Apropriando Se Da Apropriação
Apropriando Se Da Apropriação
Apropriando Se Da Apropriação
DA APROPRIAO
Texto retirado do livro: As Runas do museu de Douglas Crimp. (pgs. 115 a 129)
A
de Portland; de Gehry, sua prpria casa em Santa
Apropriao, pasche, citao - esses m- Mnica. O prdio de Portland apresenta uma mistura
todos estendem-se virtualmente a todos eclca de eslos arquitetnicos do passado
os aspectos da nossa cultura, dos produtos mais geralmente originrios do orbe do classicismo. Mas
cinicamente calculados da indstria da moda e do Graves se volta para um classicismo j eclco - o
entretenimento s avidades crcas mais compro- neoclassicismo de Boullc e Ledoux, o pseudoclassi-
medas dos arstas; das obras mais claramente re- cismo dos edicios pblicos Art Dco e oreios oca-
trgradas (os edicios de Michael Graves, os lmes sionais da pompa da Beaux-Arts. A casa de Gehry, ao
de Hans Jrgen Syberberg, as fotograas de Robert contrrio, apropria-se de apenas um elemento do
Mapplethorpe, as pinturas de David Salle) s prcas passado. No , contudo, um elemento de eslo;
aparentemente mais progressistas (a arquitetura de uma casa de madeira de 1920 j existente. Foi en-
Frank Geluy, o cinema de JeanMarie Straub e Dan- to aplicada uma colagem na casa (contornando-a e
lle Hullet, a fotograa de Sherrie Levne, os textos perpassando-a) com materiais de construo de uso
de Roland Barthes). Se todos os aspectos da cultura generalizado que constam do catlogos - chapa on-
usam esse novo processo, ento o prprio processo dulada, malha de ao, madeira compensada, asfalto.
no pode ser o indicador de uma reexo especca As diferenas entres essas duas prcas so ime-
sobre a cultura. diatamente bvias: Graves apropria-se do passado
A ubiqidade mesma de um novo modo de pro- arquitetnico; Gehry apropria-se lateralmente do
duo cultural, contudo, realmente acentua o fato presente. Graves apropria-se do eslo; Gehry do ma-
de que ocorreu uma importante mudana cultural terial. Quais as diferentes leituras que resultam des-
nos lmos anos, urna mudana que ainda quero ses dois modos de apropriao? A abordagem que
designar como a mudana do modemismo para o Graves faz da arquitetura um retorno a uma com-
ps-modernismo. O termo ps-modernismo talvez preenso pr-modernista da arte enquanto combi-
comece a adquirir signicado, alm de simplesmen- nao criava de elementos derivados de um vo-
te nomear um Zeitgeist, quando formos capazes de cabulrio historicamente dado (diz-se tambm que
empreg-lo para disnguir entre as diversas prcas esses elementos so derivados da natureza, tal como
de apropriao. O que eu gostaria de fazer aqui, en- era compreendida no sculo XIX). A abordagem de
to, propor algumas formas possveis de abordar Graves, por tanto, parecida com a dos arquitetos
essas disnes. da Beaux-Arts, contra quem os arquitetos modernis-
Talvez eu deva, para comear, olhar mais de perto tas iriam se voltar. Embora no se possa alimentar a
as armaes quanto ao carter regressivo/progres- iluso de que os elementos de eslo so inveno do
sista dos usos da apropriao feitas pelos arstas arquiteto, h de fato uma iluso muito forte em re-
previamente citados. Como, por exemplo, podemos lao ao produto nal como um todo e em relao
disnguir os usos que Graves faz do pasche dos de contribuio criava do arquiteto para a ininterrupta
Gehry? Por urna questo de convenincia, tomemos e connua tradio da arquitetura. Desse modo, o
as obras mais famosas que cada um dos arquitetos eclesmo de Graves mantm a integridade de uma
fez - de Graves, o prdio da administrao pblica histria do eslo arquitetnico fechada em si mes-
ma, uma pseudo-histria imune s incurses pro- coincidncia o fato de se encaixarem to bem nesses
blemcas dos acontecimentos histricos concretos gneros ar!scos tradicionais), apropriam-se da es-
(um dos quais seria a arquitetura moderna, se ela for lsca da fotograa de estdio do pr-guerra. Suas
considerada como algo mais que simplesmente ou- composies, poses e iluminao, e mesmo seus te-
tro eslo). mas (personalidades mondaines, nus glaciais, tulipas),
A prca de Gehry contudo, retm as lies his- lembram a Vanity Fair e a Vogue daquela conjuntu-
tricas do modernismo mesmo enquanto crica a ra histrica em que arstas como Edward Sechen e
dimenso idealista do modernismo de uma perspec- Man Ray emprestaram a essas publicaes um conhe-
va ps-moderna. Gehry rera da histria um objeto cimento nmo da fotograa ar!sca internacional. A
real (a casa existente), no um eslo abstrato. O uso abstrao e a fechizao que Mapplethorpe faz dos
que ele faz de produtos do dia-a-dia do mercado da objetos remete, atravs da mediao da indstria da
construo reete as condies materiais atuais da moda, a Edward Weston, enquanto suas abstraes
arquitetura. Diferentemente do arenito e do mrmo- do tema remetem aos simulacros neoclssicos de Ge-
re que Graves usa ou imita, os materiais de Gehry orge Pla" Lynes. Exatamente como Graves encontra
no podem aspirar a uma universalidade atemporal. seu eslo em alguns instantes da histria da arquite-
Alm do mais, os elementos individuais da casa de tura cuidadosamente selecionados, assim tambm
Gehry conservam rmemente sua idendade. No Mapplethorpe ergue de suas razes histricas uma
passam a iluso de um todo sem emendas. A casa viso pessoal sintca que, todavia, mais um elo
apresenta-se como uma colagem de fragmentos e criador na interminvel corrente de possibilidades da
arma sua efemeridade como o faria um cenrio de histria da fotograa.
cinema num estdio (a casa pede claramente por Quando Levine quis fazer referncia a Edward
tal comparao); e esses fragmentos nunca indicam Weston e variante fotogrca do nu neoclssico,
um eslo. A casa de Gehry uma resposta a um pro- ela simplesmente fotografou novamen te as fotos
grama arquitetnico especco; ela no pode ser que Weston rara de seu jovem lho Neil- nada de
indiscriminadamente copiada em outro contexto. A combinaes, transformaes, acrscimos ou sn-
linguagem de Graves, por outro lado, parecer-lhe- tese. Como a casa de 1920 que est no centro do
to apropriada para uma chaleira ou uma linha de te- design de Gehry, os nus de Weston so apropriados
cidos como para um showroom ou um arranha-cu. em seu todo. Ao roubar descaradamente imagens j
O que acontece, ento, com essas diferenas quan-
do aplicadas fotograa? Ser que podemos fazer dis-
nes anlogas entre os emprsmos fotogrcos
de Robert Mapplethorpe, de um lado, e os de Sherrie
Levine, de outro? As fotograas de Mapplethorpe, se-
jam elas retratos, nus ou naturezas-mortas (e no
Pasadena meia-noite.
1. A referncia, neste caso, foi indicada: este ensaio foi escrito para o catlogo de Catadores de Imagem: Fotografia, parte de uma exposi-
o dupla - que tambm inclua Catadores de Imagem: Pintura - apresentada no Instituto de Arte Contempornea da Universidade da
Pensilvnia, de 8 de dezembro de 1982 a 30 de janeiro de 1983, e que usava apropriao como um tema organizacional.