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Pognometria e Intervenção Urbana Um Exercício de Variáveis 3

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Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504

POGNOMETRIA E INTERVENÇÃO URBANA: UM EXERCÍCIO DE


VARIÁVEIS

Diego Baffi*
RESUMO: O ensaio convida o leitor a uma viagem compartilhada pela experiência de
criação em intervenção urbana em arte nas cidades de Bondy, Paris e Marselhe (França).
A partir da interlocução com teoria e prática artística, filosofia, antropologia e literatura, o
autor discorre sobre diferentes nuances pelas quais a estrangereidade manifesta-se
enquanto traço intercultural e apresenta estratégias para criação artística, amparadas pelo
status de estrangeiro. Para isso, descreve a concepção e realização de ações urbanas
realizadas na zona de contaminação entre diversas linguagens artísticas, mas valendo-se
sobretudo de elementos oriundos da palhaçaria, performance relacional, deriva, escultura
e Parkour. O ensaio apresenta como resultados hipóteses que relacionam a manutenção da
estrangereidade como ética que impulsione a criação em arte de outros mundos possíveis.

Palavras-Chave: estrangereidade; intervenções urbanas; palhaçaria; performance arte; pognometria.

ABSTRACT: The essay invites the reader to a journey shared by the experience of
creation in urban intervention in art in the cities of Bondy, Paris and Marselhe (France).
From the interlocution with theory and artistic practice, philosophy, anthropology and
literature, the author discusses different nuances by which the foreignness manifests itself
as an inter-cultural trait and presents strategies for artistic creation supported by the status
of foreigner. For this, it describes the conception and accomplishment of urban actions
carried out in the zone of contamination between different artistic languages, but using
elements derived from the clowning, relational performance, drift, sculpture and Parkour.
The essay presents as results hypotheses that relate the maintenance of foreignness as
ethics that impel the creation in art of other possible worlds.

Keywords: foreignness; urban interventions; clowning; performance art; pognometry.

* Diego Elias Baffi é mestre e bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de
Campinas - UNICAMP e doutorando em Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro - UNIRIO. É Professor Assistente na Universidade Estadual do Paraná - UNESPAR,
Campus Curitiba II – Faculdade de Artes do Paraná - FAP. É membro do grupo de pesquisa
Processos Criativos em Artes Cênicas (CNPQ) e coordenador do projeto de pesquisa Arte
estrangeira – um experimento para olhos desacostumados. E-mail: diego_baffi@yahoo.com.br

BOITATÁ, Londrina, n. 25, jan.-jun. 2018


Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504

Pognometria e Intervenção Urbana: um exercício de variáveis.

Em busca de como começar este ensaio, escrevo uma palavra a esmo em um dicionário
online: ‘pognometria’. Não conheço a palavra, mas intuo que ela pode ter a ver com medições,
com aferição de alguma grandeza. Sim! “Relativo à contagem de pognoms, grandeza descoberta
na astrofísica que mede a concentração de energia cósmica em blocos de solo de alta densidade
e altura, como picos e cordilheiras (que, pela concentração de massa e imantação dos metais
dispersos no solo, apresentam uma variação na força gravitacional para mais e concentram mais
pognoms, partículas energéticas que viajam pelo espaço desde o Big Bang, sempre em direção
aos pontos de menor energia, em geral, buracos negros e demais matérias escuras). A geofísica
faz uso da pognometria, em geral, para averiguar o quanto determinado pico ou cordilheira é
antigo, considerando-se não apenas a idade geológica da pedra, mas sua formação geofísica, já
que quanto maior o tempo de constituição do acidente geográfico, maior a concentração de
pognoms e menor a velocidade de suas partículas.”.

A palavra existe. Colocar palavras aleatórias A palavra não existe. O dicionário online,
no dicionário online tem sido um hábito então, me propõe palavras que entende como
individual regular, um hobby pessoal que tem parecidas: longimetria, optometria,
por objetivo criar a possibilidade do encontro zonometria. Palavras que o editor de texto que
de conhecimentos até então ignorados, uso para elaborar este documento não
especialmente por não fazerem parte da seara conhece. Nem ele, nem eu até há pouco.
de investigações as quais sou confrontado em Ao fazer uso da intuição, prevejo a existência
minha área de pesquisa. Interventor urbano e de uma palavra que, até onde pude averiguar,
docente na área de artes cênicas, dificilmente não figura nem nunca figurou no Vocabulário
teria acesso a vocábulos como este senão por Ortográfico da Língua Portuguesa, nem tem
um exercício de busca; ainda que qualquer citação nos principais sites de busca,
adivinhatória, a partir da variabilidade da bem como o significado posposto. Fato é que
língua e de seus possíveis significados. Com a a suposição da existência do vocábulo (e a
prática, esse exercício de supor palavras provável aceitação da existência pelo leitor, se
tornou-se cada vez mais elaborado e houve) pode ser explicada por um exercício
frequente. Repetir como meio de aprofundar- complexo que envolve o ato contínuo de
se remete a afirmação atribuída a Aristóteles, alguns hábitos, dentre eles a crença de que o
sobre a prática levar à perfeição1. Aqui que diz um documento acadêmico tende a ser
aplicado, seria supor que o exercício da língua real, além do hábito da língua em si e de suas
nos capacita ao desenvolvimento de estruturas variações mais prováveis.
similares às que conhecemos (sabemos não Ou seja, o exercício constante de algo nos
apenas as palavras que existem, mas as torna suscetíveis a sermos enganados pela
variações mais prováveis para novas palavras) “coberta do hábito”, como nos diz Flusser em
e este exercício nos permite supor quais os seu Ensaio “Exílio e Criatividade” (2013)2.
caminhos tomados pelo uso da língua por Por outro lado, o investimento na intuição
aqueles que a exercitam em outras áreas do pode dar-se como caminho ao encontro tanto
conhecimento. Ou seja, o exercício constante da criatividade como do desconhecido, ou
de algo – sua prática – torna os novos seja, se eu aceito que a suposição da palavra é
conhecimentos a serem adquiridos cada vez não o encontro, mas um ato criativo que
mais previsíveis. constrói ao mesmo tempo diversas
Evoco esta metáfora por crer que ela pode ser possibilidades de encontro com
interessante para a compreensão do que desconhecidos.
ocorreu na realização deste estudo a ser a Evoco esta metáfora por crer que ela pode ser
partir de agora descrito. interessante para a compreensão do que
ocorreu na realização deste estudo3 a ser a
1
A citação exata é “Nós nos transformamos partir de agora descrito.
naquilo que praticamos com frequência. A
perfeição, portanto, não é um ato isolado. É um 2
Para todos os efeitos, o exílio e o exilado, por
hábito.”. A citação apócrifa, presente como Flusser, serão sinônimos de estrangeiro e do
epígrafe em uma série de documentos acadêmicos espaço estrangeiro como visto nesta pesquisa.
e sites na internet, não pode até o presente 3
Este estudo integra a pesquisa de doutoramento
momento ser localizada com sua fonte exata. em curso ‘Arte estrangeira – um experimento para
olhos desacostumados’ UNIRIO (RJ/Brasil).

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No primeiro semestre do ano de 2016 fui convidado a integrar o 33º Festival


Internacional Les Francophonies en Limousin, realizado na província de Limusino, França, de
21/09 a 01/10/2016. O convite partiu especialmente de uma das curadoras do evento que,
presente no 12º Festival Quatre Chemins, no Haiti4, em 2015, presenciou uma de minhas
apresentações de Palhaçaria Itinerante e interessou-se que a intervenção compusesse a seleção de
trabalhos oriundos deste festival a ser reapresentada naquele. A proposta a mim encaminhada era
de que eu realizasse sete apresentações de palhaçaria em diferentes espaços públicos da cidade de
Limoges, concentradas em quatro dias de festival (das quais seis se realizaram).
Na época de pré-produção, ainda no Brasil, deparei-me com a dificuldade de antever
especificidades da comicidade e da dinâmica do espaço público francês e como estes elementos
interfeririam no encontro entre a Palhaçaria Itinerante e estes locais – a dificuldade, já vivenciada
em relação à Bolívia (2009), Colômbia (2011), Equador (2012), Argentina (2013) e, no âmbito de
minha pesquisa de doutoramento, ao Haiti (2015), neste momento (2016) aplicava-se à
especificidade francesa e, mais precisamente, a cidade de Limoges.

Retomando a metáfora do início deste Retomando a metáfora do início deste trabalho,


trabalho, a dificuldade vem diminuindo a dificuldade de antecipar as especificidades
gradativamente conforme tenho acumulado culturais (referentes principalmente, mas não
idas ao exterior. Em minha primeira incursão somente, a como se operam os espaços
transnacional, em 2009, coincidentemente para públicos) de cada país que serão
apresentação artística, quando tive a posteriormente motes para cenas (ou, como
oportunidade de palhacear pelas ruas de prefiro chamar pela particularidade de serem
Bogotá, a dificuldade de supor sempre dinâmicas de interação construídas
antecipadamente aspectos particulares do conjuntamente com os demais presentes:
encontro teve seu ápice. Curiosamente de jogos) a partir do encontro com meu palhaço,
maneira positiva fui surpreendido com a de nome Felisberto Ibido, foi, ao mesmo
emersão de uma comicidade imprevista e, ao tempo, amainada e intensificada conforme
mesmo tempo, há muito perseguida. tenho acumulado idas ao exterior.
Perseguida se tomarmos como base a Amainada quanto à ansiedade/urgência que
especificidade da abordagem da comicidade produz (aspecto a princípio subjetivo, mas que
que venho optando até o presente momento em igualmente deriva e produz corpo e, por
meu trabalho de palhaço, dada por um extensão, mundo), pois o fato de ter feito já
conjunto de fatores dos quais aqui destaco o seis incursões de palhaçaria fora do território
‘olhar desacostumado’ (ver como se fosse a nacional trouxe-me progressivamente a falsa
primeira vez) e a recusa da ‘hierarquia de uso’ sensação de que existem padrões (há uma
(que dita alguns usos do espaço público como ilusão na diferença vivida quanto a sua
preferíveis aos demais). possibilidade de revelar um padrão de
Ali, meu olhar tanto era efetivamente repetição); e intensificada na resistência que
desacostumado ao espaço público, quanto constrói a que eu me abra à singularidade
desconhecia completamente as especificidades daquele encontro (aspecto relacional), ou seja,
de sua hierarquia de uso. Somados estes a cada nova incursão, a dificuldade em
elementos à máscara do palhaço (não apenas antecipar a especificidade do encontro
pela sua materialidade, mas pela técnica em vindouro, com vistas a treinar uma tal
sentido mais amplo: ampliação dos gestos, dos disponibilidade que me capacite em relação a
tempos, repetição, triangulação, etc.) produziu- sua singularidade, é acrescida da necessidade
se um efeito cômico imprevisto, mas muito de vencer a ilusão de que as experiências
próximo do que eu vinha tentando construir anteriores me permitiriam, de alguma forma,
em minhas pesquisas anteriores no Brasil. Essa antever um padrão aplicável às incursões
intensificação, de fato, foi um dos elementos sucessivas. A busca por encontrar este estado
chaves que desencadearam meu interesse pela de perene abertura à diferença, aspecto
especificidade do status de estrangeiro na fundamental do status de estrangeiro e sua
criação em intervenção urbana e culminou na aplicação na criação em intervenção urbana,
pesquisa em curso. culminou na pesquisa em curso.
4
Com o período vivenciado no Haiti escrevi o ensaio “Destino: Poesia - tentativas de fazer arte na condição
de estrangeiro”, publicado online na Revista Arte da Cena v. 2, n. 3, Jul.-Dez./2016.

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Antecipei minha ida ao festival em treze dias para que pudesse realizar a pesquisa de
campo de maneira mais ampla, incluindo à ação de Palhaçaria Itinerante outras ações em
intervenção urbana a serem oportunamente listadas e descritas. O prazo estendido deu-se
anteriormente ao festival buscando que eu pudesse, durante esta estada, preparar-me para a
especificidade do encontro de meu palhaço com a cultura francesa através da imersão em seus
espaços de sociabilidade, ou seja, não apenas os espaços públicos stricto sensu, mas os de uso
coletivo, como restaurantes, igrejas e supermercados et. al, nos ambientes urbanos das cidades
de Paris, Bondy e Marselha. Ainda que as ações planejadas não trabalhassem com esses espaços
híbridos privado-públicos (anteriormente denominados ‘de uso coletivo’), eles se tornaram na
contemporaneidade, até pelo esvaziamento dos espaços públicos a partir da cooptação de ações
a estes normalmente destinadas aos espaços privados (shoppings centers, academias de ginástica
e clubes sendo provavelmente os casos mais notáveis), importantes espaços de convivência, nos
quais é possível integrar-se à cultura local. Isso porque

O espaço público hoje é um conjunto de comportamentos que cristalizam em


um lugar que não tem necessariamente uma natureza jurídica pública, embora
tenha a capacidade de oferecer a seus habitantes potenciais o marco para um
ato de compartir coletivo, mesmo que temporário. (LA VARRA, 2008, s.p.)

O critério de escolha destas cidades não foi outro senão aquelas nas quais residiam as
pessoas que me deram respostas positivas à busca por alojamento solidário no país, realizada
durante o planejamento da viagem. Coincidentemente, acabei realizando as ações nas duas
maiores e mais populosas cidades da França – Paris e Marselha, respectivamente primeira e
segunda nestes quesitos – sendo que a primeira é ainda a capital nacional e a segunda também a
mais antiga do País. Bondy, pelo contrário, é uma cidade de pequeno porte que se localiza no
subúrbio de Paris e na qual reside parte da população que trabalha nesta última.

Partir! Desde o avião a presença predominante Ficar! Partir aqui é da esfera do desejo (não
da língua francesa, da qual eu sabia apenas mero, mas ativa busca por potência,
alguns chavões e galicismos. Ouvir a forma da amparada inclusive pela pesquisa em
língua é altamente improvável em nosso curso) e às vezes perigosamente se
ambiente cultural habitual, ensinados (e condiciona e satisfaz como desejo. E é isso
interessados) que estamos, em geral, em alcançar que tanta coisa quer, (no sentido de ser
o conteúdo diretamente. Perseguimos a ‘forma assim que a máquina do desejo opera, nos
invisível’ na linguagem que, como o vidro da lembra Deleuze5), ainda que nos recusemos
janela de nossa casa, entendemos que deve ser a admitir: ser desejo. Entre outros motivos,
absolutamente transparente para deixar ver o que para que o desejo realizado não mostre sua
interessa. Na contramão, e por algum motivo que incompletude e sua defasagem à
não identifico, desde a iminência da viagem eu idealização primeira. Eu quis partir, mas,
quis esse silêncio rumoroso que emerge da mais que tudo, eu quis desejar partir. Tanto
incompreensão quase absoluta da língua. Eu o que me dei a perder o voo (no aeroporto,
desejei, quando confirmada a viagem, mais que o deixei-me enganar por uma informação
ruído silente da comunicabilidade. É como se, improvável e esperei o voo no lugar errado)
sem significados atingíveis, eu pudesse ouvir, sendo realocado para outro voo no dia
finalmente, a musicalidade da língua. De olhos seguinte e, chegando a Paris, dei-me ao
fechados, as vozes no avião compunham uma mesmo descuido, perdendo o trem e
sinfonia atonal, uma música de consoantes obrigando-me a rever uma vez mais o
cortadas que todos tocavam, mas suponho que plano de viagem, rever o meu desejo.
poucos escutavam. Eu seria mesmo capaz de
dançá-la, mas, parafraseando Nietzsche, eu 5
Algumas das referências aqui apresentadas
provavelmente seria visto como louco por quem (quando nomeadas sem bibliografia) aparecem
se acostumara demais a ver apenas a rua através como companheiras de diálogo, cujas reflexões
da vidraça (esse alguém que, é bom que se diga, já se encontram de tal forma diluídas e, quiçá,
em geral também sou eu em meu ambiente transmutadas pela experiência, que parece tão
cultural habitual). irresponsável deixar de citá-las, quanto atribuí-
las a alguma obra específica.

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Dar a ver o que se apresenta (a linguagem enquanto materialidade ou forma e o desejo


enquanto ente em si, são aqui exemplos de uma extensa gama de elementos aos quais
voltaremos no decorrer deste ensaio) será um imperativo deste trabalho como metodologia de
pesquisa e como proposição (estética) de jogo nas ações de intervenção realizadas no espaço
público. A este respeito Flusser trata em seu ensaio supracitado do poder deletério do costume e
do hábito que agem como “um véu sobre a realidade” e nos impedem de vermos da maneira
como esta se apresenta. Em continuidade, o autor coloca a condição de exilado como estratégia
de criação de um estado-necessidade de processamento de dados e, assim, de criação.
A estratégia de dar a ver o que se apresenta para além da superfície é também, segundo
Chlovski, a finalidade da arte:

A finalidade da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como
reconhecimento; o processo da arte é o processo de singularização dos objetos
e o processo que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e
a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si e deve ser
prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objeto, aquilo que já se
‘tornou’ não interessa à arte. (CHKLOVSKI, s.a., s.p. apud TOLEDO, 1971. p.
43)

Tais reflexões me influenciaram a que, nos preparativos da viagem, elaborasse três


ações que compuseram, junto com a Palhaçaria Itinerante, meu plano inicial de intervenções
para a França: Ação de Aniversário n.34 (realizada em Marselha, em 14/09/2016),
Acompanhante (Bondy, em 11/09/2016 e Marselha, em 15/09/2016) e Temer Jamais! (realizada
em Paris, em 09/09/2016). Descreverei as ações no decorrer deste ensaio, na ordem em que
foram realizadas.

Lembranças de meu olhar estrangeiro na França

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Temer Jamais! foi a Temer Jamais! foi a oportunidade de dar corpo e linguagem
oportunidade de dar corpo e à impossibilidade de indignar-me e afrontar integralmente
linguagem à minha as forças repressoras por mim incorporadas. Desde o
indignação pelo momento planejamento da ação havia medo. Quase atávico medo que
político controverso me fazia supor (ou fantasiar) que encontraria uma força
vivenciado no Brasil no agressivamente repressora à minha ação.
momento em que esta Já no aeroporto, cartaz empunhado, fui tomado por uma
pesquisa de campo foi ebulição corporal que me mostrou que a força repressora já
realizada, no qual de certa estava ali e não precisaria vir de outrem. Atravessamentos
forma ainda me encontro físicos-emocionais (leves tremores e fraquezas, intensa e
enquanto organizo este difusa atividade cerebral) me revelavam quão
documento para publicação corporificados estavam os limites impostos pelo poder que
(04.2018). me encontrava submetido. Tudo isso dificultou, por quase a
Para que fiquem visíveis as primeira metade da ação, a manutenção de um olhar para
motivações desta ação, é fora que me permitisse entrar em contato visual com as
mister apontar que dentre as pessoas que saiam do desembarque de passageiros. Tal
narrativas a mim apresentadas estado remete-me ao descrito no conceito de Sociedade de
até o presente momento, me Controle (Foucault, Deleuze), no qual o poder introjeta-se,
filio àqueles que defendem diluindo-se nos corpos, abrindo mão de sua representação
que durante o ano de 2016 a icônica (objeto aferível: o líder ou a instituição).
presidência no Brasil foi Não posso dizer o quanto deste estado poderia ser chamado
tomada de assalto da de medo, mas suponho que muito. A realização da ação,
candidata democraticamente ainda sem nome, mostrava-me a necessidade de ser
eleita (Dilma Rousseff) por nomeada pelo temor, o que também parecia justo pelo
um golpe jurídico-midiático trocadilho com o sobrenome do golpista empossado. Era
que levou seu suplente irônico e ao mesmo tempo um ato de resistência. O desejo
(Michel Temer) ao poder. de jamais temer me fazia enfrentar o temor entranhado, o
Deste ponto, compreende-se temor que também era eu. Curiosamente, era justamente
porque senti a necessidade de este temor que dava o maior dado de pertinência da ação:
me manifestar, aproveitando para além do posicionamento político, era uma ação
que eu me encontrava fora do comprometida com a revolução de si.
Brasil e que, supunha, poderia A questão do medo é amplamente presente nos relatos de
romper eventuais barreiras artistas, em especial dentre aqueles não-sedentários
impostas pela mídia (itinerantes, nômades, estrangeiros) e que atuam em espaços
inter/nacional a esta narrativa, públicos em ação subversiva ou de enfrentamento ao status
ao menos para as pessoas que quo, características de certo modo presentes neste trabalho.
estivessem ao alcance da Escolho reproduzir aqui um breve trecho do relato de
ação. Genifer Dimpério, palhaça e bonequeira itinerante, que
Para isso, me coloquei na realizou sozinha, entre outubro e dezembro de 2009,
saída de desembarque do viagem por seis estados brasileiros, apresentando-se em
aeroporto Charles de Gaulle, vilarejos de até 10 mil habitantes. Desta experiência – tão
em Paris, ao lado daqueles próxima à pesquisa aqui descrita –, descreve sua relação
que aguardavam passageiros paradoxal com o medo. “Se sentia medo? Sempre. Em cada
sustentando placas com chegada, em cada estar. No entanto fazia parte, também
diferentes dizeres e ali não queria a distância deste sinalizador que freia, mas que,
sustentei, por cerca de trinta simultaneamente, me fez avançar como forma de
minutos, uma placa na qual se transgressão.” (2010, p. 89)
lia Fora Temer, aproveitando, Ainda que algumas pessoas detivessem o olhar por mais de
e ao mesmo tempo alguns segundos em meu cartaz, mostrando um interesse
subvertendo, a finalidade da particular em compreender a mensagem ali escrita em
licença para o empunhar de relação às presentes nos demais cartazes (suponho por um
cartazes naquele local e seu estranhamento em relação ao não reconhecimento do escrito
regime de visibilidade. como um possível nome), apenas uma senhora procurou
meu olhar após encarar a placa, sorrindo-me, de modo que
posso supor que compreendeu a que se referia à mensagem.

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Noto que o processo de reconhecer-me ou dar-me a conhecer como estrangeiro ou, mais
especificamente, como brasileiro dá-se de maneira similar a como se opera uma equação
diferencial: tem como incógnita derivadas de uma função desconhecida, e, por isso, traz como
resultado algo que ao mesmo tempo pode ou não existir, pode ser uno ou vário.
Por ser diferencial, esta equação só falsamente pode ser solucionada por este vago
conjunto de pontos fixos – estereótipos – a que se chama, grosso modo, ‘brasileiro’: a língua
portuguesa, a bandeira, o futebol, o carnaval unem-se, a depender do lugar, com outros como: as
belas praias (Argentina), o algoz da guerra (Paraguai), a força de ocupação (Haiti), a sede das
olimpíadas ou a deposição da presidenta (França), etc., elementos que, independentes ou
combinados, dão a falsa sensação de uma coordenada que localiza o brasileiro, situando-o como
uma posição dada e estável.
A solução é falsa, pois o estrangeiro não é nunca um ponto localizável (em um gráfico
ou um mapa). A própria ideia da localização mata a estrangereidade, substituindo-a por outra
nacionalidade. O estrangeiro não é alguém de um outro lugar, mas o deslocamento, o processo
de construção de múltiplas possibilidades insolucionáveis não só de origem, mas de produção de
lugar, de variantes. (E é neste sentido que é perfeitamente possível afirmarmos que ser
estrangeiro em seu espaço de origem não é uma contradição entre termos, condição que
voltaremos adiante). O estrangeiro não opõe aqui e lá como espaços nomeáveis, pois não é
permitido nomear o espaço da experiência, só o seu rastro, e o estrangeiro é pura experiência,
revolução. “No exílio, tudo parece estar em constante mudança, e o exilado vê absolutamente
tudo como um desafio para suas transformações. Sem a coberta do hábito, o exilado se torna um
revolucionário”, diz Flusser (idem).
Outra questão é que o estrangeiro é uma condição pré-diferenciação, isso porque,
estando imerso em “um oceano de informação caótica” (idem), não tem oportunidade de
dominar os pressupostos necessários para diferenciar elementos da identidade cultural como
traço distintivo de um indivíduo ou como traço agregador de um coletivo, isso tanto para si
quanto para o outro (e vai dominar apenas na medida em que sair deste status em direção ao
estereótipo – o estrangeiro de lá ou ao enraizamento – o estrangeiro daqui). Assim, ele não
domina quais os traços de sua cultura o identificarão como outro (indivíduo), como um dos
outros (membro ou representante – no sentido de fractal – de uma determinada cultura), ou
como outro dos outros (o princípio da alteridade que permitirá reconhecê-lo como humano,
contemporâneo, terráqueo, etc.), assim como não identifica as diferenças entre o que o define no
encontro como outro ou como um dos outros, tomando indistintamente uma coisa pela outra.
Nas ocasiões de minhas estadas em outros países, seja no curso desta pesquisa ou
anteriormente, eu nunca sabia de antemão o que me localizaria, para mim e para o outro, como
estrangeiro. Foi impressionante, por exemplo, dar-me conta que o que me projetava a este status
na Bolívia foi preferir água pura à infusão; Colômbia, não ter o costume de consumir sopa de
banana; Equador, não consumir chá de orégano; Argentina, ter a saída de dejetos do vaso
sanitário na direção da parede e não na oposta, do usuário; Lisboa, entrar edifícios de 300 anos
como quem entra em museus e não em casas populares; França, esperar a porta do metrô abrir
sozinha enquanto todos esperavam que eu apertasse o botão correspondente...
Antes de ser algo curioso ou até mesmo engraçado, o desajuste tem um efeito
paralisante e de redefinição de si a partir do mundo, que passa a comportar algo que até então
parecia impossível. Quando o espaço estrangeiro apresenta-se como tal (ou seja, a relação de
estrangereidade emerge) “tudo se torna incomum, monstruoso e inquietante.” (idem). A
pesquisadora, docente e atriz Regina Müller, ao descrever os traços comuns dentre as pesquisas
de campo realizadas por ela primeiramente entre os índios Asuriní do Xingu e posteriormente
nos EUA, comenta “Afastada do cotidiano de trabalho e de meu meio-ambiente, [...] o contato e
comunicação com o outro que nos leva a refletir sobre nós próprios e acionar processos de
transformação e redefinição de identidade.” (71). Redefinição de identidade é uma expressão
que dá a medida da amplitude de transformações que a estrangereidade demanda.
Por tudo isso, a estrangereidade é um problema insolucionável (tanto para o estrangeiro
como para o ambiente cultural a sua volta): e esta informação não se pretende moral ou
xenófoba. Na verdade, ser um problema é uma das maiores potências do estrangeiro. O
estrangeiro, ou mais especificamente, o brasileiro pesquisador que se inscreve no curso desta

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pesquisa, é (ou pretende-se, enquanto sustentar sua estrangereidade) uma condição relacional
insolucionável e, por isso, capaz de promover tensões, acelerações e revoluções.

Ao observar e observar-me no espaço francês, Ao observar e observar-me no espaço


sentia aquela terra como minha. Por um lado, pela francês, sentia aquela terra como alheia.
relação de proximidade produzida por um Do processo gustativo-digestório ao
colonialismo cultural (largamente favorecido pela sono; da capacidade de localização
diáspora europeia da passagem dos séculos geográfica à separação dos estímulos
XIX/XX) que faz com que espaços-símbolo da(s) sonoros em sons ininteligíveis, tudo
cultura(s) europeia(s) façam parte da referência de parecia revelar uma desconexão do meu
mundo-casa (ou de terra-lar), de um âmbito corpo com o lugar, um impossível
geográfico muito maior que o compreendido pela trânsito. É como se o processo de
cultura que o erigiu. Assim que, ao chegar à Torre decodificação corpo-mundo fosse algo
Eiffel me vi cercado de pessoas das mais diversas que dependesse de uma linguagem
nacionalidades, mas, mesmo assim, a relação ainda não dominada, ou como temos
predominante seguia sendo, antes de tudo, de dito, de raízes ainda não construídas.
intimidade. Por alguns momentos, a profusão de Se considerarmos que o corpo é
línguas fazia com que a francesa deixasse de definir formado e constituído por um conjunto
a paisagem (ainda que costume ser definido de experiências que ele reverbera e que
sobretudo por sua visualidade e sua materialidade – tais experiências não prescindem nunca
o mapa como o convencionamos –, o espaço de um espaço constitutivo, ou seja, o
enquanto experiência se define por um conjunto de corpo dá-se pelo espaço (ocupando-o:
impressões que incluem as auditivas, gustativas e espacialidade), enquanto espaço (consti-
olfativas), mas existia um laço agregador, uma tui-se pelos mesmos atributos: espaciali-
gestualidade afável e familiar. zação), e por espaços sobrepostos e con-
Porém, nem todos os estrangeiros que ali estavam taminantes entre si (acumulando espa-
eram turistas, muitos (dentre estes, quase todos cialidades e espacializações ao longo do
negros, possivelmente imigrantes ou exilados em tempo), podemos defini-lo como este
busca de condições menos adversas), aproveitavam adensamento de espaço(s) em relação
justamente o acúmulo de turistas para vender dinâmica, apenas vagamente localizável
objetos temáticos que traziam nas mãos. Diante por suas fronteiras (um corpo).
deles, dei-me conta de um outro motivo para sentir- A transição ao estrangeiro vai
me em casa. Supus que talvez os rapinadores que proporcionar um estado de caos nessas
atravessaram mares e terras para objectualizar e relações dinâmicas [não apenas dentro-
subjugar outros povos e culturas, apropriando-se de fora, mas no fora que se torna dentro e
seus bens materiais e imateriais, não tivessem se vice-versa e suas continuidades espaço-
dado conta, a tempo, que o espaço é algo pregnante. temporais, dado que “não existe um
Que, ao deparar-se com o que havia além-mar corpo à priori, tal como não existe um
descobriam não a nova terra, já descoberta, mas a mundo à priori” (NEUPART, 2014, p.
nova França, Inglaterra, Portugal. Ao levar em si a 18) de modo que “Para o exilado é
experiência deste encontro, com ou sem recursos como se ele tivesse sido expulso do seu
naturais e humanos, para as colônias europeias, próprio corpo. Mesmo as coisas
levavam também a perpetuação deste lugar naquele. rotineiras causam estranhamento”.
Ao chegar às “Índias”, soubesse disso, poderia ter (Flusser, idem). Recém-chegado na
gritado o invasor ‘Eu descobri o futuro da França, em menos de 24 horas e ainda
metrópole, um futuro impregnado dessas terras! que estivesse sendo cuidadoso por estar
Daqui eu o vislumbro, senão de forma nítida, ao em casa alheia: quebrei uma taça ao
menos com a clareza cega de Tirésias’. Por todo o simplesmente colocá-la sobre a mesa,
vivido, essa terra é, também, de todos os povos e inundei o banheiro, derrubei o disjuntor
locais que nela se perpetuaram, de modo que a e presenciei, de maneira que não saberia
sensação de familiaridade também se dá pela dizer se influenciei ou não o fenômeno,
continuidade de uma terra na outra, pela dupla o disparo de uma ‘faísca sonora’ na
contaminação. Deste ponto de vista, pareceu-me estrutura metálica do box. Deste ponto,
não apenas natural, mas bem-vindo que estejam tanto o espaço quanto as ações
tantos ali a agir como se estivessem em casa. rotineiras revelaram-se alheias. Eu
definitivamente não estava em casa.
BOITATÁ, Londrina, n. 25, jan.-jun. 2018
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504

Invitation! Bonjour. Mon nom est Diego. Je suis Brésilien et je


ne parle pas français. Je cherche à connaître une autre France,
un pays qui se construit chaque jour par ceux qui vivent ici ou
qui sont de passage. Je souhaite faire de l'anti-tourisme, une
immersion dans la vie quotidienne. Pour cela, je voudrais vous
faire une invitation. Voulez-vous me permettre de vous
accompagner durant la prochaine heure la ou vous allez? Vous
ne devez pas changer vos horaires, ni vos objectifs, même pas
me parler si vous ne voulez pas. Au bout d'une heure, je vais
arrêter de vous accompagner. Ensuite, vous pouvez me
présenter à quelqu'un que je peux suivre, ou bien je m'en vais.
C'est parti?6

A ação Acompanhante era minha maior aposta para a realização da pesquisa de campo
do doutoramento na França. Desenvolvi a partir de alguns pressupostos: tinha de ser uma ação
simples, não depender necessariamente da linguagem falada para acontecer, valorizar minha
condição de estrangeiro e dar-me tempo e espaço para observar como meu olhar desacostumado
atuaria na França. A ação me interessava também pela possibilidade de criar ruídos em outras
frentes: o que ponderaria aquele que fosse convidado antes de concordar ou não com a ação?
Como seria para este conviver com alguém em seu encalço por uma hora? Onde me levaria?
Como se portaria às outras pessoas?
Hoje, ao rever na memória as imagens que eu criava do que viria a ser a ação, vejo que
meu imaginário pode ter se contaminado amplamente com a cena do cego no longa-metragem
francês “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” (dirigido por Jean-Pierre Jeunet, 2001), na
qual a personagem Amélie (Audrey Tautou), após ajudar o personagem do homem cego (Jean
Darie) a atravessar uma rua, o conduz por uma rápida caminhada na qual descreve em pequenas
narrativas o que vê à sua volta, gerando um efeito sinestésico que dá a impressão, ao final, que o
personagem do cego pode “ver”, pelos olhos dela, os fatos narrados. A cena é um dos pontos
mais marcantes do filme, além disso, o fato do filme se passar na França e ser um de meus
prediletos, tendo sido visto por mim incontáveis vezes, ajudou a que a imagem se mantivesse
6
Se você veio até esta nota, talvez seja por não compreender exatamente o que está escrito no texto, já que
notas de rodapé após textos em língua estrangeira, em geral, são usadas para a tradução deste. Farei em
seguida um resumo. Antes, quero continuar supondo, se me permite, que como fluente em uma língua
neolatina (ao menos o português, suponho), você pode compreender aproximadamente o que está escrito.
Sugiro que, se não tentou, tente agora. Aqui chegamos ao ponto que minhas suposições visavam: se você
tentou, deve ter chego mais ou menos no mesmo ponto que eu estava ao levar este texto copiado em um
papelzinho no bolso, com letra maiúscula desenhada o melhor que pude para não restar dúvidas do que
estava escrito, já que eu não podia esclarecê-las se fossem feitas em francês. Eu também não sabia
exatamente o que ia nele, nem muito como lê-lo em voz alta. Criei uma versão inicial e pedi que uma
amiga, estudante de francês, traduzisse primeiro para depois submeter a minha orientadora, que tem o
francês como língua materna. Entre modificações de ordem e sentido, identifico nesse texto final usado na
ação, traços do que propus a princípio: um início que me apresentava (acho que esta parte se entende
bem: Diego, brasileiro, não francófono) e depois vinha a explicação de que eu buscava, em uma ação anti-
turística (definível em linhas gerais como uma ação que não pretende fruir o local que se visita como
mercadoria), conhecer uma França construída cotidianamente pelos que ali estavam, sedentários ou
itinerantes (essa, para mim, a parte mais difícil de compreender do texto em francês). A este trecho segue
o convite: de que eu acompanhasse o leitor por uma hora, em qualquer atividade que este estivesse
fazendo, sem necessidades de alterar sua programação ou mesmo falar comigo se não o desejasse. A
proposta terminava descrevendo duas possíveis conclusões para a ação: ao final de uma hora o leitor
estaria livre para me apresentar para alguém ou simplesmente deixar-me partir. Até hoje não sei o quão
próximo o texto final ficou de meu intento inicial. Sigo sustentando esse problema (esta estrangereidade)
em relação ao texto como potência de criação de possibilidades de tudo aquilo que pode ou que poderia
estar ali expresso. Perdoe-me a frustração que a conclusão desta nota pode conter: se quiser saber de fato
o que está ali escrito, você deverá fazer uma ação deliberada pelo enraizamento na nova língua (e
aprendê-la) ou deve terceirizar a experiência pedindo que alguém que se acredite francófono feche o
leque de possibilidades em apenas um – dito assim como quem louva a língua – correto entendimento.

BOITATÁ, Londrina, n. 25, jan.-jun. 2018


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viva e convidativa o suficiente para influenciar na construção desta ação. Eu queria poder ver uma
França que supunha invisível para mim senão pelos olhos de seus habitantes cotidianos.
Estar na França me provocou um estado de excitação e ansiedade. Assim que me estabeleci
em Bondy, primeira cidade de meu percurso no país, dei-me a observar a distância entre a França
imaginada e a real. Não havia casas bucólicas com grandes jardins, mas uma cidade densamente
povoada, na qual não pude localizar grandes áreas verdes contínuas, a despeito da frequente
arborização das ruas. A paisagem humana era composta de muitos tipos diferentes, muito mais
diversificada que a imagem do francês estereotipado em minha memória, fruto de um padrão talvez
bastante influenciado pelos filmes que vi (branco, magro, ateu, francófono, fechado e melancólico).
Essas alterações faziam com que eu reprojetasse diversas vezes as expectativas da ação e algumas
dessas imagens eram particularmente ameaçadoras, envolvendo presença policial, mal-entendidos,
deportação. Vencê-las e dar-me às possibilidades da realidade foi um desafio à parte e acabei por
iniciar mais tarde do que pretendia.

Logo ao sair de casa um imprevisto presente: cumprimentei um senhor do outro Logo ao sair
lado da rua. Bonjour, disse eu. Ele sorriu, acalmou a passada e apertou os olhos do primeiro
numa transatlântica expressão de: eu te conheço? Resisti, mas capturei – antes encontro,
tarde –, ainda que com grande receio, a abertura de cenho franzido. Una deparei-me
invitassion tré différrant, arrisquei, sem saber se falava francês ou gromelô, e com um am-
lhe estendi o papel com o convite. Ele leu e depois tentou descrever sua biente muito
próxima hora: ‘pouco importante’, percebi pelo tom. Eu me desculpei, pardon, mais hostil.
enquanto tentava mostrar que não alcançava o exato conteúdo de suas palavras Repetidas
e insisti, lendo em voz alta o último trecho do convite C'est parti?. C'est parti!, vezes me vi
disse Jean Pierre, 59 (ou seria 69?) anos. Feliz pela abertura, passei a observar com pessoas
seus passos lentos e seus gestos breves; foi quando ele tentou uma aproximação nem mesmo
em um inglês de palavras chaves e cheio de silenciosos tempos de revolver disponíveis a
memórias vocabulares. Ele queria saber de mim. E, principalmente, do Brasil. ler o texto
O estrangeiro, já nos lembra Simmel (p. 265, 1983), é aquele que “se encontra ou pouco
mais perto do distante” e atualiza, acrescento, sempre o longe como perto, abertas à
sobrepondo de maneira não harmônica o espaço corporificado ao circundante. investigar a
Isso, em geral, cria certo desassossego e encantamento sobre os processos de construção
construção desse corpo-espaço, visível, por exemplo, no interesse provocado deste ter-
pela forma que os estrangeiros se vestem, caminham ou dançam. Eu queria ritório de
adentrar-me por ele em uma invisível França. Ele, no Brasil, por mim. convivência.
Desde esse ponto, o silêncio passou a ser sempre um ‘como me farei Marcou-me
compreender?’, o que exigia um intenso e permanente trabalho mental. um senhor
Enquanto conversávamos, ele decidiu me levar em um pequeno parque que que, diante
estava em nosso caminho. Ali, mentalmente estafados desistimos das traduções de minha
constantes e nos permitimos um encontro não mediado pela língua inglesa – resposta a
ele, ‘empregado polivalente de limpeza’, e, por isso, ‘também um pouco seu porquê?:
jardineiro’ (como anteriormente tinha feito questão de me fazer compreender), ‘o impor-
passou a me dizer o nome e a cor das plantas em francês e eu, cultivador tante não é o
amador da fauna-flora, repetia o nome delas em português. Depois de que ocorrer,
encontrarmos a botânica como primeiro território comum (curiosamente as mas estar-
plantas que ali havia são comuns também no Brasil), emergiu um segundo e mos juntos’,
mais precioso: a volta à infância. Introduziu-se quando ele me disse por disse, agi-
palavras incompreensíveis e gestos inquestionáveis que a mesa do gamão tando os de-
parecia uma balança da nossa infância (e disse assim mesmo, nossa infância) e dos ao lado
depois quando dentro da parte reservada às crianças de 5 a 8 anos, naquela hora do ouvido
vazia, me disse que brincavam de ‘torniquete’ e quis me explicar que era uma em um gesto
brincadeira similar à que, no Brasil, conheço por Corre Cotia e aquele senhor novo, mas
de passos lentos agora corria em círculos e indicava crianças imaginárias absoluta-
sentadas que se levantavam e corriam, mas não conseguiam pegá-lo antes que mente com-
ele se sentasse no chão. E rimos juntos voltando a ter de 5 a 8 anos. A infância preensível:
e as flores foram nossa fronteira entre França e Brasil. Fim da primeira hora. ‘conversa!’

BOITATÁ, Londrina, n. 25, jan.-jun. 2018


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Segunda parte. Concomitâncias não temporais.


Eu já estava desistindo. Depois de quatro horas caminhando pelas Eu já estava desistindo
ruas de Bondy e encontrando raras possibilidades de realizar a do plano inicial de
ação junto às pessoas convidadas, o cansaço batia forte e eu já me refazer a ação em
preparava para finalizá-la. Eu não havia me perdido ou sido Marselha. O impacto das
levado pelas pessoas convidadas para a ação para conhecer sucessivas recusas da
improváveis lugares, públicos ou privados, como havia fantasiado grande maioria das
(e desejado) anteriormente, e a frustração contribuía para que eu já pessoas abordadas em
considerasse decretar o fim da ação. Foi quando observei a Bondy havia deixado
chegada de um senhor claudicante que vinha sentar-se em um imagens que me faziam
banco público sob algumas árvores a alguns metros de onde eu crer que já era o
estava. Percebi que ele trazia em suas mãos uma garrafa de bebida momento de abdicar da
destilada e que pretendia bebê-la sozinho. Mesmo assim, arrisquei ação.
sentar-me a seu lado. O fato de eu não ter preferido um banco Tudo mudou quando eu
vazio gerou certa visibilidade para mim e eu aproveitei para li a descrição de uma
arrastar o texto por sobre o banco para perto dele, mas ele conversa de Eleonora
gestualizou que não leria o convite. Tive então o impulso de Fabião com uma transe-
começar a ação sem o seu expresso consentimento. Enquanto ele unte sobre um de seus
me permitisse, ficaria ao seu lado tentando conviver da maneira trabalhos, na qual aquela
menos invasiva que conseguisse, observando-o e ao mundo ao responde a uma alegação
redor pelos seus olhos, atentando-me o máximo possível àquilo desta com a frase “Não é
que ele estivesse olhando. Ele anuiu que eu ali ficasse e criou-se, sobre sofrimento,
lentamente, uma certa aceitação, um aconchego entre as senhora. É sobre
presenças. Eu relaxei e acabei adormecendo. Não sei por quanto determinação” (185).
tempo cochilei, mas ao acordar estávamos ali juntos há 45 O que aconteceria se eu
minutos, ele a velar o meu sono segurando uma garrafa vazia. tentasse criar meios de
Quando ele finalmente se levantou, arrisquei um merci, torcendo persistir na ação? O que
que ele entendesse que agradecia a companhia. Ele sorriu em estar determinado em sua
resposta e eu senti novamente formar-se a ponte entre nossas realização poderia
distâncias, um espaço de coabitação, uma fronteira porosa e bem- provocar? Repensei o
vinda. Como não havia completado uma hora de convívio, resolvi formato e em 15.09
arriscar segui-lo de longe por mais alguns minutos, indo atrás dele convidei para iniciar a
até a parada de ônibus através do parque. Enquanto o observava a ação a pessoa que me
esperar a condução, pensava da dimensão ética daquele ato: seria hospedava em sua casa –
respeitoso de minha parte seguir pessoas pelas ruas? Se o espaço substituindo o texto por
público é um espaço praticado e toda a prática propõe não apenas uma conversa informal –
uma ética de uso, mas de construção e perpetuação deste espaço, o e pedi a ela que, após
receio que pudesse provocar no outro ao realizar a ação de segui- algum tempo juntos, me
lo sem o seu consentimento era o espaço público que eu “entregasse” para alguém
acreditava, que eu pretendia construir? que ela conhecesse,
Enquanto voltava para casa, desenvolvi ainda uma reflexão de pedindo que esta segunda
ordem metodológica: o senhor recusar a apreciação do texto pessoa me mantivesse
(discurso) como introdutor, mote e delineador da relação pareceu- com ela até entregar-me
me como um presente. Ao fazê-lo, ele permitiu que ‘quem’ eu era para outra pessoa e assim
e o ‘porquê’ eu ali estava, não se impusesse sobre o ‘que’ poderia sucessivamente.
dar-se na relação. Alcançar a ação por si (o que isso tem? o que Esperava assim que o
pode?) e não pela projeção de sua expectativa (ligada a quem eu vínculo inicial garantisse
era e porque fazia aquilo, presente no texto) ligava-me a crueza do a continuidade da ação.
ato performativo, de maneira muito similar ao que propõe o Jogo ‘Como um pet?’ foi a
das Perguntas, de Fernanda Eugênio (2013). No fim, cochilar em resposta da segunda
um banco de praça tendo meu sono velado por um senhor francês pessoa e, depois de 20
embriagado, era conhecer uma França absolutamente diferente de minutos de uma
qualquer projeção que eu seria capaz de fazer anteriormente. coexistência incômoda,
Olhos fechados em sonho era eu o homem cego que, finalmente, me “devolveu”. Senti que
podia ver a França possível diante de meus olhos. era mesmo hora de
abandonar a ação.
BOITATÁ, Londrina, n. 25, jan.-jun. 2018
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As ações concebidas antes de minha partida, como as duas descritas, revelavam-se


deslocadas, percebi durante a realização, também porque foram concebidas entre mim e uma
França imaginada, uma imagem projetada sobre uma outra imagem pasteurizada e genérica de
uma França inexistente. Eu julguei erroneamente que poderia antever os encontros com um
grau de aproximação suficiente que me permitisse supor programas performativos que se
efetivassem satisfatoriamente, atendendo não apenas minhas expectativas, mas as propriedades-
possibilidades (Idem, Ibidem) das relações presentes no espaço onde eles se dariam.
Antes que eu substituísse o empenho na realização dos programas concebidos ainda no
Brasil pela criação de ações site specific in loco, segunda etapa de minha pesquisa de campo,
ainda havia duas ações a serem realizadas. A primeira, a Ação de Aniversário nº 34, despertava
especial apreço, por ter sido concebida para a comemoração de meu trigésimo quarto
aniversário. A segunda, a ação que me levou ao país inicialmente, Palhaçaria Itinerante, que
contaria com apresentações dentro do festival Les Francophonies en Limousin.
As ações de aniversário que realizei até o presente momento em meus aniversários
anteriores tinham a celebração e a promoção da aproximação entre desconhecidos como mote
principal. Nas ocasiões anteriores, sempre os realizei no Brasil e o aniversário nesta cultura é,
em geral, uma ocasião que estimula as pessoas a aproximações e gestos de ternura, mesmo
entre recém-conhecidos. Em contrapartida, as expectativas quanto a estas ações podem ser
provocadoras de estados de fragilidade e carência. Falo em sentido genérico por sentir estes
traços como parte da cultura, mas poderia dizer o mesmo em relação a mim, pelo menos no que
diz respeito a estes pontos, um autêntico representante do jeito brasileiro de fruir a data.
Promover aproximações e gestos de afeto se mostrou necessário quando eu estava na
França também pela maneira que a presença em um país estrangeiro me afetava. Em meu diário
de campo ali concebido, citei a dificuldade que era conviver em um meio onde não encontrava
“identificação cultural, satisfação das
necessidades psicológicas, território de
reverberação da subjetividade e não me
identific[ava] como o outro do outro”.
Analisando hoje de maneira distanciada
as afirmações que faço neste trecho,
tenho discernimento que, ainda que estas
dificuldades estivessem presentes em
diferentes momentos de meu cotidiano,
sua amplitude foi superestimada por um
estado psicológico fragilizado. Claro é
que por motivos como o eurocentrismo, a
mídia de massa, o acesso à informação,
etc, (alguns dos quais já me demorei
neste ensaio); existe uma ampla
possibilidade de identificação cultural e,
consequentemente, da satisfação ao
menos parcial dos demais pontos ali
listados. A transcrição do trecho não tem,
assim, nenhuma pretensão de aferir uma
verdade, ou mesmo uma hipótese
cientificamente comprovável, mas sim
mostrar como para mim eram dias
difíceis, de modo que a ação tinha por
intenção criar, no dia de meu aniversário,
uma quebra destas sensações não
agradáveis.
Para isso, elaborei e traduzi com
a ajuda de amigos o texto que estaria no
cartaz da ação. Um convite à
convivência:

BOITATÁ, Londrina, n. 25, jan.-jun. 2018


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“Aujourd'hui est le jour de mon “Hoje é o dia do meu aniversário. Faço 34 anos. Sou
anniversaire. Je vais avoir 34 ans. brasileiro, não falo francês e estou sozinho na França.
Je suis brésilien, je ne parle pas Procuro companhia para passar alguns minutos
français et je suis seul en France. comigo celebrando meu aniversário”.
Je cherche une compagnie pour Comecei a fazer o cartaz na madrugada antes de viajar
passer quelques minutes avec moi de Bondy para Marselha e deu-me tanto trabalho que
pour célébrer mon anniversaire.” precisei usar também as horas que estive viajando de
A proposta da ação se completaria trem. Copiei com cuidado as letras (pois para mim seria
idealmente com duas cadeiras dis- fácil esquecer alguma) em diferentes tipologias e
postas frente a frente; a exibição do pintei-as com canetas de diferentes cores (queria que a
cartaz até que alguém se dispusesse forma fosse convidativa e divertida ao olhar).
a estabelecer alguma relação, prefe- Por estar com a minha atenção focada quase que
rencialmente sentando na cadeira à exclusivamente no cartaz, levei um susto quando, em
minha frente; e então o fechamento uma das paradas, olhei para o lado e vi o nome da
do cartaz e a abertura a qualquer estação que desceria escrito em um painel na
possível desdobramento que pudes- plataforma. Temendo passar do local de decida
se se encaixar dentro da ideia de ce- comecei a recolher, o mais rápido que podia, meus
lebração. Foi concebida obedecendo pertences espalhados pelo vagão para descer, enquanto
aos mesmos pressupostos da ação praguejava em português o meu azar. Eu estava afoito e
Acompanhante: simplicidade, não incomodava os que estavam no entorno com minha
depender da linguagem falada, correria, mas já tinha tido problemas demais com o
trazer minha estrangereidade ao transporte para essa viagem e resolvi que não me
primeiro plano da relação e dar-me incomodaria com isso. Abracei as minhas coisas assim
tempo e espaço para fruir meu olhar que pude (malas, sacolas, cartaz, canetas) e ia me
desacostumado. batendo nos bancos em direção à porta quando uma
Pedi a pessoa que me hospedava moça disse, em português ‘Ei, onde você vai?’. Fazia
que me indicasse uma praça e, se muito tempo que eu não ouvia a língua portuguesa dita
possível, me emprestasse as cadei- por alguém pessoalmente e foi isso, e não propriamente
ras. Ela me indicou a praça Kiosque o que ela disse que me parou. ‘Para Marseille’, disse
des Réformés onde ocorria, naquele eu. ‘Pois não é aqui’. ‘Mas está escrito naquela placa!’,
dia, um festival de performance disse apontando. E ela ‘Sim, aquela placa diz qual o
para o qual poderíamos solicitar as destino do trem. Marseille é o ponto final’.
cadeiras. Chegamos lá junto com a Envergonhado, agradeci a ela. ‘Eu percebi que você era
chuva. Tive de aguardar até que brasileiro e não falava francês pelas coisas que você
estiasse (cerca de meia hora) para falou enquanto se arrumava’, completou sorrindo.
começar. Ao contrário do que (Além de tudo ela havia entendido meus palavrões!).
imaginávamos, conseguimos Terminei o cartaz alguns minutos antes de chegarmos a
apenas uma cadeira (visível no Marselha. Desci com ele na mão para não amassar e fui
canto da foto). Nos quinze minutos surpreendido por uma chuva com forte ventania que o
que ali permaneci, antes que arrancou de minha mão e o levou em direção ao vão
voltasse a chover, três pessoas se entre o trem e a plataforma rolando sobre as poças de
dispuseram a participar da ação. O água. Parei atônito esperando o pior, mas me surpreendi
principal afeto provocado foi em positivamente por ele ter parado antes do vão. Um
uma moça que, antes e depois da senhor o alcançou e o entregou para mim. A ventania
sua participação sentada na cadeira, começava a rasgar o papel, agora molhado, e eu tive a
se deteve por alguns minutos ideia de colá-lo junto a mim para protegê-lo. Quando eu
observando a minha ação de espera. o separei do tronco, minutos depois, as tintas tinham
Ao sentar na cadeira olhou-me nos diluído na água da chuva e minha blusa, que até alguns
olhos e perguntou (não me lembro minutos antes era branca, estava completamente
agora se em inglês ou francês) se manchada de diversas cores diferentes. Neste estado,
era meu aniversário e eu disse que encontrei a pessoa que ia me hospedar na cidade. Ela
oui (ou que yes?). Ela então me havia me oferecido uma carona e pego um carro
observou longamente, le- vantou- emprestado para me levar até sua casa. Entrei no carro
se, me deu um beijo na face, me achando que tudo que poderia ter dado errado naquele
disse parabéns e voltou ao seu posto dia já teria acontecido. O carro não ligou.
de observadora à distância.
BOITATÁ, Londrina, n. 25, jan.-jun. 2018
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Quando fiz para uma amiga o resumo do que havia acontecido na ação comemorativa
de meu trigésimo quarto aniversário, ela me disse ‘Quem mandou convidar o palhaço?’. Era
engraçado, por um lado, ver que parecia que a lógica de Felisberto tinha tomado às rédeas da
situação, de modo que o vivenciado não só cabia perfeitamente como roteiro de um número de
palhaçaria - tendo presente elementos geralmente utilizados em dramaturgia cômica - , como o
quiproquó (mal-entendido que desenvolve uma série de ações por consequência) e a falsa
expectativa, mas também parecia ter os pressupostos do que diz Charles Chaplin em sua
autobiografia a respeito da criação em comédia, especialmente na relação do ridículo com as
forças da natureza (em especial o que defino como ventania na página anterior, mas que poderia
igualmente ser chamado pelo seu nome específico, mistral):

Na criação de comédia, por mais paradoxal que isso pareça, o senso do


ridículo é estimulado pela tragédia; pois o ridículo, creio eu, contém um
desafio: devemos rir do nosso desamparo na luta contra as forças da
natureza... para não enlouquecer. (1965, p. 304)

Por outro lado, havia um convite para rememorar o que me trouxe até minha pesquisa
de doutoramento. A possibilidade de estudar a estrangereidade como potência de criação em
palhaçaria insinuou-se e confirmou-se repetidamente em situações vivenciadas fora do Brasil
nas quais meu ridículo provocava comicidade de maneira imprevista, como já abordado, porém
não apenas em meu trabalho artístico: na Argentina, virei ponto de referência ao ir a uma praia
trajando uma sunga de banho (peça de roupa considerada cômica naquele contexto) e motivo de
piada quando perguntei em um hotel se frutas seriam servidas no ‘desayuno completo’; no
Haiti, provoquei comicidade ao cantar, sem saber, uma música em crioulo haitiano cuja letra
ridicularizava homens brancos; em Portugal, fui ridicularizado ao me mostrar incomodado com
cadeiras novas que eram quebradas em um exercício de improvisação... 7 Já tratei do caos das
relações dinâmicas corpo-mundo no que se refere a sua constituição mais particular, como as
ações cotidianas e os processos fisiológicos, e a maneira como a sobreposição não harmônica
do espaço corporificado com o circundante pode gerar uma certa política de visibilidade.
Retomarei este ponto uma vez mais, para que possa avançar a reflexão à especificidade da
prática artística como perseguida nesta pesquisa.
As vivências listadas, a título de exemplo, no parágrafo anterior (que, ainda que
particulares, inserem-se na categoria das corriqueiras histórias de acontecimentos peculiares em
viagens) são largamente provocadas pela frustração da expectativa de que o território
estrangeiro seja uma continuidade do ambiente no qual vivemos cotidianamente.
“Aprendemos a pensar sobre tudo e depois exercitamos nossos olhos para olharem
como pensamos a respeito das coisas que olhamos”, diz Carlos Castañeda em Uma Estranha
Realidade (79). O olhar, contaminado pelo hábito – e por um certo pensamento ali construído
que pasteuriza de antemão o que se vê –, provocará uma série de projeções não satisfeitas pelo
novo espaço onde se encontra, agora, o estrangeiro.
Esse olhar reincidente (que não apenas olha as mesmas coisas, mas vê as mesmas
coisas naquilo que olha) vai formando uma certa maneira de estar e relacionar-se com o espaço
onde se habita, que chamaremos acoplamento. O acoplamento é também um tipo de
conhecimento ou habilidade, ainda que subconsciente, derivado da repetição. Uma capacidade
de conexão corpo-mundo relativamente harmônica, derivada das respostas favoráveis à reedição
de um estar no mundo: aqui, o conhecimento deriva não daquilo que é repetido (pelo exercício
da vontade em uma escolha deliberada e consciente), mas que se repete, ou seja, que gera uma
nova reedição de si enquanto parte de um conjunto mais ou menos estável trazendo em seu bojo
a ilusão de ser ao mesmo tempo natural, único e inquestionável.
É também parte desta habilidade que o processo de conhecimento derivado do
acoplamento permaneça quase que totalmente subliminar, até por uma prática evolutiva, que
7
O recorte aqui é estimulado pela fala de minha amiga a respeito do palhaço, mas poderia igualmente se
referir a uma abordagem processual, já que iniciei minhas investigações considerando a estrangereidade
como processo de criação apenas em Palhaçaria Itinerante. Só posteriormente dei-me conta que o mesmo
princípio poderia ser aplicado, de maneira mais ampla e igualmente potente, na intervenção urbana.

BOITATÁ, Londrina, n. 25, jan.-jun. 2018


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nos permite liberar o pensamento para elementos mais urgentes ou, ao menos, diferenciados na
realidade circundante. Assim, se sabe muito, mas não se sabe que se sabe, pois o conhecimento
soa como mera percepção da única realidade possível e da única maneira de lidar com ela. Não
nos tornamos conscientes do que sabemos, pois, conforme nos lembra Flusser, “a criação de
informações novas depende da síntese de informações anteriores” (idem) e a atualidade deste
conhecimento o faz ficar à sombra. Daí que, o que pode levar o organismo a conhecer o que
conhece por hábito, trazer o conhecimento subconsciente à consciência, é a vivência de uma
realidade que coloque em cheque os conhecimentos anteriores que, de aspectos (e fruição) de
uma realidade única, se tornam a observação (e construção) de uma das realidades possíveis.
Aqui se explica a sensação descrita no início deste ensaio quando falei do que fazia tornar-me
estrangeiro em cada país em que estive. Perceber que havia outras realidades provocava uma
síntese de informações, compatível com o reconhecimento de minha realidade prévia como
alheia à que eu então vivenciava, como estrangeira.
Será território estrangeiro, portanto, qualquer local ou realidade onde, entre outras
coisas, este conhecimento subconsciente derivado do acoplamento emerja como reconhecimento
de si e do que se sabe, em geral impulsionado pela quebra da unidade do hábito com a cultura.
Volto uma vez mais a citação de Castañeda e a expectativa. Sua referência aos olhos
(na sua dimensão fisiológica, e não apenas ao olhar como metáfora) nos será igualmente útil
para pensarmos para além do que se refere o termo expectativa em relação ao conhecimento
adquirido. Assim, a expectativa que falaremos aqui não se referirá apenas ao exercício da razão
stricto sensu, de considerar consciente ou subconscientemente a probabilidade de que algo
aconteça, baseada em pressupostos empíricos, mas ao acoplamento corpo-mundo que cria, por
consequência também uma expectativa fisiologicamente aferível de relação com o mundo, cuja
frustração se mostra visível, por exemplo, nos desarranjos digestórios, respiratórios,
circulatórios e nas doenças de baixa gravidade (resfriados, inflamações respiratórias, alergias)
que acometem com mais frequência em recém-chegados que naqueles que se encontram fixados
no mesmo local. Em tempo: não se trata de afirmar que haja separação radical entre os aspectos
racionais e fisiológicos da expectativa, mas, como em minha experiência como leitor de
trabalhos acadêmicos estes normalmente são ignorados em elogio daqueles, creio ser
fundamental apontá-los separadamente.
O acoplamento será, assim, uma multiplicidade de processos de afecção que fará com
que o corpo seja construído no trânsito das experiências no espaço circundante (através dos já
abordados processos de espacialidade, espacializações e sua acumulação), de modo que esteja o
mais perfeitamente preparado possível (consciente, subconsciente e fisiologicamente) para a
fruição dos processos de (re)construção de si no e com o espaço vivenciado de maneira
suficientemente harmônica para garantir a continuidade de sua sobrevivência.
O que venho tentando apontar aqui é que o corpo será sempre um conjunto de relações
e nunca algo dado ou a que se chega (seja enquanto sujeito ou matéria). Tal concepção encontra
eco na definição de Deleuze que, a partir de Espinosa, apresenta um corpo como o conjunto de
relações de latitude e longitude e suas derivações, uma cartografia:

Um corpo não se define pela forma que o determina, nem como substância ou
sujeito determinados, nem pelos órgãos que ele possui ou pelas funções que
exerce. No plano de consistência, um corpo se define somente por uma
longitude e uma latitude: pelo conjunto dos elementos materiais que lhe
pertencem sob tais relações de movimento e de repouso, de velocidade e de
lentidão (longitude); pelo conjunto dos afectos intensivos de que ele é capaz
sob tal poder ou grau de potência (latitude). Somente afectos e movimentos
locais, velocidades diferenciais. (DELEUZE; GUATARRI, 1997, p. 40)

Definido o lugar do corpo, espero que fique mais fácil compreender que a expectativa
será tudo aquilo que oferecer resistência ao mergulho nessas relações em fluxo
(presentificação). No caso do estrangeiro, a expectativa provocará especial resistência em
relação ao processo de contaminação corpo-mundo com o novo lugar e pode se dar tanto por

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aquilo que se espera encontrar (dimensão predominantemente racional) quanto à disparidade


dentre a disposição fisiológica de acoplamento a um lugar e o espaço circundante em si.
Daqui, podemos inferir dois pontos que nos ajudarão a seguir. O primeiro de que é
impossível que não haja expectativa (e assim, resistência) ao novo lugar: o deslocamento
provocará por si, um tensionamento na relação corpo/ambiente. O segundo de que é possível
que a estrangereidade se dê em contextos não geograficamente definidos como outro país de
maneira até mais contundente do que entre países diferentes: a estrangereidade é um princípio
relacional, não uma diferença de nomeação entre aqui e lá.
Abordados os dispositivos relacionais desencadeados pela estrangereidade que
derivam a construção de corporeidade, passarei a pensar de que maneira esta corporeidade pode
estar presente como elemento de uma metodologia de criação em intervenção urbana em arte.
Se o acoplamento ao lugar de origem (ou, de maneira mais ampla, as expectativas)
provoca no estrangeiro um desacoplamento do espaço presente, que o aliena do espaço
circundante, promover o acoplamento ao novo lugar contribui, em sentido inverso, para a
progressiva desestrangeirização, qual seja, a diminuição da potência de agir enquanto
estrangeiro; é nesse sentido que Flusser fala do desserviço feito por “aqueles que tentam
‘ajudar’ os refugiados a se adaptarem,” e “estão de fato enquadrando-os em sua própria ordem,
tornando-os ordinários.” (idem).
Para que possamos pensar na aplicabilidade artística deste corpo estrangeiro (ou sua
capacidade de produzir arte), é importante averiguarmos, então, de que maneira seria possível
que a estrangereidade não fosse uma fugidia e efêmera condição. Existiria alguma alternativa a
que o estrangeiro não estivesse fadado à anulação ou à recusa de sua estrangereidade (seja
respectivamente pela construção progressiva de vínculos com o novo espaço, seja pela
manutenção da alienação)?
O problema já está presente em Flusser (idem), quando afirma que “a questão da
liberdade [criativa] não é a de ir e vir, mas a de permanecer estrangeiro, diferente dos outros”,
evitando assim a sua cooptação pelo statu quo, mas, mesmo o autor não apresenta em seu ensaio
possíveis encaminhamentos para isso, se limitando a tecer observações sobre as dificuldades em
fazê-lo e algumas perguntas que poderiam orientar a busca por possibilidades.
A alternativa aparece, no entanto, em Deleuze quando define o lugar do nômade.

O nômade se distribui num espaço liso, ele ocupa, habita, mantém esse
espaço, e aí reside seu princípio territorial. Por isso é falso definir o nômade
pelo movimento. [...] É nesse sentido que o nômade não tem pontos, trajetos,
nem terra, embora evidentemente ele os tenha. Se o nômade pode ser
chamado de o Desterritorializado por excelência, é justamente porque a
reterritorialização não se faz depois, como no migrante, nem em outra coisa,
como no sedentário (com efeito, a relação do sedentário com a terra está
mediatizada por outra coisa, regime de propriedade, aparelho de Estado...).
Para o nômade, ao contrário, é a desterritorialização que constitui sua relação
com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização.
(DELEUZE; GUATARRI 1997, p. 43/44)

Tenho evitado, por hora, o uso de conceitos como desterritorialização e


reterritorialização por não me sentir ainda suficientemente próximo da totalidade de
conhecimentos que mobilizam e articulam para aferir o quanto dizem da pesquisa que pretendo,
mas me parece claro que existe uma proximidade do conceito de territorialização e seus
derivados com o que venho chamando neste ensaio de acoplamento.
Considerar que o interventor urbano em arte, interessado em trabalhar a partir do
princípio da estrangereidade deve, em semelhança ao nômade, criar condições para se acoplar à
própria estrangereidade associando-se ao espaço liso que ela ocupa, à velocidade que lhe é
intrínseca e aos atravessamentos que mobiliza, (substituindo, assim, o espaço de pertencimento
como um elemento aferível por sua materialidade por uma, parafraseando Zygmunt Bauman,
pátria líquida) não é apenas algo que vem encontrando eco em minha pesquisa (tratarei mais
sobre isso adiante), mas que pode ser identificado na prática e na maneira de dizer do trabalho
de outros artistas com os quais identifico perspectivas comuns de construção de atos artísticos.

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Peço licença para usar a definição da dramaturga Paloma Franca Amorim, por crer que
ela define de maneira muito objetiva o lugar do performer para Renato Cohen, especialmente
como descrito em seu livro Performance como Linguagem (2002). Os destaques são meus:

Para o performer e professor brasileiro Renato Cohen a definição da


performance é, com efeito, um exercício paradoxal de conceituação na
medida em que na construção performática se organiza uma busca pelo
estado desviante dos modelos cênicos que, por uma eleição da oficialidade
histórica, prevalecem na cultura dominante. Para Cohen, a performance
apresentaria um formato livre e anárquico constituindo assim uma forma
híbrida de linguagem não-nomeável que agrega em seu bojo a participação
de artistas de diversos campos da atuação estética como em ‘uma espécie de
Legião Estrangeira das artes’ [sic]. Pode-se dizer, portanto, que a
performance é uma prática estética baseada na desconstrução e
reconfiguração aleatória ou combinada de estruturas normativas do corpo, do
espaço/tempo e do discurso. (AMORIM, 2015, s.p.)

Pensar o performer como um artista interessado em um estado desviante (ao qual os


modelos cênicos funcionam como normativa, ou território de pertencimento), não-nomeável (ou
seja, pré-conceituação, da ordem da experiência), baseado na desconstrução e reconfiguração
aleatória de estruturas normativas do corpo (das quais, já apontamos aqui, as múltiplas
expectativas), em suma, como membro de uma legião estrangeira das artes é elencar pontos de
semelhança com o lugar do artista como perseguido neste trabalho.
Lugar do artista que também encontra eco nos trabalhos teóricos e práticos de Eleonora
Fabião. A performer e docente (UFRJ/NYU) brasileira é uma das mais contundentes referências
de meu trabalho artístico e da performance urbana no cenário nacional na atualidade. A respeito
de seu trabalho, transcrevo aqui um excerto de “Eleonora e o corpo performativo”, texto de
Pablo Assumpção B. Costa, publicado no livro Ações,

Ações performativas ou obras de arte do encontro como as de Eleonora


Fabião precisamente reorganizam os limites aparentemente dados e ensaiam
contextos inéditos para a coimplicação entre eu e o outro, possibilitando
assim a emergência de outros eus e, com sorte, de outros nós. (COSTA, 2015,
p. 268)

Ao reorganizar os limites aparentemente dados (o que temos por realidade) cria-se a


possibilidade de contextos relacionais inéditos não entre os sujeitos (eu/outro) inicialmente
relacionados, mas de outros eus e possivelmente outros nós. A ação de quebra da expectativa
aqui se configura imediatamente como um evento propositor de um socius (o termo é do autor)
disparado pela emergência de outros eus. Tal implicação do eu com o mundo e com a
comunidade que o rodeia que revoluciona o que se é em direção a outras possibilidades de si e
de nós é, ao fim, o lugar que Flusser identifica daquele que permanece estrangeiro:

A chegada de exilados provoca diálogos, e uma colmeia de criatividade


circunda o exilado. Ele se torna o catalisador da síntese de novas
informações. Se, porém, ele se dá conta de que sua dignidade está na
ausência de raízes, um diálogo interno acontece. Esse diálogo consiste na
troca entre as informações que ele traz em sua bagagem e o oceano de ondas
de informações que o banham no exílio. Quando esses diálogos internos e
externos geram sentido, tudo e todos se transformam criativamente. Eis o que
quis dizer quando afirmei que a liberdade do exilado consiste em permanecer
estrangeiro. Trata-se da liberdade de mudar aos outros e a si mesmo.
(FLUSSER, 2013, s.p.)

Aqui se chega à aplicabilidade artística do corpo estrangeiro como entendido no âmbito


desta pesquisa. Ainda que a este corpo nunca se chegue plenamente (fruir o espaço será sempre,
em alguma medida, projetar a continuidade deste espaço e não há como prescindir de algum
grau de acoplamento com o lugar presente e de expectativa quanto ao lugar futuro) almeja-se a
construção de uma corporeidade que, ao quebrar das expectativas, projeta-se à possibilidade
de um novo acoplamento (ou reterritorialização) que se vetoriza à própria condição de
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estrangeiro e não ao novo espaço, com vistas à construção de um ato poético que se oriente
como uma nova organização coletiva, um novo socius.
Antes de prosseguir, é importante fazer algumas considerações no sentido de evitar a
romantização deste status. Ainda que descrito com o uso de palavras normalmente tidas como
referências a vivências almejadas como liberdade, transformação e revolução, a manutenção da
estrangereidade é um desafio penoso e constante. “O que é crítico é a descoberta do quanto é
difícil não criar novas raízes”, diz Flusser. No estrangeiro descobre-se que não apenas o corpo
se enraíza no espaço (como enfatizei ao dar destaque à corporeidade estrangeira), mas o espaço
igualmente se enraíza no corpo ao mesmo tempo e com igual intensidade, convidando-o
constantemente a deixar-se cooptar pelo status quo, pela coberta do hábito. Permanecer neste
estado vai exigir o uso regular de certa violência ao que de si quer permanecer e ao que do
mundo quer cooptar, ou resumidamente, ao que quer ser mais repetição que diferença. O lugar
estrangeiro é o de ser pergunta desconfortável a si (e a dimensão deste desconforto pode se
vislumbrar, por exemplo, pela maneira como foi anteriormente nomeado: ausência de
identificação cultural, satisfação das necessidades psicológicas, território de reverberação da
subjetividade e não identificação como o outro do outro), e aos que comungam desta
experiência, pois não erigida dentro de um vocabulário que, a princípio, possa ser traduzida pela
linguagem da cultura que o rodeia. Pergunta que cria força e que mobiliza multiplicidades
enquanto assim se perpetua.
As ações listadas até este momento tinham em comum terem se configurado
mobilizando expectativas de todas as ordens: corpo, imaginação, razão, consciência e
subconsciência trabalhando juntos para a produção do que resultaria, ao final, em significativa
frustração. A frustração, que geralmente repousa dentre as vivências menos ansiadas na
contemporaneidade, nos ajudará também a quebrar uma possível idealização do status de
estrangeiro, ainda que aqui ela tenha uma abordagem positiva, sendo elemento de vital
importância nessa pesquisa.
A partir do que tratamos sobre a expectativa ao longo deste texto, talvez seja facilmente
compreensível porque considero a possibilidade de que o problema da frustração de
expectativas não resida na frustração, e a isso corrobora considerarmos sua raiz etimológica
“enganar, fazer errar” (Cf. Site Origem da Palavra), mas na expectativa que, quando em
excesso, se torna passível de ser nomeada. Estar no estrangeiro é uma frustração constante, pois,
além de nos enganar (quanto às já apontadas expectativas de previsibilidade e continuidade) o
desacoplamento também nos faz errar: nos torna errantes (sentido ético) e errados (sentido
moral) aos olhos dos outros e do outro em nós.
O corpo que atualiza um dado acoplamento com o mundo, um hábito, o faz não apenas
pela disponibilidade de habilidades em prontidão (o que fazer), mas de limitações introjetadas
(o que não fazer) referentes aos contextos nos quais se vive. É essa dupla chave que garantirá
um acoplamento eficaz com o espaço cotidiano. Se pensarmos, porém, que essas limitações
servem atualmente à sociedade de controle (me refiro novamente a Foucault), veremos como o
estrangeiro é, em essência, subversivo.
Ao tratar de intervenções temporárias no espaço urbano, Adriana Sansão Fontes define
prática subversiva como aquela que “desafia as regras vigentes, fazendo com que questionemos
aonde estas nos pretendem conduzir” (2013, p. 53). Tornar as regras vigentes em uma sociedade
passíveis de questionamento, de modo que possam ser transformadas é processo similar ao que
propõem Flusser e Fabião (segundo Costa) nos excertos supracitados. Dado que o estrangeiro
não tem a disciplina (as limitações) introjetada, torna-se alvo do controle (e como alvo torna o
poder que exerce de tácito – introjetado, sub-reptício – a visível – extrojetado) e território
desviante deste controle (espacialização de onde o seu poder escapa). O estrangeiro, ao não
reproduzir o autocontrole que se espera de alguém que ali reside, convoca os inspetores (os
vigilantes) introjetados naqueles que ali se situam, ele incluso. A frustração se revela toda vez
que essa vigilância de si ou dos outros faz ver o errado, a errância e o engano, desacordos do
que se expecta com o que se apresenta, e isso se dá no estrangeiro com muito mais frequência
do que se mostra socialmente aceito para um cidadão. E, à semelhança do comum cidadão, a
frustração mobiliza culpa, revolta, decepção.

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Ainda que haja frustração e que ela, ainda que bem-vinda, seja em geral
desmobilizadora, é importante que se revele um lado de potência nesta ausência de introjeção de
limites no que diz respeito ao fato de que tais limites são cerceadores de uma série de
possibilidades de (re)construção do espaço público por parte daqueles que nele habitam é por
isso que, parafraseando a expressão atribuída a Jean Cocteau ou Mark Twain, ao não saber (ter
introjetado) que tal ação é impossível, vai lá e faz, revelando que tal impossibilidade é um
mecanismo antes corpóreo que da realidade circundante.
Assim que voltar a falar das ações é inescapável ao voltar a falar de minhas, bem-
vindas, frustrações e das possibilidades de operar impossíveis.

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Eu já perdi a conta, mas devo ter passado das 200 apre- Eu já perdi a conta, mas devo ter
sentações de Palhaçaria Itinerante nos 10 anos de desen- passado das 200 apresentações de
volvimento desta técnica o que parece, mas, convenha- Palhaçaria Itinerante nos 10 anos
mos, não é lá grande coisa. A prática vem me ensinando de desenvolvimento desta técnica,
que é sempre tempo de ser surpreendido pelas possibili- o que parece, mas, convenhamos,
dades que um palhaço itinerando pode trazer à tona. não é lá grande coisa. O número de
No dia seguinte à primeira ação fui escalado para segun- três dígitos apresenta sua perversi-
da apresentação dentro do festival. Era 22/09 e, diferen- dade ao construir em mim tanto
temente do que costumo fazer, a intervenção aconteceria uma ilusão de que existe algum
à noite, e, igualmente diferente, em uma quadra de bares grau de confiabilidade na qualida-
e restaurantes frequentada por jovens e adultos. Um tanto de das apresentações vindouras que
pela frustração do dia anterior, um tanto pelo acumulado estivesse ligada à reprodução de
de diferenças, baixei a minha guarda ao acontecimento momentos valorosos deste his-
vindouro e escrevi no meu diário “minha maior meta hoje tórico (ainda que a improvisação
é estar junto. Simplesmente estar, ouvir, deixar-me seja traço fundamental desta técni-
envolver pela singularidade do momento. Res.pi.rar.” A ca), quanto uma grande exigência
noite, antes de sair para a rua, fechei os olhos e senti meu em relação a qualidade do resulta-
coração batendo forte. Respirei fundo e saí. Desde o do (expectativa intensificada em
primeiro olhar busquei “parar para olhar” (BONDÍA, eventos como festivais, especial-
2002, p. 24) o que havia no entorno sem forçar o que mente os internacionais).
pudesse acontecer e me surpreendi quando jogos inéditos Assim como ocorreu anteriormente
começaram a surgir, fruto não apenas de minha maneira no Haiti, a primeira intervenção de
ridícula de lidar com o espaço, mas da peculiaridade do palhaçaria realizada no festival
encontro: e um guarda-chuva que era espada matou um francês deixou, ao seu fim, uma
carro na calçada enquanto sua motorista gargalhava lá de enorme frustração, uma sensação
dentro, uma cestinha de pão virou quipá e os seus donos de não estar à altura do aconteci-
reconheceram sua cômica sacralidade, e os encontros se mento que acabara de se dar e eis
davam, e os sorrisos se abriram e pouco a pouco era que me vi em um exercício quase
possível estar verdadeiramente junto. compulsivo de rememoração tão
Isso até que um senhor disse non. Eu tinha comigo algu- minuciosa quanto possível do
ns folders do festival e tinha acabado de oferecer a ele e vivido em busca dos erros cometi-
ele me olhou nos olhos e disse ‘não’. Talvez eu tivesse dos. E encontrei os mesmos daque-
ido embora em outra ocasião, mas algo ali revelava uma la outra ocasião: a interrupção dos
certa abertura e eu arrisquei sentar ao seu lado e cultivar jogos antes do fim por/e falta de
o encontro. Repeti algumas vezes non! Olhava o folder e escuta ao que ocorria ao meu
ia desdenhando dele a cada non, distanciando-me das ex- entorno; muito tempo sem trocar
pectativas e aproximando-me desse senhor desconhecido olhares com o público (sem trian-
de quem, olhos nos olhos, ouvi non. Foi quando reparei à gulação) e não deixar que o jogo se
minha frente, parado, um grande cachorro do bar em desenvolvesse naturalmente, fa-
posição de alerta. Eu já tive uma série de pequenos zendo uso preferencial de roteiros
contratempos com cachorros, especialmente quando se já conhecidos. Ou seja, havia pou-
assustam com as roupas ou os modos exagerados do Fe- ca abertura a ser atravessado pelo
lisberto, e aquele era particularmente um cachorro gran- acontecimento em si, pouca pre-
de, então senti a necessidade de prosseguir o jogo com sentificação. Havia medo de que a
cuidado. Eu dizia non e balançava o folder e o cachorro diferença que o estrangeiro propor-
seguia o folder com o olhar. Surpreso, indiquei com o cionaria ao encontro e ao encami-
olhar aos que estavam a minha volta a reação do cachor- nhamento dos jogos, pudesse des-
ro e arrisquei estender vagarosamente o braço em dire- configurar minhas possibilidades
ção a ele, oferecendo o folder e dizendo Francophonies, de lidar com o acontecimento ao
non! O cachorro abriu a boca vagarosamente e recebeu o ponto de que eu perdesse a capaci-
folder com gentileza, e, parecendo ter entendido que o dade de construção compartilhada
momento era de virar-se contra o folder do festival, o da experiência e fosse lançado à
colocou com cuidado entre as patas e o estraçalhou em contemplação. Ao ignorar essa
muitos pequenos pedaços, sob o olhar incrédulo dos que diferença eu recusei justamente
estavam a nossa volta. Voilá le impossible! esse outro que poderia me tornar.

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Na terceira apresentação eu já tinha alguma Na quinta apresentação eu já tinha alguma


percepção da política de visibilidade dos es-
percepção de como a inédita maratona de seis
paços públicos de Limoges e de seus buracos-intervenções em quatro dias era quase
negros (metáfora de trabalho que tenho usadoimpraticável, mas foi nas horas que
para referir-me aos elementos da cidade cujaantecederam a última ação que me dei conta
visibilidade é baixíssima ou nula, que as exatamente de quanto eu estava corporal/
regras tácitas de sociabilidade nos ensinam a
mentalmente abala- do. Fraqueza, dor de
não ver, em geral divisíveis em objetos cabeça e enjoo fizeram com que eu fosse todo
imóveis: lixeiras, bocas de lobo e demais o trajeto percorrido de carro do hotel para o
locais de acesso à estruturas subterrâneas, lugar de apresentação entre o desejo de que ele
caçambas de entulho; móveis: caminhões de fosse infinitamente longe para nunca chegar e
lixo e de limpeza urbana, veículos de de que chegasse imediatamente para que tudo
catadores de recicláveis; além da população parasse de rodar. O lugar escolhido pelo
da rua, e, eventualmente, bêbados, por- festival para esta apresentação era um dos mais
tadores de distúrbios mentais, trabalhadoresdistantes do centro e o menos prestigiado por
informais, artistas, estrangeiros, devotos eapresentações artísticas dos quais intervi: um
outras posições sociais desprestigiadas na bairro residencial de imigrantes de baixa renda,
organização da população urbana), espaços bastante esvaziado e esquecido por políticas
reservados ao que se permite ‘existir não públicas. Em termos genéricos, Le Vigenal era
existindo’, cuja existência e a convivência se
bem familiar, já que muitas vezes estive
admitem justamente pelo não com-viver. Em intervindo em zonas similares no Brasil, não
sentido inverso, à semelhança de outros apenas por coincidência, mas por interesse de
espaços urbanos que já intervi, notava que ali
fugir dos locais tradicionalmente escalados
Felisberto ganhava uma certa posição de para receberem apresentações culturais nos
destaque na hierarquia de visibilidade urbana
quais a maneira de se portar diante da “arte”
por conta, além da disseminação da máscara costuma estar mais docilizada. Tal docilização,
do palhaço no ocidente, do uso da discutida por Guy Debord em Sociedade do
exacerbação do meu ridículo e vocalizações/ Espetáculo, é antagônica ao trabalho como
gestualizações exageradas o que, em geral, busco, estabelecendo critérios de qualidade da
convida olhares e interesse. experiência (sempre mediada) ligadas ao
Eis que cada vez mais encontro capital, como valor de compra e visibilidade,
oportunidades de tensionar essas duas justamente os valores que eu, ao sentir-me
condições estabelecendo jogos que aumentam adoentado, apelei ao chegarmos ao bairro.
o grau de visibilidade de um espaço ou uma Perguntei se a produção achava mesmo que
condição de pouco prestígio na medida em seria o caso de intervir ali, argumentei que as
que ajo a alteração dessa política, tomando-o
ruas estavam vazias e que “se o festival queria
por algo de maior prestígio pela construção de
visibilidade...”. Perguntei se tinham certeza e
um laço subjetivo impresso no jogo proposto.me falaram que queriam estar ali e não sabiam
Corpo-território que ao habitar uma falha, um
como, que a região era desprestigiada por
vazio desse espaço revela-o descontínuo e, ao
apresentações e se eu poderia tentar. E acabou
fazê-lo parte presente e ativa no jogo, sendo um grande presente perceber que a
implode esta descontinuidade, dando à cidadeestrangereidade não precisa da força reservada
uma fluência incomum. ao lugar de destaque, ao protagonista, pelo
E é assim que abri algumas lixeiras atrás deespetáculo para estar e desencadear afetos. Eu
bebidas geladas, propus uma gaitada para o só podia dar meu corpo como território. E não
‘descanso’ de senhoras sentadas no chão das foi fácil lidar com crianças que demonstravam
feiras ao lado de copinhos com fome de autoridade tomando meus objetos, mas ao fim
moedas que em um passe (quase) de mágica estávamos ali, convivendo e aprendendo que
engoliam provisoriamente celulares dos cantar nomes era uma boa maneira de estar
passantes e respondi ao convite para fotos juntos. E estávamos, até que disse a produtora
convidando a contribuir os que estavam do festival ‘Termine! Agora!’ e eu cedi
coincidentemente por ali, católicos e pensando em TerrorismoGangsAmeaças e era
muçulmanos, estrangeiros e nativos, negros esó a, para mim improvável, chegada de um
brancos, todos sorrindo para o registro dos rapaz que, com transtorno mental, tinha larga
belos segundos que passamos juntos. fama de ser violento. Isso eu só fui saber
depois, enquanto lamentava o precoce fim.
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Se um dos grandes marcos das apresentações de palhaçaria que


realizei no Haiti foi a emersão do caráter potencialmente subversivo
do homem branco que, ao invés de ocupar o lugar de referência e
daquele a quem se deve respeito a qualquer custo (lugar até hoje sus-
tentado, não apenas no país, por um racismo altamente estrutural), es-
tá no lugar daquele a ser ridicularizado; o equivalente, quase imediato
na França teve a ver, quem diria, com a tatilidade de Felisberto.
Em um dos meus primeiros dias na França escrevi no meu diário “o
francês é um povo que não abraça”, era uma constatação derivada
não apenas da observação distanciada, mas estimulada por uma falta,
uma sensação de ausência que contribuía à ampliação da solidão que
já me ocorria ao me ver em um país em que estabeleci apenas
relações superficiais e condicionadas a contratos temporários de
convivência, ainda que agradáveis, entre recém-conhecidos.
Eu já havia lido a respeito da quantidade de abraços em minha cultura
ser superior à média, mas mesmo no Brasil tendo a ser mais afeito ao
contato físico com outras pessoas do que é tido como corriqueiro.
Essa característica, que me difere do homem médio não deixa de ter
um traço de ridículo e, sendo o ridículo a matéria base com a qual são
construídos os palhaços na escola que me orienta, este traço se mostra
ainda maior quando atuo de palhaço. Felisberto é extremamente tátil,
o que significa dizer, por exemplo, que ele se despede de quase tudo
com o que estabelece jogo com um longo e afetuoso abraço, e isso
inclui homens, mulheres, crianças, animais, postes, carros, lixeiras...
Tal característica é tão intrínseca ao meu estado cotidiano e tão
fundamental ao meu palhaço que eu não me dei conta nem antes e
nem durante quase toda a primeira intervenção de que isso poderia
mobilizar tantos afetos como depois constataria. Isso mudou quando
eu peguei nos ombros um rapaz adolescente e ele lançou os braços
não para mim como estou acostumado, mas para longe de mim.
Tomei o caso inicialmente como uma reação pontual, um sintoma de
que ele não havia apreciado a proposta. Rapidamente o coloquei no
chão e estabeleci contato visual para averiguar o quanto a minha
iniciativa o teria desagradado, mas ele não parecia realmente incomo-
dado, ou seja, não parecia haver problema com tirá-lo do chão, desde
que ele pudesse não colocar as suas mãos em mim. Para ele parecia
mais importante não me tocar do que garantir sua segurança.
O estrangeiro tem, ao menos à priori, dificuldade em estabelecer a di-
ferença entre idiossincrasias e os traços da cultura que se manifestam
no sujeito e toma continuamente um pelo outro, de modo que eu só
fui dar-me conta do potencial revolucionário do toque quando come-
cei a ser separado pelos pais dos abraços que trocava com as crianças
ou quando o toque era evitado em situações onde há muita proximi-
dade física como as poses para foto. Foi então que eu comecei a
investigar maneiras de tornar isso jogo. Por diversas vezes Felisberto
tornou-se um jocoso monstro que tinha o superpoder de abraçar pes-
soas e fez diversos marmanjos correrem rindo de sua volúpia abraço-
sa, em outras o toque passou a ser precedido de um longo olhar que
firmava um pacto de confiança (se eu era capaz de dar-me à confian-
ça desta intimidade para um recém-conhecido, porque ele não poderia
fazer o mesmo?). Após esse primeiro momento, o toque passou a ser
uma revolucionária maneira de criar fortes laços de confiança em um
tempo relativamente curto. Eu, abraçador compulsivo no Brasil,
nunca achei que isso pudesse ser uma habilidade tão revolucionária
para a criação de laços com recém-conhecidos.

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Ao longo deste ensaio por diversas vezes apontei o fato de encaminhamentos


imprevistos se mostrarem mais exitosos do que os que pretendia tomar ou mesmo intuía a
princípio que seriam possíveis. A frequência e pertinência destes encaminhamentos para o
prosseguimento das ações empreendidas no âmbito desta pesquisa apontam a importância de
que sejam considerados como algo mais do que golpes de sorte. Por acreditar que tais
oportunidades são derivações da experiência assim como as consequências que possam dela ser
anteriormente previstas, comecei a estudá-las ainda no meu mestrado “Olha o Palhaço no Meio
da Rua!” – O palhaço itinerante e o espaço público como território de jogo poético, defendido
na Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, Campinas, São Paulo, em 2009.
Naquele momento me interessava principalmente buscar maneiras de compreender este
fenômeno e as condições para o desenvolvimento da disponibilidade físico-corpórea para o
acolhimento dessas e engajamento com as oportunidades surgidas no curso das ações em
campo, também de intervenção urbana. A essa disponibilidade dei o nome de passivatividade.
Passivatividade configura-se como a postura de busca pela justa medida entre uma ação
engajada e disponível (no caso, aos encontros com a rua e seus elementos constitutivos), uma
abertura combinada com uma prontidão para a composição com o acontecimento que nos
atravessa e suas derivações e deriva justamente da percepção da limitação de minha capacidade
de produzir acontecimentos e da força oriunda, em contramedida, da produção com os
acontecimentos que se davam no espaço onde atuava.
A filósofa Viviane Mosé, na palestra “Nietzsche”, ocorrida no evento Café Filosófico,
descreve, ao tratar da autonomia do gesto para Nietzsche, um entendimento próximo desse
fenômeno. Após afirmar que a ideia de liberdade não pode ser considerada como a autonomia
do sujeito, no sentido de que este, quando livre, poderia realizar o que quisesse, fala do que
entraria neste lugar:

quando eu fico olhando para a lógica do mundo eu posso perceber a hora em


que existe uma vaga no espaço, quando eu vejo que tem o espaço eu encaixo
o meu desejo no desejo do acontecimento. Aí eu não faço mais nada porque a
força que faz a terra girar em torno do sol é a força que vai fazer o meu
desejo acontecer. Essa faz meu desejo acontecer. Então, se eu quero que um
desejo meu aconteça, eu tenho que encaixar o meu desejo no desejo do
acontecimento. O que que é o desejo do acontecimento? É a soma da política,
com o clima, com a geografia, com tudo que rege o mundo. Então a ideia de
liberdade [popularmente] é a ideia de autonomia do sujeito, a ideia do
homem-cientista que vai onde quer, que faz o que quer. Não faz! (34:04 a
34:52)

Mais do que um meio de realização dos desejos, a passivatividade é uma estratégia de


sobrevivência coengendrada. Se a atividade pura é crer-se manipulador dos acontecimentos e
buscar matar o mundo como coautor da experiência entrando, literalmente, em guerra com o
mundo, não apenas invencível, mas sob a ameaça da existência daquele que a busca, a
passividade é dar-se ao mundo e sumir ao ser por ele tragado, é deixar que os acontecimentos se
imponham sobre nós, anulando-nos. Para existir com o mundo e o “desejo do acontecimento”
que ele manifesta, é necessário buscar o equilíbrio entre uma passividade ativa e uma atividade
passiva, uma passivatividade.
Pensemos na aplicabilidade desta postura à prática do surfe. Ao surfista dentro d’água
não é possível impor sua vontade sobre o mar, o excesso de atividade na produção do fenômeno
que lhe permitirá surfar será entrar em guerra com o mundo e não apenas será uma atitude
frustrada como colocará em risco sua própria existência (haverá cãibras e até mesmo
afogamentos se ele insistir na frustrante tentativa de produção de ondas, por exemplo); por outro
lado, a passividade frente a uma onda real que venha ao seu encontro não apenas não provocará
o surfar da onda, mas pode, igualmente, gerar seu afogamento, sua eliminação.
Esse exemplo nos ajudará à compreensão da disponibilidade corporal da
passivatividade, como uma passividade construída. Dizer que o surfista tem de estar em uma
postura passivativa é dizer que sua atitude de espera é uma disposição perceptiva de que sua
corporeidade se engaje no processo de produção do acontecimento tão logo e o mais

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coadunadamente possível. Para isso ele tem de progressivamente ir engajando não apenas sua
macropercepção, mas inclusive, sua micropercepção para leituras e construção de aberturas ao
mundo no qual ele está, literalmente, imerso. Mesmo antes que se torne plenamente consciente
o seu corpo tem de ser capaz de reagir aos estímulos oriundos dessa relação o que, ao fazê-lo,
garantirá progressivamente a eficácia de seu intento.
A passivatividade é aplicável tanto a uma postura interna a cada ação executada, ou
seja, a ser perseguida durante sua realização, quanto à construção de novas ações, pertinentes
àquele espaço-tempo e é em ambas as funções que ela contribuiu para as ações seguintes, que
finalizam este ensaio. Tal postura é duplamente exercitada em derivas realizadas pelas cidades
nas quais me encontro. Derivas são caminhadas a esmo que visam quebrar a lógica funcionalista
da cidade como espaço de passagem e colocar o foco na experiência de encontro com o espaço
urbano a partir de caminhadas cuja lógica encontra-se no próprio caminhar através do
desacostumar o olhar do hábito em direção à cidade real em processo análogo ao que tenho
defendido aqui na construção da estrangereidade. Em tais caminhadas, realizadas nessa pesquisa
em Bondy, Marselha e Paris, é possível habitar as aberturas que transcendem a ilusão da cidade
pasteurizada, capturar a oportunidade de relação com a cidade real e exercitar o olhar para os
atravessamentos vislumbrando as demandas oriundas do encontro com cada singularidade.
Dentro da metodologia que venho experimentando, evito tanto quanto possível ceder
aos impulsos oriundos desta postura que divirjam do caminhar, de modo a permitir que eles se
tornem conscientes não apenas como impulsos, mas quanto às questões que carregam e
estabelecerem de maneira clara seu raio de afecção, de modo que eu possa construir, em
momento sucessivo, um programa performativo e executá-lo.
Antes de tratar do surgimento e desenvolvimento da ação C’est Bondy, faço referência
ao nome. Escolhido posteriormente, o nome da ação vem dizer justamente da sensação de que,
ao realizá-la construída a partir da deriva e do olhar desacostumado (que não reconhece na
cidade as cidades anteriormente vividas ou projetadas, mas vê a cidade em sua singularidade)
pude, finalmente, entrar em contato com a cidade de Bondy a partir da singularidade do
encontro e só então pude dizer c’est Bondy: esta é Bondy!
A história da ação, no entanto, começa antes da deriva realizada na cidade de Bondy e
foi registrada assim em meu diário de campo

Dia desses saindo de casa dou de cara com um colchão de casal,


metade numa calçada, metade na rua. Puxei ele para fora da rua – não,
não foi [assim] tão rápido – coloquei naturalmente as duas mãos nele e
imediatamente senti uma tensão no ar. A pessoa que andava ao meu
lado na calçada não olhou diretamente, acho, mas acelerou o passo; a
pessoa do outro lado da rua olhou e ralentou o passo. Me senti
desconfortável, não arrumei tanto quanto pretendia. Deixei ali, meio
dobrado, descansando.

Achei importante reproduzir o relato na tentativa de trazer à discussão, de maneira mais


próxima possível, o impacto gerado em mim pela mobilização dos que estavam à minha volta e
revelavam a mim, por suas reações, o desacerto existente entre uma ação que me era natural
(abaixar-me para mover o colchão para fora da rua) do que era visto como esperado dentro das
regras implícitas de sociabilidade (digo implícitas, pois ainda que a aversão ao toque de objetos
abandonados – especialmente quando são identificados como lixo – seja coibida na maior parte
das sociedades atuais, não há nenhuma lei que registre proibição ao fato, não é, portanto, uma
regra explícita). Minha estrangereidade, minha não introjeção desse limite, minha corporeidade
desviante ao menos potencialmente mobilizava impossíveis, tornava visíveis não apenas regras,
mas condições de sociabilidade (plataformas de convivência), propunha outras maneiras de
viver juntos e convocava a discussão das regras vigentes.
Segundo minha percepção, o colchão, se não parecia novo ao menos estava limpo e em
condições de uso e, parece-me que se estivesse em uma zona urbana residencial de classe
média-baixa, como ali estava, só que no Brasil, suponho que possivelmente teria sido acolhido
por algum morador do entorno ou alguém em situação de rua (principalmente levando em
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consideração que o colchão já estava ali há alguns dias). Ou seja, ao meu corpo brasileiro ele era
perfeitamente tateável (novamente o tato!) e por isso a naturalidade de minha ação, a disposição
para tocá-lo e movê-lo. Com a reação das pessoas ao meu entorno – combinada com uma
prontidão que Flusser igualmente identifica como natural ao estrangeiro – passei imediatamente
a sentir que tinha feito algo errado e eu prontamente acatei as mudanças que senti serem
necessárias. Após esse fato, no entanto, eu tinha outra disposição para a ação. Uma hesitação se
instaurara, derivada da percepção de uma clara infração das regras vigentes.

Eu decidi não mais tocar os objetos que Eu decidi tocar os objetos que encontrava na
encontrava na rua. Durante dois dias rua. Ou melhor, da singularidade do encontro
encontrei diversos objetos com as mesmas de minha estrangereidade com a especificidade
características: abandonados nas calçadas, daquele espaço emergiu essa possibilidade de
aparentando estarem em tal condição de coabitação entre nossas diferenças e eu decidi
uso que por vezes me perguntei se eles não engajar-me o possível para lhe estar à altura.
haviam sido esquecidos ao invés de descar- Durante as três ou quatro horas de deriva reali-
tados (nesses casos minha ética contribuía zada na cidade, no que viria contribuir definiti-
para que eu não interagisse com eles). vamente à construção desta ação sitespecific no-
Depois desse período, resolvi perguntar tei que os objetos encontrados nas ruas me re-
aos moradores da casa onde eu me metiam sempre a imagens de como compunham
hospedava qual a razão que eles atribuíam o espaço antes de serem descartados, ou seja, de
a presença de tantos objetos nessas quais configurações espaciais estavam im-
condições nas ruas e eles me responderam pregnados e quais possibilidades de relação su-
desconhecerem sua existência. Para minha geriam entre si e com eventuais corporeidades
percepção os objetos criavam pilhas que humanas. Outro atravessamento se deu em rela-
chegavam por vezes a impedir a passagem ção ao que registrei em diário como “a inércia
dos pedestres, para a percepção deles eu inexorável do velho continente”: as pessoas que
nem ao menos poderia interagir com os transitavam comigo nas calçadas pareciam não
objetos, pois eles não existiam. Das duas ver os objetos que repousavam na mesma posi-
uma: ou eu estava equivocando-me ou o ção por dias (essa impressão era possível dado
olhar do hábito impingia-lhes um manto que em algumas das ruas que fiz a deriva, eu já
sobre a cidade real (uma outra maneira de havia estado anteriormente), tudo parecia que-
pensar essa segunda hipótese é retomar- rer, peremptoriamente, ficar. Lembrei do moti-
mos não Flusser, mas Chklovski, que, ao vo que me tornou ridicularizável em Portugal e
tratar da percepção, aponta que esta gera compreendi o potencial revolucionário do
“de maneira inconsciente ações automáti- quebrar dos objetos, ao menos como modo de
cas, onde não se vê o objeto, mas simples- dar-lhes movimento (nesse sentido havia algo
mente o reconhece, na sua superfície.” de revolucionário também na minha rotina
Apud. Toledo, p. 43) ao não ver o objeto desastrada, no meu corpo ainda inadequável).
não é possível entrar em contato com ele, No dia seguinte, realizei o seguinte programa
dar-se conta de sua existência. performativo: derivar; selecionar objetos que a
Eu havia decidido não mais tocar os mim se revelassem como reaproveitáveis;
objetos, mas quando eu estava observando reorganizá-los no espaço e entre si segundo as
o senhor da conclusão da ação Acompa- possibilidades de combinação neles contidas;
nhante feita em Bondy esperar o ônibus, fotografar; e abandoná-los na nova organização.
encontrei aos meus pés um carrinho azul Se até então minha existência naquele bairro re-
de ferro e algo na minha infância me fez pleto de imigrantes tinha, em geral, pouca visi-
pegá-lo. Naquela noite eu mostraria o car- bilidade, ao começar a ação reencontrei o lugar
rinho àqueles que me hospedavam se não de tensionamento e potência de construção de
tivesse algum receio que eles achassem ondas de afecção similar ao que encontrara an-
que eu o havia roubado. Eu decidi então teriormente ao mover do colchão, o que desen-
que tocar os objetos era mais importante cadeou um processo de mobilização de paixões.
do que não os tocar, que havia força e atra- Ainda que estivesse o mais atento possível à re-
vessamento nisso, que havia potência de alização do programa, diversas pessoas reagiam
acontecimento e era importante respeitá-la. emocionalmente a mim e a ação, tomando posi-
Só ainda não sabia bem como. ções que pareciam religar-lhes ao espaço real.

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Começo a ação pelo


colchão, que estava logo em
frente à casa onde me
hospedo. Enquanto estou
investigando sua melhor
posição, um senhor de
roupas simples para curioso
do outro lado da rua.
Quando o olho ele parece
sorrir pelo cuidado que eu
dedico ao colchão. Me
acena e se vai.

Minha manipulação dos materiais


Uma mãe em bicicleta
parece torná-los mais tateáveis.
traz uma criança de colo
Várias pessoas se aproximam em
na cadeirinha acoplada ao
diferentes momentos para olhar
guidão. Ao ver a
rapidamente as pilhas comigo e
reorganização quase
se vão em seguida. Uma senhora
finalizada, solta uma
por um momento se interessa pela
expressão de admiração e
minha mochila, deixada junto à
interrompe o caminhar
pilha. É dela a iniciativa de
para mostrar à filha o que
buscar meu olhar para saber se a
se tornara a, outrora,
bolsa me pertencia. Ela se
pilha de lixo.
desculpa e ri do próprio interesse.

Um menino de
aproximadamente 10
anos destaca-se do grupo
de crianças com o qual
brincava e aproxima-se.
Ele parece maravilhado.
Mantém-se imóvel, a
boca aberta enquanto
observa silencioso a ação
por vários minutos.

Um senhor atravessa a rua em


minha direção e começa a falar
comigo acaloradamente. Eu
sorrio acolhendo sua fala, mas
sem entender muito além de que
está bravo, supostamente com o
lixo. Assim permaneço até que
ele me cobra uma resposta. Eu
digo que não falo francês, mas ele
não acredita, insistindo. Então
começo a falar português e ele faz
uma expressão assustada. Diz
algo como ‘Bem’... e vai embora.

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A pertinência da ação vai se revelando por seus próprios critérios. Neste caso, a
mediação de meu olhar estrangeiro e a ação desencadeada pareceu estabelecer uma ponte que
correlacionava espaço e sujeitos, atravessando a coberta do hábito, confrontando a tendência à
invisibilização das pilhas de objetos e sua inércia.
O rearranjo das posições dos objetos poderia ter passado sem alterar
macroperceptivelmente os usos e práticas do espaço público pelos transeuntes, o que se deu, no
entanto, foi que a busca pelo arranjo estético trouxe certa potência ao convidar o olhar (o lixo
deixava de ser algo a ser ignorado passando a algo a ser visto), atuando sobre a política de
visibilidade dos entulhos e trazendo algum movimento às concepções de realidade, que agora
passariam a incluir aquele uso/ocupação do espaço público e seus objetos, e à ideologia
impregnada na escolha anteriormente tomada (pelo acordo social que presenciei até então:
ignorá-los) que pela pluralidade de usos pôde tornar-se consciente como escolha.
De maneira similar ao que defende Costa quando diz que “a experiência estética (com o
que de alteridade ela pode tornar sensível) interpela ideologias de sujeito e de mundo e a rigidez
das formas do sujeito e do mundo tal como os conhecemos (ou acreditamos conhecer)” (op.cit.,
p.265), a ação parecia desencadear interpelações e convocar a um posicionamento (ou a
consciência desse posicionamento) de modo que o espaço por si e a partir da relação com os
passantes disparava afetos em cadeia.
Dizer que o espaço por si convocava afetos (e isso se revela nas ações dos transeuntes
listadas, que sempre se direcionavam de alguma maneira ao espaço) é corroborar com a tese de
Fontes quando afirma que “A intervenção temporária tem essa capacidade de colocar o espaço
‘em ação’, em movimento.” (op.cit, p. 53) A interação com um espaço que passa a ser coativo à
experiência na urbe tanto ‘no’ quanto ‘para além’ do evento estético e por regras que se
constroem na relação é, por fim, também um gesto no sentido de superar a alienação da vivência
na urbe pela convocação à participação ativa em sua construção permanente e que tende ao
encontro da “[...] autêntica poesia, isto é, a construção livre da vida cotidiana.” (2002, p. 99),
defendida pelos situacionistas em textos como Banalidades Básicas, de Raoul Vaneigem (de
onde o excerto foi tirado).
Logo após a realização desta ação viajei à Marselha como estava previsto desde o
rearranjo de datas após a perda da viagem de trem no meu primeiro dia na França. Partir não foi
agradável. Após um período de desencaixe com as demandas e possibilidades da cidade, a
realização da ação C’est Bondy me deu, finalmente, desejo de ali ficar, como se a ação
funcionasse como a construção de uma metaestabilidade entre mim e a possibilidade ‘surfável’
neste encontro com a cidade. Perguntava-me quantas diferentes pilhas de materiais poderia
encontrar, quais arranjos poderia tornar visíveis e quais os possíveis desencadeamentos estes
poderiam gerar. Mas, era hora de partir.
De fato, o laço com a cidade é um movimento de desestrangeirização e, nesse sentido,
partir também é uma forma de permanecer estrangeiro. Mas mesmo o partir estrangeiro dá-se
em dinâmica própria, isso porque este não é apenas um desenraizado, como tem outra fruição do
espaço em relação à dinâmica de mobilidade dos que ali residem. Assim, é comum tanto que
sua mobilidade se restrinja, ainda que não esteja sendo constrangido a isso, a espaços exíguos e
não comumente utilizados para serem habitados por mais de alguns momentos (espaços como a
rodoviária, o aeroporto, os órgãos do setor de imigração de um país ou a embaixada de seu país,
ou ainda mesmo, o hotel) ou que salte enormidades (indo, justamente por desenraizado, quase
ou sem encontrar, em si, resistência, de uma cidade, de um estado, de um país a outro), seu
espaço transcende, desta forma, dinâmicas e contenções de uso dadas e incorporadas por
aqueles que ali residem. Porém, sua vivência no espaço tem uma fruição em multiplicidade,
pois, ao contrário dos que habitam e categorizam em si os espaços como dados e estáveis, com
ele não param de agir novos espaços de cada espaço, novos sentidos, novas interpenetrações, de
modo que de um espaço acolhedor por vezes emerge um absolutamente hostil e vice-versa. Até
que finde sua estrangereidade, o espaço não deixa de lhe escapar, o convida e o expele
concomitante e mutuamente (cada espaço em função de outro, do devir), o põe em velocidade.
A não incorporação do espaço a partir de suas dinâmicas sedimentadas também explica,
em parte, o temor que o estrangeiro provoca, na medida em que sua corporeidade não se mostra
comprometida com a manutenção do mundo como se apresenta aos habitantes. Seu corpo não o

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perpetua justamente pelo fato de que as ações formadoras e perpetuadoras do espaço como
construído pelos habitantes escapam a ele e ele a esse mundo. Assim, o mundo ao seu entorno
não cria nem contiguidade, nem continuidade em seu corpo-território.
Em Marselha eu retomava parte considerável de minha estrangereidade. Diversas
impressões que eu havia tido em Bondy e Paris e atribuía a uma suposta identidade nacional se
liquefaziam nas particularidades do lugar, deixando-me novamente à deriva. Após recorrer às
ações já descritas (Ação de Aniversário n.34 e Acompanhante), concebi e realizei, a partir de
procedimento análogo à ação C’est Bondy, a ação posteriormente denominada C’est Marseille.
Eu estava hospedado no bairro de Panier, parte antiga da cidade que congrega
residências e pequenos comércios e cuja arquitetura é marcada por diferentes escolas de
diferentes períodos históricos, dando certa perspectiva da tradição milenar daquela povoação
urbana (segundo relatos de habitantes, confirmados em sites na internet, os primeiros resquícios
da presença humana na região são pré-históricos e a arquitetura traz fortemente uma impressão
de coexistência, senão de todo este período, ao menos dos últimos séculos).

Duas fotos do bairro Painer, em Marselha. Convivência de diferentes estéticas arquitetônicas. Fonte: internet.

Quando realizei a deriva (principalmente pelo bairro Painer, mas não só), diversas vezes
fui atravessado por um impulso tátil-cinético de investigar por / para quais corpos aquelas
estruturas arquitetônicas foram concebidas, estabelecendo posições e movimentações no espaço
cujos acoplamentos elas sugeriam ou as composições elas tornavam possíveis pela dinâmica de
vazios e cheios que as suas formas criavam. Investigação esta que, é bom que se diga, não era
executada por nenhum dos passantes observados, focados que estavam em um uso funcionalista
e padronizado da cidade, em geral, pelo exercício dos usos para o qual os elementos da cidade
foram concebidos, com raras exceções prováveis como a presença de pedintes ou alterações de
fluxo por conta de obras públicas ou privadas.
Se algumas vezes tais impulsos foram acolhidos como sugestão de trajetos pela cidade,
por outras, sempre que envolviam alguma ação diferente de uma maneira ou um sentido para o
caminhar, busquei interromper a passagem do impulso à ação de modo que sua constituição se
delineasse mais claramente. Foram justamente estes impulsos que conduziram a construção da
intervenção sitespecific C’est Marseille, que foi executada a partir do seguinte programa
performativo: transitar pela cidade sendo guiado pelos convites de acoplamentos e composições
táteis e cinéticas que os elementos arquitetônicos da cidade me fazem; quando me ver em uma
posição inusitada observar atentamente o entorno por aquele ponto de vista, atentando ao que
ele me permite ver diferentemente das posições já tomadas; atentar às janelas e portas por onde
possa ser observado; sempre que me ver observado, cumprimentar a pessoa e aguardar o retorno
de modo a tentar compreender como minha ação lhe reverbera; me mover apenas ao final da
troca de olhares e/ou apenas quando guiado por um novo convite do espaço.
A fotografia, como parte do programa performativo da ação C’est Bondy, tinha a
intensão de agir sobre a política de visibilidade dos detritos, auxiliando que eles passassem de
algo a ser ignorado, para algo a ser visto (e registrado). Porém, não havia sentido para que a
fotografia estivesse presente no programa da ação C’est Marseille, já que nem a política de
visibilidade não fazia parte de seus motes disparadores, nem outra função se delineava, de modo
que se torna necessário um relato mais detalhado de como se deu o formato final da ação, ao
menos de meu ponto de vista ao executá-la. Após alguma investigação de modos de acolher os
impulsos supracitados, a ação foi encontrando sua configuração como um trânsito entre a dança
e rudimentos de escalada, e lembrava vagamente o Parkour, porém com o uso de pausas sobre /

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nas posições com os obstáculos: no lugar da busca da eficiência para superá-los, própria do
Parkour, os obstáculos eram vistos como oportunidades de novas composições corpo-mundo. A
ação, executada em 17.09.2016, durou em torno de três horas e, restringiu-se ao bairro Panier.

A ação convocou olhares interessados, especi- A ação convidou a um (lento) processo de


almente de pessoas nas janelas dos prédios de investigação das possibilidades de dar vazão ao
três a cinco pisos frequentes naquele bairro. encontro corpo-mundo. Era claro que o espaço
Sempre que me via observado, sorria e fazia me colocava em movimento, mas a maneira de
um aceno de mão e cabeça e quase a totalida- dar direção a esse movimento, ou seja, que ele
de das pessoas retornou com simpatia o meu fosse um gesto expressivo que pudesse não
cumprimento. Em determinado momento, ex- apenas me conectar aos atravessamentos
perimentava a composição de meu corpo no oriundos do encontro com o espaço, mas
vão de um monumento em concreto aparente conectar os demais à múltiplas possibilidades
(que suponho modernista, sem identificação) e de composição com o espaço foi algo que só
ouvi uma janela se abrir próxima de mim. Du- aos poucos encontrei, conforme fui
rante os minutos que se seguiram, sem inter- substituindo posições experimentadas que me
romper a ação, travei o seguinte diálogo, em davam a sensação de uma contração de minha
inglês, com um rapaz de aproximadamente 25 presença, logo abandonadas, por outras que
anos: ‘de onde você é?’, disse ele, revelando a pareciam me projetar ao espaço.
mim que identificara pelo meu gesto minha Esta relação entre a consciência do movi-
estrangeireidade (já que minha roupa era co- mento e a busca por gestos era uma sensação
mum ao local e eu estava calado); ‘venho de não nomeada até que me deparei com os
uma cidade feita para as pessoas ficarem em escritos de Neupart. Ela afirma “a viagem, a
casa, enquanto o espaço público aqui me con- migração, a deslocação, ampliam a capacidade
voca’, disse; ‘e o que você sente?’ perguntou de sentir movimento, mas o movimento não
ele mostrando compreender que não se tratava requer viagem para existir. o gesto sim.” (sic)
de encontrar motivos, mas de mover afetos; ‘o (idem, p. 34). Descobrir o gesto, o gesto
que sinto não está nem aqui no corpo, nem na possível de habitar a fenda que aquele que se
cidade, é sobre a relação. É sobre como a ci- desloca propõe ao espaço como conhecido. O
dade e eu vamos mudando / nos transforman- gesto que a autora parece descrever em outro
do ao estarmos juntos, se trata de deixar a trecho, quando fala de “[um] inter-acontecer
cidade existir em mim, comigo, se trata da corpo-mundo. / dança. não só me reformo em
maneira como ela me convida a mover.’; mim própria como migro. / os contornos que
‘muito bom, vou tentar também.’ terminou parecem identificar ‘corpo’ tornam-se
ele, se despedindo sorridente. Existe uma cer- inexistentes, enquanto atravesso.” (sic) (idem,
ta poesia nesse diálogo no sentido de que ele p. 13). Buscar uma maneira de mover que
não só constrói contato, como constrói uma configure-se gesto na medida que promova
maneira de falar da experiência com a experi- uma viagem com o mundo, que aconteça no
ência, baseada na aceitação dos interlocutores entre e a ambos, de modo que estes se
aos desvios das normas (de ação ou de diálo- modifiquem e percam a exatidão de seus
go) do outro. Uma última consideração pode contornos e o estrangeiro passe a ser tanto o
ser feita ainda à fala final de meu interlocutor, mundo para os corpos, como o corpo para os
independente da ação futura, quando ele opta mundos (possíveis e em devir). Materialidades
despedir-se afirmando que experimentará este desviantes como metáfora viva do corpo
uso da cidade, a suposição já convoca muscu- estrangeiro migração e permanência em uma
laturas e imaginários, ele é atravessado pela negociação corpo-mundo que liquefaz a
possibilidade. Emergem aqui critérios para materialidade enquanto mote da fronteira que
avaliar a pertinência da ação, já que ela parece os separa unindo e torna corpo o imiscuir-se.
disparar possibilidades de uso e ocupação do Tais reflexões parecem revelar um caminho
espaço público que já se dão na medida em promissor à pesquisa e a construção de uma
que os demais sujeitos se relacionam busca cada vez mais assertiva em relação à
favoravelmente àquele uso (manifestando-se novas etapas desta pesquisa, ampliando suas
pelo retorno ao cumprimento ou pelo diálogo), possibilidades de construção de outros sentidos,
ampliando suas possibilidades de uso àqueles poéticos, ao encontro com a estrangereidade.
que trazem sentidos poéticos.

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Da pesquisa de campo realizada na França em setembro de 2016 emergiu a pertinência


do exercício da deriva como prática de invenção de possibilidades de metaestabilidade com o
espaço estrangeiro (composições advindas da descoberta de novas maneiras de estar no mundo)
e desenvolvimento de estratégias para o encontro de acoplamentos com a condição de
estrangeiro que produzissem gestos propositivos da construção compartilhada de outras
maneiras de habitar o espaço urbano.
Proposições que podem encontram sua força mesmo quando efêmeras já que “[em
intervenções urbanas] a durabilidade material e imaterial não são atributos indissociáveis: a
efemeridade material pode gerar durabilidade imaterial, na medida em que motiva novas
relações sociais e espaciais de efeito prolongado”, estando mais ligadas ao “poder da
experiência” que desencadeiam (FONTES, 2013, p. 95).
Ainda que não haja como prever a continuidade da pertinência do exercício da deriva
nesta pesquisa (já que diferentes locais podem demandar outras metodologias) é interessante
observar que dentre as “três características, ou propriedades, mais recorrentes nas experiências
de errar pela cidade”, elencadas por Jacques em “Corpografias urbanas” se encontra listada a
propriedade da corporeidade, que seria “a relação, ou contaminação, entre seu próprio corpo
físico [daquele que faz a deriva] e o corpo da cidade” (s. p.), revelando que os atravessamentos
corpo-cidade vivenciados (e matéria de trabalho desta pesquisa) estavam previstos como
elemento característico da prática da deriva em si o que pode revelar uma tendência a que esta
prática seja parte constituinte de uma proposta de metodologia de criação em arte a partir do
status de estrangeiro, resultado pretendido desta pesquisa de doutoramento.8
Dizer que há contaminação – vê-se pela prática – não pode ser entendido como um
enraizamento, uma reterritorialização, mas ao invés disso, é dizer de um tensionamento, e
posterior espacialização, da diferença. Para evitar tal confusão é que o termo contaminação vem
sendo evitado nessa pesquisa. A dita contaminação parece até esse ponto menos uma
homogeneização – uma dupla captura do estrangeiro sobre o espaço e vice-versa – e mais a
oportunidade de materialização da dissociação – a descoberta de uma oportunidade de fazer
visível a estrangereidade, de dar visibilidade à diferença.
Se insistirmos ainda por um momento na possibilidade da captura, poderíamos dizer que
a contaminação constituinte da deriva seria uma falsa captura. Vencido o efeito paralisante do
desajuste, que abordei no início deste ensaio, assalta o estrangeiro a capacidade de agir no
espaço, desta derivam leituras que podem trazer a impressão de um acoplamento entre aquele e
o espaço. Porém, o estrangeiro enquanto tal dá-se apenas à falsa captura pelos modus operandi
em curso. É assim que ao mexer no lixo não me torno o ‘latino pobre que revira o lixo para
buscar meios que lhe permitam subsistir’, mas antes, torno o lixo estrangeiro; ao transitar
relacionando-me distintamente com o mobiliário urbano não me torno um ‘praticante de
Parkour’, mas estendo minha estrangereidade ao mobiliário público, corporificando nossa
diferença, inaugurando novos possíveis, ainda não capturados e, na medida em que me mantiver
estrangeiro, não capturáveis. Por fim, é uma contaminação que, paradoxalmente, escapa do
enraizamento em direção ao acoplamento na estrangereidade.
Contribuir tanto quanto possível à construção deste paradoxo parece ser uma estratégia
igualmente pertinente de continuidade desta pesquisa, já que, segundo Kasper (2004, p. 45) o
paradoxo tem uma importante função:

Se a recognição foi sempre o suporte da doxa, da opinião, o paradoxo é seu


terror. Subverte tanto o bom senso como o senso comum. A recognição deixa
o pensamento tranquilo, ‘convoca as faculdades apenas para reconhecer o
mesmo, real ou possível, numa operação de redundância.’ Já o paradoxo faz
com que se pense o impossível. (O trecho apud é de PELBART, 1971, p.64)

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A deriva também encontra lugar de destaque se considerarmos as práticas feitas na plataforma de que
faço parte – quandonde intervenções urbanas em arte – sendo, inclusive peça fundamental da pesquisa de
mestrado “Pistas para uma poética dos acidentes”, concluída em 2016 na Universidade do Estado de
Santa Catarina (UDESC) pela outra componente do núcleo mais estável da plataforma, Juliana Liconti.

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O impossível, novamente ele, citado anteriormente a partir da máxima de Cocteau ou


Twain, que agora aparece não apenas relacionado àquilo que se faz, mas igualmente àquilo que
se pensa. O estrangeiro como disparador e evocador de impossíveis. Este cuja etimologia
remete, da mesma forma que estranho, ao que é de fora, ao desconhecido, ao não-familiar. O
estrangeiro como portador daquilo que até então nos era desconhecido e, por isso, impossível de
ser executado ou de ser pensado.
Ao estrangeiro cabe seguir como pergunta irrespondível tanto por sua afonia (não há
clareza ou potência em uma voz que possa se dizer sua) quanto por sua polifonia (cada vez que
sua voz ecoa, evoca a construção de diferentes mundos possíveis, os coloca em devir).
No dia anterior à minha volta, formulei minha primeira frase compreensível em francês.
Tendo saído do Brasil sem saber nada além de alguns jargões, eu finalmente consegui formular,
a um desconhecido na rua, uma frase em francês que não saía dos guias para turistas e que ele
pode compreender e responder. Quando ele partiu deixou-me os olhos marejados. Ainda que
fosse óbvio que havia um sem número de informações em mim que me fazia estrangeiro aos
olhos do outro, foi a primeira vez que eu me senti sendo tratado como um igual, e isso me
deixou profundamente emocionado. Era o sinal de que minha estrangereidade estava
terminantemente ameaçada. Sinal de que era mesmo hora de partir.

“fixar o lugar onde encontrei um dia


o olho do ciclone é não considerar que o ciclone,
como o corpo, se move continuamente em si próprio
enquanto se desloca no espaço.”
(NEUPART, 2014, p. 11)

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IMAGENS

Pág 5, 12, 19 (coluna da direita), 22, 26 e 27 são provenientes do arquivo de quandonde intervenções
urbanas em arte. Registros de Intervenções Urbanas. 2016

Pág 19 (coluna da esquerda)


PEAN, Christophe. Detalhe da imagem Francophonies 2016 23 Sept - Désordre Dans La Ville -
Diego Baffi-C.Pean-1953. Divulgação Festival Francophonies. 2016.

Pág 29 (esquerda e direita)


SEM AUTOR. Sem título. Sem data. Disponíveis em http://www.marseilletourisme.fr/les-
incontournables/panier/, acesso em: 10. abr. 2018

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