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O Processo e o Resultado Na Literatura - Bruno Ribeiro

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O processo e o resultado na literatura

Bruno Ribeiro
O que importa

“Não importa saber por qual perna se começou


a fazer a mesa, desde que ela tenha quatro
pernas e fique de pé, depois de terminada.”

ABC da literatura, Ezra Pound.


• Processo: radical,
experimental, artista.

• Resultado: consumo, leitor,


identificação.

(Realismo X Desejo)

(Os clássicos)
“O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca.
Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério,
isto é, no qual investe uma grande quantidade de
emoção, enquanto mantém uma separação nítida entre o
mesmo e a realidade. A linguagem preservou essa relação
entre o brincar infantil e a criação poética.”

“Escritores criativos e devaneios”, de Sigmund Freud.

“A gente olha o mundo uma só vez, durante a infância. O


resto é lembrança”. Louise Gluck.

“Mas onde você nada, ela se afoga”, em “Formas breves”,


do Ricardo Piglia.
QUE, COMO, VOZ
Artíficios: Por mais que um texto literário
expresse uma experiência real, sempre há uma
estetização, uma forma artística que o autor
procura alcançar.

Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor. Finge


tão completamente. Que chega a fingir que é
dor. A dor que deveras sente”.

O escritor é como um DJ!


RESULTADO
• Narratologia: estudo das narrativas (de ficção ou não)
por meio de suas estruturas e elementos. Termo
proposto por Tzvetan Todorov (1960)

• Roland Barthes, Formalistas Russos (pioneiros), Syd


Fields, Umberto Eco, Sonia Rodrigues, Assis Brasil.

• “A narratologia é influenciada pelas correntes teóricas


estruturalistas, que buscam adaptar a metodologia das
ciências exatas às humanidades. Como tal, é
característica marcante da narratologia a busca por
paradigmas, estruturas e repetições entre as diferentes
obras analisadas.”

• “Poética” e a mímesis, de Aristóteles (século 4, antes de


Cristo).
Modalidades da narração

• Pra uma história avançar: narrativa,


personagem e universo.

• Desenvolvimento, clímax, transformação da


narrativa, impacto na vida dos personagens,
conclusão.
• Planejando a narrativa (PENTE)

• Personagem
• Enredo
• Narrador
• Tempo
• Espaço
Personagem, Narrador
Protagonista e conflito
• Raskólnikov, Brás Cubas, Macabéa, Meursault,
Emma Bovary, Capitu, Alice.
• O personagem pode ser passivo?
• Qual a motivação do seu personagem? Não se
pode pensar só no objetivo imediato.
• Coerência interior, contradição exterior.
• “A Dama do Cachorrinho”, Anton Tchekhov.
Descrição

• Raymond Carver e sua descrição: “... uma


sobrevivente dos pés a cabeça”.
• Descrição de Maria Eduarda, “Os Maias”
(“uma linda morena, mimosa e um pouco
adoentada”)
• Causar um “choque” que fuja do lugar comum
ao descrever um personagem.
“... A beleza não está nem na luz da
manhã nem na sombra da noite,
está no crepúsculo, nesse meio-
tom, nessa ambiguidade.”
Lygia Fagundes Telles.
A vida breve e feliz de Francis Macomber, Ernest
Hemingway.
O rastro do teu sangue na neve,
Gabriel Garcia Márquez.

• A noiva “tinha olhos de passarinho feliz”.


• O noivo “usava um cachecol”.
Esaú e Jacó, Machado de Assis
“A semelhança, sem os confundir já, continuava
a ser grande. Os mesmos olhos claros e atentos,
a mesma boca cheia de graça, as mãos finas, e
uma cor viva nas faces que as fazia crer pintadas
de sangue (...) Paulo era mais agressivo, Pedro
mais dissimulado (...) Não digo com isto que um
e outro dos gêmeos não soubessem agredir e
dissimular; a diferença é que cada um sabia
melhor o seu gosto, coisa tão óbvia que
escrever.”
Caraterização direta ou indireta
• Descrição física: muitas vezes é melhor deixar
o leitor imaginar uma? Pergunte-se: é útil pra
construção do personagem ou do enredo essa
descrição? “Corcunda de Notre Dame”, Victor
Hugo.
• “Descreva logo, não na página 100.” (e as
exceções?)
• Busque combinações diferentes de elementos
descritivos (símiles, metáforas, metonímias)
“... sua pessoa inteira era uma careta só. Uma
cabeçorra espetada de cabelos ruivos. Entre os dois
ombros, uma enorme corcunda cujo peso se
compensava à frente. Um sistema de coxas e pernas
tão estranhamente disposto que elas só se
encostavam à altura dos joelhos e, vistas de frente,
pareciam dois arcos de foice que se juntassem pelo
cabo. Pés grandes, mãos monstruosas e,
completando toda essa deformidade, uma atitude
de aterrorizantes vigor, agilidade e coragem. Era
uma estranha exceção à regra que diz ser a força
um resultado, assim como a beleza, da harmonia.
Assim era o papa que os bufos acabavam de
proclamar. Um gigante quebrado e mal colado.”
• Caracterizar através das escolhas;

• Caracterizar através da descrição;

• Contraste: qualidades e defeitos;

• Mostre, não conte?

• Coerência!

• Como o seu narrador vê o mundo e as coisas ao


seu redor? A cidade? O tempo? A altura de
alguém?
A autoridade do personagem
“Você sabia que as moscas ficam esfregando as patas por questão de higiene?”

Ela não responde.

“Os pelos das patas têm umas espécies de receptores de aroma e sabor. E daí
que elas precisam estar sempre limpas para que elas possam farejar seus
alimentos.”

Marta fica me encarando.

“Dizem que elas existem há cerca de 65 milhões de anos. Desde os tempos dos
dinossauros.”
Raymond Chandler
• Raymond Chandler (1888-1959) é um dos
escritores mais originais do romance policial.
Ele aprimorou elementos clássicos do gênero:
o detetive durão e solitário; a loura fatal; o
crime intrincado; a cidade violenta, de
policiais corruptos e milionários alcoólatras.
Era um mestre na linguagem, sobretudo nos
símiles, nas comparações, nas imagens
inesperadas.
Raymond Chandler

Homens
• Perigoso como um esquilo.
• Mole como um prato de mingau frio.
• Nervoso como um muro de tijolos.
• Charmoso como uma cueca de metalúrgico.
• Expressivo como um sarrafo de madeira.
• Tão honesto quanto é possível a um homem num
mundo onde ser honesto está fora de moda.
Raymond Chandler

Mulheres
• Calma como uma tigela de creme.
• Delicada como uma calçada.
• Tão platinada que seu cabelo brilhava como
uma fruteira feita de prata.
• Chateada como um vereador com caxumba.
• Remota e límpida como água da montanha.
Raymond Chandler

Odores
• Tão forte que dava para construir uma garagem em cima
dele.

Estrada
• Monótona como uma cantiga de marinheiro.

Lago
• Imóvel como um gato adormecido.

Tempo
• Se arrastando como uma barata doente.
Conflito
Conflito
• Todo drama é conflito.
• Conheça a necessidade do personagem.
• Crie obstáculos que preencham essa
necessidade.
• Como ele vence esses obstáculos é a sua
história.
• TODO personagem tem uma necessidade.
O drama
• O drama do personagem (suas questões)
reage e interfere com os fatores externos da
história, provocando o conflito.
• O que o personagem quer, nem sempre é o
que ele precisa.
• O conflito precisa fazer sentido com a história
interior e anterior do personagem.
• Conflito externo e interno (guerra
acontecendo no país + protagonista está
sendo infiel com a esposa)
Incidente incitante
• “O Incidente Incitante desarranja radicalmente o
equilíbrio de forças na vida do protagonista.”
- Robert Mckee.

• “Algo me diz que não vamos curtir esse lugar.”


• Progressão dramática (slow burn)
• Incidente Incitante: Batman / Breaking Bad /
Chapeuzinho Vermelho / Darth Vader / Parasita.
“Grandes problemas,
soluções estúpidas, criam
ficção de qualidade.”
Ira Levin.
“A linguagem não é a
nossa primeira
linguagem.”
Tom Spanbauer.
Marina Abramovid e Ulay no MoMA
“João Carlos Martins tocando piano com o
auxílio de luvas biônicas, 20 anos depois de
perder os movimentos.”
Exercício
• Descrever um personagem e criar um possível
conflito para ele.

• Símiles.

• Descrição de Maria Eduarda em “Os Maias”


(“uma linda morena, mimosa e um pouco
adoentada”)
Fábula, conceito aristotélico
• A consistência do personagem implica que ele
possua uma questão anterior a própria
narrativa e que seguirá com ela após o ponto
final.

• Para que o leitor tenha acesso à pré-história (a


fábula) o escritor pode usar do diálogo,
flashback, monólogo interior, ações, etc.
Fábula

• Ocultamento e desvelamento: Dom Casmurro

• Estrutura linear ou fragmentada.

• Que ponto começa a sua história? (Irmãos


Dardenne)
Contos de “Cotidiano”, da Mariana
Travacio
• “Me chamo Ana Laura Linares, tenho 38 anos
e não tenho memória. Minha psicóloga disse
que não ter memória é como não ter afetos. E
ela trabalha para que eu a recupere.”

• “Que Manuela era irritável sempre soubemos,


mas ela parecia mais feliz depois do
casamento com Fermín.”
O conflito é parte integrante de nossa
vida. Sem conflito, sem interesse na
narrativa.

• “Dias de abandono”, Elena Ferrante.


• “Pedro Páramo”, Juan Rulfo.

Já apresenta incidente incitante, personagem,


motivação, objetivo e instaura o conflito.
Pedro Páramo
“Vim a Comala porque me disseram que aqui
vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo. Minha
mãe me disse. E eu prometi que viria vê-lo assim
que ela morresse. Apertei suas mãos em sinal de
que faria isso; pois ela estava morrendo, e eu
decidido a prometer tudo. “Não deixe de ir
visitá-lo”, recomendou ela.”
Dias de Abandono
“Uma tarde de abril, logo após o almoço, meu
marido me comunicou que queria me deixar. Fez
isso enquanto tirávamos a mesa, as crianças
brigavam como sempre no outro cômodo, o
cachorro sonhava resmungando ao lado do
aquecedor. Disse-me que estava confuso, que vivia
maus momentos de cansaço, de insatisfação, talvez
de covardia (...) Depois assumiu a culpa de tudo que
estava acontecendo e fechou com cuidado a porta
atrás de si, deixando-me como uma pedra ao lado
da pia.”
Complexo de Portnoy, Philip Roth.

“Ela estava tão profundamente entranhada em


minha consciência que, no primeiro ano da
escola, eu tinha a impressão de que todas as
professoras eram minha mãe disfarçada.‖”
“Nossa mãe tinha avisado: “Façam de conta que
Lelo ainda está vivo, conversem com dona Irene,
fiquem como se ele fosse chegar e que vocês foram
lá só pra brincar com ele”. Eu e Vivi ficamos
apreensivos, não sabíamos mentir, assim nos
ensinaram na escola, assim meu pai tinha nos
ensinado também. Chegamos lá e perguntamos por
Lelo só por perguntar, porque a gente sabia que
nunca mais que ele fosse voltar pra brincar com a
gente.”

“A Muralha da China”, Antonio Carlos Viana (em


“Jeitos de matar lagartas”)
“... eu não julgo.

Já faz tempo que encarei a vida como um filme expressionista


com discursos bairristas sobre um mundo que eu quis ter para
mim de direito e não tive. Já não tento traduzir pro meu ar
nordestino tangos taciturnos de gardel. Já não culpo o partido
dos trabalhadores, nem os pastores da igreja universal, nem a
gordura do queijo manteiga. Não ando mais com um
cronômetro medindo os centésimos de segundos pra que a
esperada bomba exploda na minha cara e os que me rodeiam
me vejam e, principalmente, vejam a maneira como fui
tratada por você nestes anos todos que mendiguei na porta
do seu grande pilar egocêntrico.”

(“Palavras que devoram lágrimas”, Roberto Menezes.)


O Estrangeiro, Albert Camus
“Hoje, mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei
bem. Recebi um telegrama do asilo: “Sua mãe
faleceu. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.”
Isso não esclarece nada. Talvez tenha sido
ontem.”
Todos nós temos questões

• Trabalhar com contrapontos, desejos e


motivações.

• “A náusea”, “O estrangeiro”, “A paixão segundo


GH”: o conflito interno dos protagonistas é sutil,
mas existe.

• Drama em plano psicanalítico ou metafísico.


Nem toda questão se resolve
• Raskólnikov não resolve seu conflito interno.
Muitas vezes o fim é a ausência da
transformação de um personagem.

• Os livros de Ana Paula Maia.

• As vezes o que muda é a atitude do


personagem acerca do conflito da narrativa,
não seus dramas.
“A dama do cachorrinho”, Tchekhov
• A força motora da narrativa é a alteração de
atitude do personagem acerca do amor. Os
fatores externos por que passa o personagem
quase sempre significando uma ou várias
situações de conflito.
• A quebra da estabilidade, da falsa calma.
Ainda sobre conflito
• Esquecer a ideia simplista de reduzir conflito a
protagonista e antagonista.
• Não usar a teoria do patinho de borracha no
conflito.
• Conflito: duas circunstâncias negativas ou
duas circunstâncias positivas: salvar um ou
outro x ir à Viena ou a Paris.
Ainda sobre conflito

• Cabeça x Coração.
• “Se você não criar um objetivo para o seu
personagem, ele não irá inventar um por si
próprio.”
• Conflito-de-primeira-página.
Ainda sobre conflito

• Função do enredo é tornar o conflito cada vez


mais agudo, levando-o a um estágio insuportável.

• Técnica do “relógio” de Chuck Palahniuk: algo que


limita o tempo da história, forçando o término
dela em um momento específico.

• Ato 2 (miolo do livro ou o conto) é inferno.


Personagem precisa ter consistência

• Conceito da “Arma de Tchekhov”, do Alfred


Hitchcock.
• Começar falando de forma coloquial e do
nada soltar um “todavia”, “a priori”,
“altarquia” ou “voismicê”.
David Mamet
• Quem quer o que?
• O que acontece se a pessoa não conseguir o
que deseja?
• Por que agora?
• Faça as perguntas certas!
• Drama: a jornada do seu herói para driblar as
coisas que ficam na frente dele conseguir
alcançar o seu objetivo.
Foco narrativo e conflito
• “Dama do cachorrinho”: Foco em Guróv, mas
acompanhamos o drama da sua amante Anna
também, que está presa a um casamento como
ele.

• Dom Casmurro funciona porque só há um foco


narrativo: Bentinho. O livro é alicercado na sua
paranoia, se o foco fosse pra Capitu perdia a
complexificação.

• “O Colecionador”, John Fawles.


Foco e conflito

• Coadjuvantes não devem ser manequins, eles


também tem seus dramas. Mas trabalhe com
eles só na superfície, pois quanto maior o
número de personagem que tenha sua
intimidade revelada, mais fraco se torna o
conflito.
“Nunca resolva um problema até
apresentar outro maior.”
Ursula K. Le Guin.
Ferramentas
• Saiba usar as ferramentas para si, molde-as
pra você. (David Lynch, Cronenberg,
Fassbinder)
• Hilda Hilst, Clarice Lispector, Samuel Beckett.
• Colagens e sobrepor imagens que a priori não
combinam. Causar estranhamento no leitor.
• “Alma Corsária”, Carlos Reichenbach.
Exercício coletivo

• Vamos criar um incidente incitante, um


protagonista e sua motivação, e instaurar um
conflito interno e externo.
Enredo
Elaborar enredo
• O personagem consistente é que comandará a
narrativa.
• O drama, as motivações e o objetivo do
personagem, em atrito com os fatores
externos, provocarão os eventos e darão
sentido ao enredo.
• O enredo surgirá da articulação do eventos.
• O enredo se organiza como um sistema.
• O enredo agrava o conflito.
Sobre Édipo Rei
“Há uma praga assolando Tebas. Édipo, o rei,
parte para descobrir a causa. Ele descobre, no
final, que a causa é ele. A peça acaba. Observe
que acaba de uma forma, segundo Aristóteles,
tanto surpreendente quanto inevitável. Por que
essa peça sobreviveu milhões de anos e por que
Aristóteles adotou-a como paradigma? Porque
seu enredo é perfeito.” Teatro, David Mamet.
Syd Field

• ATO I (Apresentação)
• ATO II (Confronto) (Primeiro ponto de giro)
• ATO III (Desfecho) (Segundo ponto de giro)

• Se pode aplicar esse paradigma em contos,


novelas, romances e roteiros.
Seis passos para uma cena efetiva
• 1: causada pela cena anterior
• 2: conflito, questões (drama)
• 3: aprofunda o personagem
• 4: complica a jornada
• 5: visual-filosófico-reflexão
• 6: causa a próxima cena
• 1 e 6 são comuns por questões narrativas
• Ao menos um dos pontos 2, 3, 4 e 5 devem estar
na cena.
Escaleta
Escaleta (vertical x horizontal)
Mostrar (cena)
• Mostrar: evento em tempo real, está
mostrando algo ao leitor: agudiza o conflito,
conhece melhor o personagem. Define
circunstâncias vagas no enredo.
• “Ilhado”, conto do Rinaldo de Fernandes: cena
com descrição, cenário e diálogos.
• O “Falcão Maltês” é todo só mostrando
(construído só com cenas)
Contar (Sumário) Síntese de várias
cenas
• Bolaño, Borges, Piglia.
• No cinema seria o argumento.
• “... Adiantar o andamento da narrativa e evitar
acontecimentos pormenores quando o leitor só
precisa saber que aconteceram.”
• Se você contar demais pode ficar abstrato, chato,
então é bom “mostrar” um pouco no meio do
texto sumário.
• Inserir cenas já vitaliza o sumário: pormenores
concretos, diálogos.
Voz alta (sumário) x Voz baixa (cena)
• Sentido / Pormenores
• Eventos / O evento
• Voice-over / Câmera
• Ação carrega consigo autoridade. (voz baixa)
• Passagem de tempo e elipses. (voz alta)
• Indiana Jones / Cassino.
Decisões, Alê Motta.
De onde estou observo meu filho e suas tentativas
frustradas de ensinar o meu netinho a nadar. O moleque
não quer nadar. Quer descer no tobogã. Repetidamente.
Vai fazer pirraça e meu filho vai ceder.
Minha nora ignora os dois e se delicia na água,
aproveitando os jatos da cachoeira artificial.
Tem um homem mais gordo que eu, quase perdendo os
calções. Três crianças brincam de guerra d’água.
Ao meu lado, numa mesa transparente, sentados em
cadeiras plásticas, três casais falam sobre o preço dos
Airbnbs da região e a política desastrosa do país.
Gotas de suor descem nas minhas costas e pernas.
Meu rosto arde. Todo o piso em torno da enorme
piscina está molhado. Estou com calor e fome.
Quero mijar e o banheiro é longe e de difícil acesso.
Quero fazer uma loucura. Soltar a trava da minha
cadeira e.
Como seria a manchete do meu suicídio?
Cadeirante se joga na piscina do clube.
Cadeirante se mata no feriado.
Preciso calcular o impulso para bater a cabeça no
fundo. Dessa vez, não posso falhar.
“Alvo noturno”, Ricardo Piglia.

“Tony Durán era um aventureiro e um jogador profissional e


viu a oportunidade de estourar a banca quando topou com as
irmãs Belladona. Foi um ménage à trois que escandalizou o
povoado e ocupou a atenção geral durante meses. Ele sempre
aparecia com uma delas no restaurante do Hotel Plaza mas
ninguém conseguia saber qual era a que estava com ele
porque as gêmeas eram tão iguais que até a letra delas era
igual. Tony quase nunca se deixava ver com as duas ao mesmo
tempo, isso ele reservava para a intimidade, e o que mais
impressionava todo mundo era pensar que as gêmeas
dormiam juntas. Não tanto que partilhassem o homem, mas
que partilhassem a si mesmas.”
Construção
• Cena: drama (questão essencial), conflito,
diálogo.
• Sumário: estabelecer (pode ser um flashback)
pontes entre as cenas.
• Cena + sumário + revelação dramática.
• Refrão (Chuck Palahniuk): transição entre um
momento e outro na história.
• Reflexões, monólogo interior.
Diálogo (Cenas)
• Diálogo em excesso é solução fácil.
• Diálogo é bom para revelação de personagem ou
acirramento do conflito.
• “O Beijo da Mulher-Aranha”, Manuel Puig;
romances do Lourenço Mutarelli: a alta
concentração dramática desses textos capta a
atenção do leitor.
• Não responder a uma pergunta em um diálogo.
• O diálogo ficcional é diferente do real (saiba usar
o real para criar o ficcional).
Diálogo (Cenas)
• Gestos + ação + expressão + espaço
• Boa parte do que as pessoas entendem numa
comunicação vem da linguagem corporal, tom
da voz e volume.
• Usar pausa dramática nos diálogos.
• Atividade: faça uma lista de gestos!
Enredo: Um conto conta duas histórias

• A história que ele chama de 1, a evidente, só aqui e ali


deixa entrever ou pressentir “nos seus interstícios” a
história 2, que ao irromper por fim na consciência do leitor
provoca aquele efeito de surpresa, revelação ou epifania
que se espera de todo conto.

• Anton Tchekhov, mestre do conto moderno, falando de


uma história que ele jamais escreveu: “Um homem em
Montecarlo vai ao cassino, ganha um milhão, volta para
casa, suicida-se”.

• A história 1 – o jogo, a sorte, a euforia do enriquecimento –


tem no subsolo de alguma forma a história 2, de desespero
total, que conduz ao final inesperado: o suicídio.
• O Estranho, Sigmund Freud.

• “...é o nome de tudo que deveria ter


permanecido secreto e oculto, mas veio a
luz”(Freud, 1919).

• “O mais importante nunca se conta”, Ricardo


Piglia.
Foco narrativo
Foco narrativo
• Foco interno (1, 2 e 3 pessoa)
• Foco externo (3 pessoa)
• Foco onisciente (3 pessoa): dá acesso ao leitor
a tudo do personagem e do universo.
Foco interno – 1 pessoa
• 1 pessoa: visão unilateral dos fatos.
• Você deve “ser” o personagem (ator)
• “Apanhador no campo de centeio” x “Vampiro
Lestat”: duas formas de se apresentar.
• Atenção para não criar falas estereotipadas.
• Lá e cá (nem muito ruim, nem muito bom).
“São Bernardo”, Graciliano Ramos.
“Deixei o leito furiosa. Com vontade de quebrar e destruir
tudo. Porque eu tinha só feijão e sal. E amanhã é domingo.”

“Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo!


Eu que antes de comer via o céu, as árvores, as aves, tudo
amarelo, depois que comi, tudo normalizou-se aos meus
olhos.”

“… A comida no estômago é como o combustível nas


maquinas. Passei a trabalhar mais depressa. O meu corpo
deixou de pesar. Comecei a andar mais depressa. Eu tinha
impressão que eu deslisava no espaço. Comecei a sorrir como
se estivesse presenciando um lindo espetáculo. E haverá
espetáculo mais lindo do que ter o que comer? Parece que eu
estava comendo pela primeira vez na minha vida.”

– Carolina Maria de Jesus.


“Leão de chácara”, João Antônio
“... Não sou menino. De mais a mais, foi cedo
que aprendi, debaixo de porrada, a ver sem
salamaleques as coisas desta vida. Como outros,
rolando na noite e nas virações ganhei cedo um
nome de guerra: Pirraça. Que desde pixote eu
sou um mordido, um embirrado, não deixando
para tirar forra de desacato depois da hora:
deveu para Pirraça, tem de me pagar ali, em
cima do lance e depressinha...”
“Sempre que víamos a sra. Lisbon, procurávamos
em vão algum sinal da beleza que ela devia ter
tido um dia. Mas os braços roliços, o cabelo de
palha de aço com corte tosco e os óculos de
bibliotecária sempre frustravam nossas
tentativas.” (Virgens Suicidas, Jeffrey Eugenides)
Monólogo interior e fluxo de
consciência
• “A canção dos loureiros”, Édouard Dujardin
(criador do monólogo interior)
• Fluxo: “Obscena Senhora D”, Hilda Hilst.
• James Joyce.
• Fluxo de consciência: “Há uma desagregação
da forma sob o ponto de vista da sintaxe
(radicalização do monólogo interior)”.
• “O leitor tá dentro do ato de pensar.”
A canção dos loureiros
“... A hora soou; seis horas, a hora esperada. Eis
a casa onde devo entrar, onde encontrarei
alguém; a casa, o vestíbulo, entremos. A tarde
cai, o ar está bom, há uma alegria no ar. A
escada, os primeiros degraus. Se, por acaso, ele
tivesse saído antes da hora? Isso acontece
algumas vezes; entretanto quero lhe contar
sobre o dia de hoje...”
Obscena Senhora D
“Derrelição Ehud me dizia, Derrelição — pela última vez
Hillé, Derrelição quer dizer desamparo, abandono, e
porque me perguntas a cada dia e não reténs, daqui por
diante te chamo A Senhora D. D de Derrelição, ouviu?
Desamparo, Abandono, desde sempre a alma em vaziez,
buscava nomes, tateava cantos, vincos, acariciava
dobras, quem sabe se nos frisos, nos fios, nas torçuras, no
fundo das calças, nos nós, nos visíveis cotidianos, no
ínfimo absurdo, nos mínimos, um dia a luz, o entender de
nós todos o destino, um dia vou compreender, Ehud
compreender o quê?
isso de vida e morte, esses porquês (...)”

“Use com parcimônia o fluxo de consciência.”


Foco interno – 2 pessoa
• “Aura”, Carlos Fuentes
• “Modos inacabados de morrer”, André Timm.
• Gera intimidade e causa subjetividade.
“Você veste a camisa, passa um papel nas pontas dos
seus sapatos e escuta, desta vez, o aviso do sino que
parece vaguear pelos corredores da casa e fecha a porta.
Você olha para o corredor; Aura anda com o sino na mão,
inclina a cabeça para vê-lo, lhe diz que o café da manhã
está pronto.” (Aura, Carlos Fuentes)

“Você tem treze anos. Os membros crescem em uma


relação díspar, como se estivessem competindo entre si,
mas fossem muito diferentes nas competências que os
fazem avançar. Os pés crescem mais rápido que as
próprias pernas; o nariz dispara com larga vantagem em
relação ao resto dos demais elementos que constituem a
face; os braços se alongam de uma maneira que faz o
tronco parecer pequeno demais para os anexos que
carrega.” (Modos Inacabados de Morrer, André Timm)
Foco interno – 3 pessoa
• Entra na cena apenas aquilo que é focado por
sua sensibilidade e que se expressa pelos
verbos “perceber”, “sentir-se”, “notou”, etc.
• Primeira pessoa oculta.
• Não desviar seu foco!
• Quem abre foco para um personagem, tem de
resolver a vida desse personagem depois, pois
é o que o leitor espera.
Na sala, sozinho, João desconfiava que a sua relação havia
terminado.
“Mauro, olha pra mim”, ele diz, buscando se manter
acordado depois da quinta dose de cachaça. João não
tirava os olhos de Mauro e percebia que o namorado nem
sequer o olhava mais. Mauro abanou a cabeça e o
ignorou. João percebeu que aquilo que eles tinham, seja
lá qual nome fosse, realmente havia chegado ao fim.

“Entra apenas aquilo que é focado por sua sensibilidade,


e que se expressa através da linguagem usada.”
• Escrever para um câmera. Onde ela tá
posicionada?
• Conflito fica mais forte sob a perspectiva de só
um personagem (seja 1, 2 ou 3 pessoa)
• O outro lado do conflito nem sempre é útil
mostrar.
• Lembre-se: Dois focos narrativos não
funcionaria em “Dom Casmurro”, mas
funcionou em “O Colecionador”.
Foco externo
• Sempre em 3 pessoa.
• Onisciente: sabe de tudo.
• “Os Maias”, Eça de Queiroz.
• Toda informação deve articular algo com o
conflito, construir personagem, dar ambiência
a uma cena, ou não serve.
“Os meninos brincavam durante as manhãs
todos os dias, sempre no mesmo lugar, a praça
em frente à pequena Igreja da cidade, que
sempre estava cheia, pois todos eram muito
religiosos e não gostavam de nada que fugisse
às regras. Para eles, a cidade inteira deveria
fazer sempre as mesmas coisas.
Todos os moradores que passavam por ali
sempre se perguntavam onde estariam os
pais daquelas crianças, e por qual motivo eles
deixavam que seus filhos brincassem por tanto
tempo e não os mandassem para a escola ou à
Igreja.”
Qual o foco narrativo da nossa
história?
Espaço
Espaço
• Não sou bom com espaços: ao invés de
descrever o bar, falar do músico tocando
Legião Urbana ou Aviões do Forró.
• “Pssica”, Edyr Augusto.
• Cenário simboliza uma relação desgastada.
• Noir, policial, crime. Gotham City.
Espaço
• Personagem precisa interagir com o espaço.
Não só descreva-os, mas mostre o
personagem inserido na cena. Olhando,
tocando, vivenciando o local.
Criar composição no espaço: Akira
Kurosawa
Espaço
• E a pergunta de sempre: esse espaço está
servindo pra avançar narrativa, intensificar
conflito + criar atmosfera ou construir
personagem? Se não, pra que tá ali?
• Esse espaço se encaixa com o que eu quero
narrar?
Espaço + estado emocional do
personagem
• Utilizando o espaço com intenções descritivas
de estados emocionais ou morais, eles
cooptam o leitor sem que seja preciso explicar
as intenções dos personagens.
Oposto
• O oposto do que tá sentindo o personagem, o
espaço pode causar esse efeito paradoxal e
emocional também (Lima Barreto, Amélie
Nothomb)

• O leitor pesca, você não entrega o peixe.


Espaço e enredo
• Anatomia de um local e o que ele causa no
protagonista.

• O espaço também pode empurrar a história


pra frente: “Apartamento”, de Maria Valéria
Rezende.

• Espaço como descoberta (crianças, policial:


cena do crime, terror)
Sensorial
• Sentir na pele: Juliana Leite.
• Ana Paula Maia: livros com gosto de ferrugem
e cheiro de barro.
• Espaço-sentimento.
Enterre seus mortos, Ana Paula Maia
“O imenso moedor está triturando animais
mortos recolhidos nas estradas. Tanto o barulho
do motor quanto o dos ossos sendo esmagados
ricocheteiam nas paredes altas do galpão. A
mistura de som e fedor enfurece os sentidos.
Edgar Wilson deixa o carrinho no lugar
delimitado por um retângulo pintado no chão e
sobe os degraus de uma escadinha de
alumínio...”
Espaço e tempo
• O tempo pode mostrar outra face de um
personagem (ver detalhes que não se via
antes)
• Percepção subjetiva do tempo: personagens
tem percepções diferentes do mesmo tempo.
• Tempo vago, inexistente ou preciso, “oficial”.
Tempo
• Tempo cronológico: Decorrer normal da
história de acordo com o relógio, calendário,
estações do ano – presente e futuro. Sempre
pra frente.
• Tempo psicológico: Tempo interno do
personagem, exposto através de
pensamentos, sonhos, ou flashbacks. Pode
voltar no tempo.
Elipse
• Tempo de escrita, de narrativa, percebido pelo
personagem, de leitura.
• Cuidado pra não errar no tempo: personagem
pedir algo pro garçom e o pedido chegar
muito rápido.
• Como usar a elipse: “Trajetórias”, Mariana
Travacio.
• Flashback-flashforward.
Espaços!
• Descreva um personagem chegando em um
espaço.
Estranhamento
• “Kholstomer”, do Liev Tolstói. Rubem Fonseca e os
tecnocratas. Kafka e sua visão da realidade. Parasita.

• “A arte como processo”, Viktor Chklovski , 1917.


O objetivo da arte é superar o hábito e representar
objetos familiares de um modo estranho.

• O livro faz parte da bibliografia do meu mestrado em


escrita criativa - o capítulo foi traduzido pro espanhol
como “desfamiliarización”.
“A finalidade da arte é dar uma sensação do objeto como
visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o
processo de singularização ostranenie - (estranhamento)
dos objetos e o processo que consiste em obscurecer a
forma, em aumentar a dificuldade e a duração da
percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si e
deve ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir
do objeto, aquilo que já se ‘tornou’ não interessa à arte.”
“A história que escolhi contar começa quase como um sonho,
pois foi como um sonho ruim que a mãe a descobriu na sala
como um canteiro de flores no primeiro dia de uma primavera
terrível. Ao abrir a porta, a mulher deparou-se com ela, feitio de
rosa que, fervendo num jorro, abria pétalas de um vermelho
violento se espalhando nos vãos do piso, se esvaindo por um
chão para sempre lavado e relavado, e ainda lavado e relavado,
mas que nunca deixaria de exibir esse contorno de flor, esse
sinal.
A fragrância doce e suave que as rosas arrancam da terra é feita
de sangue, saiba. Sangue de gente, sangue de animais, sangue
dos deuses vencidos. E, talvez por isso, a mãe tenha sentido
como nauseante o perfume que pairava em redor do corpo
estendido e saqueado da filha morta.”

(“Nossa Teresa – vida e morte de uma santa suicida”, Micheliny


Verunschk.)
“Intimidade”, conto do Daniel Galera.
• O escritor aprende a gramática, a destrói, e cria
uma própria.
• Escrever não é fazer redação.
• Furar a linguagem e ver o que tem do outro
lado.
• Marcelino Freire: “Escritor não escreve por
pontuação, escreve por pulsação”.
• José Saramago, Elvira Vigna, Conceição Evaristo.
Resumo
• Personagem e suas questões
• Enredo e estrutura da narrativa (linear ou não-linear)
• Conflito
• Foco narrativo
• Espaço e tempo
• Estilo.
• Um núcleo de conflito: conto, novela.
• O romance trabalha com um tema, em torno do qual
giram vários núcleos de conflitos, cada um com seus
personagens.
Dicas
• “Ela transformava sonhos em realidade” = “Ela
transformava nuvens em pedras”
• Apesar do fato de que = Embora
• A questão é se = se
• A razão pela qual é = Porque
• Ele é um homem que = Ele
• Este é um assunto que = Este assunto
• Não há dúvida que = Sem dúvida
• O fato de que ele não tenha tido sucesso = O fracasso dele
• Chamo a sua atenção para o fato de que = Lembro que
• Fazer uma conexão com = Conectar
• (A falta de concisão pode tornar um texto confuso)
Sinopse
• Escreva a sinopse da sua história. É bom para
identificar o conflito e o drama do
protagonista.
Crime e Castigo
“A ação se passa no tempo atual. Um estudante,
expulso da universidade, pequeno-burguês de
origem, vive na extrema pobreza e, por
leviandade, por perturbação do juízo, acaba se
rendendo a certas ideias estranhas e
“inacabadas”, que estão no ar, e decide sair, de
uma vez por todas, de sua situação sórdida.
Resolve matar uma velha que empresta dinheiro
a juros.”
Não tenham medo de cortar seus
textos!
“Escreva os
livros que você
deseja ler.”
Melhore esse texto
“Ele era um moço feio e ela ficou triste com os
sentimentos na alma dele ao ver o corpo do pai
dele horrivelmente esmagado pela locomotiva
vermelha e cruel assassina. Aí de tão triste ficou
chorando lágrimas de sangue enquanto a tarde
morria no horizonte escuro de nuvens feias e
negras. Então, sentado com a bunda na cadeira,
levantou-se correndo e deu um beijo na testa de
sua mãe.”
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