LAMBERT, Maria de Fátima - Habitar em Desenhos e Pinturas. Helena Almeida
LAMBERT, Maria de Fátima - Habitar em Desenhos e Pinturas. Helena Almeida
LAMBERT, Maria de Fátima - Habitar em Desenhos e Pinturas. Helena Almeida
O que transporta o conceito de habitar? Inmeras e cmplices acepes que se presentificam na obra de
Helena Almeida, realizada desde finais dos anos 60 e at presente data. Esta comunicao incidir
naqueles trabalhos que mais directamente externalizam as diferentes acepes, que seguidamente se
enunciam, sabendo embora que toda a sua vasta obra se desenvolve sob auspcios de habitar.
Uma primeira abordagem foi realizada por mim, em 2001, no mbito de um Congresso realizado na
Reitoria da Universidade de Coimbra, subordinado ao tema Natureza e Poltica. Posteriormente,
investiguei/olhei a obra da artista numa outra focagem que, todavia, se encontra relacionada com este
paradigma do habitar. Tratava-se de apreender as presencialidades da palavra, da escrita nas suas
fotografias e desenhos intervencionados e, tambm, nos vdeos produzidos. Assim se foi construindo uma
anlise e reflexo sobre uma pluralidade de produtos artsticos que infindvelcomo qualquer
investigao que incida sobre um autor to criativo quanto Helena Almeida.
Habitar, no seu sentido mais imediato, invoca um espao certo, um tempo para estar (que se
pretende seja determinado e longo), um indivduo que est, as condies de existncia, a
viabilidade de se apropriar de algo especfico, um domnio.
Habitar, implica por outro lado, um tempo para a compreenso, para a apropriao desse espao
em que algum se expande, se contrai; em que algum est, em que algum . Numa acepo
mais intimista, mais intrinsecamente analtica, habitar exige a pessoalidade individual em todos
os parmetros do humano e exige a autonomia da identidade nica e relacional.
Habitar possuir mais significado se for palco de relaes intersubjectivas, transversais e
expostas s condies abertas dos processos de vida.
A ocupao que o habitar sugere ou pressupe no somente de ordem da fisicalidade, da
materialidade e do pensamento. Habitar enreda acepes mltiplas do que ocupao,
cruzando-se a um outro conceito: o de durao. Durao da pessoa, durao do espao, durao
do tempo, enfim tudo exige durao, mesmo quando esta suceda a subterfgios de
instantaneidade, sendo precria, efmera e fugaz
Para habitar, convoca-se o corpo da pessoa; por sua vez, o corpo habitado quer espao prprio e, atravs
da sua ambio, realiza mltiplas encenaes: o corpo precisa de lugar para habitar, mesmo que num
primeiro momento, a situao se cumpra no habitar-se em si e por si mesmo.
Sente-me.1979
O primeiro local de habitar o corpo prprio manifesto e nico. Um habitar que se volta para dentro
de si. Um habitar que, ao estar voltado para dentro de si, deve contemplar os outros, abrang-los,
dialogar com os outros. Em termos de externalizao, o envolvimento societrio para habitar
convencionou-se em termos arquitecturais, edificado e consolidado. A partir da consciencializao
percepcional do corpo torna-se vivel a apropriao do espao em redor; percepo essa que engloba a
pluralidade dos sentidos, a convocao de todas as substncias pessoais.
O desenho.1999
Por analogia, as mos fotografadas: uma delas segurando a caneta que pode traar um infinito de linhas
(tem essa potencialidade que supe a vontade e deciso da artista para se concretizar); a outra segurando
a matria p que possui distintas significncias como se sabe associadas ao mundo da criao
plstica mas igualmente potencialidade da matricial potncia da humanidade.
As mos, os braos so partes constitutivas do corpo da artista. Esse corpo, enquanto unidade pessoal,
centra-se na sua permeabilidade cognitiva, afectiva, gensica; expande-se desde o seu ntimo resduo,
parte para o domnio, a vigilncia do espao, no que este significa ser extenso, altura, largura...
Os movimentos bsicos instituem a conscincia do local para reconhecimento e posse, interiorizados
pelo prprio, definindo-se assim a sua cumplicidade com a envolvncia abstracto-concreta do territrio.
Passei para a fotografia atravs do desenho. Foi o desenho dos fios (colagens
de fios de crina) que me obrigou necessidade de ser fotografada. Queria pegar
no fio com os dedos, para demonstrar que a linha no papel se tinha tornado
slida, se tinha libertado do papel, podia ser sentida com os dedos, entrava por
ns, pelas nossas casas, e s atravs das fotos isso podia ser exprimido e
representado.1
O desenho permite a transposio finamente localizada da manualidade fina, se quiser falar-se em
termos anatomo-fisiolgicos. O desenho, foi considerada por vrios tericos e artistas como a me das
artes. No caso portugus recordem-se duas figuras incontornveis: Francisco de Holanda e Almada
Negreiros. O primeiro, discpulo de Miguel ngelo, legou-nos no livro Da Pintura Antiga e em
Dilogos de Roma (menciono apenas as duas obras mais determinantes) extensas consideraes sobre
o desenho. Destaco algumas reflexes que considero corresponderem, ao analisar a ideia, aco e obra
de Helena Almeida.
"... o qual desenho, como digo, tem toda a sustancia e ossos da pintura, antes
a mesma pintura porque n'elle est ajuntado a idea ou inveno, a
proporo ou symetria, o decoro2 ou decencia, a graa e a venustidade, a
compartio e a fermosura, das quaes formada esta sciencia."3
1
Cf. Entrevista de Helena Almeida a Helena Vasconcelos in Storm Magazine - http://www.storm-
magazine.com/novodb/arqmais.php?id=411&sec=&secn= (17.maio.2009)
2
A concepo de decoro provm de Ccero e santo Agostinho, tendo sido igualmente tomada pelos rabes
Avicena e Algazel, que a tomaram provavelmente dos gregos: "La belleza o el decorum es la cualidad que posee
una cosa cuando es tal como debe ser." Em Ccero, o decoro aprecia-se sobretudo em relao medida justa,
sendo absolutamente necessrio no apenas num sentido moral no mbito artstico. qualidade daquilo
que est conforme com a necessidade de natureza, configurador da virtude interna. Cf. Edgar de Bruyne, La
Estetica de la Edad Media, pp.39-41
3
Francisco de Holanda, Da Pintura Antiga, Capitolo XVI "Em que consiste a fora da Pintura", p.99. As
qualidades que Holanda considerava serem indispensveis boa pintura eram: a inveno, a proporo e o
decoro. A definio de inveno desenvolve-se a partir da p.90 da op. cit.; a definio de proporo, a partir da p.
98, e finalmente, a defini de decoro, a partir da p.163. A acepo com que Francisco de Holanda toma o
desenho relativamente pintura, tem muito prximas afinidades posio de Leon Battista-Alberti manifestas no
tratado De Pictura .
O desenho era considerado por Holanda, como uma das realizaes mais difceis e rduas para o
homem: "...no ha hoje este dia debaxo das strellas cousa mais deficil e ardua que o desenhar."4
Arte profunda, a que maior engenho exigia, era, curiosamente, aquela de que se achava menos capaz,
dada a sua complexidade, reconhecendo-a como a mais presente e necessria em tudo no mundo. O
desenho, de forma simblica, o prprio homem quando os traos e as linhas do desenho que
configuram o corpo, encerram em si "o fim da arte porque a strimidade havia de cercar a si mesma e
acabar em modo que prometa haver da outra banda outra cousa, e que mostre tambm aquilo que se
esconde."5 A ideia que em Holanda configura a relevncia do desenho, quanto s potencialidades
intrnsecas que o constituem e pelas quais se expressa, surge com afinidade manifesta, quer em Alberti,
quer no prprio Leonardo da Vinci.6
Almada, ciente das exigncias do desenho, afirmava que quem dominasse, com mestria essa
linguagem, dominaria a sua condio de ser pessoal. Ncleo da argumentao relativa ao primado do
visual, Almada caracterizava o desenho como:
conformador de pensamento primitivo;
possuidor de sentido universal;
expresso da natureza infantil, pela via assumptria da intuio;
instituidor da conscincia pessoal;
fora intrnseca presente na vida de cada um e de todos os seres humanos.
O desenho, no significava apenas o conjunto dos traos mais ou menos simples, as linhas ou o grfico
que se prev signifiquem algo existente de ordem representativa; mediante a completude que lhe
atribuiu, quis legitimar a sua relevncia, sustentando-a em dois clebres aforismos, de autoria de dois
protagonistas da humanidade: Napoleo e Ingres. Almada citou a mxima napolenica, introduzindo-a
no texto como segue: "A clebre frase de Napoleo, dizendo: "vale mais um pequeno "croquis" do que
um longo relatrio" contm todo o sentido do desenho."7
O valor formativo do desenho, enquanto dom e exerccio educacional, actuou em consentaneidade
manifesta, e por transposio, ao trabalho elaborativo do entendimento humano, indutor de
conhecimento. A afinidade ao entendimento reconhece-se pela forma como o prprio desenho se
desenvolve: rapidez, clareza, simplicidade, ou seja, as qualidades que reconhece no desenho. O
desenho impe disciplina, condio nica que garante disciplina, assentimento e xito: obriga a
4
Francisco de Holanda, Da Pintura Antiga, Capitolo XVI "Em que consiste a fora da Pintura", p.100
5
"E em tanto ponho o desenho, que me atreverei a mostrar como tudo o que se faz em este mundo desenhar; e
fallando com os pimtores, tambem me atrevo a provar-lhes e fazer-lhes bom que val mais um s risco ou borro
dado pola mestria de um valente desenhador, que no ja uma pintura muito limpa e lisa e dourada e chea de
muitas personagens feitas de incerta pintura e sem a gravidade do desenho." Cf. Francisco de Holanda, op. cit.,
pp.100-101
6
Alberti desenvolveu consideraes a propsito no De Pictura , cf. pp.110 a 114, quando se referiu importncia
da pintura, para o exerccio das outras artes e indicando-lhe qualidades que tm a ver com o domnio do desenho.
Mas seria ao pensamento de Leonardo que mais se aproximava, segundo considera Angel Gonzlez Garcia nas
notas verso portuguesa: "Pero Holanda parece ms cerca de una concepcin radical de la universalidad del
dibujo, tal como la encontramos en Leonardo, Della differencia et anchora similitudine, che ha la pittura co' la
poesi, Codex Urbinas Latinus 1270, fol. 12 v. "Il disegno, insegna allo architettore fare, chel suo edifitio si renda
grato al'occhio, questa alli componitori di diversi vasi, questa alli orefici, tessitori, recamatori; questa ha trovato
li carratteri, con li quali si esprime li diversi linguaggi, questa ha datto le caratte alli aritmetici, questa ha
insegnato la figuratione alla geometria, questa insegna alli prospettivi et astrologi et alli machinatori e ingegneri."
Cf. Francisco de Holanda, op. cit., p.101
7
"O Desenho", Ensaios, p.26. Ren Huyghe, em Dilogo com o Visual, cita igualmente esta frase de Napoleo,
sustentando uma inteno prxima da ideia manifestada por Almada, referindo-se ao primado das imagens
visuais como factor fundamental para a comunicao, abordando o assunto em termos histricos, e situando a
nvel medivico comunicao impressa , a maior utilizao, precisamente, das imagens fotogrficas a
acompanharem as notcias: "Quanto ao caminho percorrido, quando no comeo do sculo XX, um quotidiano, o
Excelso, lhe inverteu a proporo e lhe consagrou o essencial das suas pginas, invocando a frase de Napoleo, o
grande precursor: "O mais pequeno esboo diz-me mais do que um extenso relatrio!". Afirmava-se, com estas
palavras, a preeminncia da vista e desvelava-se a sua principal causa: a exigncia da rapidez." Cf., op. cit., p.22
aceitao da obedincia, um tipo de obedincia que significa lealdade para consigo mesmo, "para com
os nossos sentidos, rgos do entendimento."8
E Helena Almeida? E o desenho em Helena Almeida, portanto? O seu escopo dirigiu-a para alm das
fronteiras do que mais convencionalmente se designa por desenho. Ou seja, ultrapassou os limites,
os contornos, tambm os procedimentos e as estratgias mais estipulativos do desenho. Tomou o
desenho como espao a habitar, habitando-o pois e muito, atravs de diferentes desempenhos
conceptuais e consubstancializados em obras. Encarou o desenho enquanto espao susceptvel de ser
exploratrio, flexibilizado e restabelecidoRecorrendo s palavras da artista:
Creio que o que me fez sair do suporte, atravs de volumes, fios e de muitas outras
formas, foi sempre uma grande insatisfao em relao aos problemas do espao.
Quer enfrentando-os, quer negando-os, eles tm sido a verdadeira constante de todos
os meus trabalhos. Creio estar perto da verdade se disser que pinto a pintura e
desenho o desenho. No se expem, mas expem, podendo assim denunciar com
mais nfase o carcter ideolgico da arte, aceitando-o para melhor o negar.
Agora e atravs destas fotografias com desenhos a mesma negao feita de vrias
maneiras.
O que aqui exponho no so as impresses ou as marcas de artista, mas sim a
representao da renncia a essa espcie de registos.
Mas essa renncia reencontrar outro espao e cair noutra armadilha potica. Pois ao
colocar-me como artista no espao real e ao espectador no espao virtual, ele troca de
lugar com o suporte, tornando-se ele prprio espao imaginrio.
Ser uma irrealidade. Ser um apelo possesso de alegrias ntimas. Ser o repouso
desenhado. Viver o interior quente duma linha curva. Reencontrar a paz num desenho
habitado. Helena Almeida, 1976.
8
"O Desenho", Ensaios, p.27
- Em termos estticos permite uma vivencialidade, uma experienciao, por parte, quer de um eu que
concebe, quer de todos aqueles que, disponveis, permeveis, recebem.
Habitar vai trazer-nos algumas divagaes sobre a conscincia pessoal e societria do corpo como
residente privilegiado. O corpo na sua totalidade pessoal, individualizada e sozinho com outrem em
situaes e condicionalismos analgicos.
Os projectos desenvolvidos nos anos 70 apresentados na Galeria Mdulo, Porto, 1977, Pintura
habitada; desenho habitado; alguns estudos para dois espaos, so demonstrativos das
potencialidades relacionais entre os modos de arte e a vida pessoal, susceptveis de ganharem
realizao em suportes matricos, atravs da aplicao/interveno de meios tcnicos sobre estes.
9
Helena Almeida citada por Jos Ernesto de Sousa, Ser moderno...hoje, Helena Almeida.
10
Ernesto de Sousa, Helena Almeida, 1982.
11
Jos Ernesto de Sousa, Ser moderno...em Portugal, Helena Almeida e o vazio habitado.
A identidade pessoal da autora a matriz de toda esta experimentao que assumiu propores
notveis de assuno antropolgica, sem se exaurir numa mera seduo egica ou numa encenao
maneirista, isenta de contedo existencialista.
Na sequncia do ocorrido com outros autores na arte contempornea, a tridimensionalidade exercida
na obra bidimensionalizadora, vivenciada com valor experimental no plano afectivo, tomada a
artista como sujeito constitutivo de explorao artstica como modelo e como substncia para a
fotografia.
O seu trabalho encontra pontos de associao, em termos de procedimentos afins, com Cindy Sherman
que encena a sua incorporao nas figuras simblicas revisitadas. No se trata da fabricao de auto-
retratos. Trata-se da presentificao de um corpo prprio que experimenta a pintura, o desenho, a
tridimensionalidade; que nelas mergulha e nelas se institui obra. A ttulo de confronto: enquanto que o
corpo prprio de Cindy Sherman se impregna da assuno esttica autobiogrfica, no caso de Helena
Almeida, o corpo revela-se, no seu mago, tema e meio artstico: local de encenaes, elaborao
compsita que visa concretizar-se como produto tridimensional para registo e pesquisa imagtica de
ordem conceptual - Body Art e performance.
Helena Almeida fixa-nos na dimenso esttica, potencializando, de modo inultrapassvel, a extenso e
a emergncia ntica, manipulando a visibilidade condensada do corpo, tornando-o pertena do
territrio que ele mesmo delimita e absorve em termos psico-cognitivos pela dimenso esttica como
privilgio; torna-o parte constitutiva, pelo acto e passividade interiorizadora de habitar. A encenao
suporte, sustenta profundamente a percepo do possvel e do impossvel na realidade, lembrando-nos
Novalis que toda a realidade tem um antes e um depois, sendo ambos possibilidade, mas existindo (na
realidade) em simultneo. Helena Almeida estabelece a viabilidade do pensamento, aco e obra do
artista; explicita a legitimidade artstica da argumentao filosfica que lhe subjaz, conciliando a
anterioridade e a prospectividade num tempo, num espao, numa concepo esteticizante do corpo
real, a que se agrega as restantes acepes imaginrio, idealizado e simblico.
Por outro lado, numa incidncia plstica, Helena Almeida questiona a condio matrica, procede
desmontagem conceptual da pintura de cavalete. Contrape, argumenta atravs da impositividade
construtiva de cenografias onde molduras, telas, grades e cores se desmancham e recompem ou onde
o representvel entra e sai volumetricamente do espao da pintura quebrando as fronteiras
disciplinares. Assim, seguiu um percurso dos mais significativos: uso da fotografia (pintura e objectos)
e do seu prprio corpo.
Biombo.1987
Rodap.1988
Helena Almeida debrua-se, portanto, sobre o stio de habitao da prpria pintura; o modo de habitar
e de ser habitado; interroga o que habitado pela pintura, o que habitado pelo desenho, o que
habitado pelo objectual; questiona o que habitado e o que quem habita:
Habitar: pinturas, objectos; Ser habitado: pinturas, objectos simultaneamente.
Corrimo.1988
Frisos.1987
Desconstruindo o espao representativo, desestruturando-o, f-lo transbordar para o espao exterior,
estabelecendo-o numa heterotipia, num alm-representao, como se dele colhesse uma espcie de
energia essencial que fazia desaparecer as fronteiras que tradicionalmente os dividem. O
desdobramento pode significar a simetria Frisos. Na pintura e, depois, na fotografia, a composio
em reflexo e duplicao, de referncia especular, um recurso, procedimento esttico de
potencialidades extremas. O entorno da figura da artista vincado pela presencialidade das cadeiras e
demais peas de mobilirio, encenando uma coreografia de vocao bauschiana e onde domina o
esttico, onde o congelamento da identidade se confunde com um exerccio de gestalt
A ordem esttica da obra habitada realizava-se na condio de um habitar exercido pelo eu, expresso
na espessura da pequena percepo, tornada a pele em espessura de papel ou em espessura de tela,
trespassada, por exemplo, pelo arame, pela tinta azul ou vermelha. Habitar interna e externamente:
dentro de si, para fora de si contedo e continente so os seus dois termos.
12
As imagens interiores apareceram-me sempre to directas e transbordantes que era como se eu estivesse
virada do avesso e elas alastrassem como um borro de tinta na gua, rarefazendo-a sem que eu pudesse evitar
que estas imagens fossem o interior destas imagens, que estes trabalhos fossem a intimidade destes trabalhos.
Helena Almeida, 1982.
para fora do quadro: algumas das obras desta poca so pinturas tridimensionais, em que a tela aparece
com prolongamentos figurais braos, tronco e pernas, por exemplo, em tecido enchido como se se
tratasse de o corpo sem cabea de um boneco azul gigante de 1970.
Da objectualidade passou instalao, de cariz cenogrfico e o
quadro remanescente foi antropoformizado. A acentuao desta
antropomorfizao foi assumida pelo corpo da prpria pintora.13
a afirmao subversiva do corpo (conceptualizado tambm) como vestgio, presena ou marca que se
institui em presentificao versus representao atravs de mise-en-scne(s) elaboradas, centradas na
auto-substancializao tendente definio do conceito de obra de arte complexas, quer quando usa o
suporte fotogrfico, quer nas instalaes desenvolvidas a partir dos elementos retirados desses mesmos
trabalhos de fotografia. Aproximamo-nos do posicionamento esttico da arte conceptual em sentido
beuysiano, nomeadamente, no respeitante sua atribuio de valor escultrico implcito e nocional
vivo.
A obra actual de Helena Almeida , de certo modo, um exorcismo, a prtica
esttica de uma teologia negativa: pela exaltao da conscincia de si. (...)
Assim, desde 1980/81, Helena Almeida passa a utilizar o negro como
exorcismo de catstrofe, do luto. Como conquista da liberdade, da alegria
13
Rui Mrio Gonalves, Arte portuguesa 1992, p.153
14
Parece oportuno evocar a proximidade da ligao esttica - como que uma espcie de celebrao - a tant
Donns, a derradeira obra-instalao conhecida apenas em 1968, de Marcel Duchamp. Esta ltima obra do
iconoclasta francs, tendo vindo a ser realizada ao longo de vinte anos, s se torna pblica contudo, por desejo
expresso do autor, aps a sua morte. No sendo de interesse questionar o facto da autora pretender ou no referir-
se a esta obra, parece-nos ser legtimo aproximar-se o valor conceptual e irnico patente em ambas.
para alm da morte-do-corpo. Mas o negro ainda exterior, imprevisto e
indeterminado. (...)
Trata-se efectivamente de atingir o Nada, mas sempre como o entende Hegel:
a difcil liberdade completa da conscincia de si, atingvel apenas passo a
passo (...) rito de passagem a rito de passagem. (...) Passagem [a] um
inatacvel refgio da liberdade.
O NADA: EXORCISMO DA MORTE, isto : DA SOLIDO.15
Manchas de pintura: azul, vermelho, branco; formas-fundo em p/b.
As fotografias so sempre em p/b, sendo intervencionadas atravs da insero de manchas das cores
anteriormente referidas com ntida preponderncia do azul que, nalguns casos, como antes se pde
constatar, progressivamente se apropriam do espao onde figura e fundo vivem, aniquilando-
asquaseparadoxalmente servindo-as, na medida em que lhes impe uma convico, as torna
irrefutveis.
Nas fotografias sensibilizadas, o preto adquire uma materialidade, confere uma volumetria que
expande os contornos das formas fsicas efectivas absorvendo o espao que as contm.
Da cenografia, pela encenao, supondo a direco de actores (que si-mesma) Helena Almeida
impe uma assuno de identidade, de singularidade que reflecte todavia as grandes problemticas da
contemporaneidade mergulhando em paradigmas que so partilhados com outros grandes criadores.
Sabe-se que a cor seria um fenmeno natural elementar para o sentido visual, manifestando-se
como todos os outros, pela separao e contrastes, por mistura e reunio, por intensificao e
neutralizao, por comunicao e repartio
A classificao das cores, estipulada por Goethe, poder-se-ia entender do seguinte modo, por aplicao
fotografia intervencionada de Helena Almeida:
1. Cores fisiolgicas: os pretextos e disponibilidades internas, mesmo inconscientes para
utilizao/projeco ulterior e escolha cromtica da pintura;
2. Cores fsicas: a fluncia da transposio breve das intuies da realidade circundante
Umwelt percepcionada na figura/eu e lugar/espao;
3. Cores qumicas: com elas que H.A. trabalha, aplicando-as, inventando-as, garantindo-
lhes qualidade pulstil, e tambm tctil, para l da visibilidade.
A cor desenha irregularmente, delimitando zonas de descontinuidade do
real; ()16
Uma cor isolada suscita na viso, por uma impresso especfica, uma
actividade que tende a reconstituir a totalidade.
s cores atribuem-se capacidades indutoras de agregao e composio; propiciam estmulos psico-
percepcionais e promovem sensibilidades estticas profundas, consoante so direccionadas pela sua
essncia e densidade especficas. As cores tendem, segundo Brusatin, para a dimenso do tempo que as
converte ou destri; exprimem funes vitais, sendo uma espcie de respirao, provocando
movimentos imperceptveis ou ntidos que condicionam, pois, certas reflexes ou interpretaes de
teor esttico e filosfico acrescente-seAs cores possuem uma certa obscuridade mesmo quando so
luminosas; supe uma certa imobilidade relativamente aos objectos de que se apossam ou mesmo
quando so apenas momentos de passagem sobre figuras, zonas/momentos de espao que sabem
conslidar, tornar fixos. So, pois, promotoras da estabilidade contemplativa que adensa o auto-
conhecimento. Igualmente, se assim, se disponibilizar, endeream para uma fugacidade estacionada
Na impossibilidade de se analisarem as mltiplas acepes simblicas das cores referidas, foco-me: o
azul a cor masculina e uraniana que se contrape ao vermelho, cor feminina e ctnica.17
15
Ernesto de Sousa, Helena Almeida, 1982.
16
Manlio Brusatin, Histoire ds Couleurs, Paris, Flammarion, 1986, p.26
17
Cf. Entrevista de Helena Almeida a Helena a Vasconcelos in Storm Magazine: De facto s usei essas duas cores.
A razo porque foi absolutamente necessrio. Tinha de as introduzir e s podiam ser essas o azul relacionado
com o espao, o vermelho com o peso e o luxo. No precisei de outras, pelo menos at agora. http://www.storm-
magazine.com/novodb/arqmais.php?id=411&sec=&secn= (17.maio.2009)
O azul na Capela Scrovegni de Giotto em Pdua possui uma semntica e uma pragmtica distinta do
azul nas iluminuras do Riche livre dheures du Duc de Berry , quanto a dimenso de pintura/campo em
Mark Rothko, a compulsividade em Yves Klein, a tragicidade flmica em Derek Jarman, a densidade
picturalizada do imaginal shakespereano reinventado por Peter Greenaway nos seus Livros de
Prspero e assim por diante
Fotografia/Pintura/Cor em H.A,, como se depreende um processo cognoscitivo, numa relao rica, de
sujeito/objecto/espectador-mundo, fundamentalmente convocando o entorno - Umwelt, dele se
apropriando atravs de uma densidade cromtica austera, demarcada e lcida na sua definio grfica
para o preenchimento ou fugacidade exigida.
Na vida quotidiana, estamos virtualmente rodeados por cores impuras.
E mais notvel ainda que no tenhamos formado um conceito de
cores puras.18
E, ainda:
E tambm no devemos esquecer que os nossos nomes das cores
caracterizam a impresso de uma superfcie sobre a qual vagueia o
nosso olhar. para isto que elas existem.19
Para concluir, com Wittgenstein: Trato dos conceitos de cor, como os conceitos de sensao. 20
Sente-me.1979.detalhe
Nos trabalhos realizados nos anos 90, o espao da encenao aparece preenchido com objectos, com
mesas, com cadeiras, numa aluso muito prxima s coreografias de Pina Bausch. Habitar significa
conviver com coisas, com objectos, interioriz-los, incorpor-los Dentro de mim (1998). Objectos
que, por si, so smbolos do humano. Dominam mesmo, por vezes, a habitao em que se est, acima
das pessoas. Isso acontece de forma idiossincrtica com Helena Almeida: as coisas so um
prolongamento de si-mesma, ela uma consequncia dos objectos que por si so possudos. Habitar
uma questo de posse e domnio; de seduo e abdicao. Ou habitar o vazio; o vazio que se torna
habitado.
Dentro de Mim, 2000
No entanto, posso dizer que so encenaes executadas num pequeno, ou por vezes
grande, enquadramento (no sentido quadro/teatro) em que apareo como uma fico.
Estas cenas so feitas como se fossem a narrativa duma cintilao,
aparecimento/desaparecimento, contada com o silncio da linguagem dos surdos.
Projeces que eu quero que contenham o som do corpo profundo. Imagens que contam o
que se passa antes da imagem, antes do movimento como pensamento, antes da histria e
sobretudo antes da intencionalidade.
E sobretudo v-las passadas para a categoria sumptuosa do significante.
Quis experimentar num esforo supremo essa zona vazia e densa do pr-movimento, do
pr-acontecimento com o seu peso escuro e disforme.
Numa espcie de penltima expresso. Helena Almeida, 1994.
Sem ttulo. 1994.95
18
Ludwig Wittgenstein, Anotaes sobre as Cores, Lisboa, ed.70, 1987, p.65
19
Ludwig Wittgenstein, Anotaes sobre as Cores, Lisboa, ed.70, 1987, p.65
20
Ludwig Wittgenstein, Anotaes sobre as Cores, Lisboa, ed.70, 1987, p.67
divino habitar: com as suas regras e costumes. Humano e sagrado, corpo e esprito, matria e alma, ambos
os termos habitam no homem, sempre tomados nas movimentaes irredutveis que precisamente o tempo
quer mtico, quer linear - lhes quis infligir.
1. Corpo local de culto:
Desde os primrdios que o corpo foi lugar de culto, quanto foi intermedirio e objecto
sacrificado para culto e/ou participe de ritual. O corpo edificou-se nas primeiras manifestaes
colectivas, pautando-se pelo inefvel na beleza que se esvaziava nas matrias e nos smbolos que as
conformavam mscaras, estatuetas, fetiches... Lugar de culto, o corpo comeou por se configurar
em mltiplas intervenes sobre os deuses, sendo habitado pelos deuses, submetendo-se aos
fenmenos inexplicveis (tornando-se volume esculpido para mediao de ndole cosmognica),
demonstrativo, simultaneamente e sobrepondo-se mediante a assuno dessa vontade de domnio, que
apenas tardiamente Nietzsche denunciou.
Pintura Habitada.1975
2. Corpo aurtico:
Negro agudo.1981 /Sem. tit,1996
O corpo serviu de receptculo e de fuga, usou-se com cumplicidade e provocou devaneios laterais;
marginalidade interior escapando-se pela via do corpo, e apenas, porque a alma que se saiba no
se v. No se v, porque entretanto Walter Benjamin nos fez perceber que as auras fugiram para outros
cus: e as auras talvez pudessem ser o que de mais parecido com almas visveis se tem no humano...
Tambm j no queremos a sublimidade porque excessivo conceito a fazer-nos sentir muito
pequenos quer de corpo, quer de alma. As auras habitam interstcios de tempo e de espao,
consoante as suas manipulaes afectivas, simblicas e algo profanas.
Na Histria da fotografia, conhece-se a seduo que, desde os primrdios os fotgrafos seguiram, ao
pretender captar o incativvel, o invisvel. So emblemticas as fotografias que, suposta ou no
supostamente, cativaram essas manchas, essas auras, esses seres no visionados a olho nu. Cruzando
o sc XX, poder-se-ia evocar a obra de Francesca Woodman, em que enfatizada a compulsividade
pela auto-presentificao transfiguracional. As sombras, as evanescncias queimadas que povoam
algumas das suas imagens em espaos de habitao so uma espcie de doppelganger por confronto
com a sequncia de 7 fotografias Sem ttulo datadas de 1996 como se pode observar acima
Ouve-me.1980
6. Corpo-espao:
Ainda veio o tempo em que ao corpo foi concedido o privilgio de organizar o espao,
divergindo do teocentrismo preponderante; a perspectiva centrou-o e regularizou-lhe as direces, os
membros e recomendou a unidade na representao relativamente s partes integrantes no todo. Houve
mesmo quem se deixasse esvair na teorizao excelsa dos corpos para a composio pictural e
escultrica e por analogia, arquitectnica: Alberti, Paccioli e Leonardo procuraram-no em nmero
ureo; quiseram invadi-lo em geometrias que resplandeciam de sagrado e trouxeram o olhar sobre o
homem, pelo corpo reabilitado, quanto mais adequado aos tempos. Habitar configura-se em termos de
perspectiva, de representao iconogrfica.
Julgamos que nos libertamos dos lugares que deixamos para trs de ns.
Mas o tempo no o espao e passado que est diante de ns.22
Pintura habitada.1976
21
Antnio Pinto Ribeiro, Por exemplo a cadeira, p.12
22
Pascal Quignard, Vida Secreta, Lisboa, Ed. Notcias, 1999, p.205
(Faa-se agora um hiato na histria do corpo, porque o no-preenchimento cronolgico pode ajudar a
dar espao para o corpo da modernidade que nos persegue na sua obsolescncia afectiva.)
Tentar abrir um espao, sair custe o que custar, um sentimento muito forte nos
meus trabalhos. Passou a ser uma questo de condenao e de sobrevivncia.
Sinto-me quase sempre no limiar onde esses dois espaos se encontram,
esperam, hesitam e vibram. uma tentao a ficar e assistir ao meu prprio
processo, vivendo um sonho com duas direces. Mas isso intolervel e com
urgncia, qualquer coisa se liberta em mim como se quisesse sair para a frente
de mim prpria.
De toda a maneira j consegui sair pela ponta dos meus dedos. Helena Almeida,
1978.
7. Corpo forma e figura:
A casa.1984 Dentro de mim. 2001
Aps esta pausa para reconceber novas conceptualizaes do corpo, prestou-se muita ateno s suas
formas. Pretendeu-se a sua autonomia, a sua independncia por relao a normatividades inoportunas e
imps-se a assuno individual das opes estticas que logo passaram a ser vulgarizadas no meio.
Noutros meios, Husserl aconselhou-nos a suspenso para aceder ao conhecimento epoch e
porventura o corpo tambm se ps entre parntesis, sem vaidade. De qualquer modo, serviu de lio,
porque isto de corpos muito variado, e h-os para todos os gostos, acepes e feitios, mesmo que
tenham fisionomias grotescas e que escandalizem os pseudo-costumes vigentes.
Numa outra focagem, nas obras pertencentes s sries Casa, Negro Agudo (entre outras), a artista
explora quase at exausto as potencialidades da figura que forma e que se destaca no fundo de um
todo que integra o espao.
Neste caso, o corpo prprio tomado pelas sinuosidades negras de mantos, manchas transfiguradas que
desenham o fundo branco, subvertendo os esteretipos da volumetria, da profundidade numa acepo
ascensional ou area, consoante as unidades fotogrficas. Contrariamente ao que ocorria em obras como
Tela rosa para vestir ou Tela habitada onde, de modo directo, explcito - ainda que sustentador de
significncias relevantes, a figura da autora dirigia-se directamente aos espectadores, interpelando-os
desde a sua mais autntica aparencialidade, externalidade.
Se nos anos 70 a recepo estimulada para o pblico se afirmava em actos de performatividade
deliberada e quase de imediato reconhecimento hermenutico, nos anos 80 e 90, Helena Almeida toma
como recurso preponderante a intermedialidade da axiologia esttica e artstica, em metamorfoses
inesgotveis, portadoras de uma carga simblica inequvoca e evidenciando um sentido mtico
(arquetipal mesmo) que oculta a identidade, projectando-a sem trguas em qualquer um de ns.
A designao Dentro de mim uma extenso da casa. A casa organiza o indivduo, propiciando-lhe o
reconhecimento visvel de suas obsesses, fantasmagorias pblicas ou delrios privados; privilgio de
real e circunstncia condicionada de sonho e/ou deambulao. Na casa, as angstias desenvolvem-se, os
conflitos acentuam-se, os hbitos entranham-se mais, os objectos adquirem afectos sublimados, as
paixes e os amores comedidos esgotam-se janela.
11. Corpos-representao:
Ateno: os corpos representados no nos vo pedir satisfaes pela inconvenincia ou
acuidade do nosso olhar. Podemos estar tranquilos, os corpos so fixaes, mas boas fixaes... So de
uma famlia muito conveniente: pertencem por me esttica e pelo lado do pai arte, que em francs
e castelhano alis substantivo masculino.
Confundir-se com a tela, perder-se na tela, ser levado pelo vento da tela, pelos
demnios da pintura e dos seus aclitos, essa condenao e esse desejo supremo
de todo o pintor desde sempre, tudo isso desnorteado de maneira nica por
Helena Almeida.
Se a pintura foi para ela uma tcnica de conhecimento, esse conhecimento no
nem terico nem artstico, esse conhecimento uma forma agnica e dramtica de
encenar a sua impossibilidade de pintar, de encenar os limites da pintura, (...) e
cerimnia celebrativa, tematizando a iluso prpria da pintura de forma irnica,
benvola, enfeitiada e destruidora: a um tempo reter e derrubar, cativar e
transpor, atravessar e expor-se.23
A obra de Helena Almeida chama-nos para o cho, para o andar trreo; indica-nos os caminhos da
ascenso; subverte a lei da gravidade, explorando colocaes, fixaes do corpo prprio que somente
as fotografias sensibilizadas so capazes de concretizar.
Na diversidade de trabalho sobre o espao, quer quando remete para a mobilidade, quer ao reverter
para o hieratismo, existe sempre deambulao. Esse movimento, que vai do interior para o exterior ou
se pode exercer na quietude, impe a lentido, estando-lhe subjacente, portanto, o sentido de durao.
A deambulao explora as inmeras potencialidades estticas, materializando-se na carga existencial
que as suas obras, ideias convertem numa verso divergente e contempornea do clebre flneur, seja
ele o simbolista romanticista de Baudelaire ou o Wanderer saturniano de Walter Benjamin... Assim se
concebem, pois se aliceram e edificam, espaos interseccionais, hipertextuais, poticos e ontolgicos.
Sabendo que poder voar, nesse tempo em que o lugar deixa de existir, como escrevia Yukio Mishima
nO Templo Dourado. O lugar deve deixar de existir para se localizar, para habitar
M de Ftima Lambert
Maro 2001/Maio 2009
24
Antnio Pinto Ribeiro, Por exemplo a cadeira, p.7