Pognometria e Intervenção Urbana Um Exercício de Variáveis 3
Pognometria e Intervenção Urbana Um Exercício de Variáveis 3
Pognometria e Intervenção Urbana Um Exercício de Variáveis 3
Diego Baffi*
RESUMO: O ensaio convida o leitor a uma viagem compartilhada pela experiência de
criação em intervenção urbana em arte nas cidades de Bondy, Paris e Marselhe (França).
A partir da interlocução com teoria e prática artística, filosofia, antropologia e literatura, o
autor discorre sobre diferentes nuances pelas quais a estrangereidade manifesta-se
enquanto traço intercultural e apresenta estratégias para criação artística, amparadas pelo
status de estrangeiro. Para isso, descreve a concepção e realização de ações urbanas
realizadas na zona de contaminação entre diversas linguagens artísticas, mas valendo-se
sobretudo de elementos oriundos da palhaçaria, performance relacional, deriva, escultura
e Parkour. O ensaio apresenta como resultados hipóteses que relacionam a manutenção da
estrangereidade como ética que impulsione a criação em arte de outros mundos possíveis.
ABSTRACT: The essay invites the reader to a journey shared by the experience of
creation in urban intervention in art in the cities of Bondy, Paris and Marselhe (France).
From the interlocution with theory and artistic practice, philosophy, anthropology and
literature, the author discusses different nuances by which the foreignness manifests itself
as an inter-cultural trait and presents strategies for artistic creation supported by the status
of foreigner. For this, it describes the conception and accomplishment of urban actions
carried out in the zone of contamination between different artistic languages, but using
elements derived from the clowning, relational performance, drift, sculpture and Parkour.
The essay presents as results hypotheses that relate the maintenance of foreignness as
ethics that impel the creation in art of other possible worlds.
* Diego Elias Baffi é mestre e bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de
Campinas - UNICAMP e doutorando em Teatro pela Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro - UNIRIO. É Professor Assistente na Universidade Estadual do Paraná - UNESPAR,
Campus Curitiba II – Faculdade de Artes do Paraná - FAP. É membro do grupo de pesquisa
Processos Criativos em Artes Cênicas (CNPQ) e coordenador do projeto de pesquisa Arte
estrangeira – um experimento para olhos desacostumados. E-mail: diego_baffi@yahoo.com.br
Em busca de como começar este ensaio, escrevo uma palavra a esmo em um dicionário
online: ‘pognometria’. Não conheço a palavra, mas intuo que ela pode ter a ver com medições,
com aferição de alguma grandeza. Sim! “Relativo à contagem de pognoms, grandeza descoberta
na astrofísica que mede a concentração de energia cósmica em blocos de solo de alta densidade
e altura, como picos e cordilheiras (que, pela concentração de massa e imantação dos metais
dispersos no solo, apresentam uma variação na força gravitacional para mais e concentram mais
pognoms, partículas energéticas que viajam pelo espaço desde o Big Bang, sempre em direção
aos pontos de menor energia, em geral, buracos negros e demais matérias escuras). A geofísica
faz uso da pognometria, em geral, para averiguar o quanto determinado pico ou cordilheira é
antigo, considerando-se não apenas a idade geológica da pedra, mas sua formação geofísica, já
que quanto maior o tempo de constituição do acidente geográfico, maior a concentração de
pognoms e menor a velocidade de suas partículas.”.
A palavra existe. Colocar palavras aleatórias A palavra não existe. O dicionário online,
no dicionário online tem sido um hábito então, me propõe palavras que entende como
individual regular, um hobby pessoal que tem parecidas: longimetria, optometria,
por objetivo criar a possibilidade do encontro zonometria. Palavras que o editor de texto que
de conhecimentos até então ignorados, uso para elaborar este documento não
especialmente por não fazerem parte da seara conhece. Nem ele, nem eu até há pouco.
de investigações as quais sou confrontado em Ao fazer uso da intuição, prevejo a existência
minha área de pesquisa. Interventor urbano e de uma palavra que, até onde pude averiguar,
docente na área de artes cênicas, dificilmente não figura nem nunca figurou no Vocabulário
teria acesso a vocábulos como este senão por Ortográfico da Língua Portuguesa, nem tem
um exercício de busca; ainda que qualquer citação nos principais sites de busca,
adivinhatória, a partir da variabilidade da bem como o significado posposto. Fato é que
língua e de seus possíveis significados. Com a a suposição da existência do vocábulo (e a
prática, esse exercício de supor palavras provável aceitação da existência pelo leitor, se
tornou-se cada vez mais elaborado e houve) pode ser explicada por um exercício
frequente. Repetir como meio de aprofundar- complexo que envolve o ato contínuo de
se remete a afirmação atribuída a Aristóteles, alguns hábitos, dentre eles a crença de que o
sobre a prática levar à perfeição1. Aqui que diz um documento acadêmico tende a ser
aplicado, seria supor que o exercício da língua real, além do hábito da língua em si e de suas
nos capacita ao desenvolvimento de estruturas variações mais prováveis.
similares às que conhecemos (sabemos não Ou seja, o exercício constante de algo nos
apenas as palavras que existem, mas as torna suscetíveis a sermos enganados pela
variações mais prováveis para novas palavras) “coberta do hábito”, como nos diz Flusser em
e este exercício nos permite supor quais os seu Ensaio “Exílio e Criatividade” (2013)2.
caminhos tomados pelo uso da língua por Por outro lado, o investimento na intuição
aqueles que a exercitam em outras áreas do pode dar-se como caminho ao encontro tanto
conhecimento. Ou seja, o exercício constante da criatividade como do desconhecido, ou
de algo – sua prática – torna os novos seja, se eu aceito que a suposição da palavra é
conhecimentos a serem adquiridos cada vez não o encontro, mas um ato criativo que
mais previsíveis. constrói ao mesmo tempo diversas
Evoco esta metáfora por crer que ela pode ser possibilidades de encontro com
interessante para a compreensão do que desconhecidos.
ocorreu na realização deste estudo a ser a Evoco esta metáfora por crer que ela pode ser
partir de agora descrito. interessante para a compreensão do que
ocorreu na realização deste estudo3 a ser a
1
A citação exata é “Nós nos transformamos partir de agora descrito.
naquilo que praticamos com frequência. A
perfeição, portanto, não é um ato isolado. É um 2
Para todos os efeitos, o exílio e o exilado, por
hábito.”. A citação apócrifa, presente como Flusser, serão sinônimos de estrangeiro e do
epígrafe em uma série de documentos acadêmicos espaço estrangeiro como visto nesta pesquisa.
e sites na internet, não pode até o presente 3
Este estudo integra a pesquisa de doutoramento
momento ser localizada com sua fonte exata. em curso ‘Arte estrangeira – um experimento para
olhos desacostumados’ UNIRIO (RJ/Brasil).
Antecipei minha ida ao festival em treze dias para que pudesse realizar a pesquisa de
campo de maneira mais ampla, incluindo à ação de Palhaçaria Itinerante outras ações em
intervenção urbana a serem oportunamente listadas e descritas. O prazo estendido deu-se
anteriormente ao festival buscando que eu pudesse, durante esta estada, preparar-me para a
especificidade do encontro de meu palhaço com a cultura francesa através da imersão em seus
espaços de sociabilidade, ou seja, não apenas os espaços públicos stricto sensu, mas os de uso
coletivo, como restaurantes, igrejas e supermercados et. al, nos ambientes urbanos das cidades
de Paris, Bondy e Marselha. Ainda que as ações planejadas não trabalhassem com esses espaços
híbridos privado-públicos (anteriormente denominados ‘de uso coletivo’), eles se tornaram na
contemporaneidade, até pelo esvaziamento dos espaços públicos a partir da cooptação de ações
a estes normalmente destinadas aos espaços privados (shoppings centers, academias de ginástica
e clubes sendo provavelmente os casos mais notáveis), importantes espaços de convivência, nos
quais é possível integrar-se à cultura local. Isso porque
O critério de escolha destas cidades não foi outro senão aquelas nas quais residiam as
pessoas que me deram respostas positivas à busca por alojamento solidário no país, realizada
durante o planejamento da viagem. Coincidentemente, acabei realizando as ações nas duas
maiores e mais populosas cidades da França – Paris e Marselha, respectivamente primeira e
segunda nestes quesitos – sendo que a primeira é ainda a capital nacional e a segunda também a
mais antiga do País. Bondy, pelo contrário, é uma cidade de pequeno porte que se localiza no
subúrbio de Paris e na qual reside parte da população que trabalha nesta última.
Partir! Desde o avião a presença predominante Ficar! Partir aqui é da esfera do desejo (não
da língua francesa, da qual eu sabia apenas mero, mas ativa busca por potência,
alguns chavões e galicismos. Ouvir a forma da amparada inclusive pela pesquisa em
língua é altamente improvável em nosso curso) e às vezes perigosamente se
ambiente cultural habitual, ensinados (e condiciona e satisfaz como desejo. E é isso
interessados) que estamos, em geral, em alcançar que tanta coisa quer, (no sentido de ser
o conteúdo diretamente. Perseguimos a ‘forma assim que a máquina do desejo opera, nos
invisível’ na linguagem que, como o vidro da lembra Deleuze5), ainda que nos recusemos
janela de nossa casa, entendemos que deve ser a admitir: ser desejo. Entre outros motivos,
absolutamente transparente para deixar ver o que para que o desejo realizado não mostre sua
interessa. Na contramão, e por algum motivo que incompletude e sua defasagem à
não identifico, desde a iminência da viagem eu idealização primeira. Eu quis partir, mas,
quis esse silêncio rumoroso que emerge da mais que tudo, eu quis desejar partir. Tanto
incompreensão quase absoluta da língua. Eu o que me dei a perder o voo (no aeroporto,
desejei, quando confirmada a viagem, mais que o deixei-me enganar por uma informação
ruído silente da comunicabilidade. É como se, improvável e esperei o voo no lugar errado)
sem significados atingíveis, eu pudesse ouvir, sendo realocado para outro voo no dia
finalmente, a musicalidade da língua. De olhos seguinte e, chegando a Paris, dei-me ao
fechados, as vozes no avião compunham uma mesmo descuido, perdendo o trem e
sinfonia atonal, uma música de consoantes obrigando-me a rever uma vez mais o
cortadas que todos tocavam, mas suponho que plano de viagem, rever o meu desejo.
poucos escutavam. Eu seria mesmo capaz de
dançá-la, mas, parafraseando Nietzsche, eu 5
Algumas das referências aqui apresentadas
provavelmente seria visto como louco por quem (quando nomeadas sem bibliografia) aparecem
se acostumara demais a ver apenas a rua através como companheiras de diálogo, cujas reflexões
da vidraça (esse alguém que, é bom que se diga, já se encontram de tal forma diluídas e, quiçá,
em geral também sou eu em meu ambiente transmutadas pela experiência, que parece tão
cultural habitual). irresponsável deixar de citá-las, quanto atribuí-
las a alguma obra específica.
A finalidade da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como
reconhecimento; o processo da arte é o processo de singularização dos objetos
e o processo que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e
a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si e deve ser
prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objeto, aquilo que já se
‘tornou’ não interessa à arte. (CHKLOVSKI, s.a., s.p. apud TOLEDO, 1971. p.
43)
Temer Jamais! foi a Temer Jamais! foi a oportunidade de dar corpo e linguagem
oportunidade de dar corpo e à impossibilidade de indignar-me e afrontar integralmente
linguagem à minha as forças repressoras por mim incorporadas. Desde o
indignação pelo momento planejamento da ação havia medo. Quase atávico medo que
político controverso me fazia supor (ou fantasiar) que encontraria uma força
vivenciado no Brasil no agressivamente repressora à minha ação.
momento em que esta Já no aeroporto, cartaz empunhado, fui tomado por uma
pesquisa de campo foi ebulição corporal que me mostrou que a força repressora já
realizada, no qual de certa estava ali e não precisaria vir de outrem. Atravessamentos
forma ainda me encontro físicos-emocionais (leves tremores e fraquezas, intensa e
enquanto organizo este difusa atividade cerebral) me revelavam quão
documento para publicação corporificados estavam os limites impostos pelo poder que
(04.2018). me encontrava submetido. Tudo isso dificultou, por quase a
Para que fiquem visíveis as primeira metade da ação, a manutenção de um olhar para
motivações desta ação, é fora que me permitisse entrar em contato visual com as
mister apontar que dentre as pessoas que saiam do desembarque de passageiros. Tal
narrativas a mim apresentadas estado remete-me ao descrito no conceito de Sociedade de
até o presente momento, me Controle (Foucault, Deleuze), no qual o poder introjeta-se,
filio àqueles que defendem diluindo-se nos corpos, abrindo mão de sua representação
que durante o ano de 2016 a icônica (objeto aferível: o líder ou a instituição).
presidência no Brasil foi Não posso dizer o quanto deste estado poderia ser chamado
tomada de assalto da de medo, mas suponho que muito. A realização da ação,
candidata democraticamente ainda sem nome, mostrava-me a necessidade de ser
eleita (Dilma Rousseff) por nomeada pelo temor, o que também parecia justo pelo
um golpe jurídico-midiático trocadilho com o sobrenome do golpista empossado. Era
que levou seu suplente irônico e ao mesmo tempo um ato de resistência. O desejo
(Michel Temer) ao poder. de jamais temer me fazia enfrentar o temor entranhado, o
Deste ponto, compreende-se temor que também era eu. Curiosamente, era justamente
porque senti a necessidade de este temor que dava o maior dado de pertinência da ação:
me manifestar, aproveitando para além do posicionamento político, era uma ação
que eu me encontrava fora do comprometida com a revolução de si.
Brasil e que, supunha, poderia A questão do medo é amplamente presente nos relatos de
romper eventuais barreiras artistas, em especial dentre aqueles não-sedentários
impostas pela mídia (itinerantes, nômades, estrangeiros) e que atuam em espaços
inter/nacional a esta narrativa, públicos em ação subversiva ou de enfrentamento ao status
ao menos para as pessoas que quo, características de certo modo presentes neste trabalho.
estivessem ao alcance da Escolho reproduzir aqui um breve trecho do relato de
ação. Genifer Dimpério, palhaça e bonequeira itinerante, que
Para isso, me coloquei na realizou sozinha, entre outubro e dezembro de 2009,
saída de desembarque do viagem por seis estados brasileiros, apresentando-se em
aeroporto Charles de Gaulle, vilarejos de até 10 mil habitantes. Desta experiência – tão
em Paris, ao lado daqueles próxima à pesquisa aqui descrita –, descreve sua relação
que aguardavam passageiros paradoxal com o medo. “Se sentia medo? Sempre. Em cada
sustentando placas com chegada, em cada estar. No entanto fazia parte, também
diferentes dizeres e ali não queria a distância deste sinalizador que freia, mas que,
sustentei, por cerca de trinta simultaneamente, me fez avançar como forma de
minutos, uma placa na qual se transgressão.” (2010, p. 89)
lia Fora Temer, aproveitando, Ainda que algumas pessoas detivessem o olhar por mais de
e ao mesmo tempo alguns segundos em meu cartaz, mostrando um interesse
subvertendo, a finalidade da particular em compreender a mensagem ali escrita em
licença para o empunhar de relação às presentes nos demais cartazes (suponho por um
cartazes naquele local e seu estranhamento em relação ao não reconhecimento do escrito
regime de visibilidade. como um possível nome), apenas uma senhora procurou
meu olhar após encarar a placa, sorrindo-me, de modo que
posso supor que compreendeu a que se referia à mensagem.
Noto que o processo de reconhecer-me ou dar-me a conhecer como estrangeiro ou, mais
especificamente, como brasileiro dá-se de maneira similar a como se opera uma equação
diferencial: tem como incógnita derivadas de uma função desconhecida, e, por isso, traz como
resultado algo que ao mesmo tempo pode ou não existir, pode ser uno ou vário.
Por ser diferencial, esta equação só falsamente pode ser solucionada por este vago
conjunto de pontos fixos – estereótipos – a que se chama, grosso modo, ‘brasileiro’: a língua
portuguesa, a bandeira, o futebol, o carnaval unem-se, a depender do lugar, com outros como: as
belas praias (Argentina), o algoz da guerra (Paraguai), a força de ocupação (Haiti), a sede das
olimpíadas ou a deposição da presidenta (França), etc., elementos que, independentes ou
combinados, dão a falsa sensação de uma coordenada que localiza o brasileiro, situando-o como
uma posição dada e estável.
A solução é falsa, pois o estrangeiro não é nunca um ponto localizável (em um gráfico
ou um mapa). A própria ideia da localização mata a estrangereidade, substituindo-a por outra
nacionalidade. O estrangeiro não é alguém de um outro lugar, mas o deslocamento, o processo
de construção de múltiplas possibilidades insolucionáveis não só de origem, mas de produção de
lugar, de variantes. (E é neste sentido que é perfeitamente possível afirmarmos que ser
estrangeiro em seu espaço de origem não é uma contradição entre termos, condição que
voltaremos adiante). O estrangeiro não opõe aqui e lá como espaços nomeáveis, pois não é
permitido nomear o espaço da experiência, só o seu rastro, e o estrangeiro é pura experiência,
revolução. “No exílio, tudo parece estar em constante mudança, e o exilado vê absolutamente
tudo como um desafio para suas transformações. Sem a coberta do hábito, o exilado se torna um
revolucionário”, diz Flusser (idem).
Outra questão é que o estrangeiro é uma condição pré-diferenciação, isso porque,
estando imerso em “um oceano de informação caótica” (idem), não tem oportunidade de
dominar os pressupostos necessários para diferenciar elementos da identidade cultural como
traço distintivo de um indivíduo ou como traço agregador de um coletivo, isso tanto para si
quanto para o outro (e vai dominar apenas na medida em que sair deste status em direção ao
estereótipo – o estrangeiro de lá ou ao enraizamento – o estrangeiro daqui). Assim, ele não
domina quais os traços de sua cultura o identificarão como outro (indivíduo), como um dos
outros (membro ou representante – no sentido de fractal – de uma determinada cultura), ou
como outro dos outros (o princípio da alteridade que permitirá reconhecê-lo como humano,
contemporâneo, terráqueo, etc.), assim como não identifica as diferenças entre o que o define no
encontro como outro ou como um dos outros, tomando indistintamente uma coisa pela outra.
Nas ocasiões de minhas estadas em outros países, seja no curso desta pesquisa ou
anteriormente, eu nunca sabia de antemão o que me localizaria, para mim e para o outro, como
estrangeiro. Foi impressionante, por exemplo, dar-me conta que o que me projetava a este status
na Bolívia foi preferir água pura à infusão; Colômbia, não ter o costume de consumir sopa de
banana; Equador, não consumir chá de orégano; Argentina, ter a saída de dejetos do vaso
sanitário na direção da parede e não na oposta, do usuário; Lisboa, entrar edifícios de 300 anos
como quem entra em museus e não em casas populares; França, esperar a porta do metrô abrir
sozinha enquanto todos esperavam que eu apertasse o botão correspondente...
Antes de ser algo curioso ou até mesmo engraçado, o desajuste tem um efeito
paralisante e de redefinição de si a partir do mundo, que passa a comportar algo que até então
parecia impossível. Quando o espaço estrangeiro apresenta-se como tal (ou seja, a relação de
estrangereidade emerge) “tudo se torna incomum, monstruoso e inquietante.” (idem). A
pesquisadora, docente e atriz Regina Müller, ao descrever os traços comuns dentre as pesquisas
de campo realizadas por ela primeiramente entre os índios Asuriní do Xingu e posteriormente
nos EUA, comenta “Afastada do cotidiano de trabalho e de meu meio-ambiente, [...] o contato e
comunicação com o outro que nos leva a refletir sobre nós próprios e acionar processos de
transformação e redefinição de identidade.” (71). Redefinição de identidade é uma expressão
que dá a medida da amplitude de transformações que a estrangereidade demanda.
Por tudo isso, a estrangereidade é um problema insolucionável (tanto para o estrangeiro
como para o ambiente cultural a sua volta): e esta informação não se pretende moral ou
xenófoba. Na verdade, ser um problema é uma das maiores potências do estrangeiro. O
estrangeiro, ou mais especificamente, o brasileiro pesquisador que se inscreve no curso desta
pesquisa, é (ou pretende-se, enquanto sustentar sua estrangereidade) uma condição relacional
insolucionável e, por isso, capaz de promover tensões, acelerações e revoluções.
A ação Acompanhante era minha maior aposta para a realização da pesquisa de campo
do doutoramento na França. Desenvolvi a partir de alguns pressupostos: tinha de ser uma ação
simples, não depender necessariamente da linguagem falada para acontecer, valorizar minha
condição de estrangeiro e dar-me tempo e espaço para observar como meu olhar desacostumado
atuaria na França. A ação me interessava também pela possibilidade de criar ruídos em outras
frentes: o que ponderaria aquele que fosse convidado antes de concordar ou não com a ação?
Como seria para este conviver com alguém em seu encalço por uma hora? Onde me levaria?
Como se portaria às outras pessoas?
Hoje, ao rever na memória as imagens que eu criava do que viria a ser a ação, vejo que
meu imaginário pode ter se contaminado amplamente com a cena do cego no longa-metragem
francês “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” (dirigido por Jean-Pierre Jeunet, 2001), na
qual a personagem Amélie (Audrey Tautou), após ajudar o personagem do homem cego (Jean
Darie) a atravessar uma rua, o conduz por uma rápida caminhada na qual descreve em pequenas
narrativas o que vê à sua volta, gerando um efeito sinestésico que dá a impressão, ao final, que o
personagem do cego pode “ver”, pelos olhos dela, os fatos narrados. A cena é um dos pontos
mais marcantes do filme, além disso, o fato do filme se passar na França e ser um de meus
prediletos, tendo sido visto por mim incontáveis vezes, ajudou a que a imagem se mantivesse
6
Se você veio até esta nota, talvez seja por não compreender exatamente o que está escrito no texto, já que
notas de rodapé após textos em língua estrangeira, em geral, são usadas para a tradução deste. Farei em
seguida um resumo. Antes, quero continuar supondo, se me permite, que como fluente em uma língua
neolatina (ao menos o português, suponho), você pode compreender aproximadamente o que está escrito.
Sugiro que, se não tentou, tente agora. Aqui chegamos ao ponto que minhas suposições visavam: se você
tentou, deve ter chego mais ou menos no mesmo ponto que eu estava ao levar este texto copiado em um
papelzinho no bolso, com letra maiúscula desenhada o melhor que pude para não restar dúvidas do que
estava escrito, já que eu não podia esclarecê-las se fossem feitas em francês. Eu também não sabia
exatamente o que ia nele, nem muito como lê-lo em voz alta. Criei uma versão inicial e pedi que uma
amiga, estudante de francês, traduzisse primeiro para depois submeter a minha orientadora, que tem o
francês como língua materna. Entre modificações de ordem e sentido, identifico nesse texto final usado na
ação, traços do que propus a princípio: um início que me apresentava (acho que esta parte se entende
bem: Diego, brasileiro, não francófono) e depois vinha a explicação de que eu buscava, em uma ação anti-
turística (definível em linhas gerais como uma ação que não pretende fruir o local que se visita como
mercadoria), conhecer uma França construída cotidianamente pelos que ali estavam, sedentários ou
itinerantes (essa, para mim, a parte mais difícil de compreender do texto em francês). A este trecho segue
o convite: de que eu acompanhasse o leitor por uma hora, em qualquer atividade que este estivesse
fazendo, sem necessidades de alterar sua programação ou mesmo falar comigo se não o desejasse. A
proposta terminava descrevendo duas possíveis conclusões para a ação: ao final de uma hora o leitor
estaria livre para me apresentar para alguém ou simplesmente deixar-me partir. Até hoje não sei o quão
próximo o texto final ficou de meu intento inicial. Sigo sustentando esse problema (esta estrangereidade)
em relação ao texto como potência de criação de possibilidades de tudo aquilo que pode ou que poderia
estar ali expresso. Perdoe-me a frustração que a conclusão desta nota pode conter: se quiser saber de fato
o que está ali escrito, você deverá fazer uma ação deliberada pelo enraizamento na nova língua (e
aprendê-la) ou deve terceirizar a experiência pedindo que alguém que se acredite francófono feche o
leque de possibilidades em apenas um – dito assim como quem louva a língua – correto entendimento.
viva e convidativa o suficiente para influenciar na construção desta ação. Eu queria poder ver uma
França que supunha invisível para mim senão pelos olhos de seus habitantes cotidianos.
Estar na França me provocou um estado de excitação e ansiedade. Assim que me estabeleci
em Bondy, primeira cidade de meu percurso no país, dei-me a observar a distância entre a França
imaginada e a real. Não havia casas bucólicas com grandes jardins, mas uma cidade densamente
povoada, na qual não pude localizar grandes áreas verdes contínuas, a despeito da frequente
arborização das ruas. A paisagem humana era composta de muitos tipos diferentes, muito mais
diversificada que a imagem do francês estereotipado em minha memória, fruto de um padrão talvez
bastante influenciado pelos filmes que vi (branco, magro, ateu, francófono, fechado e melancólico).
Essas alterações faziam com que eu reprojetasse diversas vezes as expectativas da ação e algumas
dessas imagens eram particularmente ameaçadoras, envolvendo presença policial, mal-entendidos,
deportação. Vencê-las e dar-me às possibilidades da realidade foi um desafio à parte e acabei por
iniciar mais tarde do que pretendia.
Logo ao sair de casa um imprevisto presente: cumprimentei um senhor do outro Logo ao sair
lado da rua. Bonjour, disse eu. Ele sorriu, acalmou a passada e apertou os olhos do primeiro
numa transatlântica expressão de: eu te conheço? Resisti, mas capturei – antes encontro,
tarde –, ainda que com grande receio, a abertura de cenho franzido. Una deparei-me
invitassion tré différrant, arrisquei, sem saber se falava francês ou gromelô, e com um am-
lhe estendi o papel com o convite. Ele leu e depois tentou descrever sua biente muito
próxima hora: ‘pouco importante’, percebi pelo tom. Eu me desculpei, pardon, mais hostil.
enquanto tentava mostrar que não alcançava o exato conteúdo de suas palavras Repetidas
e insisti, lendo em voz alta o último trecho do convite C'est parti?. C'est parti!, vezes me vi
disse Jean Pierre, 59 (ou seria 69?) anos. Feliz pela abertura, passei a observar com pessoas
seus passos lentos e seus gestos breves; foi quando ele tentou uma aproximação nem mesmo
em um inglês de palavras chaves e cheio de silenciosos tempos de revolver disponíveis a
memórias vocabulares. Ele queria saber de mim. E, principalmente, do Brasil. ler o texto
O estrangeiro, já nos lembra Simmel (p. 265, 1983), é aquele que “se encontra ou pouco
mais perto do distante” e atualiza, acrescento, sempre o longe como perto, abertas à
sobrepondo de maneira não harmônica o espaço corporificado ao circundante. investigar a
Isso, em geral, cria certo desassossego e encantamento sobre os processos de construção
construção desse corpo-espaço, visível, por exemplo, no interesse provocado deste ter-
pela forma que os estrangeiros se vestem, caminham ou dançam. Eu queria ritório de
adentrar-me por ele em uma invisível França. Ele, no Brasil, por mim. convivência.
Desde esse ponto, o silêncio passou a ser sempre um ‘como me farei Marcou-me
compreender?’, o que exigia um intenso e permanente trabalho mental. um senhor
Enquanto conversávamos, ele decidiu me levar em um pequeno parque que que, diante
estava em nosso caminho. Ali, mentalmente estafados desistimos das traduções de minha
constantes e nos permitimos um encontro não mediado pela língua inglesa – resposta a
ele, ‘empregado polivalente de limpeza’, e, por isso, ‘também um pouco seu porquê?:
jardineiro’ (como anteriormente tinha feito questão de me fazer compreender), ‘o impor-
passou a me dizer o nome e a cor das plantas em francês e eu, cultivador tante não é o
amador da fauna-flora, repetia o nome delas em português. Depois de que ocorrer,
encontrarmos a botânica como primeiro território comum (curiosamente as mas estar-
plantas que ali havia são comuns também no Brasil), emergiu um segundo e mos juntos’,
mais precioso: a volta à infância. Introduziu-se quando ele me disse por disse, agi-
palavras incompreensíveis e gestos inquestionáveis que a mesa do gamão tando os de-
parecia uma balança da nossa infância (e disse assim mesmo, nossa infância) e dos ao lado
depois quando dentro da parte reservada às crianças de 5 a 8 anos, naquela hora do ouvido
vazia, me disse que brincavam de ‘torniquete’ e quis me explicar que era uma em um gesto
brincadeira similar à que, no Brasil, conheço por Corre Cotia e aquele senhor novo, mas
de passos lentos agora corria em círculos e indicava crianças imaginárias absoluta-
sentadas que se levantavam e corriam, mas não conseguiam pegá-lo antes que mente com-
ele se sentasse no chão. E rimos juntos voltando a ter de 5 a 8 anos. A infância preensível:
e as flores foram nossa fronteira entre França e Brasil. Fim da primeira hora. ‘conversa!’
“Aujourd'hui est le jour de mon “Hoje é o dia do meu aniversário. Faço 34 anos. Sou
anniversaire. Je vais avoir 34 ans. brasileiro, não falo francês e estou sozinho na França.
Je suis brésilien, je ne parle pas Procuro companhia para passar alguns minutos
français et je suis seul en France. comigo celebrando meu aniversário”.
Je cherche une compagnie pour Comecei a fazer o cartaz na madrugada antes de viajar
passer quelques minutes avec moi de Bondy para Marselha e deu-me tanto trabalho que
pour célébrer mon anniversaire.” precisei usar também as horas que estive viajando de
A proposta da ação se completaria trem. Copiei com cuidado as letras (pois para mim seria
idealmente com duas cadeiras dis- fácil esquecer alguma) em diferentes tipologias e
postas frente a frente; a exibição do pintei-as com canetas de diferentes cores (queria que a
cartaz até que alguém se dispusesse forma fosse convidativa e divertida ao olhar).
a estabelecer alguma relação, prefe- Por estar com a minha atenção focada quase que
rencialmente sentando na cadeira à exclusivamente no cartaz, levei um susto quando, em
minha frente; e então o fechamento uma das paradas, olhei para o lado e vi o nome da
do cartaz e a abertura a qualquer estação que desceria escrito em um painel na
possível desdobramento que pudes- plataforma. Temendo passar do local de decida
se se encaixar dentro da ideia de ce- comecei a recolher, o mais rápido que podia, meus
lebração. Foi concebida obedecendo pertences espalhados pelo vagão para descer, enquanto
aos mesmos pressupostos da ação praguejava em português o meu azar. Eu estava afoito e
Acompanhante: simplicidade, não incomodava os que estavam no entorno com minha
depender da linguagem falada, correria, mas já tinha tido problemas demais com o
trazer minha estrangereidade ao transporte para essa viagem e resolvi que não me
primeiro plano da relação e dar-me incomodaria com isso. Abracei as minhas coisas assim
tempo e espaço para fruir meu olhar que pude (malas, sacolas, cartaz, canetas) e ia me
desacostumado. batendo nos bancos em direção à porta quando uma
Pedi a pessoa que me hospedava moça disse, em português ‘Ei, onde você vai?’. Fazia
que me indicasse uma praça e, se muito tempo que eu não ouvia a língua portuguesa dita
possível, me emprestasse as cadei- por alguém pessoalmente e foi isso, e não propriamente
ras. Ela me indicou a praça Kiosque o que ela disse que me parou. ‘Para Marseille’, disse
des Réformés onde ocorria, naquele eu. ‘Pois não é aqui’. ‘Mas está escrito naquela placa!’,
dia, um festival de performance disse apontando. E ela ‘Sim, aquela placa diz qual o
para o qual poderíamos solicitar as destino do trem. Marseille é o ponto final’.
cadeiras. Chegamos lá junto com a Envergonhado, agradeci a ela. ‘Eu percebi que você era
chuva. Tive de aguardar até que brasileiro e não falava francês pelas coisas que você
estiasse (cerca de meia hora) para falou enquanto se arrumava’, completou sorrindo.
começar. Ao contrário do que (Além de tudo ela havia entendido meus palavrões!).
imaginávamos, conseguimos Terminei o cartaz alguns minutos antes de chegarmos a
apenas uma cadeira (visível no Marselha. Desci com ele na mão para não amassar e fui
canto da foto). Nos quinze minutos surpreendido por uma chuva com forte ventania que o
que ali permaneci, antes que arrancou de minha mão e o levou em direção ao vão
voltasse a chover, três pessoas se entre o trem e a plataforma rolando sobre as poças de
dispuseram a participar da ação. O água. Parei atônito esperando o pior, mas me surpreendi
principal afeto provocado foi em positivamente por ele ter parado antes do vão. Um
uma moça que, antes e depois da senhor o alcançou e o entregou para mim. A ventania
sua participação sentada na cadeira, começava a rasgar o papel, agora molhado, e eu tive a
se deteve por alguns minutos ideia de colá-lo junto a mim para protegê-lo. Quando eu
observando a minha ação de espera. o separei do tronco, minutos depois, as tintas tinham
Ao sentar na cadeira olhou-me nos diluído na água da chuva e minha blusa, que até alguns
olhos e perguntou (não me lembro minutos antes era branca, estava completamente
agora se em inglês ou francês) se manchada de diversas cores diferentes. Neste estado,
era meu aniversário e eu disse que encontrei a pessoa que ia me hospedar na cidade. Ela
oui (ou que yes?). Ela então me havia me oferecido uma carona e pego um carro
observou longamente, le- vantou- emprestado para me levar até sua casa. Entrei no carro
se, me deu um beijo na face, me achando que tudo que poderia ter dado errado naquele
disse parabéns e voltou ao seu posto dia já teria acontecido. O carro não ligou.
de observadora à distância.
BOITATÁ, Londrina, n. 25, jan.-jun. 2018
Revista do GT de Literatura Oral e Popular da ANPOLL – ISSN 1980-4504
Quando fiz para uma amiga o resumo do que havia acontecido na ação comemorativa
de meu trigésimo quarto aniversário, ela me disse ‘Quem mandou convidar o palhaço?’. Era
engraçado, por um lado, ver que parecia que a lógica de Felisberto tinha tomado às rédeas da
situação, de modo que o vivenciado não só cabia perfeitamente como roteiro de um número de
palhaçaria - tendo presente elementos geralmente utilizados em dramaturgia cômica - , como o
quiproquó (mal-entendido que desenvolve uma série de ações por consequência) e a falsa
expectativa, mas também parecia ter os pressupostos do que diz Charles Chaplin em sua
autobiografia a respeito da criação em comédia, especialmente na relação do ridículo com as
forças da natureza (em especial o que defino como ventania na página anterior, mas que poderia
igualmente ser chamado pelo seu nome específico, mistral):
Por outro lado, havia um convite para rememorar o que me trouxe até minha pesquisa
de doutoramento. A possibilidade de estudar a estrangereidade como potência de criação em
palhaçaria insinuou-se e confirmou-se repetidamente em situações vivenciadas fora do Brasil
nas quais meu ridículo provocava comicidade de maneira imprevista, como já abordado, porém
não apenas em meu trabalho artístico: na Argentina, virei ponto de referência ao ir a uma praia
trajando uma sunga de banho (peça de roupa considerada cômica naquele contexto) e motivo de
piada quando perguntei em um hotel se frutas seriam servidas no ‘desayuno completo’; no
Haiti, provoquei comicidade ao cantar, sem saber, uma música em crioulo haitiano cuja letra
ridicularizava homens brancos; em Portugal, fui ridicularizado ao me mostrar incomodado com
cadeiras novas que eram quebradas em um exercício de improvisação... 7 Já tratei do caos das
relações dinâmicas corpo-mundo no que se refere a sua constituição mais particular, como as
ações cotidianas e os processos fisiológicos, e a maneira como a sobreposição não harmônica
do espaço corporificado com o circundante pode gerar uma certa política de visibilidade.
Retomarei este ponto uma vez mais, para que possa avançar a reflexão à especificidade da
prática artística como perseguida nesta pesquisa.
As vivências listadas, a título de exemplo, no parágrafo anterior (que, ainda que
particulares, inserem-se na categoria das corriqueiras histórias de acontecimentos peculiares em
viagens) são largamente provocadas pela frustração da expectativa de que o território
estrangeiro seja uma continuidade do ambiente no qual vivemos cotidianamente.
“Aprendemos a pensar sobre tudo e depois exercitamos nossos olhos para olharem
como pensamos a respeito das coisas que olhamos”, diz Carlos Castañeda em Uma Estranha
Realidade (79). O olhar, contaminado pelo hábito – e por um certo pensamento ali construído
que pasteuriza de antemão o que se vê –, provocará uma série de projeções não satisfeitas pelo
novo espaço onde se encontra, agora, o estrangeiro.
Esse olhar reincidente (que não apenas olha as mesmas coisas, mas vê as mesmas
coisas naquilo que olha) vai formando uma certa maneira de estar e relacionar-se com o espaço
onde se habita, que chamaremos acoplamento. O acoplamento é também um tipo de
conhecimento ou habilidade, ainda que subconsciente, derivado da repetição. Uma capacidade
de conexão corpo-mundo relativamente harmônica, derivada das respostas favoráveis à reedição
de um estar no mundo: aqui, o conhecimento deriva não daquilo que é repetido (pelo exercício
da vontade em uma escolha deliberada e consciente), mas que se repete, ou seja, que gera uma
nova reedição de si enquanto parte de um conjunto mais ou menos estável trazendo em seu bojo
a ilusão de ser ao mesmo tempo natural, único e inquestionável.
É também parte desta habilidade que o processo de conhecimento derivado do
acoplamento permaneça quase que totalmente subliminar, até por uma prática evolutiva, que
7
O recorte aqui é estimulado pela fala de minha amiga a respeito do palhaço, mas poderia igualmente se
referir a uma abordagem processual, já que iniciei minhas investigações considerando a estrangereidade
como processo de criação apenas em Palhaçaria Itinerante. Só posteriormente dei-me conta que o mesmo
princípio poderia ser aplicado, de maneira mais ampla e igualmente potente, na intervenção urbana.
nos permite liberar o pensamento para elementos mais urgentes ou, ao menos, diferenciados na
realidade circundante. Assim, se sabe muito, mas não se sabe que se sabe, pois o conhecimento
soa como mera percepção da única realidade possível e da única maneira de lidar com ela. Não
nos tornamos conscientes do que sabemos, pois, conforme nos lembra Flusser, “a criação de
informações novas depende da síntese de informações anteriores” (idem) e a atualidade deste
conhecimento o faz ficar à sombra. Daí que, o que pode levar o organismo a conhecer o que
conhece por hábito, trazer o conhecimento subconsciente à consciência, é a vivência de uma
realidade que coloque em cheque os conhecimentos anteriores que, de aspectos (e fruição) de
uma realidade única, se tornam a observação (e construção) de uma das realidades possíveis.
Aqui se explica a sensação descrita no início deste ensaio quando falei do que fazia tornar-me
estrangeiro em cada país em que estive. Perceber que havia outras realidades provocava uma
síntese de informações, compatível com o reconhecimento de minha realidade prévia como
alheia à que eu então vivenciava, como estrangeira.
Será território estrangeiro, portanto, qualquer local ou realidade onde, entre outras
coisas, este conhecimento subconsciente derivado do acoplamento emerja como reconhecimento
de si e do que se sabe, em geral impulsionado pela quebra da unidade do hábito com a cultura.
Volto uma vez mais a citação de Castañeda e a expectativa. Sua referência aos olhos
(na sua dimensão fisiológica, e não apenas ao olhar como metáfora) nos será igualmente útil
para pensarmos para além do que se refere o termo expectativa em relação ao conhecimento
adquirido. Assim, a expectativa que falaremos aqui não se referirá apenas ao exercício da razão
stricto sensu, de considerar consciente ou subconscientemente a probabilidade de que algo
aconteça, baseada em pressupostos empíricos, mas ao acoplamento corpo-mundo que cria, por
consequência também uma expectativa fisiologicamente aferível de relação com o mundo, cuja
frustração se mostra visível, por exemplo, nos desarranjos digestórios, respiratórios,
circulatórios e nas doenças de baixa gravidade (resfriados, inflamações respiratórias, alergias)
que acometem com mais frequência em recém-chegados que naqueles que se encontram fixados
no mesmo local. Em tempo: não se trata de afirmar que haja separação radical entre os aspectos
racionais e fisiológicos da expectativa, mas, como em minha experiência como leitor de
trabalhos acadêmicos estes normalmente são ignorados em elogio daqueles, creio ser
fundamental apontá-los separadamente.
O acoplamento será, assim, uma multiplicidade de processos de afecção que fará com
que o corpo seja construído no trânsito das experiências no espaço circundante (através dos já
abordados processos de espacialidade, espacializações e sua acumulação), de modo que esteja o
mais perfeitamente preparado possível (consciente, subconsciente e fisiologicamente) para a
fruição dos processos de (re)construção de si no e com o espaço vivenciado de maneira
suficientemente harmônica para garantir a continuidade de sua sobrevivência.
O que venho tentando apontar aqui é que o corpo será sempre um conjunto de relações
e nunca algo dado ou a que se chega (seja enquanto sujeito ou matéria). Tal concepção encontra
eco na definição de Deleuze que, a partir de Espinosa, apresenta um corpo como o conjunto de
relações de latitude e longitude e suas derivações, uma cartografia:
Um corpo não se define pela forma que o determina, nem como substância ou
sujeito determinados, nem pelos órgãos que ele possui ou pelas funções que
exerce. No plano de consistência, um corpo se define somente por uma
longitude e uma latitude: pelo conjunto dos elementos materiais que lhe
pertencem sob tais relações de movimento e de repouso, de velocidade e de
lentidão (longitude); pelo conjunto dos afectos intensivos de que ele é capaz
sob tal poder ou grau de potência (latitude). Somente afectos e movimentos
locais, velocidades diferenciais. (DELEUZE; GUATARRI, 1997, p. 40)
Definido o lugar do corpo, espero que fique mais fácil compreender que a expectativa
será tudo aquilo que oferecer resistência ao mergulho nessas relações em fluxo
(presentificação). No caso do estrangeiro, a expectativa provocará especial resistência em
relação ao processo de contaminação corpo-mundo com o novo lugar e pode se dar tanto por
O nômade se distribui num espaço liso, ele ocupa, habita, mantém esse
espaço, e aí reside seu princípio territorial. Por isso é falso definir o nômade
pelo movimento. [...] É nesse sentido que o nômade não tem pontos, trajetos,
nem terra, embora evidentemente ele os tenha. Se o nômade pode ser
chamado de o Desterritorializado por excelência, é justamente porque a
reterritorialização não se faz depois, como no migrante, nem em outra coisa,
como no sedentário (com efeito, a relação do sedentário com a terra está
mediatizada por outra coisa, regime de propriedade, aparelho de Estado...).
Para o nômade, ao contrário, é a desterritorialização que constitui sua relação
com a terra, por isso ele se reterritorializa na própria desterritorialização.
(DELEUZE; GUATARRI 1997, p. 43/44)
Peço licença para usar a definição da dramaturga Paloma Franca Amorim, por crer que
ela define de maneira muito objetiva o lugar do performer para Renato Cohen, especialmente
como descrito em seu livro Performance como Linguagem (2002). Os destaques são meus:
estrangeiro e não ao novo espaço, com vistas à construção de um ato poético que se oriente
como uma nova organização coletiva, um novo socius.
Antes de prosseguir, é importante fazer algumas considerações no sentido de evitar a
romantização deste status. Ainda que descrito com o uso de palavras normalmente tidas como
referências a vivências almejadas como liberdade, transformação e revolução, a manutenção da
estrangereidade é um desafio penoso e constante. “O que é crítico é a descoberta do quanto é
difícil não criar novas raízes”, diz Flusser. No estrangeiro descobre-se que não apenas o corpo
se enraíza no espaço (como enfatizei ao dar destaque à corporeidade estrangeira), mas o espaço
igualmente se enraíza no corpo ao mesmo tempo e com igual intensidade, convidando-o
constantemente a deixar-se cooptar pelo status quo, pela coberta do hábito. Permanecer neste
estado vai exigir o uso regular de certa violência ao que de si quer permanecer e ao que do
mundo quer cooptar, ou resumidamente, ao que quer ser mais repetição que diferença. O lugar
estrangeiro é o de ser pergunta desconfortável a si (e a dimensão deste desconforto pode se
vislumbrar, por exemplo, pela maneira como foi anteriormente nomeado: ausência de
identificação cultural, satisfação das necessidades psicológicas, território de reverberação da
subjetividade e não identificação como o outro do outro), e aos que comungam desta
experiência, pois não erigida dentro de um vocabulário que, a princípio, possa ser traduzida pela
linguagem da cultura que o rodeia. Pergunta que cria força e que mobiliza multiplicidades
enquanto assim se perpetua.
As ações listadas até este momento tinham em comum terem se configurado
mobilizando expectativas de todas as ordens: corpo, imaginação, razão, consciência e
subconsciência trabalhando juntos para a produção do que resultaria, ao final, em significativa
frustração. A frustração, que geralmente repousa dentre as vivências menos ansiadas na
contemporaneidade, nos ajudará também a quebrar uma possível idealização do status de
estrangeiro, ainda que aqui ela tenha uma abordagem positiva, sendo elemento de vital
importância nessa pesquisa.
A partir do que tratamos sobre a expectativa ao longo deste texto, talvez seja facilmente
compreensível porque considero a possibilidade de que o problema da frustração de
expectativas não resida na frustração, e a isso corrobora considerarmos sua raiz etimológica
“enganar, fazer errar” (Cf. Site Origem da Palavra), mas na expectativa que, quando em
excesso, se torna passível de ser nomeada. Estar no estrangeiro é uma frustração constante, pois,
além de nos enganar (quanto às já apontadas expectativas de previsibilidade e continuidade) o
desacoplamento também nos faz errar: nos torna errantes (sentido ético) e errados (sentido
moral) aos olhos dos outros e do outro em nós.
O corpo que atualiza um dado acoplamento com o mundo, um hábito, o faz não apenas
pela disponibilidade de habilidades em prontidão (o que fazer), mas de limitações introjetadas
(o que não fazer) referentes aos contextos nos quais se vive. É essa dupla chave que garantirá
um acoplamento eficaz com o espaço cotidiano. Se pensarmos, porém, que essas limitações
servem atualmente à sociedade de controle (me refiro novamente a Foucault), veremos como o
estrangeiro é, em essência, subversivo.
Ao tratar de intervenções temporárias no espaço urbano, Adriana Sansão Fontes define
prática subversiva como aquela que “desafia as regras vigentes, fazendo com que questionemos
aonde estas nos pretendem conduzir” (2013, p. 53). Tornar as regras vigentes em uma sociedade
passíveis de questionamento, de modo que possam ser transformadas é processo similar ao que
propõem Flusser e Fabião (segundo Costa) nos excertos supracitados. Dado que o estrangeiro
não tem a disciplina (as limitações) introjetada, torna-se alvo do controle (e como alvo torna o
poder que exerce de tácito – introjetado, sub-reptício – a visível – extrojetado) e território
desviante deste controle (espacialização de onde o seu poder escapa). O estrangeiro, ao não
reproduzir o autocontrole que se espera de alguém que ali reside, convoca os inspetores (os
vigilantes) introjetados naqueles que ali se situam, ele incluso. A frustração se revela toda vez
que essa vigilância de si ou dos outros faz ver o errado, a errância e o engano, desacordos do
que se expecta com o que se apresenta, e isso se dá no estrangeiro com muito mais frequência
do que se mostra socialmente aceito para um cidadão. E, à semelhança do comum cidadão, a
frustração mobiliza culpa, revolta, decepção.
Ainda que haja frustração e que ela, ainda que bem-vinda, seja em geral
desmobilizadora, é importante que se revele um lado de potência nesta ausência de introjeção de
limites no que diz respeito ao fato de que tais limites são cerceadores de uma série de
possibilidades de (re)construção do espaço público por parte daqueles que nele habitam é por
isso que, parafraseando a expressão atribuída a Jean Cocteau ou Mark Twain, ao não saber (ter
introjetado) que tal ação é impossível, vai lá e faz, revelando que tal impossibilidade é um
mecanismo antes corpóreo que da realidade circundante.
Assim que voltar a falar das ações é inescapável ao voltar a falar de minhas, bem-
vindas, frustrações e das possibilidades de operar impossíveis.
Eu já perdi a conta, mas devo ter passado das 200 apre- Eu já perdi a conta, mas devo ter
sentações de Palhaçaria Itinerante nos 10 anos de desen- passado das 200 apresentações de
volvimento desta técnica o que parece, mas, convenha- Palhaçaria Itinerante nos 10 anos
mos, não é lá grande coisa. A prática vem me ensinando de desenvolvimento desta técnica,
que é sempre tempo de ser surpreendido pelas possibili- o que parece, mas, convenhamos,
dades que um palhaço itinerando pode trazer à tona. não é lá grande coisa. O número de
No dia seguinte à primeira ação fui escalado para segun- três dígitos apresenta sua perversi-
da apresentação dentro do festival. Era 22/09 e, diferen- dade ao construir em mim tanto
temente do que costumo fazer, a intervenção aconteceria uma ilusão de que existe algum
à noite, e, igualmente diferente, em uma quadra de bares grau de confiabilidade na qualida-
e restaurantes frequentada por jovens e adultos. Um tanto de das apresentações vindouras que
pela frustração do dia anterior, um tanto pelo acumulado estivesse ligada à reprodução de
de diferenças, baixei a minha guarda ao acontecimento momentos valorosos deste his-
vindouro e escrevi no meu diário “minha maior meta hoje tórico (ainda que a improvisação
é estar junto. Simplesmente estar, ouvir, deixar-me seja traço fundamental desta técni-
envolver pela singularidade do momento. Res.pi.rar.” A ca), quanto uma grande exigência
noite, antes de sair para a rua, fechei os olhos e senti meu em relação a qualidade do resulta-
coração batendo forte. Respirei fundo e saí. Desde o do (expectativa intensificada em
primeiro olhar busquei “parar para olhar” (BONDÍA, eventos como festivais, especial-
2002, p. 24) o que havia no entorno sem forçar o que mente os internacionais).
pudesse acontecer e me surpreendi quando jogos inéditos Assim como ocorreu anteriormente
começaram a surgir, fruto não apenas de minha maneira no Haiti, a primeira intervenção de
ridícula de lidar com o espaço, mas da peculiaridade do palhaçaria realizada no festival
encontro: e um guarda-chuva que era espada matou um francês deixou, ao seu fim, uma
carro na calçada enquanto sua motorista gargalhava lá de enorme frustração, uma sensação
dentro, uma cestinha de pão virou quipá e os seus donos de não estar à altura do aconteci-
reconheceram sua cômica sacralidade, e os encontros se mento que acabara de se dar e eis
davam, e os sorrisos se abriram e pouco a pouco era que me vi em um exercício quase
possível estar verdadeiramente junto. compulsivo de rememoração tão
Isso até que um senhor disse non. Eu tinha comigo algu- minuciosa quanto possível do
ns folders do festival e tinha acabado de oferecer a ele e vivido em busca dos erros cometi-
ele me olhou nos olhos e disse ‘não’. Talvez eu tivesse dos. E encontrei os mesmos daque-
ido embora em outra ocasião, mas algo ali revelava uma la outra ocasião: a interrupção dos
certa abertura e eu arrisquei sentar ao seu lado e cultivar jogos antes do fim por/e falta de
o encontro. Repeti algumas vezes non! Olhava o folder e escuta ao que ocorria ao meu
ia desdenhando dele a cada non, distanciando-me das ex- entorno; muito tempo sem trocar
pectativas e aproximando-me desse senhor desconhecido olhares com o público (sem trian-
de quem, olhos nos olhos, ouvi non. Foi quando reparei à gulação) e não deixar que o jogo se
minha frente, parado, um grande cachorro do bar em desenvolvesse naturalmente, fa-
posição de alerta. Eu já tive uma série de pequenos zendo uso preferencial de roteiros
contratempos com cachorros, especialmente quando se já conhecidos. Ou seja, havia pou-
assustam com as roupas ou os modos exagerados do Fe- ca abertura a ser atravessado pelo
lisberto, e aquele era particularmente um cachorro gran- acontecimento em si, pouca pre-
de, então senti a necessidade de prosseguir o jogo com sentificação. Havia medo de que a
cuidado. Eu dizia non e balançava o folder e o cachorro diferença que o estrangeiro propor-
seguia o folder com o olhar. Surpreso, indiquei com o cionaria ao encontro e ao encami-
olhar aos que estavam a minha volta a reação do cachor- nhamento dos jogos, pudesse des-
ro e arrisquei estender vagarosamente o braço em dire- configurar minhas possibilidades
ção a ele, oferecendo o folder e dizendo Francophonies, de lidar com o acontecimento ao
non! O cachorro abriu a boca vagarosamente e recebeu o ponto de que eu perdesse a capaci-
folder com gentileza, e, parecendo ter entendido que o dade de construção compartilhada
momento era de virar-se contra o folder do festival, o da experiência e fosse lançado à
colocou com cuidado entre as patas e o estraçalhou em contemplação. Ao ignorar essa
muitos pequenos pedaços, sob o olhar incrédulo dos que diferença eu recusei justamente
estavam a nossa volta. Voilá le impossible! esse outro que poderia me tornar.
coadunadamente possível. Para isso ele tem de progressivamente ir engajando não apenas sua
macropercepção, mas inclusive, sua micropercepção para leituras e construção de aberturas ao
mundo no qual ele está, literalmente, imerso. Mesmo antes que se torne plenamente consciente
o seu corpo tem de ser capaz de reagir aos estímulos oriundos dessa relação o que, ao fazê-lo,
garantirá progressivamente a eficácia de seu intento.
A passivatividade é aplicável tanto a uma postura interna a cada ação executada, ou
seja, a ser perseguida durante sua realização, quanto à construção de novas ações, pertinentes
àquele espaço-tempo e é em ambas as funções que ela contribuiu para as ações seguintes, que
finalizam este ensaio. Tal postura é duplamente exercitada em derivas realizadas pelas cidades
nas quais me encontro. Derivas são caminhadas a esmo que visam quebrar a lógica funcionalista
da cidade como espaço de passagem e colocar o foco na experiência de encontro com o espaço
urbano a partir de caminhadas cuja lógica encontra-se no próprio caminhar através do
desacostumar o olhar do hábito em direção à cidade real em processo análogo ao que tenho
defendido aqui na construção da estrangereidade. Em tais caminhadas, realizadas nessa pesquisa
em Bondy, Marselha e Paris, é possível habitar as aberturas que transcendem a ilusão da cidade
pasteurizada, capturar a oportunidade de relação com a cidade real e exercitar o olhar para os
atravessamentos vislumbrando as demandas oriundas do encontro com cada singularidade.
Dentro da metodologia que venho experimentando, evito tanto quanto possível ceder
aos impulsos oriundos desta postura que divirjam do caminhar, de modo a permitir que eles se
tornem conscientes não apenas como impulsos, mas quanto às questões que carregam e
estabelecerem de maneira clara seu raio de afecção, de modo que eu possa construir, em
momento sucessivo, um programa performativo e executá-lo.
Antes de tratar do surgimento e desenvolvimento da ação C’est Bondy, faço referência
ao nome. Escolhido posteriormente, o nome da ação vem dizer justamente da sensação de que,
ao realizá-la construída a partir da deriva e do olhar desacostumado (que não reconhece na
cidade as cidades anteriormente vividas ou projetadas, mas vê a cidade em sua singularidade)
pude, finalmente, entrar em contato com a cidade de Bondy a partir da singularidade do
encontro e só então pude dizer c’est Bondy: esta é Bondy!
A história da ação, no entanto, começa antes da deriva realizada na cidade de Bondy e
foi registrada assim em meu diário de campo
consideração que o colchão já estava ali há alguns dias). Ou seja, ao meu corpo brasileiro ele era
perfeitamente tateável (novamente o tato!) e por isso a naturalidade de minha ação, a disposição
para tocá-lo e movê-lo. Com a reação das pessoas ao meu entorno – combinada com uma
prontidão que Flusser igualmente identifica como natural ao estrangeiro – passei imediatamente
a sentir que tinha feito algo errado e eu prontamente acatei as mudanças que senti serem
necessárias. Após esse fato, no entanto, eu tinha outra disposição para a ação. Uma hesitação se
instaurara, derivada da percepção de uma clara infração das regras vigentes.
Eu decidi não mais tocar os objetos que Eu decidi tocar os objetos que encontrava na
encontrava na rua. Durante dois dias rua. Ou melhor, da singularidade do encontro
encontrei diversos objetos com as mesmas de minha estrangereidade com a especificidade
características: abandonados nas calçadas, daquele espaço emergiu essa possibilidade de
aparentando estarem em tal condição de coabitação entre nossas diferenças e eu decidi
uso que por vezes me perguntei se eles não engajar-me o possível para lhe estar à altura.
haviam sido esquecidos ao invés de descar- Durante as três ou quatro horas de deriva reali-
tados (nesses casos minha ética contribuía zada na cidade, no que viria contribuir definiti-
para que eu não interagisse com eles). vamente à construção desta ação sitespecific no-
Depois desse período, resolvi perguntar tei que os objetos encontrados nas ruas me re-
aos moradores da casa onde eu me metiam sempre a imagens de como compunham
hospedava qual a razão que eles atribuíam o espaço antes de serem descartados, ou seja, de
a presença de tantos objetos nessas quais configurações espaciais estavam im-
condições nas ruas e eles me responderam pregnados e quais possibilidades de relação su-
desconhecerem sua existência. Para minha geriam entre si e com eventuais corporeidades
percepção os objetos criavam pilhas que humanas. Outro atravessamento se deu em rela-
chegavam por vezes a impedir a passagem ção ao que registrei em diário como “a inércia
dos pedestres, para a percepção deles eu inexorável do velho continente”: as pessoas que
nem ao menos poderia interagir com os transitavam comigo nas calçadas pareciam não
objetos, pois eles não existiam. Das duas ver os objetos que repousavam na mesma posi-
uma: ou eu estava equivocando-me ou o ção por dias (essa impressão era possível dado
olhar do hábito impingia-lhes um manto que em algumas das ruas que fiz a deriva, eu já
sobre a cidade real (uma outra maneira de havia estado anteriormente), tudo parecia que-
pensar essa segunda hipótese é retomar- rer, peremptoriamente, ficar. Lembrei do moti-
mos não Flusser, mas Chklovski, que, ao vo que me tornou ridicularizável em Portugal e
tratar da percepção, aponta que esta gera compreendi o potencial revolucionário do
“de maneira inconsciente ações automáti- quebrar dos objetos, ao menos como modo de
cas, onde não se vê o objeto, mas simples- dar-lhes movimento (nesse sentido havia algo
mente o reconhece, na sua superfície.” de revolucionário também na minha rotina
Apud. Toledo, p. 43) ao não ver o objeto desastrada, no meu corpo ainda inadequável).
não é possível entrar em contato com ele, No dia seguinte, realizei o seguinte programa
dar-se conta de sua existência. performativo: derivar; selecionar objetos que a
Eu havia decidido não mais tocar os mim se revelassem como reaproveitáveis;
objetos, mas quando eu estava observando reorganizá-los no espaço e entre si segundo as
o senhor da conclusão da ação Acompa- possibilidades de combinação neles contidas;
nhante feita em Bondy esperar o ônibus, fotografar; e abandoná-los na nova organização.
encontrei aos meus pés um carrinho azul Se até então minha existência naquele bairro re-
de ferro e algo na minha infância me fez pleto de imigrantes tinha, em geral, pouca visi-
pegá-lo. Naquela noite eu mostraria o car- bilidade, ao começar a ação reencontrei o lugar
rinho àqueles que me hospedavam se não de tensionamento e potência de construção de
tivesse algum receio que eles achassem ondas de afecção similar ao que encontrara an-
que eu o havia roubado. Eu decidi então teriormente ao mover do colchão, o que desen-
que tocar os objetos era mais importante cadeou um processo de mobilização de paixões.
do que não os tocar, que havia força e atra- Ainda que estivesse o mais atento possível à re-
vessamento nisso, que havia potência de alização do programa, diversas pessoas reagiam
acontecimento e era importante respeitá-la. emocionalmente a mim e a ação, tomando posi-
Só ainda não sabia bem como. ções que pareciam religar-lhes ao espaço real.
Um menino de
aproximadamente 10
anos destaca-se do grupo
de crianças com o qual
brincava e aproxima-se.
Ele parece maravilhado.
Mantém-se imóvel, a
boca aberta enquanto
observa silencioso a ação
por vários minutos.
A pertinência da ação vai se revelando por seus próprios critérios. Neste caso, a
mediação de meu olhar estrangeiro e a ação desencadeada pareceu estabelecer uma ponte que
correlacionava espaço e sujeitos, atravessando a coberta do hábito, confrontando a tendência à
invisibilização das pilhas de objetos e sua inércia.
O rearranjo das posições dos objetos poderia ter passado sem alterar
macroperceptivelmente os usos e práticas do espaço público pelos transeuntes, o que se deu, no
entanto, foi que a busca pelo arranjo estético trouxe certa potência ao convidar o olhar (o lixo
deixava de ser algo a ser ignorado passando a algo a ser visto), atuando sobre a política de
visibilidade dos entulhos e trazendo algum movimento às concepções de realidade, que agora
passariam a incluir aquele uso/ocupação do espaço público e seus objetos, e à ideologia
impregnada na escolha anteriormente tomada (pelo acordo social que presenciei até então:
ignorá-los) que pela pluralidade de usos pôde tornar-se consciente como escolha.
De maneira similar ao que defende Costa quando diz que “a experiência estética (com o
que de alteridade ela pode tornar sensível) interpela ideologias de sujeito e de mundo e a rigidez
das formas do sujeito e do mundo tal como os conhecemos (ou acreditamos conhecer)” (op.cit.,
p.265), a ação parecia desencadear interpelações e convocar a um posicionamento (ou a
consciência desse posicionamento) de modo que o espaço por si e a partir da relação com os
passantes disparava afetos em cadeia.
Dizer que o espaço por si convocava afetos (e isso se revela nas ações dos transeuntes
listadas, que sempre se direcionavam de alguma maneira ao espaço) é corroborar com a tese de
Fontes quando afirma que “A intervenção temporária tem essa capacidade de colocar o espaço
‘em ação’, em movimento.” (op.cit, p. 53) A interação com um espaço que passa a ser coativo à
experiência na urbe tanto ‘no’ quanto ‘para além’ do evento estético e por regras que se
constroem na relação é, por fim, também um gesto no sentido de superar a alienação da vivência
na urbe pela convocação à participação ativa em sua construção permanente e que tende ao
encontro da “[...] autêntica poesia, isto é, a construção livre da vida cotidiana.” (2002, p. 99),
defendida pelos situacionistas em textos como Banalidades Básicas, de Raoul Vaneigem (de
onde o excerto foi tirado).
Logo após a realização desta ação viajei à Marselha como estava previsto desde o
rearranjo de datas após a perda da viagem de trem no meu primeiro dia na França. Partir não foi
agradável. Após um período de desencaixe com as demandas e possibilidades da cidade, a
realização da ação C’est Bondy me deu, finalmente, desejo de ali ficar, como se a ação
funcionasse como a construção de uma metaestabilidade entre mim e a possibilidade ‘surfável’
neste encontro com a cidade. Perguntava-me quantas diferentes pilhas de materiais poderia
encontrar, quais arranjos poderia tornar visíveis e quais os possíveis desencadeamentos estes
poderiam gerar. Mas, era hora de partir.
De fato, o laço com a cidade é um movimento de desestrangeirização e, nesse sentido,
partir também é uma forma de permanecer estrangeiro. Mas mesmo o partir estrangeiro dá-se
em dinâmica própria, isso porque este não é apenas um desenraizado, como tem outra fruição do
espaço em relação à dinâmica de mobilidade dos que ali residem. Assim, é comum tanto que
sua mobilidade se restrinja, ainda que não esteja sendo constrangido a isso, a espaços exíguos e
não comumente utilizados para serem habitados por mais de alguns momentos (espaços como a
rodoviária, o aeroporto, os órgãos do setor de imigração de um país ou a embaixada de seu país,
ou ainda mesmo, o hotel) ou que salte enormidades (indo, justamente por desenraizado, quase
ou sem encontrar, em si, resistência, de uma cidade, de um estado, de um país a outro), seu
espaço transcende, desta forma, dinâmicas e contenções de uso dadas e incorporadas por
aqueles que ali residem. Porém, sua vivência no espaço tem uma fruição em multiplicidade,
pois, ao contrário dos que habitam e categorizam em si os espaços como dados e estáveis, com
ele não param de agir novos espaços de cada espaço, novos sentidos, novas interpenetrações, de
modo que de um espaço acolhedor por vezes emerge um absolutamente hostil e vice-versa. Até
que finde sua estrangereidade, o espaço não deixa de lhe escapar, o convida e o expele
concomitante e mutuamente (cada espaço em função de outro, do devir), o põe em velocidade.
A não incorporação do espaço a partir de suas dinâmicas sedimentadas também explica,
em parte, o temor que o estrangeiro provoca, na medida em que sua corporeidade não se mostra
comprometida com a manutenção do mundo como se apresenta aos habitantes. Seu corpo não o
perpetua justamente pelo fato de que as ações formadoras e perpetuadoras do espaço como
construído pelos habitantes escapam a ele e ele a esse mundo. Assim, o mundo ao seu entorno
não cria nem contiguidade, nem continuidade em seu corpo-território.
Em Marselha eu retomava parte considerável de minha estrangereidade. Diversas
impressões que eu havia tido em Bondy e Paris e atribuía a uma suposta identidade nacional se
liquefaziam nas particularidades do lugar, deixando-me novamente à deriva. Após recorrer às
ações já descritas (Ação de Aniversário n.34 e Acompanhante), concebi e realizei, a partir de
procedimento análogo à ação C’est Bondy, a ação posteriormente denominada C’est Marseille.
Eu estava hospedado no bairro de Panier, parte antiga da cidade que congrega
residências e pequenos comércios e cuja arquitetura é marcada por diferentes escolas de
diferentes períodos históricos, dando certa perspectiva da tradição milenar daquela povoação
urbana (segundo relatos de habitantes, confirmados em sites na internet, os primeiros resquícios
da presença humana na região são pré-históricos e a arquitetura traz fortemente uma impressão
de coexistência, senão de todo este período, ao menos dos últimos séculos).
Duas fotos do bairro Painer, em Marselha. Convivência de diferentes estéticas arquitetônicas. Fonte: internet.
Quando realizei a deriva (principalmente pelo bairro Painer, mas não só), diversas vezes
fui atravessado por um impulso tátil-cinético de investigar por / para quais corpos aquelas
estruturas arquitetônicas foram concebidas, estabelecendo posições e movimentações no espaço
cujos acoplamentos elas sugeriam ou as composições elas tornavam possíveis pela dinâmica de
vazios e cheios que as suas formas criavam. Investigação esta que, é bom que se diga, não era
executada por nenhum dos passantes observados, focados que estavam em um uso funcionalista
e padronizado da cidade, em geral, pelo exercício dos usos para o qual os elementos da cidade
foram concebidos, com raras exceções prováveis como a presença de pedintes ou alterações de
fluxo por conta de obras públicas ou privadas.
Se algumas vezes tais impulsos foram acolhidos como sugestão de trajetos pela cidade,
por outras, sempre que envolviam alguma ação diferente de uma maneira ou um sentido para o
caminhar, busquei interromper a passagem do impulso à ação de modo que sua constituição se
delineasse mais claramente. Foram justamente estes impulsos que conduziram a construção da
intervenção sitespecific C’est Marseille, que foi executada a partir do seguinte programa
performativo: transitar pela cidade sendo guiado pelos convites de acoplamentos e composições
táteis e cinéticas que os elementos arquitetônicos da cidade me fazem; quando me ver em uma
posição inusitada observar atentamente o entorno por aquele ponto de vista, atentando ao que
ele me permite ver diferentemente das posições já tomadas; atentar às janelas e portas por onde
possa ser observado; sempre que me ver observado, cumprimentar a pessoa e aguardar o retorno
de modo a tentar compreender como minha ação lhe reverbera; me mover apenas ao final da
troca de olhares e/ou apenas quando guiado por um novo convite do espaço.
A fotografia, como parte do programa performativo da ação C’est Bondy, tinha a
intensão de agir sobre a política de visibilidade dos detritos, auxiliando que eles passassem de
algo a ser ignorado, para algo a ser visto (e registrado). Porém, não havia sentido para que a
fotografia estivesse presente no programa da ação C’est Marseille, já que nem a política de
visibilidade não fazia parte de seus motes disparadores, nem outra função se delineava, de modo
que se torna necessário um relato mais detalhado de como se deu o formato final da ação, ao
menos de meu ponto de vista ao executá-la. Após alguma investigação de modos de acolher os
impulsos supracitados, a ação foi encontrando sua configuração como um trânsito entre a dança
e rudimentos de escalada, e lembrava vagamente o Parkour, porém com o uso de pausas sobre /
nas posições com os obstáculos: no lugar da busca da eficiência para superá-los, própria do
Parkour, os obstáculos eram vistos como oportunidades de novas composições corpo-mundo. A
ação, executada em 17.09.2016, durou em torno de três horas e, restringiu-se ao bairro Panier.
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A deriva também encontra lugar de destaque se considerarmos as práticas feitas na plataforma de que
faço parte – quandonde intervenções urbanas em arte – sendo, inclusive peça fundamental da pesquisa de
mestrado “Pistas para uma poética dos acidentes”, concluída em 2016 na Universidade do Estado de
Santa Catarina (UDESC) pela outra componente do núcleo mais estável da plataforma, Juliana Liconti.
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IMAGENS
Pág 5, 12, 19 (coluna da direita), 22, 26 e 27 são provenientes do arquivo de quandonde intervenções
urbanas em arte. Registros de Intervenções Urbanas. 2016