.

Em relação ao conteúdo temático, observamos que cada esfera social tem sua
orientação específica para a realidade, seus objetos de discurso, sua função
socioideológica específica. Se, na realidade, os objetos do mundo são inesgotáveis,
quando se convertem em tema do enunciado, adquirem um sentido particular, um
caráter relativamente concluído, dependendo de condições determinadas, em um
determinado enfoque do problema, em um material dado, nos limites da intenção
(vontade, propósito discursivo) do autor. Os gêneros, com seus propósitos
discursivos, não são indiferentes às especificidades da sua esfera. Assim, todo
gênero tem um conteúdo temático determinado, isto é, um domínio de sentido de que
se ocupa o gênero: seu objeto discursivo, sua orientação de sentido específica para
com ele. Vejamos: embora todos os dias os jornais publiquem notícias (textos-
enunciados) sobre assuntos diversos, todos esses assuntos relacionam-se ao tema
do gênero notícia, que é divulgar os acontecimentos sociais da atualidade de
interesse do público leitor do jornal e da empresa a que pertence o jornal. O tema do
gênero romance, para Bakhtin, é o homem que fala e sua fala (seu discurso). Em
síntese, o tema, de natureza semântica, materializa a relação do enunciado e do seu
gênero com os objetos do discurso e seus sentidos.

O estilo diz respeito ao uso típico (como já salientamos, no sentido de


regularidade) dos recursos léxicos, fraseológicos e gramaticais da língua (para os
gêneros verbais). Para o Círculo, os estilos individuais de um enunciado, bem como
os de língua, são estilos genéricos (de gêneros) de determinadas esferas da atividade
e comunicação humana. Bakhtin salienta que onde existe um estilo existe um gênero,
pois o estilo de um enunciado é o do gênero no qual o enunciado se encontra
construído. Todo enunciado, por ser individual, pode apresentar aspectos da
individualidade do falante, ou seja, pode absorver um estilo particular, mas nem todos
os gêneros são capazes de refleti-lo da mesma maneira. As condições mais
produtivas se encontram na esfera literária, em que um estilo individual faz parte dos
propósitos do gênero, pois é uma das funções da comunicação artística. Os gêneros
menos produtivos para incorporar um estilo individual são aqueles mais estabilizados

31
e padronizados, como a instrução de trabalho, a ordem militar, o ofício, o cumprimento
(saudação da vida cotidiana). Por exemplo, os gêneros científicos apresentam um
estilo impessoal, que cria um efeito de objetividade e neutralidade do discurso
científico. Certas expressões, como “era uma vez”, “alô”, “misture todos os
ingredientes até obter uma massa homogênea”, “este artigo tem por objetivo”.
lembram gêneros em cujos enunciados costumam aparecer: conto de fadas,
telefonema, receita culinária e artigo científico.

A composição do enunciado diz respeito aos seus procedimentos


composicionais determinados para a organização, disposição, combinação,
acabamento da totalidade discursiva e para levar em conta o autor e os outros
participantes da comunicação discursiva. Na produção do enunciado, é a noção
acerca da forma do enunciado total, isto é, de um gênero do discurso específico, que
coloca o discurso em determinadas formas composicionais e estilísticas. Para
Bakhtin, uma das causas de se ter subestimado os gêneros como a unidade do
discurso deve-se justamente a sua heterogeneidade no que se refere a sua dimensão
(extensão discursiva) e a sua composição.

Alguns pesquisadores que tomam os gêneros como objeto de pesquisa releem


a noção de composição do Círculo de Bakhtin como estrutura do texto, associando a
ela a noção de sequências textuais (ou tipos textuais em outras teorias), propostas
por Jean-Michel Adam, tais como sequência narrativa, descritiva, argumentativa,
expositiva, dialogal. Nessa associação, buscam observar se os gêneros apresentam
certa regularidade de predominância dessas sequências. Embora Bakhtin pense
também a noção de composição ligada à materialidade textual, ela transcende essa
dimensão, pois o autor inclui na definição a “[...] relação do falante com outros
participantes da comunicação discursiva – com os ouvintes, os leitores, os parceiros,
o discurso do outro, etc.” (2003 [1979], p. 266). Se atentarmos para a parte final dessa
definição, ela engloba no conceito de composição elementos da situação de
interação, a saber, os seus participantes. Faz parte da dimensão composicional do
enunciado também como se compõe a cena interativa: quem são discursivamente os
interlocutores, que papéis exercem, qual a relação entre eles etc.

Nessa perspectiva, podemos dizer que à composição do gênero estão ligadas


as noções de autoria e interlocutor quando Bakhtin (2003 [1979]) afirma que cada
gênero tem uma concepção de autor e de interlocutor: “[...] todo enunciado tem uma

32
espécie de autor, que no próprio enunciado escutamos como o seu criador”
(BAKHTIN, 1997[1929], p.184); e que sentimos no enunciado como uma intenção
(vontade) discursiva única, uma postura valorativa determinada dentro de uma
situação concreta da comunicação discursiva, orientada para a resposta ativa do
interlocutor. Assim, a autoria independe do fato de o enunciado ser o produto de um
indivíduo, o trabalho de um grupo de pessoas etc. A autoria do enunciado depende
do gênero, pois todo gênero tem uma concepção própria de autoria: romancista,
cronista, articulista, repórter, professor, mãe etc. A manifestação de aspectos de uma
postura individual de autoria (estilo próprio, visão de mundo etc.) vincula-se à
concepção de autoria do gênero: o que diz/pode dizer e o que se espera que diga um
pai, um professor, um produtor de Trabalho de Conclusão de Curso etc.

A orientação dialógica do enunciado para a resposta do destinatário, como


visto na seção anterior, também influencia na constituição do enunciado. Todo
enunciado tem um destinatário, estando orientado para a sua cumprimento de uma
ordem, ou uma resposta de ação retardada etc. A relação social entre o autor e o
destinatário determinam, igualmente, a construção do enunciado. Essas
especificidades se marcam nos gêneros do discurso, que, além de possuírem uma
forma específica de autoria, possuem sua própria concepção de interlocutor. A
diferentes interlocutores, de diferentes interações socioideológicas, estão dirigidos
gêneros como livro didático, tese, sermão, editorial, encíclica, curriculum vitae, ordem
de serviço, pois preveem posições discursivas distintas de interlocutores, postura
ativa de resposta: uma contestação ou um consentimento,

Apresentada a definição de gêneros como tipos temáticos, estilísticos e


composicionais de enunciados, com atenção para a noção de tipo como tipificação
histórica, regularidades resultantes das atividades humanas, passamos à discussão
do que o Círculo entende como relativa normatividade dos gêneros, ao definir os
gêneros como tipos relativamente estáveis e normativos dos enunciados singulares.

Bakhtin (2003[1979]) diz que sempre falamos por meio de gêneros do discurso,
ou seja, todos os nossos enunciados (incluindo a compreensão, que também é um
enunciado) são construídos e significados a partir de um gênero. Pontua, ainda, que,
“Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se
tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir
livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase

33
impossível” (BAKHTIN, 2003[1979], p. 283). O projeto discursivo do sujeito, com sua
individualidade e subjetividade, adapta-se ao gênero da interação. Por essa razão,
para além do domínio das formas da língua (léxico, gramática), é necessário, para
uma compreensão mútua, o domínio das formas do discurso, isto é, o domínio dos
gêneros.

O autor salienta que as formas da língua e os gêneros do discurso se adquirem


conjuntamente e em estreita relação. Aprender a falar significa aprender a construir
enunciados (pois o uso da língua se dá em forma de enunciados), e construí-los a
partir das condições de um dado gênero. Assim,

A língua materna – sua composição vocabular e sua estrutura gramatical – não


chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas, mas de
enunciações concretas que nós ouvimos e nós mesmos reproduzimos na
comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam. Nós assimilamos as
formas da língua somente nas formas dos enunciados e justamente com essas
formas. As formas da língua [...] e os gêneros do discurso chegam à nossa
experiência e à nossa consciência em conjunto e estreitamente vinculad[os].
(BAKHTIN (2003[1979]), p.282-283).

Essa citação respalda a proposta do ensino da linguagem de natureza


operacional e reflexivo, pois sustenta que os usos sociais da linguagem são
apropriados pelos falantes nos processos interacionais de que participam e que a
ação e a compreensão mútua nesses processos interacionais requerem o domínio
dos gêneros do discurso dessas interações. Bakhtin lembra que existem pessoas que
têm um bom domínio da língua, mas sentem-se impotentes em algumas esferas da
comunicação, porque não dominam os gêneros dessa esfera. Ele exemplifica essa
posição com o relato de que podem existir pessoas que dominam os gêneros de
diversas esferas secundárias, dentre elas a da ciência, pois sabem ler relatório,
desenvolver uma discussão científica, mas se calam ou intervêm de forma
desajeitada em uma conversa cotidiana. Trata-se, para o autor, não de uma questão
de pobreza vocabular, mas de uma inabilidade de interagir por meio desse gênero.

É a noção acerca da totalidade do enunciado, isto é, de gênero do discurso,


que `baliza o falante no processo interacional. Na construção do discurso, já lhe
antecede a totalidade do seu enunciado tanto na forma de um projeto discursivo

34
individual como na forma de um gênero específico, no qual se materializará
enunciado: relato, ordem de serviço, bilhete, romance, conto, crônica, artigo, editorial,
resenha, tese, palestra etc. Nos processos interacionais, os gêneros do discurso se
constituem, para o falante, como referência para a construção do enunciado: em que
esfera social encontra-se o falante e seu interlocutor; em que situação social de
interação está se enunciando; que papel de autoria assume nessa interação; quem é
seu interlocutor previsto; e, a partir da consideração desses aspectos da interação do
gênero e da situação de interação imediata, o que pode/deve dizer e como dizer etc.
Bakhtin (2003[1979]) afirma que é essa relação entre o projeto discursivo e o gênero
do discurso que produz os enunciados.

Para o interlocutor, os gêneros funcionam como um horizonte de expectativas,


indicando, por exemplo, a extensão aproximada da totalidade discursiva, sua
determinada composição, bem como aspectos da expressividade do enunciado. Ao
se relacionar com o discurso alheio, o interlocutor, desde o início, infere o gênero
daquele enunciado e, dessa forma, as propriedades genéricas em questão já se
constituem em índices indispensáveis à compreensão (interpretação) do enunciado:
qual a finalidade da interação; o que pretende o autor; o que deseja do interlocutor
etc. Tal qual para o falante, o conhecimento dos gêneros do discurso é importante
para o interlocutor compreender e significar o enunciado do outro e, conjuntamente,
construir a sua reação-resposta.

Como podemos observar, a noção de norma dos gêneros diz respeito à sua
condição de geradora e significadora dos enunciados; assim, se, de uma perspectiva,
os gêneros, como regularidades dos enunciados, constituem-se como certa norma (e
não normativismo), ou, dizendo de outro modo, constituem-se como referência
enunciativo-discursiva para a produção e compreensão dos enunciados, de outra
perspectiva, como balizas e horizontes de expectativas nos processos interacionais,
demonstram sua potencialidade de significar os enunciados, de produzir sentidos.

A esse respeito, convém ainda ressaltar a questão da relativa estabilidade dos


gêneros. Considerando que tanto os gêneros quanto as formas da língua se
constituem nos intercursos das interações sociodiscursivas e fazendo comparação
entre eles, os gêneros, por seu lugar e papel no conjunto da vida socioideológica, são
mais sensíveis às mudanças sociais que as formas linguísticas. Os gêneros, em
especial os primários, de quem falaremos mais diante, refletem de maneira mais

35
imediata e flexível as transformações da vida social, bem como as diferenças
culturais. Por essa razão, Bakhtin destaca a relativa estabilidade dos gêneros, pois
salienta seu movimento entre a unidade e a continuidade (ou entre o dado e o criado),
entre a eventicidade e a historicidade.

Se observarmos, por exemplo, notícias publicadas no jornal no início do século


XX e hoje, notamos uma mudança significativa no estilo do gênero notícia, que
assume hoje um tom impessoal, resultado da pretensa busca de neutralidade pelo
jornalismo. Outro exemplo bastante representativo da relativa estabilidade dos
gêneros, ligada às mudanças da vida social, pode ser demonstrado com a receita
culinária. Enquanto a receita de preparação do peru de Natal, até meados da década
de 1960, instruía o interlocutor de como engordar e matar o peru, as receitas atuais
não trazem mais essas orientações, mas outras instruções: como descongelar o peru,
quanto tempo deixar no forno e quantas calorias apresenta cada porção da receita.
Com esses dois exemplos, podemos observar que, embora o gênero permaneça, pois
a situação social de interação permanece, seu modo de realização e materialização
se modifica, resultado das mudanças sociais.

Assim, o gênero, ao mesmo tempo em que se constitui como força


reguladora/produtora e significadora para a construção e compreensão dos
enunciados, também se renova a cada interação, pois cada enunciado individual
contribui para sua existência e continuidade. Fiorin (2006, p. 69), ao analisar a noção
de gêneros de Bakhtin, destaca que “[...] neles estão presentes a recorrência e a
contingência. A reiteração possibilita-nos entender as ações e, por conseguinte, agir;
a instabilidade permite adaptar suas formas a novas circunstâncias. [...]. O gênero
somente ganha sentido quando se percebe a correlação entre formas e atividades”.

Além disso, a relativa estabilidade dos gêneros apontada por Bakhtin indica
uma imprecisão das características formais dos gêneros e das fronteiras entre eles.
Muitos gêneros formam-se de hibridismos de outros gêneros, como o romance
polifônico que se constituiu a partir do diálogo socrático e da sátira menipéica. Os
enunciados, especialmente os dos gêneros secundários, por meio dos diferentes
modos de citação do discurso do outro, introduzem/intercalam enunciados de outros
gêneros no seu interior: um romance pode materializar/representar, no decorrer da
trama, conversa e carta entre as personagens. Nesse contexto, a carta e a conversa
deixam de ser acontecimento da vida cotidiana para se transformarem em

36
acontecimento do romance, mas nele introduzem seu estilo, por exemplo. Na esfera
escolar, no gênero aula, vemos a intercalação de textos/enunciados de outros
gêneros, tais como o livro didático e gêneros literários, como conto de fadas, fábula,
conto, romance, por meio dos livros que os alunos leem nas aulas de leitura.

Dependendo das possibilidades dos gêneros, seus enunciados podem


reacentuar outros gêneros, fazendo-se passar por outros, com vistas a produzir
determinados efeitos de sentido. Na esfera jornalística, por exemplo, muitos artigos
assinados são redigidos como cartas; na esfera da arte, podemos citar o romance
epistolar. Não obstante, a situação social de interação e o conhecimento dos gêneros
artigo assinado e romance por parte do leitor fazem com que ele leia esses
enunciados com intercalação de gêneros e não como cartas particulares, mas como
artigo e romance escritos em forma de cartas. Os gêneros da esfera da propaganda
nutrem-se bastante dessa condição de reacentuação dos gêneros. As receitas
culinárias publicadas em muitas embalagens são, de fato, propagandas dos produtos
que veiculam.

Por último, a relativa estabilidade dos gêneros, como já dito, aponta para a
imprecisão da fronteira formal entre eles: muitas crônicas assemelham-se a contos;
outras, a poemas, mas, mesmo assim, continuam a ser crônica; poucas diferenças
formais há entre artigo assinado e editorial, mas, mesmo assim, o leitor de jornal os
lê de modo diferente, pois, da perspectiva da autoria, enquanto o artigo assinado
apresenta o ponto de vista de alguém externo à empresa jornalística, o editorial
apresenta o ponto de vista da empresa e dos anunciantes (não há, por isso,
necessidade da assinatura no texto publicado, o que sempre vai aparecer no artigo).

Como resultado da relação constitutiva entre gêneros e relações sociais,


Bakhtin (2003[1979]) estabelece distinção entre gêneros primários e gêneros
secundários, afirmando não se tratar de uma diferença funcional. Rodrigues (2001)
entende que essa diferença se assenta na distinção que o Círculo estabelece entre
ideologia do cotidiano e ideologia formalizada e sistematizada. Os gêneros primários
(diálogo de salão, carta, diário íntimo, relato cotidiano, bilhete, conversa etc.) se
constituem na comunicação discursiva imediata, no campo das diferentes esferas
cotidianas, regidas pelas ideologias do cotidiano. Para Bakhtin (2003 [1979]), os
gêneros secundários surgem nas condições da comunicação cultural mais
“complexa”, no domínio das esferas sociais secundárias (denominadas por muitas

37
teorias de instituições sociais), regidas pela ideologia especializada e formalizada.
Poderíamos dizer que se trata das esferas regidas pela ideologia dominante, que
significa e valora o que é a literatura, o jornalismo, a escola etc. São exemplos de
esferas sociais e seus gêneros: a) esfera religiosa: sermão, oração, missa; b) esfera
artística: romance, conto, soneto; c) esfera escolar: aula, livro didático, prova; d)
esfera científica: palestra, ensaio, artigo científico, tese, resenha; e) esfera
jornalística: notícia, reportagem, editorial, artigo assinado, crônica.

A diferença estabelecida pelo autor entre gêneros primários e secundários não


deve ser vista como uma divisão estanque entre esses dois grupos de gêneros, mas
como uma diferenciação que mantém no horizonte a relação dialética entre eles, do
mesmo modo que observamos essa relação entre as ideologias do cotidiano e a
ideologia formalizada e sistematizada, constituidoras desses gêneros. Bakhtin
(Volochínov) (1988 [1929]) salienta que os sistemas ideológicos constituídos (ciência,
arte, moral, religião etc.) cristalizam-se a partir da ideologia do cotidiano e, uma vez
constituídos, exercem pressão sobre essa ideologia e lhe dão o tom, ao mesmo tempo
em que mantêm um elo vivo com ela (a ideologia do cotidiano funciona como seiva
para a formalizada), pois fora dessa relação eles deixam de existir. Rodrigues (2001)
sustenta que essa mesma relação dialética entre a ideologia do cotidiano e os
sistemas ideológicos pode ser estendida para a relação entre gêneros primários e
secundários.

Por sua relação com o universo social e, por consequência, com as ideologias,
os gêneros trazem neles modos de ver, perceber e julgar o mundo, uma vez que eles
respondem às condições específicas de uma esfera dada e de uma dada ideologia e,
de um modo mais amplo, sobre determinados grupos sociais e sociedades. Dessa
forma, para Bakhtin (2003 [1979]), neles se acumulam formas de visão e
compreensão de determinados aspectos do mundo social. Os gêneros são meios de
apreender e significar a realidade.

Essa concepção de gêneros do discurso de Bakhtin traz implicações para o


campo de estudos da Linguística Aplicada e da disciplina de Língua Portuguesa
comprometidos com os usos sociais da linguagem em contextos situados, pois a
aprendizagem de modos sociais de fazer leva ao aprendizado dos modos sociais de
dizer e compreender esses dizeres; os gêneros do discurso, cujo domínio é uma das
condições necessária para a circulação dos sujeitos em diferentes esferas sociais,

38
dado que as relações interpessoais se dão pelo uso da linguagem, e a possibilidade
de estabelecer tais relações em diferentes espaços, por meio dos diferentes gêneros
que as instituem, contribui para nossa mobilidade social na vida contemporânea.
Trataremos do lugar e do papel dos gêneros nos processos de ensino e
aprendizagem dos usos sociais da linguagem na próxima seção e nas Unidades D e
E.

Implicações pedagógicas dos gêneros na aula de Língua Portuguesa

Nesta seção buscaremos iniciar a discussão do lugar e papel que os gêneros


do discurso (na perspectiva que lhe atribui o Círculo) podem desempenhar no ensino
e aprendizagem da linguagem de natureza operacional e reflexivo, comprometido
com os usos sociais da linguagem.

Se concordamos com a posição do Círculo de Bakhtin de que os usos da


linguagem se materializam em enunciados, construídos em determinado gênero do
discurso; que aprendemos conjuntamente as formas da língua e os gêneros por meio
de nossa inserção em interações sociais mediadas por esses mesmos gêneros; e que
“Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto
mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (nos contextos
em que isso é possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a
situação singular da comunicação [em que situação social estamos nos enunciando];
em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso”
(BAKHTIN, 2003 [1979], p. 285), parafraseando e ampliando o que Geraldi registrava
nas décadas de 1980 e 1990 acerca do texto, os textos-enunciados e os gêneros do
discurso são o ponto de partida e de chegada para o ensino e aprendizagem da língua
materna. Ponto de partida porque os gêneros e seus enunciados trazem elementos
concretos para os processos de elaboração didática e aprendizagem das práticas de
linguagem; ponto de chegada, pois seu ensino e aprendizagem visam à
potencialização do sujeito para sua inserção nas interações das diferentes esferas
sociais. Conforme Rojo (2008, p. 91-92) salienta,

[...] trata-se de dar conta das demandas da vida, da cidadania e do trabalho


numa sociedade globalizada e de alta circulação de comunicação e informação, sem
perda da ética plural e democrática, por meio do fortalecimento das identidades e da
tolerância às diferenças. Para tal, são requeridas uma visão situada de língua em uso,

39
linguagem e texto e práticas didáticas plurais e multimodais, que as diferentes teorias
de texto e de gêneros favorecem e possibilitam.

Nessa perspectiva política e teórico-metodológica, parece-nos que a


observação da relação entre esferas sociais e seus gêneros, entre gêneros primários
e secundários, entre gêneros e seu conhecimento praxiológico para as interações
sociais, sem descurar as outras variáveis a se levar em conta nos processos de
elaboração didática das práticas de leitura/escuta e produção textual, tais como o
projeto político-pedagógico da escola, o entorno social dos alunos, as interações
sociais de que já participam e o domínio dos gêneros nessas interações, torna as
esferas sociais como princípios norteadores para a seleção de gêneros para os
processo de ensino e aprendizagem das práticas de leitura/escuta e produção textual
(RODRIGUES, 1999), pois elas sinalizam para as interações sociais que se julgam
de domínio necessário ao aluno para sua inserção/mobilidade social. Associados ao
domínio das interações mediadas pelos gêneros escolhidos, inclui-se também o
domínio dos modos sociais de dizer, por meio da aprendizagem dos processos de
organização textual e de uso dos recursos linguísticos.

A esse respeito, parece-nos que o papel da escola é levar o aluno


progressivamente ao domínio dos gêneros secundários, sem descurar as
observações já levantadas no parágrafo precedente; e, ainda, numa perspectiva de
ensino ancorada em uma visão crítica, uma vez que esses gêneros também trazem
indícios da visão de mundo e dos valores das ideologias dominantes, que, como já
comentado, ditam o que é, por exemplo, a boa literatura, como se deve produzir o
discurso científico etc. Julgamos que a mobilidade/inserção social e o posicionamento
crítico dos alunos, especialmente daqueles mais distantes das práticas interativas das
esferas sociais secundárias, ocorre se houver o domínio das interações mediadas
pelos gêneros secundários, e que a relação dialética entre gêneros primários e
secundários se materializa pelo domínio de ambos.

Repensando o lugar e o papel dos gêneros do discurso no ensino das práticas


de leitura/escuta, produção textual e análise linguística, Rodrigues (2007) salienta que
eles podem funcionar como elementos integradores dessas práticas nos processos
de elaboração didática: Essa posição não exclui o trabalho com os gêneros primários,
se se considera que o domínio de alguns deles ainda precisa ser mediado pela escola
e para atividades cujo foco se descola (legitimamente, dados seus objetivos, em

40
dados momentos da aprendizagem) dos processos interacionais para um
determinado aspecto da língua, como a apropriação do sistema da escrita. Nas fases
iniciais de apropriação da escrita trabalho com os gêneros primários pode ser
bastante promissor. Tomemos dois exemplos: o trabalho com trava-línguas, que o
aluno já domina oralmente, focaliza a atenção para os processos da escrita; o gênero
bilhete, também pela sua já familiaridade para boa parte dos alunos e por ser um texto
curto, também pode desempenhar funções relevantes nos processos iniciais de
apropriação do sistema da escrita.

Essa proposta toma como base as relativas regularidades dos gêneros, quer
no âmbito da dimensão social, quer no âmbito da dimensão verbal (ou outra
materialidade semiótica, como a pintura) como focos de aprendizagem das práticas
de leitura/escuta, produção textual e análise linguística. Num primeiro deslocamento
da proposta de Geraldi das décadas de 1980 e 1990, a presente proposta articula a
prática de análise linguística não apenas à prática de produção textual, na atividade
de reescritura, em que o aluno reflete sobre adequações/inadequações de seu texto,
mas também às práticas de leitura, a partir de atividades reflexivas (leitura analítica)
que estabelece com o funcionamento dos gêneros nos textos-enunciados tomados
como objetos de leitura. Trata-se, evidentemente, de uma leitura com finalidades
distintas daquela empreendida considerando-se a finalidade de cada gênero, mas
legítima nas aulas de Língua Portuguesa se objetivarmos tomar a prática de leitura
dos textos dos diversos gêneros como objeto de aprendizagem. Com isso não
estamos retornando ao texto como pretexto para as aulas de gramática conceitual,
mas admitindo que o texto pode e deve ser objeto de reflexão epilinguística, para a
apropriação dos gestos de leitura dos diferentes gêneros.

Cabe ressaltarmos, ainda, que, na perspectiva integradora dos gêneros, a


prática de análise linguística efetuada na prática de leitura/escuta articula-se à prática
de produção textual, na medida em que garante ao aluno apropriação de
conhecimentos acerca dos gêneros também necessários nos processos de produção
textual.

Essa visão articuladora da noção de gêneros é ilustrada com o seguinte


percurso possível de elaboração didática: prática de leitura – prática de análise
linguística – prática de produção textual – prática de análise linguística – reescritura
(nova produção textual). Salientamos que essa proposta que parte da prática de

41
leitura é uma possibilidade de elaboração didática, dentre outras possíveis. Geraldi,
por exemplo, na década de 1980, propunha como ponto de partida a produção textual.
O grupo de Genebra, em outra perspectiva teórica de que fazem parte Dolz,
Bronckart, Schneuwly e, no Brasil, Ana Raquel Machado, Elvira Lopes Nascimento,
Vera Lúcia Lopes Cristóvão, Marcos Baltar, entre outros pesquisadores, propõe a
prática de produção textual como ponto de partida para o que denomina de sequência
didática. A partir dessa prática de produção inicial, desencadeiam-se outras
atividades, como leitura de textos, estudo do gênero etc.

Ainda uma última palavra sobre a relação entre gêneros do discurso e o ensino
e aprendizagem das práticas de leitura/escuta e produção textual, que toma como
foco de questionamento se os gêneros se constituem como os objetos de
aprendizagem, tal como afirmam os PCNs. Os estudos que vimos empreendendo
nesse campo levam-nos a afirmar que os objetos de ensino e aprendizagem são as
práticas de linguagem, constituindo-se os gêneros do discurso como parâmetros para
os processos de elaboração didática dessas práticas. Focalizaremos essa
perspectiva nas Unidades D e E.

Elaboração didática: um olhar praxiológico


Esta seção se constrói como uma proposta bastante bem marcada, que vem
sendo empreendida por nós no âmbito de nossos estudos, no Programa de Pós-
graduação em Linguística desta Universidade, sobremodo pelos estudos de
Rosângela Hammes Rodrigues. A ancoragem teórico-epistemológica a partir da qual
vimos atuando é uma concepção de língua como objeto social, tomada à luz da
vertente sócio histórica, especialmente a partir do pensamento do Círculo de Bakhtin,
das considerações vigotskianas sobre a linguagem como objeto psicológico de
mediação simbólica e de estudos do letramento, em interface com a antropologia, os
quais tomam a língua escrita nos usos situados nos quais essa modalidade da língua
institui interações humanas. Tais fundamentos compuseram esta Unidade até aqui.

O Círculo de Bakhtin empreendeu seus estudos especialmente no plano da


filosofia da linguagem, enquanto Vigotski o fez no universo da psicologia, com
interfaces no campo da educação; os estudos do letramento, por sua vez, se dão,
sobremodo, no campo da antropologia. Trata-se, pois, de teorizações cujos
construtos facultam implicações educacionais, digamos, “escolarizantes”, mas que

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seguramente não se erigiram tendo tais implicações como foco. Assim, importa que
discutamos, nesta seção, um conceito que julgamos relevante para o fecho desta
Unidade C: o conceito de elaboração didática, cuja proposição objetiva defender que,
embora a ancoragem teórica que sustenta nossa discussão não tenha
encaminhamentos didatizantes, de posse desse construto o professor de Língua
Portuguesa poderá organizar sua ação pedagógica de modo a mediar um processo
de aprendizagem que faculte aos alunos com que trabalha a potencialização dos usos
da linguagem em diferentes esferas da atividade humana.

Mas em que consiste esse conceito? Tomamos esse conceito de Halté (2008
[1998]), que o registra no âmbito de uma crítica que empreende à chamada
transposição didática, o que remete a proposições de Chevallard, discussão que tem
origem no campo da matemática e que implica a transposição do conhecimento
científico, o saber sábio – para o conhecimento escolar – o saber ensinado. Halté
(2008 [1998]), ao refletir sobre essa transposição, empreende uma discussão sobre
o que sejam saberes e conhecimentos e menciona o sincretismo entre eles quando
se trata da ação pedagógica. Escreve o autor:

[...] a distinção dos tipos de saber, mesmo que satisfatória para o espírito, é de
uma manipulação desastrosa no espaço didático da sala de aula. A aula de leitura
(ou de escrita) convoca obrigatoriamente, na sala de aula, ao mesmo tempo, saberes
de todos os tipos. Arriscando um resumo abrupto, podemos afirmar que, na prática
da sala de aula, o saber científico [teorizações científicas], a prática social de
referência [saberes modelizados construídos nas diferentes profissões humanas], a
especialidade [saberes fortemente especializados ligados a instituições não legítimas
– o rap, por exemplo] e o conhecimento [saberes instáveis, difusos, conhecimentos
que cada um já tem em sua prática], estão literalmente sincretizados. E trata-se
mesmo de sincretização: não se trata de dispor os diferentes componentes no tempo
escolar [...] E isso, em qualquer que seja o nível escolar: [...] Sem a sincretização, o
“puro” saber científico, o puro modelo das práticas, o puro saber especializado não
teriam o menor sentido, nem a mínima chance de serem assimilados. (HALTÉ, 2008
[1998], p. 131).

Petitjean (2008 [1998]) converge com essa compreensão e assinala que


escolarizar o conhecimento científico implica extrair esse mesmo conhecimento da
lógica sob a qual se constrói, de modo a recontextualizá-lo para que se torne objeto

43
de uma aprendizagem especializada. Esse processo destitui esse conhecimento da
inserção em seu campo científico de referência e, portanto, o artificializa. Sob a
perspectiva das reflexões de Petitjean (2008 [1998]), transformar conhecimentos
científicos em conhecimentos ensináveis denega a dimensão praxiológica do
processo de ensino e aprendizagem, destituindo o professor e o aluno da condição
de protagonistas, respectivamente, na mediação e na apropriação dos saberes
historicamente objetificados (DUARTE, 2004); afinal, para Chevallard (2000), a ação
de ensino e aprendizagem inicia quando já se deu a transposição didática.

Mencionamos, neste livro, experiências de Irigoite (2010/11) em pesquisa-ação


em que a professora participante de pesquisa, ao aplicar proposta delineada a priori
pelo Ministério da Educação – no caso as Olimpíadas de Língua Portuguesa –, sentia-
se pouco à vontade em razão de não dominar as bases teóricas que sustentavam
aquelas propostas. Petitjean (2008 [1998]) registra que, quando os saberes científicos
não são de domínio efetivo dos professores, que têm acesso a eles por meio de
literatura paradidática e meios afins, tais professores tendem a denegar a
complexificação desses saberes no processo de ensino e aprendizagem, limitando
sua ação a uma dimensão aplicacionista. Escreve Halté (2008 [1998], p. 138):

Pelo fato de definir um processo descendente, do saber científico para saber


escolar, ela [a transposição didática] favorece – até mesmo preconiza – o
aplicacionismo. Pelo fato de organizar-se a partir de saberes distribuídos
academicamente em campos constituídos, ela purifica os objetos de ensino ao preço
de uma perda de sentido pelos aprendizes etc. Por essas razões, eu havia defendido
uma didática globalmente praxiológica, caracterizando-se, em relação aos saberes,
por uma metodologia implicacionista que eu nomeei elaboração didática dos saberes.

Segundo o autor, a participação do professor e do aluno no processo didático


se situa em um projeto didático e seu espaço privilegiado é

que o autor chama de sistema didático inteiro. Ademais, Halté (2008 [1998], p.
138) pontua que “O professor e o aluno, negligenciados na TD [transposição didática],
até mesmo relegados ao nível de atores subsidiários, são protagonistas essenciais e
seu papel [...] é decisivo”. Ainda segundo o autor, a formação do professor de língua
integra saberes diversos, que estão inscritos em uma lógica de ação e submetidos a
fatores aleatórios – talvez pudéssemos trazer aqui, no plano dos fatores aleatórios, a

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natureza situada e, portanto singular, das práticas de letramento (HAMILTON, 2000)
– e têm sempre uma dimensão social. E, por fim, ainda destacamos que, para o autor,
“Não é porque um saber está disponível e é ensinável que ele deve ser ensinado: é
porque tal projeto didático busca tal objetivo que tal conceito teórico é eleito e
transposto mais do que outro, em convergência com as escolhas dos suportes, com
os conhecimentos prévios, com as especialidades afins” (HALTÉ, 2008 [1998], p.139).

Estamos registrando essas ideias de Halté (2008 [1998]), ao contrapor-se à


transposição didática a ao defender que haja elaboração didática, entendida, aqui,
como o agenciamento de saberes científicos dos quais professores tenha se
apropriado, tanto quanto de práticas sociais de referência que o caracterizam como
professor, de conhecimentos de especialidades e de conhecimentos construídos nas
vivências sociais para a/na sua ação de ensino, porque entendemos necessária, na
formação do professor de Língua Portuguesa, a apropriação dos conhecimentos
científicos que veiculamos ao longo deste livro. Esses conhecimentos, porém, não
podem ser transpostos para as aulas de Língua Portuguesa – temos ouvido, por
exemplo, professores teorizando sobre Bakhtin em suas aulas, o que seguramente
deturpa a razão de discutirmos o pensamento de Bakhtin nos processos de formação
docente.

Importa que os professores, ao se apropriarem dos conhecimentos que têm


origem na filosofia da linguagem, na psicologia da educação ou na antropologia (entre
outros campos), discutidos nesta Unidade, empreendam um processo de elaboração
didática à luz desses conhecimentos, agenciando suas práticas sociais de
referências, suas vivências e, principalmente, os conhecimentos que caracterizam os
espaços sociais em que desenvolverão sua ação – os gêneros do discurso que
instituem relações nesses espaços e as práticas de letramento que ali se construíram,
por exemplo.

Optamos por empreender uma ação didático-pedagógica que não lança mão
de modelizações e de construtos didatizantes. Defendemos o papel central do
professor no delineamento dos rumos de seu fazer, para o que entendemos essencial
a apropriação do conhecimento científico aqui recortado, mas, reiterando o que já
registramos em Unidade anterior, a lógica da ciência não é a lógica da disciplina, e a
escola não é o espaço para o fazer científico, mas para o ensino e a aprendizagem
de conhecimentos objetificados, historicamente construídos pela humanidade, tanto

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quanto para o desenvolvimento de habilidades para os diferentes usos da linguagem,
no caso da disciplina de Língua Portuguesa.

No que concerne a essa questão, Silveira (2009, p.43) escreve o seguinte:

Dessa forma, como aponta Viana (2004), a construção do conhecimento no


contexto do ensino-aprendizagem de língua materna, sob a perspectiva da
elaboração didática, está firmemente imbricada às práticas de produção e refacção
de textos, de leitura e de análise linguística, uma vez que essas práticas permitem
agenciar conhecimentos através de atividades epilinguísticas que balizam o ato
discursivo. O objetivo de uma elaboração didática é mobilizar a construção e a
emergência de um “saber fazer” – savoir faire – um saber escrever, reescrever, ler,
falar, ouvir, compreender.

Tendo discutido as bases teóricas em que pautamos nossas discussões nesta


disciplina e, nesta seção final, tendo advogado em favor de um processo de
elaboração didática a partir dessas mesmas bases teóricas, passaremos a reflexões
pontuais sobre leitura e produção textual nas Unidades que seguem.

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