Literatura - Machado de Assis
Literatura - Machado de Assis
Literatura - Machado de Assis
Porto Alegre, RS
2016
Raul Costa de Carvalho
Porto Alegre, RS
2016
4
Banca Examinadora:
___________________________________________
___________________________________________
___________________________________________
___________________________________________
___________________________________________
The objective of this work is introduce to history teachers some of the main
discussions in differente areas of knowledge about everyday life, presenting this as a
possible and important perspective to be used in different content approach in
classroom. For this, we present some reflections about the relationship between
History and Literature and propose four Machado de Assis’ stories as resources for
the teaching of two themes: slavery and paternalism in the period of the brazilian
history known as Segundo Reinado (1840-1889). The stories selected were:
Virginius: história de um advogado (1864); Mariana (1871); Uns braços (1896) and
Pai contra Mãe (1906). The result of this pedagogical proposal was the production of
a didactic material, called Caderno do Professor, to be used by History teacher’s
from 8th grade of elementary school. In this material, we present possible
interpretations of the stories, according to the objective of the proposed learning, also
some suggestions for activities to be developed in the classroom. The activities of the
Pai contra Mãe storie were applied, and the results analyzed at the end of this
research, allowing some reflections about the trajectory coursed by educators
between the development of learnig objects until the knowledge constructed with the
students.
Referências bibliográficas.......................................................................................86
Introdução
1
Para a análise de uma discussão mais ampla sobre a relação entre saber acadêmico e saber escolar ver
MONTEIRO, Ana Maria F.C. A história ensinada: algumas configurações do saber escolar. História & Ensino,
Londrina, v.9, p. 37-62, out. 2003.
10
2
Os temas propostos para as aulas, como indicado no título da pesquisa, são a escravidão e o paternalismo.
Estes dois processos históricos estão profundamente relacionados com a História da população brasileira de
origem africana. Neste sentido, o presente trabalho insere-se no conjunto de reflexões e práticas pedagógicas
que nos últimos anos têm buscado trabalhar as relações étnico-raciais na escola na perspectiva da Lei
10.639/03, que torna obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas públicas e
privadas do ensino fundamental e médio do país.
12
3
Esse amplo leque de transformações é comumente caracterizado por um único nome: “a nova história”. Tal
designação utilizada para descrever esse conjunto de mudanças não deve, no entanto, encobrir a diversidade
que marcou o movimento de renovação da historiografia, nem a persistência de importantes traços de
tradições epistemológicas anteriores.
13
pesquisas ora como tema, outras como âmbito, perspectiva, categoria. No Brasil, tal
dimensão também despertou o interesse de muitos historiadores. Em artigo de 1992,
Sílvia Petersen4 examinou de que forma a questão da vida cotidiana esteve presente
na historiografia brasileira a partir dos anos 1980. A autora constatou a existência de
grande quantidade de pesquisas que, a partir de seus títulos, sugeriam a vida
cotidiana como objeto de estudo. No entanto, na análise dos principais trabalhos
produzidos nesse período, Petersen afirmou haver o predomínio de um
conhecimento comum do cotidiano, um alto grau de empirismo que não o abordava
com densidade e profundidade teórica, tomando-o em seu grau mais aparente: a
vida de todos os dias, o palco onde as tramas acontecem.
Apesar disso, muitos dos historiadores que se dedicaram à vida cotidiana
desenvolveram importantes trabalhos, com maior consistência teórica e abordando o
cotidiano como um instrumento para se compreender a sociedade. Tais estudos têm
demonstrado relação com algumas das variadas tendências teóricas e
metodológicas que se desenvolveram na historiografia na segunda metade do
século XX. Destas, abordaremos de forma mais atenta três movimentos intelectuais
cujas contribuições tiveram papel decisivo para impulsionar os estudos sobre o
cotidiano: a terceira geração da “Escola” dos Annales, os historiadores marxistas
britânicos e a micro-história italiana.
Inaugurada nos anos 1930, a “Escola” dos Annales passou ao longo do tempo
por uma série de transformações significativas, havendo por isso a necessidade de
diferenciar algumas das gerações que a constituíram. Embora a produção dos
historiadores da chamada terceira geração - desenvolvida nos anos 1980 - seja
caracterizada por uma diversidade de vertentes e temas, podem ser assinalados
alguns pontos em comum que criaram uma identidade entre o variado grupo de
4
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Dilemas e desafios da historiografia brasileira: a temática da vida cotidiana.
Porto Alegre, RS: UFRGS/Curso de pós-graduação em história/ Cadernos de estudo, 1992.
5
As obras que serviram de base para este item foram: PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz; LOVATO, Barbara.
Introdução ao estudo da História: temas e textos. Porto Alegre: UFRGS, 2013 e BURKE, Peter. A escola dos
Annales. 1929-1989. A revolução francesa da historiografia. São Paulo: UNESP, 1991.
14
pesquisadores que são associados a ela6. Muitos desses pontos tiveram papel
importante no desenvolvimento dos estudos sobre o cotidiano. O primeiro, já
mencionado anteriormente, é o surgimento de novos objetos na pesquisa histórica 7,
antes relegados a segundo plano ou mesmo ausentes da produção dos
historiadores. Além disso, foram propostas novas formas de abordar estes objetos 8,
promovendo uma verdadeira revolução documental que ampliou consideravelmente
o conceito de fonte histórica. Nessa multiplicidade de objetos, o cotidiano entrou no
foco de preocupação de muitos historiadores, o que não seria possível sem o
alargamento das formas de se acessar o passado, com a inclusão de documentos
mais propensos ao registro da vida diária.
Outra contribuição importante da terceira geração que pode ser associada à
maior presença do cotidiano como objeto de estudo está relacionada à questão das
temporalidades. Assim como alguns importantes historiadores da segunda geração,
sobretudo Braudel, muitos pesquisadores privilegiaram as permanências ao longo
dos processos históricos, distanciando-se de importantes tradições epistemológicas
que tinham como foco de preocupação exclusivamente as transformações9. Tal
questão foi essencial para que a dimensão cotidiana da vida humana alcançasse um
papel de destaque na historiografia. O cotidiano é o momento privilegiado para a
investigação das permanências. É constituído principalmente por ações e hábitos
que são herdados e apropriados a partir da repetição em tempos de maior duração.
Claro que nele também se produzem mudanças, mas elas, em geral, ocorrem em
um ritmo mais lento. As relações sociais que formam a vida cotidiana têm como
característica fundamental a continuidade de elementos do passado.
Mais importante que o interesse pelas permanências para a abordagem do
cotidiano foi a centralidade dada por muitos historiadores da terceira geração dos
Annales à complexa relação entre a ação dos sujeitos e as estruturas. As estruturas,
tão caras às gerações anteriores, foram repensadas no conhecimento histórico. Sem
negar sua influência, parte dos pesquisadores ligados à terceira geração afastou-se
de uma perspectiva determinista, privilegiando as ações dos indivíduos. Este é, até
hoje, um dos motivos que levam os historiadores a estudarem o passado a partir do
6
São identificados à terceira geração os historiadores Jacques Le Goff, Pierre Nora, Paul Veyne, Philippe Ariès,
Georges Duby, entre outros.
7
Sobre isso, ver LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre, História: Novos Objetos, 3ª. Ed. RJ: Francisco Alves, 1988.
8
Ver LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre, História: Novas Abordagens, 3ª. Ed. RJ: Francisco Alves, 1988.
9
Não se pode atribuir esta preocupação com as permanências a todos os historiadores da terceira geração.
15
Outro movimento que teve grande impacto nos estudos sobre a vida cotidiana
foi a história social inglesa, de inspiração marxista, que se desenvolveu a partir dos
anos 1960 na Grã-Bretanha. Um grupo de historiadores, dos quais Eric Hobsbawm e
Edward Thompson tornaram-se os principais nomes, foi responsável por uma
renovação na historiografia tradicional inglesa, exercendo influência na pesquisa
histórica como um todo. Partindo de preocupações e temas em comum, como o
desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra e o papel do movimento operário na
formação da sociedade inglesa, Hobsbawm, Thompson e outros desenvolveram
algumas questões teóricas que influenciaram posteriormente os historiadores que se
dedicaram à história do cotidiano.
Entre as contribuições deste movimento, está a revisão da concepção
estruturalista que caracterizava a produção marxista anterior. As estruturas eram
tratadas na pesquisa histórica como entidades anônimas que agiam de forma
avassaladora sobre os atos dos indivíduos. Os comportamentos destes eram
compreendidos como sendo determinados totalmente por elas. Não havia espaços
de liberdade e atuação autônoma dos sujeitos. A partir de uma nova forma de
compreender a relação entre a teoria e o material empírico utilizado pelo historiador,
os pesquisadores britânicos dedicaram sua atenção às experiências dos sujeitos
sociais. A crítica de Thompson11 sobre o marxismo predominante até então
enfatizava justamente a inversão existente na relação entre teoria e realidade, em
que os conceitos eram tomados como “fôrmas” dentro das quais a realidade deveria
10
Para este item, foram consultados PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz; LOVATO, Barbara. Introdução ao estudo da
História: temas e textos. Porto Alegre: UFRGS, 2013 e KAYE, Harvey. Los historiadores marxistas britânicos: un
análisis introductório. Zaragoza: Universidad de Zaragoza, 1989.
11
Ver THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento
de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
16
A micro-história italiana12
Assim como a “Escola” dos Annales e a história social inglesa, a micro história
italiana foi mais uma vertente historiográfica a repensar o papel das estruturas sobre
a ação humana. No entanto, diferente das tendências analisadas anteriormente, as
contribuições da micro-história estão relacionadas muito mais a questões
metodológicas que teóricas. Desenvolvida nos anos 1970 e tendo como principais
nomes Giovanni Levi e Carlo Ginzburg, tal prática historiográfica somou-se às
reflexões produzidas no conhecimento histórico no final do século XX que
promoveram mudanças importantes nos paradigmas científicos.
12
Foi utilizada como bibliografia de base PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz; LOVATO, Barbara. Introdução ao
estudo da História: temas e textos. Porto Alegre: UFRGS, 2013; GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros
ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. e LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter. A
escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.
17
***
14
Sobre a História do Cotidiano, há ainda uma vertente alemã, desenvolvida na década de 1980, reconhecida
pelo termo Alltagsgeschichte (correspondente ao termo em inglês, “the history of the everyday life”).
Encabeçada pelo historiador Alf Lüdtke, não há ainda obras traduzidas para o português de nenhum
pesquisador ligado a este movimento intelectual.
15
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.
16
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no séc. XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984.
17
DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo. A vida fora das fábricas: o cotidiano operário em São Paulo, 1927-1934.
Campinas: UNICAMP, 1983 (Dissertação de Mestrado).
19
18
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Dilemas e desafios da historiografia brasileira... Op. Cit., n.p.
20
21
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
26
elementos que compõe a vida cotidiana. Muitos deles são pouco visíveis nos
documentos e outros de menor relevância para a explicação da realidade analisada.
Ao optar por essa perspectiva de análise, os pesquisadores têm proposto diferentes
significações do cotidiano estudado. Estas são realizadas de acordo com os recortes
de pesquisa estabelecidos e com as informações presentes nos documentos. Essa
heterogeneidade também se manifesta na existência de diferentes cotidianos dentro
de um mesmo espaço-tempo, criados, vividos e reproduzidos de formas distintas
pelos indivíduos de acordo com o grupo social ao qual pertencem. Em função dos
seres humanos experimentarem a vida cotidiana de formas variadas, não é possível
compreender inteiramente a estrutura conjunta da sociedade analisada a partir desta
instância da vida social de um determinado grupo ou pessoa. Tal constatação,
porém, não invalida a potencialidade de se investigar a realidade a partir do
cotidiano. Afinal, nas práticas diárias de cada indivíduo estão interiorizadas certas
relações estruturais (sistemas de produção, dogmas religiosos, discursos científicos,
ideologias, bases materiais, etc). Assim, o cotidiano nos diz muito sobre a estrutura
de uma sociedade, mesmo que não se possa compreendê-la totalmente por meio
dele, o que, diga-se de passagem, não é possível a partir de nenhuma outra
dimensão da vida social.
Os autores marxistas citados anteriormente dirigem seus estudos sobre o
cotidiano partindo de uma mesma preocupação: o fenômeno da alienação. Em
Heller22, por exemplo, todo ser humano já nasce inserido em uma cotidianidade, a
qual vai aprendendo a partir do convívio com os diferentes grupos (família, escola,
pequenas comunidades) que fazem a mediação entre o indivíduo e os costumes e
normas. Atinge o amadurecimento quando adquire todas as habilidades
imprescindíveis para a vida cotidiana do grupo social ao qual pertence na sociedade
em questão. Portanto, as condições prévias de sua existência estão colocadas
desde o início de sua vida. Nessa apropriação dos elementos da cotidianidade de
seu grupo e sociedade, os indivíduos vão se fragmentado em papéis sociais,
construídos, reforçados e mantidos por aparatos de controle e disciplinarização
pouco visíveis. Quanto mais identificado com seu papel ou papéis sociais, mais
precisamente se revela a alienação. Tanto em Heller quanto em Kosik23, tais papéis
vividos cotidianamente são construídos e controlados a partir de uma série de
22
Idem.
23
KOSIK, Karel. La cotidianidad y la historia. In: Dialéctica de lo Concreto. México, Grijalbo, 1963.
27
24
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história... Op. Cit., p. 57.
28
[...] a cultura comum lança caminhos plurais para fugir de seus amos,
sonhar com a felicidade, enfrentar a violência, provar as formas
sociais do saber, dar nova forma ao presente e realizar essas
viagens do espírito sem as quais não há exercício da liberdade.26
25
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
26
Ibidem, p. 342.
29
27
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Dilemas e desafios da historiografia brasileira... Op. Cit., n.p.
28
SCARANO, Julita. Cotidiano e solidariedade: vida diária da gente de cor nas Minas Gerais do século XVIII. São
Paulo, Editora Brasiliense, 1994.
29
SCHMIDT, Benito Bisso. Uma reflexão sobre o gênero biográfico: a trajetória do militante socialista Antônio
Guedes Coutinho na perspectiva de sua vida cotidiana (1868-1945). Porto Alegre: UFRGS, 1996 (Dissertação de
Mestrado).
30
MACHADO, Maria Clara Tomaz. A urdidura do cotidiano no mundo rural mineiro: relações de trabalho e
práticas culturais em transformação (1970-1985). Varia história, Belo Horizonte, nº 22, p. 158-169, 2000.
30
31
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história... Op. Cit.
32
KOSIK, Karel. La cotidianidad y la historia... Op. Cit.
33
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano... Op. Cit.
31
36
As pesquisas foram selecionadas a partir de consultas ao repositório digital da Scielo
(http://www.scielo.org/) e ao portal de periódicos e banco de teses e dissertações da Capes
(www.periodicos.capes.gov.br e www.bancodeteses.capes.gov.br). Acesso em 25/05/2016.
37
ABUD, Katia. Registro e representação do cotidiano: a música popular na aula de história. Caderno Cedes.
Campinas, 2005, vol. 25, n. 67, p. 309-317, set./dez.
34
38
VERMELHO MORALES, Elisa. História do cotidiano e ensino de história: concepções teóricas presentes em
livros didáticos para o ensino fundamental II (1980-2000). Dissertação (Mestrado em História Social) -
Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2012.
35
Assim, embora o livro incorpore a vida cotidiana como tema de estudo, sua
abordagem é meramente descritiva, sem ultrapassar aquilo que é aparente.
Nenhuma das contribuições teóricas produzidas na historiografia e em outras áreas
do conhecimento ao longo das últimas décadas é mobilizada para a apresentação
de uma História do Cotidiano. A vida diária aparece fundamentada apenas em um
conhecimento comum, não como um espaço político, marcado por tensões. Tal
dimensão da vida não se explica a partir de aspectos macro-sociais e nem serve
para explicá-los.
Em relação à segunda obra analisada, produzida em 1980, o cotidiano não é
apresentado nem de forma descritiva ou anedótica. A preocupação da autora do
material didático é exclusivamente com os aspectos mais gerais e estruturais da
sociedade, especialmente os relacionados a questões políticas, militares e
econômicas.
Para Elisa Vermelho, contribui para a ausência das contribuições teóricas
sobre a vida cotidiana nos materiais didáticos as indefinições ainda existentes no
conhecimento científico sobre tal dimensão, além de uma possível resistência e
desconhecimento por parte dos educadores. De acordo com a autora, uma boa
forma de atribuir potencial analítico a esta perspectiva seria apresentando os textos
39
Ibidem, p. 110.
36
e documentos que falam das experiências cotidianas dos indivíduos junto aos textos
básicos do conteúdo, que tratam das características e transformações estruturais da
sociedade. Dessa forma, poderiam ser desenvolvidas atividades que orientassem o
estudante a compreender de que forma os padrões de comportamento dos seres
humanos interferem na sociedade de maneira mais ampla, e de como certas
práticas cotidianas são desenvolvidas para solucionar questões de sobrevivência
dos atores sociais.
O trabalho de Vermelho, embora analise um material empírico pouco
significativo em termos de quantidade, indica uma ausência do cotidiano como
objeto teórico importante nas reflexões daqueles que produzem livros didáticos.
Nossa proposta se aproxima de suas considerações sobre a vida cotidiana, na
medida em que a autora a pensa como um instrumento valioso para a explicação de
realidades passadas. Além disso, sua ampla revisão de autores que desenvolveram
teoricamente a cotidianidade corrobora a avaliação da presente pesquisa que
considera já existir um acúmulo de conhecimento científico suficiente para que esta
perspectiva possa ser mais bem pensada no ensino de história.
Além das pesquisas acima, os únicos trabalhos encontrados que tratam do
ensino de história do cotidiano são duas obras mais gerais sobre ensino de
História40. Nelas, a História do Cotidiano é apresentada como uma das tantas
possibilidades de ensino pelo professor, ressaltando-se algumas de suas vantagens,
como a compreensão das experiências vividas pelos agentes sociais e a capacidade
de uma reflexão do próprio aluno sobre suas práticas diárias, enxergando-se ele
também como sujeito histórico. No entanto, o caráter mais geral das referidas obras
faz com que não haja uma discussão teórica mais profunda sobre o cotidiano, nem
alguma proposta de ensino específica a partir de tal dimensão da vida em
sociedade.
Os trabalhos aqui revisados brevemente indicam que, apesar de o cotidiano
ainda carecer de uma abordagem teórica bem definida, seu uso como perspectiva já
está consolidado na historiografia, com trabalhos importantes que recuperam a ação
dos agentes sociais a partir de suas vidas diárias. Porém, quando analisamos o
ensino de História, as lacunas são bem maiores em relação ao uso do cotidiano por
40
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de Historia: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.
e FERREIRA, Marieta de Moraes. Aprendendo História: reflexão e ensino. São Paulo: Editora do Brasil, 2009.
37
41
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
42
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, UNICAMP, 1990, p. 545.
40
43
Sobre a utilização de fontes históricas na sala de aula, ver: PEREIRA, Nilton Mullet; SEFFNER, Fernando. O que
pode o ensino de História? Sobre o uso de fontes na sala de aula. Anos 90-Revista do Programa de Pós-
Graduação em história, v. 15, nº 28, dezembro de 2008 e CAIMI, Flávia Eloisa. Fontes históricas na sala de aula:
uma possibilidade de produção de conhecimento histórico escolar? Anos 90-Revista do Programa de Pós-
Graduação em história, v. 15, nº 28, dezembro de 2008.
44
Entre os historiadores que pensaram as relações entre Literatura e História para além do seu uso
“documental” está ALBUQUERQUE JR, Durval. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da
história. Bauru, SP: Edusc, 2007.
41
45
Uma síntese das discussões estabelecidas nas últimas décadas sobre a narrativa histórica pode ser
encontrada em VASCONCELOS, José Antônio. A História e a sedução da narrativa. Revista Uniandrade
(Impresso), v. 11, p. 19-29, 2010.
46
WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. Trad. José L. de Melo. São Paulo: Edusp,
1995.
47
SCHMIDT, Benito Bisso. Biografia: um gênero de fronteira entre a História e a Literatura. In: Margareth Rago;
Renato Aloizio de Oliveira Gimenes. (Org.). Narrar o passado, repensar a História. 1 ed. Campinas, 2000, v. , p.
193-202, p. 196.
42
pela criação artística e outros aspectos durante muito tempo negligenciados pela
pesquisa histórica como a capacidade imaginativa do sujeito que escreve voltaram a
fazer parte da historiografia. Tal aproximação, no entanto, não pretendeu nem
poderia diluir completamente as diferenças entre Literatura e História. O historiador
trabalha seguindo determinadas concepções teóricas e metodológicas que
distinguem sua narrativa sobre o passado da narrativa literária. Seguindo algumas
reflexões de Certeau48, o compromisso do profissional de História com o verdadeiro
se efetua a partir do cumprimento de um conjunto de técnicas - como a seleção,
crítica e descrição das fontes – que legitimam e dão credibilidade ao seu discurso
sobre o passado. Ainda assim, embora seguindo um processo diferente de
construção, com menos liberdade criativa, o historiador pode e deve servir-se dos
conhecimentos da Literatura para sua construção textual. Esta tem muito a
enriquecer e complexificar o argumento de seu discurso, permitindo pensar de
outras formas, por exemplo, o conjunto variado de possibilidades que compõem a
vida de seus personagens históricos, bem como as diferentes temporalidades que
se entrecruzam nas trajetórias dos indivíduos.
Outro processo que aproximou as duas disciplinas, porém de forma diferente,
foi a maior utilização de textos literários como fontes históricas. Neste caso, o
historiador serve-se da Literatura como o material empírico que o permitirá acessar
as diferentes experiências vividas pelos seres humanos ao longo do tempo.
Segundo Antônio Celso Ferreira, a retomada da Literatura como fonte está
relacionada à percepção dos historiadores de “sua riqueza de significados para o
entendimento do universo cultural, dos valores sociais e das experiências subjetivas
de homens e mulheres no tempo” 49.
Tomando-a, portanto, como fonte histórica, ao analisar um texto literário o
historiador precisa, como faz com qualquer outro documento, adotar uma série de
procedimentos que permitam situá-lo em seu contexto e compreender seu processo
de construção. O primeiro passo para isso é pensar o tipo de Literatura que será
trabalhada. Não há uma definição universal de Literatura, ela assume formas e
objetivos diversos que estão relacionados aos interesses e condições históricas de
48
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982, p. 101.
49
FERREIRA, Antônio Celso. “Literatura: a fonte fecunda”. In: PINSKY, C.; LUCA, T. (Orgs). O historiador e suas
fontes. São Paulo: Contexto, 2012, p. 61.
43
Portanto, embora não exista um método único e definitivo, como, aliás, não
existe para a análise de nenhuma outra fonte, há alguns cuidados básicos que
devem ser tomados quando se pretende compreender a experiência humana no
tempo por meio de obras literárias.
Os pontos de aproximação apontados até aqui em relação ao uso da
Literatura na pesquisa histórica também têm sido preocupações de muitos
professores e pesquisadores da área de ensino de História. Em um breve
levantamento de trabalhos sobre o assunto51, algumas experiências práticas e
outras propostas de atividades servem como referência para se analisar de que
forma os textos literários têm sido utilizados e pensados na educação básica.
50
Ibidem, p. 81.
51
As pesquisas foram selecionadas a partir de consultas ao repositório digital da Scielo
(http://www.scielo.org/) e ao portal de periódicos e banco de teses e dissertações da Capes
(www.periodicos.capes.gov.br e www.bancodeteses.capes.gov.br). Acesso em 22/05/2016.
44
Em artigo publicado em 2014, por exemplo, Glória Solé, Diana Reis e Andreia
Machado52 apresentam um estudo sobre o uso de ficção histórica no ensino dessa
disciplina. De acordo com as autoras, textos literários facilitam o processo de
compreensão dos acontecimentos e/ou conceitos, aproximando os estudantes da
realidade estudada e estimulando o uso da imaginação para um conhecimento
adequado do passado. A partir de uma análise de outras pesquisas relacionadas ao
tema, discutem-se algumas potencialidades do uso da Literatura:
52
SOLÈ, Glória; REIS, Diana; MACHADO, Andreia. Potencialidades didáticas da literatura infantil de ficção
histórica no ensino de história. História & Ensino, Londrina, v. 20, n. 1, p. 7-34, jan./jun. 2014.
53
Ibidem, p. 13;
45
55
RUIZ. Rafael. Novas formas de abordar o ensino de História. In: KARNAL, Leandro (Org.). História na Sala de
Aula – conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2003.
56
Ibidem, p. 77-78.
47
57
ALBUQUERQUE JR, Durval. História: a arte de inventar o passado... Op. Cit.
49
58
ABUD, Katia. Registro e representação do cotidiano... Op. Cit., p. 27.
59
Ibidem, p. 28.
50
60
SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as batatas: Forma literária e processo social nos inícios do romance
brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2012.
61
Ibidem, p.15.
62
Ibidem, p. 26. O argumento de Schwarz sobre o deslocamento de ideias no Brasil, embora tenha influenciado
muitos pesquisadores, recebeu fortes contestações. A crítica mais conhecida da formulação de “ideias fora de
lugar” é de Maria Sylvia de Carvalho Franco, em CARVALHO FRANCO, M. S. de. 1976. “As idéias estão em seu
lugar”. Cadernos de Debate, nº 1. Para uma análise mais ampla de tais discussões, ver PALTI, Elias José. Lugares
y no lugares de las ideas en América Latina. El tiempo de la política. El siglo XIX reconsiderado. Buenos Aires:
Siglo Veintiuno Editores, 2007.
51
63
Ibidem, p. 16.
64
A noção de paternalismo está inserida em um amplo debate na historiografia recente, formulada e
reformulada nas últimas décadas em importantes trabalhos sobre a escravidão e as relações de trabalho livre
no Brasil Colônia e Império. Para uma análise mais profunda desta noção, ver LARA, Sílvia Hunold. Campos da
violência. São Paulo, Paz e Terra, 1988.
65
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
52
67
Ibidem, p. 90-91.
68
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador... Op. Cit.
69
Promulgada em 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre, entre outras medidas, tornava de condição
livre os filhos de escravas nascidos a partir daquela data.
54
70
Ibidem, p. 53.
55
71
Ibidem, p. 80.
56
Dos cerca de duzentos contos escritos por Machado, a maior parte foi feita na
chamada segunda fase de sua obra, oitenta somente na década de 1880 73, tratada
por críticos literários como o auge de sua explosão criativa. Sobre a importância
deste gênero, afirma John Gledson, outro destacado estudioso da obra machadiana:
72
Ibidem, p. 80.
73
Os dados foram retirados de ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis: seleção, introdução e notas
de John Gledson – São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
74
Ibidem, p. 8.
75
Machado de Assis construiu desde o final dos anos 1860 uma carreira de sucesso no funcionalismo público
do Império. Sobre sua atuação profissional nos órgãos governamentais, ver a obra de CHALHOUB, Sidney.
Machado de Assis, historiador... Op. Cit.
57
história de um advogado (1864); Mariana (1871); Uns braços (1896) e Pai contra
Mãe (1906). Os dois primeiros foram publicados no Jornal das Famílias, espaço de
divulgação de quase todos os contos da primeira fase de sua obra literária. Os dois
últimos aparecem em duas coletâneas organizadas pelo escritor: Várias Histórias e
Relíquias da Casa Velha. Virgínius e Mariana são considerados pela crítica
tradicional como sendo de menor importância na obra machadiana 76, enquanto os
dois últimos aparecem como exemplares da melhor fase do escritor. No entanto, não
é o mérito literário dos contos que nos interessa aqui, mas os aspectos da realidade
que podem ser acessados a partir deles77. Além disso, a escolha pelo conto como
recurso para o ensino de História leva em consideração também aspectos práticos
da escola. Contos são narrativas mais curtas, que exigem um tempo menor de
leitura. Podem, portanto, ser exploradas em sala de aula com mais intensidade em
uma quantidade menor de períodos, inclusive superando com mais facilidade as
possíveis resistências dos estudantes não habituados à leitura de ficção.
Assim, como vimos, a pergunta que dá título à primeira parte deste capítulo
não tem uma resposta única. São várias as possibilidades de se utilizar a Literatura
no ensino de História, dependendo sempre de questões como os objetivos
educacionais, o tipo de texto literário, o seu conteúdo e as condições que
envolveram sua produção. No caso dos contos de Machado de Assis, a partir das
reflexões de Schwarz e Chalhoub, foi possível identificar a interpretação realizada
pelo escritor de sua época, permitindo abordar os sentidos históricos desta leitura
feita por ele como possíveis meios para se compreender parte das experiências
vividas pelas pessoas no Brasil do século XIX. Assim, seguindo algumas reflexões
da teoria da História78, a obra machadiana não é uma fonte inocente, mas uma
representação de mundo coerente e verossímil de parte da estrutura social
brasileira. Porém, essa constatação só foi obtida devido aos estudos realizados por
76
Para Gledson, levando-se em conta a qualidade literária, os contos da chamada primeira fase de Machado de
Assis não possuem o mesmo mérito que os produzidos a partir da década de 1880. Segundo o autor, isso se
deve em grande parte à necessidade de Machado de se ajustar às exigências dos locais de publicação, quase
sempre jornais literários conservadores que impunham condições e critérios aos escritores, limitando aspectos
de suas obras que iam desde a forma até o conteúdo. Para uma análise mais profunda das condições de
produção dos contos da primeira fase machadiana, ver CRESTANI, Jaison Luís. A colaboração de Machado de
Assis no Jornal das Famílias: subordinações e subversões. Revista Patrimônio e Memória, UNESP – FCLAs –
CEDAP, v.2, n.1, 2006 p. 154.
77
Tais aspectos estão descritos no capítulo 3, quando se aborda o conteúdo proposto para as atividades a
serem desenvolvidas em sala de aula.
78
ALBUQUERQUE JR, Durval. História: a arte de inventar o passado... Op. Cit.
58
3.1 Propostas para o estudo da história do cotidiano por meio dos contos de
Machado de Assis.
79
Foram analisados três dos livros aprovados na última avaliação pedagógica do Ministério da Educação
(2014): “História: Sociedade & Cidadania”– Edição reformulada, 8º ano/Alfredo Boulos Júnior. – 2. ed. – São
Paulo: FTD, 2012; “Projeto Araribá: História”, 8º ano/obra coletiva concebida, desenvolvida e produzida pela
Editora Moderna; editora responsável Maria Raquel Apolinário. – 3. ed. – São Paulo, 2010 e “Perspectiva
história”, 8º ano/Renato Mocellin, Rosiane de Camargo. – 2. ed. – São Paulo: Editora do Brasil, 2012.
60
3.2 Aplicando as atividades: guia interpretativo para o conto Pai contra Mãe
80
O outro conto que aborda de forma explicita a escravidão é “O caso da vara”, publicado pela primeira vez em
1891 no jornal carioca Gazeta de Notícias.
62
81
A partir principalmente dos anos 1980, houve uma mudança importante na historiografia sobre a escravidão
no Brasil. Até então centrada na violência e repressão como forma de manutenção do sistema escravista, nas
últimas décadas foram produzidos importantes trabalhos que procuraram resgatar o papel ativo do escravo
como sujeito de sua própria história. Para uma visão mais ampla desta virada nos estudos sobre a escravidão,
ver CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990. .
82
Os contos utilizados foram todos acessados on-line, por isso não há paginação nas citações. É possível
acessar estes e a obra completa do escritor no site www.machadodeassis.ufsc.br. Acessado pela última vez em
25 de julho de 2016.
63
83
Tal situação pode ser interpretada a partir da definição de alienação de Heller e Kosik, discutida no item 1.3,
em que os autores compreendem o cotidiano como o espaço em que, por meio de uma série de práticas
repetitivas, os aparatos de controle e disciplinarização impostos pela ordem dominante vão fragmentando o
comportamento das pessoas em diferentes papéis sociais, contribuindo para que se mantenham e reforcem
sistemas de dominação como, por exemplo, a escravidão.
84
O termo é uma referência à “teoria do escravo-coisa”, criada por Chalhoub na obra Visões da Liberdade, em
que o autor critica a ideia de passividade e anomia dos escravos presente nos estudos anteriores sobre a
escravidão no Brasil. Para mais detalhes, ver CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade... Op. Cit.
65
Atividades:
85
Tais negociações podem ser lidas a partir das noções de estratégia e tática desenvolvidas por Certeau, já
discutidas no item 1.3. Constituíam-se em formas de manter a dominação dos senhores sobre os escravos
diante do enfraquecimento de seu poder de mando, mas ao mesmo tempo criavam fissuras no sistema de
dominação que poderiam ser exploradas pelos cativos para a vivência de práticas cotidianas que contrariavam
o papel social esperado deles pelos senhores, contribuindo ainda mais para debilitar as bases da escravidão.
66
1. O título do conto, Pai contra mãe, sugere quais são os dois personagens
principais da história. Identifique-os e anote algumas informações contidas no texto a
respeito de cada um deles:
a)__________________________________________________________________
___________________________________________________________________
b)__________________________________________________________________
___________________________________________________________________
fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal.
Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com
pouco era pegado.
86
Região portuária do Rio de Janeiro onde desembarcavam os navios que traziam os escravos do continente
africano.
87
Escravos nascidos no Brasil ou já bem adaptados ao país, que falavam o português e conheciam as condições
de trabalho.
88
Muitos escravos não trabalhavam diretamente para seus proprietários, eram “alugados” para outras
pessoas, para quem faziam serviços diversos. Esse era muitas vezes o destino daqueles que não aceitavam a
autoridade e as condições de trabalho impostas por seu senhor.
68
outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício
por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para
outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por
outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à
desordem.
9. Após a fuga, como era o dia a dia de Arminda e dos outros escravos que fugiam?
E os escravos “fiéis” que andavam sozinhos a serviço, por que será que não fugiam?
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
11. Como era a reação dos escravos capturados por Candinho? Por que nenhuma
pessoa ajudou Arminda quando ela pediu socorro?
70
de cativeiro, não apenas na escola, mas nas outras influências culturais com os
quais os alunos convivem e que produzem representações sobre o passado, como
as novelas e filmes sobre o assunto.90 Tal característica, facilmente identificada no
início do conto e já presente na mentalidade dos alunos, fazia parte da condição
escrava que se pretendia ensinar, mas era importante que a ela se somassem
outros componentes essenciais que caracterizavam o ser escravo, como a sua
agência e subjetividade, para além desta que era uma visão predominantemente
senhorial.
Escrava 33 menções
Fugitiva 28 menções
Estava grávida 22 menções
Trabalhava/vivia com seu senhor/dono 14 menções
Possuía um amante/relacionamento 13 menções
90
No momento em que as atividades foram realizadas, estava sendo veiculada na Rede Globo a novela
“Liberdade, liberdade”, sobre a qual foram feitas muitas referências pelos alunos. Além disso, em uma das
turmas os alunos comentaram que haviam assistido nas aulas de história do ano anterior o filme “12 anos de
escravidão” (2013), do qual, pelos comentários, a violência sobre os escravos era o elemento que permaneceu
mais forte na memória dos estudantes.
72
como a personagem principal, mas sim Clara, a mulher de Cândido Neves. Todos os
treze trabalhos que mencionaram a existência de um amante na vida da escrava
foram produzidos nas Turmas A e B. Em ambas, duas alunas perguntaram em voz
alta se a personagem apenas se relacionava com seu senhor. Na Turma B, após o
questionamento, outra aluna imediatamente respondeu que “se ela tava grávida é
porque tinha alguém”. Sem dar uma resposta definitiva, foi lida novamente para os
alunos a passagem do conto em que Candinho acreditava que Arminda havia sido
acolhida por um amante91. Na Turma A o mesmo trecho foi lido após a pergunta. As
intervenções das alunas parecem ter influenciado parte das turmas, pois em mais da
metade dos trabalhos entregues – 13 de 22 - foi identificado um possível
relacionamento afetivo da escrava, como pode ser visto nas respostas a seguir:
“A mãe era Arminda que trabalhava para seu senhor porém fugiu e
conviveu com outras pessoas e ficou grávida”. (R. B. e G. R.)
“Ela era escrava, provavelmente ela tinha uma relação, era pobre,
estava grávida, ela morava com seu senhor.” (G. M)
“Arminda, pobre, vivia com seu amante após ter fugido.” (K. N.)
91
“Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la
sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido”.
92
Táticas no sentido empregado por Certeau, compreendida no caso específico do conto como movimentos
cotidianos de liberdade aproveitados pelos escravos, constituindo-se em possibilidades de resistência sem, no
entanto, objetivar ou provocar a ruptura com o sistema escravista.
73
93
“[...] o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói”.
75
“Não, porque nem todos os senhores eram maus, tinha senhores que
deixavam os escravos trabalharem fora, e outros senhores eram
bons porque tinham medo dos escravos”. (K. M. e A. B)
Castigo 10
Outras situações 28
Não respondeu 3
“Não, quando a violência era muito forte eles fugiam”. (D. C. e G. A.)
A fuga não pode ser considerada uma prática cotidiana do escravo. Mas está
presente no cotidiano da cidade, dos senhores e de pessoas como Cândido, que
dependem dela para sua sobrevivência. Está diariamente nos jornais e demais
folhas públicas, no medo dos senhores, no trabalho de Candinhos. Além disso, a
fuga de um escravo, ou simplesmente a possibilidade de que isso pudesse
acontecer, poderia ter como consequência a transformação do dia a dia dos cativos.
Uma transformação que muitas vezes era positiva para eles, pois, presente nos
temores dos senhores, evitá-la exigia abrir negociações com os escravos. O
resultado de tais negociações era a existência de cotidianos mais “livres” vividos por
eles. Alguns destes movimentos de liberdade são explorados mais
aprofundadamente nas questões 9 – Após a fuga, como era o dia a dia de Arminda e
dos outros escravos que fugiam? E os escravos fiéis que andavam sozinhos a
serviço, por que será que não fugiam? - e 10 – Em determinado momento, Cândido
Neves desiste de procurar Arminda. A que ele atribui as dificuldades para encontrar
a escrava? O que isso indica sobre as relações sociais estabelecidas pelos
escravos? Estas duas atividades, que encerram a análise das respostas produzidas
79
“O dia a dia era normal, ela caminhava nas ruas, ia nas lojas como
se não estivesse fugindo de nada. Eram fiéis pois os donos tratavam
bem”. (P. G. e E. D.)
“Era normal, pois pelo que percebemos ela caminhava pelas ruas
como uma pessoa livre, mas não era seu caso. Porque talvez eles
soubessem que assim sem fugir eles poderiam andar na rua
normalmente e teriam um pouco de liberdade. Também pode ser que
fugir os deixariam na rua pois não teriam aonde ir”. (E. K. e W. S.)
“sem cuidar malícia”, e a parte em que Cândido “Mais de uma vez, a uma esquina,
conversando de coisas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria
logo que ia fugido [...]”. Tais trechos do conto, que caracterizam diferentes
experiências vividas por Arminda e outros personagens escravos, permitiram que a
maior parte dos alunos compreendesse de forma adequada a subjetividade das
pessoas escravizadas e as práticas de improvisação desenvolvidas dentro da
estrutura opressora que representava o sistema escravista.
Por fim, a partir da questão número 10, é possível abordar de forma mais
profunda as articulações sociais desenvolvidas pelos escravos e a importância
destas relações como táticas de resistência dentro do sistema escravista. Tais
situações reforçam a agência destas pessoas no enfraquecimento dos mecanismos
de controle social impostos pela ordem dominante. No total, em 24 trabalhos os
alunos atribuem as dificuldades de encontrar Arminda após sua fuga à possibilidade
de esta ter um amante, como indica a passagem do conto já referida
anteriormente94. Para responder a segunda pergunta desta mesma questão, muitos
interpretaram o relacionamento de Arminda como parte de um fenômeno mais geral,
qual seja, as relações sociais desenvolvidas pelos escravos, conforme algumas
respostas a seguir:
“Porque ele achou que algum amante dela podia ter recolhido ela.
Que eles podiam não só andar pelas ruas mas sim conversar com
outras pessoas conviver com mais pessoas sem ser seu dono”. (E.
K. e W. S.)
“Porque ele achava que ela tinha um amante e tendo um amante ela
teria um lugar para ficar”. (G. S.)
“Porque Cândido achou que Arminda tinha ficado com o seu amante,
que os escravos não ficavam só na casa do seu senhor por exemplo
os escravos saíam para comprar algo e acabavam se relacionando
com outras pessoas”. (A. G.)
“Ele achava que ela vivia com um amante, isso indica que eles se
comunicavam com outras pessoas”. (A. C.)
94
Ver a nota número 91.
81
provavelmente evidenciaria a imagem que boa parte dos estudantes tem do escravo
como um indivíduo constantemente submetido à violência e com poucos espaços de
ação mais autônoma em seu dia a dia. O objetivo de estudar a escravidão a partir de
uma perspectiva da vida cotidiana tinha como um dos objetivos principais justamente
demonstrar que a violência não era o único elo que prendia os indivíduos ao
cativeiro. Mesmo sem obter a liberdade, havia dentro do sistema escravista margens
de movimento que permitiam aos escravos agirem de forma mais autônoma, o que
contribuía também para o enfraquecimento deste sistema.
No desenvolvimento das atividades e especialmente na correção das
questões foi possível identificar um processo de construção gradual da situação
histórica estudada. Noções equivocadas sobre o conteúdo foram sendo construídas
e desconstruídas durante as aulas. Duas frases de alunos de turmas diferentes são
bons exemplos de como se deu esta evolução do conhecimento histórico: na
primeira, dita na primeira aula e já mencionada anteriormente, a aluna V. F. percebia
o escravo como um “bicho”; no segundo comentário, dito na última aula das
atividades, o aluno G. S. afirmou que “então não era tão ruim assim ser escravo”. Tal
afirmação evidencia as dificuldades de se trabalhar o tema da escravidão em sala de
aula. Trata-se de um tema complexo também na historiografia, marcado por amplo
debate com importantes divergências sobre as complicadas relações entre
dominadores e dominados. Para alguns estudantes, passou-se de um extremo a
outro, do escravo submisso e subjugado para uma ideia de que ser escravo não era
“tão ruim”. Provavelmente, para um aluno que tinha uma única imagem da
escravidão, baseada em violências e privações, perceber o escravo como um
indivíduo que muitas vezes dispunha e explorava de brechas de liberdade em seu
cotidiano tenha provocado tal mudança radical de pensamento. O entendimento
expressado pelo aluno não está adequado, afinal, por mais margens de autonomia
que os indivíduos pudessem dispor, a escravidão sempre envolvia uma série de
privações e possíveis violências. No entanto, a transformação do escravo “coisa” em
escravo “pessoa” pode ser considerada um ponto de êxito importante das aulas.
Ainda assim, as duas frases, bem como todos os trabalhos que não alcançaram
totalmente os objetivos esperados, demonstram a importância da intervenção do
professor durante e no encerramento das atividades. É preciso identificar o que não
83
ficou bem compreendido e dar uma forma final ao conhecimento a partir, por
exemplo, de exposições orais e de comentários feitos nos trabalhos avaliados.
Apesar disso, além da situação histórica específica que foi trabalhada em sala
de aula – a condição escrava no Segundo Reinado – a escolha pelo cotidiano como
perspectiva e da literatura como recurso didático tinha outro objetivo: a compreensão
de que a vida dos sujeitos está inserida em um campo de possibilidades, que varia
de acordo com uma série de condições que estão além da vontade dos indivíduos.
Esta, como discutido anteriormente, era uma das grandes dificuldades dos alunos no
início da atividade. Ao final, a maior parte dos estudantes percebeu que estava
analisando vidas humanas que, como tal, são marcadas por múltiplas experiências
possíveis, e que estas dependem das circunstâncias históricas dadas em
determinado espaço/tempo. Este foi um dos grandes êxitos da atividade, possível
graças ao referencial teórico, que permitiu analisar de forma mais densa as relações
sociais, e ao material empírico escolhido, que aproximou os alunos da subjetividade
dos personagens e das trajetórias viáveis em um contexto histórico especifico.
Assim, tornou-se possível compreender parte dos condicionamentos que limitam as
condições de vida dos seres humanos, neste caso, das pessoas escravizadas no
Brasil da segunda metade do século XIX.
Por fim, toda a experiência em sala de aula descrita acima provocou a
revisão de alguns pontos do trabalho. Algumas questões mostraram-se repetitivas
ou desnecessárias para o cumprimento dos objetivos educacionais propostos. Além
disso, o trabalho com o conto teve desdobramentos, muitos em função de
solicitações dos alunos, como a análise de imagens e de outros documentos que
pudessem ser relacionados ao conteúdo da narrativa. Assim, as atividades
sugeridas para serem desenvolvidas sobre o conto Pai contra mãe que aparecem no
material didático apresentado ao final da pesquisa possuem algumas diferenças em
relação às que foram aplicadas e analisadas neste capítulo. É importante ressaltar
que estas, assim como as questões dos outros contos, são apenas sugestões, pois
sabemos que no ensino de História, assim como na pesquisa, não há uma forma
única e definitiva de abordar o mesmo material. Cabe ao professor/pesquisador
tratá-lo de acordo com os seus objetivos e com os interesses e necessidades de seu
público.
84
Considerações Finais
Referências bibliográficas
CAIMI, Flávia Heloisa. Porque os alunos (não) aprendem história? Reflexões sobre
ensino, aprendizagem e formação de professores de História. Niterói, RJ: Tempo,
volume 11, 2006.
CARVALHO FRANCO, M. S. de. 1976. “As idéias estão em seu lugar”. Cadernos de
Debate, nº 1.
DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo. A vida fora das fábricas: o cotidiano operário em
São Paulo, 1927-1934. Campinas: UNICAMP, 1983 (Dissertação de Mestrado).
87
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no séc. XIX. São
Paulo: Brasiliense, 1984.
FERREIRA, Antônio Celso. Literatura: a fonte fecunda. In: PINSKY, C.; LUCA, T.
(Orgs). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2012.
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2011.
LARA, Sílvia Hunold. Campos da violência. São Paulo, Paz e Terra, 1988.
LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História: Novos Objetos, 3ª. Ed. RJ: Francisco
Alves, 1988.
88
PALTI, Elias José. Lugares y no lugares de las ideas en América Latina. In: El
tiempo de la política. El siglo XIX reconsiderado. Buenos Aires: Siglo Veintiuno
Editores, 2007.
RUIZ. Rafael. Novas formas de abordar o ensino de História. In: KARNAL, Leandro
(Org.). História na Sala de Aula – conceitos, práticas e propostas. São Paulo:
Contexto, 2003.
SCARANO, Julita. Cotidiano e solidariedade: vida diária da gente de cor nas Minas
Gerais do século XVIII. São Paulo, Editora Brasiliense, 1994.
89
Ensino de História,
Cotidiano e Literatura
Escravidão e Paternalismo em contos de Machado de Assis
Caderno do Professor
ENSINO DE HISTÓRA, COTIDIANO E LITERATURA
Escravidão e Paternalismo em contos de Machado de Assis
Caderno do Professor
Material produzido para o Curso de Mestrado Profissional em Ensino de História da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Autor: Raul Costa de Carvalho
Orientador: Prof. Dr. Benito Bisso Schmidt
Imagem de capa: Jean-Baptiste Debret, Le collier de fer: châtiment des fugitifs, 1835.
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, São Paulo.
91
Caro (a) Professor (a):
Bom trabalho!
92
Parte 1 Ensino de História e Cotidiano
93
Parte 1 – Ensino de História e Cotidiano
94
Parte 1 – Ensino de História e Cotidiano
95
Parte 1 – Ensino de História e Cotidiano
96
Parte 2 – Ensino de História e Literatura
Parte 2 Ensino de História e Literatura
97
Parte 2 – Ensino de História e Literatura
98
Parte 2 – Ensino de História e Literatura
99
Parte 2 – Ensino de História e Literatura
100
Parte 2 – Ensino de História e Literatura
101
Guia interpretativo – Pai contra Mãe
Parte 3 Contos de Machado de Assis nas aulas de História
Guia interpretativo
1 O outro conto que aborda de forma explicita a escravidão é “O caso da vara”, publicado pela primeira vez
em 1891 no jornal carioca Gazeta de Notícias.
2 A partir principalmente dos anos 1980, houve uma mudança importante na historiografia sobre a escravidão
no Brasil. Até então centrada na violência e repressão como forma de manutenção do sistema escravista, nas
últimas décadas foram produzidos importantes trabalhados que procuraram resgatar o papel ativo do escravo
na criação de melhores condições de vida. Para uma visão mais ampla desta virada nos estudos sobre a
escravidão, ver CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
102
Guia interpretativo – Pai contra Mãe
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho
levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o
nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a
quantia de gratificação. [...] Protestava-se com todo o rigor da lei contra
quem o acoutasse.
3
Os contos utilizados foram todos acessados on-line, por isso não há paginação nas citações. É possível acessar
estes e a obra completa do escritor no site www.machadodeassis.ufsc.br. Acessado pela última vez em 25 de
julho de 2016.
103
Guia interpretativo – Pai contra Mãe
recém nascido para adoção em função desta extrema pobreza, Cândido deposita suas
esperanças na captura de uma escrava - de nome Arminda – pelo que o dono recompensava
com alta quantia. A história termina com uma cena cruel e trágica: em meio a lutas, choros
e pedidos de socorro, Arminda é capturada e devolvida ao seu senhor, descrito pela escrava
como “muito mau”, que “provavelmente a castigaria com açoites”. Cândido pode manter
seu filho, graças ao dinheiro recebido, enquanto Arminda, grávida, “levada do medo e da
dor”, perde o seu em consequência de um aborto.
Em Pai contra a mãe, Machado de Assis permite uma compreensão densa e complexa
das relações entre os diferentes grupos sociais. Nem Cândido, tampouco Arminda são
membros de classes abastadas da sociedade, mas as dificuldades de sobrevivência e a
instituição da escravidão impõem a opressão de um sobre o outro. A pobreza e dependência
aproximam os personagens, mas a noção de propriedade os distancia. A escravidão não se
manteve durante tanto tempo apenas por causa do controle direto exercido pelos senhores
sobre seus escravos, mas também pela aceitação de grande parte da sociedade, inclusive
pessoas livres e pobres, de sua legitimidade4. A legalidade da escravidão não se efetivava
somente pela existência de leis, mas de como elas se afirmavam no dia a dia das pessoas -
através de objetos, anúncios, recompensas, ofícios - fazendo com que muitos indivíduos
enxergassem no escravo uma propriedade, contribuindo para a manutenção e reforço deste
sistema de dominação.
Apesar disso, ao pensar no conto como recurso didático para o ensino de história, é
preciso levar em conta alguns fatores. Machado o publicou quase vinte anos após o fim
legal da escravidão. A história se passa na metade do século XIX, provavelmente em época
anterior à memória e mesmo ao tempo de vida de boa parte de seus leitores. A ênfase dada à
violência e brutalidade da escravidão pode muito bem ter como objetivo lembrar ou mesmo
apresentar para o leitor um mundo no qual esse não estava bem situado e que, para o autor,
deveria ser conhecido. Mas, na história de Pai contra mãe, há várias possibilidades de se
abordar a escravidão para além da visão do “escravo coisa”, já tão contestada pela
historiografia5. O conto é também uma importante ferramenta para se analisar a
subjetividade dos escravos e suas capacidades de negociar as condições do cativeiro em seu
favor. As fugas, cada vez mais frequentes durante o Segundo Reinado, ajudavam a corroer a
legitimidade do escravismo, além, é claro, de ser o efeito explícito da não adequação dos
4
Tal situação pode ser interpretada a partir da definição de alienação de Heller e Kosik, discutida na primeira
parte do material, em que os autores compreendem o cotidiano como o espaço em que, por meio de uma série
de práticas repetitivas, os aparatos de controle e disciplinarização impostos pela ordem dominante vão
fragmentando o comportamento das pessoas em diferentes papéis sociais, contribuindo para que se
mantenham e reforcem sistemas de dominação como, por exemplo, a escravidão.
5 O termo é uma referência à “teoria do escravo-coisa”, criada por Sidney Chalhoub na obra Visões da
Liberdade, em que o autor critica a ideia de passividade e anomia dos escravos presente nos estudos anteriores
sobre a escravidão no Brasil. Para mais detalhes, ver CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade... Op. Cit.
104
Guia interpretativo – Pai contra Mãe
cativos ao papel social que lhes era imposto. A partir delas, é possível compreender que o
escravo não era um sujeito passivo, totalmente submetido às condições desumanas do
sistema. A violência excessiva não era aceita, o castigo frequente poderia ter o efeito
contrário ao desejado pelo senhor: em vez de submeter o escravo, inviabilizar sua
autoridade sobre ele. Ou seja, sem negociações para a abertura de brechas de liberdade a
escravidão não teria se mantido por muito tempo6. Muitos, assim como Arminda, fugiam,
reagiam, se articulavam socialmente, enfim, resistiam. Não apenas uma resistência
organizada e de grandes dimensões como a criação de Quilombos, mas também em
pequenos momentos cotidianos. Assim, ao mesmo tempo em que Machado ressalta o
exercício costumeiro da violência, em suas páginas é possível ver também uma cidade em
que escravos circulam pelas ruas sozinhos, com certa autonomia, fogem com frequência,
desenvolvem relações familiares e de amizade - às vezes com os próprios senhores - que os
protegem em momentos de dificuldade e permitem amparo para aqueles que, como
Arminda, evadem. Tais situações são evidências da subjetividade destas pessoas, das práticas
de improvisação dentro de uma estrutura opressora, das possibilidades de resistência em
uma sociedade que os considerava objetos de direito, enfim, do protagonismo destes sujeitos
no enfraquecimento da escravidão. Tais características também devem estar presentes em
uma situação de aprendizagem que tenha como objetivo compreender a condição escrava
no Segundo Reinado.
6 Tais negociações podem ser lidas a partir das noções de estratégia e tática desenvolvidas por Certeau, já
discutidas anteriormente. Constituíam-se em formas de manter a dominação dos senhores sobre os escravos
diante do enfraquecimento de seu poder de mando, mas ao mesmo tempo criavam fissuras no sistema de
dominação que poderiam ser exploradas pelos cativos para a vivência de práticas cotidianas que contrariavam
o papel social esperado deles pelos senhores, contribuindo ainda mais para debilitar as bases da escravidão.
105
Atividades Atividades – Pai contra Mãe
A leitura do conto tem como objetivo compreender algumas das condições de vida e
experiências de cativeiro das pessoas escravizadas nos ambientes urbanos durante o período
da História do Brasil conhecido como Segundo Reinado (1840-1889). Para isso, responda
as questões a seguir:
1. O título do conto, Pai contra mãe, sugere quais são os dois personagens principais da
história. Identifique-os e anote algumas informações contidas no texto a respeito de cada
um deles:
a)_________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
b)_________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
106
Atividades – Pai contra Mãe
com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim,
onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.
3. As duas imagens abaixo são litografias feitas em 1835 pelo pintor francês Jean-Baptiste
Debret (1768-1848). Identifique nelas os objetos de punição descritos no conto e explique
quais eram as funções desses castigos.
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
__________________________________________________________________________________
______________________________________________
______________________________________________
______________________________________________
______________________________________________
______________________________________________
______________________________________________
______________________________________________
______________________________________________
______________________________________________
______________________________________________
107
Atividades – Pai contra Mãe
4. Baseado nas informações presentes no conto e conforme o exemplo abaixo, escreva como
seria o anúncio de fuga feito pelo senhor de Arminda e utilizado por Cândido Neves para
recapturar a escrava.
__________________________________
__________________________________
__________________________________
__________________________________
__________________________________
__________________________________
__________________________________
__________________________________
__________________________________
__________________________________
__________________________________
__________________________________
__________________________________
__________________________________
__________________________________
__________________________________
__________________________________
7
Região portuária do Rio de Janeiro onde desembarcavam os navios que traziam os escravos do continente
africano.
8 Escravos nascidos no Brasil ou já bem adaptados ao país, que falavam o português e conheciam as condições
de trabalho.
9 Muitos escravos não trabalhavam diretamente para seus proprietários, eram “alugados” para outras pessoas,
para quem faziam serviços diversos. Esse era muitas vezes o destino daqueles que não aceitavam a autoridade e
as condições de trabalho impostas por seu senhor.
108
Atividades – Pai contra Mãe
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha
anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o
tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia,
vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma boa gratificação".
Muitas vezes o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço,
correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei
contra quem o acoutasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser
instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza
implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo;
a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e
alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem
que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.
5. De acordo com o texto, as relações entre todos os senhores e escravos eram iguais?
Justifique sua resposta.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
8. A partir do trecho, quais as diferentes situações que poderiam ser experimentadas por um
escravo que fugisse?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
109
Atividades – Pai contra Mãe
9. Após a fuga, como era o dia a dia de Arminda e dos outros escravos que fugiam? E os
escravos “fiéis” que andavam sozinhos a serviço, por que será que não fugiam?
___________________________________________________________________________
10. Em determinado momento, Cândido Neves desiste de procurar Arminda. Por que ele
achou que seria difícil encontrar a escrava? O que isso indica sobre com quem os escravos
se relacionavam?
___________________________________________________________________________
11. De que forma as atitudes dos escravos poderiam ajudar a melhorar suas condições de
vida?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
10
Nome popular dado à moeda da época.
110
Guia Interpretativo - Mariana
Mariana
Tema: A condição escrava no Segundo Reinado
Guia interpretativo
O segundo conto proposto para ser trabalhado em sala de aula também apresenta
um cotidiano marcado por desigualdades e tensões sociais características da sociedade
brasileira do século XIX. Mariana foi escrito em 1871 e publicado originalmente no Jornal
das Famílias, periódico para o qual Machado escreveu até 1878. O enredo começa em
1871, portanto, no ano de sua escritura, com um encontro de amigos que não se viam há
muito tempo. Rapidamente a história se transporta para 1856, quando um dos personagens,
Coutinho, resgata a lembrança de um romance com uma escrava de sua família.
Mariana, “gentil mulatinha nascida e criada como filha da casa”, é descrita ao longo
de todo o texto como uma escrava diferente, “quase senhora”, em função dos privilégios que
recebeu ao longo de sua criação, sendo educada na leitura, escrita, bordado, entre outras
práticas típicas de moças de famílias ricas da época. Porém, ao mesmo tempo em que se
acentuam as regalias obtidas pela criada, marcam-se as diferenças sociais que distinguem
sua condição de escrava das senhoras e senhores da casa:
Mariana era apreciada por todos quantos iam a nossa casa, homens e
senhoras. Meu tio, João Luís, dizia-me muitas vezes: — “Por que diabo está
tua mãe guardando aqui em casa esta flor peregrina? A rapariga precisa de
tomar ar”.
11
Aqui resgatamos novamente a caracterização da vida cotidiana feita por Heller e Kosik, compreendendo-a
como o espaço onde se gera a alienação dos indivíduos a partir do cumprimento de certos papéis sociais.
111
Guia Interpretativo - Mariana
Creio que devemos fazer esforços para capturá-la, e uma vez restituída à
casa, colocá-la na situação verdadeira do cativeiro.
[...]
Ficou assentado que se procuraria a fugitiva e se lhe daria o castigo
competente.
[...]
Sofrerás as consequências da tua ingratidão.
Nenhuma das ameaças se efetiva, a escrava sempre encontra algum meio sutil de ser
perdoada, como se conhecesse as margens de movimento em que lhe são permitidas certas
atitudes autônomas, fora do controle cotidiano exercido por seus senhores. As ações da
escrava revelam a sua não adequação total ao papel que lhe era imposto - de submissão e
obediência absolutas - denunciando alguns espaços possíveis de liberdade dentro da
estrutura violenta e autoritária do escravismo brasileiro.
A história se passa na cidade do Rio de Janeiro. Esse é um momento em que ocorre
uma série de medidas que enfraqueciam o sistema escravista, como a Lei Eusébio de Queiróz
(1850) e as pressões inglesas pelo fim da escravidão13. Como capital do Império, a cidade
era o centro de tais discussões, que nela tinham impacto mais rápido do que em outras
regiões do país. Além do tempo da narrativa, não se pode ignorar também o tempo de
produção da obra, o ano de 1871, data em que a escravidão recebe um de seus golpes mais
12
Todas estas condutas praticadas por Mariana podem ser compreendidas como movimentos de resistência
cotidiana. Através delas, a escrava fugia aos projetos normativos de sua época, experimentando ações de
liberdade dentro de um sistema opressor. O conceito de tática de Certeau, mais uma vez, permite tal
interpretação.
13
Desde a década de 1830 a Inglaterra pressionava o Brasil para que acabasse com o tráfico de escravizados.
Em 1831 foi aprovada uma lei que proibia o tráfico internacional de escravos, porém, a lei não teve efeito. A
partir de 1845 o governo inglês passou a aprisionar navios negreiros mesmo em águas brasileiras. A pressão
teve resultado e, em 1850, foi a provada a Lei Eusébio de Queiróz, que estabelecia medidas duras para acabar
com o tráfico de africanos no Brasil.
112
Guia Interpretativo - Mariana
fortes: a Lei do Ventre Livre14. Possivelmente esteja aí uma chave importante para entender
por que Machado escreveu pouco tempo após a aprovação da lei um de seus únicos contos
que tem como protagonista uma escrava. Não uma escrava qualquer, mas uma que foge aos
padrões de comportamento estabelecidos pelas elites. Assim, a abordagem do conto em sala
de aula pode ser feita relacionando-o ao estudo destas leis, buscando identificar com os
alunos algumas das circunstâncias que, no Segundo Reinado, ajudaram a corroer as bases
de dominação senhorial, abalando também seu poder de mando. Muitos dos traços
essenciais da mentalidade escravista permaneceram mesmo diante destes duros golpes,
porém com a abertura cada vez maior de brechas de liberdade e autonomia que eram
constantemente exploradas pelos cativos.
14
Entre outras medidas, tornava de condição livre os filhos de mulher escrava nascidos após sua promulgação.
113
Atividades Guia Interpretativo - Mariana
A leitura do conto tem como objetivo compreender a autonomia cada vez maior dos
escravos durante o Segundo Reinado e o enfraquecimento do poder senhorial nessa época. A
história de Mariana se passa na década de 1850, período em que a escravidão sofreu um
duro golpe com a aprovação da Lei Nº 581 – de 4 de setembro de 1850, conhecida como Lei
Eusébio de Queiróz. Leia e analise o primeiro artigo desta lei:
114
Atividades - Mariana
4. A partir da leitura do conto, descreva como era a composição de uma família das
camadas mais altas da sociedade brasileira nas cidades.
5. Copie algum trecho do conto que indique que Mariana era considerada membro da
família.
Mariana Filhas
Semelhanças
Diferenças
— Chamava-se Mariana, continuou ele alguns minutos depois, e era uma gentil
mulatinha nascida e criada como filha da casa, e recebendo de minha mãe os mesmos
afagos que ela dispensava às outras filhas. Não se sentava à mesa, nem vinha à sala em
ocasião de visitas, eis a diferença; no mais era como se fosse pessoa livre, e até minhas irmãs
tinham certa afeição fraternal. Mariana possuía a inteligência da sua situação, e não
abusava dos cuidados com que era tratada. Compreendia bem que na situação em que se
achava só lhe restava pagar com muito reconhecimento a bondade de sua senhora.
A sua educação não fora tão completa como a de minhas irmãs; contudo, Mariana
sabia mais do que outras mulheres em igual caso. Além dos trabalhos de agulha que lhe
foram ensinados com extremo zelo, aprendera a ler e a escrever. Quando chegou aos 15
115
Atividades - Mariana
anos teve desejo de saber francês, e minha irmã mais moça lho ensinou com tanta paciência
e felicidade, que Mariana em pouco tempo ficou sabendo tanto como ela.
Como tinha inteligência natural, todas estas coisas lhe foram fáceis. O
desenvolvimento do seu espírito não prejudicava o desenvolvimento de seus encantos.
Mariana aos 18 anos era o tipo mais completo da sua raça. Sentia-se-lhe o fogo através da
tez morena do rosto, fogo inquieto e vivaz que lhe rompia dos olhos negros e rasgados.
Tinha os cabelos naturalmente encaracolados e curtos. Talhe esbelto e elegante, colo
voluptuoso, pé pequeno e mãos de senhora. É impossível que eu esteja a idealizar esta
criatura que no entanto me desapareceu dos olhos; mas não estarei muito longe da verdade.
Mariana era apreciada por todos quantos iam a nossa casa, homens e senhoras. Meu
tio, João Luís, dizia-me muitas vezes: — “Por que diabo está tua mãe guardando aqui em
casa esta flor peregrina? A rapariga precisa de tomar ar”.
8. Ao longo da história, Mariana cumpre todas as proibições impostas sobre ela? Copie
alguns trechos que justifiquem sua resposta.
9. Em que situações Mariana foi ameaçada de receber algum castigo? Em algum momento
as ameaças foram cumpridas?
11. Em que situações Mariana conseguiu impor sua vontade sobre seus senhores?
116
Guia Interpretativo - Virgínius
Virginius: narrativa de um advogado
Guia interpretativo
15
A ideia de “passagem para o trabalho livre”, ou de “substituição do trabalho escravo pelo livre” é bem
criticada na historiografia recente da escravidão. Em artigo de 1998, Silvia Lara utiliza o termo “teoria da
substituição” para se referir aos estudos que criavam uma oposição radical entre o trabalho escravo e o livre,
afastando, assim, os ex-escravos das pesquisas históricas que se centravam no desenvolvimento do trabalho
livre no Brasil. Embora o termo “passagem” e outros similares tenham sido mantidos nesta proposta, os
objetivos de se utilizar o conto Virginius em sala de aula levam em consideração o argumento e as
preocupações de Sílvia Lara e outros historiadores. Ou seja, pretende-se resgatar as experiências dos ex-
escravos no processo de abolição que se fez de maneira gradual e controlada ao longo da segunda metade do
século XIX, analisando a convivência entre diferentes formas de trabalho neste período. Ver LARA, Sílvia
Hunold. Escravidão, Cidadania e História do Trabalho no Brasil. Projeto História, Revista do Programa de
Estudos Pós-Graduados de História. PUC-SP, vol. 16, 1998, p.25-38.
117
Guia Interpretativo - Virgínius
— É escravo de Pio?
— Escravo é o nome que se dá; mas Pio não tem escravos, tem amigos.
Olham-no todos como se fora um Deus. É que em parte alguma houve
nunca mais brando e cordial tratamento a homens escravizados. Nenhum
dos instrumentos de ignomínia que por aí se aplicam para corrigi-los
existem na fazenda de Pio. Culpa capital ninguém comete entre os negros
da fazenda; a alguma falta venial que haja, Pio aplica apenas uma
repreensão tão cordial e tão amiga, que acaba por fazer chorar o
delinquente. Ouve mais: Pio estabeleceu entre os seus escravos uma espécie
de concurso que permite a um certo número libertar-se todos os anos.
Acreditarás tu que lhes é indiferente viver livres ou escravos na fazenda, e
que esse estímulo não decide nenhum deles, sendo que, por natural
impulso, todos se portam dignos de elogios?
No dia seguinte, o advogado visita na cadeia o réu que vai defender, de nome Julião:
16
Retomando as reflexões de Heller e Kosik sobre o cotidiano como um conjunto de práticas que promovem a
dominação de alguns grupos sobre outros.
17 A Lei de Terras (Lei n. 601, de 18.09.1850) determinou a compra e venda como meio exclusivo de obtenção
de lotes agrícolas, não mais por cessão gratuita em nome do sesmeiro ou do posseiro, como ocorria desde o
período colonial.
119
Guia Interpretativo - Virgínius
Laborioso por necessidade e por gosto, Julião bem depressa viu frutificar o
seu trabalho. Ainda assim não descansava. Queria, quando morresse,
deixar um pecúlio à filha. Morrer sem deixá-la amparada era o sombrio
receio que o perseguia. Podia acaso contar com a vida do fazendeiro
esmoler?
[...]
Uma tarde, quinze dias depois do incidente que narrei acima, voltava Julião
da fazenda do velho Pio. Era já perto da noite. Julião caminhava
vagarosamente, pensando no que lhe faltaria ainda para completar o
pecúlio de sua filha.
Ou seja, Julião sabia que não poderia contar com a proteção de Pio para o resto da
vida, por isso nutria expectativas reais e fortes de que pudesse sair algum dia daquela
relação de dependência. Seu trabalho lhe permitia cultivar tais esperanças. Ao que parece, o
fazendeiro também se preocupava com a permanência dos escravos na propriedade. Uma
vez livres, os ex-escravos teriam a liberdade de escolher em quais terras iriam trabalhar.
Muitos inclusive se recusavam a trabalhar nas plantações onde tinham sido escravos, para
evitar qualquer permanência de relações violentas com seus antigos senhores. O tratamento
“brando” dispensado pelo personagem Pio aos cativos, a ausência de “instrumentos de
ignomínia que por aí se aplicam para corrigi-los”, a “repreensão tão cordial e tão amiga”, e
a situação mais sintomática de todas, o “concurso que permite a um certo número libertar-
se todos os anos”, podem ser encaradas como estratégias18 para a garantia da continuidade
de mão de obra em uma época na qual a escravidão tinha um futuro cada vez mais incerto.
Assim, embora a Lei de Terras e as relações hierárquicas no meio rural provocassem a
permanência de traços essenciais do sistema escravista no incipiente trabalho livre,
mantendo certa lógica de dominação característica da escravidão, abriam-se também no
mesmo período novas expectativas e oportunidades que beneficiavam a população pobre
livre e liberta.
18
O termo “estratégia” é empregado de acordo com a definição de Certeau.
120
Atividades Guia Interpretativo - Virgínius
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
3. Por que é possível dizer que a Lei de Terras beneficiava os grandes fazendeiros e
prejudicava as pessoas mais pobres das zonas rurais?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
121
Atividades - Virgínius
4. Anote, ao lado dos nomes dos personagens a seguir, algumas informações contidas no
texto a respeito de cada um deles, destacando o seu papel social.
Pio:________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Julião:______________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Carlos:_____________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Elisa:_______________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
Julião
Carlos
6. Qual o personagem da história que possui maior capacidade de impor sua autoridade
sobre os outros? Por que este personagem tinha mais poder?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
7. Qual o termo utilizado pelas pessoas da vila para se referir a Pio? O que ele revela sobre
o poder do fazendeiro?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
122
Atividades - Virgínius
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
10. A partir dos trechos copiados na questão anterior, como você avalia as condições de
moradia e de trabalho de Julião?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
11. Por que você acha que Pio tratava bem seus escravos e libertava alguns todos os anos?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
12. Onde passavam a morar e trabalhar os escravos libertos por Pio? Por que você acha que
eles ficavam nesse lugar?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
13. Que relações podem ser estabelecidas entre as condições de moradia e trabalho das
pessoas pobres - livres e libertas - no meio rural e a Lei de Terras de 1850?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
123
Atividades - Virgínius
Uns braços
Guia interpretativo
Tanto o pai de Inácio quanto Borges são profissionais liberais, mas com condições
econômicas distintas. A profissão de Borges – solicitador – algo entre procurador e
advogado, tinha possibilidades de ganho bem melhores do que a de um barbeiro. O
acolhimento de agregados era prática comum entre as camadas médias e altas da sociedade
brasileira no século XIX, tratava-se de estratégia importante no processo de produção de
dependentes. Essa realidade dava-se de diversas formas e por vários motivos. Em conto
anteriormente analisado, Virginius, era um mecanismo que garantia proteção à população
rural desprovida de terras e também mão de obra para a grande lavoura. Em Uns Braços, há
referência ao abrigo de filhos de famílias próximas com uma finalidade educativa e
produtiva: os jovens adquiriam competências e conhecimentos, proporcionando um alívio
na renda familiar e, ao mesmo tempo, mão-de-obra para aqueles que os recebiam. Além de
Inácio, o trabalhador agregado, e Borges, dono da casa e seu patrão, faz parte da história D.
Severina, “senhora que vivia com ele maritalmente, há anos”. O cotidiano dos três é
marcado por uma série de tensões, como se percebe no trecho a seguir:
124
Guia Interpretativo – Uns braços
— Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu
pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de
marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não.
Estúpido! Maluco!
— Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se
para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos.
Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir
a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De
manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos...
Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura!
D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges expetorou
ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens.
O trecho acima permite reconhecer algumas das práticas e situações que constituem
o cotidiano dos personagens. Dar moradia, alimentação e trabalho para agregados era uma
forma de homens com maior poder econômico transformarem estranhos em dependentes.
Consequentemente, os trabalhadores ficavam subordinados à autoridade do patrão para
além dos espaços de trabalho, tendo seu comportamento controlado e modelado também na
esfera doméstica. Ao longo do conto, revelam-se mais aspectos importantes das relações de
poder entre patrão e empregado:
O trecho acima, assim como o anterior, permite aferir que Borges institui seu poder
por meio de uma série de mecanismos cotidianos de disciplinarização do tempo e das
atividades de Inácio, como o horário em que acorda e que faz as refeições, as tarefas que
deve executar no trabalho, os espaços que ocupa dentro da casa, sua relação com D.
Severina. A autoridade do solicitador sobre Inácio impõe-se também pela linguagem e pela
força, com agressões verbais e físicas. Como chefe e senhor da casa, acredita ter o direito da
violência sobre o agregado.
125
Guia Interpretativo – Uns braços
"Deixe estar, — pensou ele um dia [Inácio] — fujo daqui e não volto mais."
Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina.
Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe
permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava
os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham
outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de
três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso.
Aguentava toda a trabalheira de fora, toda a melancolia da solidão e do
silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por
dia, o famoso par de braços.
[...]
D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz
parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho.
Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse
água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga
e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão.
Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, coisa que
jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que
contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que
recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa
estando calada, não o era menos quando ria.
As refeições se tornaram para Inácio o momento mais importante do dia, pois era
quando via os braços de D. Severina, por quem ia desenvolvendo uma paixão cada vez
maior. Paixão essa que era secretamente retribuída, e que se manifestava em ações diárias
de carinho e generosidade da mulher para com o menino. Ainda que o solicitador Borges se
esforçasse de diversas formas para privar Inácio da intimidade da família, o sentimento
criado entre ele e D. Severina, efetivado em práticas cotidianas, o colocava em uma posição
mais confortável dentro da hierarquia familiar. A relação entre os dois termina com o ato de
126
Guia Interpretativo – Uns braços
traição (ou meia traição), em que a mulher dá um beijo no menino que, dormindo, o recebe
em um sonho. A nova forma de encarar e vivenciar o cotidiano desenvolvida por Inácio
devido à paixão por D. Severina efetua-se como uma reação à mentalidade que atribui a
Borges poder de mando sobre o agregado. Mas a reação é frágil, e não se mostra capaz de
desestruturar as relações de poder. Após o adultério, uma D. Severina “vexada” volta a se
comportar com a severidade de antes, e a história termina com a saída de Inácio da casa do
solicitador:
Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez
zangado, porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída:
— Quando precisar de mim para alguma coisa, procure-me.
127
Atividades Guia Interpretativo – Uns braços
1. Anote, ao lado dos nomes dos personagens a seguir, algumas informações sobre as
condições de vida e personalidade de cada um deles:
a) Inácio:
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
b) Borges:
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
c) Dona Severina:
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
2. Baseado nas informações do conto, escreva um parágrafo comentando como era o dia a
dia de Inácio.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
3. Preencha a tabela a seguir com as pessoas que conviviam com Inácio e indique o tipo de
relação mantida entre eles:
128
Atividades – Uns braços
6. De que forma Borges tentava fazer com que Inácio cumprisse suas obrigações? Estas
tentativas funcionavam sempre?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
"Deixe estar, — pensou ele um dia [Inácio] — fujo daqui e não volto mais."
Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão
bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente,
parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que
eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de
três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a
trabalheira de fora, toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão,
pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços.
[...]
D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada,
e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não
apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos,
lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e
confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, coisa que jamais
fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso
engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu
que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria.
7. Por que Inácio queria fugir? E por que ele não fugiu?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
8. Quais eram os momentos do dia mais esperados por Inácio? Por quê?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
129
Atividades – Uns braços
9. Descreva que mudanças ocorreram no dia a dia de Inácio após o momento em que ele e
D. Severina passaram a gostar um do outro.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
10. Se Inácio e D. Severina gostavam um do outro, por que não ficaram juntos? O que
poderia acontecer com os dois se o solicitador descobrisse o beijo entre eles?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
11. Por que você acha que o chefe de Inácio o mandou embora de sua casa?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
12. Que situações Inácio vivia em seu dia a dia que eram semelhantes a situações vividas
pelos trabalhadores escravos?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
130
Machado de Assis
131
Bibliografia Machado de Assis
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão
na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as batatas: Forma literária e processo social nos inícios do
romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2012.
132