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Encontros Complexos:

uma conversa com Agustín Fernández Mallo

Complex Encounters:
a conversation with Agustín Fernández Mallo

Ciro Lubliner
É artista, pesquisador e tradutor. Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ, realiza
atualmente um pós-doutorado em Estudos da Tradução, na USP, contando com o apoio
da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processo nº
2020/08504-1.

Tiago Cfer
É escritor, pesquisador e tradutor. Seu ensaio Desabrigo-mundo: narrativa século XXI
será publicado em 2022.

***

Agustı́n Ferná ndez Mallo nasceu em 1967, em La Coruñ a, Espanha. Fı́sico de


formaçã o, o autor ingressa na literatura com a publicaçã o do livro de poesia Yo
siempre regreso a los pezones y al punto 7 del Tractatus, em 2001.
Antes dessa publicaçã o, Mallo lança a ideia de poesia pós-poética, um
programa de escrita que investiga conexõ es entre poesia, artes, ciê ncias. Alé m de
Yo siempre regreso a los pezones y al punto 7 del Tractatus, os poemá rios Creta,
lateral travelling (2004) e Joan Fontaine Odisea (mí descontrucción) (2005) sã o
resultados dessa proposiçã o, posteriormente teorizada no ensaio Postpoesía. Hacía
un nuevo paradigma (2009).
Interessante neste livro, e no trabalho do autor de um modo geral, é o
desenvolvimento e a implementaçã o de uma textualizaçã o transversal que se
expande em diferentes gê neros de escrita – poesia, teoria, narrativa, performance,
produçã o audiovisual em livros, blogs, sites, conferê ncias. Ao tomar a noçã o
foucaultiana das heterotopias, no contexto de uma pragmá tica apropriacionista
pó s-poé tica em que se experimenta a construçã o de linguagem com documentos,
textos, conceitos, imagens provenientes da tradiçã o canô nica, mas també m do
universo pop e das redes de informaçã o, Agustı́n Ferná ndez Mallo engendra um

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campo discursivo em que ciê ncia e ficçã o se fundem numa obra sem filiaçã o,
afirmadora de uma visã o positiva da complexidade e do caos. Um nomadismo
esté tico sintonizado com a arte radicante – nã o radical, mas mutante, mó vel –
proposta por Nicolas Bourriaud.
Postpoesía. Hacia un nuevo paradigma se apresenta como livro-laborató rio,
espaço de experimentos poé ticos abertos que podem ser desdobrados e
transformados indefinidamente para alé m dos limites do livro. O resultado decorre
da aplicaçã o de uma noçã o retirada das ciê ncias da natureza, a de Sistemas
Complexos, nos procedimentos de criaçã o literá ria. O que acaba por gerar uma
realidade textual insó lita, nova, para a qual a expressã o artı́stica vai sendo traçada
à medida de sua elaboraçã o. Uma disciplina sem emprego, em permanente
formaçã o.
Algo que se experimenta com a leitura da trilogia Nocilla (Nocilla Dream,
2006; Nocilla Experience, 20081; e Nocilla Lab, 2009), primeira incursã o de AFM na
narrativa que acabou virando base propositiva para uma geraçã o de escritores
espanhó is nomeada “Geraçã o Nocilla”, ou “Afterpop”. A combinaçã o de fragmentos
de vidas, pedaços de espaços, territorialidades, restos de objetos, lixos, spam,
fractais do mundo na montagem de trê s romances que compõ em uma rede
complexa de realidades recombiná veis, faz emergir um horizonte de eventos ainda
nã o vislumbrado no universo romanesco. Testemunha-se um projeto de autoria
ligado ao desbravamento de novas espacialidades diegé ticas, o que faz do autor,
como observou o escritor e professor Maurı́cio Salles Vasconcelos em um ensaio de
2014, um arguto mapeador2.
Talvez o livro mais radical de Mallo seja El hacedor (de Borges), Remake –
apropriaçã o e reescrita de O fazedor, de Jorge Luı́s Borges, que utiliza, por exemplo,
registros de viagem do autor atravé s de aplicativos como Google Earth e Maps, via
celular, e mé todos de composiçã o extraı́dos da land art de Robert Smithson.
Publicado em 2011, El hacedor (de Borges), ‘Remake’ foi retirado de circulaçã o em
um processo movido pela viú va de Borges, Marı́a Kodama.

1 Estes dois primeiros volumes da trilogia sã o os ú nicos livros de Mallo já traduzidos no Brasil, por Joana
Angé lica d’Avila Melo, e publicados, ambos, pela editora Companhia das Letras no ano de 2013.
2 Disponı́vel em: https://www.musarara.com.br/mallo-um-mapeador. Acesso em 4 nov. 2021.

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Em 2018, Agustı́n Fernandez Mallo publicou seu segundo ensaio, Teoría
general de la basura (cultura, apropiación, complejidad). Ed sobretudo em torno
deste livro que se dá a conversa a seguir.

Ciro Lubliner
Tiago Cfer

***

Gostaríamos de iniciar nossa conversa com uma questão simples e direta:


como você diria que toda a experiência – artística, literária, jurídica, política
etc. – com El hacedor (de Borges), Remake ecoou e gerou efeitos na escrita e
no pensamento construídos em Teoría general de la basura?

Agustín Fernández Mallo: Não tenho certeza quanto a isso, mas provavelmente
há algo dessa experiência em meu ensaio. De todo modo, é lógico que se tratava do
tema do apropriacionismo artístico, já que ele é como um mecanismo, como uma
dinâmica geral que está em toda a minha obra, desde o início, nos meus poemas,
nas minhas narrativas e nos meus ensaios. A criação não é outra coisa senão a
equação cópia+erro. Se acontece de o erro ser “positivo”, ele se torna um achado e
transforma o conjunto em algo realmente novo, frutifica e permanece na
sociedade, e isso é o que é chamado de “obra”. Felizmente, nós os humanos
copiamos mal, não somos arquivos nem algoritmos, por isso, às vezes, nos erros
que cometemos, involuntariamente, introduzimos a diferença que se torna legítima
criação.

Gilles Deleuze escreve em Diferença e Repetição que um livro de filosofia


deve ser, por um lado, um tipo particular de romance policial – os conceitos
intervêm, com uma zona de presença, em resoluções locais –, e, por outro,
uma espécie de ficção científica – a coerência desses conceitos consiste
justamente em compreender a especificidade dos problemas em suas
modificações, apreendê-los em seus aspectos por vir. “Só escrevemos na
extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso
saber e nossa ignorância e que transforma um no outro.” A escrita em seus
livros parece estar sempre traçando um percurso pelas bordas entre interior
e exterior, local e global, analógico e digital. Os campos semânticos
(científicos, artísticos, proféticos) constituídos nessas bordas liberariam o
que você denomina a “Linha Ano Zero” das coisas. É isso mesmo? Você

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poderia explicar um pouco esse conceito? O modo como um texto promove
encontros, momentos de indistinção entre repetição e diferença, atual e
virtual, determina sua força teórica ou ficcional?

AFM: Bem, o que acontece é que a Linha Ano Zero das coisas, mais que se liberar,
se amplia, toma novas formas e topologias na medida em que vamos ampliando
esse “romance policial” que – diz Deleuze – é a filosofia. Mas é a realidade completa
que é essa espécie de romance policial. Chamei de Linha Ano Zero o ponto a partir
do qual pelos dados que damos por certos devemos extrapolar e especular o que
está para além, metaforizá-lo, daí que o ser humano me parece um ser
eminentemente metafórico, estando um pouco adiantado à realidade, alguns
minutos adiantado à realidade se é humano de verdade: a metáfora constrói esse
adiantamento, sempre incerto e especulativo. Todas as coisas têm sua Linha Ano
Zero, desde um automóvel que é de repente usado por imigrantes como barco para
atravessar o oceano – modificando seu uso, uma espécie de ready-made – até uma
teoria física que logo salta ao terreno do filosófico, ou a voz, os idiomas falados:
enquanto não conservamos um registro sonoro de como falavam os antigos,
estamos obrigados a imaginá-lo, a inferi-lo. Tal como vejo, a diferença, para que
exista, há de ser uma repetição em que houve uma mutação, é o que antes eu dizia
da criação como cópia+erro. Esse erro é a diferença em relação ao original. Esse
processo vai ampliando a Linha Ano Zero de cada coisa. Por outro lado, vejo de
modo diferente o tema do real e do virtual. Entendo que tudo que acabo de dizer
pertence ao campo do real, e então há o virtual, que também existe, mas que não
está “atualizado”, existe como uma possibilidade a que nunca chegamos, existe
como polo atrator infinito – o que na física se chama um atrator caótico –, algo que
te cerca sem jamais chegar a te alcançar. Daí que a força de um texto, de qualquer
obra, se encontra em promover esses encontros do real com o virtual, do que é
certo com o que é especulado, em sua própria Linha Ano Zero, ampliando-a,
arriscando no desconhecido.

Nietzsche já afirmava a estupidez da separação entre ciência e arte (“O


homem científico é a continuação do homem artístico”), ideia absurda que,
desde então, o humano parece só ter feito alimentar. Como cientista e artista,
no que e quando você diria que arte e ciência se conectam? Você tem a

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impressão de que a arte está sempre aberta ao científico, mas que os
Cientistas são pouco afeitos à arte por ainda se manter em um pensamento
tacanho de que a arte é “inútil” e, portanto, apartada das evidências, das
descobertas e do modus operandi da Ciência? Em Teoría general de la basura,
é possível ver que você se apropria de diversos conceitos da filosofia,
explicitando a referência ou não. Como você pensa a apropriação, a
deformação e a ressignificação de conceitos filosóficos ou mesmo de noções
científicas?

AFM: Penso que é uma desgraça essa separação artificial de saberes, e penso
também que têm culpa tanto a mentalidade clássica da ciência quanto a das artes.
Ambos mundos não se compreendem nem querem se compreender, algumas vezes
até se depreciam, uma atitude que me parece inculta no sentido restrito da
palavra: desconhecer o que é uma cultura propriamente humana. A ciência e as
artes estão totalmente conectadas em muitos pontos. Pensemos nesse exemplo:
quando um senhor chamado Isaac Newton vê cair uma maçã de uma árvore e se
faz a pergunta, a grande pergunta que praticamente funda a ciência moderna: “por
que a maçã cai e a lua não?”, essa é uma pergunta que bem poderia ter sido feita
por um poeta, é uma interrogação propriamente artística também. Em toda criação
científica há componentes de intuição, de salto inexplicável, de inspiração e
audácia criativa, e vice-versa, em toda obra artística há um componente
investigativo, lógico, que busca explicar o mundo.

Você considera que “o ser humano é um ente eminentemente metafórico”.


Talvez, dos livros de filosofia escritos no século passado, o que mais se
aproxima da rede complexa mencionada por você em Teoría General de la
Basura seja Mil Platôs, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. No entanto, neste
livro, Deleuze e Guattari combatem a lógica das leituras interpretativas que
supõem a metáfora. A noção, por exemplo, de que “o cérebro é uma erva”
como afirmam os autores, ou que “a linguagem é um vírus”, como disse
William Burroughs, somente produzem a diferença quando são lidas
literalmente. A ideia de metáfora, recorrente em seu livro, não seria um
obstáculo para o que é nele proposto?

AFM: Não concordo com a ideia de que a metáfora seja um obstáculo como leitura
interpretativa. Na verdade, considero o contrário: a metáfora é o que,
precisamente, gera a diferença que faz com que o objeto seja concebido como algo
dotado de um novo sentido, é quando um campo semântico de repente

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normatizado se põe em relação não arbitrária com outro campo semântico e faz
com que ambos mudem: cria uma realidade. Algo que antes não existia – e isto é
importante –, sem anular ou destruir os campos semânticos que já tínhamos
anteriormente. A metáfora é o mecanismo cognitivo mais forte e importante para
se criar realidade. Não somente a ciência – que cria realidade – está cheia de
metáforas, mas também a filosofia. O próprio título do livro citado, Mil platôs, é
uma metáfora. Ou a palavra rizoma, muito usada nesse livro, ou outro conceito
muito usado, Corpo Sem Órgãos (CsO), todos são metáforas. Concordo com
Nietzsche quando dizia que toda palavra comum, toda palavra cotidiana, é
metáfora de algo, mas uma metáfora tão antiga que já a esquecemos. Uma das
coisas a que meu livro, Teoría general de la basura, se propõe é
ilustrar/demonstrar o modo em que a metáfora pertence a todos os campos da
cognição humana – à ciência, à política, à economia, às artes etc.

Parece-nos cabível a crítica que você realiza em Teoría general de la basura à


noção de fragmentário como uma certa “bengala” conceitual relativista na
arte contemporânea. No entanto, o conceito de fragmento na filosofia e na
literatura, em uma seta apanhada e relançada nas direções Schlegel-
Nietzsche-Blanchot, percorre um outro trajeto, que é muito interessante, do
fragmento não como conservação ou mera parte de um suposto todo, mas
uma dinamitação, uma experimentação com a linguagem e com o
pensamento – uma forma de instauração de redes ou sistemas complexos
(para dizer com sua perspectiva). Você não crê que o fragmentário pode
ainda produzir forças artístico-literárias consideráveis? Se sim, em seu ponto
de vista, como isso seria possível sem se recair em um relativismo?

AFM: Bem, claro que creio que isso que estão chamando “fragmentário” pode
produzir forças e potências, de fato, vemos isso a cada instante. O que ocorre, e é o
que digo em Teoría general de la basura, é que essa fragmentação é aparente,
porque se algo fosse realmente fragmentário o cérebro não poderia nem sequer
apreendê-lo, captá-lo, entendê-lo. O que vocês chamam de fragmentário é uma
linguagem contemporânea que chamo de rede complexa, isto é, aparentes
fragmentos – que são os nós da rede –, unidos pelas conexões que o leitor vai
construindo – que são os enlaces, os links, entre esses nós da rede. Por outro lado,
não sou tão crítico como acreditam quanto ao relativismo, trata-se de um
mecanismo que, se bem administrado, te permite avançar, não ficar ancorado,

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estabelecer reducionismos metodológicos para poder seguir ampliando o campo
semântico das coisas – ainda que relativamente.

Para terminar nossa conversa, uma questão direta, mas não tão simples:
você poderia nos dar um exemplo de como o “realismo complexo”
desenvolvido em Teoría general de la basura difere das tradições do
realismo – moderno, modernista, pós-moderno?

AFM: Sim. Será um pouco demorado explicar, mas fácil de entender, com um texto
que escrevi faz pouco tempo. Por exemplo, na visão dos objetos como “objetos
rede”. As entidades e as coisas que formam nosso meio ambiente físico e simbólico
são cada uma delas uma rede em si mesma, em que despertam toda classe de
facetas e característica materiais, linguísticas, históricas, políticas e sociais, de
modo que forma por sua vez uma comunidade de intercâmbios materiais e
simbólicos que não podem se manifestar todos ao mesmo tempo; dependendo do
modo como se endereçam, aparecerá uma faceta ou outra, ou um estado de
mistura. Quem pode negar que uma xícara de café que agora mesmo descansa
sobre minha mesa, junto com uma embalagem de leite, e sobre a qual sei que
algum dia terei que escrever, é uma materialidade (átomos que vão e vêm, e toda a
teoria atômica que ela representa, desde Demócrito até os quarks postulados pela
física do modelo padrão), e que essa xícara é feita de porcelana (se faz assim
presente em minha xícara toda a história desse material, procedente da China, e
que, como hoje o petróleo, deu lugar no passado a duras guerras entre Estados), e,
além disso, está decorada com temas da pintura holandesa do século XVIII (ante
mim está então a história da Arte, a museologia e portanto as teorias estéticas), e
que foi comprada em um hipermercado de uma megalópolis (essa xícara contém,
então, os transportes de mercadorias hoje, o comércio mundial e suas fábricas no
Terceiro Mundo) que, além disso, não por acaso se chama xícara e não copo (nela a
linguagem comum aninha-se assim na minha língua), mas que, ocasionalmente, e
cada vez com mais frequência, em alguns catálogos de compra e venda é chamada
mugg (e assim essa xícara também são políticas linguísticas que tratam de
estabelecer a hegemonia de uma determinada cultura, nesse caso anglo-saxônica,
e, portanto, a hegemonia da religião protestante da qual essa cultura é

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representante), e etc? Sim, minha xícara, sua própria materialidade, é um objeto
real, tão real que acabo de tomar um gole de café, e ao mesmo tempo é uma
entidade complexa, conformada por nós e enlaces materiais, culturais, linguísticos
e políticos: minha xícara é uma rede embebida em um enorme emaranhado de
outras redes. O tipo de narrativa que não evita essa rede complexa e real que é
minha xícara, é o que chamo de Realismo Complexo. Minha xícara, em cada
instante e para cada observador, terá uma dada complexidade sobre a qual se
inserem os links da rede que vêm e vão de um lado para o outro: do que está
claramente exposto em minha xícara ao que é profundamente especulado na
minha xícara mediante a ficção. Uma cambiante e móvel Linha Ano Zero da xícara.
E uma das principais características dos objetos e sistemas suscetíveis de ser
estudados de acordo com essa ótica, é que – e aplicando agora uma terminologia
termodinâmica – são entidades ao mesmo tempo abertas e fechadas, o que
equivale dizer que trocam informação, matéria e energia com o exterior, todos eles
materiais que saem e depois, transformados, regressam ao sistema na forma de
realimentação: o objeto da minha ficção muda e a medida em que muda, aprende,
converte-se em outra coisa, em minha ficção. Minha xícara, minha embalagem de
leite, uma célula, um autômato, o clima, uma rede de trocas como pode ser a
Internet, ou a rede de mercados mundiais ou um processo de colonização, ou uma
determinada obra artística e as relações estéticas e econômicas que se desdobram
ao seu redor, são por isso sistemas complexos. O objetivo de nossa narrativa hoje é
usar essas características socioculturais e políticas de modo que se insiram na
sentimentalidade que é própria a todo romance, e investigar como essas facetas
poderiam se ver envolvidas em uma história que apele aos sentimentos do leitor. E
como este Realismo Complexo é, por sua vez, também uma rede, isto é, um objeto
complexo, uma teoria, posso vê-lo em certas afinidades, não identidades, com
outras teorias, por exemplo com o pensamento de Michel Serres, ou com um de
seus discípulos, Bruno Latour, ou com as teorias do epistemólogo Manuel DeLanda,
ou com as de Maurizio Ferraris em seu sugestivo Manifiesto del nuevo realismo, ou
ainda com o que ultimamente no pensamento anglo-saxão deram o nome de
Realismo Especulativo, cujo representante mais conhecido é Graham Harman. Em
todos eles há algo que pegamos, mas também algo que deixamos de lado, já que em

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nenhum deles o paradigma principal de sua ontologia nem de sua epistemologia
são as trocas em rede. De qualquer modo, trata-se, em suma, de tentar retirar as
coisas, e em especial a narrativa, do “cárcere da linguagem” a que supostamente a
havia colocado a filosofia continental pós-modernista, e conceber a realidade
narrativa como um sistema que nem é somente uma peça física objetiva e com vida
independente do ser humano (esquecer o estilo de realismo ingênuo de Sokal e
outros positivistas radicais), nem tampouco é apenas uma construção da
linguagem (ao estilo de Wittgenstein ou Derrida), nem tampouco é apenas uma
construção sociopolítica (ao estilo de Bourdieu), antes se trata de uma
complexidade em que todos esses campos se conjugam, e cada objeto, cada
narrativa ou acontecimento é em si mesmo uma rede complexa. Como assinalei,
não resta dúvida de que minha embalagem de leite e minha xícara de café formam
cada qual um sistema em rede, e que, por sua vez, existe outra rede entre ambas,
uma rede de elementos naturais, científicos, poéticos e políticos. Assim, um objeto
nunca se deixa ver por inteiro e de uma só vez, mas tampouco se desgarra em si
mesmo do todo. Um objeto é uma estrutura nômade. Em resumo: nem a unidade
irredutível do pensamento da modernidade, nem tampouco a dispersão pós-
moderna, antes uma convergência complexa. Trabalhar sobre esta convergência
complexa e real é, na minha opinião, o objetivo da investigação da realidade hoje.

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