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Linguagem e Silêncio

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MARCO ANTONIO VILLARTA-NEDER

OS MOVIMENTOS DO SILÊNCIO:

ESPELHOS DE JORGE LUÍS BORGES

UNESP
MARCO ANTONIO VILLARTA-NEDER

OS MOVIMENTOS DO SILÊNCIO: ESPELHOS

DE JORGE LUÍS BORGES

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras – área de concentração em
Lingüística e Língua Portuguesa – da
Universidade Estadual Paulista para obtenção do
título de Doutor em Letras.

Orientadora: Profa. Dra. Edna Maria Fernandes dos


Santos Nascimento

ARARAQUARA
2002

2
DEDICATÓRIA

À Neusa, muito mais do que esposa, minha iniciadora nos espelhos de Borges, e que

se faz presente como Outro que me dá a identidade necessária para viver intensamente.

A minha mãe, Olga, pelo que me en sinou a


buscar e pela oportunidade de poder
compartilhar leituras de Borges .

A Maria Helena Martins de Oliveira, pelos


rumos que me tornou possível tomar nesse
labirinto fascinante que é estudar a
linguagem.

3
Agradecimentos

A minha esposa, minha família e amigos pela compreensão, apoio e

pelo quanto me cederam um tempo meu que era deles.

À minha orientadora, Profa. Dra. Edna Maria Fernandes do Nascimento, pela


confiança no projeto e pela firmeza e solicitude com que tratou o difícil processo de
construção desta tese.
A Rosimar de Fátima Schinelo pelas valiosas discussões e pela

crença num trabalho, antes que ele tivesse tomado forma.

A André Luís de Campos pelas leituras, discussões e pela torcida

amiga diante das ansied ades que cercaram essa escritura.

A João Bôsco Cabral do Santos, pela trajetória de amizade e

trabalho conjunto que resultou em momentos importantes de discussão e de

apoio.

A Ítalo Oscar Riccardi León pelo interesse amigo e pela

solidariedade.

Aos colegas da Pós, pela convivência, por todos os momentos

acadêmicos, pela troca de experiências e, principalmente, pela

oportunidade de experimentarmos juntos outras escritas.

Aos professores e funcionários da Unesp-Ar pelo apoio e convivência que


viabilizaram etapas necessárias desta tese.
Aos que, de alguma forma, contribuíram para a confecção deste

trabalho.

4
René Magritte - “Reprodução Proibida
(Retrato de Edward James)”, 1973

Omitir sempre uma palavra, recorrer a


metáforas ineptas e a perífrases evidentes,
é, quiçá, o modo mais enfático de indicá-la.

Jorge Luís Bor ges - O Jardim dos


Caminhos que se bifurcam

Hablar sobre el silencio constituye un


delito... Es atentar contra una realidad
misteriosa e indescriptible, es pisar un
terreno desconocido, es introducirse en un
reino escondido e desértico donde la
palabra es una intrusa.

Francesc Torralba Roselló – El


silencio: un reto educativo

5
RESUMO

Esta tese empreende uma reflexão sobre o silêncio em relação à produção dos

sentidos, tendo como corpus textos literários de Jorge Luís Borges, voltados para a

temática do espelho, metáfora utilizada neste trabalho para representar a trajetória

silenciosa do movimento dos sentidos.

O silêncio é aqui assumido em duas categorias: (1) ausência, que representa o

não dizer, e (2) excesso, que compreende a sobreposição que a palavra instaura

sobre o silêncio ou sobre outras palavras. Essas relações dialéticas e

complementares fazem do silêncio, mais que um apagamento das vozes do discurso,

um procedimento de instauração da heterogeneidade.

Sustentada na Análise do Discurso de linha francesa, discutiu-se o processo

de constituição dos sentidos como movimento, do qual participa(m), o(s) silêncio(s), a

palavra e a relação dialética entre eles, tendo como objetivos: (a) Identificar e discutir

a existência de indícios (internos e/ou externos ao texto) que remetam o leitor para o

silêncio; (b) discutir relações entre operações metaenunciativas, relações intertextuais

e o texto escrito; c) no universo de textos selecionados da produção borgeana,

apontar algumas especificidades do texto literário escrito enquanto configuração

específica de silêncio(s) como procedimentos de instauração de heterogeneidade

mostrada.

Discutiram-se ainda as relações entre silêncio, autoria e funções do autor e do

leitor, aspectos diretamente ligados às concepções e ao fazer estético da obra

borgeana. Quanto a esta última, buscou-se caracterizá-la como um jogo dialético

entre diversidades de silêncios, heterogêneos, e a relação destes com a palavra.

6
ABSTRACT

This thesis undertakes a reflection on the silence in relation to the production of

the senses, using as corpus literary texts of Jorge Luís Borges, related to the thematic

of the mirror, metaphor used in this work to represent the silent path of the movement

of the meanings.

The silence is assumed here in two categories: (1) absence, that represents the

non-saying, and (2) excess, which represents the superposition that the word

establishes on the silence or on other words. Those dialectic and complimentary

relationships with the silence, more than a deletion of the voices of the discourse, is a

procedure of establishment of the heterogeneity.

Sustained in the Discourse Analysis of French line, the process of constitution

of the meanings was discussed as movement, of which participate, silence(s), the

word and the dialectic relationship among them. The work’s objectives are the

following: (a) to identify and to discuss the existence of indications (internal and/or

external to the text) that send the reader for the silence; (b) to discuss relationships

among metaenunciative operations, intertextual relationships and the written text; c) in

the universe of selected texts of the borgean production, to point out some specificities

of the literary writing text while specific configuration of silence(s) as procedures of

establishment of shown heterogeneity.

They were still discussed the relationships among silence, authorship and the

author's and the reader’s functions, aspects directly linked to the conceptions and to

the aesthetic of the borgean work. Related to this last one, they were characterised as

a dialectic game between diversities of silences, heterogeneous, and the relationship

of these with the word.

7
ÍNDICE

RESUMO_____________________________________________________v

ABSTR ACT________________________________________________ ___vi

RESUMO ...................................................................................... 6
ABSTRACT ....................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO ............................................................................. 10

CAPÍTULO 1 ............................................................................... 19

AN ÁLISE DO DISCURSO E SILÊNCIO .......................................... 19


1.1– PRESSUPOSTOS TEÓRICO-EPISTEMOLÓGICOS ......................................................................................... 19
1.2– OUTROS OLHARES SOBRE O SILÊNCIO .................................................................................................... 36
1.3– O ESPELHO COMO METÁFORA ................................................................................................................. 39
1.4– ESPELHO COMO PROCESSO DE REPRESENTAÇÃO ..................................................................................... 40
1.5– O ESPELHO DE LACAN ............................................................................................................................ 45
1.6– DIVERSIDADES DE SILÊNCIOS NO MOVIMENTO DOS SENTIDOS ................................................................ 52
1.7– SILÊNCIO COMO AUSÊNCIA X REPRESENTAÇÃO SIMBÓLICA .................................................................... 55
1.8– SILÊNCIOS INDICIADOS ........................................................................................................................... 58
CAPÍTULO 2 ............................................................................... 62

LEITURAS SOBRE BORGE S ........................................................ 62


2.1 – CRÍTICA FRANCESA ................................................................................................................................ 63
2.2 – OUTROS ASPECTOS CRÍTICOS ................................................................................................................ 76
CAPÍTULO 3 ............................................................................... 87

AUTORI A, P APEL DO LE ITOR E EFEITO ESTÉTI CO ..................... 87


3.1 – AUTOR, LEITOR E TEXTO ........................................................................................................................ 91
3.1.1 – Obra Aberta ................................................................................................................................... 92
3.1.2 – Lector in Fabula .......................................................................................................................... 102
............................................................................................................................................................................. 102
3.1.3 – Interpretação e Superinterpretação ............................................................................................ 110
3.2 – AUTORIA, FUNÇÃO DO LEITOR E SILÊNCIO ........................................................................................... 123
3.3 – AUTORIA E ESTÉTICA DO LEITOR EM BORGES...................................................................................... 140
CAPÍTULO 4 ............................................................................. 161

NO SILÊNCIO DO ESPEL HO ...................................................... 161


4.1 – CORPUS ............................................................................................................................................... 161
4.2 – TEXTOS ANALISADOS........................................................................................................................... 163
4.2.1 – Sala vacía .................................................................................................................................... 163

8
4.2.2 – El espejo ...................................................................................................................................... 175
4.2.3 – Animais dos Espelhos .................................................................................................................. 191
4.2.4 – El espejo de los enigmas .............................................................................................................. 212
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................... 232

REFERÊNCI AS BIBLIOGR ÁFICAS ............................................. 245

BIBLIOGRAFI A ......................................................................... 254

ÍNDICE REMISSIVO E O NOMÁSTICO ......................................... 262

ANEXOS ................................................................................... 264

9
INTRODUÇÃO

Tudo, aliás, é a ponta de


um mistério. Inclusive,
os fatos. Ou a ausência
deles. Duvida ? Quando
nada acontece, há um
milagre que não estamos
vendo.

Guimarães Rosa – O
Espelho

Esta tese é o resultado de uma trajetória que se iniciou em

lugares muito diferentes: primeiramente a pesquisa imaginava olhar

para o professor que se forma e se debate diante dos desafios

crescentes que a atividade educacional exige e no quanto lhe faltaria

saber sobre a constitutividade do silêncio em seu trabalho cotidiano

com a linguagem na sala de aula.

No entanto, a reflexão iniciada desta forma acabou por instigar

um contorno mais teórico, em nome de uma curiosidade acadêmica

que já não se satisfazia mais em se perguntar por que o professor

não se dá conta do(s) silêncio(s) , mas passou a se questionar até

que ponto as próprias áreas tradicionalmente responsáveis pela

produção do conhecimento acadêmico sobre a linguagem,

notadamente a lingüística, assumiriam teórica e epistemologicamente

a construção de conhecimentos n essa direção.

Assim, o autor desta tese talvez constitua -se numa outra

espécie de sujeito, que não se contenta em se constituir através do

1
0
que diz. Em vez disso, sua tarefa é também constituir -se através do

que diz a respeito do dizer .

Inicialmente, como foi dito acima, partiu -se de um interesse em

perscrutar os silêncios que o discurso pedagógico, especificamente

no ensino de português como língua materna, faz a respeito de

pressupostos indispensáveis da leitura e da escrita , e de um silêncio

ainda mais amplo , já que também se cala sobre os efeitos discursivo -

argumentativos do silêncio . Em algum momento desta reflexão houve

um desejo de se esboçar um estudo mais teórico sobre as condições

de produção do silêncio .

Assim, o silêncio tornou-se objeto de análise, dado que ele

pode ser caracterizado (1) como ausência e, como tal, torna -se difícil

reconstituir o que não se disse; (2) co mo excesso e, também nesse

caso, existe uma dificuldade, já que se tem que buscar um dizer

virtual que teria sido sobreposto.

Para resolver essa questão, buscou -se a identificação de

indícios 1 de silêncios. A etapa seguinte constituiu -se pelo

levantamento de um corpus. Coube uma decisão metodológica de

trabalhar exclusivamente com textos escritos. Tal decisão foi

motivada por dois fatores:

1 Usa-se aqui a palavra “indício” porque permite, neste momento inicial da discussão, abranger tanto
estratégias marcadas textualmente, quanto situações não marcadas no texto, mas que contextualmente possam
remeter o sujeito a outras enunciações.

1
1
a) uma suspeita de que a interlocução via escrita apresenta

níveis de silêncio não presentes na fala;

b) uma maior operacionalidade, já que analisar a fala implicaria

necessariamente lidar com várias linguagens de forma

simultânea. Neste âmbito, os silêncios da fala poderiam não

ser silêncios propriamente, mas espaços de interpenetração

dessas linguagens. No caso de uma escrita sem

concomitância com outras linguagens, estaríamos diante de

uma situação mais direcionada, pois os aspectos

extralingüísticos seriam limitados às características visuais

da diagramação e dos gr afemas.

No decorrer deste processo foram inicialmente utilizados textos

literários, jornalísticos e científicos. Posteriormente, em função do

escopo deste trabalho, foram selecionados alguns textos literários e

definidos, a partir disso, os objetivos de sta tese:

1) Identificar e discutir a existência de indícios (internos e/ou

externos ao texto) que remetam o leitor para o silêncio ;

2) Proceder a uma breve discussão a respeito das relações

entre operações metaenunciativas, relaç ões intertextuais e o

texto escrito;

3) Dentro do universo de textos selecionados da produção

borgeana, apontar algumas especificidades do texto literário

escrito enquanto configuração específica de silêncio(s) como

procedimentos de instauração de heterogenei dade mostrada.

1
2
Inscrita dentro de uma trajetória de reflexão sob o prisma da

Análise do Discurso de linha francesa (AD daqui em diante), esta tese

pretende constituir -se como um fazer epistemológico que estabeleça

um diálogo entre concepções vigentes e al guns pressupostos sobre a

produção dos sentidos. Um dos aspectos que se pretende discutir

aqui é o quanto o processo de produção de sentidos sempre, de

alguma forma, está diante de uma delimitação entre a palavra e o

silêncio.

Paradoxalmente, dizer algo sobre o silêncio pode parecer uma

pretensão de transformá -lo integralmente em palavra. Revelá -lo,

desvendá-lo. Qual um véu de Ísis, seria atingir seus segredos. Não é

o caso. O silêncio , da posição que se a ssume nesta tese, não é

somente dinâmico no sentido de que se move; se ele é, por essa

característica, movediço, também o é no mesmo âmbito da areia que,

se acomodando, jamais adquire uma estabilidade e traga para suas

profundezas qualquer um que se aventu re a pisar seu solo

aparentemente seguro.

Dessa perspectiva, trabalhar com o silêncio é, antes de mais

nada, assumir que tal tarefa consiste intermitentemente num

deslocamento. Atribuir sentidos a alguns silêncios pelo recobrir da

palavra é, inevitavelmente, puxar um cobertor bem menor do que o

próprio corpo: cria -se um jogo infinito entre outros espaços de

silêncio.

1
3
Para que tal atividade seja possível, pretende -se em relação à

AD, fio condutor do trabalho, estabelecer, em momentos bastante

pontuais do trabalho, algumas alteridades epistemológicas 2. Ora se

fará necessária a presença de aspectos filosóficos, ora semióticos.

Um dos aspectos cruciais de trabalhar com esse fio incerto é a

constante recriação de metáforas.

Alguns aspectos de psicanálise são igualmente imprescindíveis.

Não é o intuito do trabalho proceder a uma discussão

especificamente filosófica ou psicanalítica. São pertinentes, no

entanto, considerações sobre os limites entre as áreas constitutivas

da AD 3 (especialmente a Lingüística e a Psicanálise) no que se refere

à problemática da produção dos sentidos. Dentro da trajetória da AD,

essa produção metamorfoseia -se em descontinuidades e opções

epistemológicas. Além disso, cumpre discutir a natureza do sil êncio

2 Umberto Eco em seu texto A poética da Obra aberta, em A Obra Aberta, ao discutir a possível
filiação desse tipo de concepção estética a uma epistemologia característica de um momento histórico
determinado, menciona, em forma de pergunta retórica, a noção, utilizada pela Física, de complementaridade,
que ilustra um pouco essa questão da alteridade epistemológica:
“Seria casual o fato de tais poéticas serem contemporâneas ao princípio físico da
complementaridade, segundo o qual não é possível indicar simultaneamente diversos comportamentos de uma
partícula elementar, e para descrever estes comportamentos diversos valem diversos modelos, que ‘são
portanto justos quando utilizados no lugar apropriado, mas se contradizem entre si e se chamam, por isso,
reciprocamente complementares ?” (p. 57)
3 Podemos exemplificar melhor essa afirmação com uma citação de Pêcheux & Fuchs (1975: 163-
164):
“(...) começaremos por apresentar, numa primeira parte, o quadro epistemológico geral deste
empreendimento.
1. o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações,
compreendida aí a teoria das ideologias;
2. a lingüística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação ao
mesmo tempo;
3. a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos semânticos.
Convém explicitar ainda que estas três regiões são, de certo modo, atravessadas e articuladas por
uma teoria da subjetividade (de natureza psicanalítica).”

1
4
enquanto fenômeno. Propor -se a analisar o silêncio é deter-se sobre

a intersubjetividade.

Se forem tomados alguns textos da AD que abordam o silêncio

através da palavra 4 podemos perceber que eles se filiam a

paradigmas 5 que privilegiam o movimento e o intervalo. Pensar a

produção dos sentidos desta perspectiva (o que, de alguma forma, é

mais ou menos explícito em cada autor da AD) implica discutir o

alcance e os limites desses conceit os.

É uma convicção expressa neste trabalho que tal relação seja

impossível sem a inclusão do silêncio . Para isso, faz-se fundamental

relembrar o conceito de Formação Discursiva (FD daqui em diante),

inicialmente como formulado por Pêcheu x & Fuchs (1990: 166 -167):

componente de uma formação ideológica que,


so zinha ou interligada a outras FDs “determinam o
que pode e o que deve ser dito (articulado sob a
forma de uma arenga, de um sermão, um panfleto,
uma exposição, um prog rama etc.) a partir de uma
posição dada numa conjuntura, isto é, numa certa
relação de lugares no interior de um aparelho
ideológico, e inscrita numa relação de classes.
Diremos que toda formação discursiva deriva de
condições de produção específicas, iden tificáveis a
partir do que acabamos de designar .

4 Basicamente Orlandi, 1992; Authier-Revuz, 1994 e Machado,1997.


5 No sentido utilizado por Kuhn (1987)

1
5
Assim, pode-se entender que a própria AD, nos movimentos de

suas atividades interpretativas, move -se não somente entre esses

dizeres possíveis e autorizados pelas FDs, mas como conseqüência

disso, desloca -se pelos silêncios, espaços de exclusão e de recorte

que envia para o excesso o que lhe é exterior, exterior esse que

passa a ser ausência .

Em alguns momentos desta tese, entende -se que será

necessário recobrir/desvendar alguns desses silêncios para que

possam ser analisados enquanto tais.

Para isso, será útil indiciar as penumbras e sombras do

discurso, que, se comportando como um jogo de espelhos,

recolocando pontos de partida e de c hegada temporários para a luz

que se movimenta invisível e que se reflete na face dos espelhos,

mostra uma outra face que quer se conhecer.

A atitude interpretativa pretendida nesta tese é da mesma

natureza que a mentalidade que instaura na pintura, na f ilosofia,

numa área como a própria AD, essa necessidade de retomar o olhar

que vague pela profundidade, a altura e a largura desses sentidos

velozes e silenciosos entre sujeitos. Não a pretensão da

exaustividade, mas a de uma alteridade, de uma polifonia,

redistribuindo as configurações incessantes entre o silêncio e a

palavra.

O corpus, literário, trata tematicamente da intersubjetividade

através da metáfora do espelho , a partir de um autor tradicionalmente

1
6
conhecido por seus jogos: Jorge Luís Borges . Um desses jogos é

muitas vezes o estatuto da palavra como representação, o que é

conveniente para a análise aqui pretendida.

No Curso de Lingüística Geral, o texto publicado pelos alunos

de Saussure apresenta a defesa de que “(...) bem longe de dizer que

o objeto precede o ponto de vista (...) é o ponto de vista que cria o

objeto.” (1977:15). Pelo menos do ponto de vista deste trabalho,

existe um princípio semelhante.

Metodologicamente esta decisão é fundamental. Qualquer

modelo teórico circunscreve, para determinar seu objeto, limites entre

o que lhe é interno em oposição a uma exterioridade, tida como um

excesso incômodo 6. Mas é precisamente essa exterioridade

silenciada que permite tatear os vestígios dos desejos presentes na

interioridade. Por outra perspectiva, a interioridade pressupõe uma

falta, identificável como o que lhe é externo.

Discutir tais questões é obrigatório num trabalho que pretende

mover-se nos intervalos, refletir-se nos espelhos, buscar atrás da

representação da face talvez um infinito jogo de outras

representações. No percurso aqui pretendido, faz parte do método

considerar a natureza do fenômeno: a relação entre a palavra e o

silêncio é movimento, intervalo, diálogo.

6 Se considerarmos o sujeito epistemológico, essa seria uma extensão no domínio do saber científico,
do esquecimento número 1, proposto por Pêcheux & Fuchs, 1975.

1
7
Quanto à organização formal, tal trabalho pretende estruturar -

se da seguinte maneira: no capítulo primeiro, serão apresentados os

pressupostos conceituais da tese. O segundo capítulo procurará

debater brevemente algumas posições críticas sobre Borges .

No terceiro capítulo serão discutidas questões atinentes à

autoria, função do leitor e aspectos do efeito estético, procurando,

em primeiro lugar, situar aspectos dentro e fora do âmbito da AD

francesa; em segundo lugar, traçar uma linha das concepções de

autoria e estética em Borges e, finalmente, procurar relacionar autor ,

leitor e efeito estético a alguns aspectos relativos ao silêncio .

O Capítulo 4 compreenderá a análise do corpus, onde alguns

conceitos serão discutidos em relação aos índices decorrentes da

interpretação dos textos selecionados de Jorge Luís Borges e sua

relação com o silêncio . Enfim, nas Considerações finais, pretende -se

responder às questões básicas colocadas, bem como recuperar para

o leitor os objetivos da tese. Serão finalmente resgatados os

aspectos que evidenciam o processo de constituição dos sentidos

como movimento, do qual participa(m), o(s) silêncio (s), a palavra e a

relação dialética entre eles.

Constarão do Apêndice cópias dos textos utilizados no corpus,

assim como gráficos, tabelas, fotos, ilustrações e outras informações

relevantes.

1
8
CAPÍTULO 1

ANÁLISE DO DISCURSO E SILÊNCIO

El bastón, las monedas, el llavero


La dócil cerradura, las tardías
Notas que no leerán los pocos días
Que me quedan, los naipes y el
tablero,
Un libro y en sus páginas la ajada
Violeta, monumento de una tarde
Sin duda inolvidable y ya olvidada.
El rojo espejo occidental en que arde
Una ilusoria aurora. ¡ Cuántas cosas,
Limas, umbrales, atlas, copas, clavos,
Nos sirven como tácitos esclavos,
Ciegas y extrañamente sigilosas !
Durarán más allá de nuestro olvido:
No sabrán nunca que nos hemos ido.

Jorge Luís Borges - Las Cosas

1.1 – Pressupostos teórico-epistemológicos

Um pressuposto conceitual da discussão feita nesta tese é de

que não é possível se pensar a constituição da linguagem sem levar

em consideração o silêncio. Para que tal afirmação soe razoável, faz -

1
9
se necessário que esta tese assuma, como acarretamento 7 da

assertiva acima, que o silêncio produza sentidos. Prosseguir a partir

daqui exige, então, que se caracterize o silênci o.

Se se tomá-lo somente no sentido de “ausência ”, tais assertivas

podem realmente parecer absurdas, uma vez que, numa acepção do

senso comum ,o que não existe ainda, o que não se tornou palavra,

não teria significado algum. Tal questão se resolve, do ponto de vista

deste trabalho, pela assunção de que o homem é um ser simbólico e

que, por causa desta característica constitutiva de sua natureza, não

escapa de buscar sentido em qualquer coisa que se apresente em

seu horizonte existencial 8. Orlandi (1992: 31-32) aborda esse

aspecto, estabelecendo o silêncio como objeto possível de análise da

linguagem:

O homem está ‘condenado’ a significar. Com ou


sem palavras, diante do mundo, há uma injunção à
‘interpretação’: tudo tem de fazer sentido
(qualquer que ele seja). O homem está
irremediavelmente constituído pela sua relação com
o simbólico.

Desse desejo primordial de atribuir significado a tudo decorre o

sentido do silêncio : diante da necessidade de interpretação o silêncio

7 Equivalente ao termo inglês entailment.


8 De outra forma, e dentro de outra epistemologia, Umberto Eco faz uma consideração importante
sobre isso:
“(...) não existe análise de aspectos significantes que já não implique uma interpretação e por
conseguinte um preenchimento de sentido” Eco, Umberto. Lector in Fabula, XV.

2
0
transforma-se em sentidos virtuais, o que estabelece polissemia 9.

Assim, o significante do silêncio 10 é sobreposto pelos significantes do

dizer, que circunscrevem a possibilidade de sentido, delimitando essa

polissemia do silêncio 11 (o limite são as categorias de mundo).

A objeção possível é a do vazio. Algumas vertentes filosóficas

(existencialismo, por exemplo) e a psicanálise postulam a existê ncia

do vazio, de uma ausência total de sentido. O que se assume neste

trabalho é que o ser humano é incapaz de não exercer atos

interpretativos, mesmo em relação ao vazio. Considerando que a

produção dos sentidos é um movimento ( e daí, também, o sentido do

silêncio e do vazio), não se admite que tal sentido esteja na coisa -

em-si, mas no intervalo dinâmico entre os elementos que participam

9 O que está sendo discutido aqui é a relação entre o silêncio e a palavra. A interpretação tende a
buscar no silêncio uma tradução de um conjunto de palavras. Enquanto o dizer não se realiza, tal atividade
interpretativa concebe uma virtualidade de sentidos (está-se querendo dizer “a” ou “b” ou outra coisa). Por
essa polissemia entende-se, nesta tese, essa virtualidade que abarca as possibilidades conhecidas de sentido,
mas que também abre oportunidade de se pensarem possibilidades ainda não criadas.
10 Ao utilizarmos o termo significante do silêncio, estamos concebendo um materialidade para ele.
Dentro da AD, Orlandi (1992) emprega-o quando diz que “(...) o silêncio é fundante. Quer dizer, o silêncio é a
matéria significante por excelência, um continuum significante.” (Orlandi, 1992: 31). Tal postura inscreve-se
numa tradição filosófica, a fenomenologia de Merleau-Ponty:
(...) se expulsarmos do espírito a idéia de um texto original, do qual a
linguagem seria a tradução ou a versão cifrada, veremos que a idéia de uma
expressão completa é um contra-senso, que toda linguagem é indireta e alusiva e,
se quisermos, silêncio. (MERLEAU-PONTY, 1989:92)
Em termos mais lingüísticos, podemos identificar como exemplo de significante so silêncio o caso do
morfema zero como marca de singular em português, como é observado na nota n. 13, à página 15.
11 Uma consideração importante a ser feita é que tal categoria tem implicações decisivas: ao dizermos
que tudo pode significar muitas coisas, ao mesmo tempo e inversamente estamos também dizendo que tudo
pode significar coisa alguma. Essa observação é importante, pois do ponto de vista da psicanálise, assume-se
o vazio de significação. Neste trabalho, um pouco diferentemente, não se nega a existência do vazio (alguém
pode considerar que algo não significa nada), mas pondera-se que mesmo este vazio, por intermédio do
desejo, significa através da relação que ocupa com o não-vazio nas relações discursivas. Postula-se, ainda,
uma materialidade simbólica e imaginária, social e histórica (entre outras) desse vazio.

2
1
da interação. Assim, o vazio significa não porque exista

necessariamente a lgo dentro dele, mas porque fundamentalmente na

relação entre ele, o sujeito e o outro, é -lhe inevitavelmente atribuído

um sentido, mesmo que negativo.

É perfeitamente possível que alguém, diante de uma situação,

não entenda nada. A questão que nos interes sa é que essa ausência

de entendimento será passível de uma reconfiguração, não porque

haja necessariamente uma hierarquia de linguagens, mas, antes,

porque é da natureza do processo de circunscrição do silêncio pela

palavra (ou vice -versa) referir-se a si mesmo. Tal recursividade

consiste, neste caso, em interpretar o que significa “não entender

nada” num contexto determinado.

Cada enunciação da palavra reconfigura, portanto, a

enunciação do silêncio , redistribuindo os silêncios significados

anteriormente. O movimento seguinte consiste no silenciamento da

palavra, em vista das condições de funcionamento do discurso (as

FDs). É importante perceber que a sobreposição significante a qui se

inverte: agora, é o significante do silêncio que recobre o da palavra.

E essa palavra, por sua vez, corresponde a uma virtualidade do

silêncio 12.

Disto decorre fundamentalmente a constitutividade do silêncio ,

na medida, em que não se admite, desta perspectiva, a existência

12 Não cabe pensar essa relação dinâmica em termos de anterioridade. Enquanto fenômeno, há um
interdependência: o silêncio não significa sem a palavra, nem a palavra sem o silêncio.

2
2
quer deste, quer da palavra sem uma relação fundamental de

reciprocidade.

E se essa constitutividade se dá desde o nível do significante,

isso implica que desde o âmbito fonétic o 13 há um encadeamento que

alterna formas e efeitos de dizer e de silenciar, ou, mais ainda, que

alterna gradações entre o dizer e o silenciar.

Existe na tradição dos estudos lingüísticos uma tendência

bastante forte, em alguns contextos hegemônica, que, m ais próxima

de uma preocupação formalista, costuma analisar enunciados

(desconsiderando a enunciação), apagando de suas análises níveis

de silêncio que estejam no âmbito pragmático e discursivo. Como

exceção poderiam ser consideradas algum as vertentes da

pragmática. Mesmo assim, tais vertentes, muitas vezes, são

estigmatizadas dentro da própria comunidade de lingüistas mais

formalistas que consideram qualquer modelo menos rígido e não

imediatamente sistematizável em termos de superfície tex tual como

de pouca validade acadêmico -científica

Assim, quando numa interlocução alguém produz uma “ausência

de enunciado”, ou seja, silencia, deixa de dizer, há um “vazio” no

nível da unidade de análise que se costuma tomar e, g eralmente por

esse motivo, não se dá conta que, na situação enunciativa onde se

instaurou a produção daquele silêncio , ele é constitutivo. Igual

13 Um exemplo de silêncio que se inicia no nível fonético e é decisivo no nível morfológico em


português seria o caso do morfema zero marcador do singular.

2
3
atitude ocorre diante da produção do silêncio pelo excesso do dizer,

caso no qual normalmente se debruça sobre enunciados isolados,

esquecendo -se que o conjunto deles significa por contrapor -se ao

pressuposto de que o enunciado deve dizer, parecer claro, informar.

O silêncio também é constitutivo pela inescapável “falha ao

nomear” presente no sujeito, mencionada por Authier -Revuz (1994), a

partir de um ponto de vista lacaniano. Essa palavra que falta (ou -

para ampliar a discussão – que sobra) institui um espaço

heterogêneo dentro do qual a semiose acontece seja pela intervenção

de outros códigos, seja pela significância do silêncio .

É nos aspectos ilocucional e performativo que esse silêncio vai

se manifestar de maneira funcional par a os agentes presentes na

enunciação. E, no discurso, sobrepõem -se outros efeitos desse

silêncio: a interdição de enunciados que não se admitem dos filiados

a determinadas formações sociais, ideológicas e discursivas (e não

se admitem antes pela visão de mundo que congrega e homogeneiza

o grupo do que por regras explícitas de conduta). A noção de

Formações Discursivas como aquilo que se pode ou deve dizer 14

estabelece uma decorrência em relação ao silêncio . Por extensão,

elas determinam o que pode ou deve ser silenciado .

Assumindo-se uma perspectiva bakhtiniana de que a linguagem

é dialógica, é bom ressaltar que a produção do silêncio não deixa de

ser uma voz que, atravessando outros signif icantes, alinhava o

14 Pêcheux & Fuchs, 1990;Courtine & Marandin, 1981.

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caráter único, inefável de cada situação enunciativa. O que ocorre,

no entanto, é que essa escala de gradações entre a produção do

silêncio, e a produção do dizer (dizer, não dizer, negar, sugerir,

insinuar... ) tem h istória, que coincide com a história das interações,

das situações enunciativas vividas e paulatinamente incorporadas ao

imaginário social.

No caso da escrita, esses apagamentos da interlocução tornam -

se mais contundentes. Já que para alguns modelos teóri cos 15 o texto

escrito é, entre outras coisas, um produto intermediário da situação

enunciativa, tais teorias encontram mais facilidade em esquecer da

enunciação e considerar apenas os enunciados já escritos. Todavia,

se a escrita também é linguagem, e como linguagem é interlocução,

ela também apresenta essa constitutividade alternada entre o dizer e

o silêncio.

E, para exemplificar outros usos do silêncio que representam

delimitação de poder na interlocução, cabe citar algu mas estratégias

discursivas por parte de falantes de uma língua do que Ducrot

(1977:144) chama de lei da exaustividade . Esse autor, para ilustrar a

lei da exaustividade relata o caso de um general que, tendo perdido

uma cidade inteira numa b atalha, admite ter perdido apenas uma

aldeia. Ducrot comenta que se o destinatário desconhecer o fato e

15 Poderíamos citar os enfoques que supervalorizam a forma. Atualmente as teorias que atuam no
âmbito da Sintaxe Gerativo-Transformacional tendem a trabalhar quase que exclusivamente com enunciados
reduzidos ao limite da frase.

2
5
supuser que o locutor 16 respeitou a lei da exaustividade, acreditará na

extensão dos fatos admitidos. O que nos interessa aqui não é

propriamente esse "c rédito de confiança" do destinatário, mas que a

atitude do locutor representou um silenciamento parcial de fatos que

eram de seu conhecimento mas não de conhecimento de seu

interlocutor.

Dessa forma, o general só pode ter dito menos do que teria

para dizer porque construiu a imagem de que o seu interlocutor

desconhecia a totalidade do fato que ele, general, iria enunciar

(imagem de que, ao ter perdido uma cidade inteira, perdeu, no

mínimo, uma aldeia [que constitui uma das partes integrantes da

totalidade representada pela cidade], mas que perder uma aldeia

significaria perder algo menor que uma cidade inteira). Em vista

disso, ao silenciar uma parte do que teria a dizer, beneficia -se da

desinformação do outro, investindo -se do poder de excluir, pelo

próprio ato de omitir, possíveis reações ou julgamentos. Dessa

perspectiva ocorrem dois tipos diferentes (mas inter -relacionados) de

silêncio. O primeiro, que é o de dizer somente até certo ponto e o

segundo, representado pelo que o inter locutor deixará de pensar ( e

dizer) em função do desconhecimento do que não foi dito pelo

locutor. Isso só pode ser considerado possível na medida em que o

locutor avalie que seu ouvinte desconheça a extensão informativa a

16 Embora os termos locutor e destinatário não pertençam ao mesmo referencial epistemológico da AD


francesa, estão mantidos aqui porque são aqueles usados por Ducrot.

2
6
ser relatada. Se tal uso discurs ivo for pensado em uma situação

típica de escrita, considerando o alto grau de descontextualização e

graus variáveis de distanciamento espaço -temporal do leitor, tal

estratégia de silenciamento pode tornar -se um efeito de sentido ainda

mais poderoso.

A ausência e seus apagamentos presentes nesse tipo de

interlocução podem ser abordados do ponto de vista da

heterogeneidade do discurso (Authier-Revuz, 1990). Assim, o

próprio fato das vozes que constituem o discurso não serem sempre

perceptíveis (na heterogeneidade mostrada, não marcada) ou nunca

serem perceptíveis (na heterogeneidade constitutiva) já implica um

tipo de silêncio. Nesse caso, a het erogeneidade mostrada seria um

reenvio à polissemia decorrente desse silêncio .

O que interessa ainda na discussão deste trabalho é

estabelecer que o silêncio é mais do que um apagamento das vozes

do discurso, constituindo -se como um procedimento de instauração

da heterogeneidade.

Pode-se dizer, nesse caso, que o olhar para o mundo que as

formações sociais, ideológicas e discursivas estabelecem pela

história das interações entre os sujeitos e os sentidos produzidos

como decorrentes dessas interações, estabelecem, ao mesmo tempo,

um ponto cego, alheio ao foco do olhar, e que se torna palco de uma

nova história de sentidos produzidos pelas contradições e pel os

conflitos do que não se sabe, do que não se vê. Claro que esses

2
7
conflitos só se tornam possíveis através do contato polêmico com o

Outro, para quem aquele espaço polissêmico do não visto pelo Eu é

visível.

A partir disso, haveria duas direções básicas do silêncio: uma

que coincide com o espaço do não -dito, por não ser conhecido, por

serem apagadas as condições de produção de seus sentidos, de sua

enunciação; outra, que coincide com uma reafirmação do já -dito, o

que assevera a presença do olhar onde ele já está, cerceando seu

desvio para o discurso obscuro do Outro, para onde – do ponto de

vista do Eu - ainda há somente silêncio .

No entanto, esse Outro apresenta momentos de erupção na

superfície do disc urso, sob a forma da heterogeneidade mostrada.

São momentos em que se ressalta a enunciação e o caráter polifônico

do discurso. É possível acreditar -se que o mesmo possa ocorrer com

o silêncio, visto sua interligação com a heterogeneidade defendida

acima.

Dessa perspectiva, haveria, a partir das considerações de

Orlandi (1992), a possibilidade de se estabelecer uma dicotomia da

seguinte natureza: (1) um excesso do dizer, sob a forma de uma

necessidade de reafirmar um sentido pode ser interpretado como um

silenciamento de um espaço polissêmico que emerge e incomoda o

sujeito, obrigando -o a tentar evitar outros sentidos. E a existência de

marcas que indiquem um abandon o da tentativa de estabelecer um

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8
sentido apontaria (2) um silêncio (não-dizer) sobre esses sentidos

escorregadios e/ou inconvenientes.

Em situações típicas de escrita (interação à distância, mediada

pelo texto), existem os dois tipos bási cos de silêncio. Um como uma

ausência, que incide de maneira mais acentuada sobre a enunciação.

Nesse sentido, a própria visualização de um texto escrito como

produto acabado dá ao seu interlocutor a ilusão de qu e o sentido

encontra-se nos enunciados ali presentes.

Um segundo tipo de silêncio presente na escrita (como excesso )

poderia ser representado pelo fato de que os significantes registrados

no texto constituem uma s obreposição a outros significantes virtuais.

Assim, diz-se X para não se dizer Y.

No caso do primeiro tipo de silêncio mencionado acima, a

visualização dos enunciados registrados num suporte físico (papel,

tela de computador etc.) represe nta um tipo de apagamento das

condições de produção da escrita.

Um primeiro nível de apagamento seria o silêncio sobre a

história e a origem dos sentidos produzidos. Assim, em qualquer

interlocução, seja falada ou escrita, existiria uma forte tendência de

se ignorarem a heterogeneidade constitutiva e a historicidade

daqueles sentidos que inscrevem o falante no interdiscurso . Essa

tendência levaria ao “efeito de verdade” a ser buscado no dizer,

abstraindo das condições sociais, históricas, econômicas,

antropológicas de criação daquelas “verdades”.

2
9
O segundo nível de apagamento (que está diretamente

relacionado à visualização), por sua vez, seria um aum ento nesse

grau de abstração. Já não é o Outro que diz verdades que acredita

sobre o mundo; passa -se a um registro dessas verdades, que é

considerado irreversível, chegando, em alguns casos (como o das

leis), à situação em que o texto apresenta o efeito i lusório da própria

verdade dizendo -se a si mesma, como se não houvesse um sujeito a

enunciá-lo (esfuma-se, então, a alteridade: o texto já não é uma

interação; ele é o próprio sentido independente de quem o produziu).

Ligada a essa opção metodológica pela escrita está uma

questão relevante para esta tese e que já foi apresentada: analisar o

silêncio na fala, enquanto ausência , seria investigar como a falta de

um dizer através das palavras se deixa (ou não) substit uir por um

dizer inscrito em outros processos semióticos. Dessa forma, já que a

fala se encontra essencialmente associada a outras semioses,

analisar seus silêncios seria considerar a rede de silêncios

estabelecidos entre as diversas semioses constitutivas da fala face-a-

face 17. Não é a opção deste trabalho, uma vez que tal complexidade

ultrapassa o escopo e os objetivos da tese. Essa é a motivação

epistemológica para eleger o texto escrito como foco.

Quanto à decisão de fazer a análise a partir de um corpus

literário, isto decorre de alguns fatores. O primeiro deles é uma

17 Deve-se considerar que existem concomitâncias de linguagens na escrita e/ou na situações


multimídia. Isso está discutido na página 228.

3
0
tentativa de discussão de um gênero discursivo que apresenta, do

ponto de vista aqui pretendido, especificidades na configuração do

silêncio. O estético é uma instância na qual esse arran jo de/entre

silêncio(s) parece ser especialmente multiforme. Borges, com seus

jogos, leva ao extremo as potencialidades do texto estético. Dentre

as muitas faces e vozes de sua obra, o tema do espelho permitiu uma

continuidade em relação a outras reflexões desenvolvidas no decorrer

do doutorado.

Também é significativo o que pode representar o uso estético

da escrita enquanto (de)negação do silêncio , o que pode ser

vislumbrado na análise de Authier -Revuz (1994: 254):

Se as línguas imaginárias ou o silêncio respondem


pela apresentação, fictícia de um lugar outro, à
ferida da linguagem é como resposta inversa que
pode ser compreendida a literatura, prática só de
linguagem, inscrita inteiramente no lugar mesmo do
desvio, nessas palavras que são falhas.

Antes de mais nada é útil relembrar que Authier -Revuz trabalha

aqui sob uma inspiração lacaniana com o conceito da falha ao

nomear. Para Lacan a nomeação não deixa de s er um desejo e todo

desejo estabelece com seu objeto uma relação de desajuste, seja por

falta ou por excesso. A satisfação jamais será na mesma medida

desse desejo: ou será menor ou maior. Portanto, à luz dessas

concepções, entende -se que essa falha atribu ída à literatura deve ser

3
1
pensada como uma dupla falha: em primeiro lugar, como qualquer

manifestação de linguagem, incorrerá na impossibilidade de dizer

exatamente algo. Em segundo lugar, porque, alimentando, mesmo

que indireta e inconscientemente, a ilus ão de, por ser um trabalho

estético com a palavra, poder dizer melhor alguma coisa, ela

instaura-se como falha ao pretender ser uma linguagem mais

trabalhada, que, de algum modo, se não diz mais, diz melhor.

Obviamente, essa tentativa igualmente falha da l iteratura faria desta

última também um espaço de silêncio , um intervalo angustiante e

paradoxal e/ou uma recusa entre tomar partido pelo real ou pela

linguagem, já que ambos não apresentam nenhum paralelismo. 18

Cabe ainda uma última distin ção. Até esse momento, não houve

nenhuma diferenciação entre silêncio e apagamento. Seria pertinente

colocar-se a questão: seriam categorias equivalentes ? Entende -se

que há, do ponto de vista epistemológico, pelo men os duas instâncias

a serem consideradas neste caso.

A primeira, de caráter metafísico, faz referência ao indizível, ao

que se é impossível nomear. Há uma sutil diferença entre esta

categoria e a perspectiva lacaniana há pouco mencionada. O

pressuposto dessa metafísica é de um real que não se deixa capturar

pela palavra. Já para Lacan, é o desejo mesmo que estabelece essa

falta ou sobra, não porque o real não esteja lá, na exterioridade da

18 Posições, citadas por Authier-Revuz, respectivamente de Oster e Barthes.

3
2
palavra, mas porque a expectativa do real não corresponderá nunca a

ele.

A segunda instância refere -se a um processo recíproco de

apagamentos, já que se por um lado o silêncio apaga as palavras, por

outro as palavras apagam silêncios. Ao se fazerem esses

apagamentos, seja em direção à palavra, seja em d ireção a silêncio ,

criam-se, por outro lado, relações de sentido.

Assim, as palavras não só apagam silêncios porque se

sobrepõem a eles – e estabelecem, assim um silêncio por excesso -,

mas também silenciam outras palavras pelo mesmo p rocesso de

sobreposição. Igualmente o silêncio não somente apaga as palavras

porque as sobrepõe (excesso), mas porque cria uma virtualidade em

que outras palavras possíveis sobrepõem (excesso, ainda) as que

não foram ditas (ausência). Port anto, apagamento , deste ponto de

vista, mesmo provocado pela palavra, implica sempre a instauração

de um tipo de silêncio, o leva a considerá -lo como uma decorrência

do silêncio.

Estabelecidas essas distinções, pode -se retomar a que stão de

que normalmente as análises lingüísticas desconsideram os âmbitos

pragmático e discursivo da linguagem, principalmente sob o ponto de

vista do silêncio. Da perspectiva do discurso , torna-se obrigatório

considerar-se a enunciação, as condições de produção e, a partir

disso, o texto 19 como unidade de análise.

19 Entendido aqui como manifestação concreta do discurso, enquanto materialidade lingüística, dentro
da enunciação.

3
3
Isso exige que se trabalhe não só com textos isoladamente,

mas com a relação entre eles; e não somente com um dado discurso ,

mas com as relações que este último estabelece e mantém com suas

condições de produção. Isso equivale a considerar conceitos das

relações entre discursos e das relações entre textos.

Chega-se, assim, à noção de interdiscurso , que

(...) consiste em um processo de reconfiguração


incessante no qual uma formação discursiva é
conduzida (...) a incorporar elementos
preconstruídos produzidos no exterior dela própria;
a produzir sua redefinição e seu retorno, a suscitar
igualmente a lembrança de seus próprios
elementos, a organizar sua repetição, mas também
a provocar eventualmente seu apagamento , o
esquecimento ou mesmo a denegação. (Courtine &
Marandin, 1981)

E, se assim, o interdiscurso manifesta a heterogeneidade e a

alteridade, isso significa, como entende Maingueneau , que o Outro é

constitutivo do interdiscurso como falta necessária para que o sentido

possa se produzir, como “ part de sens qu’il a fallu que le discours

sacrifie pour constituer son identité ” (Maingueneau, 1984:31). A

partir dessa relação entre interdiscurso e alteridade, esse autor

chega à noção de intertextualidade como aquela que “abrangeri a os

tipos de relações intertextuais definidas como legítimas que uma FD

mantém com outras.”

E já que o texto é unidade de análise deste trabalho, essas

relações intertextuais tornam -se fundamentais para os objetivos

3
4
dessa discussão. Depois de detalhadas, cabe um retorno a

estratégias inscritas no interdiscurso que se liguem ao silêncio (o

próprio conceito citado acima, ao mencionar os termos apagamento ,

esquecimento e denegação vislumbra tal ligação).

Uma perspectiva teórica pertinente a essa discussão seria a

das operações metaenunciativas do discurso , estabelecidas por Rey -

Debove e também discutidas por Authier -Revuz. Tais operações

remetem ao ato de enunciação e, por extensão, como já foi discutido

anteriormente, aos silêncios nela inscritos. Além disso, o próprio

silêncio sobre a enunciação seria rompido, expondo indícios de

subjetividade, de heterogeneidade. A esse r espeito, seria útil citar a

própria Authier -Revuz, quando trata da modalização autonímica:

Toda forma de modalização autonímica aparece


como uma ‘costura aparente’ sobre o tecido do
dizer, ressaltando em um mesmo movimento a falha
que expõe o dizer a uma de suas não-coincidências
enunciativas, e sua sutura, seu ‘conserto’ meta -
enunciativo; mas o próprio das formas que,
inscritas no campo da relação palavra -coisa, nos
retém aqui, é que é, especificamente a uma falta de
palavras que responde esta excrescênc ia de
palavras que o ‘laço’ meta -enunciativo vem enxertar
em um ponto do fio do dizer para aí nomear a falha,
abrindo o dizer, pelo dito, sobre o que ele não diz,
fazendo ressoar em outras palavras mais esta parte
de silêncio que se experi menta nas palavras.
(Authier-Revuz, 1994: 256)

3
5
1.2 – Outros olhares sobre o silêncio

A trajetória de reconhecimento e análise do silêncio que vem

sendo empreendida neste trabalho deixa antever, a cada passo, a

complexidade e abrangência do assunto, bem como as implicações

resultantes dessa abordagem inicial. Será efetuada, em seguida, uma

breve resenha dos trabalhos que alguns autores têm feito para

conceber diferentes categorias de silêncio .

Orlandi (1992) estabelece uma classificação (dentre as muitas

que esboça) básica para o silêncio : 1) o silêncio fundante e 2) a

política do silêncio (silenciamento). Para ela o primeiro ti po “indica

que todo processo de significação traz uma relação necessária ao

silêncio ” e o segundo tipo indica que ao dizer o sujeito está,

necessariamente, não dizendo outros sentidos, uma vez que o

sentido é produzido de um lugar, de um a posição desse sujeito (1992:

55). A autora inicia a discussão com uma análise do primeiro tipo e

busca inter-relações e conseqüências a conceitos como discurso ,

interdiscurso, sujeito e história, para citar os mais evidentes. Depois,

parte para uma subcategorização do segundo tipo.

É oportuno citar o trecho em que a autora procede à

classificação:

3
6
Considero pelo menos duas grandes divisões nas
formas do silêncio : a) o silêncio fundador e b) a
política do silêncio . O fundador é aquele que torna
toda significação possível, e a política do silêncio
dispõe as cisões entre o dizer e o não -dizer. A
política do silêncio distingue por sua ve z duas
subdivisões: a) constitutivo (todo dizer cala algum
sentido necessariamente) e b) local (a censura).
(Orlandi, 1992:105)

Orlandi ainda cita outros tipos de silêncio 20: o das emoções, da

contemplação, da introspecção, da revolta, da resistência, da

disciplina, do exercício do poder, da derrota da vontade, o silêncio

místico.

Authier-Revuz, (1994),num artigo intitulado “Falta do dizer,

dizer da falta: as palavr as do silêncio” apresenta um enfoque

ligeiramente diferente sobre o silêncio . Partindo de um ponto de vista

lacaniano, da “falha ao nomear”, explora dois aspectos

complementares da relação entre a palavra e o silêncio :

primeiramente, a palavra que falta quando o sujeito tenta dizer algo;

em segundo lugar, o dizer que se constrói, através de processos

metaenunciativos, para explicitar essa falha que angustia esse

sujeito.

20 Outro autor, Dantas (1997) - que também se utiliza bastante das categorizações de Orlandi - faz
também uma coletânea de obras que tratam do silêncio. Quanto a tipologias sobre o silêncio, há uma
estabelecida por Le Breton (1997) e especialmente Rosalba-Torrelló (1996) que classifica o silêncio em: a)
epidérmico, b) interior, c) obstinado, d) da plenitude, e) ético, f) estético, g) imposto, h) massivo, i)
compassivo, j) cruel, k) criativo, l) místico, m) ascético, n) litúrgico, o) do recém-nascido, p) dos mortos. Tais
tipologias, no entanto, por seu caráter estritamente antropológico, não serão abordados nesta tese.

3
7
As posições epistemológicas de Orla ndi e Authier-Revuz são

diferenciadas. Essa visão é corroborada por Machado (1997), num

artigo denominado “Movimentos dos sentidos no silêncio ”. Embora

Orlandi despenda parte considerável de seu livro “As Formas do

Silêncio” tratando da constitutividade do silêncio , acaba valorizando

mais o que ela chama de “política do silêncio ” e, dentro desta, a

censura.

A autora, no terceiro capítulo (o livro, na verdade, parece ser

uma coletânea de artigos), ocupa -se de um estudo sobre a censura e

no último capítulo, trata da relação entre cópia e silêncio . Igualmente,

Machado (1997), em seu artigo, após resenhar as posições de

Orlandi e Authier-Revuz, acaba optando pela política do silêncio ao

analisar textos jornalísticos a respeito da empresa de energia elétrica

do Rio Grande do Sul após sua privatização.

Nesta tese, a opção epistemológica aproxima -se mais de

Authier-Revuz. A “palavra que falta” associa -se, neste trabalho, à

categoria do silêncio enquanto ausência, e os processos

metaenunciativos são da mesma natureza do silêncio como excesso.

Pretende-se discutir como essas categori as se comportam nos textos

borgeanos.

3
8
1.3 – O espelho como metáfora

Para utilizar uma imagem da Física como metáfora -base dessa

discussão, entenda -se que a imagem projetada num espelho é a luz

refletida por um corpo na superfície desse espelho ; luz que se

propaga entre o corpo e o espelho . Para que isso aconteça é

necessário que esse espaço a ser percorrido pela luz esteja livre de

obstáculos, ausente de formas que po ssam desviar a trajetória dos

raios de luz (impedindo -os de alcançarem a representação do corpo

na superfície especular ou alterando o foco dessa representação).

Do ponto de vista físico, é a diferença entre a velocidade da luz

e a velocidade da percepção do olho que faz com que nos seja

impossível perceber o deslocamento dessa imagem, preenchendo o

espaço que se considera vazio.

Dessa perspectiva, a forma de representação criada pelo olhar

é constitutivamente silenciadora desse espaço pleno de movimento,

de deslocamento.

Não cabe a este trabalho discutir se a linguagem verbal toma

essa característica do olhar como metáfora primordial 21. O objetivo

aqui é apenas o de considerar que também no texto escrito 22, em seu

nível da representação do signo lingüístico, ocorre um processo que

21 O que equivaleria discutir se essa condição física do olhar determina o olhar semiótico.
22 O texto escrito representa a soma de indícios desse deslocamento por esse espaço intermediário,
espaço que se torna silêncio.

3
9
abstrai desse espaço intermediário, mas que não o desconsidera na

constituição dos sentidos (efeitos de sentido se produzem por uma

remissão ao silêncio ).

1.4 – Espelho como processo de representação

O que faz do espelho processo de representação é o constituir -

se como espaço do olhar do Outro para o Eu: é o desejo do desejo

do Outro 23 que rompe a fragmentação inicial do Eu, porque traz

desse Outro um olhar unificador, olhar que se interioriza no Eu e que

constrói o Eu pela semiose, atravessando, percorrendo, perpassando

um espaço que decorre das relações dinâmicas – e especulares –

entre Eu e Outro.

Esse espaço tem sido apontado em diversas teorias, não só

como existente, mas como fundante dos atos d e linguagem. A Análise

do Discurso, especialmente, assume que os efeitos de sentido são

produzidos entre o Eu e o Outro.

Como não poderia deixar de ser, empreender uma discussão

desta natureza implica atravessar um emaranhado de questões

teóricas extrema mente contundentes para a AD. Será feita uma


23 Este conceito lacaniano será aprofundado no Capítulo 4 º.

4
0
alusão a elas brevemente, colocando -as como pressupostos e

referenciais de apoio para o objetivo buscado.

Um primeiro pressuposto são os conceitos bakhtinianos de

dialogismo e polifonia. A concepção da linguagem como processo

dialógico é um dos instrumentos conceituais mais proveitosos na

utilização que a AD faz de sua obra 24. Em linhas gerais, coloca como

característica constitutiva da linguagem uma relação dialética entre o

Eu e o Outro, algumas vezes marcada de ntro do próprio discurso que

se enuncia. Embora se façam leituras diferenciadas da aplicação e

das imbricações desse conceito, será utilizada a de Fiorin (1997:

229-230):

Segundo Bakhtin, a língua, em sua ‘totalidade concre ta,


viva ’, em seu uso real, tem a propriedade de ser
dialógica. Essas relações dialógicas não se
circunscrevem ao quadro estreito do diálogo face a
face. Ao contrário, existe uma dialogização interna da
palavra, que é perpassada sempre pela palavra do
outro, é sempre e inevitavelmente também a palavra do
outro. Isso quer dizer que o enunciador, para constituir
um discurso, leva em conta o discurso de outrem, que
está presente no seu. Ademais, não se pode pensar o
dialogismo em termos de relações lógicas ou
semânticas, pois o que é diálogo no discurso são
posições de sujeitos sociais, são pontos de vista acerca
da realidade (...)

24 Na verdade, esta utilização dá-se preferencialmente via Authier-Revuz. O interesse mais direto por
parte de alguns autores da AD por Bakhtin é mais recente.

4
1
Assim, considerar que o discurso do Outro está presente no do

enunciador e que o dialógico “são pontos de vista acerca da

realidade” interessa diretamente a esta reflexão, na medida em que

justifica a noção de intersubjetividade, permitindo, também,

considerações sobre o que se poderia chamar de “olhar dialógico”: o

olhar do Eu, inevitavelmente perpassado pelo do Outro, será sempre

um espaço intermediário constitutivo para a produção dos sentidos. O

espelho seria uma figurativização dessa temática.

No entanto, não basta utilizar o conceito de dialogi smo. Importa

discutir se esse processo está marcado ou não no texto, se esse

olhar plural, já em seu ponto inicial de deslocamento, deixa indícios

de seu viés. Quando as vozes do discurso se mostram, em sua

relação dialética, ocorre a noçã o de polifonia.

A Análise do Discurso opera com outros conceitos

convergentes, como o de heterogeneidade (Authier -Revuz). Para a

autora, o discurso não opera sobre a realidade das coisas, mas sobre

outros discursos, que são atravessados pelo discurso do outro e, por

isso, a fala seria fundamentalmente heterogênea. Fiorin (ibidem)

observa que tal conceito precisa teoricamente o de dialogismo. Ele

sintetiza assim a classificação de Authie r-Revuz:

4
2
A heterogeneidade pode ser constitutiva ou mostrada. A
primeira é aquela que não se mostra no fio do discurso ;
a segunda é a inscrição do outro na cadeia discursiva,
alterando sua aparente unicidade. Naquela, o discurso
não revela a alteridade na sua manifestação; nesta a
alteridade exibe -se ao longo do processo discursivo. A
heterogeneidade mostrada pode ser marcada, quando
se circunscreve explicitamente, por meio de marcas
lingüísticas, a presença do outro (por exemplo, discurso
direto, discurso indireto, negação, aspas, metadiscurso
do enunciador), e não marcada, quando o outro está
inscrito no discurso , mas sua presença não é
explicitamente demarcada (por exemplo, discurso
indireto livre, imitação). (idem, ibidem)

Nas palavras da própria Authier -Revuz, pode-se perceber a


distinção entre os tipos de heterogeneidade:

C’est aussi qui instaure, au lieu de seuils et de


frontiéres un continu um, un degradé menant des
formes les plus ostentatoires – dans leur modalité
implicite – aux formes incertaines de la présence de
l’autre, avec a l’horizon, un point de fuite ou
s’épuiserait la possibilité d ’une saisie linguistique,
dans la reconnaissance – fascinée ou désabusée –
de la présence dilué, partout, de l’autre dans le
discours. (1982: 97)

(...) Un autre type d’héterogénéité peut s’inscrire,


montré, dans la ligne du discours: celui des autres
mots, sous, dans les mots. Il n’est pas question
d’entrer ici vraiment dans ce domaine multiforme oú
se rencontrement les données matérielles du signe
(avec l’homonymie, la paronymie, la polysémie...) et
les innombrables figures ou tropes qui permettent
d’en jouer (de la métaphore et de la métonymie, aux
équivoques, calembours, à peu prés, rébus, etc...).
(ibidem) – destaques da autora.

4
3
O conceito de interdiscurso , já citado anteriormente, torna -se

importante também em relação a esta discussão, especificamente.

Nas relações dialógica s entre os vários discursos constitui -se um

espaço entrelaçado de gradações de silêncios que constróem a

intersubjetividade. O conceito de interdiscurso , de Courtine &

Marandin, já citado, relaciona -se diretamente a e ssa questão.

A alusão a apagamento e esquecimento pode permitir reflexões

sobre diferentes ocorrências de silêncios e a denegação abre uma

perspectiva de uma relação polêmica consideravelmente complexa

entre Eu e Outro, configurando algumas condições de alteridade.

Isso interessa particularmente ao objetivo desta análise; se,

como entende Authier -Revuz, a heterogeneidade marcada -não-

mostrada está a meio caminho entre a heterogeneidade constitutiva e

a marcada, pode-se vislumbrar um espaço de (des)continuidades que

organiza (aos olhos do sujeito) essa dispersão (no sentido

foucaultiano) de sentidos entre o Eu e o Outro. Da perspectiva deste

trabalho, os apagamentos, esquecimentos e denegações

mencionadas por Cou rtine & Marandin instauram o(s) silêncio (s) (por

ausência ou por excesso – Villarta -Neder, 1998) que constróem a

intersubjetividade. Espera -se que um olhar analítico e dialógico para

o corpus propicie alguns indícios dessas relações.

4
4
1.5 – O espelho de Lacan

Como será visto no Capítulo 4, o conceito de Estádio do

Espelho de Lacan apresenta aspectos significa tivos para a análise do

corpus. A imagem vista no espelho é a perspectiva do Outro,

assumida pelo Eu. Reflexo, refração e inversão. Nos múltiplos e

heterogêneos silêncios que tiram essa idéia básica, em seus

intervalos constrói-se a percepção de uma subjetividade

pretensamente poderosa e exterior ao mundo. Como neste momento

a preocupação concentra -se exclusivamente na relação que a

metáfora de Lacan possa ter com a metáfora do espelho , utilizada

nesta tese, seria oportuno ci tar um trecho de uma análise do conto O

Espelho, de Guimarães Rosa:

(...) É o olhar enquanto portador do desejo


pulsional que é perseguido, para que possa se dar
a ultrapassagem do ilusório da imagem. É aí que se
situa o porém. Édipo via: mas é quando seu olhar
se constitui enquanto olhar que sabe – de seu
desejo – que seu destino selado, registrado, se
manifesta – torna-se cego. Esse é o momento que o
espelho impede que aconteça e, ardilosamente,
“imaja-se” ante o olho, aprisionando -o na visão. A
estranha inquietude do Monstro – o desejo – há que
silenciar para que a angústia de castração se torne
suportável, ao assumir o lugar deslocado (...)
(Nunes Filho, 1983:138)

4
5
Depara-se aqui, portanto, com um silêncio sobre o silêncio ,

atravessado pela questão da alteridade. O espelho, silenciador do Eu

na imagem que dele (Eu) tem o Outro, silencia -se como efeito e

silencia o que o Eu jamais poderia dizer (também silêncio ). A

relevância teórica do co nceito lacaniano, entre muitas outras razões,

reside em pensar o silêncio dentro da relação intrínseca da

alteridade.

Partindo -se do pressuposto de que o desejo é a falta, num de

seus sentidos possíveis (o de ausência) o silêncio equivale ao

desejo. Assim, haveria uma primeira razão para afirmar que o silêncio

é constitutivo: como desejo que se projeta para um fazer no mundo, o

silêncio, enquanto pulsão, solicita a palavra que interprete, o ruído

articulado que rompa uma polissemia, indeterminada, que impede a

satisfação. Dessa forma, a falta necessita do que a preencha, a dor e

o terror precisam cessar (prazer).

Nesse impulso de romper o limite da incompletude, começa a se

estabelecer uma relação constitutiva do sujeito e da linguagem.

Impossibilitado de ver a própria face, o Eu a buscará/criará na

imagem espelhada/projetada na face do Outro (por exemplo, é a

expressão da face do Outro que me diz se meu gesto é um afago ou

uma agressão).

O que ocorre, no entanto, é que a diferenciação entre Eu e

Outro não se restringe a uma dicotomia, uma vez que esse Outro se

bifurca. Primeiramente é preciso considerar que é o desejo que cria

4
6
esse impulso, fruto da incompletude que necessita do Outro par a

suprir a dor primordial da falta. A primeira falta primordial é

representada pela impossibilidade que o corpo tem de sobreviver sem

a interação com o meio ambiente. Sendo assim, há a necessidade de

buscar no mundo os elementos que trarão a satisfação da

necessidade de se manter vivo. É possível tomar -se uma metáfora

platoniana para expressar dois aspectos desse desejo. O primeiro

deles seria o desejo -aspiração e o segundo, o desejo -apetite.

Pessanha (1990:91-92 ) faz um paralelo pertinent e entre os dois

tipos:

No primeiro, o modelo fisiológico é a respiração, que


garante a vida na medida em que insere o homem
permanentemente, na amplidão volátil e ritmada do
cosmos que, ele próprio vivo, respira; no segundo, o
paradigma - mostra Platão no Filebo - é a urgência
intermitente, episódica, da sede e da fome.

Na relação especular que os muitos silêncios deflagram, não se

pode conceber uma análise de processo sem considerar os

pressupostos da alteridade. O que Pessanha nos aponta que é em

função do desejo-apetite que se pode falar da bifurcação da

percepção do Outro.

Toda a discussão filosófica e psicológica sobre a constituição

do sujeito, dessa perspectiva, não tem como não ser perpassada

pelos primeiros contatos do bebê co m o mundo e os outros seres

4
7
humanos que o cercam. Tratam -se de necessidades biológicas,

(re)interpretadas pela cultura e pelo discurso . Assim, enquanto a

sede e a fome são saciadas pelo seio materno, depara -se ainda com

a figura do Outro c omo uma categoria mais ampla, designando tudo

aquilo que não seja o Eu. Quanto mais forte for a percepção, por

parte da criança, da separação entre o seu corpo e o da mãe, mais a

presença do Outro se instaurará e, como conseqüência, delimitará

cada vez mais, os limites constitutivos do Eu.

Ocorre, no entanto, que, com o passar do tempo, a satisfação

desse desejo primordial deixa de ser suprida exclusivamente pelo

seio materno, passando progressivamente a se transferir para a

alimentação pela ingestão ora l de líquidos e sólidos que não têm

origem humana.

A partir desse momento pode -se considerar que a relação de

alteridade já não se limita ao fato de a criança começar a perceber

que existem outros seres da mesma espécie, nos quais ela se

reconhece enquant o semelhante, embora, com tendências de

individuação. Acrescenta -se a percepção de que existem “coisas” que

não são o Eu, mas que também não são humanas.

A conseqüência mais imediata disso é que passa a existir uma

exterioridade dupla: o Outro -humano e o Outro-não-humano. Será

esse Outro -humano que fornecerá, depois de um certo tempo, a

primeira possibilidade de visualização da própria face, embora

distorcida e invertida: o espelho . Retoma-se, dessa maneira, um mito

4
8
primordial (o de Narciso ): na face-espelho da água, superfície do

elemento em que esteve imerso em sua gestação, o Eu reconhece a

própria face e se encanta por ela, inconsciente das modificações que

a refração ocasiona na imagem. Portanto, o Outro -Humano é a

medida do gesto (fazer), enquanto o Outro -Não-Humano (mundo) é a

medida da representação (linguagem).

Enquanto fonte supridora do desejo, o mundo acrescenta a

satisfação da própria imagem, simbolizada na superfície do espelho .

A representação de si próprio levará, igualmente à necessidade de

representar (simbolizar) o Outro -Humano. Dessa busca de similitude

e contraste nascerão as funções sociais futuras e os limites da

individuação.

São, então, três termos, em lugar de dois. E se quase todas as

classificações e hierarquizações privilegiam as relações binárias,

pode ser precisamente porque, das três posições possíveis (Eu,

Outro-Humano, Outro-Não-Humano), uma representa o ponto de vista

em que insere o participante do processo. Sendo assim, pel a

impossibilidade da auto -contemplação a não ser na posição do Outro

(Humano ou Não), o Eu ilude -se com a percepção binária

(estabelece-se aqui um tipo importante de silêncio ). 25

25 Nas culturas ditas ocidentais, há uma tradição de apagamento do terceiro elemento, levando a um
binarismo. Não cabe a este trabalho discutir se há no horizonte visual da criança elementos que reforcem essa
percepção ou se ela é de outra natureza.

4
9
Se for aceita essa linha de análise, chegará a se acredit ar que

uma das três posições se apaga (silencia) e que, portanto, o silêncio ,

enquanto condição epistemológica, é constitutivo não só do Eu, mas

do jogo de representação e de identificação entre o Eu e o Outro.

Sob esse ponto de vista, a palavra nasceria entremeada de

silêncio pelo simples fato de a representação somente ser possível

quando o Eu busca simbolizar a si mesmo e ao Outro -Humano no

Mundo, ou seja, pelo fato de em nenhum momento ser possível

desconsiderar um dos elementos da tríade, embora também seja

impossível considerar todos ao mesmo tempo. A necessidade do

ponto de vista, do foco do olhar, determina o elemento silenciado.

Isso coloca cada ser humano primordialmente como refém de

seu próprio silêncio (do desejo) e o silêncio (enquanto desejo) como

ponto de partida do Humano. Nesse sentido, o desejo/silêncio para o

Eu é interno.

Quando o Eu se depara com o outro, na verdade está se

deparando com um outro -Eu, só que privado (para o primeiro Eu) da

vivência da internalidade. Embora o outro tenha o desejo/silêncio

circunscrito aos limites de seu corpo, para o Eu esse outro se

manifestará apenas como a presença desses limites, de forma

externa. Ou seja, do ponto de vista do Eu, só o que é externo ao

desejo/silêncio do outro (que é um outro -Eu) é passível de

apreensão.

5
0
Essa apreensão remete a um terceiro elemento, que é a

inserção. Deste ponto de vista 26, pode-se considerar que o o lhar do

Eu traz a exterioridade do Outro para a internalidade do Eu, na

medida em que a imagem do Outro se internaliza na mente (e, por

extensão, no corpo, no desejo e no silêncio do Eu). Essa inserção

representa o mundo, que é o elemento aglutinador, constitutivo da

interação entre o Eu e o Outro, estabelecendo -se, posteriormente,

também um lugar diferenciador/diferente do Eu, mas também

diferente do Outro (estabelece -se, assim, a diferença entre o outro -

Eu humano, e o outro -não-humano, qu e é o mundo.

Um elemento também presente nessa interação é o cruzamento

de olhares. O Eu, ao perceber o olhar do Outro, inicia um processo

de constituição do humano pela identificação do Eu no Outro, sendo

este último o ser -que-olha/ser-que-deseja. Entretanto, esses dois

atributos não serão apreendidos ao mesmo tempo. Enquanto ser -que-

olha, o Outro (humano) causará identificação à medida em que o Eu

também se reconheça como ser -que-olha (para o Outro).

Já o ser-que-deseja será percebido no Outro pelo Eu q uando

esse Eu se perceber enquanto ser -olhado-pelo-outro, enquanto objeto

do desejo/silêncio do Outro, alternando de papel na interação,

fazendo-se outro do Outro, que então se faz Eu.

26 Levando-se em consideração a forma do olhar.

5
1
1.6 – Diversidades de silêncios no movimento dos sentidos

Uma primeira consideração, e que pode ser útil para delimitar

diferentes efeitos do silêncio , é a dos elementos que constituem o

processo interlocutivo. Há, neste caso, o enunciador, o enunciatário e

uma série de elementos contextuai s. Podem-se postular silêncios

contextuais, mas entende -se que estes são conseqüências desses

outros tipos, advindos do enunciador ou enunciatário.

Um segundo elemento fundamental, decorrente do primeiro

critério acima, é o dos códigos semióticos. Um prob lema teoricamente

relevante e metodologicamente complexo é o de estabelecer,

inicialmente dentro de cada código semiótico, e depois na relação

que um código estabelece com outro, até onde o silêncio de/em uma

semiose não se dá pela presenç a de outra. Assim, em relações

intersemióticas como a fala típica (face -a-face), não haveria nunca

uma ausência de um código semiótico em particular, mas uma

interpenetração. O que falta à palavra estaria preenchida pelo gesto,

pela expressão do corpo etc. Isso implica considerar que cada

semiose apresenta uma sintaxe característica e que do

entrelaçamento destas resultaria igualmente uma rede de

sobreposições e de silêncios.

5
2
A escrita literária do tipo que se está analisando ne sta tese

apresenta uma maior operacionalidade, na medida em que a inter -

relação semiótica se dá entre a escrita e a significação visual da

página, no sentido básico da diagramação. Tanto nos textos em prosa

quanto naqueles em poesia, os elementos significa tivos situam -se

nos espaços entre as letras, palavras, paragrafação, distâncias entre

títulos, subtítulos, notas, epígrafes etc. De qualquer maneira,

estabelecem-se fundamentalmente em função de gêneros

culturalmente estabelecidos e convenções de escrita t ais como

ortografia, sentido de leitura da página, alinhamento, entre outros.

A partir do pressuposto de que, para o ser humano tudo é

passível de significação, já exposto na introdução, entende -se que

não existirá nenhuma situação em que cesse o ato inte rpretativo, por

ausência total 27.

Pode-se, hoje, ler um texto de Aristóteles. Nessa situação

enunciativa o sujeito Aristóteles diz de um lugar discursivo que

depende de uma tradição interpretativa, da preservação dos

enunciados, das imagens culturalmente estabelecidas a seu respeito

(na nossa circunstância cultural) e de como todos esses elementos

dialogam com os enunciados que foram produzidos em outro

contexto, para outros enunciatários. Depende, sobretudo, de como

27 U m e xe mp lo d is so no s ve m d a filo so fia e m q ue c o n ce ito s ne g at i vo s ta i s co mo o


Nad a, o Não - s er , são p as sí v ei s d e a ná li se. O u t ro e xe mp lo i mp o r ta n te, ne s te ca so , é a
mo r te. Me s mo e nt e nd id a co mo c e ss ação to tal d a v id a e, p o r ta n to , d e to d as as co nd içõ e s
d e i nt erp r e tab i lid ad e p o r p ar te d o i nd i v íd uo , a co n s ti t uiç ão d o s uj e ito ai nd a p er ma ne ce
atra v és d a me mó r i a, d o mi to , d a hi s tó ri a e d a a u to ria .

5
3
nossas representações de autoria nos remetem a essa leitura. Se

algum estudioso surpreendesse o mundo com a afirmação de que

teria descoberto textos inéditos do filósofo grego, seria estabelecida

uma discussão complexa sobre os critérios de reconhecimento do que

seriam traços de autoria de Aristóteles. Se essas implicações forem

levadas suficientemente a sério, pode -se afirmar que, tal como a

autoria, o silêncio é sempre, necessariamente, intersubjetivo.

No caso do corpus deste trabalho, decorre um tipo de silêncio

que é eminentemente característico do processo semiótico da língua.

Obviamente, contrariamente a esta, seja por excesso ou por ausência

relativa, o silêncio permite encadeamentos enunciativos diferentes do

que se costuma enxergar na constituição da língua.

Desde o ponto de vista mais básico da semiose lingüística, sob

uma perspectiva bakhtiniana, todo signo, enquanto parte de um

sistema intersubjetivo que se pretende como ato interpretativo, é

dialógico.

Nessa perspectiva, os silêncios entendidos enquanto pausas,

interrupções e finalizações somente são significativos pois há, dentro

daquela semiose, como dentro de qualquer outra, o desejo básico de

produzir sentidos. Sentidos que se delimitam, se sobrepõem e criam

ilusões de unicidade 28. A partir deste aspecto, há, portanto, um tipo

particularmente interessante de silêncio : para que uma semiose se

estabeleça como tal, os lugares enunciativos tê m de ser marcados. É

28 Isso será visto adiante, na aplicação do conceito de função-autor, de Foucault.

5
4
imperativo silenciar a fala do outro presente na fala do Eu, sob a

pena dela, coro polifônico de um concerto barroco 29, ensurdecer, ao

mesmo tempo, o enunciador e o enunciatário com um excesso

brutalmente fragme ntador do sujeito.

Outro aspecto a ser considerado é a da relação entre silêncio e

dizer, já exposta anteriormente. Sob esse ponto de vista, pode -se

entender o silêncio como ausência (não dizer) e como excesso (dizer

demais; o que é dito sobrepondo o que não se diz). Como já foi

discutido inicialmente, são processos complementares (não se

concebe um processo de sobreposição sem a ausência do que foi

sobreposto e igualmente, o não dizer estabelece um excesso –

sobreposição, também – em relação à palavra).

1.7 – Silêncio como ausência x representação simbólica

Há pelo menos dois sentidos básicos a p artir dos quais se pode

entender a ausência como processo deflagrador da representação

simbólica. O primeiro alude à exterioridade das Formações Sociais

(FS daqui em diante) e o segundo ao interior delas.

29 A metáfora de concerto barroco, aqui, remete à sua estrutura, composta pela superposição de várias
melodias.

5
5
O primeiro refere -se ao fato de que cada FS recorta da

virtualidade do mundo (enquanto totalidade indiferenciada, passível

de referenciação) um grupo de objetos, através do valor particular

que eles assumem, como signos, passando a significarem na

instância inte r-individual, momento a partir do qual entra -se no

âmbito da ideologia. São ilustrativas a esse respeito, duas passagens

de Bakhtin(1988):

A cada etapa do desenvolvimento da


sociedade, encontram-se grupos de objetos
particulares e limitados que se tornam objeto
da atenção do corpo social e que, por causa
disso, tomam um valor particular. Só este
grupo de objetos dará origem a signos, tornar -
se-á um elemento da comunicação por signos.

Para que o objeto, pertencente a qualquer


esfera da realidade, entre no horizonte social
do grupo e desencadeie uma reação semiótico -
ideológica, é indispensável que ele esteja
ligado às condições sócio -econômicas
essenciais do referido grupo, que concerne de
alguma maneira às bases de sua existência
material.

Assim, dialeti camente, ausência é a sobra ou o excesso , ALÉM

dos objetos representativos para a FS e que vão se transformar em

signo, transformação esta que circunscreve o ideológico desta

representação sígnica.

O segundo sentido, interior a cada FS, alude ao que, na relação

entre seus objetos e signos constrói -se como DISCURSO e, assim

5
6
sendo, necessita dos apagamentos de sua gênese enquanto processo

mesmo de ausências. É no silenciamento da alteridade para com

outros DISCURSOS, gerados em outros processos, dentro de outras

FSs, que se dá tal ausência . Nesse sentido, constitutivamente, a

presença dos discursos outros se dá como índice, a partir da

ausência desses mesmos discursos. Daí serem relevantes os

conceitos, presente na AD, de Formação Discursiva, Formação

Ideológica e, principalmente, o de Interdiscurso. Nesse tecido

entremeado entre o que se pode e o que se deve dizer, numa dada

conjuntura, estabelecem -se espaço s internos de ausência (o que não

se deve e o que não se pode dizer, como já foi discutido

anteriormente).

O importante a ser dito aqui é que essa internalidade, como

constitutivamente dialógica (da perspectiva de Bakhtin) ou ess a

heterogeneidade constitutiva (do ponto de vista de Authier -Revuz)

remete sempre a uma exterioridade, exatamente aquela primeira

instância da ausência brevemente discutida acima. E remete a uma

ausência enquanto alteridade, na medida em que reconhece (ou

desconfia de) outros percursos possíveis da representação simbólica

(1) nos outros discursos, advindos de outras Formações Discursivas

e Formações Ideológicas, ou ( 2) na sombra do corpo simbólico (que é

seu próprio discurso ).

Cabe dizer, ainda, que enquanto exterioridade, cada FS traz

para o discurso a não-presença possível dos objetos inscritos no

5
7
valor de seu corpo social. Na impo ssibilidade de apropriar -se

fisicamente, corporalmente desses objetos, estes são presentificados

e representados na materialidade da constituição interacional e

ideológica do processo sígnico 30.

1.8 – Silêncios indiciados

Entre as muitas possibilidades que este trabalho permite,

talvez a mais importante seja a de refletir sobre formas de olhar para

como são vistas as representações, por parte do enunciador, de sua

função, do Outro, que ele se esquece 31 estar imanente em sua

constituição e, principalmente, do s níveis de mediação que as

palavras, entrecortadas de silêncio , estabelecem com outras palavras

(e com outros silêncios).

É possível olhar para um texto como uma teia de relações com

silêncios e com palavras e, mais do que isso, entre silêncios, entre

palavras e entre ambos. É igualmente possível ver que nesse espaço

intermediário é que os sentidos são propostos e se colocam como

30 *
De alguma forma, essa ausência dos objetos, embora destituída do caráter ideológico já foi
antevista por Aristóteles, quanto este filósofo diz que o símbolo está para algo que não está presente.
31 Pode-se considerar que tal esquecimento esteja na base do esquecimento n.º 1, apontado por
Pêcheux & Fuchs (1975)

5
8
espelho para a reflexão (com os vários sentidos que essa palavra

pode possuir) do Outro.

O processo intervalar não é desconhecido. Foucault , na

Arqueologia do Saber, ao rever a proposta de As Palavras e as

Coisas, toca numa questão próxima:

‘As palavras e as coisas’ é o título – sério – de um


problema; é o título – irônico – do trabalho que lhe
modifica a forma, lhe desloca os dados e revela, afinal
de contas, uma tarefa inteiramente diferente, que
consiste em não mais tratar os discursos como
conjuntos de signos (elementos que remetem a
conteúdos ou a representações), mas como práticas
que formam sistematicamente os objetos de que falam.
Certamente os discursos são feitos de signos; mas o
que fazem é mais que utilizar esses signos para
designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à
língua e ao ato da fala. (...)” (1987 : 56) – destaque
nosso.

É como prática, como construção nesse processo labiríntico e

sucessivo de mediações que o silêncio significa; não como um

contraponto binário da palavra, mas essencialmente como um espaço

de movimento que medeia cada silêncio anterior, cada palavra ainda

não-dita, cada discurso esvaziado de sentido pelo excesso que

também não diz e que silencia o outro, para, talvez, mantê -lo intacto

na imanência do Eu.

5
9
Brandão (1997: 287), no artigo Escrita, Leitura, Dialogicidade

cita Umberto Eco 32 para distinguir as duas instâncias através das

quais o leitor se institui no texto. A primeira delas seria no nível

pragmático, pela atenção que o e scritor tem em relação ao

interlocutor; a segunda, que nos interessa mais no momento, dá -se

no nível lingüístico -semântico e representaria a potencialidade, o

texto, frente à realização que a leitura propicia dessa potencialidade.

Nesse sentido:

É o movimento da leitura, o trabalho de elaboração de


sentidos feito pelo leitor que dá concretude ao texto. Em
graus diferentes de complexidade, um texto é sempre
lacunar, reticente. Apresenta ‘va zios’ - implícitos,
pressupostos, subentendidos que se constituem em
espaços disponíveis a serem preenchidos pelo leitor .
(idem, ibidem)

Talvez fosse necessário ampliar a noção desses ‘vazios’

apontados por Eco para o âmbito do silêncio . Sendo isso possível ,

haveria o entendimento de que os silêncios são heterogêneos e

gradativos porque basicamente as práticas que convidam o Outro a

participar menos ou mais intensamente do jogo enunciativo tecem

espaços que se fecham ou que se (entre)abrem. Por decorrência,

esses espaços por onde se entrelaça o interdiscurso como instância

dialógica e intersubjetiva, trazem o Eu -no-Outro e o Outro-no-Eu para

32 O texto de Eco comentado por Brandão é do Lector in Fabula. Em obras posteriores, o semioticista
italiano aprofunda algumas de suas posições teóricas, principalmente no que se refere aos limites da
interpretação. Esses contrapontos serão aprofundados no Capítulo 2.

6
0
seu reverso, para a intermediação dos silêncios como brechas

possíveis para a produção dos sentid os.

Cabe, por fim, fazer uma opção. Este trabalho privilegiará como

unidade de análise o silêncio enquanto heterogeneidade mostrada.

Authier-Revuz concebe o discurso enquanto heterogêneo, clivado

pela alteridade, concebe -se aqui que o silêncio constitui -se como

procedimento dessa clivagem de vozes (silenciamento), também se

constitui como uma dessas vozes . E através de indícios (mais diretos

ou menos diretos) será enfocada essa hetero geneidade onde a

presença de um Outro se insinua ou se mostra. Em função dessa

opção pela heterogeneidade mostrada, portanto, a constitutividade do

silêncio será abordada de maneira secundária.

6
1
CAPÍTULO 2

LEITURAS SOBRE BORGES

A realidade é como essa nossa


imagem que surge em todos os
espelhos, simulacro que existe por
nós, que conosco vem, gesticula e se
vai, mas em cuja busca basta ir para
sempre topar com ele

Jorge Luís Borges - A encruzilhada


de Berkeley

A primeira parte deste capítulo pretende situar a produção

borgeana num contexto crítico relevante. É sabido que muito se tem

escrito sobre Borges , das mais diferentes perspectivas. Portanto, não

se torna tarefa fácil proceder a uma seleção de um a crítica

representativa, ainda mais num trabalho como este, em que as

posições críticas possuem uma função auxiliar de contextualizar

aspectos da estética borgeana.

Tomou-se um crítico reconhecido como fio condutor para

explorar os labirintos de Borges e inserir outros autores que possam

contribuir para essa contextualização. Esse fio condutor será

constituído, basicamente, pela análise da obra borgeana enquanto

6
2
proposta poética, feita por Emir Rodriguez Monegal , um dos maiores

e mais reconhecidos críticos da literatura hispano -americana 33.

Em sua obra “Borges : uma poética da leitura”, Monegal procura

demonstrar como o escritor argentino vai construindo uma concepção

estética que inaugura um n ovo olhar para a literatura, para as

funções do autor, do leitor e da própria obra. Conhecer essa

argumentação torna -se bastante relevante para a discussão sobre

estratégias de silêncio no texto escrito, literá rio e, especificamente,

borgeano.

2.1 – Crítica francesa

Monegal aponta que foi exatamente a crítica francesa ( nouvelle

critique ) que renovou a obra borgeana e a situou num nível

internacional.

Um primeiro crítico francês, dentro des ta perspectiva, que é

analisado por Monegal é Maurice Blanchot , que aponta como aspecto

central da cosmovisão literária de Borges a noção de infinito.

33 Observe-se que há inclusão de perspectivas às vezes contempladas por Monegal, às vezes não. No
caso de Blanchot e Genette, há essa coincidência. Há acréscimo de autores como Barnatán, Campos e a
própria obra crítica de Borges.

6
3
Blanchot procura demonstrar que "qualquer espaço limitad o pode

converter-se em infinito, quando ele se torna para nós um espaço

escuro, se a cegueira (real ou metafórica) nos invade.” (Monegal,

1980: 20)

Blanchot aponta uma característica crucial do sujeito -estético

Borges:

Pour l’homme mesuré et de mesuré, la chambre, le


désert et le monde sont des lieux strictement
déterminés. Pour l’homme désertique et
labyrintique, voué à l’erreur d ’une demarche
nécessairement un peu plus longue que sa vie, le
même espace sera vraiment infi ni, même s’il sait
qu’il ne l’est pas et d’autant plus qu’il le saura.
(BLANCHOT, 1959: 116)

Pode-se entender que esse infinito, no entanto, torna -se

labirinto, na medida em que a infinitude não se dá pela extensão do

espaço de conhecimento, mas sim pel as relações. Borges propõe

sempre um universo infinitamente inter -relacional, intertextual,

ambos tidos como uma construção estética. Essa identificação entre

o livro e o mundo também será percebida por Blanchot .

Tal associação resulta em conseqüências fundamentais, senão

terríveis para uma concepção mais tradicional do fazer estético. Sem

limites de referência, “o mundo e o livro trocam eternamente e

infinitamente suas imagens refletidas”. Esse espelhamento titânico

6
4
tem uma conseqüência inevitável: ofusca o olhar, através dos

truques, enganos, artif ícios.

Percebe-se neste pormenor um aspecto profundamente

relevante para a discussão sobre o silêncio . Se, como foi visto no

primeiro capítulo, a reflexão da imagem na superfície do espelho

silencia por nos ocultar a alteridade dessa imagem, num jogo de

espelhos reduplicados, ocorre um efeito ainda mais silenciador que é

o do ofuscamento do olhar. O esquecimento número um de Pêcheux

fica, no interior deste jogo, abalado: como acreditar num sujeito que

seja fonte e origem do dizer, se este dizer ricocheteia eternamente

nas referências infindáveis, sem origem nem fim ?

Essas questões, embora via outro olhar epistemológico, não

passaram despercebidas a Blanchot , quando ele aponta a concepção

de literatura e de autoria em Borges :

Borges comprend que la périlleuse dignité de la littérature


n’est pas de nous faire supposer au monde un grand auteur,
absorbé dans de rêveuses mystifications, mais de nous faire
éprouver l’approche d’une étrange puissance, neutre et
impersonelle. Il aime qu’on dise de Shakespeare: “Il
resemblait à tous les hommes.” Il voit dans tous les auteurs
un seul auteur que est l’unique Carlyle, l’unique Whitman, qui
n’est personne. Il se reconnaît en George Moor et en Joyce –
il pourrait dire en Lautréamont, en Rimbaud -, capables
d’incorporer à leurs livres des pages ed des figures qui ne
leur appartenaient pas, car l’essentiel, c’est la littérature, non
les individus, et dans la littérature, qu’elle soit
impersonellement, en chaque livre, l’unité inépuisabele d’un
seul livre et la répétition lassée de tous le livres.
(BLANCHOT, 1959: 118)

6
5
Para Blanchot, “toda escritura é uma tradução”, embora ele

conceba a tradução como uma concepção linear, como se não

houvesse várias concepções de tradução. Quando, ao estabelecer

uma comparação com a ficção borgeana, ele diz que na tradução há

uma obra numa dupla lin guagem, percebe-se que a questão não é tão

simples assim. Blanchot silenciou sobre a concepção de tradução em

que acredita. De uma outra perspectiva, não seria uma única obra,

mas cada tradutor seria um autor diferente. Não cabe, neste

momento, optar por uma ou outra. O que interessa é que

estabeleceu -se entre uma análise crítica e a própria obra borgeana

que ela analisa, uma relação de silêncio , na medida em que também

não se coloca neste caso, que, se a comparação com a trad ução é

pertinente (e ela o é), tal pertinência não se dá por semelhança

estrutural (o fato de, no entender de Blanchot, tanto a tradução

quanto a ficção borgeana serem múltiplas). De uma perspectiva

borgeana elas são múltiplas pelas mesmas razões. Seria op ortuno

citar este trecho:

6
6
Numa tradução, temos a mesma obra numa dupla
linguagem; na ficção de Borges, temos duas obras na
identidade da mesma linguagem e, nessa identidade que não
é una, o fascinante espelho da duplicidade dos possíveis.
Ora, onde há um duplo perfeito, o original é apagado, até
mesmo a origem. Assim, o mundo, se pudesse ser
exatamente traduzido e reduplicado num livro, perderia todo
começo, e todo fim tornar-se-ia esse volume esférico, finito e
sem limites, que todos os homens escrevem e no qual eles
são escritos: já não seria isto o mundo, seria, será o mundo
pervertido na soma infinita de seus possíveis. (Esta
perversão é provavelmente o prodigioso, o abominável
aleph) (p. 23 – Blanchot, p. 118-9)

A perspicácia da análise de Blanchot sobre a estética de Borges

é instigadora. O que ficou como silêncio para a própria análise é que,

desta perspectiva estética (a borgeana), a tradução ta mbém seria

esse apagamento de origem. Mais do que isso: falta a essa análise a

percepção da alteridade. A idéia de duplo perfeito não deixa de ser

uma quimera centralizadora da posição de um sujeito que se concebe

ainda como origem e centro do dizer. Numa sala de espelhos, o terror

provocado pela multiplicação de imagens iguais é a mesma ilusão do

sujeito. Se cada imagem é invertida e se o próximo espelho vai

inverter essa inversão, na verdade nenhuma imagem será igual 34.

Somente da perspectiva de um imaginário que conceba a existência

do sujeito original e perfeito.

34 O raciocínio aqui sustenta-se na óptica e não na lógica formal. Logicamente ~(~p) = p , o que daria
a ilusão de que a inversão recuperaria o “sujeito original”. Do ponto de vista óptico, no entanto, sempre há
algum grau de deformação no processo de reflexão/refração.

6
7
Como se espera que fique ainda mais claro no decorrer desta

discussão, a estética borgeana não imobiliza, neste perverso jogo de

espelhos, nem o fazer liter ário, nem a própria escritura. Esses

reflexos multiplicados, silenciados e silenciadores, instauram uma

outra concepção de linguagem. Aliás, para Borges , apropriando -se de

Croce, a linguagem, mesmo antes de ser literária ou artística, já

consiste numa poética.

Essa outra forma de se conceber a linguagem não lhe rouba os

silêncios que a constituem, mas é fundamental frisar que os vê num

movimento, entre essas referências nunca exauridas, porque mesmo

sem terem a origem e o centramento defin idos, dependem da

participação do leitor (o que se verá mais adiante). Borges, em sua

conferência “O livro”, ao falar sobre a construção de sentidos que se

opera sobre uma obra, diz que

Hamlet não é exactamente o Hamlet que


Shakespeare conc ebeu no princípio do século XVII;
Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Goethe e de
Bradley. Hamlet foi ressuscitado. O mesmo
acontece com o Quijote. (...) Os leitores foram
enriquecendo o livro. (1979:29)

Ora, se o leitor pode enriquecer o livro, é porque essas

imagens-outras multiplicadas no jogo de espelhos não o acorrentam

6
8
numa linguagem imóvel e petrificada. Mesmo que seja numa

tradução 35.

Outro crítico analisado por Monegal é Gerard Genette , que

destaca na obra borgeana um aspecto muito ligado ao trecho citado

acima. É o caso da leitura como escritura.

Genette aprofunda alguns aspectos da análise de Blanchot ,

particularmente com relação ao conto Pierre Menard, autor del

Quijote. O crítico francês inicia discutindo (e refutando) a acusação

de pedantismo que a obra de Borges sofre costumeiramente, por

empreender um catálogo associativo de autores e obras, como se

apenas relatasse as “diferentes ent oações que têm tomado no correr

dos séculos.”

Para Gérard Genette , esse suposto pedantismo da obra de

Borges reflete algo mais profundo, uma nova concepção de autoria

como algo único, intemporal e anônimo, sendo, desta perspe ctiva,

todas as obras escritas por esse único autor . Genette aponta uma

radicalização dessa visão no conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius , mas

ela pode ser encontrada em praticamente toda a obra borgeana.

Textos como La flor de Coleridge ou mesmo trechos de seu “Ensaio

Autobiográfico” 36 são bastante enfáticos nesse aspecto. Do ponto de

35 Em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, Jorge Luís Borges, ao descrever a filosofia e literatura de Tlön diz
que “Un libro que no encierra su contralibro es considerado incompleto. A crítica de Blanchot em essa
virtude. Monegal frisa essa característica: “O paradoxo radical da análise de Blanchot é que a literatura não é
um mero engano, mas sim ‘o perigoso poder de ir ao que é, pela infinita multiplicidade do imaginário’. No
imaginário reside o infinito.” (p. 24)

36 Sinto que durante toda a minha vida tenho estado escrevendo esse único livro. (p. 66)

6
9
vista da recepção da obra de Jorge Luís Borges, no entanto, o texto

mais emblemático continua sendo, sem dúvida, Pierre Menard, autor

del Quijote.

As perspectivas apontadas por Borges para explicar esta idéia

da enumeração não satisfaz Genette , que considera mais profunda a

concepção de que

(...) a idéia excessiva da literatura a que Borges


gosta às ve zes de nos arrastar designa talve z uma
tendência profunda da coisa escrita, que é a de
extrair ficticiamente em sua esfera a integralidade
das coisas existentes (e inexistentes) como se a
literatura só pudesse manter -se e justificar-se a
seus próprios olhos c om esta utopia literária. O
mundo existe, dizia Mallarmé, para terminar num
Livro. (GENETTE, 1972:124)

No âmbito da discussão levantada nesta tese, é oportuno

cotejar esse comentário de Genette com as considerações que

Authier-Revuz faz sobre a relação entre literatura e silêncio .

Esse universo de referências e citações, depois metaforizado

em Biblioteca de Babel, altera a própria noção linear e seqüencial de

tempo, inúmeras vezes refutada por Borge s. No labirinto cíclico que é

a concepção de tempo borgeana, a identidade da obra, do autor (e do

próprio leitor) passa a ser também (inter)textual, sujeita a esse

quadro de citações e referências que, segundo Bo rges, constitui o

universo. Por isso, faz sentido, desta perspectiva, a fala final do

personagem Joseph Cartaphilus, no conto El inmortal:

7
0
Cuando se acerca el fin, ya no quedan imágenes
del recuerdo; sólo quedan palabras. No es extraño
que el tiempo haya confundido las que alguna ve z
me representaron com las que fueron símbolos de
la suerte de quien me acompañó tantos siglos. Yo
he sido Homero; en breve, seré Nadie, como Ulises;
en breve, seré todos: estaré muerto. (1989: 543 -
544)

Em seguida, Genette passa a analisar outra perspectiva crucial

na obra de Borges, que o escritor argentino desenvolve no texto

Kafka y sus precursores, no volume Otras inquisiciones : a de que

“cada escritor crea a sus precursores. Su labor modifi ca nuestra

concepción del pasado, como há de modificar el futuro.” (1989:712 –

destaque do próprio Borges). O interessante, acusa Monegal , é que

Genette compara adequadamente o ponto de vista de Borges com o

de Valéry, mas esquece-se de levar em consideração a nota de final

de página do texto borgeano e que refere essa idéia a T. S. Elliot , no

texto Points of view .

A concepção estética decorrente será uma valorização da

posição do leitor (como produtor de sentidos) e uma sacralização do

livro como objeto capaz de proporcionar, através do acesso ao texto,

esse encontro com o extraordinário 37:

37 Outro texto de Borges que toca nesta questão do fato estético é o epílogo de La muralla y los libros:
“La musica, los estados de felicidad, la mitología, las caras trabajadas por el tiempo, ciertos crepúsculos y
ciertos lugares, quieren decirnos algo, o algo dijeron que ho hubiéramos debido perder, o están por decir algo;
esta inminencia de una revelación, que no se produce, es, quizá, el hecho estético. (1989: 635)

7
1
A idéia de um livro sagrado, do Corão ou da Bíblia,
ou dos Vedas – onde também se diz que os Vedas
criam o mundo – , pode ser coisa do passado, mas
o livro conserva ainda uma certa santidade que
devemos esforçar -nos por não perder. Pegar num
livro e abri -lo mantém a possibilidade do
acontecimento estético. O que são as palavras
encostadas umas às outras num li vro ? O que são
esses símbolos mortos ? Absolutamente nada. O
que é um livro, se o não abrimos ? É simplesmente
um cubo de papel e de couro, com folhas; mas se o
lemos acontece uma coisa extraordinária; creio que
não é a mesma de cada ve z que o fa zemos. 38
(1979: 28-29)

Essa idéia de que o leitor é que, em última instância, o fator

mais importante para a trajetória de sentidos de um livro será

desenvolvida por Genette a partir das noções de Borges . Em

Pierre Menard, fundamentalmente, afirma Monegal , “(...) encontrará

Genette a base para afirmar que a leitura é... “a mais importante

operação que contribui para o nascimento de um livro ...” (GENETTE,

1972: 27)

Tal impessoalidade da tradi ção literária, ampliada de Elliot e,

segundo Genette , coincidente com Valéry, faz alusão a muitos

momentos na obra borgeana em que o indivíduo cede espaço para a

espécie.

38 Essa idéia de mutabilidade da leitura será levada às últimas conseqüências no conto El libro de
arena.

7
2
Borges desenvolverá esta idéia, apoiando -se em conceitos

como o de “tempo circular” ( Tiempo circular, Nueva refutación del

tiempo, La Doctrina de los Ciclos etc.), a irrealidade das formas e das

identidades (Ruinas circulares, O consciente e o inconsciente 39), Essa

pequenez do indivíduo diante do universo fica evidente no conto La

escritura del dios:

Que muera conmigo el misterio que está escrito en


los tigres. Quien há entrevisto el universo, quien há
entrevisto los ardientes designios del universo, no
puede pensar en un homb re, en sus triviales dichas
o desventuras, aunque ese hombre sea él. Ese
hombre ha sido él y ahora no le importa. Qué le
importa la suerte de aquel outro qué le importa la
nación de aquel outro, si él, ahora es nadie. (...)
(1989: 599)

Outro crítico me ncionado por Monegal é Jean Ricardou , que

aponta na obra borgeana o caráter labiríntico e circular. Sua análise

mais abrangente de Borges será do texto El arte narrativo y la magia

(do volume Discusión), no qual Borges analisa o romance The

adventures de Arthur Gordon Pym, de Edgar Allan Poe . A discussão

feita por Ricardou foge aos objetivos deste trabalho e, portanto, não

será pormenorizada.

39 Este texto encontra-se numa coletânea editada por Borges e que não consta de suas Obras
Completas. A edição brasileira chama-se Livro dos sonhos. São Paulo: Difel, 1985.

7
3
Já Claude Ollier debruça-se sobre o conto Tema del traidor y

del héroe, de Ficciones. Neste conto, o narrador relata a história de

seu bisavô, Kilkpatrick, herói revolucionário que se comporta como

traidor dos seus colegas, mas que não pode ser denunciado pois isto

desmobilizaria a própria revo lução. A solução encontrada é o

assassinato, mas de maneira que o traidor ficasse caracterizado

como um herói ou mártir. Esse assassinato foi concebido baseando -

se nas tramas de duas obras de Shakespeare: Macbeth e Julio Cesar.

A análise de Claude Ollier identifica no texto borgeano cinco

dramas superpostos: 1) redação de Borges ; 2) investigação de Ryan;

3) improvisação de Nolan; 4) elaboração de Shakespeare e 5)

assassinato de Júlio César. Monegal faz uma crít ica a essa

abordagem:

(...) [Ollier] Não repara que o conto de Borges não


só indica as semelhanças entre o destino de
Kilkpatrick e o de Júlio César, e entre textos de
Nolan e de Shakespeare, mas também entre o
destino de Kilkpatrick e o (futuro) de Lincoln, bem
como alude, nas entrelinhas, a outro famoso Herói
e outro famoso relato: Jesus nos Evangelhos. (...)
(MONEGAL, 1980:37)

O próximo crítico discutido por Monegal é Macherey, um

discípulo de Althusser, que se propõe a examinar as condições de

produção literária, a especificidade do discurso literário em relação

7
4
ao discurso ideológico e algum desvendamento do mecanismo da

complexidade literária. Macherey acredita que “seria preciso buscar o

sentido do texto borgiano não na leitura mas na escritura.”

(MONEGAL, 1980: 39)

Monegal aponta que, embora o modelo proposto por Macherey

possa ser considerado pertine nte, acaba sendo excessivamente

redutor, limitando -se a um único esquema. Além disso, o modelo

aplica-se bem aos textos analisados, mas apresenta problemas com

relação ao restante da obra de Borges . Também a noção de leitura, já

ressaltada por outros críticos (como Genette ), entra em contradição

com alguns postulados do modelo de Macherey 40.

Finalmente, Emir Monegal discute a leitura que Foucault faz da

obra borgeana, principalmente a partir d o prefácio de As palavras e

as Coisas. Foucault considera que Borges questiona tudo, ao fazer

indagações sobre a sintaxe, a gramática, a linguagem. Foucault

vincula o fazer borgeano a processos afásicos:

O embaraço que faz rir quando se lê Borges é por


certo aparentado ao profundo mal -estar daqueles
cuja linguagem está arruinada: ter perdido o
“comum” do lugar e do nome. Atopia, afasia.
(FOUCAULT, 1981: 08)

40 É oportuno reproduzir a citação de Wahl, com que Monegal encerra a análise da crítica de
Macherey:
“En choisissant les structures de l’ideíologie contre celles de l’écriture, Macherey ne décale pas, il
réduit: exactement comme Qui prétendrait fonder la science des rêves non das l’organisation de l’inconscient
mais dans ce Qui s’y réprésente du corps.” (p. 40)

7
5
Foucault vai além de Blanchot e de Genette, uma vez que eles

se limitaram a tentar revelar alguns aspectos subjacentes à obra de

Borges. Foucault mergulha no âmago da estética borgeana: “uma

empresa literária que se baseia na ‘total’ destruição da literatura e

que, por sua vez, paradoxalmente, instaura uma nova literatura; uma

écriture que se volta para si mesma para recriar, com suas próprias

cinzas, uma nova maneira de escrever (...)” 41

2.2 – Outros aspectos críticos

Não é novidade nem a complexidade da obra borgeana (mas

qual obra, afinal não é complexa ? – diria Borges), nem a extensão

da produção crítica sobre ela (decorrência provável da perplexidade

exercida por sua obra).

O que se pretende aqui não é uma análise exaustiva dessa

crítica e isso justifica-se por dois motivos básicos. O primeiro deles,

já aventado na introdução desta tese, é que o objetivo deste trabalho

não é um exercício de teoria literária. Busca -se em um conjunto

restrito de textos borgeanos um pretexto de se discutirem questões

sobre a relação que o silêncio estabelece com uma visão da produção

(e circulação) dos sentidos enquanto movimento dinâmico, a partir de

41 A idéia de ressurgimento das cinzas, ligado ao encontro com o extraordinário pode ser percebida na
trama do conto La Rosa de Paracelso, do livro La memoria de Shakespeare.

7
6
uma perspectiva teórico -epistemológica que é a Análise do Discurso

de linha francesa.

Sob esse prisma interessa discut ir o estético e o literário como

efeitos de sentido, como movimento, processo enquanto gênero que

representa e aciona redes de memória relativamente características

no interior do interdiscurso. Tratando -se de Borges, há que se

inquietar sempre em se falar de um conceito já intrinsecamente

problemático como o de obra.

Da perspectiva assumida aqui, parte -se inicialmente desta idéia

de que os gêneros constituem uma materialização textual (e

discursiva) sob a forma de palavras, enunciados e sentidos já -

produzidos e recuperados, sob procedimentos de esquecimentos

parciais, para que se constitua a função -autor pela apropriação de

outros dizeres (e outros silêncios). Esse parece ser um quadro

epistemológico que, a partir de concepções caras à AD francesa,

estabelece um diálogo aparentemente frutuoso como o conceito

foucaultiano de função -autor e com concepções de gênero inspiradas

em Bakhtin.

No entanto, faz-se necessário, do ponto de vista assumido aqui,

enfocar mais alguns aspectos sobre essas questões. Trata ndo-se da

produção estética borgeana – o que não impede estender essa

assunção a outros autores, em outras circunstâncias de produção -,

assumem-se alguns pontos fundamentais:

7
7
1) reconhecem-se, a partir da perspectiva discursiva exposta acima,

regularidades decorrentes (a) da produção, por parte do autor,

enquanto função -autor, de sentidos que reafirmam (e deslocam)

sentidos já existentes; (b) por utilização, por parte deste, de

signos, palavras, enunciados, estratégias textuais que atendam ao

modo através do qual se costumam associar tais sentidos à parte

formal (elementos lingüísticos) de acordo com a língua utilizada,

num determinado momento de sua configuração de historicidade

(não entendida como sucessão linear, mas como o conjunto de

práticas materiais e imaginárias que (re)configuram

constantemente as memórias inscritas no interdiscurso). Tais

regularidades devem também ser reconhecidas como fazendo

parte do repertório implícito do leitor (também como efeito do

interdiscurso), possibilitando a ele o reco nhecimento dessas

mesmas práticas e da materialização textual feita pela função -

autor como indiciadora mesma dessas práticas.

2) também como conseqüência das relações dinâmicas e

constitutivamente contraditórias dessas práticas, reconhece -se

que ao utilizar sentidos preconstruídos, mas em outras situações,

outras configurações de conflitos, contradições e relações entre

lugares discursivos, o sentido assume variações, fazendo o mesmo

transformar-se em outro, pelo deslocamento de seus efeitos e pela

(re)construção incessante de sua historicidade (mesmo que alheia

7
8
total ou parcialmente ao sujeito, ainda quando esteja atuante na

função-autor 42).

3) Em vista dessa dinamicidade de sentidos outros, a historicidade da

produção de uma função -autor, pensada enquanto proje ção de

uma trajetória dessas relações num espaço de tempo, tem que ser

admitida como em movimento, já que essas (re)configurações são

mutáveis. Portanto, entende -se que buscar regularidades não

implica jamais que elas sejam estáticas, como se os sentidos s e

congelassem e assumissem um arcabouço rígido 43. Assim, um

modelo epistemológico, externo à AD francesa, mas que se mostra

útil neste contexto, é o conceito proposto por W ittgenstein de

“semelhanças de família”.

Para W ittgenstein , se se tentar definir quais são os traços

essenciais de um jogo, haverá um fracasso. Como encontrar um traço

comum ao futebol, ao xadrez, à paciência, às brincadeiras de roda,

às anedotas, por exemplo. O que permite a identificação de u m tipo

42 Segundo Foucault (1992:46) “(...) característica do modo de existência, de circulação e de


funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade.”
43 Na verdade, nem mesmo a metáfora do esqueleto serviria hoje para sustentar tal visão paralisante.
Sabemos que é falsa a noção de rigidez que atribuímos ao esqueleto dos vertebrados. Além de ser uma fonte
de fabricação e renovação de glóbulos sangüíneos (medula óssea), além da função de dar forma e sustentação
aos órgãos, o esqueleto é responsável pelo controle do nível de utilização de cálcio no corpo, o que aumenta
ou diminui sua porosidade continuamente, na medida em que retira ou acrescenta cálcio aos ossos ou o repõe
na corrente sangüínea ou nos músculos.

7
9
de jogo A a um B não implica que seja a mesma com um C. Por

exemplo, se forem tomados o futebol (A) e o xadrez (B),

identificaremos como elemento comum a competição, que desaparece

num elemento (C) como o jogo de paciência. Pode -se encontrar como

elemento comum o entretenimento, mas vários outros traços

desapareceram. Tais identidades dinâmicas levam o filósofo

austríaco a postular o conceito de semelhanças de família:

E o resultado desta observação é: vemos uma


complicada rede de semelhanças que se
sobrepõem umas às outras e se entrecru zam.
Semelhanças em grande e pequena escala.
Não posso caracterizar melhor essas semelhanças
do que por meio das palavras ‘semelhanças
familiares’; pois assim se sobrepõem e se
entrecru zam as várias semelhanças que ex iste m
entre os membros de uma família: estatura, traços
fisionômicos, cor dos olhos, andar, temperamento,
etc., etc. – E eu direi: os ‘jogos’ formam uma
família.(Wittgenstein , 1994:52)

A utilização de um conceito da mesma natureza d entro do

arcabouço epistemológico da AD francesa seria extremamente

operacional. Já que essa (re)configuração de sentidos deslocados do

mesmo para o outro (e do outro para o mesmo, por que não dizer ?),

implica uma dinamicidade nos elementos que compõem a

regularidade (a língua continuamente transforma -se, as relações

entre FSs, FIs e FDs transforma -se igualmente), tais regularidades

teriam que ser vislumbradas no quadro dessa dinamicidade.

8
0
Sob essa perspectiva, a própria concepção de obra se

reconfigura. Encontrar identidades que nos permitam atribuir a uma

assinatura uma função -autor, significa, deste ponto de vista, aceitar

que essas regularidades se deslocam continuamente, tal como as

“semelhanças de família” de W ittgenstein .

Talvez um grande equívoco na análise da obra borgeana

(Monegal aponta, por exemplo, críticos franceses que fracassaram ao

atribuir características a alguns textos da produção borgeana e que

se mostravam inaceitáveis em outros contextos do conjunto da obra

de Borges). A análise pretendida nesta tese prefere apostar nessa

dinamicidade que não inviabiliza as regularidades, mas que as

concebe em movimento. Isso não isenta o trabalho de outros

equívocos, já que o equívoco, de alguma forma, faz parte desta

inserção da alteridade na tentativa unificadora da função -autor. Mas,

por um determinado prisma, caracteriza melhor o viés discursivo

assumido aqui.

Um aspecto importante na produção borgeana é a da inclusão

de Jorge Luís Borges ao que T.S. Elliot chama de “crítica de

praticantes”, ou seja, que o próprio escritor assuma também um papel

crítico, não só de suas obras, mas da de outros.

Esta perspectiva, incrementada imensamente no decorrer do

século XX assume não só uma indissociabilidade da criação e da

discussão estética (também enquanto criação), mas repensa o papel

8
1
do crítico. É o que Monegal percebe em Octavio Paz, segundo o qual

é função do crítico facilitar a comunhão poética e, depois, retirar -se.

Monegal considera que

(...) a crítica não consiste apenas na formação de


um âmbito intelectual, por mais importante que
seja. Implica também, a produção de um ‘duplo’ da
própria obra: duplo que se estende pelo campo do
discurso, o que a obra ‘diz’ no campo da poesia.
(...) (1980: 63)

Este entrecruzamento entre o crítico e o autor encontra outras

simetrias, tais como a identificação entre crítico e leitor (o que se

pode entender como decorrentes de um entrecruzamento entre as

funções de autor e leitor):

(...) Por ser apenas o condutor, o poema não ‘contém”, mas


‘transmite’ a poesia. A crítica faz o mesmo. Sob este ponto
de vista, o crítico não é senão um leitor privilegiado, um leitor
que conduz os outros ao poema, que facilita a transmissão.
Mas cabe também dizer , ao revés, que o leitor é um crítico,
já que ao realizar sua função, isto é; ao ler, escutar ou repetir
o poema, o reproduz. ‘Cada vez que o leitor revive deveras o
poema, acede a um estado que podemos chamar poético’,
escreveu Paz. Com sua habitual concisão, Borges dissera
(adaptando Schopenhauer) que cada homem que lê uma
linha (um verso) de ‘Shakespeare es Shakespeare’. (1980:
64)

Subjacente a afirmações borgeanas desta natureza pode -se

vislumbrar o quanto as c oncepções de realidade no interior da

produção estética de Borges são depositárias do idealismo filosófico,

8
2
notadamente de Berkeley. Estas concepções podem ser encontradas

em vários de seus textos, mas um deles que se torna bastante

representativo (inclus ive pela enumeração de alusões a outros textos

que fazem o mesmo) é Nueva refutación del tiempo , publicado em

Otras Inquisiciones .

Obviamente, esta concepção tem profundas implicações em

questões relacionadas à autoria e à função do leitor. O próprio

Monegal aponta isso, quando, ao analisar a frase de Borges, diz que

Quando Borges cita Schopenhauer em alguma parte


de seus contos para dizer que ‘todos os homens
que repetem uma frase de Shakespeare são
Shakespeare ’, não é para dividir com os leitores a
glória do mestre elizabetano, mas para aniquilar as
pretensões de paternidade literária que este
pudesse ter. Ninguém é alguém. Shakespeare é
todos (como suspeitou romanticamente De
Quincey); Shakespeare é ninguém, como agora
insinua Borges. (1980:69)

Ninguém discordaria de que o idealismo está profundamente

impregnado em dizeres como esse. No entanto, há que se tomar

cuidado com os jogos borgeanos. Já na introdução a Nueva

refutación del tiempo , o argentino diz descrer da negação do tempo

que escreveu, a partir de Berkeley e Leibniz. (De)negação espelhada

? Depende do enfoque. O que nos interessa, neste momento, é que

essa afirmação de que todos que lêem Shakespeare são Shakespeare

8
3
encontra-se em vários textos, atribuídos ora a Schopenhauer, ora a

uma das igrejas de Tlön (do conto Tlön, Uqbar, Orbis Tertius ) ou sem

autoria definida em La forma de la espada . 44

O paradoxal, aqui, é que mesmo adotando um postulado

extremadamente idealista, a estratégia de Borges permite -se analisar

de uma perspectiva discursi va. A análise de Monegal, na última

citação acima, fornece -nos uma chave valiosa para este viés.

O que está em jogo é a atribuição de autoria. Em diferentes

textos, Borges atribui diferentes autorias a um mesmo enunciado. A

anulação da paternidade autoral (inclusive como auctoritas ) de

Shakespeare, coloca o leitor não como criador todo -poderoso, mas

como um autor-provisório que remexe as cinzas dos dizeres

esquecidos, enquanto autoria, para poder instaurar -se na função-

leitor, que, do ponto de vista borgean o, tem elementos comuns à

função-autor, pelo menos no que se refere a essa dinamicidade e

ilusoriedade da assinatura da palavra.

44 Cf . nota n.º 18, à página 64 de Monegal (1980).

8
4
Pode-se, de uma perspectiva da AD francesa, entender que

mesmo que Borges insistisse na sua concepção idealista (seria

arriscado acreditar ingenuamente que Borges realmente acreditasse

nela senão como jogo e armadilha para o leitor), o processo é

descritível por uma concepção de interdiscurso. O leitor que recria o

texto, a obra, é Shakespeare porque participa de uma memória

discursiva que lhe permite referir -se a um personagem -autor

Shakespeare que ele (leitor) precisa interligar na rede de

interpretações que as formações de que participa e com as quais

dialoga, no encontro ou no confronto, e que lhe direcionam enquanto

reconhecimento do que seja literário, estético, e, particularmente, das

imagens do que seja tipicamente um texto com uma designação de

assinatura chamada Shakespeare. Shakespeare é, ao mesmo tempo,

ninguém, já que alguns dos seus sentidos precisam ser apagados

enquanto apropriações necessárias a serem feitas pelo leitor, modos

e instâncias de leitura do que este imagina ser a obra do escritor

inglês.

Por outro lado, enquanto esta assinatura de autoria permanecer

nas redes de memória podendo ser atribuível às regu laridades

textuais e de sentidos já -construídos (re)tomados pelo leitor, cada um

que lê Shakespeare estará atualizando a função -autor a que aquela

assinatura induz.

O labor borgeano é interdiscursivo. Barnatán (1977:48),

comentando o processo de criação d e Pierre Menard, autor del

8
5
Quijote, cita uma versão do próprio Borges para o conto (ele não cita

a fonte):

Assim havia um pouco a idéia de que não


inventamos do nada, de que se trabalha com a
memória, ou, para falar de uma forma mais exata,
que se trabalha com o esquecimento.

É notável a afinidade com elementos tão constitutivos da

abordagem da AD, especialmente a de interdiscurso. Mais adiante,

comentando o conto Funes, el memorioso , retorna essa questão da

memória, nas palavras de Borges, citadas por Barnatán:

Queria dormir e não podia. Para dormir é


necessário esquecer um pouco as coisas. Nessa
época eu não podia esquecer. Fechava os olhos e
imaginava-me, com os olhos fechados, na minha
cama. Imaginava os móveis, os espelhos,
imaginava a casa. Imagi nava o jardim, as plantas,
havia estátuas nesse jardim. Para me libertar de
tudo isso, escrevi esta história de Funes, que uma
espécie de metáfora da insônia, da dificuldade ou
impossibilidade de abandonar o esquecimento. Já
que dormir é isso: abandonar -se ao esquecimento
total. Esquecer a sua identidade, as suas
circunstâncias. Funes não podia. Por isso morreu,
finalmente, esmagado. (...) (1977: 49 -50)

8
6
CAPÍTULO 3

AUTORIA, PAPEL DO LEITOR E EFEITO ESTÉTICO

(...) a própria obra literária postula a


realidade de sua ficção, ao introdu zir -
se como realidade no mundo que seus
personagens habitam.

Emir R. Monegal – Borges: uma


poética da leitura

Um livro é produ zido, evento


minúsculo, pequeno objeto manejável.
A partir daí, é a prisionado num jogo
contínuo de repetições; seus duplos,
a sua volta e bem longe dele,
formigam; cada leitura atribui -lhe, por
um momento, um corpo impalpável e
único; fragmentos de si próprio
circulam como sendo sua totalidade,
passando por contê -lo quase todo e
nos quais acontece -lhe, finalmente
encontrar abrigo; os comentários
desdobram-no, outros discursos no
qual enfim ele mesmo deve aparecer,
confessar o que se recusou a dizer,
libertar-se daquilo que, ruidosamente,
fingia ser.

Michel Foucault – História da Loucura.

Entre as grandes controvérsias existentes nas discussões sobre

linguagem, uma que ocupou um espaço considerável , principalmente

a partir da segunda metade do século passado, foi a do papel do

leitor. Silenciado durante muitos séculos, o leitor passou a ter um

status cada vez mais prestigiado, chegando, em alguns modelos, a

8
7
ser concebido com uma função capaz de determinar, sozinho, o

sentido de um texto.

Obviamente, o assunto interessa a est a tese, por duas razões

básicas: a primeira, porque na discussão sobre a participação que o

silêncio tem na produção e no movimento dos sentidos, não há como

escapar de se tratar de autoria, função do leitor e questões

correlatas. Em segundo lugar, porque Jorge Luís Borges caracteriza-

se, entre outras coisas, por um tipo de valorização do leitor e de uma

proposta estética que redistribui as funções de autoria, leitor e texto.

Essa dicotomia autor/leitor apresenta silêncios e

silenciamentos. Talvez o maior desses silenciamentos, que de alguma

forma já vem sendo discutido neste trabalho, é o de processo, de

movimento. Os sentidos não são estáticos, eles es tão em contínuo

movimento processual. Isto significa que as funções autor /leitor

apresentam continuidades, contradições, que elas recobrem -se uma à

outra no interior deste movimento.

Não há como se conceber autoria sem que se l eve em

consideração que esta função pressupõe, mesmo que num quadro

mais amplo, o que é entendido por leitura. Se isso parece exagero ou

uma extrapolação pouco confortável do conceito de leitura, bastaria

trabalhar com o conceito de jogo de imagens, de Pêc heux, para se

obterem os mesmos efeitos. Se, de imediato, não se identifica tal

conceito com a leitura em si, fica difícil, todavia, afirmar -se que o

jogo de imagens não é da mesma natureza do processo de leitura .

8
8
Já a leitura, por sua vez, pressupõe um fazer, uma realização

complexa de uma série de tarefas que deslocam o leitor de uma

decodificação passiva, para inscrevê -lo numa produção, também de

natureza muito semelhante à da autoria.

Se se pensar ainda no conceito de alte ridade, fica ainda mais

nítida a reconfiguração dessa dicotomia. Se em cada ato de

linguagem existe um Outro que permeia a fala do Eu, esse processo

vai ocorrer igualmente em relação às funções de autor e leitor. Não

se concebe um leitor que não esteja prenhe de autoria e vice -versa.

Este é um ponto para ser discutido e assumido como viés desta

tese: supervalorizar autor ou leitor, qualquer um, é cair na armadilha

fácil de romper com e ssa alteridade. Não existe nem autor nem leitor

todo-poderoso, pela simples questão que um subjaz ao outro.

Reciprocamente.

É claro que existe uma objeção clássica: mas, afinal, o que o

texto diz ? Onde está a materialidade d o texto ? A materialidade do

texto existe, assim como existe a materialidade do autor e do leitor.

Igualmente há a materialidade das condições de produção.

Não há meios de se fazer efetivamente AD se forem ignoradas

as condições de produção do discurso . E, nessa rede de

materialidades, existirão configurações diferentes, com maior ou

menor participação de cada um desses elementos mencionados

(autor, leitor, texto, condições de produ ção). O caso -limite situa-se

nos gêneros em que o sentido de um texto é produzido exatamente

8
9
pela negação/reinterpretação do que está indiciado na superfície

textual e lingüística. É o que ocorre com a alegoria, a fábula, a

parábola, entre outros.

Numa parábola, por exemplo, tanto autor quanto leitor

assumem, por exemplo, que a palavra “peixe” não pode ser entendida

com o sentido esperado, e muitas vezes nem pelo que se costuma

chamar, em algumas teorias, de conotação 45.

Portanto, numa parábola, os sentidos produzidos pelo autor

estão igualmente indiciados no texto, mas supõem um trabalho por

parte do leitor, em primeiro lugar, de saber que aquelas palavras não

significam aquilo que se esperaria que s ignificassem. Reboul (1998),

ao tratar da alegoria, chega a uma conclusão instigante: a alegoria

funciona enquanto tal porque desenvolve uma “pedagogia do

mistério”, motivando o leitor a construir um percurso parecido com o

do autor. Há que se lembrar, porém, que os caminhos construídos por

esse autor têm suas marcas silenciadas.

Neste contexto, a dicotomia autor /leitor, de uma perspectiva

que leve às últimas conseqüência s conceitos bastante básicos de AD

pode ser pensada como uma relação, um movimento: uma maneira

mais dinâmica, mais representativa de um processo imensamente

mais dinâmico, sutil e dialético.

45 Esse fenômeno pode ser melhor compreendido pela explicação da teoria do alegorismo, neste
capítulo e pela análise do texto El espejo de los enigmas (4º Capítulo).

9
0
Essas considerações são importantes porque a análise de

textos borgeanos pode levar, superficialmente, a uma impressão de

supervalorização do leitor, como se o autor fizesse um papel

secundário.

Para empreender-se esta discussão, serão abordados aspectos

ligados à função de autor , leitor, bem como alguns apontamentos

sobre a relação entre autoria e efeito estético. Para isso,

primeiramente será feita uma incursão em um autor bastante citado

nesse assunto: Umberto Eco . Em seguida os conceitos -chave deste

capítulo serão discutidos à luz da Análise do Discurso e de suas

relações com o silêncio .

3.1 – Autor, leitor e texto

Serão discutidas, neste item, três obras do semioticista italiano

Umberto Eco que se tornaram discursos fundadores com relação aos

limites da interpretação, aos papéis do autor e do leitor e da abertura

de uma obra estética, enquanto convite a um tipo específico de leitor,

participante.

Tais temas interessam profundamente, não só à discuss ão de

conceitos que depois serão abordados de uma perspectiva da AD

9
1
francesa, mas também pela relação estreita que têm com pontos

centrais da estética borgeana.

3.1.1 – Obra Aberta

Um dos pontos de partida do livro Obra Aberta, publicado nos

anos 60 do século passado, foi inspirar -se por uma epistemologia

característica da física quântica, que já não estabelece o fenômeno

como estático e/ou indiferente à posição do observador. Não se

conceberá mais que se pense um elétron numa posição rígida “a” ou

“b”. Ele terá que ser calculado como uma incidência numa zona de

probabilidade 46.

Eco, com relação à obra (preferencialmente estética), irá

desenvolver raciocínio semelhante: as funções de autor e leitor

(especialmente esta última), são noções que se recobrem, uma como

46 Para se ter uma idéia das implicações provocadas pelo elétron na epistemologia da Física, veja-se
este trecho de Gleiser (MAIS! , Domingo, 14/12/97):
O elétron criou sérias dores de cabeça para os físicos do início do século 20. Em 1924, o físico
francês Louis de Broglie propôs que, tal como Einstein havia sugerido para o fóton (partículas de radiação
eletromagnética) em 1905, elétrons também exibem a chamada dualidade onda-partícula, isto é, exibem
propriedades físicas de ondas, como a difração, e também propriedades de partículas. Tudo depende do
preparo do experimento. Essa dualidade de comportamento sugere que na realidade o elétron não é partícula
nem onda. Mas nós apenas sabemos representá-lo através dessas duas imagens concretas. E já que o elétron
exibe esta ou aquela propriedade, de acordo com os detalhes do experimento, o próprio observador tem um
papel na definição da realidade física do elétron. Não podemos dizer que um determinado elétron existe antes
de ele ser observado.

9
2
potência da outra, num movimento de constituição de sentidos, tal

qual uma zona de probabilidade.

“Obra Aberta” representou um momento privilegiado de

discussão no final dos anos 60 do século passad o. Talvez na esteira

de Borges (se não se pode afirmar com plena convicção a influência

de Borges num Eco semioticista ou estudioso de estética, o mesmo

não acontece com o literato).

Uma das primeiras necessidades a se colocar é alguma

determinação do que constitui uma obra, conceito bastante amplo e

cada vez mais polêmico nos estudos estéticos.

No início do primeiro ensaio que caracteriza o livro, Eco

entende por obra “um objeto dotado de propriedades estruturais

definidas, que permitam, mas coordenem, o revezamento da

interpretações, o deslocar -se das perspectivas.” (1976:23).

Nota-se, aqui, um forte apelo estrutural, característico do

momento epistemológico que se vivia. Há que se atentar, no entanto,

para o fato de que a conceituação de obra, genericamente, já supõe

um deslocamento de perspectivas, um descentramento de uma

posição exclusiva ou supervalorizada de um autor todo-poderoso 47.

47 Essa epistemologia encontra justificativa, por parte de Eco numa relação entre o modelo de análise e
as condições históricas:
“Fixar portanto a atenção, como temos feito, sobre a relação fruitiva obra-consumidor, como se
configura nas poéticas da obra aberta, não significa reduzir nossa relação com a arte aos termos de um puro
jogo tecnicista, como muitos gostariam. É, pelo contrário, um modo entre muitos, aquele que nos é permitido
por nossa específica vocação para a pesquisa, de reunir e coordenar os elementos necessários a um discurso
sobre o momento histórico em que vivemos.” (p. 36)

9
3
Mais adiante, esta opção epistemológica ficará mais evidente,

quando Umberto Eco afirma que “(...) uma obra é ao mesmo tempo o

esboço do que pretendia ser e do que é de fato, ainda que os dois

valores não coincidam(...).” (1976:25). Neste caso, já aparece a

participação do leitor . A expressão “ao mesmo tempo” tem aqui uma

importância decisiva. Uma leitura atenta de “Obra aberta” jamais

poderia impunemente atribuir ao pensador italiano uma radicalização

da função-leitor.

Seria oportuno relatar brevemente a discussão que o Umb erto

Eco faz da teoria do alegorismo, vigente na Idade Média. Segundo tal

concepção, que visava inicialmente a uma hermenêutica bíblica, mas

que foi estendida posteriormente a outros tipos de textos, haveria, no

texto, quatro níveis de sentidos: 1) literal ; 2) alegórico; 3) moral e 4)

anagógico.

Tal teoria apresenta suas raízes em São Paulo 48 e foi

desenvolvida por São Jerônimo, Agostinho, Beda, Escoto Erígeno,

Hugo e Ricardo de São Vitor, Allain de Lille, Boaventura, Tomás e

outros, tornando-se, posteriormente, o eixo da poética medieval.

Sob tal perspectiva, por exemplo, a saída dos hebreus do Egito

descrita no livro bíblico do Êxodo 49, no sentido literal significariam a

libertação da escravidão naquele país, no tempo de Moisés; no

alegórico, a redenção a través de Cristo; no sentido moral, significa a

48 Vide capítulo 4, onde há um texto de Borges que discute este trecho de São Paulo.
49 Eco cita a “Epístola a Cangrande della Scala (XIII)”, de Dante Alighieri, onde há um verso sobre o
fuga dos hebreus do Egito, analisado por Dante sob o enfoque da teoria do alegorismo medieval.

9
4
conversão da alma, do pecado para a graça e, finalmente, no sentido

anagógico, “a saída da alma santa da servidão desta corrupção para

a liberdade da glória eterna 50.”

Umberto Eco faz a ressalva pertinente com relação à abertura

das leituras feitas sob esta teoria do alegorismo medieval:

Mas, nesse caso ‘abertura ’ não significa amente


‘indefinição ’ da comunicação, ‘infinitas’
possibilidades da forma, liberdade de fruição; há
somente um feixe de resultados fruitivos
rigidamente prefixados e condicionados, de maneira
que a reação interpretativa do leitor não escape
jamais ao controle do autor . (1976:43)

Num certo sentido, pode -se até conjeturar que os textos

posteriores que o próprio Eco tenha escrito, mais direcionados para

as características internas da obra, devam -se mais ao rumo que a

recepção desses conceitos teve do que a uma percepção de falha

epistemológica.

Ao evocar essa simultaneidade e recipro cidade entre funções

do autor e do leitor, Eco sugere que a obra tem que ser pensada

numa relação, num contexto processual, enfim, numa concepção de

50 Nas palavras de Dante: “(...) si ad anagogicum, significatur exitus animae sanctae ab huius
corruptionis servitute ad aeternae gloriae libertatem.” Dante, Alighieri. Epístola a Cangrande della Scala. In:
http://www.fh-augsburg.de/~harsch/augusta.html#it Tradução sob responsabilidade da edição brasileira de
“Obra aberta” (op. cit.).

9
5
movimento 51. Embora no âmbito do estruturalismo, Eco, em vários

pontos do texto traz à tona a polêmica criada com Lévis -Strauss,

quando da primeira edição de Obra Aberta, pelo fato de o antropólogo

francês ter considerado que uma obra, do ponto de vista estrutural,

deveria ser “rígida como um cristal ”, ponto de vista com o qual

Umberto Eco não concorda, achando esse último que para se fazer

uma análise estruturalista não é necessário optar por essa rigidez 52.

Eco propõe-se a analisar preferencialmente a obra de arte. E se

já entende que qualquer obra, em geral, tem esse dinamismo, na obra

de arte, em particular, reconhece que esta “é uma mensagem

fundamentalmente ambígua, uma pluralidade de significados que

convivem num só significante.” (1976: 22).

Novamente a relação entre a utor e leitor dinamiza -se e o fato

de o leitor passar a ter o reconhecimento de um papel mais

participativo não exclui a perspectiva autoral:

51 “(...) o âmbito do discurso é o período do qual nós próprios somos ao mesmo tempo juízes e
produto, o jogo das relações entre fenômenos culturais e contexto histórico torna-se muito mais intrincado.”
(p. 35)
52 Eco tem o cuidado, para não negar uma validade estrutural de sua análise, de conceituar forma,
dentro da perspectiva da obra aberta:
“Uma forma é uma obra realizada, ponto de chegada de uma produção e ponto de partida de uma
consumação que – articulando-se – volta a dar vida, sempre e de novo, à forma inicial, através de perspectivas
diversas.” (p. 28)

9
6
(...) uma obra de arte é um objeto produzido por um
autor que organiza uma seção de efeitos
comunicativos de modo que cada possível fruidor
possa recompreender (através do jogo de respostas
à configuração de efeitos sentida como estímulo
pela sensibilidade e pela inteligência) a
mencionada obra, a forma or iginária imaginada pelo
autor. (1976: 40)

Pode-se, desde já, considerar uma diferença significativa entre

as funções exercidas por autor e leitor. No capítulo anterior pôde -se

iniciar a discussão de como tais funções são encaradas e

trabalhadas dentro da estética borgeana, o que será mais detalhado

na segunda parte deste capítulo.

Se se conceberem autoria e função de leitor como co-

participantes em ambas funções, haverá, efetivamente, do ponto de

vista epistemológico, um movimento de sentidos. Antes de ser autor

de um texto escrito (e ao mesmo tempo em que o é), qualquer autor é

também leitor. O leitor, por sua vez, por mais direcionado q ue seja

um texto ou por mais restritivas que sejam as condições de leitura

deste mesmo, exercerá uma atividade criativa, assemelhada àquela

empreendida pelo autor . Se, de uma perspectiva discursiva,

assumem-se conceitos como alteridade, dialo gismo, surge a

obrigação de se curvar para a questão de que os sentidos não se

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7
produzem sozinhos 53. Impossível, portanto, pensar -se o autor sem o

leitor ou o leitor sem o autor. Um pressupõe o outro, em cada

instância própria em que cada uma dessas funções se coloca.

A questão epistemológica que se estabelece, neste caso, é a da

validade da dicotomia. Se autor é também leitor , e se leitor é também

autor, para que continuar trabalhando com tal distinção. Será que ela

já não teria perdido sua operacionalidade conceitual ? Não, se se

pensar que uma diferença pode ser nitidamente caracterizada: a

natureza dos significantes disponíveis para cada fun ção.

Numa concepção ampliada de signif icante, extrapolando -se a

língua, pode-se conceber que o autor tem inicialmente à sua

disposição significantes lingüísticos e não lingüisticos (textos;

memória de textos, fatos, pessoas, filmes, músicas; gravuras, fotos,

mapas, músicas etc.) e, através destes, irá compor um texto,

concretizado em significantes lingüísticos e não lingüísticos

concretos (texto, imagens estáticas, gravuras, tabelas 54 etc.). O

leitor, por sua vez, já terá imedia tamente à sua disposição , como

condição prévia da leitura (embora tal aspecto não garanta em si

mesmo uma leitura aceita ou reconhecida como válida) um texto

constituído por significantes lingüísticos e não lingüísticos, mas já

colocados na superfície do t exto pelo autor. A partir destes

53 Embora Eco não esteja inserido no mesmo contexto epistemológico da AD francesa, faz uma
observação sobre estética que apresenta um aspecto convergente com este ponto da discussão: “Em estética
(...) a relação entre intérprete e obra foi sempre uma relação de alteridade.” (p. 33)

54 Não se nega aqui a materialidade dos significantes da memória e do silêncio. O que se está dizendo
é que tais significantes são constitutivamente silenciados para o leitor.

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significantes, tal leitor construirá outros (de memória, de silêncio ) e

atribuirá significados àqueles propostos pelo autor e a esses,

interpolados por si mesmo. D e um ponto de vista discursivo, seria

mais adequado falar-se em construção de sentidos.

De outra perspectiva, Umberto Eco também propõe uma

reflexão que pondera que a posição do autor não está sendo

desfigurada por seu conceito d e obra aberta:

O autor oferece, em suma, ao fruidor uma obra a


acabar: não sabe exatamente de que maneira a
obra poderá ser levada a termo, mas sabe que a
obra levada a termo será, sempre e apesar de tudo,
a sua obra, não outra, e que ao te rminar o diálogo
interpretativo ter-se-á concretizado uma forma que
é a sua forma, ainda que organizada por outra de
um modo que não podia prever completamente:
pois ele, substancialmente, havia proposto algumas
possibilidades já racionalmente organizadas e
dotadas de exigências orgânicas de
desenvolvimento. (1976:. 62)

De uma perspectiva espelhada, Borges tem especialmente dois

textos que apresentam, por silenciamento, tal perspectiva. O primeiro

é a parte inicial de uma advertência ao le itor de Fervor de Buenos

Aires: “Si las páginas de este libro consienten algún verso feliz,

perdóneme el lector la descortesia de haberlo usurpado yo,

previamente.” (1989: 16)

O outro, é uma das conferências ministradas por Borges ,

publicada no volume Siete Noches (La poesia):

9
9
Bradley dijo que uno de los efectos de la poesia
debe ser darnos la impresión, no de descubrir algo
nuevo, sino de recordar algo olvidado. Cuando
leemos um buen poema pensamos que también
nosotros hubiéramos podido escribirlo; que ese
poema preexistia en nosotros. (1989: 257)

Nestes dois trechos, pode -se perceber que inicialmente Borges

se coloca numa perspectiva de apagamento do autor e valorização do

leitor. No entanto, o que se silencia aqui é que se, de alguma forma o

autor subtraiu ao leitor algo que era deste último, a partir deste

momento, como já -dito, passa a pertencer à instância a partir da qual

diz o autor. Isso pode ser relacionado com o a afirmação de Eco que

a obra levada a termo será a do autor e não qualquer outra.

Outro ponto importante nesse sentido de não (de)negação da

posição do autor ocorre quando o semioticista italiano diz que a

noção de obra aberta “(...) indica não propriamente como são

resolvidos os problemas artísticos, mas como são propostos. “ (1976:

26)

Eco prossegue analisando os vários períodos estéticos

(Barroco, Romantismo/simbolismo) e procurando mostrar brevemente

como cada período vai (re)organizando a abertura da obra e as

relações entre autor e leitor. É relevante repetir o que Umberto Eco

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diz a respeito do barro co, mas que se poderia utilizar muito

apropriadamente para caracterizar a poética borgeana:

As poéticas do pasmo, do gênio, da metáfora,


visam, no fundo, além de suas aparências
bizantinas, a estabelecer essa tarefa inventiva do
homem novo, que vê na obra de arte, não u m
objeto baseado em relações evidentes, a ser
desfrutado como belo, mas um mistério a
investigar, uma missão a cumprir, um estímulo à
vivacidade da imaginação. (1976: 45) 55

Eco subcategoriza a obra aberta para aqueles casos em que

explicitamente se pretende, na obra de arte, uma participação

singularmente ativa do leitor , a ponto de “assumir[em] diversas

estruturas imprevistas, fisicamente irrealizadas”: a obra em

movimento. Ele a define da seguinte maneira:

Como no universo einsteniano, na obra em


movimento o negar que haja uma única experiência
privilegiada não implica o caos das relações, mas a
regra que permite a organização das relações. A
obra em movimento , em suma, é possibilidade de
uma multiplicidade de intervenções pessoais, mas
não é convite amorfo à intervenção indiscriminada:
é o convite não necessário nem unívoco à
intervenção orientada, a nos inserirmos livremente
num mundo que, contudo, é sempre aquele
desejado pelo autor. (1976: 62)

55 Também pode ser relacionado com a já supracitada “pedagogia do mistério” subjacente à alegoria,
tal como analisa Olivier Reboul.

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Antecipa-se aqui uma análise sob a perspectiva de Lacan que

será desenvolvida no capítulo 4 desta tese: o leitor , embora participe

ativamente numa instância criadora da obra, faz parte do desejo do

autor. Em certa medida, é isso que lhe confere identidade, o que o

instaura como sujeito.

Como síntese do ensaio, Eco , a partir de Luigi Paryson,

destaca:

Pode-se afirmar, portanto, que ‘todas as


interpretações são definitivas, no sentido de que
cada uma delas é, para o intérprete, a própria obra,
e provisórias, no sentido de que cada intérprete
sabe da necessidade de aprofundar continuamente
a própria interpretação. Enquanto definitivas, as
interpretações são paralelas, de modo que uma
exclui as outras, se m contudo negá -las. 56 (1976: 65)

3.1.2 – Lector in Fabula

Esse livro de Umberto Eco foi escrito buscando, basicamente,

direcionar análises anteriores (como as de Obra Aberta) para o texto

narrativo escrito, mais especificamente tocando na questão da

cooperação interpretativa.

56 Relacionar o que se diz nessa citação com a nota n.º 2, quando se coloca o conceito de
complementaridade em Física.

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Logo na introdução, Eco historia sua trajetória de estudo do

tema e sinaliza o momento em que se situa na pragmática do texto

que ele define como

(...) a atividade cooperativa que leva o destinatário a tirar do


texto aquilo que o texto não diz (mas pressupõe, promete,
implica e implicita), a preencher espaços vazios, a conectar o
que existe naquele texto com a trama da intertextualidade, da
qual aquele texto se origina e para a qual acabará confluindo.
(...) (1986:IX)

Este trecho já sugere relações com o silêncio . Eco retoma, na

mesma introdução, mais detalhadamente, a polêmica com Lévi -

Strauss (mencionada no item anterior deste capítulo). Em resposta à

rigidez de Lévi -Strauss e Jakobson, o semioticista italiano pondera:

(...) se até as alusões anafóricas postulam cooperação da


parte do leitor, então nenhum texto escapa a esta regra.
Exato. Os textos que então eu definia como ‘abertos’ são
apenas o exemplo mais provocante de exploração, para fins
estéticos, de um princípio que regula tanto a geração quanto
a interpretação de todo tipo de texto. (ibidem)

O que é relevante neste trecho é que, em confirmação ao que

se viu em Obra Aberta, a tar efa cooperativa do leitor é fundamental

para a construção dos sentidos. Será visto mais adiante que tal

afirmação não significa que o leitor tudo possa e o autor seja um

pobre coitado que se escraviza, impotente, diante das extrapolações

perversas daquele.

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A análise privilegiará o capítulo “Leitor Modelo.” Neste ensaio,

Eco discute que o autor possui um conjunto de competências que

serão manifestadas no texto e, na medida em que essas

competências sejam convergentes com as do leitor , o texto será bem

sucedido na construção dos sentidos por parte do leitor e na

estratégia, por parte do autor . Para que isso ocorra, do ponto de vista

do autor, é necessária uma previsão dessas competências do leitor . É

a essa previsão que Eco chama de Leitor -Modelo:

Por conseguinte [o autor] preverá um Leitor-Modelo capaz de


cooperar para a atualização textual como ele, o autor,
pensava, e de movimentar-se interpretativamente conforme
ele se movimentou gerativamente. (1986: 39)

A partir do conceito de não-dito, de Ducrot, Eco faz as seguintes

considerações:

O texto está, pois, entremeado de espaços brancos, de


interstícios a serem preenchidos, e que o emitiu previa que
esses espaços e interstícios seriam preenchidos e os deixou
brancos por duas razões. Antes de tudo, porque um texto é
um mecanismo preguiçoso (ou econômico) que vive a
valorização de sentido que o destinatário ali introduziu; e
somente em casos de extremo formalismo, de extrema
preocupação didática ou de extrema repressividade o texto
se complica com redundâncias e especificações ulteriores –
até o limite em que se violam as regras normais da
conversação. Em segundo lugar, porque, à medida que
passa da função didática para a estética, o texto quer deixar
ao leitor a iniciativa interpretativa, embora costume ser
interpretado com uma margem suficiente de univocidade.
Todo texto quer que alguém o ajude a funcionar. (1986: 37)

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Baseado em posições como essa, e criticando o que ele

considera uma redução imposta pela teoria da comunicação, Umberto

Eco vai discutindo o papel dessa previsão do Leito r-Modelo

pressupondo sempre níveis de significação que não se restringem à

superfície do texto.

É oportuno verificar-se que o papel igualmente ativo do autor

aparece também contemplado por Eco :

(...) prever o próprio Leitor -Modelo não significa


somente ‘esperar’ que exista, mas significa també m
mover o texto de modo a construí -lo. O texto não
apenas repousa numa competência, mas contribui
para produ zi -la 57. (1986: 40)

Este trecho sinaliza a existência de elementos internos ao t exto

e estratégias de autoria que pretendem construir/influenciar o leitor .

Uma perspectiva criativa da instância da autoria, portanto.

Além disso, quando se discute o uso e a interpretação, volta -se

a uma ponderação importante sobre os lim ites desses processos. Eco

entende que interpretação seja um processo diferente de um uso

livre. Ponderação consciente, já que os riscos nessa discussão são

grandes: tende -se a pensar em extremos, com um autor

57 Em Obra Aberta, Eco faz um comentário sobre a arte que é da mesma natureza do que diz aqui:
“Se a arte reflete a realidade, é fato que reflete com muita antecipação. E não há antecipação – ou
vaticínio – que não contribua de algum modo a provocar o que anuncia." (p. 18)

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superpoderoso e uma leitura fechada ou um leitor onipotente e um

autor impotente:

Devemos, assim, distinguir entre o uso livre de u m


texto aceito como estímulo imaginativo e a
interpretação de um texto aberto. É nesta fronteira
que se baseia se m ambigüidade teórica a
possibilidade daquilo que Barthes chama de texto
de fruição ou go zo: a pessoa tem que decidir se
usa um texto como texto de fruição ou se um
determinado texto considera como constitutiva da
própria estratégia (e, por tanto, da própria
interpretação) a estimulação ao uso mais livre
possível. Acreditamos, porém, que alguns limites
são estabelecidos e que a noção de interpretação
sempre envolve uma dialética entre estratégia do
autor e resposta do Leitor –Modelo. (1986: 43)

Imediatamente após dizer o que está no trecho acima, Eco

considera a possibilidade de existência de estéticas que subvertam

intencionalmente essa atitude cooperativa, rompendo essas

fronteiras. Note -se, entretanto, que ao p ropor que possa existir uma

estética dessa natureza, Eco coloca essa definição nas mãos do

autor. Direcioná -la para o leitor redundará em outras questões, tais

como a da leitura permitida ou a da leitura errada. Ou seja: até qu e

ponto o leitor tem autonomia e/ou condições sociais de leitura para

poder atribuir tal ou qual visão a um texto ? Isso será retomado no

último item deste capítulo da tese, quando se estiverem analisando

as relações entre autoria, leitura e silêncio.

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O que interessa mais diretamente discutir, neste momento, é

esta estética “aberrante” mencionada por Eco . Ele a caracteriza,

destacando exatamente Jorge Luís Borges como sendo seu

representante:

Naturalmente, além de uma prática, pode ocorrer uma


estética do uso livre, aberrante, desiderativo e malicioso dos
textos. Borges sugeria que se lesse a Odisséia como se
fosse posterior à Eneida ou a Imitação de Cristo como se
tivesse sido escrita por Céline. Propostas esplêndidas,
excitantes e facilmente realizáveis. Mais do que outras,
criativa, porque de fato é produzido um novo texto (da
mesma forma que o Quixote de Pierre Menard é bem
diferente daquele de Cervantes, ao qual casualmente
corresponde palavra por palavra). E que depois, ao escrever
esse outro texto (ou texto Outro), se chegue a criticar o texto
original ou a descobrir-lhe possibilidades e valências ocultas
– isto é óbvio, nada é mais revelador de uma caricatura
justamente porque parece, mas não o é, o objeto
caricaturado, e, por outro lado, sem dúvida certos romances
que foram renarrados se tornam mais bonitos porque se
convertem em ‘outros romances’. (1986: 44)

Instaura -se aqui, mais uma vez, a perspectiva da obra borgeana

como jogo, no qual o leitor encontra-se, de um lado, livre para

recompor um texto que lhe é apresentado como um conjunto de

possibilidades, mas de outro, preso aos estratagemas de um autor

que multiplica -lhe as armadilhas num labir into de espelhos, limitando

efetivamente as condições de leitura.

Um ponto alto do ensaio de Eco , no que se refere a essa

discussão sobre os limites e fronteiras da interpretação é a

comparação que ele faz entre uma novela policial e um romance de

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Kafka (ele cita O Processo). O pensador italiano argumenta que nada

impede que se leia uma novela policial de uma perspectiva kafkiana,

mas ler O Processo como uma novela policial “textualmente

produz[iria] um resultado infelicíssimo”. Eco atribui isso a uma

distinção entre textos abertos e fechados, dizendo que estes últimos

suportam melhor ao uso do que os abertos. Pode -se, vislumbrar, no

entanto, que aspectos ligados ao gênero possam também ser

evocados para explicar a não reciprocidade de usos anali sada aqui 58.

Outro conceito apresentado no texto de Umberto Eco é a de que

tanto autor como leitor são hipóteses interpretativas:

Se o Autor e o Leitor-Modelo constituem duas estratégias


textuais, então nos encontramos diante de uma dupla
situação. De uma lado, conforme dissemos até aqui, o autor
empírico, enquanto sujeito da enunciação textual, formula
uma hipótese de Leitor-Modelo e, ao traduzi-la em termos da
própria estratégia, configura a si mesmo autor na qualidade
de sujeito do enunciado, em termos igualmente
‘estratégicos’, como modo de operação textual. Mas, de outro
lado, também o leitor empírico, como sujeito concreto dos
atos de cooperação, deve configurar para si uma hipótese de
Autor, deduzindo-a justamente dos dados de estratégia
textual. A hipótese formulada pelo leitor empírico acerca do
próprio Autor-Modelo parece mais garantida do que aquela
que o autor empírico formula acerca do próprio Leitor-
Modelo. Com efeito, o segundo deve postular algo que
atualmente ainda não existe e realizá-lo como série de
operações textuais; o primeiro, ao invés, deduz uma imagem-
tipo de algo que se verificou anteriormente como ato de
enunciação e está textualmente presente como enunciado.
(1986: 46)

58 Não nos deteremos neste aspecto neste trabalho.

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A primeira parte deste trecho indica um tipo de reflexão que

pode ser relacionada com conceitos como alteridade e formação

discursiva. A formulação de hipótese interpretativa, dentro da

epistemologia abra çada por Eco parece ser meramente individual,

não se levando em conta, constitutivamente, as condições de

produção dessas hipóteses ou mesmo a memória discursiva que as

inscreve no imaginário partilhado (ou não) por autor e leitor.

A segunda parte dá uma pista relevante a respeito de uma certa

especificidade da função -autor, diferenciando-a, de certa maneira, da

função-leitor. No caso deste último, existe um produto textual a partir

do qual realiza sua construção de sentidos (isto já foi discutido no

item anterior, quando se propôs um traço diferenciador entre autor -

leitor e leitor-autor).

Eco finaliza o ensaio com uma q uestão que, ao mesmo tempo

se relaciona com esses limites, e com o silêncio :

A configuração do Autor -Modelo depende de traços


textuais, mas põe em jogo o universo do que está
atrás do texto, atrás do destinatário e
provavelmente diante do texto e do processo de
cooperação (no sentido de que depende da
pergunta: ‘Que quero fa zer com este texto ?’).
(1986:49)

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3.1.3 – Interpretação e Superinterpretação

Em 1990, em Clarence Hall, na universidade de Cambridge,

como é de praxe, foram o rganizadas conferências sobre temas

relacionados às humanidades. Naquele ano, o principal conferencista

foi o semioticista italiano Umberto Eco , que propôs -se a discutir

questões ligadas à interpretação. Tais conferências, juntamente com

as dos demais participantes, foi publicada posteriormente. No interior

deste contexto foi apresentado por Eco o conceito de

superinterpretação, que consistiria numa extrapolação, por parte do

leitor, de tal modo que se produzissem leituras inadequ adas,

exageradas, além da possibilidade que o texto permitiria.

Eco posiciona-se de uma perspectiva cautelosa e restritiva a

modelos de análise de obras e da própria atividade interpretativa

fortemente centradas no leitor e para as quais, em maior ou menor

grau, os limites entre as leituras possíveis são escassamente

demarcados.

No decorrer das conferências, há uma discussão de cunho

histórico (que Stephan Collini contextualiza de maneira didática na

introdução da publicação), q ue procura mostrar como a atividade

interpretativa percorre um trajeto inicialmente relacionado à

decifração da Palavra de Deus e, paralelamente e posteriormente,

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como foi-se deslocando para a crítica filosófica, notadamente

estética.

Nos meandros dessa t rajetória, enfrentam -se, muitas vezes,

perspectivas antagônicas. É o caso da desconstrução, de um lado, e

do pragmatismo (ou neopragmatismo, de Richard Rorty,

principalmente) em oposição a uma tradição mais evidentemente

aristotélica e racionalista.

Umberto Eco dedica a primeira conferência “Interpretação e

história”, para tratar da história do irracionalismo, a fim de

demonstrar como as perspectivas que postulam uma total liberdade

interpretativa do leitor apresentam uma convergência epistêmica com

o hermetismo, criado a partir do 2 º século depois de Cristo e

reforçado por correntes como o gnosticismo.

Na segunda conferência, “Superinterpretando textos”, o

pensador italiano introduz propriamente o conceito de

superinterpretação e, finalmente, na última, “Entre autor e texto”,

procura desenvolver o conceito de intentio operis (intenção da obra),

em contraposição à intentio actoris e à intentio lectoris, ou seja,

postula que a organização de um texto permite que se i dentifiquem

aspectos e tendências interpretativas que não podem ser

contrariadas sob pena de desvirtuar -se a leitura. Há, ainda, uma

réplica de Eco às falas de Richard Rorty, Jonathan Culler e Christine

Brooke-Rose, na qual ele reafirma seus co nceitos.

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Ao escolher proporcionar um panorama histórico do hermetismo,

o objetivo é mostrar que se criou uma tradição interpretativa – com a

qual várias teorias atuais são convergentes – que valoriza o segredo,

de tal forma a não somente criar uma elite d e iniciados, mas,

principalmente, caracterizar o processo de interpretação como uma

busca infindável de segredos ocultos atrás de outros tantos segredos.

Tal atitude, para Eco , determina uma “leitura paranóica”, na qual o

grau de suspeita neces sário para que se proceda a uma leitura mais

profunda torna-se exagerado (exatamente nesta desconfiança) já que

precisa continuamente percorrer esse elo infinito de alegorias. Daí o

que Eco chama de superinterpretação.

Superinterpretar não é simplesmente interpretar demais. É

exagerar no grau de uma atitude necessária para o processo

interpretativo, que é a suspeita. Eco relaciona tal suspeita à busca

contínua (e compulsiva) de sentidos ocultos, mesmo quando tal

abordagem não se sustenta.

Outra consideração é em que contexto da discussão de Eco

sobre a interpretação se situa esse conceito. Da mesma forma como

o conceito de Obra Aberta, desenvolvido por Eco nos anos 60 do

século passado levou uma legião de leitores a endossar perspec tivas

que concebiam uma ausência de limites da interpretação, há leitores

que tomam o conceito de superinterpretação como um fechamento,

uma espécie de contrição de Umberto Eco , revendo o conceito

anterior. Uma leitura mais abrangente e atenta nega isso (a não ser

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que se conceba, é claro, que se pode interpretar a obra dele como

se queira).

Quando Obra Aberta foi publicada, Eco já alertava para o fato

de que estava discutindo um determinado tipo de obra, caracterizado

como “criativa”. Em princípio, preferencialmente o texto estético. Em

Lector in Fabula, livro cronologicamente posterior, ele restringiu o

escopo para textos literários (escritos). Ele reiterou, em vários

momentos do texto de Obra Aberta, que não era objetivo daquela

discussão aplicar um modelo capaz de caracterizar qualquer obra

empírica, principalmente aquelas que fugiam deste perfil de

“criativas”.

Outro aspecto fundamental é que se faz uma confusão muito

grande com o sentido atribuído por Eco ao termo “interpretação”.

Desde Obra Aberta, é feita por ele uma distinção entre

“interpretação” e “uso”. O semioticista italiano não acha inadequado

que uma obra seja provocativa de leituras e/ou hipóteses pouco

relacionadas ao objetivo a que ela se propunha. Neste caso, ele

caracteriza que há um “uso” da mesma, um processo de apropriação.

Para ele, no entanto, interpretar é comprometer -se com os

sentidos possíveis de se atribuir ao texto. Se se tiver um mínimo de

critério analítico, há que se respeitar inicialmente essa distinção. Não

se trata de discutir aqui sua pertinência. Mesmo que haja

discordância quanto a isso, o que não se pode conceber num olhar

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mais atento para a discussão que Eco empreende é igualar sentidos

que não correspondem.

De alguma forma, é o que a linha argumentantiva de Jonathan

Culler, embora contenha elementos oportunos em contraposição a um

aparente estreitamento de horizonte conceitual por parte de Eco ,

ignora. Quando Culler, discutindo como a desconstrução concretiza

uma determinada forma de análise crítica, diz que

Muitas das formas mais interessantes da crítica


moderna não perguntaram o que a obra tem em
mente, mas o que ela esquece, não o que ela diz,
mas o que toma como ponto pacífi co. (CULLER,
1993: 137)

Culler parece não se dar conta de que esta ponderação seria

irrepreensível se não desconsiderasse, de alguma maneira a

distinção entre “interpretação” e “uso”, reiterada numa das

conferências de Eco .

O que o leitor desta tese poderá estranhar é que a citação de

Culler não deixa de ter relação com o silêncio . Perguntar-se o que a

obra não diz, pode -se dizer, talvez seja um dos aspectos analíticos

deste trabalho.

Um dos riscos numa discu ssão como essa, sobre o silêncio, é

exatamente de uma remissão a um discurso e a uma prática

herméticos (no sentido técnico e histórico que este termo tem), na

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medida em que se busque sempre o sentido oculto, atrás de um o utro

e se assuma a postura “paranóica” de desconfiar de qualquer palavra

ou ausência dela.

De uma perspectiva discursiva como a que se pretende aqui, tal

caminho seria muito questionável. Há que se presumir, inicial e

taxativamente, que desvelar (ou atribuir) sentidos a alguns silêncios,

se, por um lado, cria outros silêncios, em contrapartida, também cria

outros dizeres. Para que esta afirmação não caia no hermetismo,

pode-se entender que se nos propomos a analisar a constitutiv idade

da linguagem e se se acredita que tal constitutividade é heterogênea

não somente no interior do dizer, mas igualmente no interior do

silêncio e nas relações entre dizeres e silêncios, o que sempre

ocorrerá em qualquer ato interpretat ivo é sempre uma redefinição dos

espaços ocupados pela palavra e pelo silêncio . Não há, do ponto de

vista desta epistemologia, um sentido preexistente, seja como

palavra, seja como silêncio , que esteja debaixo do último vé u.

Essa reconfiguração de espaços, antes de mais nada, é

material. Ou seja: as condições sociais e ideológicas da interpretação

são tão materiais quanto a forma do texto. Desse ponto de vista

talvez aí resida uma limitação de horizontes da epistemologia

abraçada por Umberto Eco . Fala-se de intenções de um autor , que,

mesmo entendido enquanto estratégia textual, aparece despido de

sua historicidade, de sua inserção nas relações econômicas,

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políticas, sociais, ideológicas que vive, juntamente com outros

sujeitos.

Talvez por não dar conta dessas relações mais abrangentes,

algumas observações de Eco soam estranhas para alguém postado

no território da AD. Quando ele diz que as leituras “possíveis” são

confirmadas pela comun idade com o passar do tempo, incorre numa

petição de principio. Ora, isto é conseqüência de que esta leitura

conseguiu estabelecer -se como correta e não que seja correta em si

mesma. Essa contradição fica mais evidente se se considerar que

em nenhum momento de sua discussão (e isso desde Obra Aberta até

Interpretação e Superinterpretação) Eco pretende que exista uma

única leitura ou que algumas possam ser, absolutamente, mais

corretas do que outras. O que ele pretende é discutir os limites de

leituras que colidam com um direcionamento semiótico insinuado pelo

próprio texto.

Outra observação importante relaciona -se precisamente a

Borges. No texto Pierre Menard, autor del Quijote , Jorge Luís Borges

propõe que se leia a Imitação de Cristo como se fosse escrita por

Céline. Eco, em sua terceira e última conferência admite que realizou

este exercício e que o resultado seria uma prova de que algumas

leituras não são possíveis. No caso em questão, ler um texto de

tradição mística medieva l por uma outra perspectiva criou

inconsistências na leitura.

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É óbvio que não poderia ser diferente. As razões para isso é

que podem ser vistas de maneira muito diversa. Eco desconsiderou,

em sua análise, um pormenor decisivo (não importa se c onsciente ou

inconscientemente): como leitor , ele (Eco) é um medievalista. Desta

perspectiva, seria impossível que ele não notasse certas contradições

em uma obra atribuída a Céline, pertencente a uma outra época e

mentalidade. Segundo aspec to: ele conhecia um conjunto bastante

rico de informações contextuais sobre a obra em questão e sobre o

outro autor a quem ela estava sendo atribuída.

Mas o ponto fundamental talvez ainda esteja em outro lugar.

Eco subinterpretou (para usar a expressão de Culler, baseada em

W ayne Booth) Borges . Neste aspecto cabe analisar uma das funções

desta reconfiguração entre o dizer e o silenciar, mencionada acima.

Ou seja: Eco apostou na proposta estética de Borges, esquecend o-se

que dentro do universo borgeano a palavra -chave é engodo.

Dizer que todos os textos têm um único autor (o Espírito) e

propor que um texto seja lido como sendo de outra época e outro

autor – como Borges faz em La flor de Coleridge - não é,

absolutamente, uma proposta de liberdade total para o leitor . No

labirinto de espelhos do engodo borgeano, produzir (ou propor) uma

obra que seja constantemente recriada pelo leitor , não significa,

efetivamente, uma desvalorização da função do autor . Borges oculta-

se numa rede de denegações. Seu leitor não é qualquer leitor . Se

Pierre Menard escreve o mesmo texto do Quijote no século XX e

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produz outra obra, diferente da de Cervantes, e que passa a ter um

outro autor (Menard), se se atribuísse a Céline o mesmo texto da

Imitação de Cristo, tal como Borges propõe, jamais, da própria

perspectiva estética do escritor argentino, seria possível p ensar-se

que a obra continuasse a ser a mesma. Seria de Céline, pelo fato de

que seria lida com os olhos da época de Céline.

A argumentação de Eco fragiliza-se no labirinto do engodo

borgeano, pois ela não leva em consideração que, tal como no s jogos

de Borges, a postura do semioticista italiano caracteriza -se como a

de um autor, mesmo quando procurava ler. O que se pode entender

do jogo borgeano, a partir das regras do seu próprio universo, é que

o cerne da questão é o próprio jo go. Pierre Menard é um truque de

espelhos. Da perspectiva desse jogo, jamais poderia ser lido dessa

forma (jamais seria aceito que o texto fosse dele) porque, exatamente

como disse Borges

(...) O mesmo acontece com o Quijote. O mesmo


acontece com Lugones e Martine z Estrada, o Martín
Fierro não é o mesmo. Os leitores foram
enriquecendo o livro. (1979: 29)

Se os leitores do Quijote o foram enriquecendo, isto significa

que soma-se à obra o conjunto de interpretações que se faz sobre

ela. Dessa perspectiva , o texto mesmo de Cervantes seria de

Cervantes, embora nos esquecêssemos que já não lemos Cervantes

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como quando o Quijote foi escrito. Isso ocorre porque nos

inscrevemos em discursos sobre o que é ser autor de uma obra, a

própria obra e daí por diante.

O que Borges faz, com este jogo, é mostrar a um leitor que

participa, mesmo sem aceitar ou saber da retransformação da obra,

que seu poder de leitor é anacrônico, na medida em que depende de

um autor que lhe diga e lhe mostre isso, enquanto jogo, e que, diante

do assombro, se ele entender o jogo, o terá comprovado. E se o

comprovar terá sido aprisionado em sua armadilha.

Um aspecto sutil desse jogo é a referência a Madame Henri

Bachelier. Borges propõe que

Esa técnica de aplicación infinita nos insta a


recorrer la Odisea como si fuera posterior a la
Eneida y el libro Le jardin du Centaure de Madame
Henri Bachelier como si fuera de Madame Henri
Bachelier. (Pierre Menard, autor del Quij ote.)

Ocorre um jogo de espelhos: ler um texto, com a assinatura de

autoria de “X” como se a autoria fosse realmente de “X”. Aplicando -se

o quadrado semiótico de Greimas, obtém -se um resultado

esclarecedor: se “X” parece ser autor da obra “Y”, mas não é , há a

mentira. Mas se “X” é autor de “Y”, mas não parece ser, há o

segredo. A expressão “ como si fuera” induz prioritariamente à

primeira. Então, se a assinatura de autoria de uma obra, mesmo

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reconhecida como assinatura válida é uma mentira, quem é realme nte

o autor ? Talvez aquele único autor de La flor de Coleridge (para

Elliot, o Espírito. Para Borges, mais certamente, a Literatura). No

entanto, o caráter de jogo é que nesse caso Borges propõe que se

leia como uma ilusão, acreditando -se na assinatura de autoria. De um

lado, propõe trocar a assinatura arbitrariamente (autor da Imitação de

Cristo por Céline ou Joyce), de outro, acreditar numa assinatura de

autoria somente pelo prazer de jogar, embora não se considere que

ela seja válida. Não é um exercício fácil ou agradável como Eco diz

em Lector in Fabula nem uma experiência factível, como ele admitiu

em Interpretação e Superinterpretação. É apenas um exercício

intelectual, uma brincadeira com um conceito, talvez para

desmistificar os limites rígidos da função -autor.

Uma imagem dessa relação de armadilha e descoberta do leitor

borgeano é a do sadomasoquismo. O leitor se compraz em ser

ludibriado pelo prazer do jogo. Sofre a derrota do aprisionamento mas

a vitória de ter saboreado o jogo. Silenciosamente, há nesta estética,

também, uma supervalorização do autor . Um autor que se delicia

duplamente pelo fato de saber que enganará seu leitor e que ele

(leitor) gostará disso.

Neste sentido, a proposta de ler a Imitação de Cristo como se

fosse de Céline é mais uma intromissão do fantástico no mundo

considerado real. Tal qual em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius , há uma

intromissão de um mundo imaginado na realidade da leitur a.

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O fato de Eco não aplicar a Borges a própria distinção já

definida em Obra Aberta e mantida em Interpretação e

Superinterpretação resulta numa fragilização do viés de leitura do

pensador italiano. A proposta de Borges não po de ser lida como

“interpretação”, mas como “uso”. Se o próprio Eco reconhece que

esses limites de leitura aceitáveis não se aplicariam a Joyce, por que

tentar aplicá -los a Borges ?

Talvez haja mais um aspecto digno de consideração. Borges se

utiliza de diversas estratégias do discurso hermético. A infinita

intertextualidade, a metáfora do universo como livro (ou biblioteca, o

que só multiplica ao infinito a concepção), a adesão a postulados

idealistas extremados, o platonism o, o fascínio pelos labirintos e

pelos próprios textos herméticos (cabala, Swedenborg, por exemplo)

seriam indícios mais que suficientes para caracterizá -lo nesta

filiação. No entanto, ao contrário dos hermetistas que buscam o

segredo escondido atrás do úl timo véu, para Borges, atrás deste não

existe nada.

Dessa perspectiva, se para Borges, na função -autor, tal

discussão seja universal porque caracteriza a nossa natureza, para

ele próprio e para seu leitor , enquanto função -leitor, a estratégia

discursiva da estética borgeana é um grande blefe, quiçá um insulto,

a um leitor que, sabe Borges, só pode ser leitor (e, particularmente,

leitor de sua obra) se for criador, mas que está condenado a se

perder nos labirínticos jogos de espelhos. Vingança de um autor que

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não pode, como qualquer outro, controlar sua obra. Mas já que o

leitor passa a ser um pouco autor também, estende-se a ele (leitor)

tal impotência.

Esta digressão interessa ao trabalho aqui discutido. É possível

existir uma estética do leitor , como a de Borges , sem que se pretenda

que os limites da interpretação (ou do uso) sej am irrestritos. O que

ocorre é que o leitor é a instância de chegada, de determinação

(adequada ou não) de qualquer obra 59. Aceitar isso não significa

negar que a obra tenha identidades formais que possam ser

analisadas. W olfgang Iser , por exemplo, ao discutir a importância da

recepção, não descarta especificidades da obra.

Há alguns exemplos bastante frutuosos, dados por Eco que

ilustram esse último aspecto. Ainda no Lector in Fabula, como já foi

mencionado neste capítulo, ele faz uma relação pertinente entre a

obra “O Processo”, de Franz Kafka e a novela policial. Em

Interpretação e Superinterpretação, Eco dá um exemplo hipotético,

imaginando que Jack, o estripador, pudesse justificar seus crimes a

partir da leitura do Evangelho de São Lucas (Note -se que Borges faz

algo semelhante em El evangelio según Marcos 60). Neste caso, o

embaraçoso seria justificar tal leitura como apropriada. Veja -se que a

59 O próprio Eco reconhece isso ao fazer uma ponderação sobre seu conceito de intentio operis:
“Assim é possível falar da intenção do texto apenas em decorrência de uma leitura por parte do
leitor. A iniciativa do leitor consiste basicamente em fazer uma conjetura sobre a intenção do texto.”(p. 75)
60 Uma leitura extrema de temas religiosos pode ser vista também no filme A Carne, do diretor italiano
Marco Belocchio.

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discussão é sobre o conceito de “interpretação”, desenvo lvido pelo

semioticista. Se se falasse em uso, a discussão seria outra.

3.2 – Autoria, função do leitor e silêncio

Até este momento, dentro do presente capítulo, as questões

sobre autoria e função do leitor foram tratadas pelo viés de uma outra

epistemologia, que não aquela norteadora desta tese.

Sob a perspectiva da AD francesa, no entanto, há outras

considerações relevantes e que fundamentam mais adequadamente a

análise sobre o silêncio . Um ponto de referência crucial é a discussão

de Michel Foucault sobre autoria, especificamente sobre o que ele

passa a designar como função-autor.

Foucault, em O que é um autor faz um panorama histórico da

construção do conceito de autoria e nos permite visualizá -lo dentro

das condições de produção materiais e da formação de mentalidades,

num processo que se inicia mais nitidamente a partir do final do

século XVII e do decorrer do século XVI II.

Algumas condições básicas merecem ser mencionadas. A

existência de discursos transgressores passou a exigir uma origem

determinada a fim de que as sanções pudessem ser aplicadas.

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Essa situação contrastava com a prática exercida desde a Idade

Antiga de os textos tais como contos, narrativas, epopéias, tragédias,

comédias serem validados independentemente de terem autoria

definida. Às vezes, a própria antigüidade de um texto constituía uma

garantia de sua autenticidade. Os textos acadêmicos, no entanto ,

precisavam de um autor que os autorizasse.

A Idade Média prosseguiu, de forma geral, com esta tendência.

A relação entre autores e leitores era muito mais fluida, dentro de

ume escopo religioso -idealista onde o autor supremo era Deus 61.

A partir dos séculos XVII e XVIII o critério de validade dos

textos científicos passou a ocorrer em função da ligação deles a um

conjunto sistemático de verdades, geralmente consideradas como tais

sob uma concepção empirista.

Outra característica importante, já no final do século XVIII e no

século XIX foram as condições materiais de circulação do livro.

Desde o aparecimento da página impressa, a interferência do leitor

no texto foi-se desvanecendo e a autoridade do autor foi ganhando

importância. Com o aumento de complexidade comercial, através do

desenvolvimento do capitalismo, e da inserção da relação autor /editor

61 Maria Helena Pereira Dias, no site http://www.unicamp.br/~hans/mh/autor.html, “Uma


experiência hipertextual” (O autor), faz uma consideração ilustrativa:
“No período dos manuscritos, quando escribas e exegetas freqüentemente alteravam os textos que
transcreviam e copiavam a separação entre autores e leitores não era tão significativa, vale lembrar que a
visão expressa por Sto. Tomás de Aquino e Sto. Agostinho de que não eram autores, mas realizadores da
palavra de Deus consolidou a metáfora bíblica das duas leituras: a leitura do livro da natureza - obra de Deus -
e a leitura da palavra revelada, também obra divina, que lhes conferia autoridade.” (p. 1)

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nesse contexto, os direitos do autor passaram a se constituir como

um território quase físico, de propriedade, de bem.

É interessante observar -se que determinadas instâncias de

textos científicos passaram a constituir um novo tipo de autoria,

segundo Foucault :

Afigura-se-me, porém que ao longo do século XIX


europeu apareceram tipos de autor bastante
singulares, que não se podem confundir com os
‘grandes’ autores literários, nem com os autores de
textos religiosos canônicos, nem com os
fundadores das ciências. Chamemos -lhes então, de
forma um pouco arbitrária, ‘iniciadores de práticas
discursivas’. (FOUCAULT, 1992:58)

Para Foucault, diferentemente dos textos literários, textos como

os de Freud e Marx, que o pensador francês dá como exemplos

desses “iniciadores das práticas discursivas”, entendendo este

processo não só como a produção da própria obra deles, mas, o fato

de também terem produzido “a possibilidade e as regras de formação

de outros textos” (ibidem).

Partindo destas considerações, Foucault irá enfocar algo que

interessa muito à discussão empreendida neste trabalho. Tais

práticas discursivas, segundo ele, são heterogêneas no que tange às

suas futuras modificações:

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Por outro lado, a iniciação de uma prática
discursiva é hetero gênea com respeito a suas
transformações ulteriores. Ampliar a prática
psicanalítica, tal como fora iniciada por Freud , não
é conjeturar uma generalidade formal não posta de
manifesto em seu começo; é explorar um número
de ampliações possívei s. Limitá -la é isolar nos
textos originais um pequeno grupo de proposições
ou afirmações às quais se lhes reconhece um valor
inaugural e que revelam a outros conceitos ou
teorias freudianas como derivados. Finalmente, não
há afirmações ‘falsas’ na obra des tes iniciadores;
aquelas afirmações consideradas não essenciais ou
‘prehistóricas’, por estarem associadas com outro
discurso, são simplesmente ignoradas em favor dos
aspectos mais pertinentes de sua obra. (ibidem)

Esta definição leva Foucault a entender que é inevitável que os

praticantes desses discursos “regressem à origem”. Para ele, este

regresso designa um movimento que caracteriza a iniciação das

práticas discursivas, e significa, em última instância, que ele “(. ..) é

devido a uma omissão básica e construtiva, uma omissão que não é o

resultado de um acidente ou incompreensão.”

A ligação com o silêncio é bastante evidente. O ignorar

aspectos das obras dos autores que inauguram as práticas

discursivas mencionadas por Foucault consiste, inicialmente, num

silêncio por ausência. Será visto, um pouco mais à frente, que o

silêncio por excesso está também imbricado nas próprias

considerações do pensador francês. Quando ele menciona que essa

omissão não é nem acidental nem fruto de uma incompreensão, pode -

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se entender que visualiza aspectos constitutivos nessas omissões,

aqui nesta tese caracterizadas como s ilêncios.

Vista desta perspectiva, compatível com a AD francesa, a

autoria se constrói no interdiscurso - teia de memórias afetadas pelo

esquecimento 62 - na medida em que não só os discursos e os textos

que os manifestam possuem uma outra materialidade além das

palavras: uma materialidade que historiciza as leituras da obra e a

reconstrói. Autor e leitor são sempre, dessa forma, co -participantes

desse jogo de memórias, mesmo que distanciados pelo tempo e

sujeitos a condições de apropriação.

Embora Foucault não o diga exatamente desta forma, pode -se

perceber que tais concepções são possíveis. A continuação do texto

vai além:

Ademais, se trata sempre de um regresso ao texto


em si mesmo, especificamente , a um texto primário
e sem ornamentos, prestando particular atenção
àquelas coisas registradas nos interstícios do texto,
seus espaços em branco e suas ausências.
Regressamos àqueles espaços vazios que foram
cobertos por omissão e ocultos em uma plenitude
falsa e enganosa.
Nestes redescobrimentos de uma carência
essencial, encontramos a oscilação de duas
respostas características: ‘ Esta observação foi
feita, não pode evitar vê -la se se sabe ler” ou a
inversa, ’Não, essa observação não está feita em
nenhuma das palavras impressas no texto, porém
está expressa através das palavras em suas
relações e na distância que as separa’. (ibidem)

62 Apropriando-se de Orlandi 1999:33.

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Aqui se observa uma análise que pode equivaler à categoria de

silêncio como excesso, já discutida nesta tese. A expressão “cobertos

por omissão” pode perfeitamente ser relacionada a isso.

Cabe considerar, principalmente no escopo deste trabalho,

como se comporta essa função -autor no texto escrito. Gregolin

(2001), a partir da análise de Foucault, aponta que o sujeito do

discurso está inscrito na materialidade do texto.

O que se torna desafiador, enquanto exercício analítico, é não

confundir a materialidade do texto com a materialidade dos discursos.

Ambas existem, do ponto de vista da AD, mas não pelos mesmos

processos. Não basta identificar em cada significante um sentido

unívoco dele decorrente. Dependendo da perspectiva assumida, há

relações entre significantes antes de haver destes com significado(s)

(em Lacan, po r exemplo) ou já se entende como premissa que o signo

expressa um sentido plural (em Bakhtin, quando este afirma que o

signo é dialógico).

Portanto, se é aceito que a materialidade do sentido decorre da

relação que os significantes apresentam com os discu rsos que

concretizam no corpo do texto, passa a ser necessário focar o olhar

nas condições de produção e circulação dos discursos, bem como na

rede de memória que constrói elos entre os discursos e suas filiações

– o interdiscurso. Neste aspecto, Gregolin (2001:63) menciona que:

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“A ‘função-autor’ é, assim, característica do modo
de existência, de circulação e de funcionamento
dos discursos no interior de uma sociedade, e, por
esse motivo, a reflexão sobre a autoria não pode
estar desvinculada, do nosso pon to de vista, da
discussão sobre os regimes de apropriação dos
textos e da construção da memória coletiva de uma
sociedade.”

A autora continua sua linha de argumentação estabelecendo

uma relação entre essa circulação de discursos na sociedade e os

gêneros discursivos (utiliza -se de Bakhtin), de tal modo que tais

discursos se concretizem em formas textuais típicas de cada um

desses gêneros. Analisando um poema que tem a maior parte de seu

conteúdo composto por afirmações científicas a respeito da água,

Gregolin empreende uma discussão sobre o papel das redes de

memória e sua relação com a constituição da autoria.

Sob essa ótica, um texto inscreve -se no gênero literário ou

científico na medida em que acionar as memórias respectivas,

relativas a um ou outro d esses gêneros. É claro que essas memórias,

assentadas na materialidade do texto, terão igualmente uma

materialidade decorrente das condições sociais, ideológicas,

políticas, econômicas, vividas pelos sujeitos participantes dessas

redes de lembranças e esqu ecimentos de dizeres e sentidos que

circulam.

A operacionalidade deste conceito reside na circunstância que

ele permite, ao mesmo tempo, considerar as condições do texto e sua

exterioridade. Assim, o modo de circulação dos discursos e dos

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gêneros e de co mo eles acionam (ou deixam de acionar) os elos

dessas memórias, depende de vieses construídos historicamente. O

que se entende por gênero científico hoje, aqui, não corresponderá

às mesmas operações, resgates e esquecimentos de sentidos já -

ditos, préconstruídos, de outra sociedade, com outras representações

de imaginário e com outra historicidade de seus discursos.

É nesse quadro que

“A instalação da autoria problematiza a evidência


do sentido e permite pensar a complexa teia em
que o sujeito se enreda, o cupando o lugar de
enunciador, ao inserir -se nas séries de falas que o
precedem.” (Gregolin, 2001:76)

Tão imprescindível para a discussão sobre autoria e função do

leitor quanto as noções de memória discursiva, interdiscurso e

historicidade, é a noção de incompletude da linguagem.

Authier-Revuz, ao analisar as formas de modalização

autonímica subjacentes à heterogeneidade mostrada, estabelece uma

tipologia de diferentes formas de não -coincidência na construção do

discurso 63.

63 A saber: a) não coincidência interlocutiva entre dois co-enunciadores; b) não-coincidência do


discurso consigo mesmo, afetado pela presença de outros discursos; c) não-coincidência entre as palavras e as
coisas; d) não-coincidência das palavras consigo mesmas, afetadas por outros sentidos, outras palavras, jogo
da polissemia, da homonímia etc. (Authier-Revuz, 1998: 20-21)

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Esta série de não -coincidências mostra esse aspecto de

incompletude da linguagem. O sujeito, a cada enunciação, depara -se

com uma história de sentidos já produzidos antes de sua existência

(e antes especificamente daquela enunciação), história da qual ele

também não é a origem. Entre as falas retomadas ou esquecidas,

delimitadas de uma rede mais ampla de memórias, sobram arestas,

faltam encaixes, há sobreposições e buracos.

A partir dessa dispersão do sujeito, por conta dos

esquecimentos necessários para que o sujeito possa inserir -se no

discurso, há que se criar um princípio de agrupamento, de coerência,

unicidade e completude, mesmo que imaginários. É o que Orlandi

(1999:73) compreende da função -autor de Foucault:

O autor é o lugar em que se realiza esse projeto


totalizante, o lugar em que se constrói a unidade do
sujeito. Como o lugar da unidade é o texto, o
sujeito se constitui como autor ao constituir o texto
em sua unidade, com sua coerência e completude.
Coerência e completude imaginárias.

Para ela, assim, o sujeito está para o discurso da mesma

maneira que o autor está para o texto, exatamente como esse

princípio organizador e unicizante.

Gregolin (2001:67), no final de seu artigo, também faz uma

abordagem semelhante:

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3
1
“A atribuição de uma assinatura de auto ria a um
texto constitui a escrita como expressão de uma
individualidade que fundamenta a autenticidade da
obra, atribuindo ao autor a idéia de invenção
individual e criação original.”

Neste caso, Gregolin, além dessa idéia de criação, enfoca

igualmente o aspecto de autentificação da obra, particularmente

pensando-se na escrita.

Pois bem: as não -coincidências e seu aspecto de incompletude

da linguagem implicam essa dispersão, ameaçadora da própria

constituição do discurso. Na medida em que esse sujeit o de-centrado

e disperso assume a função -autor cria uma unicidade imaginária,

suficiente para manter fios possíveis de entrelaçamento das

memórias de sentidos já -produzidos (e que serão (re)transformados

nesse outro dizer, oscilando entre a paráfrase e a p olissemia).

No âmbito desta tese, pode -se considerar que estas não -

coincidências têm uma relação bastante íntima com o silêncio.

Primeiramente, enquanto silenciamento dessas próprias não -

coincidências, o que pode ser feito, entre outros processos, pelo

conceito de função -autor, assim como foi exposto acima. Mas há um

outro aspecto relevante: o da não -coincidência da palavra com o

silêncio (não há recursividade total entre eles, ou seja, nem todo

silêncio é representável em palavras e vice -versa). Como já f oi

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2
mencionado, o silêncio pode ser entendido como um procedimento de

clivagem dos dizeres e das vozes.

Assim, um silêncio por ausência evitaria a ocorrência de um

espaço de dizeres não -coincidentes, inconvenientes ao fechamento

imaginário (e provisório) d o discurso. Já um silêncio por excesso

exerceria, por sua sobreposição característica, um apagamento de

dizeres não-coincidentes, com efeitos de natureza semelhante ao do

silêncio por ausência.

Já o silêncio enquanto voz teria como cara cterística ser um

procedimento de inserção do sujeito no universo do discurso, ou seja,

um sujeito não se constitui como tal somente pelo que diz, mas

também pelo que silencia, seja esse dizer composto de palavras ou

não.

Para avançar em direção a uma con cepção de autoria e suas

relações com a função do leitor – do ponto de vista da AD francesa –

que dêem conta da produção borgeana, são necessárias mais

algumas considerações.

Se é possível aceitar a função -autor como uma estratégia de

completude imaginária, faz-se necessário estabelecer a relação entre

esse tipo de autoria e a função do leitor, consideração fundamental

para se abordar a estética borgeana.

Para Orlandi (1999: 76 -77)

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3
“Essa representação do sujeito, ou melhor, essa
sua função, tem seu pólo correspondente que é o
leitor. De tal modo isso é assim que cobra -se do
leitor um modo de leitura especificado pois ele
está, como o autor, afetado pela sua inserção no
social e na história. O leitor tem sua identidade
configurada enquanto tal pelo lugar s ocial em que
se define ‘sua’ leitura, pela qual, aliás, ele é
considerado responsável. Isso varia segundo a
forma histórica, tal como a autoria: não se é autor
(ou leitor) do mesmo modo que na Idade Média e
hoje. Entre outras coisas, porque a relação com a
interpretação é diferente nas diferentes épocas,
assim como também é diferente o modo de
constituição do sujeito nos modos como ele se
individualiza (se identifica) na relação com as
diferentes instituições, em diferentes formações
sociais, tomadas na hi stória.”

Pela simetria estabelecida por Orlandi entre as funções de autor

e leitor, pode-se considerar que, tal qual o autor, o leitor também

representa um princípio de estabelecimento de unicidade, coerência e

completude imaginárias ao discurso, atrav és da textualização. A

questão aqui reside em determinar as especificidades de cada

processo (função), principalmente em suas respectivas

materialidades.

Schinelo & Villarta -Neder (2000: 117), ao analisarem o processo

de autoria em Fita Verde no cabelo , de Guimarães Rosa, estabelecem

uma relação ampla entre autor e leitor, colocando um calculado olhar

de um leitor virtual subjacente à constituição do autor. Além disso,

tentam estabelecer uma relação entre narrativas orais que são

(re)construídas e transferidas para a escrita a partir desse olhar. Tais

relações podem ser visualizadas no gráfico abaixo:

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Gráfico 3

O que pode interessar para esta tese nestas relações é não

somente esse leitor introjetado, pela alteridade, na função do autor,

mas também a inclusão das narrativas orais.

No contexto dos textos borgeanos há muito de jogo e de

denegação com as funções do autor e do leitor. Como será visto no

tópico seguinte deste capítulo, Borges, no prólogo de Historia

Universal da Infâmia (1935), coloca -se como “mero” tradutor e leitor

dos textos que apresenta no interior do livro. Há nessas denegações

borgeanas identificações estreitas com esse processo relacional

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entre as narrativas orais e o olhar de leitor introjetado na funç ão do

autor.

Isto ocorre se, por analogia, conceber -se a função-autor

borgeana como a de um rapsodo (daí a similitude com a recitação de

narrativas orais) cuja função é a de meramente transmitir uma

tradição narrativa perdida na névoa dos tempos. Aliás, o que atende

à condição para que o sentido se construa: a de que, pelo

esquecimento de sua origem mais imediata, as palavras (ou o

silêncio) do Outro possa ser apagado e passar a fazer sentido nas

palavras do Eu. (Orlandi, 1999: 34)

Seria possível, usando uma forma do dizer borgeano, afirmar -se

que Borges, ao insistir tanto em valorizar suas fontes (quando não

pseudo-fontes, inventadas) faz um espelhamento do silêncio, na

medida em que faz parecer seu inverso: em vez de reafirmar tais

vozes, pelo excesso co m que as valoriza, ele as silencia,

inscrevendo -as nesse jogo paradoxal de esquecimentos e retomadas

que é o interdiscurso. Está -se diante de um caso típico de silêncio

por excesso.

E tal estratégia o inscreve igualmente na função -autor (e não

meramente na de um tradutor que realiza uma atividade braçal), pelo

mesmo espelhamento silenciador: ao se negar como princípio

unificador do texto, ele fornece ao leitor uma razão, um motivo que

confere a este texto uma coerência. Em outras palavras, faz

exatamente o que diz não fazer, comportando -se como esse princípio

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6
que estabelece completude e unidade ao discurso. Cumpre, com a

maestria de um silêncio tagarela, a função -autor.

Sua valorização do leitor pode ser entendida também

simetricamente, como a citação de O rlandi estabelece. Para

participar do jogo estético, do gênero literário cuja memória o leitor

resgate (e esqueça), tal leitor precisa ter características parecidas:

apreciar, saborear o engodo e, assim, saboreando -o e esquecendo

que está preso numa armadi lha, tomar sentidos anteriores como se

fossem seus (ou seja: pensar que descobriu integralmente o jogo e,

portanto, ter-se apropriado dos seus sentidos).

Se Borges se insere numa memória discursiva de um gênero

que comporta (e exige) um leitor participant e, tal “convite” ao leitor

não faz outra coisa senão espoliá -lo da possibilidade de construir

seus sentidos (dele, leitor) pelo apagamento dos já-ditos pela função -

autor. Ao multiplicar as armadilhas e as casualidades no interior dos

textos (como Borges assume fazer no início de Tlön, Uqbar, Orbis

Tertius), Borges, assim como diz, no prólogo de Fervor de Buenos

Aires, ter roubado idéias e/ou impressões do leitor, rouba -lhe também

possibilidades de inserção no interdiscurso, possibilidades de

acreditar serem seus sentidos que ele (leitor) não acha no texto.

Provoca um silenciamento de silêncios (bem ao seu gosto especular).

Isto significa que a valorização que Jorge Luís Borges faz do

leitor é, ao mesmo tempo, uma memória necessária ao gên ero em

que se constitui como autor e um engodo, na medida em que não está

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introjetando o olhar de um leitor qualquer. Essa especificidade do

leitor borgeano é apresentada por Campos (1988:26):

Por outro lado, nem todo leitor pode ser autor. Será
participante, na dependência de uma série de
fatores: a relação que se estabelece entre o
cabedal de suas leituras e aquela do momento. Se
a intertextualidade, consciente ou não, na obra, é
um fato, só se torna evidência na leitura capacitada
a explicitá -la. Por isso, o título de participante, que
Borges outorga aos leitores de sua obra, não
poderá receber aval, senão mediante o
conhecimento de uma fração significativa dela, pelo
menos da que se relaciona ao assunto sob enfoque.
(...)

Faz parte, portanto, do jogo borgeano eleger um tipo específico

de leitor, cujas características mais evidentes podem ser apontadas

como a disposição para o jogo, a vivência da leitura como um

processo de criação, a possibilidade de estabelecer complexas

relações intertextuais, o sabe r enciclopédico, entre outros.

Por último, cabe levantar outra questão que será discutida no

próximo item deste capítulo e no capítulo seguinte. Como se sabe, no

conto Pierre Menard, autor del Quijote , Borges cria um personagem

que pretende reescrever a o bra de Cervantes, na verdade escrevendo

outra obra, identificável como sendo dele, Menard. Borges compara

dois trechos de ambas e estonteia o leitor, já que textualmente são

idênticos. Atribui ao texto de Cervantes uma atualidade e ao de

Menard um estilo a rcaizante e estrangeiro.

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Possenti (1990:110), ao discutir as condições de legibilidade

dos textos analisa essa passagem de Borges para mostrar que o

escritor argentino atribui um tópico ao trecho de Cervantes diferente

do de Menard (é bom lembrar que os t extos são idênticos). A partir

desta constatação, Possenti se pergunta:

Que eu saiba, não se chama a atenção, não se


percebe ou não se quer perceber aquela manobra
de Borges. No entanto, ela é visível. E propicia a
seguinte pergunta: algumas das proprieda des
atribuídas aos textos não serão talve z
características dos leitores ? Será que Borges quis
errar (ou errou sem querer) para que seu texto
significasse que não há leitor capaz de lançar o
mesmo olhar sobre dois textos, mesmo que sejam
‘iguais’ ?

Esta indagação incide não somente sobre a possibilidade de o

leitor abarcar todas as interpretações, mas igualmente sobre as

condições de funcionamento do jogo borgeano. Pretender -se que tal

estética prescinda da autoria em favor de um leitor todo -poderoso

torna-se, dessa perspectiva, questionável.

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3.3 – Autoria e Estética do leitor em Borges

Monegal, em sua obra Borges: uma poética da leitura , faz uma

arqueologia das concepções borgeanas de autoria. Para Borges, mais

do que o autor, é o leitor que atribui um sentido à obra. E ainda mais

longe: na verdade, o leitor passa a responder por uma função de

autoria, de criação estética. Há inúmeros textos de Borges onde

estas concepções podem ser encontradas. Serão privilegiados aqui

os textos apontados no quadro abaixo, por serem mais

representativos:

TÍTULO DO TEXTO OBRA DATA


Epígrafe de Fervor de Fervor de Buenos Aires Obras 1925
Buenos Aires Completas (Ed. Emecé), 1989
La supersticiosa ética del Discusión 1930
lector Obras Completas (Ed. Emecé), 1989
Prólogo à 1 ª edição de Historia Universal de la Infamia 1935
História Universal de la Obras Completas (Ed. Emecé), 1989
Infamia
Pierre Menard, autor del Ficciones 1941
Quijote Obras Completas (Ed. Emecé), 1989
Otras inquisiciones Otras inquisiciones 1952
Obras Completas (Ed. Emecé), 1989
Prólogo de Fervor de Fervor de Buenos Aires 1969
Buenos Aires Obras Completas (Ed. Emecé), 1989
O livro Borges Oral (Ed. portuguesa. Título 1978
Original: Borges Oral)
La poesia Siete Noches 1980
Obras Completas (Ed. Emecé), 1989

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Embora para Borges a cronologia seja recusada em sua

linearidade, é oport uno considerar como as concepções de autoria e

da função do leitor , ou, como diz Monegal , da criação desta “poética

da leitura” vão-se constituindo com o decorrer do tempo.

O primeiro texto a ser considerado aqui será a epíg rafe de

Fervor de Buenos Aires, de 1925, onde Borges se dirige ao leitor com

estas palavras:

A QUIEN LEYERE

Si las páginas de este libro consienten algún


Verso feliz, perdóneme el lector la descor -
tesia de haberlo usurpado yo, previamente.
Nuestras nadas poco difieren: es trivial y
Fortuita la circunstancia de que seas tú el
Lector de estos ejercicios, y yo su redactor.
(1989: 16)

Aqui já se pode perceber esboçada a importância e a função

que Borges atribuiria ao leitor durante todo o decorrer da produção

de sua obra. Essa casualidade apontada pelo escritor argentino na

circunstância de ser ele o autor e não o leitor, e a idéia de que o

autor, de alguma forma, é um leitor mais esperto que rouba do leitor

comum uma idéia parecem, à primeira vista, apenas um jogo de

palavras. A trajetória borgeana vai mostrar que não.

Em 1930, num ensaio entitulado “ La supersticiosa ética d el

lector” e que foi publicado em 1932 no livro Discusión, Jorge Luís

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Borges, ao discutir a preocupação excessiva que os autores têm com

a perfeição de suas próprias obras, sugere novamente uma função

mais participativa do leitor :

La preferida equivocación da literatura de hoy es el


énfasis. Palabras definitivas, palabras que postulan
sabidurias adivinas o angélicas o resoluciones de
una más que humana firme za – único, nunca,
siempre, todo, perfección, acabado - son del
comercio habitual de todo escritor. No piensam que
decir de más una cosa es tan de inhabiles como no
decirla del todo, y que la descuidada generalización
e intensificación es una pobreza y que así la siente
el lector. (...)

Note-se que, em vez de valori zar a estratégia do autor que

busca a perfeição, Borges mostra como esta tentativa inútil é vista

como uma pobreza pelo leitor . O fundamental aqui é que esta visão

do leitor é tida em conta como u m elemento ridicularizador dessa

busca impossível, feita pelo autor . A generalização descuidada e a

intensificação são uma pobreza e o leitor percebe essa falha.

Um aspecto digno de se ressaltar neste trecho borgeano é uma

relação possível às categorias de silêncio como excesso e como

ausência apontadas nesta tese. Borges , aqui, critica a tagarelice

como tão inábil quanto o que deveria ser dito e não se diz. Dois

âmbitos de silêncio , portanto.

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O texto seguinte é o prólogo da primeira edição de História

Universal da Infâmia, publicado em 1935 e que contribuiu para uma

maior difusão e conhecimento de Borges . Nele, Jorge Luís Borges

também valoriza o leitor :

En cuanto a los ejemplos de magia que cierran el


volumen, no tengo outro derecho sobre ellos que
los de traductor y lector. A veces creo que los
buenos lectores son cisnes aun más tenebrosos y
singulares que los buenos autores. (...)Leer, por lo
pronto, es una actividad posterior a la de escribir:
más resignada, más civil, más intelectual.

No início deste trecho, é perceptível a inserção que Borges faz

de si mesmo como autor no espaço de leitor. Obviamente este é um

embuste borgeano que ficará mais evidente pelas relações

intertextuais (intratextuais, neste caso) entre suas obras e suas

posições críticas e estéticas. Pode parecer uma modéstia e uma

desvalorização do autor porque ele se coloca meramente na posição

de tradutor e leitor como funções menores, menos nobres.

Instaura -se aqui, no entanto, um relação de dois níveis

diferentes. Num nível superficial, aparentemente há u ma

desvalorização do autor via identificação com as funções secundárias

de tradutor e leitor. Num nível implícito, ocorre o contrário: sua

posição de autor faz sentido esteticamente porque já que é o leitor

que determina a recriação constante da obra, sua história de

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sentidos (como se verá no texto “ O livro ”), identificar-se com esse

leitor corresponde a desempenhar uma função esteticamente ativa e

relevante. Para Borges , aliás, não poderia ser diferente. Tentar uma

autoria que não corresponda à de ser mais um (bom) leitor nesse

ciclo de elos que forma a grande biblioteca que é para ele o universo,

é cair no exagero exposto na citação anterior.

Mais tarde, no volume entitulado Ficciones, publicado em 1941,

na visão de vários críticos (Monegal, inclusive), Borges estabeleceu-

se como um autor relacionado ao fantástico. Um dos contos

fundamentais para se analisar a concepção de au toria e a função de

leitor em Borges, presente nesse livro, é Pierre Menard, autor del

Quijote. Todo o conto é uma proposta neste sentido, mas seu final

deixa isso especialmente mais explícito:

Menard (acaso sin quererlo) ha enriquecido


mediante una técnica nueva el arte detenido y
rudimentario de la lectura: la técnica del
anacronismo deliberado y de las atribuiciones
erróneas. Esa técnica de aplicación infinita nos
insta a recorrer la Odisea como si fuera posterior a
la Eneida y el libro Le jardin du Centaure de
Madame Henri Bachelier como si fuera de Madame
Henri Bachelier. Esa técnica puebla de aventura los
libros más calmosos. Atribuir a Luis Ferdinand
Céline o a James Joyce La Imitación de Cristo ¿no
es una suficiente re novación de esos ténues avisos
espirituales ?” (1989: 450)

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Monegal vai analisar o conto borgeano, no sentido de que é um

texto instaurador de uma poética centrada na leitura:

(...) Partindo-se desta noção do leitor como autor,


toda uma nova poética pode ser edificada. Pelo
caminho da leitura, e na atividade individual do
incessante diálogo de textos que a leitura
pressupõe – essa intertextualidade, de que agora
tanto se fala - , Borges encontra uma saída para
suas múltiplas negações, uma resposta para seu
isolamento solipsista, um âmbito para a comunhão.
Se o verdadeiro produtor de um texto não é o autor ,
mas sim o leitor, todo leitor é todos os autores.
Todos somos u m. (1980: 72)

Em outro texto, La flor de Coleridge , Borges também expressa

essa concepção idealista da relação autor -leitor, fundamental ao que

Monegal considera uma poética da leitura. Segundo Borges,

assumindo a idéia de Valéry de que existe um único autor, que é o

Espírito, a desenvolve in extremis elencando temas que foram

utilizados por autores diferentes, em diferentes épocas, como se

perfizessem um continuum e representassem manifestações dessa

única obra, ditada pelo Espírito, seu único autor. No vamente está

presente essa dissolução da persona do autor tal qual ela é

concebida a partir da Revolução Industrial e da circulação comercial

dos livros impressos.

Em princípio, há aí um reforço do que foi discutido sobre Pierre

Menard: se há um único a utor, ou se todos os autores são ninguém,

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somente o leitor poderá dignificar e sacralizar a obra, materializá -la

enquanto texto.

Ocorre, porém, que, embora o papel atribuído ao leitor seja

efetivamente importante no contexto da produção estética borgeana,

essa relação autor-leitor e mesmo essa poética tem que ser vista

dentro do quadro dos jogos e armadilhas de Borges. Pode -se dizer

que tal valorização se dá exatamente porque Borges se insere

enquanto autor-leitor de um livro (ou do conjunto de todos os l ivros

que se repetem) que metaforiza o mundo.

Se o leitor é o único que realmente importa, para que se

preocupar tão obsessivamente em enganá -lo, a expô -lo a tal

multiplicidade de armadilhas colocadas de maneira tão sutil e casual

nos textos ? Uma boa razão poderia ser encontrada na justificativa de

que um bom leitor (um cisne raro, talvez mais raro do que bons

autores, nas próprias palavras de Borges) é aquele que vivência sua

impotência como autor que também é.

Faz-se útil abordar um pouco esse universo de armadilhas e

falseamentos borgeanos. O primeiro que merece menção (dos que é

possível identificar) é relativo a uma obra que tanto para a crítica

quanto para o próprio Borges (afinal, ele também é um crítico) foi a

que o projetou como escritor: Historia Universal de la infamia.

Em seu Ensaio Autobiográfico, publicado originalmente em

inglês, Borges comenta o processo de criação da obra:

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Em História Universal da Infâmia eu não queria
repetir o que Marcel Schwob fizera em suas Vidas
Imaginárias, inven tando biografias de homens reais
sobre os quais há escassa ou nenhuma informação.
Eu, ao contrário, li sobre a vida de pessoas
conhecidas e modifiquei e deformei tudo
deliberadamente, a meu bel -pra zer. Por exemplo,
depois de ler The Gangs of New York , de Herbert
Asbury, escrevi minha versão livre de Monk
Eastman, o pistoleiro judeu, em flagrante
contradição com a autoridade por mim escolhida.
Fiz o mesmo com Billy the Kid, com John Murrel
(que rebatizei de Lazarus Morell), com o Profeta
Velado do Kurassen, com o demandante Tichborne
e com vários outros. (...) (2000: 101 -102)

Seria frutuoso perguntar -se que condições teria a maioria dos

leitores borgeanos de identificar cada uma dessas interpolações no

texto. Seria pertinente, de igual maneira, relacionar a renomeação de

Murrel para Morell como uma alusão ao livro A invenção de Morel,

escrito por Adolfo Bioy Casares, seu amigo e co -autor de vários

livros, sendo que precisamente este último foi prefaciado por

Borges ? Sabendo -se que a Invenção de Morel representa toda uma

reconfiguração do que se entende por trama, bem como uma

discussão metafórica do processo de representação, instaurando -o na

perplexidade do fantástico, (não aquele da magia irracionalista, mas,

como aponta Monegal, a magia de relações ca usais bem definidas,

ainda que diferentes daquelas da ortodoxia científica pós -cartesiana),

haveria aí uma intertextualidade a ser considerada ou teríamos que

imaginar o autor Borges, leitor de seus leitores, sorrindo

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maliciosamente atrás de uma névoa de i ntertextos que estonteia e

vence definitivamente o leitor ?

Há mais. No mesmo livro, o personagem Hákim de Merv (conto

no qual aparece pela primeira vez a frase que ficou mais conhecida

em Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, atribuída um dos heresiarcas de Tlön:

“los espejos y la cópula son abominables, porque multiplican el

número de los hombres” 64 – 1989:431), segundo Monegal, é quase

totalmente inventado.

Cabe lembrar outro “pormenor”: Borges atribui os textos de

Historia Universal de la Infamia a “releituras de Stevenson e

Chesterton e também dos primeiros filmes de von Sternberg e talvez

de certa biografia de Evaristo Carriego.” Monegal aponta que essa

biografia foi escrita por Borges e publicada em 1930, o que o escritor

argentino, hábil prestidigitador de silêncios, não mencionou.

Há, portanto, que se tomar muitos cuidados ao conceber essa

poética da leitura em Borges como supervalorização do leitor.

Constitui-se como um labirinto de citações (veja -se o final do conto El

Inmortal, já citado), que, no final das contas, aniquila tanto autor

quanto leitor. Mas que é habilmente urdido por um autor com falsa

modéstia e falsa timidez, conhecedor, ele próprio que os limites de

sua função-autor são também os limites do leitor -autor.

64 Em Historia Universal de la Infamia, a frase, dita pelo profeta velado Hákim, é a seguinte:
“La tierra que habitamos es un error, una incompetente parodia. Los espejos y la paternidad son
abominables, porque la multiplican y afirman.” Também aparece modificada em Los espejos (El hacedor).

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Existem na obra borgeana aspectos, ora mais presentes, ora

pairando como uma desconfiança densa, por parte de um leitor -autor,

profundamente performativos. Ao criar uma História Universal da

Infâmia, Borges faz as suas infâmias verbais, talvez para que o lei tor

sinta como efeito as infâmias constitutivas da própria linguagem e

dessa relação heterogênea e tão prenhe de alteridade que é aquela

entre autoria e leitura. Monegal aponta atentamente que, no prólogo

dessa mesma obra , que a “imagem de si próprio que [Borges]

pretende impor ao seu leitor é a de outro leitor, meramente anterior e

sem nenhum privilégio de invenção.” (1980: 91). Se o leitor é

supervalorizado e Borges se coloca como leitor, então há denegação;

se a supervalor ização é um engodo, a que se é levado por vários

momentos de sua produção estética, então o leitor que está sendo

valorizado está, na verdade, sendo anulado. Como leitor -autor, este

leitor é um autor. E se o autor é sempre ninguém, ele, visto da

maneira como Borges diz, também é ninguém.

Há como se fazer uma interpretação dessa ambivalência

borgeana sem se cair numa abordagem reducionista. Tal enfoque

exige que se tome o texto borgeano ao mesmo tempo como jogo e

como uma “pedagogia estética” que mostra pe rlocutivamente ao leitor

seus próprios limites (tais quais os do autor) sem que, para isso, ele

(leitor) precise abdicar se saborear o fascínio e a perplexidade de

jogo que a linguagem e a literatura possuem (Borges, a partir de

Croce, entende que cada pal avra é um ato estético).

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Pode-se vislumbrar algo nesse sentido no texto Nota sobre

(hacia) Bernard Shaw, publicado em Otras inquisiciones (1989:747):

La máquina de Lulio, el temor de Mill y la caótica


biblioteca de Lasswit z pueden ser materia de
burlas, pero exageran una propensión que es
común: hacer de la metafísica y de las artes, una
suerte de juego combinatorio. Quienes practican
ese juego olvidan que un libro es más que una
estructura verbal, o que una serie de estrucuras
verbales; es el diálogo qu e entabla com su lector y
la entonación que impone a su vo z y las cambiantes
y durables imágenes que deja en su memoria. Ese
diálogo es infinito; las palabras amica silentiia
lunae significan ahora la luna íntima, silenciosa y
luciente, y en la Eneida sign ificaron el interlunio, la
oscuridad que permitió a los griegos entrar en la
ciudad de Troya... La literatura no es agotable, por
la suficiente y simple ra zón de que un solo libro no
lo es. El libro no es un ente incomunicado: es una
relación, es un eje de innumerables relaciones. Una
literatura difere de outra, ulterior o anterior, menos
por el texto que por la manera de ser leída: sí me
fuera otorgado leer cualquier página actual – ésta,
por ejemplo – como la leerán el año dos mil, yo
sabría cómo será la literatura del año dos mil.
(1951)

Estabelecida a literatura como relação, podem -se abandonar

concepções simplistas que supervalorizem somente um dos pólos

dessa relação. Reconhecer que o leitor é um fator de chegada não

lhe atribui exclusividade, mas fi nalidade: se se produz literatura,

obviamente, é para ser lida 65.

65 Essas relações mais complexas e dinâmicas podem ser apreciadas igualmente em La biblioteca de
Babel, de Borges e no romance experimental de Osman Lins, Avalovara.

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Nesse contexto de sacralização do livro (cf. O Livro, em Borges

oral e Del culto de los libros , em Otras inquisiciones ), a literatura se

enriquece e ganha a dimensão cosmológica que exerce fascínio sobre

o Borges leitor. É precisamente esse fascínio que ele entende ser

indispensável proporcionar como efeito para o leitor. Sem ter sido

leitor, ele (nem ninguém) poderia ter sido autor. Borges sabe que

Funes, o memorioso, é um personagem aberr ante, metáfora da

aflição da insônia e – isso ele não mencionou – da pretensão vaidosa

de tudo lembrar e tudo conhecer. Sem o esquecimento, também não

há memória, e sem memória, não há identidade 66. Por outras vias,

novamente o interdiscurso.

Nesse diálogo do fascínio da dinamicidade de um mundo que

muda sempre para cumprir sempre seu ciclo, Borges enxerga esse

leitor que dá sentido ao ato de escrever.

A instigação desse leitor dá -se pelo fantástico, às vezes

também chamado de realismo mágico. Borges ade re lentamente a

essa práxis estética e o faz como ruptura com tradições cristalizadas,

sejam a expectativa paterna e familiar de que ele fosse escritor (nos

moldes de continuar uma obra que o avô e/ou o pai, mais direta e

explicitamente, não levou satisfat oriamente a cabo), seja a resolução

de uma equação entre ser universal e tratar dos temas da própria

terra. Nesse universo estético, é possível instaurar sempre, de

66 Cf. a afirmação de Borges: “A identidade pessoal é a memória.” (O pensamento vivo de Jorge Luís
Borges)

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maneira ampla, a perplexidade e o fascínio, sem os quais a literatura,

sequer a palavra, va leria para coisa alguma.

Deve-se entender esse “mágico”, no entanto, de outra

perspectiva, tal como Bioy Casares realizou em Invenção de Morel, e

que Borges destaca no prefácio do livro. Monegal faz ponderações

sobre esse conceito:

Uma narrativa ‘mágica’ fundamenta -se aqui, mas


uma narrativa em que o termo mágico pouco ou
nada tem a ver com as vague zas que, desde Fran z
Roh e Massimo Bontempelli, até Uslar Pietri e Alejo
Carpentier, vêm -se atribuindo na crítica
contemporânea. Rigor e lucide z intelectual sã o as
características centrais desta narrativa ‘mágica’.
(MONEGAL, 1980: 168)

Para se compreender o estatuto que apresenta o fantástico na

produção borgeana, é necessário deter -se um pouco na análise que

ele faz dos tipos de narração:

a) narração mimética = realista, psicológica, que imita a causalidade

natural e que é, portanto, caótica, como o mundo real

b) narração mágica = (ou fantástica), que tem, ao contrário, como

fundamento a causalidade mágica e que é extremamente rigorosa

c) narração maravilhosa = (ou m ilagrosa) em que a causalidade seria

sobrenatural, isto é, totalmente arbitrária.

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Esse rigor da causalidade mágica, instaurador do fantástico, é

que seria o mais conveniente para criar essas relações dinâmicas e

manter a necessária dinamicidade do ato est ético.

Otras Inquisiciones , livro publicado em 1952, traz um conjunto

de textos que aprofundam o posicionamento de Borges enquanto

crítico praticante, um escritor que também pensa a produção estética,

seja a própria, seja a de outros. Ao di scutir esse papel de crítico

praticante de Borges comparativamente ao do ensaísta e poeta

mexicano Octávio Paz, Monegal analisa o tipo de estética

desenvolvida pelo escritor argentino, uma estética que privilegia o

espaço do leitor , colocando este último numa função de produção de

sentidos, como já foi mencionado:

Num dos ensaios de Otras inquisiciones (‘La flor


de Coleridge ’), Borges afirma, apoiado por citações
de Paul Valéry, Emerson e Shelley, que a literatura
universal parece ter sido escrita por um só autor , o
Espírito. Esta teoria, de um panteísmo literário que
contém restos românticos, permite a Borges
dissolver a noção de um autor original dentro da
noção, ma is impessoal, da literatura. Ninguém
(outra ve z) é alguém. Acontece que as últimas
conseqüências desta teoria vão mais além da mera
negação (afinal de contas, idiossincrática) da
personalidade individual do autor . Uma poética da
leitura, em ve z de uma poética da escritura, está
implícita nesta negação. Borges inverte aqui os
termos habituais do debate literário: em ve z de
apoiar-se na produção original da obra, remete à
produção posterior e sempre renovada do leitor . As
conseqüências dessa inversão são alucinantes
(MONEGAL, 1980: 69 -70)

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Dessa perspectiva borgeana, autor e leitor são co-participantes

de uma rede infinita de textos que se aludem, se referenciam. A

literatura perde um culto personalis ta a um autor todo-poderoso,

onisciente e controlador de todos os sentidos. “Cada palavra é uma

obra poética.” 67 Um aspecto peculiar, profundamente dialético nesse

jogo borgeano, é de que para deslocar autoria dessa onipotência,

atribui a ela, mesmo que retoricamente, um supra -autor, que se

personifica no Espírito. 68

Outro ensaio do livro Otras inquisiciones apresenta uma

questão da mesma natureza da que foi discutida em Pierre Menard,

autor del Quijote. Em La esfera de Pascal, o argumento é uma

metáfora sobre Deus (ou um princípio absoluto equivalente) que

associa a divindade à esfera e que, no correr de muitos séculos e nas

páginas de vários autores assume a seguinte proposição: (a

divindade ou o princípio absoluto ) “es una esfera infinita, cuyo centro

está en todas partes y la circunferencia en ninguna.” (1989:638).

Borges termina o ensaio dizendo que “Quizá la historia universal es

la historia de la diversa entonación de algunas metáforas.” (ibidem).

Novamente há um mesmo texto (praticamente o mesmo) dito por

autores diferentes, de épocas e concepções distintas. Assim como em

Pierre Menard, as mesmas palavras não serão o mesmo texto porque

67 A poesia. In: Sete noites. São Paulo/SP: Ed. Max Limonad, 1987, p. 122.
68 Essa concepção insere-se na concepção metafísica expressa pela obra de Borges, também esta de
caráter profundamente inter-relacional: somos todos sonhados por outros, sonhos dentro de sonhos, jogos de
espelhos, labirintos sem portas nem trancas, enfim, uma eterna “inminencia de una revelación, que no se
produce, [y que] es, quizá, el hecho estético (La muralla de los libros. In: Otras inquisiciones, op. cit.).

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os leitores serão outros. Na introdução da tradução brasilei ra de

Siete Noches editado pela Max Limonad, Pepe Escobar e Samuel

León fazem uma observação pertinente que se relaciona com o que

se está discutindo neste momento:

Partimos da concepção de literatura como


produção. É a leitura que organiza o futuro rela to.
Borges diz alguma ve z que se soubéssemos como
se lê no ano 2000, saberíamos como é a literatura
do ano 2000. (1987:10)

Borges, magistralmente, autoaplica essa estratégia de autoria

ao seu próprio texto. A frase inicial de La esfera de Pascal é “Quizá

la historia universal es la historia de unas cuantas metáforas.”

(1989:636). As palavras que mudam de um enunciado para outro

representam a singularidade, o traço de contribuição que como leitor

(pensando-se nesse leitor-produtor) irá acrescentar à historicidade do

texto. Na conferência sobre o livro, pronunciada na Universidade de

Belgrano, em Buenos Aires, e publicada no volume “Borges Oral”,

Jorge Luís Borges deixa mais clara essa função do le itor:

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5
Heráclito disse (demasiadas ve zes o tenho
repetido) que ninguém se banha duas ve zes nas
mesmas águas de um rio. Ninguém se banha duas
ve zes no mesmo rio porque as águas mudam, mas
o que mais terrível é que nós não somos menos
fluidos do que o rio. De cada ve z que lemos um
livro, o livro não é o mesmo, a conotação das
palavras é outra. (...)
(...) Hamlet não é exactamente o Hamlet que
Shakespeare concebeu no princípio do século XVII;
Hamlet é o Hamlet de Coleridge, de Goethe, e de
Bradley. Hamlet foi ressuscitado. (...) Os leitores
foram enriquecendo o livro.
Se lemos um livro antigo, é como se lêssemos todo
o tempo que transcorreu até nós desde o dia em
que ele foi escrito. (1979:29)

Por isso, a função do autor para Borges é revelar algo

preexistente, mas que só terá existência efetiva no encontro com o

leitor. Ele desenvolve esses conceitos no texto La Poesia (no volume

Siete Noches). Deste ponto de vista, o comentário de Monegal

merece ser levado em consideração:

(...) é supérfluo indicar se uma obra é ‘original’ ou


‘copiada ’ de outra fonte. Toda história, todo texto, é
definitivamente original porque o ato de produção
(=reprodução) não está na escritura, mas na leitura .
(MONEGAL, 1980: 71)

Ou seja, para a perspectiva borgeana o sentido somente se

instaura a partir da presença do leitor . Aí acontece o feito estético.

Não que o texto não esteja lá. Borges não nega jamais a escritura.

Pode insinuá-la como simulacro, instigar o leitor a considerá-la

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ilusória. Pode ser um labirinto abstrato, um jogo de espelhos, mas

está lá. A partir de uma concepção platônica, cabe somente ao poeta

descobri-las. Platonismo que se transforma em outro engodo

borgeano. Talvez não se possa dizer, plausivelmente, que ele não

acredite no que está dizendo. Há, entretanto, um profundo

silenciamento aqui. Nada indica que Borges acredite metafisicamente

na concepção platônica exposta. Se ele assim a prof essa, é porque

se vê um autor-leitor, em contato atento com um mundo (universo)

que não deixa de ser uma imensa rede de textos. A descoberta que o

poeta faz é a leitura desses textos, sempre já -ditos em algum grau,

mas igualmente depositários do enriquecimento que cada leitor lhe

proporciona (seja como autor -leitor, ou como leitor-autor).

Por fim, no texto La flor de Coleridge , o último parágrafo parece

contrastar com essa visão de eterna apropriação entre os textos.

Borges diz que

Quienes minuciosamente copian a un escritor, lo


hacen impersonalmente, lo hacen porque confunden
a ese escritor com la literatura, lo hacen porque
sospechan que a partarse de él en un punto es
apartarse de la razón y de la ortodoxía. Durante
muchos años, yo creí que la casi infinita literatura
estaba en un hombre. Ese hombre fue Carlyle, fue
Johannes Becher, fue Whitman, fue Rafael
Cansinos-Asséns, fue De Quincey. (1989:641)

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Existe uma contradição aparente: se nenhum texto, mesmo

idêntico, jamais terá o mesmo sentido e será exatamente o mesmo

texto, por que razão a crítica borgeana a essa atitude de cópia,

mencionada aqui por ele ? A primeira chave para essa pergunta pode

estar sutilmente na frase “porque confunden a ese escritor com la

literatura”. Já não se trata de criar versões diferentes de um mesmo

texto, escrito por um mesmo autor . Cada autor, lido em circunstâncias

diferenciadas, será um outro autor . As palavras que ele usa já não

são integralmente dele, mas dessa rede infinita de textos e

referências que é a literatura. A segunda chave pode ser entendida

na palavra ortodoxia. Monegal afirma que Borges destrói a literatura

enquanto tradição. Se se entender essa tradição como uma ortodoxia,

uma rígida concepção de que os sentidos já estão prontos e

cristalizados no texto, sim. A concepção borgeana da produção dos

sentidos (principalm ente a estética) é fluida como o rio de Heráclito,

num jogo de espelhos atravessado por um rio humano que personifica

a nossa identidade. É nessa mutabilidade do encontro de cada leitor -

autor com o que o autor-leitor lhe propõe que se dá essa iminência de

revelação, citada na nota número 34. ].

Borges, aqui, não se contradiz. Ele pode continuar produzindo

textos como Pierre Menard ou La esfera de Pascal , porque tais textos

não são cópias de um autor fonte e origem do sentido (para usar a

expressão de Pêcheux, relativa ao esquecimento número 1), nem uma

glosa de textos canônicos, fiéis à ortodoxia de uma literatura

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estática. Borges, ao propor um estética d a leitura, na verdade propõe

também uma estética da alteridade. Como autor -leitor, suas palavras

jamais serão totalmente suas. Elas já terão sido ditas de alguma

forma, antes. Mudará a entonação. Mas isso não importa, porque é

no leitor-autor que os sentidos serão produzidos efetivamente e que a

fluidez dessa outra literatura dinâmica, processual, movimento

contínuo, se processará.

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CAPÍTULO 4

NO SILÊNCIO DO ESPELHO

4.1 – C o r p u s

O corpus desta tese é constituído por textos literários do

escritor argentino Jorge Luís Borges . Foram selecionados, dentre os

textos que tratam da temática do espelho , aqueles que se mostraram

mais representativos para a discussão aqu i pretendida.

Como já se pôde perceber, outros textos do mesmo autor são

citados quando há um ou outro aspecto relevante a ser considerado

na discussão em andamento.

Dado que a temática do espelho está presente em um número

extremamente alto de textos d e Borges, optou-se por uma seleção

dos mesmos que contemplasse diferentes momentos da produção

borgeana. Há casos em que a abordagem do tema é bastante similar

em alguns textos (é o caso, por exemplo, de Al espejo, do volume

Oro de los tigres ).

Preferencialmente, foi feita a opção de utilizar os textos

originais, em espanhol. Já que os efeitos de sentido em Borges se

dão, muitas vezes por nuances extremamente sutis, considerou -se

que a utilização geral de traduções poderia acrescentar um elemento

complicador à análise. Foram utilizados textos da Obras Completas,

da Editora Emecé. Constituem exceção apenas três obras: Borges

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Oral, Jorge Luis Borges – Um ensaio autobiográfico e O Livro dos

seres imaginários . Nenhum deles consta da edição argentina. O

primeiro compreende conferências realizadas por Borges com

posterior publicação das anotações. Está sendo utilizada uma edição

portuguesa (no Brasil há uma publicação equivalente com o título

Cinco visões pessoais. ) O terceiro título teve sua primeira edição

publicada no México, com colaboração de Margarita Guerrero. Utiliza -

se a tradução brasileira publicada pela Editora Globo. Finalmente,

Jorge Luis Borges – Um ensaio autobiográfico teve sua primeira

edição no jornal norte -americano The New Yorker, em forma de

suplemento, tendo sido escrito originalmente em inglês. É utilizada a

reedição brasileira recente, feita pela Editora Globo (havia uma

edição antiga, publicada juntamente com Elogio da Sombra, sob o

titulo Perfis – já esgotada)

Na tabela abaixo estão listad os os textos do corpus, com o

volume em que se inserem na publicação definitiva e com o ano

original de publicação:

N º Título Livro Ano


1 Sala vacía Fervor de Buenos Aires 1923
2 El espejo Historia de la noche 1977
3 Animais dos Espelhos Livro dos seres imaginários 1974
4 Los espejos velados El hacedor 1960
5 El espejo de los enigmas Otras inquisiciones 1952

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As opções epistêmico -metodológicas já foram detalhadas nos

capítulos anteriores, mas cabe ressaltar um aspecto. A proposta

deste trabalho é a de, através dos textos literários selecionados,

empreender uma análise do ponto de vista da AD, considerando as

condições de produção dos discursos que circunscrevem a

materialização em textos escritos, de gênero literário, buscando os

indícios dos silêncios.

4.2 – Textos analisados

4.2.1 – Sala vacía

Este poema de Borges faz parte do livro “ Fervor de Buenos

Aires”, uma de suas primeiras obras publicadas. A temática

compreende basicamente o tempo perdido, a memória de um passado

irresgatável, testemunhado pelos móveis e objetos de uma sala vazia.

Uma estrofe interessa particularmente à nossa análise:

Los daguerreotipos
mienten su falsa cercanía
de tiempo detenido en un espejo
y ante nuestro examen se pierden
como fechas inútiles
de borrosos aniversarios

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Aqui o enunciador alude à questão da representação

fotográfica. Um primeiro elemento a chamar a atenção é o verbo

“mentir”. Filosoficamente os problemas ligados à representação

sempre estiveram diretamente relacionados à noção de verdade.

Pode-se afirmar, de maneira breve, que a linha epistemológica que

tem mantido a hegemonia no pensamento ocidental é exatamente

aquela que postula a existência de uma verdade atrás da

representação da linguagem e do próprio mundo. Platão foi um dos

maiores expoentes dessa concepção idealista, mas não faltaram

representantes que dessem continuidade ou que, de uma forma ou de

outra, reafirmassem, com pequenas alterações, tal escolha

filosófica 69.

Nesse sentido, “mentir” poderia ser entendido, a partir desse

ponto de vista, como “dizer algo oposto à verdade”. Tomando -se por

base o quadrado lógico de Aristóteles, surgem questões bastante

complexas que escapariam propriamente ao modelo proposto.

Simplificando um pouco a discussão, a natureza dessa complex idade

e extrapolação reside no ato de enunciação. O modelo aristotélico

permite, em princípio, verificar a falsidade ou veracidade de uma

proposição, mas não a intenção e/ou efeito de quem a enunciou.

Assim, a uma proposição tal como “a fotografia é menti rosa”,

podem-se elencar contextos que nos levariam (ou não) a uma

69 Não é intenção deste trabalho enumerar esses representantes. De um modo geral, há uma tendência a
se identificarem as perspectivas idealistas com a tradição platoniana.

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conclusão válida, sem contrariar a coerência interna do sistema. O

problema (e que representa a grande crítica ao modelo) é que mesmo

diante de um silogismo impecável, não se pode deixar de admitir que

só se chega a uma dedução pela soma (ou combinação) de um

apanhado de induções. Ou seja: é o conhecimento de mundo do

sujeito que torna possível uma generalização ampla o bastante para

depois ser cotejada com a realidade – mesmo que como exercí cio

lógico - (eis aí outra atividade interpretativa do sujeito) e verificada a

falsidade ou não da proposição. Mas mesmo que isso fosse

devidamente equacionado, não resolveria totalmente o problema:

mentir, semanticamente, não pressupõe uma atitude enuncia tiva, uma

intenção de proferir algo que, transformado em proposição, seja

verdadeiro ou falso ?

A semiótica greimasiana trata a questão por outro enfoque.

Dessa perspectiva, não se está diante da verdade/falsidade, mas da

veridicção. Sucintamente, no jogo dos papéis actanciais, o sujeito, a

partir de uma competência (querer e/ou poder e/ou saber -fazer) no

plano narrativo desempenha uma simulação, algo que imita a

realidade, que “parece, mas efetivamente não é.” Estabelece -se,

portanto, uma relação entre o ser e o parecer, que fica melhor

compreendida no quadrado semiótico 70:

70 Greimas (1977:184)

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VERDADEIRO

SER PARECER

R
SEGREDO MENTIRA

Não-parecer NÃO-SER

FALSO

Gráfico 4

Nesse referencial a mentira seria, portanto, a conjunção entre o

parecer e o não-ser. Para a análise das questões pretendidas nesta

tese este aspecto é significa tivo. Ou seja, do ponto de vista do

quadrado semiótico, as fotografias mentem porque o que nelas

parece ser, na verdade não é. Tal como os espelhos, a fotografia

encerra uma metáfora da representação. Uma foto nada mais é do

que a captação, por parte de um a película sensível quimicamente de

uma emissão de luz que, projetada sobre um corpo, reflete e marca

tal reflexo na superfície do negativo. Este negativo, por sua vez,

devidamente tratado, imprime sobre a superfície de um papel

especial (celulóide, basica mente) o reverso da imagem contida nele,

negativo.

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Enquanto processo, não passa de um jogo de espelhos, pois, na

verdade, o que fica no papel não é o objeto, mas a luz que se

deformou ao incidir sobre ele, a representação reversa dessa luz,

convertida novamente no oposto desse reverso para gerar o positivo,

empiricamente identificado como a foto comum.

O poema menciona que as fotografias mentem a respeito

exatamente de sua proximidade (falsa, explicitamente assumida pelo

enunciador) não com a realidade em si, mas com algo muito mais

sutil. O que é mentirosa é a falsa proximidade “de tempo que se

detém em um espelho ”.

Note-se, inicialmente, o jogo de espelhos entre o verbo mentir e

o adjetivo “falsa”. Ao dizer “mente a falsa proximidade ”, por um

princípio lógico elementar, subentende -se uma dupla negação, o que

insinua uma afirmação. Mentir a falsa proximidade pode ser lido como

“afirmar a proximidade”. A questão relevante aqui, e que transcende a

lógica clássica, é a atitude enunciativa . Num ato de enunciação, o

enunciador disse a palavra “mentir” e, ao fazê -lo, comprometeu -se

com essa opção. Ao se referir ao jogo de espelhos da representação,

o enunciador cria exatamente esse jogo.

Mais ainda: o poema continua, referindo -se ao espelho. Assume

que o processo de representação da fotografia não só é como um

jogo de espelhos, mas que procede como o espelho . Mente para

denunciar a mentira. Reduplica o avesso do reverso do reflexo. No

entanto a metáfora aprofun da-se em complexidade: não é a realidade

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em si, refletida e reduplicada na fotografia ou no espelho ; é o tempo.

Tempo, pelo menos numa tradição pós cartesiana, é movimento: do

presente que se torna passado, do futuro que se torna presente.

Outras direções também são possíveis (passado para o presente,

presente para o futuro), mas explicitam demasiadamente a atividade

interpretativa. Pensar o passado é, de algum modo, conferir ao

presente que já se perdeu uma organização da memória, do regist ro e

do que merece emergir do silêncio da ausência para a presença dos

ritos vivificadores do grupo.

Neste ponto, podem -se começar a perceber alguns indícios do

movimento dos sentidos empreendido no interior do s ilêncio. No

Capítulo 1 desta tese propõe -se a metáfora do espelho como

sinalizador do movimento dos sentidos. Estabelece -se um paralelo

entre a velocidade da luz que reflete sobre um corpo e “viaja” até a

superfície do espe lho para ser outro reflexo que atingirá o olho. O

quadrado semiótico mencionado anteriormente pode ser uma das

ilustrações visuais desse espelhamento.

Pensando-se na questão da representação, tratada pelo trecho

analisado do poema, pode -se entender que o que parece (a

representação) vem a ser (a própria representação) enquanto

performativo. Ou seja, a mentira da representação expõe -se como

mentira ao dizer, no complexo mecanismo da negação, o contrário do

que diz. E o que não é (tudo aquilo que a representação não é) deixa

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de parecer (não parece ser) representação no jogo da simulação, na

veridicção.

Nesse caso, admitido esse complexo raciocínio dialético,

haveria um espelhamento da mentira, que se transformaria em

segredo (ser e não-parecer). O segredo, enquanto ausência , é

silêncio. E a própria justaposição de um processo a outro é silêncio

enquanto excesso .

Tomando-se uma perspectiva da AD, estabelece -se relação com

o conceito de interdiscurso , já mencionado na introdução deste

trabalho. Quando Courtine & Marandin dizem que uma formação

discursiva alude a seu exterior e que tendem a se redefinir, tais

autores apontam não só a lembrança dos próprios elementos,

subjacentes, inerentes às FDs, mas também o apagamento ,

esquecimento e denegação como fatores (re)organizadores no interior

do interdiscurso.

De alguma forma, portanto , o silêncio é fundamental, não só

porque é espaço de apagamento (seja por falta, seja por excesso ),

necessário à reconfiguração no interior do interdiscurso . Mais do que

isso, é uma das vozes inscritas no dialogismo da linguagem, é

condição de alteridade entre os dizeres, as formas de dizer (ou não -

dizer), entre os efeitos desse intervalo entre dizer e não -dizer. É o

moto contínuo entre posições enunciativas, lugares di scursivos. É

nesse jogo de cabra -cega que o sujeito interpela seu outro como um

reflexo desdobrado, como imagem que parece ser a sua. Imagem que

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muda a cada enunciação, mas cuja incessante mutabilidade oculta -se

nos apagamentos e vozerios que permitem a i lusão de unicidade.

A cisão do sujeito disfarça -se atrás da máscara da

representação ritual do discurso , dos liames que o congregam não na

fixidez das formações discursivas, mas no intervalo entre elas .

Pode-se aludir à metáfora básica dessa análise, dizendo que não é o

movimento da luz que se constitui em silêncio , mas as condições de

percepção do olhar.

É o olhar, necessariamente despreparado para a estonteante

multiplicidade (velocidade ?) da incompletude que “conf ia” no reflexo

como “verdade”, como “realidade em si”. A mentira transforma -se em

segredo não porque a fotografia “pretenda mentir”, mas porque trai

uma direção do olhar, disfarçada de representação fiel. Mas mesmo

essa percepção do sujeito não deixa de ser um simulacro.

As alusões do poema borgeano vão além das complexas

questões da negação: adentram a denegação, na qual a voz que nega

se acotovela com outra que desconfia da própria negação.

O enunciador mergulha ainda mais: to do esse jogo de espelhos

e de silêncios ocorre dentro da interpretação (“ante nuestro

examen”). Outra relação especular ocorre a partir da conjunção “y”.

Se já é débil e incerta toda e qualquer representação da fotografia,

em sua semelhança com os espelhos , tal aparência de representação

perde-se irremediavelmente diante de nossa tentativa de reflexão (no

sentido de pensar sobre) acerca do próprio processo. No poema a

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ambigüidade ocorre com a palavra “examen”. Ela pode ser entendida

tanto no sentido de anál ise feita pelo sujeito, quanto no de uma

prova, um teste sobre nossa função dentro da representação da

realidade.

Diante desse intrincado labirinto de espelhos e de silêncios, o

próprio suporte físico se descaracteriza (note -se que a concordância

verbal de “se pierden” é estabelecida com “los daguerreotipos”),

portanto, numa referência ao próprio objeto da representação.

Perder-se, aqui, também assume vários sentidos: o de esvanecer -se,

mas também o de deixar de ter uma função. O primeiro, embora

menos indiciado, pode ser estabelecido se se pensar na comparação

seguinte, com “borrosos aniversários”. A imagem, sinestésica, alude

ao ofuscamento da visão, à perda dos contornos.

Perder-se, neste contexto, significa também silenciar. Sem esse

silêncio igualmente constitutivo, a consciência do sujeito como eixo 71

do dizer pulverizar -se-ia no vozerio da heterogeneidade. Claro que os

silêncios também são heterogêneos. Mas haveria, inclusive, um

silêncio sobre o silêncio apagando até a imagem dessa pluralidade.

71 Prefere-se, aqui, “eixo” a “centro”. Desse ponto de vista, a ilusão necessária do sujeito, discutida por
Pêcheux, poderia ser vista não necessariamente como um centramento do mesmo, no sentido de achar-se
“centro” e “origem” do dizer, mas como um eixo organizador, no sentido de que os dizeres deveriam passar
por seu olhar (do sujeito). Acreditamos que epistemologicamente tal diferença constitua-se como modelo
mais adequado para interpretar contextos nos quais o sujeito declara algum grau de consciência do processo
de interpelação ideológica. Ou seja: mesmo assumindo-se como não-fonte e não-origem do dizer, ele se
apropria de pré-construídos de diferentes FDs obrigando o Outro, no jogo enunciativo, a passar por suas
trilhas (dele, sujeito).

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0
O próprio anseio de perceber o movimento resulta numa

dificuldade adicional bastante arriscada para o olhar. Na

representação fotográfica isso pode ser metaforizado pelas fotos com

exposição longa, como a de automóveis, à noit e, numa auto-estrada.

As luzes aparecem como rastros disformes e uma das inquietações

de um observador da fotografia pode se traduzir da seguinte forma:

como posso saber se essa luz arrastada de um farol ou de uma

lanterna traseira pertence a esse carro, r etratado numa foto, ou a

outro que, em seu movimento, não deixou senão um fragmento desse

rastro de luz, mas que enquanto corpo, objeto, ficou para além da

representação ? 72

A própria questão dos limites de uma fotografia (como a dos

espelhos, das telas de cinema e do próprio ângulo possível do olhar)

estabelece uma interioridade e uma exterioridade que funcionam

como espaços de alteridade. Pode -se dizer que existem silêncios

qualitativamente diferentes: uns, interiores ao frame 73 fotográfico e

outros, externos.

A relação entre esses tipos de silêncio pode ser percebida no

filme Blade Runner , de Ridley Scott, que faz uma jogo discursivo com

esses limites da moldura do olhar. O detetive Rick Deckard,

interpretado por Harrison Ford, toma uma foto e, colocando -a num

72 Cf. nos Anexos, uma foto de exposição longa (domínio público) que exemplifica essa questão dos

traços.

73 Termo tomado aqui do jargão fotográfico.

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7
1
aparelho, capta lugares ocultos, não retratados na imagem original,

em ângulos impossíveis para o observador que tirou a fotografia 74.

São espaços silenciados, mas que ao serem expostos, não deixam de

silenciar aquele primeiro, repre sentado no papel fotográfico. Mais

importante ainda: ao se contraporem, silenciam, enquanto enigma, o

próprio processo de representação da fotografia. O que é captar a

realidade ? Até onde pode -se extrair de um olhar aquilo que ele não

vê ? Somente se for um olhar-outro. Mas até que ponto se pode

conviver impunemente com olhares que vêem de onde não se

enxerga como sujeitos ? Não se pode, sob a pena da cegueira ou da

loucura. Enxergar pressupõe determinar um ponto de vista e reenviar

os demais ao coro de si lêncios em que a linguagem se sustenta.

Mas o trecho analisado do poema de Borges ainda estabelece

outro jogo especular e paradoxal com o tempo. O tempo, detido nas

fotos, como nos espelhos é igualmente o tempo inútil de datas, dos

“borrosos aniversarios”. Datas são cíclicas, são retomadas e se assim

o são, pressupõem uma memória que estabeleça a sua circularidade

e um alguém que se lembre. Ou o tempo é cíclico e não se detém,

inalterado, nas fotos e nos espelhos, ou é inerte e não se submet e

aos engenhos da memória para que seja cíclico.

74 Já existe, na Internet, um recurso que simula esse efeito, recurso esse chamado de Foto 360°. Ao
arrastar-se o mouse, pode-se descrever uma trajetória de 360° na paisagem escolhida. Claro que este recurso
difere ainda do artifício ficcional explorado no filme Blade Runner, pois neste último não havia ângulo
interditado à redefinição do olhar, podendo este adentrar espaços ocultos atrás de paredes, por exemplo (o
recurso da foto 360° pode ser encontrado em sites diversos, como do do Masp e em www.paraty.com.br).

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7
2
Mas se tudo isso pode ser dito a respeito da fotografia, cabe

dizer que não se trata da representação fotográfica em si, mas de

uma de suas formas. O poema utiliza a palavra “ daguerreotipos ”,

referência às primeiras técnicas de representação fotográfica,

desenvolvida por Daguèrre. Esta técnica consiste em imprimir a

imagem sobre uma superf ície metálica (posteriormente de outros

materiais, como o vidro). O suporte físico da imagem conta muito

como representação da representação. A imagem não está entregue à

volatilidade do papel, mas à permanência do metal enquanto ícone da

presença dessa mesma representação.

Por isso mesmo, é, simultaneamente, segredo e mentira:

segredo, porque esconde os processos pelos q uais a interpretação

entranhou-se nessa malha de silêncios a que a veridicção ou o efeito

de realidade a submeteu; mentira, porque nem o papel, nem muito

menos o metal significam pelo que são enquanto suportes físicos da

representação, mas sim pelos efeito s que provocam, pelas imagens

que suscitam, enfim, pelas interpretações que desencadeiam e que,

silenciadas, simulam ser reflexos da realidade... como se os reflexos

fossem imunes à historicidade dos lugares enunciativos que

percorreram e que distorceram s ua trajetória.

O poema de Borges participa plenamente de todos esses

embustes: na sala vazia, há vozes e luzes. Em diferentes condições,

ambas se contrapõem e se silenciam. As vozes, porque são excesso

que preenche a sala antes da luz do dia apagá -las; a luz, porque

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3
remete as vozes ao espaço da ausência , colocando -se também como

excesso que as sobrepõe.

4.2.2 – El espejo

Este poema encontra -se no livro “Historia de la noche”.

El espejo

Yo, de niño, temía que el espejo


Me mostrara otra cara o una ciega
Máscara impersonal que ocultaría
Algo sin duda atro z. Temí asimismo
Que el silencioso tiempo del espejo
Se desviara del curso cotidiano
De las horas del hombre y hospedara
En su vago confín imaginario
Seres y formas y colores nuevos.
(A nadie se lo dije; el niño es tímido.)
Yo temo ahora que el espejo encierre
El verdadero rostro de mi alma,
Lastimada de sombras y de culpas,
El que Dios ve y acaso ven los hombres.

O poema acima começa com um pronome de primeira pessoa.

Além de remeter à enunciação, ocorre algo digno de atenção, se se

pensar que um poema não prescinde de alguma recitação, da

sonoridade. Enunciado pelo leitor , o pronome passa a refe rir-se a um

outro enunciador, que recoloca a alteridade, deslocando as posições

do Eu e do Outro.

Essa posição enunciativa, introduzida pelo pronome de primeira

pessoa é, na verdade, a voz da memória, pois a expressão

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4
intercalada “de niño” e a forma do ve rbo “temía”, no passado,

induzem ao efeito de que fala -se de um temor que não é o atual (o

que vai se confirmar num segundo momento do poema, quando outro

pronome de primeira pessoa, desta vez sucedido por um verbo no

presente – “yo temo ahora” - , refere-se aos temores atuais do

enunciador).

Esse temor passado tem a ver com a representação

proporcionada pelo espelho . O enunciador relembra -se criança,

temendo, inicialmente, que o reflexo no espelho não fosse o seu. Há

aqui um diálogo silencioso desse temor com a concepção de que o

espelho reflete a imagem de quem olha para ele. No plano da

memória, é relatada uma espécie de conflito, expresso pelo temor,

que corresponde à ansiedade gerada pela possível quebra de

expectativa.

Um pormenor estabelece -se nesse momento. Está -se diante de

uma polifonia. Duas vozes opostas, enunciando -se, embora uma

delas esteja implícita: a de que o reflexo do espelho deva

corresponder à face de quem o olha (o que f ica evidente se se pensar

que só faz sentido o temor de que o espelho não reflita a própria face

se se souber que ele possa refleti -la). O temor parece equivaler ao

mundo da criança; já a expectativa, corresponde ou à vivência da

criança de se acostumar com a própria imagem refletida no espelho ,

ou à incorporação das concepções adultas de que é isso que

realmente acontece na representação especular.

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Do ponto de vista da construção da subjetividade, pode -se dizer

que os dois processos são equivalentes. Tal discussão pode ser

melhor detalhada se for utilizada a discussão de Lacan sobre a

criança e o estádio do espelho no texto “O estádio do espelho como

formador da função do eu” 75:

Esse acontecimento pode produ zir -se, como


sabemos desde Baldwin, a partir da idade de
seis meses, e sua repetição muitas ve zes
deteve nossa meditação ante o espetáculo
cativante de um bebê que, diante do espelho ,
ainda sem ter o controle da marcha ou sequer
da postura ereta, mas totalmente estreitado por
algum suporte humano ou artificial (...),
supera, numa a záfama jubilatória, os entraves
desse apoio, para sustentar sua postura numa
posição mais ou menos inclinada e resgatar,
para fixá-lo, um aspecto instantâneo da
imagem. (Lacan,1998:97)

Com essa descrição inicial, Lacan discute os primórdios da

constituição do sujeito, e basicamente, como essa se dá

inevitavelmente através do olhar do Outro. Aspecto mais int eressante

da criança diante de sua própria imagem no espelho é que, num

primeiro momento o bebê não se reconhece refletido. E, mais

importante ainda, quando se reconhece, é precisamente porque

identifica -se com o olhar do adulto, para quem aquela imagem

designa a criança. Obviamente, há a relação com o mecanismo de

75 Lacan (1998)

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6
nomeação atribuído ao bebê. Expressões do adulto como “Olha o

nenê”, “Cadê fulano (nome do bebê) ? Tá ali...” provavelmente têm

influência decisiva nessa trajetória.

Para que se entenda convenientemente tal trajetória seria

pertinente recordar alguns processos típicos do desenvolvimento

infantil inicial. Lajonquiere (1992) aponta dois momentos prévios a

essa identificação que a criança faz da própria imagem. O primeiro é

o de brincar com uma imagem confusa, um “ser sorridente que tem

ante seus olhos”, brincando de olhá -lo e ser olhado pelos olhos que

vê na superf ície do espelho . A confusão estabelece -se principalmente

no que se refere ao olhar/se r olhado, o que corresponde a uma

indiferenciação um/outro. Se se lembrar que as relações de

causa/conseqüência e de anterioridade/posterioridade ainda estão

pouco definidas para a criança nesse momento de sua existência, fica

mais fácil compreender como s e caracteriza essa confusão: a criança

que bate diz ter sido batida; se ela vê alguém cair, chora (talvez

pensando tratar-se da própria queda).

Já num segundo momento, a criança descobre que o que há no

espelho não se trata de um ser real, mas de uma imagem. Não tenta

agarrar ou tocar tal imagem. Esse momento é particularmente

complexo, se se pensar que começa a ocorrer uma distinção entre

“imagem do outro” e “realidade do outro”. É uma instauração

simbólica já com um grau de abstração.

1
7
7
Em seguida ocorre a identificação dessa imagem do outro

(presente no espelho ) com a sua própria. Perceba -se que há também

um espelhamento na própria percepção do eu enquanto sujeito: ao eu

só é possível ver -se como outro. Alie -se a essa circu nstância que

essa percepção acontece unicamente porque o olhar do adulto,

enquanto Outro, é que dirige o olhar da criança para essa

configuração sígnica:

O bebê ‘vê’ sua imagem porque o olhar da mãe


(primeiro outro a encarnar o Outro) dá
sustentação ao ac ontecimento. A criança ‘se
vê’ através dos olhos da mãe. É como se a
criança dissesse: isso que está aí é o que
vêem os olhos de minha mãe. Porém, o
importante não é o olhar da mãe ou a mãe na
sua dimensão empírica mas o desejo da mãe
que faz as ve zes de ‘ matriz simbólica’ sobre a
qual se precipita, se atira, se debruça o infans
(Lacan, 1949:87). A criança se prende (agarra -
se) a essa imagem porque, em última
instância, é assim que se fa z objeto do desejo
materno.(...) (Lajonquiere , 167-168)

Esse olhar do adulto traz um desejo anterior à existência da

criança como sujeito e que representa os desejos a respeito dela

(que seja assim, que aja desta ou daquela maneira, que queira ser

isso ou aquilo profissionalmente, que prof esse tal ou qual fé ou opção

política, que se case, que tenha filhos etc.). A esse respeito,

Lajonquiere diz:

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8
O recém-nascido, como dissemos, já tem um
lugar reservado numa trama desiderativa que
começou a se tecer quem sabe quando. A
trama é infinita e onipresente na medida em
que o desejo não é (depois de Hegel) desejo
de nenhum objeto natural suscetível de ser
achado com maior ou menor sorte; o desejo
deseja o desejo do outro enquanto outro
desejante. Em outras palavras, o objeto do
desejo é o desejo do outro , que é mais ou
menos o mesmo que dizer que cada um de nós
deseja ser desejado pelo outro, exatamente
como supomos que o fomos naquela mítica
oportunidade. (...) (Lajonquiere , ibidem, 157)

Entre os muitos ef eitos que essa aparentemente simples

identificação pode ter, ressalta -se a criação de laços simbólicos

muito profundos entre a criança e o adulto, atribuindo a ela desejos

que são da comunidade que a cerca. Esses desejos constituirão

sentidos que serão ins tauradores de um espaço de tensão simbólica

entre o indivíduo (a partir do momento em que a criança se

reconhece como um, como ser indiviso) e essa comunidade inicial,

bem como outras comunidades com as quais o indivíduo irá se

deparar no decorrer de sua existência. A multiplicidade de sentidos a

que ele estará exposto e a maneira através da qual cada sentido será

naturalizado vai instaurá -lo na rede do interdiscurso 76. E isso só se

torna possível porque instauram -se regras sobre o dizer (e o não

dizer), constituindo as formações (discursivas, ideológicas), as

relações entre elas, e o sujeito que se constitui nesse espaço

dialético. Lacan, ao tratar de implicações do estádio do espelho

aponta algo nessa direção:

76 Através de interdições, dos espaços de denegação e apagamento necessários não só à constituição do


sujeito, mas também de sua filiação a FSs, FIs e FDs.

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É esse momento que decisivamente faz todo o
saber humano bascular para a mediatização
pelo desejo do outro, constituir seus objetos
numa equivalência abstrata pela concorrência
de outrem, e que faz do [eu] esse aparelho
para o qual qualquer impulso dos instintos será
um perigo, ainda que corresponda a uma
maturação natural – passando desde então a
própria normalização dessa maturação a
depender, no homem, de uma intermediação
cultural (...)(Lacan , 1998:101-102)

Voltando ao poema borgeano, pode -se perceber a polifonia

expressa no temor de que o espelho mostrasse ao enunciador outra

face que não fosse a sua. Obviamente, esse ponto de vista só pode

ser a de quem já passou pelo estádio do espe lho e que já se

identificou enquanto imagem a si próprio. Cabe ressaltar, ainda, que

a utilização do pronome “ otra”, na expressão “otra cara” é mais

reveladora dessa polifonia. Pode -se subentender que essa “outra”

opõe-se a uma face conhec ida, esperada. São, portanto, duas vozes,

dois pontos de vista.

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0
O temor seguinte também é digno de análise. O enunciador

teme que o espelho mostre outra face que não a sua própria 77 ou “una

ciega máscara impersonal ”. Alude aqui a uma s érie de questões muito

relacionadas à constituição da subjetividade. A palavra máscara faz

alusão ao teatro grego, com a máscara que expressa a personagem,

a persona. Nesse sentido o sintagma nominal “ máscara impersonal ”

constitui uma antítese, uma contrad ição e até uma ironia 78.

No entanto, cria um espaço do dizer, e entrediz algo que nega

e/ou silencia a individualidade e poderia, talvez, ser enunciado da

seguinte forma: o que vejo no espelho (supondo que acredite que o

espelho seja uma representação fiel) é, ao contrário de uma imagem

que me distinga das outras pessoas, uma imagem que me torne

exatamente igual a todas elas. O que me torna indivíduo é meramente

minha ilusão de não enxergar em mim o que enxergo em todos os

outros.

Essa constatação implícita é sugerida pela continuidade da

expressão “máscara impersonal ”: “que ocultaría algo sin duda atro z”.

A criança, ainda não individuada, ainda não sujeito do discurso , não

pode ter tais tipos de temores po rque ainda não se julga uma

77 No poema Los espejos velados, publicado em El hacedor, Jorge Luís Borges explora outra
possibilidade semelhante. Relata uma história em que uma moça, conhecida sua, depois de saber do medo de
Borges na infância de que os espelhos não refletissem seu próprio rosto, anos mais tarde enlouquece e os
espelhos da casa dela têm que se manter velados, pois a moça alega que, por alguma conjuração mágica, ela
vê nos espelhos o reflexo de Borges e não o dela própria. No interior do Brasil, em algumas regiões rurais,
quando morria alguém era costume cobrir os espelhos para que a alma pudesse ir em paz e não ficasse
aprisionada neles.
78 Esta antítese acentua-se ainda mais se considerarmos que, embora a máscara recubra a face,
atribuindo outro papel ao sujeito, ele possui os orifícios dos olhos, por onde o olhar deste mesmo sujeito
encontra um espaço de constituição próprio (baseado em comunicação pessoal de Nascimento, E. 2001).

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unidade. Mergulhada no inconsciente, ela ainda não opera com

nenhuma diferenciação convencional entre Eu e Outro. Não foi capaz,

até esse momento, de olhar através do olhar do adulto e ver -se como

objeto do desejo.

Tal discurso, esse dos temores sobre a identidade só faz

sentido se localizado num lugar enunciativo pertencente ao adulto

que após ter passado pela ilusão da identidade, começa a refletir

polifonicamente sobre a validade dessa crença. De alguma forma,

esse adulto reincorpora a confusão inicial, indiferenciada, da criança

pré estádio do espelho e a faz dialogar com essa movediça e frágil

certeza de identidade. Por isso, ocorre a polifonia, a heterogeneidade

que constitui sua dúvida e que subjaz a ela e o silêncio do adulto

num dizer atribuído à criança (mesmo que na memória do adulto).

A partir da metade do quarto verso, o enunciador teme que o

tempo do espelho não seja o mesmo do cotidiano e que este último

hospede seres, formas e cores novas. Aqui se dá um jogo de

espelhos. Se para constituir -se como Eu, o futuro indivíduo necessita

de olhar com o olhar do Outro para ver -se desse lugar discursivo, à

medida que o Eu teme o novo (u ma das metáforas do Outro), por um

jogo especular, pode -se dizer que ele teme constituir -se como Eu. É

a própria subjetividade que se esmigalha nesse ponto.

Mas há uma pista que não deve ser desprezada e que constitui

um verso intermediário desse trecho analisado: “en su vago confín

imaginario” (referindo-se ao espelho). Ou seja: essa hospedagem do

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novo, do Outro, esse tempo diferente e assustador determina -se em

grande parte pela natureza dos limites e fronteiras do espelho como

mecanismo de representação. Seus confins são vagos e –

imaginários. Se se tomar o conceito de imaginário, tal como o

apresentado por Laplantine & Trindade, a partir de uma concepção

bachelardiana, de que

O processo do imaginári o constitui-se da


relação entre o sujeito e o objeto que percorre
desde o real, que aparece ao sujeito figurado
em imagens, até a representação possível do
real.(...) (1997: 27),

há a necessidade de se aceitar um sujeito que objetifica algo como

exterior a si mesmo, ainda que essa exterioridade seja o espaço

necessário para que ele se reconheça como sujeito. No caso das

fronteiras do espelho , elas não existiriam sem o olhar de alguém que

as imaginasse.

Um exemplo aparentemente absurdo ser ia a questão da

moldura. Supondo -se um espelho com moldura, de onde vem a

certeza de que a moldura está fora da representação especular ? Se

isso pode parecer absurdo ao se pensar em molduras de materiais

não refletores de luz, que tal cons iderarem-se superf ícies

especulares metálicas, cujos contornos, também metálicos, refletem

de maneira muito mais distorcida as imagens ? Se o sujeito for

levado, de alguma maneira a considerar somente o que está refletido

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3
no interior do espelho – intramoldura – não será exatamente em

função de uma imagem (também imagem, note -se, só que do ponto

de vista psíquico) do que seja uma representação especular ?

Nesse sentido, os contornos do espelho serão sempre

imaginários, pelo m enos em dois sentidos que esta última palavra

pode apresentar. Num primeiro sentido, de imaginados por alguém, o

sentido de contornos torna -se mais abstrato e refere -se aos limites

do processo de representação da realidade. Existe uma fronteira

vertical entre a realidade aquém e a realidade além do espelho ; da

tridimensionalidade do real para a bidimensionalidade da imagem

especular 79.

Um outro sentido de imaginário (talvez fosse mais criterioso

chamar de imagético), teria a ver com as imagen s ópticas. Do ponto

de vista f ísico, a extensão da superfície do espelho determinará o

espaço possível de reflexão/refração da luz incidente sobre um corpo.

Os limites estariam condicionados, numa primeira instância, ao

tamanho, à extensão do suporte. Todavia, como no processo

especular o olhar é fundamental para que ele seja conhecido, a

extensão do suporte é limitada pelo horizonte desse olhar.

Do ponto de vista físico, ocorre sempre algum grau de desvio

quando há um processo de reflexão/r efração da luz, como o que

79 Na verdade, a bidimensionalidade refere-se mais às características ópticas do olho humano do que


propriamente ao suporte físico ou formato do espelho. Poderíamos conceber um espelho tridimensional, mas
não podemos nos esquecer que, para nossos olhos, a percepção dessa tridimensionalidade é um artifício para
superar o processo bidimensional de comunicação de impulsos nervosos-luminosos entre o olho e o cérebro.

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ocorre nas imagens refletidas em espelhos. No âmbito discursivo,

pode-se dizer que o imaginário representa essa distorção, na medida

em que, nesse movimento inevitavelmente interdependente entre o

sujeito e o objeto na interação, a representação do real está

condicionada à esfera do possível. Isso significa que ela depende das

categorias de mundo que a cultura disponibiliza, e ao recorte entre o

que é possível dizer e silenciar no entrecruzamento de posições

enunciativas.

O verso seguinte, intermediário entre o tempo da memória e a

percepção atual refere -se igualmente ao silêncio : o menino – lembra-

se o homem adulto – não disse nada a ninguém, pois o menino é

tímido). Há um silêncio pela ausência (o não dizer) que sobrepõe (por

excesso) a polissemia, a multiplicidade de sentidos que esses

temores todos assumem. Mas há alguma coisa que se reveste de um

silêncio mais prof undo. Um silêncio que se concretiza na categoria

mentira, do quadrado semiótico (não ser/parecer). Esse silêncio

refere-se ao fato de que é falso afirmar -se que isso não foi dito. Se

se aceita que o inconsciente é constitutivamente heterogêneo, de que

(...) tudo aquilo que aninha -se no sujeito, em


última instância, é do Outro. Neste sentido,
dissemos, precisamente, que o desejo era
causado pelo desejo do Outro. Nesse mesmo
sentido, deve-se agora entender que as
pulsões, que perambulam tão silenciosas como
infatigáveis no sujeito, são o efeito do
pulsionar do Outro. O Outro é aquele que

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sustenta, pulsiona, o sujeito a viver
avançando. (Lajonquiere , ibidem, 159),

para constituir -se como sujeito, o menino teve de desejar esse olhar -

Outro que o via como tal. Para passar a existir como sujeito, em

outras palavras, ele teve que nascer desse diálogo contraditório,

cindido entre o indiferenciado e o pré -construído pelo desejo de sua

comunidade, de su a posição inicial no jogo interdiscursivo. Esse

silêncio é da natureza dos esquecimentos necessários apontados por

Pêcheux. É silêncio constitutivo, originário do inconsciente, advindo

da voz do Outro, imbricada na própria voz do Eu.

Outro silêncio exposto neste verso refere -se a um recurso

poético/literário bastante utilizado na criação borgeana: o do

simulacro, do engodo. Novamente a mentira, no quadrado semiótico.

A timidez do menino, un iversalizada pelo presente do indicativo é um

pretexto para fazer acreditar que isso não foi dito. Mas o que se

discute que está silenciado aqui é que fora desse diálogo constitutivo

entre Eu e o Outro, isso não foi dito a ninguém naquele tempo de

menino. Porém, agora, no tempo do homem, a voz mesma do

menino, igualmente imbricada na voz da memória do homem, diz em

alto e bom som isso no poema. Senão, por que escrever um texto ?

Por que publicá-lo ? Há um interlocutor e o tipo de interlocutor visado

não é unicamente um eu interior.

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Finalmente, os quatro últimos versos tratam do tempo atual, do

homem que se analisa através de suas concepções atuais. O primeiro

indício disso aparece no uso do dêitico “ ahora”, que alude à

circunstância de enunciação.

Essas concepções do homem adulto também refletem temores.

O principal deles, segundo o poema, é que o espelho encerre “el

verdadero rostro de mi alma ”. O adjetivo merece uma atenção

especial. Aqui ocorre novamente polifonia e silenciamento. Dizer

“verdadeiro” depois de ter mencionado “face” anteriormente, significa

que há uma (de)negação das concepções anteriores, as da criança

que a memória recria. O silenciamento ocorre por sobreposição,

exatamente dessas concepções anteriores. Ao ler “verdadeiro” o

leitor esperará que agora sim seja mencionado qual é o tipo de rosto

da alma do enunciador.

Tal natureza do rosto fica evidenciada no verso final: é o que

Deus vê e, que por acaso, os homens também vêem. Curioso jogo de

espelhos (labirinto seria um termo mais borgeano e apropriado). Se

como criança havia um temor de que o rosto (cara) fosse diferente da

esperada (daquela que o sujeito acredita ser a sua própria, por ser

diferente das demais), como adulto, há o temor de que aquela

representação fiel ansiada pela criança seja tão fiel ao ponto de

refletir não só a face, mas a alma. No início do poema a palavra

utilizada é “cara”. Aqui é “rostro de mi alma”.

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Essa alma, no entanto, extrapola o domínio exclusivo do sujeito.

Segundo o enunciad or, em suas concepções atuais, esse rosto da

alma é visto por Deus e – talvez esse seja um temor ainda maior,

– pelos homens. O sentido entredito de espelho aqui é metafísico: o

processo de representação não dá conta somente da realida de

material, mas do imaginário, ou seja, da maneira como a realidade é

sentida.

O grande temor do enunciador é que essa maneira através da

qual sua vida é avaliada pelo seu Eu (ou mais propriamente, pelo

Outro-Eu que dialogicamente está dentro de si), sej a representável

para os outros, externos ao sujeito. E uma das razões para isso,

sugerida pela presença do penúltimo verso, tem a ver com a questão

da subjetividade, mas basicamente, também com a historicidade. É a

alma, “lastimada de sombras y de culpas ” que o enunciador teme ser

reconhecida na face do espelho . E ser reconhecida na face do

espelho, aqui, significaria apenas evidenciar o que já é uma suspeita,

uma concepção denegada: a de que o Eu é o único que não vê o que

todos os outros vêem (Deus e os homens) 80.

Se as sombras podem ser consideradas espaços de

silenciamento, na medida em que constituem processos do

80 Em outro texto, não analisado nesta tese, que é o Epílogo do livro O Fazedor, Borges, no último
parágrafo, utiliza uma concepção semelhante (a de que a face de um Homem é o resultado de suas
experiências):
Un hombre se propone la tarea de dibujar el mundo. A lo largo de los años
puebla un espacio com imágenes de provincias, de reinos, de montañas, de
bahias, de naves, de islas, de peces, de habitaciones, de instrumentos, de astros,
de caballos y de personas. Poco antes de morir, descubre que ese paciente
laberinto de lineas traza la imagen de su cara. (1989: 854)

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8
inconsciente, irrecuperáveis à consciência do Eu -sujeito (silêncio

pela ausência ), as culpas são indícios de heterogeneidade mostrada

já que correspondem a um conflito entre o Eu e o Outro, no interior

do interdiscurso. O mais atroz agora não é ser uma face sem

individualidade; é saber, de alguma for ma, que essa individualidade

não garante jamais um espaço demarcado e completamente

independente dos outros. Esses outros, presentes no Outro interno, é

que tornam possível a própria ilusão de que sentir -se um seja estar

apartado das partes.

Como o corpo fragmentado do bebê que mal comanda sua

motricidade é antecipado pela visão de uma unicidade desejada pelo

Outro, a reflexão do adulto exibe uma incompletude constitutiva: é o

imaginário que cria recortes, representações possíveis, de onde o

sujeito se diferencia. O que ocorre, porém, é que além de ser espaço

de silêncio, exatamente porque é ausência , essa diferenciação

também é silêncio porque é movimento. Assim como a luz se

movimenta, o olhar, o corpo, o espelho se movimentam e isso

implica, no âmbito dessa metáfora, que os sentidos não estão

fixados nem na memória nem no sujeito. Eles dialogam entre

(de)graus, espaços e tempos do dizer e do silenciar, seja p orque

mostram uma falta, seja porque deixam de mostrá -la.

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4.2.3 – Animais dos Espelhos

Esta narrativa encontra -se no Livro dos Seres Imaginários, obra

que Borges editou em co-autoria com Margarita Guerrero e que se diz

ser um manual que é resultado de uma compilação “dos estranhos

entes que engendrou, ao longo do tempo e do espaço, a fantasia dos

homens.” (Prólogo, XI). No entanto, antes de caracterizar dessa

forma a obra, os autores dizem que o nome do livro

justificaria a inclusão do príncipe Hamlet, do ponto, da


linha, da superfície, do hipercubo, de todas as palavras
genéricas e, talvez, de cada um de nós e da Divindade.
Em suma, de quase todo o universo.

Com esse toque de ironia, os autores insinuam que nossa

própria existência faz parte do imaginário. Se se considerar a

discussão sobre imaginário feita na análise do texto anterior,

principalmente a respeito das categorias de mundo e da

representação possível do real a partir delas, a idéia é bastante

provocadora, mas não despro vida de sentido. O que significa que no

contexto dessa obra, o termo imaginário subentende que não permita

ser interpretado como “falso”, mas provoque o leitor para uma forma

de encarar algo de real visto a partir de uma determinada cultura,

ponto(s) de vista diferente(s), categorias de mundo. A narrativa

analisada participa desta provocação.

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9
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Trata-se, de acordo com diversas fontes citadas no texto, da

crença no Peixe, que faz “parte de um mito mais amplo, referente à

época legendária do Imp erador Amarelo.” (p.6)

No interior do mito narra -se que teria havido um tempo primevo

no qual o mundo dos homens e dos espelhos teriam tido a

possibilidade de comunicação, podendo as pessoas passarem para o

lado de lá e os seres dos espelhos passarem para o lado dos

homens. Tais seres seriam muito diferentes de nós, não coincidindo

nem os seres, nem as cores, nem as formas. A paz reinante entre os

dois reinos teria sido quebrada no momento em que os seres do

espelho invadiram a Terra. Depoi s de sangrentas batalhas foram

vencidos pelas artes mágicas do Imperador Amarelo, que os

condenou a viverem encarcerados nos espelhos e de “repetir, como

numa espécie de sonho, todos os atos dos homens”.

Esta vitória humana, no entanto, não seria definiti va. Para o

mito, um dia tais seres se livrariam desse sortilégio e nos

dominariam. Deixariam de ser semelhantes a nós. O primeiro a

despertar seria o Peixe (ou o Tigre, em outra versão). Junto às

criaturas dos espelhos combateriam as da água.

O primeiro aspecto que merece atenção é a introdução da

narrativa do mito propriamente dita. Nela, o narrador relata que numa

obra entitulada Cartas Edificantes e Curiosas , um padre jesuíta

“planejou um estudo das ilusões e erros do povo de Cantão” e que

“num levantamento preliminar anotou que o Peixe era um ser fugitivo

1
9
1
e resplandecente que ninguém havia tocado, mas que muitos

alegavam ter visto no fundo dos espelhos.” (p.6).

A analogia com o estádio do espelho de Lacan chama a

atenção, particularmente em relação ao ver e não tocar a imagem.

Isso corresponde aos estágios da criança frente ao espelho . Ocorre,

porém, nesse caso, que há uma indeterminação se quem alega ter

visto o Peixe não o tocou apenas porque ele seria “um ser fugitivo”

ou porque o viu simplesmente como imagem e não como realidade. A

primeira hipótese parece mais provável no interior do mito, mas de

qualquer forma, nesse aspecto há um silenciamento da narrativa a

respeito disso. Há ainda a expressão “no fun do dos espelhos”, o que

sugere alguma profundidade, volume, tridimensionalidade a eles.

Essas características também sugerem um maior grau de veridicção

aos interlocutores do mito (cf. o conto Pierre Menard, autor del

Quijote).

A narrativa borgeana utiliza essa forma de relato, aproveitando -

se dos dois tipos fundamentais de silêncio , o por ausência e o por

excesso para criar esse efeito. Assim, a não referência, em momento

algum à palavra superfície (ou equivalente), ao se referir a espelho

instaura uma ausência que confere maior realidade, maior

profundidade ao conceito espelho , o que é necessário à veridicção.

Além disso, a express ão repetidamente utilizada “fundo dos espelhos”

silencia por excesso qualquer possibilidade de se pensar no espelho

1
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2
como uma superfície plana, bidimensional e meramente

representativa da realidade.

Significativo é o fato de que a invasão da Terra pelos seres dos

espelhos se dê durante a noite, segundo o relato. A noite implica

ausência de luz, substância fundamental para que os espelhos

reflitam a imagem dos corpos. As artes mágicas do Imper ador

Amarelo criam no âmbito do mito a explicação para a representação

existente nos espelhos. As imagens vistas num espelho seriam seres

condenados a parecerem conosco, a repetirem cada gesto, cada ato

humano.

Novamente o silêncio . Entre o mito e explicação física da

imagem especular, falta a inversão. A imagem refletida no espelho

não repetirá nunca os atos dos homens, uma vez que, de alguma

forma, através da refração esses atos serão invertidos, distorcido s.

Vale a metáfora para qualquer grau de paráfrase. O seu extremo, a

réplica, no sentido de cópia, não será jamais uma repetição. No

movimento dos sentidos, a enunciação terá sido outra e, se há

alguma regularidade discursiva possível, pode -se entender que ela

exista unicamente no silenciamento que o sujeito obriga -se a

estabelecer com relação às diferenças entre cada enunciação.

A narrativa borgeana representa metaenunciativamente esse

processo. Ao fingir meramente relatar o mito, compilar visões de

criaturas imaginárias, o texto silencia que esse relato partirá de um

outro lugar discursivo, estará dialogando com outros discursos,

1
9
3
diferentes daqueles em um outro contexto de relato e que esse

diálogo se instaurará desde a perspectiva do espaço de autoria,

quanto do espaço do leitor .

A questão fundamental que se coloca neste caso (e isso é muito

oportuno de se discutir em face de um texto literário) é a do

assujeitamento do sujeito. Seguindo -se a análise sob o mesmo

prisma de Lacan, provavelmente não se escapasse desse conceito. A

criança, como corpo fragmentado de sensações e movimentos de

membros e órgãos, ainda não individuada, estaria, desde antes de

seu nascimento assujeitada à sua cultura, às categorias de mundo,

aos desejos de sua família e comunidade. Sendo assim, ao desejar o

desejo do Outro e constituir -se como sujeito, estaria fadada a um

assujeitamento permanente 81.

No âmbito do silêncio , pode-se imaginar até que ponto o sujeito

pode escolher silenciar. A constitutividade do silêncio não implica

necessariamente sua inconsciência, para que o coro de vozes que

constitui o discurso seja imaginado pelo sujeito como sua própria voz

unicamente ? Se uma formação discursiva impl ica regras do que deve

e pode (e o que não deve e não pode) ser dito, como pensar o mundo

e dizer algo se essas regras forem violadas ? Se, como sujeito,

alguém toma consciência de que dizer “como vai” em língua

portuguesa é uma fórmula ritual para se cump rimentar o interlocutor e

81 No entanto, pode-se interpretar que análise lacaniana refere-se prioritariamente a um assujeitamento


de origem. Cf. página 190 desta tese.

1
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4
que não corresponde necessariamente a um desejo de se saber como

o interlocutor está realmente passando, será possível a ele ter essa

idéia presente todos os momentos em que cumprimentar alguém, até

o final de sua vida ? Obviament e, não.

Esse esquecimento necessário para que o discurso se produza

é um tipo de silêncio que, para se adaptar uma categoria já proposta

por Orlandi (1992), pode-se chamar de silenciamento. É preciso, no

entanto, avançar um pouco em algumas implicações desse processo.

No início do trabalho foi mencionado que constitutivamente o silêncio

assume um movimento cíclico e complementar que é o de ausência e

o de excesso. Uma questão essencial que precisa ser lembrada é que

esse processo é dialético.

Isso significa que silenciar por ausência propicia uma

sobreposição da polissemia em relação ao sentido estabelecido num

determinado contexto. Inversamente, silenciar por excesso significa

gerar uma ausência do que não foi dito.

Entre o silêncio e o dizer, pode-se igualmente pensar essa

constitutividade; se o si lêncio apaga o dizer (enquanto possibilidade)

o dizer igualmente apaga o silêncio por ausência, mas estabelece o

silêncio por excesso. Como na metáfora do espelho, o sujeito estará

inexoravelmente impedido de ver o movimento da luz que incide

sobre o corpo, reflete na superfície do espelho e reflete sobre o olho

(sem contar que o estímulo luminoso vai até o cérebro,

transformado/representado em estímulo elétrico/nervoso e volta para

1
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5
o olho), assim como está impedido de ver o movimento dos sentidos

em toda a sua extensão.

Todavia, se alguém piscar um facho de luz diante de um

espelho uma pessoa poderá ser capaz de perceber de onde partiu a

luz, percebê-la refletir sobre a superfície do espelho e entender que

houve um movimento. O que talvez jamais seja possível, com relação

aos movimentos dos sentidos, é

1) ter consciência de todos eles

2) ter consciên cia simultânea deles

3) ter somente consciência deles (negando -se que haja outras

relações mais amplas das quais esse movimento dos

sentidos participa)

4) ter consciência deles sem a presença do olhar do Outro (é

a outra direção do olhar que vai acusar a incompl etude do

olhar do sujeito)

Como espaço, o movimento dos sentidos é multifacetado. Por

um lado é um gradiente de possibilidades entre formas de dizer, entre

formas de silenciar e entre formas de dizer e de silenciar. Por um

outro, é um desnível de incomple tudes de dizeres sobre dizeres e

silêncios sobre silêncios. Finalmente, e isto é muito importante ser

reafirmado, é um trabalho, no sentido de que é sempre

(re)construção. Como tal, redistribui incessantemente os lugares

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dinâmicos entre os dizeres, os silê ncios e entre ambos, assim como

no jogo do interdiscurso redistribuem-se continuamente as formações

sociais, ideológicas e discursivas, os lugares de onde se diz e de

onde se ouve.

Nessa dimensão de traba lho é que se pode ver o texto

borgeano. Se se perguntar até que ponto, como autor (ou co-autor,

nesse caso) ele sabe a respeito das escolhas que fez nesse

entrecruzar permeado de silêncios, será necessário reconfigurar

inicialmente os sentidos do que seja saber. Se for substituída a idéia

de consciência pela de saber, pode -se dar um passo essencial para

aprofundar essa discussão.

Essa redistribuição de lugares mencionada acima, e que

constitui essencialmente o trabalho no disc urso, depende do saber,

em suas múltiplas facetas: saber fa zer, saber dizer, saber silenciar,

saber agir, saber olhar, saber saber etc. Uma metáfora útil, nesse

caso, é exatamente a de jogo. Para jogar é necessário saber as

regras. Mas nem todas as regras são, a todo momento, conscientes.

Um jogador de basquete minimamente habilidoso “sabe” que deverá

sempre manusear a bola com as mãos e jamais com os pés. Um

motorista “sabe” que tem de embrear o automóvel para mudar as

marchas, mesmo que o faça inconscientemente. Outro exemplo é que

os seres humanos sabem respirar 82.

82 A respiração é um exemplo útil. Na maioria das vezes respiramos mecanicamente,


inconscientemente. Isso não impede, porém, que tomemos consciência dessa respiração (tanto no sentido de

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No caso do autor, ele sabe que tem de criar um narrador para

relatar a história. Mesmo que nominalmente identificado com o

próprio nome do autor (esse recurso é largamente utilizado por

Borges), esse narrador representará um princípio organizador do

relato que refletirá não o autor , mas o conjunto de características

daquele ato enunciativo (do contrário o autor teria uma única forma

de dizer). Esse trabalho, realizado pelo autor , demanda um saber

fazer e um saber dizer que se referem, numa instância primordial ao

que se aceita como fazer estético e literário numa determinada

cultura, numa determi nada época. Supor um sujeito totalmente

assujeitado seria imaginar esse mesmo autor à mercê de discursos e

posições que representa, sem que esse saber pudesse ser

reorganizado, às vezes, inclusive, de maneira consciente e

deliberada.

Pode-se apontar talvez o que seja uma confusão metodológica

nesta questão. O que a leitura de Lacan aponta inequivocamente é

um assujeitamento de origem. Mesmo antes de nascer, o futuro

indivíduo já está sujeito ao desejo de sua comunidade (este aspe cto

já era apontado por Freud ).

O problema é o quanto de mobilidade existirá nos espaços

discursivos atravessados pelo sujeito e que também se entrecruzam

em sua constituição dialógica. Se, por certo, é inconcebível uma

percebê-la fisicamente, quanto no de discutir sobre ela), ou que a provoquemos/modifiquemos


intencionalmente.

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liberdade e autonom ia totais, também soa questionável uma leitura

extremada da interpelação althusseriana do indivíduo em sujeito pela

ideologia como um processo monolítico 83. Cumpre considerar (e

Possenti (1996) levanta essa linha de análise) que também a

ideologia é dialógica, heterogênea. Ao contrário de Althusser , que diz

que ela é eterna, entende -se, nesta tese, que ela tem história.

É necessário enfatizar a questão do ponto de vista

metodológico, porque exatamente o conflito epistemo lógico parece

ser não a existência de interpelação, mas a forma como ela ocorre.

Afirmar que a ideologia é eterna é desconsiderar essa

dialogicidade presente na própria ideologia. É, igualmente, olhar para

conceitos como Formações Discursivas e Ideológicas de maneira

estática, sem avaliar o movimento e o intervalo. Se os conceitos de

interdiscurso e de alteridade forem considerados com maior

profundidade epistemológica, a voz não mais será única, será

dialética, prenhe de contradições. Até que ponto a fala do Outro não

desloca a minha ? Não enquanto indivíduo, mas enquanto sujeito

também dialógico. No fundo, o que está em jogo é a questão a

historicidade e da forma de constituição das vozes do sujeito.

Faz parte do universo borgeano o engodo, a dissimulação e a

utilização de silenciamentos trabalhados no interior do discurso .

Seria possível, então, afirmar -se que o autor “conhece o movimento

83 Para o próprio Althusser, a interpelação é um processo com contradições: ao mesmo tempo o sujeito
é e não é constitutivo de toda ideologia. (1985:93)

1
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9
dos sentidos” ? No sentido de que “sabe” col ocá-los ação,

(re)conhece sua dialeticidade, sim.

Claro que isso somente é possível estabelecendo -se outros

textos de um autor como olhares-Outros capazes de mostrar as

falhas, ausências. Além disso, o olhar analítico será, no mínimo, um

terceiro olhar para com esse diálogo.

O jogo borgeano estabelece -se nestas relações intradiscursivas

como num jogo de espelhos, um texto dialogando com outro, no

conjunto da obra. É o caso da relação entre o texto Animais dos

Espelhos e o poema anterior El espejo. Neste último há uma

seqüência de versos assim:

Que el silencioso tiempo del espejo


Se desviara del curso cotidiano
De las horas del hombre e hospedara
En su vago confín imaginario
Seres y formas y colores nuevos.

Já no texto Animais dos Espelhos há o seguinte trecho:

Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o


mundo dos homens não estavam, como agora,
incomunicáveis. Eram, além disso, muito
diferentes; não coincidiam nem os seres, nem
as cores nem as formas. (...)

Note-se que as expressões finais de ambos os trechos citados

são constituídas por enumerações dos substantivos seres, formas e

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cores. As diferenças encontradas são 1) no poema El espejo, o

substantivo cores está adjetivado (novas); 2) a ordem da enumeração

é diferente (no texto animais d os Espelhos cores vem antes de

formas; 3) em Animais dos Espelhos a frase é negativa e, no poema,

afirmativa.

Considerando-se que Animais dos Espelhos é assumida pelos

autores como simplesmente uma compilação, há algo digno de

atenção: ou o poema El espejo apropria -se de uma expressão num

texto compilado ou Animais dos Espelhos retoma parcialmente uma

forma de dizer que se insere no estilo borgeano. Uma ou outra leitura

implica opções a partir de elementos contextuais mais amplos,

trabalho com indícios e i nter-relações, que somente são possíveis

através de relações intertextuais.

Assume-se aqui a análise de uma estratégia peculiar do fazer

de Borges. Formalizar tal estratégia pressupõe coletar indícios e

interpretá-los de modo a construir cat egorias mais abstratas e

generalizáveis. Quanto à questão dos indícios, alguns modelos

teóricos amparam tal perspectiva. Pode -se citar talvez a semiótica

peirciana, com seu conceito de índice (ou index). Neste caso,

entretanto, parece mais funcional utiliz ar o conceito de “paradigma

indiciário”, de Carlo Ginzburg .

Para o autor italiano, essa seria uma forma de olhar

epistemológico que privilegiaria a singularidade, em detrimento da

regularidade. No decorrer de alguns de seus t extos, especialmente no

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artigo “Sinais: Raízes de um Paradigma Indiciário” (1989) 84, ele cita

como vários saberes tais como a medicina, a investigação de

falsidade em obras, entre outros, têm ou tiveram momentos de opção

por este olhar. Assim, pondera, ao s e analisar um suposto quadro de

um pintor, por exemplo, a chave estará em verificar não o que é

característico do suposto autor , mas os detalhes que não deteriam

jamais a atenção de um falsário. Tomando um dos exemplos de

Ginzburg, alguém que tentasse imitar a Gioconda, de Da Vinci,

procuraria ser perfeito nos detalhes do famoso e enigmático sorriso,

mas talvez estivesse menos concentrado na forma do pintor italiano

retratar uma orelha ou as unhas.

Adotar tal paradigma, no entanto, prevê uma r eorganização

epistêmica e metodológica. Instaura como pressuposto de análise a

subjetividade do analista e a sua relação com seu objeto:

“(...) o rigor flexível (se nos for permitido o


oxímoro) do paradigma indiciário mostra -se
ineliminável. Trata -se de formas de saber
tendencialmente mudas – no sentido de que, como
já dissemos, suas regras não se prestam a ser
formalizadas nem ditas. Ninguém aprende o ofício
de conhecedor ou de diagnosticador limitando -se a
pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de
conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente )

84 In: Ginzburg, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais. (1989)

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elementos imponderáveis: faro, golpe de vista,
intuição.” (GINZBURG, 1989:179)

Ao redimensionar o signo como sintoma 85, Ginzburg rompe uma

tradição de inspiração das ciências human as em suas congêneres

inicialmente ciências naturais e posteriormente nas ciências exatas

(notadamente a matemática e a estatística).

Essa tradição é especialmente intensa na constituição da

lingüística e, considerando a participação que esta tem na

constituição da AD, cabe refletir sobre os compromissos

epistemológicos da primeira e como tais compromissos se deslocam

(ou até que ponto de deslocam) no interdiscurso para com a segunda.

A primeira implicação vem das escolhas saussurianas .

Amparado em uma mentalidade positivista, a obra publicada de

Saussure, o Curso de Lingüística Geral , instaura, enquanto

necessidade primordial de campo científico, inicialmente uma

distinção a tudo o que na língua era de caráter particular, individual e

o que era social, geral. Optou -se, então, pela segunda, em nome de

princípios como regularidade, sistematicidade e por uma condição

organizacional certamente ainda muito influenciada pelo entusiasmo

com o rigor metodológico de outras ciências. O status de “ciência -

85 O que traz algumas aproximações com Lacan e Peirce (neste último especificamente com relação ao

índice)

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piloto das ciências humanas” construiu -se sobre um alicerce

solidamente estabelecido nesta trajetória.

Até o desenvolvimento de teorias da enunciação, disseminadas

a partir dos anos 60 do século XX, a atenção do olhar era para o

geral, universal. Desde então, estabeleceu -se uma relação dialética

mais explícita entre essa opção hegemônica e desejos de criar

ferramentas analíticas capazes de interpretar algum grau de

singularidade. Se, por um lado, isso coincide com uma tendência

mais ampla de a ciên cia no século XX colocar -se diante das

anomalias de seu paradigma ainda fortemente mecanicista, principal

e paradoxalmente a partir da física, dentro dos estudos da linguagem,

tal inquietação coloriu -se de matizes peculiares. Tal tendência pode

estar associada, inclusive, com o surgimento da Análise do Discurso,

em fins dos anos 60.

Outra implicação decisiva é de caráter epistemológico e

refere-se especificamente a como as relações entre o objeto (interno)

e sua exterioridade dialogam. A AD instaurou -se como diferença

neste aspecto, por utilizar conceitos que remetem para a

exterioridade da língua, sem abrir mão da interioridade desta última.

Se se pensar nas práticas sociais básicas, como a identificação

cultural e a própria aquisição de uma língua, será visto com relativa

facilidade que os princípios de regularidade e sistematicidade às

vezes não são muito funcionais. As regras de conduta ou de

organização da língua não são veiculadas e apreendidas somente

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pelo que é dito, mas pela convivência com formas de dizer e de fazer,

e pelo contato dialético com a transgressão (seja social ou

lingüística) é que constrói uma práxis de delimitar o que pode ou

deve ser dito ou o que pode e deve ser feito (e, sempre por extensão,

o que não pode nem deve).

Se esse raciocínio faz sentido, então torna -se imprescindível

considerar as condições exteriores, que em seu diálogo permanente e

dialético com o que tais sistemas têm de interno, estabelecem tais

regras. Impossível, portanto, desconsiderar a relação que o singular

tem com o geral, impossível desconsiderar o movimento entre

posições estabelecidas, as descontinuidades, as falhas, os intervalos

e as reconfigurações incessantes entre, por exemplo, dizer e silêncio .

Abala-se um pressuposto saussuriano decis ivo, ao se aceitarem

necessidades metodológicas decorrentes de olhares tais como o de

Ginzburg. A singularidade é passível de análise, sim, desde que haja

espaço epistêmico para a subjetividade. Não no sentido de um sujeito

alienado ou supra-humano, mas a de, nesse âmbito de relações entre

o que é interno e externo, o gesto interpretativo do sujeito, entre

outros elementos, é uma parte decisiva do jogo. Tal como o sintoma

não existe sem uma leitura prévia de seus limites entre o que indicia

e o que significa.

Tal relação, inclusive, desloca a visão saussuriana sobre o

signo. Pensado como sintoma, ele não pode mais prescindir do gesto

interpretativo que une o significante ao significado. Também

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abordagens como a de Derrida ou Lacan podem ser problematizadas

neste aspecto: a existência única do significante, seja por qual viés,

desconsidera o ato interpretativo. Não que ele seja o sentido que a

palavra ou o silêncio possuem; ele é o desejo de que as coisas e

seus índices simbólicos signifiquem, façam sentido.

Faz parte de nossa incompletude e, mais do que isso, da

incompletude necessária da palavra (e do próprio silêncio , enquanto

movimento dos sentidos) essa falta do simbólico e esse excesso do

real. E essa falha essencial do sentido não é uma espécie de pecado

original, resgatável, mas uma falha constitutiva, sem a qual a

linguagem não seria possível. Faz parte da condição humana a

linguagem e, intrínseca e complementarme nte em ambas não há outro

modo de ser que não seja essa incompletude.

Quando ela (a incompletude) é atribuída ao silêncio , isso

significa que, para nós, é impossível conceber o silêncio sem a

palavra ou vice-versa e, principalmente, que o quão significativo será

o silêncio dependerá desses limites, estabelecidos dinamicamente

nas interações.

Voltando aos poemas de Borges, e xiste uma contradição entre a

afirmação dos autores no prefácio de O livro dos seres imaginários

(onde se situa o texto Animais dos Espelhos) de que os textos se

tratam de compilações e a presença dos mesmos elementos no

poema El espejo. Ou os autores mentem no prefácio e trata -se de

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uma fingida compilação, ou o poema també m partilha a mesma

característica.

Em outros trechos de outras obras, Borges sempre afirma, de

alguma forma, que o que ele faz é apenas recontar o que outros já

disseram. Mais ainda: para ele a literatura não deixa de ser isso.

Desse ponto de vista, seria corroborada a leitura de que El espejo

também não deixa de ser uma compilação de formas de dizer. Mas

não é tão simples assim.

Se se pensar no que estava sendo discutido anteriormente a

respeito do paradigma indiciário e de como ele instaura relações

diferenciadas entre o interno e o externo de uma análise, surgiraá a

lembrança de um pressuposto fundamental da AD que são as

condições de produção do discurso .

Nessa delimitação entre dizer e silenciar, pode -se analisar o

que Borges como autor diz de seu fazer literário. No prefácio do Livro

dos Seres Imaginários ele afirma tratar -se apenas de uma

compilação. Opta, portanto, por não estabelecer um silêncio por

ausência a respeito das condições (algumas, pelo menos) de

produção de sua obra. Sobrepõe a palavra ao silêncio e delimita uma

direção do dizer. Cabe ao leitor acreditar ou não, mas rompe -se a

polissemia que um silêncio por ausência poderia estabelecer.

O acreditar ou não constitui, neste caso, um episódio de

veridicção. Pode -se aplicar o quadrado semiótico. Se o leitor

acreditar (comparando ambos os textos), estará diante do segredo

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(é uma compilação, mas não parece ser), se não acreditar, diante de

uma mentira (parece ser uma compilação, mas não é). O que importa,

aqui, é que a escolha pelo dizer modifica o espaço de silêncio sobre

as condições de produção da obra. Se não tivesse sido dito que se

tratava de uma compilação, caberia ao leitor interpretar a relação

intertextual em função do que não foi dito, mas que se insinua nos

textos.

Como sintoma de algo posto, sugerido, há, no en tanto que se

resolver esse primeiro problema, que se torna mais complexo na

medida em que supõe que este mesmo leitor tivesse efetivamente

comparado tais textos. Que seu olhar se deparasse com tal

singularidade. Faz parte do que ainda restou do silêncio como

ausência sobre as condições de produção do fazer borgeano o que

indicia a paráfrase. É o exterior do texto em si que vai apontar isso.

Poder-se-ia falar aqui do conceito de arquivo, tão caro à AD , pelo

menos em seus momentos iniciais. De certa forma, cabe como

análise. No entanto, seria importante considerar que a unicidade

atribuída a um mesmo autor , no conjunto de sua obra (o que teria a

ver com o conceito de arquivo) é construído culturalmente a partir de

direções de leitura, de jogos de imagens (conceito tomado de

Pêcheux, 1969), enfim, de funções culturais como autor , obra, gênero

etc.

Não deixa de ser muito mais silenciador das condições de

produção (que envolvem esses aspectos mencionados no parágrafo

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anterior) o autor ter construído um dizer que atribui a um dos

momentos de sua obra que estabelece paráfrase com vários outros o

título de compilação. Silencia uma extensão maior da próp ria função

de autoria, bem como disfarça o quanto do papel de leitor está sendo

(super)valorizado por Borges . Se ao autor cabe somente compilar, é

ao leitor que se incumbe interpretar, (re)fazer a obra, circunscrever

seus sentidos. Inclusive os silêncios dela.

Há uma diferença especial na distribuição do silêncio entre a

fala e a escrita: contrariamente à fala, quando o enunciador dispõe

de algum poder de decisão sobre o ritmo e os tipos de silêncio que

propõe, na escrita, mesmo que sinalizados pelo autor , os silêncios

serão reconfigurados pelo leitor , inclusive – e isso é muito importante

– no ritmo do leitor .

Interpretar o dizer borgeano, nestes enunciados, sobre as

condições de produção de seu texto como um silenciamento de

silêncios mais amplos pode -se ver nisto um sintoma de atribuição de

um papel mais decisivo para o leitor . O crucial é que essa

interpretação só pode fazer sentido dentro de uma opção

epistemológica que inclua o gesto interpretativo do sujeito, vendo -o

em relação aos outros elementos contextuais, em movimento, em

deslocamento dialógico e dialético.

Cabe, porém, fazer uma ressalva. Ao se f azer um discurso como

esse, nesta análise, pode -se ter a impressão de que os fatores

externos são sempre mais importantes do que os internos. Pensar

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desta maneira seria ignorar a contradição como elemento constitutivo

do discurso, da linguagem e da condição humana, principalmente no

ato de produzir sentidos.

Somente existe exterioridade em relação ao que não é exterior,

portanto interno. Se esse raciocínio for aplicado à língua, e

especificamente no caso desta análise deste s dois textos de Borges ,

há que se considerar obrigatoriamente que um elemento instaurador

de silêncios bastante amplos foi exatamente o dizer. Não somente o

ato de dizer, mas o que foi dito. A palavra compilação, a sintaxe dos

enunciados co rrelacionados. Novamente vale a observação: trabalhar

com conceitos como movimento e intervalo não significa ignorar ou

(de)negar a materialidade da língua (como a materialidade do

silêncio ). Por exemplo, quando a Filosofia propõe o movime nto como

solução para o paradoxo de Aquiles e da tartaruga, formulada por

Zenão de Eléia, não se está negando a realidade ou a existência de

nenhum dos dois (Aquiles e a tartaruga), nem da corrida ou do

trajeto. Apenas a relação entre os elementos torna -se de outra

natureza.

Possenti (1988:115) faz uma ponderação pertinente sobre essa

relação entre exterioridade e interioridade:

O que parece é que, com o advento das teorias de


significação que se utilizam de conceitos como
enunciação e con texto, assistiu-se a uma espécie
de despre zo pela materialidade específica das
línguas, em outros termos, pela análise detalhada
dos recursos expressivos, erigindo -se aqueles

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fatores como os essenciais a serem considerados
na descoberta do sentido.(...)

Parece, pois, necessário dizer de novo o óbvio. E o


óbvio é que, por mais relevantes que sejam os
fatores que poderiam ser chamados sem nenhuma
exigência de refinamento conceitual de
‘extralingüísticos’ (isto é, não lexicais ou sonoros)
para a descoberta d o sentido, a forma do discurso ,
desde que tomada em sua materialidade mesma, e
não como hipostasia de uma metalinguagem, é o
elemento essencial na construção do sentido. Ela
nunca o esgota, por causa da indeterminação desta
forma, mas o fa to de não esgotá -lo não implica em
seu abandono ou sua consideração apenas em
último lugar. Os elementos ‘extralingüísticos ’
devem sempre ser considerados, é claro, inclusive
porque eles não são relevantes apenas para a
interpretação dos discursos, mas um importante
papel no condicionamento de sua própria forma.”

4.2.4 – El espejo de los enigmas

Texto publicado no volume Otras Inquisiciones, em 1952, livro

que representa um dos raros momentos concentrados da produção

crítica de Jorge Luís Borges.

Esse ensaio parte da teoria do alegorismo (já discutida no

capítulo 3 º ), o pensamento de que a Sagrada Escritura apresenta,

além de um sentido literal, um valor simbólico. Borges começa

argumentando que esta idéia não é irracional e traz como testemunho

da antigüidade (e da autoridade) dessa idéia autores como Filón de

2
1
1
Alexandria, os cabalistas, Emanuel Swedenborg. Apresenta outros

ainda, como León Bloy, Novalis, DeQuincey, que têm hipótese

semelhante: a de que há uma gramática (esquecida pelos homens)

que subjaz às ínfimas coisas, aos menores gestos, enfim, “las

mínimas cosas del universo pueden ser espejos secretos de las

mayores 86”

Após esse preâmbulo, Borges retoma a referência a León Bloy e

situa um versículo de São Paulo (1 ª Epístola aos Coríntios, Cap . 13,

12), que ele cita em latim no texto: “Videmus nunc per speculum in

aenigmate: tunc autem facie ad faciem. Nunc conosco ex parte: tunc

autem cognoscam sicut et cognitus sum.” 87

Borges, em seguida, irá cotejar a interpretação e a tradução de

diversos autores, mostrando como as concepções diferenciam -se. O

primeiro a ser mencionado é Torres Amat, que, segundo Borges,

traduz miseravelmente: “ Al presente no vemos a Dios sino como en

un espejo, y bajo imágenes oscuras: pero entonces le veremos cara a

cara. Yo no le conozco ahora sino imperfectamente: mas entonces le

conoceré com una visión clara, a la manera que soy yo conocido ”

(destaques do texto de Borges). Borges ironiza, dizendo que o autor

usou 44 palavras para traduzir 22, sendo “ palabrero y lánguido ”.

86 Aqui a referência não declarada é a uma das obras basilares da tradição ocultista, a Tábua
Esmeraldina, atribuída a Hermes Trismegisto, segundo a qual o microcosmo é espelho do macrocosmo, “o
que ocorre em baixo, ocorre em cima”.
87 A tradução da Bíblia de Jerusalém é a seguinte: “Ag o ra ve mo s e m e sp el ho e d e ma nei ra
co n fu s a, ma s, d ep o i s, v er e mo s f ace a face. Ag o ra o me u co n h ec i me n t o é li mi tad o , ma s
d ep o i s, co n h ec er ei co mo so u co n h ec id o .”

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1
2
O autor seguinte, Cipriano de Valera recebe uma apreciação

mais positiva em sua tradução: “ Ahora vemos por espejo, en

oscuridad; mas entonces veremos cara a cara. Ahora cono zco en

parte; mas entonces conocoré como soy conocido ”

Borges contrapõe as ênfa ses diferentes de cada autor. Afirma

que Torres Amat atribui o versículo à nossa visão da divindade,

enquanto Cipriano de Valera e León Bloy à nossa visão geral. O

passo seguinte é identificar, neste último, diferentes interpretações

desse versículo de São Paulo, cada uma delas traduzida por Borges.

A primeira, de junho de 1894:

La sentencia de San Pablo (...) seria una claraboya


para sumergirse el el Abismo verdadero, que es el
alma del hombre. La aterradora inmensidad de los
abismos del firmamento es u na ilusión, un reflejo
exterior de nuestros abismos, percebidos ‘en un
espejo’. Debemos invertir nuestros ojos y ejercer
una astronomia sublime en el infinito de nuestros
cora zones, por los que Dios quiso morir... Si vemos
la Via Láctea, es porque existe verdaderamente en
nuestra alma.

Já se pode perceber que o que está sendo discutida é a

concepção de leitura e representação. É necessário, no entanto, um

pouco de paciência, e, embora sejam seis no total, vale a pena ir

acompanhando as nuances de concepç ões e como Borges conduz ao

desfecho do ensaio.

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A segunda, de novembro de 1894 (mesmo ano da anterior):

Recuerdo una de mis ideas más antíguas. El Zar es


el jefe y el padre espiritual de ciento cincuenta
millones de hombres. Atro z responsabilidad que
sólo es aparente. Quizá no es responsable, ante
Dios, sino de unos pocos seres humanos. Si los
pobres de su imperio están oprimidos durante su
reinado, si de esse reinado resultan catástrofes
inmensas ¿quién sabe si el sirviente encargado de
lustrarle las bo tas no es el verdadero y solo
culpable ? En las disposiciones misteriosas de la
Profundidad ¿quién es de veras Zar, quién es rey,
quién puede jactarse de ser un mero sirviente ?

A terceira, uma carta escrita em dezembro (mesmo ano, 1894):

Todo es símbolo, hasta el dolor más desgarrador.


Somos durmientes que gritan en el sueño. No
sabemos si tal cosa que nos aflige no es el
principio secreto de nuestra alegría ulterior. Vemos
ahora, afirma San Pablo, per speculum in
aenigmate, literalmente: “en enigma por medio de
un espejo” y no veremos de outro modo hasta el
advenimiento de Aquel que está todo en llamas y
que debe enseñarnos todas las cosas.
A quarta, de maio de 1904:

Per speculum in aenigmate , dice San Pablo. Vemos


todas las cosas al revés. Cuando creemos dar,
ricibimos, etc. Entonces (me dice una querida alma

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angustiada) nosotros estamos en el cielo y Dios
sufre en la tierra.

A quinta, de maio de 1908:

Aterradora idea de Juana, acerca del texto Per


speculum. Los goces de este mundo serían los
tormentos del infierno, vistos al revés, en un
espejo.

A sexta e última, de maio de 1912. Retirado das páginas de

L’Ame de Napoleon , livro com o propósito de decifrar o símbolo

Napoleon, considerado precursor de outro herói, oculto no porvir

(homem e simbólico também). Borges cita duas passagens:

Cada hombre está en la tierra para simbolizar algo


que ignora y para realizar una partícula, o una
montaña, de los materiales invisibles que servirán
para edificar la Ciudad de Dios.

No hay en la tierra un s er humano capa z de


declarar quién es com certidumbre. Nadie sabe qué
ha venido a hacer a este mundo, a qué
corresponden sus actos, sus sentimientos sus
ideas, ni cuál es su nombre verdadero, su
imperecedero Nombre en registro de la Lu z... La
historia es un inmenso texto litúrgico donde las
iotas y los puntos no valen menos que los
versículos o capítulos integros, pero la importancia

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de unos y de otros es indeterminable y está
profundamente escondida.

Borges interpreta, em seguida, que Bloy limitou -se a seguir

princípios que parecem razoáveis enquanto doutrina cristã, apenas

estendendo a toda a criação o método que os cabalistas judeus

aplicaram à Escritura. Um livro escrito pelo Espírito Santo não

haveria de comportar nada que fosse acidental, nenhuma co laboração

do azar. Caberia, desta perspectiva, somar letras, fazer combinações,

buscar minúcias de sentidos potencialmente ocultos.

Borges, no penúltimo parágrafo, apresenta sua ironia

implacável e sutil. Considera que o mundo não tenha sentido, sendo

bem menos provável que tenha dois ou três, mas que o método de

Bloy satisfaz à dignidade “del Dios intelectual de los teólogos”.

O parágrafo final é o momento em que Borges oferece a chave

do jogo que vinha propondo ao leitor. Vale a pena saboreá -lo todo:

Ningún hombre sabe quién es , afirmó León Bloy.


Nadie como él para ilustrar esa ignorancia íntima.
Se creía un católico riguroso y fue un continuador
de los cabalistas, un hermano secreto de
Swedenborg y de Blake: heresiarcas.

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Este ensaio (que também se comporta como um conto) pode ser

considerado como uma discussão sobre a tarefa do leitor diante de

um texto. No caso, um fragmento bíblico, mas o que esteve envolvido

em termos de processos interpretativos aqui, ocorre igualmente com

qualquer texto.

Há inicialmente um modelo de leitura a ser aplicado ao texto: a

de que a Sagrada Escritura tem, além de um sentido literal, um valor

simbólico. Tal modelo – do ponto de vista da AD pode -se considerar

os conceitos de jogo de imagens (Pêcheux, 1969) e o de

interdiscurso, pelo menos – implica aplicar sobre um sentido literal

um sentido alegórico, moral ou anagógico, como foi visto no capítulo

3 º . Borges silencia sobre os dois outros sentidos (moral e anagógico),

como se não os conhecesse, o que se tratando de Bo rges, num

assunto que era uma de suas obsessões, é pouco provável. Há,

portanto, a presunção de um silêncio por ausência (consciente ou

inconscientemente exercido).

Supondo que qualquer um deles pudesse ser aplicado sem

alterar o foco central da discussão pretendida por Borges, pode -se

escolher o alegórico, o que será econômico, pois exigirá menos

conhecimento teológico para desenvolver a argumentação.

Se existe um texto (Sagrada Escritura) que afirma que nosso

conhecimento atual é parcial, incompleto e o bscuro como o de um

espelho e que somente quando nos encontrarmos com a divindade é

que, face a face com Deus, seremos capazes de conhecer o todo,

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assim como somos conhecidos por Ele, temos de aplicar, segundo o

modelo de leitura acima, um sentido literal e um sentido alegórico.

Mas, se o trecho é uma alegoria, o que seria o “literal de uma

alegoria” e a “alegoria de uma alegoria” ? Para simplificar pode -se

considerar que o literal de uma alegoria é considerá -la como alegoria

mesma. Isso implica, é claro, a necessidade de decifrar uma alegoria

e supor que tal decifração seja já o sentido literal (parece paradoxal).

O procedimento seguinte é mais espinhoso. Alegoria de uma alegoria

seria uma não alegoria ? Ou uma alegoria atrás de outra alegoria ?

Se se pensar nas redes de memória e nas Formações

Discursivas, ocorrerão algumas opções mais definidas. Dentro de

uma tradição hermetista, a segunda possibilidade é que seria a

válida. Mas até que ponto o catolicismo permitiria, em sua FD (“o que

pode e deve ser d ito”), tal leitura ? Borges dá a resposta na última

linha do texto: “herege”. Bloy filiou -se, na verdade, numa tradição

hermetista.

Entretanto, se for observado atentamente o texto de Borges,

vamos verificar que o deslocamento de sentidos de uma FD para a

outra foi gradual, uma reconfiguração constante, silenciadora, em

cada momento, de aspectos autorizados por um tipo de discurso que

foram se ausentando ou se sobrepondo a ponto de migrarem para

outro discurso, que do ponto de vista do inicial, é não autor izado.

Borges espicaça com ironia sem fim: Ninguém como Bloy para ilustrar

essa ignorância íntima - que cada homem tem de não saber que é, já

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que pensava estar sendo um católico rigoroso e estava já irmanado

com cabalistas e hereges (para a ortodoxia, são s inônimos).

Como este processo se deu, considerando Bloy leitor do texto

bíblico ? Seguindo a tradição hermetista, será necessário desmontar

a alegoria num primeiro nível e posteriormente em outros.

É a trajetória que Bloy faz nas seis menções que Borges cita.

O grande complicador é a alegoria do espelho. É característica do

espelho a inversão ou deformação da imagem real. Os destaques de

Borges nas traduções de Torres Amat e Cipriano de Valera (que tem

visão coincidente com León Bloy) são um primeiro ind ício.

Enquanto para Torres Amat a ênfase era nas palavras e

pronomes que designavam a divindade, para Cipriano de Valera (e

León Bloy, por extensão), era no verbo “ver”. Assim, como aponta

Borges, o primeiro considerava que o sentido literal do versículo se

aplicava somente à maneira como se concebia a divindade. Já Bloy,

assim como Cipriano, utilizaram a extensão máxima do verbo “ver”

consideraram que o sentido literal equivaleria a uma proposição do

tipo “nossos sentidos estão sempre errados e, como noss a

consciência depende daqueles, ela também está enganada.

Conclusão: não sabemos o que é o mundo, quem é a divindade e

quem somos.”

A aplicação de um sentido alegórico sobre esta proposição

implica, em primeiro lugar, considerar a metáfora do espelho. Do

ponto de vista de Bloy, se o espelho inverte a imagem real, e não

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conhecemos nenhuma imagem real, verdadeira, é porque vemos

invertido.

Na primeira interpretação de Bloy esta inversão é atribuída

relativamente à alma (na verdade, temos aqui o sentido ana gógico) e

à extensão do olhar. É de se perguntar que motivação simbólica fez

Bloy relacionar a extensão do olhar com o sentido de “abismo” e,

mais do que isso, aplicar um signo que normalmente é usado para

expressar profundidade para relacioná -lo à alma, categoria

normalmente associada à elevação, à semelhança com a divindade

etc.

Existe um ponto comum, silenciado por ausência, que é

memória discursiva (inclusive icônica) do inferno. Bloy assume uma

alma já condenada por seu desconhecimento. Outros poderia m ver

uma simples inversão da extensão do céu, firmamento. No entanto,

este elemento, sozinho, não seria suficiente para associar abismo

com alma. Poderia haver uma interpretação que, aplicando a idéia de

inversão às aparências do mundo tal qual o vemos po stulasse que se

vemos um firmamento que parece infinito, se vemos a Via Láctea, e

se tudo está invertido, não estamos vendo uma elevação, mas sim um

abismo. Abismo, no imaginário cristão, remete a inferno. Utilizam -se

palavras com sentidos preconstruídos t ais como “Queda dos Anjos

Rebeldes”, “Satanás precipitou -se no abismo” e outras semelhantes.

A associação com a alma é construída, como toda metáfora,

sobre um elemento silenciado. Neste caso, uma oposição entre

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mundo material e mundo espiritual. Se olho para o céu e vejo um céu

material e tudo isso é um grande engano especular, então não basta

considerar que a altura é abismo. O que parece ser material é

espiritual. Então firmamento já não é firmamento, é uma alegoria

invertida de alma. E se o firmamento parece elevado e se não é nem

firmamento nem elevação, só pode ser abismo e alma.

O que fica silenciado e que implica exatamente o quanto o leitor

de um texto borgeano como esse pode ser um leitor participante,

segundo o que Monegal nomeia como sendo a “e stética de leitor” em

Borges, é o que se torna necessário em termos de mecanismos

interdiscursivos para que haja essa leitura participante e produtora de

sentidos.

Há que ser um leitor forçosamente enciclopédico, tal como

Borges. Nesta estratégia (estrata gema seria talvez uma palavra mais

indicada), Borges parece espelhar -se no leitor. Isso, no entanto, pode

ser visto de outra maneira. Lembremo -nos que o espelho inverte. Não

é um espelhamento. Borges não olha para o espelho como a criança,

no estádio do espelho de Lacan. Borges é o adulto que segura a

criança e que impõe seu olhar. Um olhar protegido porque já criou um

olhar que os outros lhe atribuíram e que (teme sempre) sabe que uma

hora ou outra aparecerá na superfície do espelho mostrando seres e

formas e cores muito diferentes das que estão deste lado da

superfície especular, como é o caso do texto “Animais dos Espelhos”

entre tantos outros textos borgeanos.

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2
1
É o leitor Borges, conhecedor habilidoso do Latim, da história

européia, de teologias diversas (das ortodoxias às heresias mais

extremas), da tradição hermética, da hermenêutica, mas, sobretudo,

dos fundamentos fenomenológicos da produção dos sentidos. É esse

o grau de exigência para que o leitor se habilite a produzir sentidos.

Talvez por isso mesm o Borges reconheça que bons leitores são

cisnes ainda mais raros que bons autores. É, por outro lado, o prazer

da descoberta dos labirintos enquanto jogos de memória, de

intertextos que Borges quer compartilhar com os leitores que

estiverem aptos para cump rirem a missão de Teseu. Só que neste

caso Ariadne não acompanha. Seu fio está tecido juntamente com

cada fibra do texto que é o próprio labirinto onde o Minotauro se

encontra, tal como uma esfinge, prestes a devorar quem não o

decifrar.

Espera-se desse leitor, fundamentalmente, que seja um leitor

de silêncios, sejam por excesso, nos falseamentos que só podem ser

descobertos como tais por comparação a outros textos que devem ser

conhecidos e/ou recuperados no interdiscurso, sejam por ausência,

nas informações, intertextos ou esquecimentos que devem ser

processados.

A chave hermética não é mencionada aqui. A identidade entre

microcosmo e macrocosmo, característica central de leitura desta

tradição, o que estabelece analogias, simpatias e interpretações por

índices, não é mencionada. Ela é conhecida por Borges, pois ele

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2
2
trata de assuntos relacionados a tais tradições, como é o caso da

cabala e menciona aspectos como esse. Independente de essa

estratégia ser consciente ou não, implica que o leitor deve ser capaz

de interagir com este silêncio para que possa adequadamente

compreender a angústia infrutífera de León Bloy, que metaforiza o

gênero humano.

Na segunda interpretação de Bloy, a inversão alegórica do

espelho se aplica à hierarquia. Há aqui outros textos oc ultos, da

tradição cristã: “ Muitos dos primeiros serão os últimos, e muitos dos

últimos, primeiros.” (Mt 19,30); “Ao contrário, aquele que quiser

tornar-se grande entre vós seja aquele que serve, e o que quiser ser

o primeiro dentre vós, seja o vosso servo .” (Mt. 20, 26 -27);“Pois todo

o que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado .”

(Lc 18,14) 88. A inversão da responsabilidade pela opressão dos

pobres ou pelas catástrofes é atribuída ao servo, encarregado de

lustrar as botas do soberano. É típico da visão cristã. Dessa

perspectiva, a incapacidade de ver as coisas como realmente são

invertem a verdadeira hierarquia. Assim, se os últimos serão os

primeiros, se o próprio Filho de Deus veio à terra como pobre para

ser morto e servir a todos, é i sso que a inversão especular de nossa

obscuridade não nos permite ver.

88 Outro trecho, talvez o mais representativo, seja o seguinte:


“Ele tinha a condição divina, e não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar
ciosamente. Mas esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana. E,
achado em figura de homem, humilhou-se e foi obediente até a morte, e morte de cruz !.” (Fil. 2, 6-7)

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3
Note-se novamente um quadro de referências que é silenciado.

Mesmo que se assuma que foi colocado como pressuposto (o leitor

deve – é útil ler-se o verbo dever nos dois sentidos – saber isso),

essas pressuposição nos permite identificar quais representações a

função-autor assume como princípio unificador do texto. Quase um

antiautor, já que exerce o papel unificador do discurso na

textualidade por uma anti -unidade, um texto perfurado de silêncios,

convidando um leitor que tem desenvolver estratégias unificadores

ele também. Mas, para isso, esse leitor tem que também ser Borges,

assim como quando ele aponta que quem lê Shakespeare é

Shakespeare. O que Borges silencia é o estatuto do verbo ler. Não

basta estar diante do texto de Shakespeare (ou, afinal, do próprio

Borges, que é o que nos interessa mais diretamente nesta

discussão). O já -dito do verbo “ler” no contexto borgeano, significa

ter de se constituir proximamente como o sujeito Borge s para poder

exercer o princípio unificador da função -autor, convertendo -se de

sujeito em autor, e neste caso, em leitor -autor.

A quarta interpretação está baseada no mesmo princípio,

tomando a alegoria em relação à hierarquia. A diferença, de grau, no

entanto, é decisiva. Já não há uma inversão hierárquica entre

atribuições humanas, mas entre o ser humano e a divindade. Este é

um momento das leituras feitas por Bloy em que se caracteriza a

transposição de uma FD para outra. Há aqui uma ruptura para com as

leituras que podem e devem ser praticadas. Há uma extrapolação

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4
para uma exterioridade transgressora das memórias possíveis dentro

de uma interpretação cristã, principalmente católica. Afinal, já que se

tem que alegorizar a alegoria, Bloy vai até as últimas conseqüências

e intepreta que aquilo que vemos como sendo a divindade na verdade

somos nós e vice -versa 89. Desta perspectiva (também relativamente

silenciada), nós estamos no céu (entenda -se, felizes) e Deus sofre na

terra (!). A partir deste momento, Bloy insere-se plenamente no

discurso da heresia (ou da loucura). Borges como narrador habilidoso

se exime de descrever as etapas e, pela gradação, expõe ao leitor o

patético. Este trecho exige menos conhecimento teológico do leitor,

pois fica evidente que uma inversão de hierarquia desta natureza

rompe inteiramente com uma tradição que pretenda valorizar a

divindade como ser absoluto.

Para entender-se mais detalhadamente essa passagem para a

exterioridade exilatória de uma FD cumpre considerar a terceira

interpretação de Bloy. Estruturalmente parece mais simples. É, na

verdade uma conclusão, deduzida das premissas anteriores,

correspondentes a cada uma das etapas interpretativas do versículo

de São Paulo. Resume -se a considerar que, se estamos enganados

por uma inversão, tudo o que vemos é alegórico e portanto temos que

assumir que tudo é símbolo de tudo. É esse axioma que permite, na

interpretação seguinte, chegar ao patético de considerar que a

89 Talvez Umberto Eco apreciasse este trecho como uma metáfora de exageros interpretativos de
alguns desconstrutivistas.

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2
5
divindade sofre na terra e nós gozamos a glória divina (como Deus ?

– será que somos todos um único ser ?) no céu 90.

Na quinta, Bloy, através de Juana (quem ? Sóror Juana,

mística ? – há aqui outro silêncio constrangedor para o leitor do

texto), aplica a inversão especular às sensações. Aquilo que

consideramos gozos, sã o os tormentos do inferno, vistos ao contrário.

Mas se estamos vivendo os tormentos do inferno, já estamos

condenados, já que para a teologia cristã em geral, o inferno é

irrecorrível, significa a perda definitiva da salvação. Não são

mencionados os sofrim entos terrenos. Pela inversão, seriam os gozos

celestes.

Mas há que se considerar um problema interpretativo que não

se apresenta claramente, porque está assentado em silêncios tanto

90 Cabe lembrar que Borges usou esta reductio ad absurdum, ligada a temas teológico-religiosos em
pelo menos três momentos mais representativos. Nos textos “Evangelio según Marcos”, “Tres versiones de
Judas” e “Los teologos”.

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2
6
por excesso quanto por ausência. A falta total de referência à

oposição de céu (é terra ou inferno ?) na interpretação dessa

alegoria, recobre por excesso interpretações heresíacas. Se se

supõe uma oposição céu/inferno (como a que está subjacente na

interpretação n.º 1), então quem se encontra no inferno, condenado

aos tormentos eternos da danação da alma é que realmente está no

céu e quem está no céu estaria no inferno. O problema é que tal

interpretação exclui a referência textual aos gozos terrenos. Aqui

parece haver uma comparação bastante complexa de três termos e

não de dois. Uma solução interpretativa seria considerar que céu

(elemento silenciado da tricotomia) alinha -se a inferno e à terra.

Assim, os gozos terrenos são infernais porque há a oposição

gozo/tormento e tormento é do campo do inferno.

Pela especularidade, inverte-se e o que é tormento passa a ser

gozo e, assim, quem sofre os tormentos infernais, sejam na terra ou

no inferno estão na verdade no céu. Essa seria uma interpretação

extremada do princípio cristão de “os últimos serão os primeiros e os

primeiros serão os últimos”.

As conseqüências últimas dessa concepção – que fariam para a

Inquisição a fogueira parecer um prêmio – é o estatuto da divindade.

Se o gozo terreno (e, por extensão o celeste, é o tormento

infernal invertido, e se a divindade parti cipa do gozo celeste (ou,

mais propriamente, ele emana d’Ela) então a inversão é que a

divindade seria demoníaca e que os seres dos infernos seriam

2
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7
divinos (!). Pelo mesmo princípio, os tiranos e piores homens seriam

os mais virtuosos, os incrédulos seriam os crentes mais sinceros e

assim por diante.

A sexta e última interpretação de Bloy é a dissolução panteísta

decorrente das conseqüências da terceira interpretação. Nesse

relativismo total, se tudo é símbolo de tudo, então nada é símbolo de

nada e já não se é possível estabelecer limites entre quem sou Eu,

quem é o Outro. Nisso, os dois trechos citados por Borges

convergem. A função de cada homem pode ser um grão de poeira,

uma montanha ou “os materiais invisíveis para edificar a Cidade de

Deus”.

Interessante alusão à Cidade de Deus, de Santo Agostinho.

Faz pensar, a partir da inversão da interpretação n.º 5, na conversão

do santo. Se tudo é especular, ele era santo quanto ímpio e, agora,

convertido e santificado, é pecador extremado. Borges coloca a

referência à Cidade de Deus, sem nenhuma manifestação.

A frase final citada por Borges, na sexta interpretação, é

emblemática. É oportuno repetir a citação:

La historia es un inmenso texto litúrgico donde las


iotas y los puntos no valen menos que los
versículos o capítulos integros, pero la importancia
de unos y de otros es indeterminable y está
profundamente escondida .

2
2
8
A sacralização da história e do mundo expressa na primeira

parte do trecho vale pouco em função de seu término. Afinal, já que a

importância de cada símbolo, sua dimensão é indeterminável, e já

que está profundamente escondida, tão escondida a ponto de ser

insondável, estamos condenados à solidão total da falta de sentido.

Somos incapazes de conhecer.

Este texto de Borges é particularmente complexo. Há um sujeito

do discurso, inscrito num gênero literário, manifestando -se como

princípio unificador, atribuindo coerência a uma textualidade que se

constrói sobre um narrador que alterna os papéis de relator de outras

vozes e de intérprete dela s. Como narrador, voz representativa do

ponto de vista assumido pelo autor enquanto função, é como se esse

Borges personagem -narrador ou não soubesse das informações

essenciais para que o leitor possa participar da produção dos

sentidos preconizada por um outro Borges narrador, em outras

materialidades textuais, representando outro Borges função -autor,

que nos diz que é o leitor que dá sentido à obra.

Um leitor tipicamente borgeano, depois dessa “corrida de

obstáculos” se colocaria a seguinte pergunta: por um acaso este texto

não seria, em um dos seus múltiplos sentidos, uma alegoria dos

modos de leitura e dos limites da interpretação ? Do labirinto sem

paredes em que estão confinados autor e leitor ?

2
2
9
Um analista do discurso faria talvez uma apreciação de que,

mais uma vez, Borges performativamente trabalha com o movimento

dos sentidos. São especulares, como um jogo que o leitor só

apreende se dele participa. Esses sentidos em deslocamento, sempre

trocando de posições, movem -se impregnados de silêncios, ora pelas

palavras, ora pelo que não é dito.

2
3
0
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sentimos o campo, o
verdor, o silêncio . Já o
fato de haver uma
palavra para designar o
silêncio parece-me uma
criação estética.

Jorge Luís Borges (Sete


Noites: A poesia)

Nunca dizer demais. Nunca,


nunca, dizer tudo. Já fiz essa
grande descoberta.

Monteiro Lobato, 1903

Chegar a um final de trabalho é sempre uma demarcação

provisória e arbitrária. Faz parte da delimitação incessante entre o

que foi dito através das palavras e igualmente silenciado através

delas, bem como aquilo que foi dito através do silêncio e apagado por

intermédio dele (e por intermédio das palavras). Mais do que isso,

faz-nos sentir que palavra e silên cio (e também cada uma delas e a

conjunção de ambas) são duas instâncias heterogêneas.

2
3
1
No início desta tese, foram estabelecidos objetivos, que eram:

1) Identificar e discutir a existência de indícios (internos e/ou

externos ao texto) que remetam o leitor para o silêncio ;

2) Proceder a uma breve caracterização desses indícios;

3) Dentro do universo de textos selecionados da produção

borgeana, apontar algumas especificidades do texto literário

escrito enquanto co nfiguração específica de silêncio(s) como

procedimentos de instauração de heterogeneidade mostrada.

Os indícios analisados durante o trabalho relacionam -se, como

se espera ter ocorrido, primeiramente à justificativa da constituvidade

do silêncio para, em seguida, abordar como o silêncio emerge na

superfície do discurso enquanto procedimento de heterogeneidade

mostrada. No plano da constitutividade, somente é possível, do ponto

de vista metodológico, conceb er o silêncio em vista de outros

sentidos que poderiam ser enunciados. É na alteridade desses

sentidos que se pensa o silêncio , o que Borges realiza com a

maestria de um jogo refinado e de uma criação estéti ca sutil e

maliciosa. No plano da heterogeneidade mostrada, pode -se entender

que a proliferação dos jogos e armadilhas da estética desenvolvida

2
3
2
por Jorge Luís Borges, apresentam, no mínimo, o silêncio enquanto

excesso.

No decorrer da produção borgeana, da qual somente uma

pequena parte foi analisada aqui, o leitor é sempre levado a este jogo

ambíguo entre ausência e excesso . Peça fundamental na estética de

Borges, o leitor, no entanto, torna -se refém de um autor que, tal como

no modelo de Schinelo & Villarta -Neder (2000), também é leitor . Este

leitor é levado ao silêncio não só no sentido de que é colocado diante

de uma virtualidade de sentidos em face dos quais tem de exercer

complexas escolhas discursivas. Ele, igualmente, é conduzido ao

ocultamento e/ou à contradição. Ao primeiro, porque os pré -

construídos do discurso borgeano são sempre labirínticos; à

contradição, porque são caleidoscópicos: o que parece ser engodo é

engodo mesmo, mas precisa ser desvelado enquanto tal. O leitor

precisa descobrir que foi enganado para fruir o truque. É nesse

espaço dialético que o silêncio significa, sem deixar de ser silêncio .

Ao mesmo tempo, cumpre considerar a relação entre o jogo

apresentado ao leitor por Borges e os esquecimentos discut idos por

Pêcheux. Borges ao mesmo tempo desmistifica o espaço de autoria

enquanto fonte e origem do sentido. Para a estética borgeana não só

os textos, mas o próprio Universo é uma gigantesca paráfrase. Mas,

contraditoriamente, é este mesmo autor que supervaloriza o leitor ,

que espera dele a cumplicidade nos jogos, no engodo, na construção

de um labirinto especular onde este leitor se reconheça como autor ,

2
3
3
seja pela inversão da imagem , seja pela visualização lacaniana tal

como no Estádio do Espelho. Borges, autor , dialeticamente também

fragiliza o esquecimento número 2. Assim como no controle

necessário do jogo discursivo do humor, o sujeito -autor borgeano só

é possível mediante uma urdidura de filigranas cinzeladas por um

autor. Marx & Engels (1989:35), no texto “Ideologia Alemã”, ao

comentarem as condições reais e materiais da produção e da criação

de diferentes consciências, afir mam que “(...) indivíduos criam uns

aos outros, no sentido físico e moral (...)”. Por razões muito

diferentes, o texto borgeano faz o mesmo.

Ao fazê-lo, paradoxalmente, torna pertinente essa associação

com posições marxistas que estão na base da AD france sa:

estabelecido esse dinamismo de posições entre autor e leitor, Borges

fornece uma oportunidade valiosa para ser questionada a anti -

historicidade da ideologia como um todo apontada por Althusser . São

nossas opções históricas enquanto sujeitos únicos e insubstituíveis

(estes dois termos no sentido althusseriano) que nos permitem nos

constituirmos ou não como esses autores -leitores indispensáveis para

interagirem com o texto borgeano. Sem a consciência do jogo, tal

constituição não se dá. Se por um lado isso não representa um

grande controle, por outro representa algum.

Quanto ao segundo objetivo proposto, que seria a

caracterização desses indícios de silêncio , pôde-se ver que eles são

de naturezas distintas. De um lado, da constitutividade, somente são

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possíveis pela presença do Outro, pela alteridade. São os discursos

não previstos ou excluídos pela interdição fundadora das FDs (o que

se pode ou deve dizer, o que não se pode, não se deve dizer ; o que

se pode ou deve silenciar, o que não se pode ou não se deve

silenciar) em contraposição aos discursos produzidos que permitem

rastrear as penumbras dos silêncios. De outro lado, os indícios de

silêncio são interpretáveis a partir de estratégias textuais e

discursivas que se congregam na modalização autonímica. Há, neste

caso, modalizações autonímicas referentes ao dizer (seja pela

retificação, seja pela dificuldade em dizer) e ao silenciar (por

exemplo, no poema “El espejo ”, quando o enunciador explicita: “ A

nadie lo dije; el niño es timido .” – destaque nosso). Isso apresenta

uma distribuição entre a materialidade da língua e as instâncias mais

externas e abstratas, subjacentes à constitutividade.

Sob o ponto de vista da AD france sa, pode-se conceber que no

funcionamento do interdiscurso , a maneira como os pré -construídos

são trazidos para cada FD manifesta uma materialidade do silêncio .

Os pré-construídos interditados são preenchidos pelo sil êncio, tais

como, analogicamente, os bens e necessidades interditados nas

relações de produção. O silêncio como excesso também pode ser

relacionado à materialidade, na medida em que materializa, no nível

da ideologia, um desvio do olhar das reais necessidades e da forma

como as relações entre as forças produtivas e as de dominação

estabelecem e mantém o funcionamento da sociedade.

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Há que se considerar ainda a materialidade da língua. Se, como

foi exposto no decorrer do trabalho, não é somente a ausência da

palavra que constitui o silêncio , mas a própria palavra, como

excesso, também representa uma de suas possibilidades, haverá uma

materialidade dessas palavras que, organizadas formalmente de uma

maneira e não de outra, se constituirão como silêncio .

Quanto à escrita, especificamente, alguns autores, como

Orlandi (1992), entendem que ela é um espaço privilegiado para o

silêncio. A análise desenvolvida no decorrer desta tese apela para

uma concepção mais cautelosa. Uma escrita menos imbricada por

outras linguagens facilita metodologicamente a discussão sobre seus

silêncios. Pensar numa hegemonia da escrita neste aspecto pode

representar, entre outras implicações, um silêncio sobre as condições

de funcionamento da fala. Obviamente este silêncio existe, mas, do

ponto de vista deste trabalho, preferiu -se assumir tal silêncio como

segredo, em função do quanto ainda não se sabe, no nível do

conhecimento acadêmico, a respeito de determinadas condições da

fala.

É necessário, no entanto, que não se deixe enganar com

facilidade: uma página de jo rnal, com a convivência de diversas

linguagens, entre elas a escrita, nos colocaria em situação muito

próxima à da fala, quanto à possibilidade de análise do silêncio . Num

texto multimídia, o desafio avoluma -se exponencialmente. O que

concede à escrita mais linear do ponto de vista da diagramação e do

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uso dos grafemas analisada aqui (os textos borgeanos) alguma

operacionalidade é que ela incorre em um cenário contextual mais

reduzido do que a fala, tendo o autor de um texto desta natureza,

principalmente quando escrito em prosa, que se utilizar de uma

contextualização mais cuidadosa, através quase que exclusivamente

das próprias palavras.

Nesse final provisório, a metáfora que acompanhou o

movimento dos sentidos, em função d o próprio movimento dos

sentidos aqui trabalhados, transmuta -se. Para a Física, o ângulo de

incidência da luz é sempre igual ao ângulo de reflexão. Usamos o

espelho, a luz, a visão e a reflexão como metáfora. No entanto,

tratando-se do movimento dos sentidos, talvez coubesse uma

metáfora mais rica: diferentemente de um único espelho , seria mais

apropriado pensar num caleidoscópio.

Assim, a interpenetração entre as diferentes FDs, as retomadas

e (de)negações de pré -construídos no interior do interdiscurso , o jogo

contínuo e complementar entre silêncios e palavras, palavras e

palavras e entre silêncios e silêncios pode ser vislumbrado de uma

maneira mais rica. Nos inúmeros espelhos virtuais criados no inte rior

de um caleidoscópio, podemos visualizar simetrias infinitas e zonas e

regiões ambíguas 91, numa relação dialógica entre as imagens. Tal

como os labirintos borgeanos.

91 Esses dois últimos termos são tomados da própria Física.

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Culturalmente, estamos habituados a manter momentos de

silêncio em circunstâncias graves, nas quais a construção de um

discurso através das palavras se faz inconveniente por constituir -se,

talvez, frágil diante da perplexidade, do mistério ou da comoção. O

que ignoramos sistematicamente na nossa tradição an alítica é que

esses momentos silenciosos são somente uma parte da constituição

do discurso . Antes de mais nada, eles são também discursos, em

outras linguagens que sobrepõem a palavra. Para Borges , cada

palavra é uma criaçã o estética.

Entenda-se esta estética como uma infinita intertextualidade,

cuja trama constitui o que entendemos por universo. Presos pela

impossibilidade de conhecermos o mundo a não ser mediados pelas

nossas próprias concepções sobre ele, chegamos no ol har-para-

dentro-de-si borgeano, a uma radical desconstrução dos limites entre

a literatura e o conhecimento: para Borges , a metafísica é um ramo

da literatura fantástica. Afirmação extremamente polissêmica, se nos

debruçarmos atentamente par a a noção de fantástico. Para Todorov ,

esse instante instável de revelação e de multiplicidade de sentidos

que instiga o leitor a construir um sentido que dê o fechamento

necessário (mas provisório) do texto e do discurso .

Sendo assim, a metafísica não é um ramo da literatura

fantástica apenas porque chega a tramas cheias de perplexidade,

mas também porque exige de nós, como leitores, essa atitude

imprescindível para a estética borgeana que é a do leitor que

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participa, mesmo sem saber exatamente a sua função (“a máquina do

mundo é bastante complexa para a simplicidade dos homens” –

Inferno I, 32 in El Hacedor). Tal como o tigre encarcerado existe e

vive seu cativeiro para dar a palavra tigre (ou leopardo,

dependendo da tradução) ao poema de Dante, este último existe

para ser uma referência no texto de Borges , que também a é em

outros tantos textos.

Tal concepção permite estabelecer uma relação com conceitos

tão caros ao momen to histórico -tecnológico que estamos vivendo,

tais como os de hipertexto, mundo virtual. O final do texto de Pierre

Levy (2002), “Nós somos o texto”, dá uma idéia dessa similaridade:

Por intermédio dos espaços virtuais que os


exprimiriam, os coletivos humanos se jogariam
a uma escritura abundante, a uma leitura
inventiva deles mesmos e de seus mundos.
Como certos manifestantes desse fim de
século gritaram nas ruas “Nós somos o povo”,
poderemos então pronunciar uma frase um
pouco bizarra, mas q ue ressoará de todo seu
sentido quando nossos corpos de saber
habitarem o cyberspace: “Nós somos o texto.”
E nós seremos um povo tanto mais livre quanto
mais nós formos um texto vivo.

A diferença é o tom mais politizadamente explícito no texto de

Levy, mas fica um laço comum. Há uma escritura que nos faz textos,

ou seja, que nos coloca num grau de similitude com as outras

instâncias do universo com as quais convivemos. Não importa

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realmente discutir aqui o que elas efetivamente são, uma vez que a

nossa mediação através do discurso tornará tudo passível de

textualização, de discursivização. Sem esse amplo quadro de

referências textuais, perdemos nossa identidade, labirinto que funde

nossas experiências numa tentativa de unida de, que, da perspectiva

estética de Borges , só pode ser textual. Isso se insinua no parágrafo

final do Epílogo de El Hacedor:

Un hombre se propone la tarea de dibujar el mundo.


A lo largo de los años puebla un espacio com
imágenes de provi ncias, de reinos, de montañas, de
bahias, de naves, de islas, de peces, de
habitaciones, de instrumentos, de astros, de
caballos y de personas. Poco antes de morir,
descubre que ese paciente laberinto de lineas tra za
la imagen de su cara. (1989: 854)

A obra borgeana articula silêncios como qualquer outro texto. O

que ela tem de peculiar é um requinte de jogo através de espelhos e

labirintos (entre outros símbolos), de tal forma que induz o leitor a

silenciar, de uma forma urdida pelo aut or (leitor do processo a ser

desencadeado pelo leitor empírico ). Esse embuste dá -se pela

multiplicação de obstáculos, armadilhas, detalhes textuais que

somente são compreendidos e visualizados no manejo constante

desse amplo quadro de referências.

Se num texto que não tenha uma intenção estética consciente

haverá redirecionamentos feitos pelo leitor , quando este ignora e

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sobrepõe sinais e indícios expressos na superfície do texto ou

implicitados nas estratégias de construção textual, o texto borgeano,

com sua estética radicalmente intertextual, multiplica ad infinitum

esses redirecionamentos.

A obra de Borges alude ao universo como infinito 92 não porque

o represente perfeitamente. E sta utopia da representação exata das

coisas achas -se ridicularizada em outro texto de El Hacedor que se

chama “Del rigor en la ciencia” e que é citado por Borges como sendo

de Suárez Miranda, de 1658. Tal texto relata a tentativa dos

cartógrafos de um Imp ério - indefinido no tempo e no espaço - de

fazer um mapa que coincidisse exatamente com os lugares que

representa. O texto diz que as gerações seguintes perceberam a

inutilidade desses mapas e os abandonaram. O final deixa perceptível

a ironia:

(...) En los desiertos del Oeste perduran


despedazadas Ruinas del Mapa, habitadas por
Animales y por Mendigos; en todo el Pais no hay
otra reliquia de las Disciplinas Geográficas. (1989:
847)

Dessa perspectiva, portanto, qualquer texto (e os de Borges ,

mais exemplarmente) integra -se nesse ciclo de alusões, imperfeitas

sempre, mas interdependentes e complementares. Nesse labirinto

92 Aspecto apontado por Monegal na sua resenha da crítica francesa de Blanchot

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sem paredes só restam citações, como se conscientiza o antiquário

Joseph Cartaphilus, em El inmortal:

Cuando se acerca el fin, escribió Cartaphilus, ya no


quedan imágenes del recuerdo; sólo quedan
palabras. Palabras, palabras despedazadas y
mutiladas, palabras de otros, fue la pobre limosna
que le dejaron las horas y los siglos. (1989: 544)

Os elos desses liames que art iculam esse ciclo existem apenas

como afinidades reveladas pelo fantástico. Tal como as “semelhanças

de família” de W ittgenstein , é inútil procurarmos nelas um único traço

definidor, uma unidade que não seja a da perplexidade multiface tada

do mundo. Como sinaliza Borges no poema “Las Cosas ”, tal

perplexidade não será compartilhada pelos objetos do mundo com os

quais vivemos ou que nos servem de escravos, essas coisas “Durarán

más allá de nuestro olvido: No sabrán nunca q ue nos hemos ido.”

Espera-se que na discussão desenvolvida neste trabalho tenha

se evidenciado a noção não de que os sentidos da escrita,

particularmente dos textos analisados de Jorge Luís Borges , tenham

sido aprisionados ou congelados. Ne m que os silêncios daqueles

textos tenham sido desvelados pelas palavras deste outro.

Enquanto movimento de sentidos, tal como a palavra, o silêncio

também é múltiplo. Também participa da ausência e do excesso ,

processos complementares e constitutivos dos quais o engodo, o

autoengano, o jogo e a diferença são elementos fundamentais.

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Borges, no texto “ Los dos reyes y los dos laberintos ”, relata o

caso de um rei da Babilônia que, para zombar de um rei árabe,

coloca-o num labirinto no qual este último fica perdido por toda uma

tarde. O rei árabe, como vingança, arrasa Babilônia e, levando o

primeiro rei prisioneiro, propõe -se a mostrar outro labirinto: “ donde

no hay escaleras que subir, ni puertas que forzar, ni fatigosas

galerías que recorrer, ni muros que te veden el paso ”. Após três dias

de caminhada, abandona o rei de Babilônia no meio do deserto, onde

este último morre de sede e de fome.

Para usar uma metáfora aproximada, podemos conceber o

movimento dos sentidos como esse imenso labirinto onde os silêncios

e as palavras criam limites instáveis e em constante mutação. Ele é

real, material, como são suas dunas, seus ventos, sua interminável

amplidão. Seus limites, porém, mo vem-se sempre, dinâmicos e

desafiadores. Analisá -los exige, mais do que qualquer outra coisa, a

disponibilidade para esse movimento nem sempre visível, mas

sempre presente.

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2
6
0
ÍNDICE REMISSIVO E ONOMÁSTICO

A
Althusser ....................................................................................................................................................................... 74, 200, 235
apagamento .........................................................................................................................................................................133, 138
Apagamento(s) .............................................................................................6, 27, 29, 30, 32, 33, 34, 35, 44, 49, 67, 100, 169, 180
Authier-Revuz ................................................................................................. 15, 24, 27, 31, 32, 35, 37, 38, 41, 42, 44, 57, 60, 70
Autor10, 15, 16, 18, 34, 37, 63, 66, 69, 70, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 111, 115, 11
B
Barthes ..................................................................................................................................................................................32, 106
Blanchot ............................................................................................................................................ 63, 64, 65, 66, 67, 69, 76, 242
Borges3, 5, 16, 17, 18, 19, 62, 63, 64, 65, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 82, 87, 88, 93, 94, 99, 100, 107, 116, 117, 119, 121, 122, 140, 141,
C
Courtine .......................................................................................................................................................................... 24, 44, 169
Courtine & Marandin ................................................................................................................................................................... 34
D
Discurso6, 11, 14, 16, 22, 27, 28, 33, 34, 35, 36, 41, 42, 43, 48, 57, 59, 60, 74, 75, 82, 89, 93, 95, 114, 121, 126, 170, 182, 183, 195, 196, 198, 200
Ducrot ............................................................................................................................................................................. 25, 26, 104
E
Eco14, 20, 59, 60, 91, 92, 93, 94, 95, 96, 97, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 12
Eco, Umberto ......................................................................................................................................................................120, 226
Elliot .......................................................................................................................................................................................71, 72
Espelho16, 39, 40, 42, 45, 46, 48, 49, 58, 65, 67, 161, 167, 168, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 188, 189, 190, 192, 193, 194, 19
F
Fiorin.......................................................................................................................................................................................41, 42
Formações ................................................................................................................................................................. 24, 55, 57, 200
Formações ........................................................................................................................................................................................
discursivas .......................................................................................................................................................... 14, 27, 180, 198
Foucault .......................................................................................................... 54, 59, 75, 76, 79, 87, 123, 125, 126, 127, 128, 131
Freud ................................................................................................................................................................... 125, 126, 199, 250
G
Genette ............................................................................................................................................................ 69, 70, 71, 72, 75, 76
Ginzburg ..................................................................................................................................................................... 202, 204, 206
I
Interdiscurso..................................................... 29, 34, 35, 36, 44, 60, 127, 169, 170, 180, 183, 186, 190, 198, 200, 204, 236, 238
Iser ............................................................................................................................................................................................. 122
J
Jakobson..................................................................................................................................................................................... 103
L
Lacan........................................................................................................31, 45, 102, 177, 179, 180, 181, 193, 195, 199, 204, 206
Lajonquiere ......................................................................................................................................................... 178, 179, 180, 187
Laplantine .................................................................................................................................................................................. 184
Leitor6, 12, 18, 27, 59, 60, 63, 68, 70, 71, 72, 82, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 109, 11
Lévis-Strauss ................................................................................................................................................................................ 96
Levy ........................................................................................................................................................................................... 240
M
Macherey ................................................................................................................................................................................74, 75
Maingueneau ................................................................................................................................................................................ 34
Marx ....................................................................................................................................................................................125, 235
Merleau-Ponty.............................................................................................................................................................................. 21
Monegal ............................................................................................... 63, 69, 71, 72, 73, 74, 75, 87, 141, 149, 154, 157, 159, 242
O
Ollier ............................................................................................................................................................................................ 74
Orlandi .............................................................................................................................. 15, 20, 21, 28, 36, 37, 38, 127, 196, 237
P
Pêcheux .............................................................................................. 14, 15, 17, 24, 58, 65, 88, 159, 171, 187, 209, 234, 252, 260
Pessanha ....................................................................................................................................................................................... 47
Poe ............................................................................................................................................................................................... 73
Possenti ...............................................................................................................................................................................200, 211
R

2
6
1
Reboul ...................................................................................................................................................................................90, 101
Rey-Debove ................................................................................................................................................................................. 35
Ricardou ....................................................................................................................................................................................... 73
S
Schinelo ......................................................................................................................................................................................... 4
Schinelo & Villarta-Neder ..................................................................................................................................................134, 234
Silêncio6, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 44, 46, 49, 50, 51, 52, 54, 5
Silêncio ............................................................................................................................................................................................
ausência10, 11, 16, 20, 21, 22, 23, 27, 29, 30, 44, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 112, 115, 126, 143, 168, 169, 175, 186, 190, 193, 194 , 196, 208, 20
excesso...... 11, 16, 17, 24, 28, 29, 38, 44, 54, 55, 56, 59, 126, 128, 143, 169, 174, 175, 186, 193, 196, 207, 234, 236, 237, 243
T
Todorov...................................................................................................................................................................................... 239
V
Valéry ............................................................................................................................................................................. 71, 72, 154
Villarta-Neder .............................................................................................................................................................................. 44
W
Wittgenstein .............................................................................................................................................................. 79, 80, 81, 243

2
6
2
ANEXOS

2
6
3
SALA VACÍA 93

los muébles de caoba perpetúan

entre la indecisión del brocado

su tertulia de .siempre.

Los daguerrotipos

mienten su falsa cercanía

de tiempo detenido en un espejo

y ante nuestro examen se pierden

como fechas inútiles

de borrosos aniversarios.

Desde hace largo tiempo

sus angustiadas voces nos buscan

y ahora apenas están

en las mañanas iniciales d e nuestra infancia.

La luz del dia de hoy

exalta los cristales de la ventana

desde la calle de clamor y de vértigo

y arrincona y apaga la voz lacia

de los antepasados.

93 In Fervor de Buenos Aires, 1923.

2
6
4
Animais dos Espelhos 94

Num dos volumes das Cartas Edificantes e Curiosas que

apareceram em Paris durante a primeira metade do século XVIII, o

Pe. Zallinger, da Companhia de Jesus, planejou um estudo das

ilusões e erros do povo de Cantão; num levan tamento preliminar

anotou que o Peixe era um ser fugitivo e resplandecente que ninguém

havia tocado, mas que mui tos alegavam ter visto no fundo dos

espelhos. O Pe. Zallinger morreu em 1736 e o trabalho iniciado por

sua pena ficou inacabado; cento e cinqüenta anos depois, Herbert

AIlen Giles assumiu a tarefa interrompida.

Segundo Giles, a cre nça no Peixe é parte de um mito mais

amplo, que se refere à época legendária do Imperador Amarelo.

Naquele tempo, o mundo dos espelhos e o mundo dos

homens não estavam, como agora, incomunicáveis. Eram, além

disso, muito diferentes; não coincidiam nem os seres nem as

cores nem as formas. Ambos os reinos, o especular e o humano,

viviam em paz; entrava -se e saía -se pelos espelhos. Uma noite, a

gente do espelho invadiu a Terra. Sua força era grande, porém ao

cabo de sangrentas batalhas as artes mágicas do Imperador

Amarelo prevaleceram. Este re chaçou os invasores, encarcerou -

os nos espelhos e lhes impôs a tarefa de repetir, como numa

94 In Livro dos Seres Imaginários, 1974

2
6
5
espécie de sonho, todos os atos dos homens. Privou -os de sua

força e de sua figura e reduziu -os a meros reflexos servis. Um dia,

entretanto, livrar-se-ão dessa mágica letargia.

O primeiro a despertar será o Peixe. No fundo do es pelho

perceberemos uma linha muito tênue e a cor dessa linha não se

parecerá com nenhuma outra. Depois, irão despertando as outras

formas. Aos poucos diferirão de nós, aos poucos deixarão de nos

imitar. Romperão as barreiras de vidro ou de metal e desta vez não

serão vencidas. Junto as criaturas dos espelhos combaterão as

criaturas da água.

No Yunnan não se fala do Peixe e sim do Tigre do Es pelho.

Outros acreditam que antes da invasão ouviremos do fundo dos

espelhos o rumor das armas.

2
6
6
EL ESPEJO 95

Yo, de niño, temía que el espejo

Me mostrara otra cara o una ciega

Máscara impersonal que ocultaría

Algo sin duda atroz. Temí asimismo

Que el silencioso tiempo del espejo

Se desviara del curso cotidiano

De las horas del hombre y hospedara

En su vago confin imaginario

Seres y formas y colores nuevos.

(A nadie se lo dije; el niño es timi do.)

Yo temo ahora que el espejo encierre

Ei verdadero rostro de mi alma,

Lastimada de sombras y de culpas.

El que Dios ve y acaso ven los hombres.

95 In Historia de La Noche, 1977.

2
6
7
(foto de domínio público)

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6
8

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