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As Artes e As Mulheres

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ALAN DE OLIVEIRA MIRANDA - 12605125 - NOTURNO

(alan.olv.miranda@usp.br)

FLF0219 ESTETICA II

PROF. RICARDO NASCIMENTO FABBRINI

Dissertação Argumentativa:

As artes e as mulheres

Um comentário acerca da ideia de Contingência e Essência na modernidade segundo o


pensamento de Baudelaire

São Paulo

2024
Para meu trabalho de final de semestre, optarei pelo primeiro tema pela sua
abrangência para além das artes, também então para o pensamento de um período
como um todo; pelo seu diálogo, por exemplo, com a fenomenologia posterior
(pensando em Husserl) e, consequentemente com o Cogito que antecede
Baudelaire (pensando obviamente em Descartes). Entretanto, ao abordar o tema,
pretendo ir além apenas do excerto oferecido, promovendo o diálogo do texto
integral (IV – A Modernidade) com o que pretendo elaborar nesta dissertação. Com
este planejamento em mente, tentarei desmembrar o texto em pequenos temas
associados a diferentes filósofos e artistas do período moderno visando assim, de
certa forma, fotografias que justifiquem tal associação; a visão deste estudante em
relação ao gesto de cada filósofo e artista citado na composição da modernidade
vista por Baudelaire.

I – Descartes e a gênese do Grande Deserto de Homens

Quando, na filosofia, a existência do ser fora atribuída ao pensar, deu-se


início ao Grande Deserto de Homens: minha existência se deve a mim mesmo e
apreendo isso de forma tão nítida e certa que não há Deus que, sendo honesto ou
que vise pela contingência me enganar, tire isso de mim. Tais deuses, tais
referências, tais mestres, são inclusive, nisto que é o que decerto pertence a mim: o
pensar. Dessa forma, por pensar, sei que existo. Quanto ao resto, posso afirmar de
forma segura que funciona ou não. Daí o primeiro gesto que percebo na filosofia em
busca da extração do eterno no transitório: a separação entre corpo e alma proposta
por Descartes que atribuiu ao indivíduo ser, de tudo que não seja a si próprio e de
todas as formas possíveis, dotado de extrair, de manipular separando o essencial
do contingente, de aproximar-se da perfeição, do belo, ou (em dialeto Hegeliano,
próximo filosofo por este estudante a ser fotografado) do entendimento. A
contingência, verdadeira ou não, pertence ao indivíduo, mas essa incerteza sobre a
veracidade desta contingência e sobre seu funcionamento tornam o indivíduo dono
de algo que não está sob seu controle necessariamente. O reconhecimento da
própria imperfeição dos seus saberes, da não compreensão do que o cerca e da
busca por se aproximar do perfeito, de compreender o que é corpo e o que é alma,
o que é o mundo e o que sou eu é o que caracteriza o solitário e ambicioso homem
descrito por Baudelaire, parido por Descartes.
II – Hegel e as duas partes da arte

A modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente, é a


metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável.
(BAUDELAIRE p.859 )

Uma vez dado o Cogito e, portanto, tendo o homem moderno sido


inaugurado, estabelecido o pensamento do homem como a chancela de seu existir,
por pressuposto, o externo ao homem passa a ser alvo das faculdades do pensar do
indivíduo, assim como em seu próprio interior, passa agora a investigar as
variedades de faculdades do pensar e suas capacidades. Um recuo histórico, feito
por Hegel, permitiu ao filósofo observar que a relação entre ideia e matéria fora de
período em período se alterando em oposição proporcional de uma arte mais
dependente da matéria para uma arte mais próxima do espírito. Do privilégio
arquitetônico dos antigos, passando pela pintura clássica e chegando à força
espiritual presente na poesia dos românticos, o espírito, nômade, mutante, fora se
desprendendo da necessidade dos objetos da natureza, sedentária e estática, para
expressar-se. Sustenta-se dessa forma o Cogito como axioma que enaltece o
homem sobre o natural, o ser como verdadeiro e o mundo como dado à sua
disposição. Mundo estático, homem mutante: o belo artístico sobre o belo natural,
a poesia como superior à arquitetura enquanto forma de manifestar a liberdade do
espírito sobre a coisa e o desprendimento da arte da coisa religiosa e da coisa
filosófica, sendo capaz de manifestar de forma única a verdade através do aparente
indicam o homem como portador de uma verdade, ainda que desconhecida por si
mesmo, com relação ao que lhe é externo. Na modernidade então, o artista busca o
eterno de forma plenamente autônoma, manifesta em si e não (ou quase
imperceptivelmente) na linguagem, o imutável ou sua busca; a poesia, através da
linguagem, em contato com um resquício de materialidade antecedente à
modernidade, decai finalmente para o surgimento do artista moderno e de uma nova
forma privilegiada de arte que tem no artista, no sujeito em si, portanto, a arte
devidamente expressa. Independência para expressar-se, entretanto, não atribuiu
ao homem e sua arte independência plena da natureza para manifestar-se: da
arquitetura à poesia, a arte segue como ideia manifesta na matéria.
III – Enfim, Baudelaire e Constantin

Quero falar hoje de um homem singular, originalidade tão


poderosa e tão decidida que se basta a si própria e não
busca sequer a aprovação de outrem. Nenhum de seus
desenhos é assinado, se chamarmos assinatura essas
poucas letras, passíveis de falsificação, que representam um
nome, e que tantos apõem faustosamente embaixo de seus
croquis mais insignificantes. Porém, todas as suas obras são
assinadas com sua alma resplandecente, e os amadores que
as viram e apreciaram as reconhecerão sem dificuldade na
descrição que delas pretendo fazer. Enamorado pela
multidão e pelo incógnito, C.G leva a originalidade à
modéstia. (BAUDELAIRE p.854)

Do homem que descobriu seu pensamento, que percebeu pela arte sua
relação com o sensível, mas não se adequa à realidade, ao ato físico, à empiria
senão à sua maneira, que não vê na execução a perfeição de seu pensamento e,
ainda assim, exclama em sua manifestação artística, Baudelaire, símbolo da
decadência da poesia romântica, vê em Constantin Guys o modelo perfeito, a
síntese do projeto de artista moderno expressa em um homem. “Liberto” da escola
antiga de pintura que Baudelaire considera útil “apenas para se aprender a pintar”,
mas supérflua para a compreensão da beleza moderna, por pressuposto do
costume moderno, Constantin Guys é apontado como alguém que se dedica em
tornar a Modernidade digna de tornar-se Antiguidade enquanto momento artístico.
Ora, se mantivermos a estrutura Hegeliana de privilégio artístico por período,
chegamos na Modernidade em um momento em que a arte se desprende de todo
momento anterior em suas demandas, técnicas e paradigmas; a própria poesia de
Baudelaire contrasta com a poesia romântica que a antecede; naturalmente para o
poeta, um pintor que não pincela segundo a técnica antiga é quem terá em suas
mãos a pincelada moderna, e seria tal qual sua poesia em rompimento com a
metáfora romântica, demarcando o status da autenticidade, necessária para essa
dignificação da Modernidade. O pensamento manifestado em arte por Guys e por
Baudelaire é o que lhes atribui a existência, o caos da relação entre o que pensam e
o que manifestam de fato presente em suas artes exemplificam a cognição do
homem moderno aqui traçado por Descartes e Hegel: Pensamentos e ações
inconstantes e diversos manifestados em um mundo estático, existências incapazes
de se manifestarem plenamente em e sobre um sensível inerte, austero e
implacável em ocultar-se da consciência.
IV – Pitaco filosófico deste estudante

Considerando então Descartes e Hegel como pilares iniciais da minha


abordagem com relação ao tema, pretendo arriscar aqui algo que talvez transcenda
a proposta do trabalho, mas que será importante como generalização conceitual em
direção ao pontual temático. Descartes fala em divisão de corpo e alma, Hegel
aponta para artes privilegiadas em cada momento histórico e estabelece uma
relação em que a arte privilegiada vai do antigo ao pré moderno ou romântico, da
arquitetura à música, do mais dependente da materialidade ao menos dependente
da materialidade. Baudelaire aponta para a modernidade como o contingente, o
efêmero, o mutável. Com isso, o que quero defender aqui é o seguinte: uma vez que
o homem não tenha conseguido definir algo de essencial na investigação de sua
própria consciência, o homem é então, enquanto consciência, pura contingência; ao
passo que a materialidade, o mundo portanto, o exterior ao homem enquanto
condição para sua existência, será defendido aqui como o eterno e imutável de
Baudelaire e o corpo em Descartes, o essencial em Husserl, a materialidade, o
objeto em Hegel. Os períodos históricos se transformaram e, através da ferramenta
histórica foram devidamente catalogados, a consciência humana muta
constantemente; ao passo que a materialidade em que se manifesta a consciência
humana, não. Homem mutante, mundo estático. O homem é contingente e o
mundo é a essência, a consciência é alma, a materialidade, o que é externo à
consciência, incluindo o corpo humano, é corpo. Com isso, assumo uma certa
subversão do conceito cartesiano de corpo e alma, defendendo que a alma do
homem está no mundo e o mundo enquanto corpo pouco faz pela alma do homem
além de atribuir-lhe a existência.

As pinturas de Guys são exaltadas por Baudelaire por tudo o que há de


contingente manifestado: a forma inusitada de pincelar, o respeito ao presente
histórico, o desnudamento do cotidiano da Paris do séc XIX. Ao menos, são os
primeiros e mais evidentes comentários a respeito do pintor feitos pelo crítico e
poeta. Guys seria uma figura imersa de tudo, ou de muito do que representaria a
modernidade quando manifesta-se artisticamente. Onde estaria então o eterno e
imutável na obra do pintor?
V – Pitaco artístico deste estudante: três pintores, um cancionista e as
mulheres.

Defendendo então a consciência como a fonte do contingente e a natureza, o


mundo, a materialidade, como o eterno e imutável, como o essencial considerando
então, inclusive, o corpo humano como parte da materialidade, do eterno e imutável,
portanto, irei recorrer a três obras de três diferentes artistas a fim de provar que o
eterno e imutável que Baudelaire aponta como a outra metade da arte converge
com esta minha visão com relação à esta dualidade que vem de Descartes e
transcende ao próprio Baudelaire no que diz respeito ao tempo histórico, sendo
discutida por pensadores posteriores como Husserl e Merleau-Ponty. Serão as
obras: Francesca da Rimini e Paolo Malatesta de Ingres, Na Casa do Padre
Lathuille de Manet e Bazar do Prazer de Guys. Três movimentos artísticos
diferentes, três pinturas que narram uma faceta do imutável que envolve homem,
sua coisa natural, que transcende sua consciência, seu instinto animal e a mulher
como o centro desse comportamento primordial. Um resumo do que pretendo com
este ensaio pode ser observado na canção Mulher nova, bonita e carinhosa de
Otacílio Batista em parceria com o cantautor Zé Ramalho. Aqui, pequenas sínteses
históricas que vão do relato do Cavalo de Tróia à história de Virgulino Ferreira no
sertão brasileiro, colocam a mulher como a razão, o cerne do comportamento dos
homens:

Numa luta de gregos e troianos


Por Helena, a mulher de Menelau
Conta a história que um cavalo de pau
Terminava uma guerra de dez anos
Menelau, o maior dos espartanos
Venceu Páris, o grande sedutor
Humilhando a família de Heitor
Em defesa da honra caprichosa
Mulher nova bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor.

Alexandre, figura desumana


Fundador da famosa Alexandria
Conquistava na Grécia e destruía
Quase toda a população tebana
A beleza atrativa de Roxana
Dominava o maior conquistador
Tendo ela vencido, o vencedor
Entregou-se à pagã mais que formosa
Mulher nova bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor

A mulher tem na face dois brilhantes


Condutores fiéis do seu destino
Quem não ama o sorriso feminino
Desconhece a poesia de Cervantes
A bravura dos grandes navegantes
Enfrentando a procela em seu furor
Se não fosse a mulher mimosa flor
A história seria mentirosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor [...]

Virgulino Ferreira, o Lampião


Bandoleiro das selvas nordestinas
Sem temer a perigo nem ruínas
Foi o rei do cangaço no sertão
Mas um dia sentiu no coração
O feitiço atrativo do amor
A mulata da terra do condor
Dominava uma fera perigosa
Mulher nova, bonita e carinhosa
Faz o homem gemer sem sentir dor

Diferentes contingências, essencialmente o mesmo evento; assim podemos


classificar as três obras, exceto pelo caráter dos observadores presentes nas
próprias obras: o primeiro, irmão de Malatesta se opõe ao envolvimento do casal, o
segundo é neutro ao casal que se envolve e a terceira, na obra de Guys é uma das
quem eventualmente se envolvem, promovem o envolvimento. Notória é a presença
feminina como força motriz da história; o sexo, eterno e imutável sendo ora
obstruído, ora ignorado, ora promovido pela contingência.
Nas três obras portanto, podemos observar que a completude que demanda
Baudelaire manifesta de diversas formas a contingência tanto no que tange ao
retrato do período histórico de cada obra, mas também em suas técnicas: na obra
de Ingres, temos um exemplo do movimento neoclássico, pintura e temática que
refletem à pintura enquanto técnica e retrato histórico da coisa clássica, imagens
mais “materializadas”, mais sólidas com relação às outras duas obras, a
impressionista de Manet com cores mais e vívidas e pinceladas que, dinâmicas em
relação ao clássico, sugerem ao fruidor os personagens e o cenário em movimento
e a quase que completa efemeridade do personagem masculino na obra de Guys,
do qual só se retrata a parte de cima do corpo, como se o restante compusesse com
o também turvo cenário, refletindo também o caráter passageiro, casual, esporádico
do personagem em relação àquelas que compõem o que é orgânico, estático à vida,
aquelas mulheres naquelas funções, sempre estiveram presentes, seja naquele
cenário descrito por Guys, seja ao redor dos tempos e que, por isso, são retratadas
por inteiro. Em resumo, as técnicas trazidas pelos pintores nas três obras formariam
uma miniatura do movimento trazido por Hegel do mais concreto ao mais efêmero,
do mais material ao mais próximo do espírito do pintor quando vamos do
Neoclássico de Ingres, passamos pelo Impressionismo de Manet e chegamos ao
Realismo de Guys. Comparar os períodos históricos relatados também escancaram
a consciência como a parte contingente com relação ao essencial: alteram-se as
roupas, os cenários e os paradigmas, mas lá sempre estarão os amantes, lá sempre
estarão as mulheres.

Imagem à esquerda: Francesca da Rimini e Paolo Malatesta de Ingres

Imagem à direita: Na Casa do Padre Lathuille de Manet

Imagem abaixo: Bazar do Prazer de Guys

Referências
Wikiart.org - visual art encyclopedia. Disponível em: <https://www.wikiart.org/>.
Acesso em: 16 jul. 2024.

LETRAS.MUS.BR - Letras de músicas. Disponível em:


<https://www.letras.mus.br/>. Acesso em: 16 jul. 2024.

DESCARTES, RENÉ. Meditações Metafísicas. São Paulo: Martins Fontes, 2000.


BAUDELAIRE, CHARLES. O pintor da Vida Moderna In: Poesia e Prosa. Rio de
Janeiro, Nova Aguilar, 1995.

HEGEL, G.W.F Cursos de Estética I. São Paulo: Edusp 2001

____________ Cursos de Estética II. São Paulo: Edusp 2000

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