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Literatura - Machado de Assis

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ENSINO DE HISTÓRIA

CURSO DE MESTRADO PROFISSIONAL EM ENSINO DE HISTÓRIA

ENSINO DE HISTÓRIA, COTIDIANO E LITERATURA

Escravidão e Paternalismo em contos de Machado de Assis

Raul Costa de Carvalho

Porto Alegre, RS

2016
Raul Costa de Carvalho

ENSINO DE HISTÓRIA, COTIDIANO E LITERATURA

Escravidão e Paternalismo em contos de Machado de Assis

Dissertação apresentada como requisito


parcial para a obtenção do título de
mestre em Ensino de História pelo
Programa de Pós Graduação em Ensino
de História da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.

Orientador: Prof. Dr. Benito Bisso Schmidt

Porto Alegre, RS

2016
4

Raul Costa de Carvalho

ENSINO DE HISTÓRIA, COTIDIANO E LITERATURA

Escravidão e Paternalismo em contos de Machado de Assis

Banca Examinadora:

___________________________________________

Prof.ª Dr.ª Katani Monteiro

Universidade de Caxias do Sul

___________________________________________

Prof. Dr. Benito Bisso Schmidt

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

___________________________________________

Prof. Dr. José Rivair Macedo

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

___________________________________________

Prof ª. Dr ª. Mara Cristina de Matos Rodrigues

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

___________________________________________

Prof. Dr. Nilton Mullet Pereira

Universidade Federal do Rio Grande do Sul


Resumo

O objetivo deste trabalho é introduzir para os professores e professoras de


História algumas das principais discussões em diferentes áreas do conhecimento
sobre a vida cotidiana, apresentando esta como uma perspectiva possível e
importante para ser utilizada na abordagem de diferentes conteúdos em sala de
aula. Para isso, a partir da retomada de algumas reflexões sobre a relação entre
História e Literatura, propomos quatro contos de Machado de Assis como recursos
para o ensino de dois temas: a escravidão e o paternalismo no período conhecido
como Segundo Reinado (1840-1889). Os contos selecionados foram: Virginius:
história de um advogado (1864); Mariana (1871); Uns braços (1896) e Pai contra
Mãe (1906). O resultado desta proposta pedagógica foi a produção de um material
didático, denominado Caderno do Professor, voltado para professores de História do
8º ano do Ensino Fundamental. Neste material, apresentam-se interpretações
possíveis dos contos, de acordo com o objetivo de aprendizagem proposto, bem
como algumas sugestões de atividades para serem desenvolvidas em sala de aula.
As atividades sobre o conto Pai contra Mãe foram aplicadas, e seus resultados
analisados ao final desta pesquisa, permitindo algumas reflexões sobre a trajetória
percorrida por educadores entre a elaboração dos objetos de aprendizagem até o
conhecimento construído com os alunos.

Palavras-chave: Ensino de História – Cotidiano – Literatura – Escravidão –


Paternalismo – Machado de Assis.
Abstract

The objective of this work is introduce to history teachers some of the main
discussions in differente areas of knowledge about everyday life, presenting this as a
possible and important perspective to be used in different content approach in
classroom. For this, we present some reflections about the relationship between
History and Literature and propose four Machado de Assis’ stories as resources for
the teaching of two themes: slavery and paternalism in the period of the brazilian
history known as Segundo Reinado (1840-1889). The stories selected were:
Virginius: história de um advogado (1864); Mariana (1871); Uns braços (1896) and
Pai contra Mãe (1906). The result of this pedagogical proposal was the production of
a didactic material, called Caderno do Professor, to be used by History teacher’s
from 8th grade of elementary school. In this material, we present possible
interpretations of the stories, according to the objective of the proposed learning, also
some suggestions for activities to be developed in the classroom. The activities of the
Pai contra Mãe storie were applied, and the results analyzed at the end of this
research, allowing some reflections about the trajectory coursed by educators
between the development of learnig objects until the knowledge constructed with the
students.

Keywords: History teaching – Everyday life – Literature – Slavery – Paternalism –


Machado de Assis.
Agradecimentos

Agradeço a todos os professores e colegas do Mestrado Profissional em


Ensino de História, pessoas profundamente comprometidas com uma educação
pública de qualidade no país, com quem pude compartilhar mais do que discussões
teóricas, mas também as angústias, anseios e lutas que envolvem nossa profissão.
Agradeço ao meu orientador, Benito Schmidt, a quem devo muitas etapas de
minha formação acadêmica, desde a disciplina de técnicas de pesquisa em 2011,
onde aprendi pela primeira vez na prática o ofício do historiador, até as disciplinas
do Mestrado, fundamentais para meu crescimento como professor. Além disso,
agradeço sua orientação dedicada e criteriosa, que tem grande responsabilidade
nos pontos positivos deste trabalho. Estendo este agradecimento a todos os
professores da graduação, em especial Sílvia Petersen, que me ensinou a
importância da teoria no conhecimento histórico, e cujas reflexões sobre o cotidiano
foram fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa. Agradeço ao professor
Nilton Pereira, cujos ensinamentos e conselhos nas três disciplinas da Faculdade de
Educação me fizeram ter a certeza de que queria ser professor. Ao Nilton e à
professora Mara Rodrigues sou grato também pelas críticas na etapa de qualificação
do projeto, sem as quais este trabalho não teria sofrido a importante mudança de
foco que adquiriu desde aquele momento.
Agradeço a todos os professores com os quais convivi nas escolas onde fui
aluno e trabalhei. Obrigado também a todos os alunos que já dei aula, que desde
2012 fazem com que eu tenha a certeza de que escolhi a profissão certa e me
motivam a ser um professor melhor, especialmente aos quatro oitavos anos que
foram as “cobaias” para a experiência desenvolvida nesta pesquisa.
Por fim, obrigado aos meus pais, Gércio e Lúcia, por todo o esforço e
sacrifício para que eu tivesse as melhores oportunidades possíveis. Obrigado aos
meus amigos, em especial Aluísio e Bruna, a quem desde a graduação tenho o
privilégio de compartilhar todos os momentos que só as melhores amizades
conhecem. À Bruna agradeço ainda pela ajuda fundamental na revisão do conteúdo
presente no material didático. E, por fim, agradeço à Patrícia, minha companheira e
melhor amiga, que me ajudou em diversos momentos da pesquisa, e com quem
pude compartilhar todos os sentimentos que envolveram a realização deste trabalho.
Sumário
Introdução...................................................................................................................9

Capítulo 1 – Historiografia, Ensino de História e Cotidiano ................................12


1.1 Como diferentes tendências da historiografia influenciaram os estudos sobre o
cotidiano? ..................................................................................................................12
A terceira geração da “Escola” dos Annales..............................................................13
Os historiadores marxistas britânicos .......................................................................15
A micro-história italiana .............................................................................................16
1.2 Como o cotidiano tem sido pensado na historiografia brasileira?........................18
1.3 Como o cotidiano foi desenvolvido teoricamente na História, Filosofia e Ciências
Sociais? .....................................................................................................................25
1.4 Como o cotidiano tem sido pensado no ensino de História? ..............................32

Capítulo 2 – Historiografia, Ensino de História e Literatura ................................38


2.1 Como usar a literatura no ensino de História?.....................................................38
2.2 Como usar Machado de Assis no ensino de História? ........................................49

Capítulo 3 – Ações Pedagógicas ...........................................................................59


3.1 Propostas para o estudo da história do cotidiano por meio dos contos de
Machado de Assis. ....................................................................................................59
3.2 Aplicando as atividades: guia interpretativo para o conto Pai contra Mãe..........61
3.3 Apresentação das atividades desenvolvidas em aula ........................................65
3.4 Descrição das aulas ............................................................................................70
3.5 Análise dos resultados: compreendendo a condição legal da escravidão..........71
3.6 Análise dos resultados: compreendendo a agência e subjetividade dos escravos
...................................................................................................................................76
3.7 Avaliação da atividade ........................................................................................81

Considerações Finais .............................................................................................84

Referências bibliográficas.......................................................................................86

Caderno do Professor .............................................................................................90


9

Introdução

Quando se fala em ensino de História, uma das discussões que


frequentemente vêm à tona é a relação deste com o conhecimento histórico
acadêmico. Durante muito tempo o trabalho do professor foi visto apenas como o de
um transmissor dos saberes desenvolvidos na Academia. A história ensinada era
compreendida como um subproduto, uma adaptação simplificadora da história
acadêmica. Atualmente, a complexa relação entre estes dois campos tem sido mais
bem discutida, sendo a história ensinada encarada como outro conhecimento, com
suas próprias demandas e especificidades epistemológicas1. Porém, a relação entre
o ensino e a pesquisa ainda é e deve continuar sendo profundamente estreita. A
teoria da História e a produção historiográfica são referenciais fundamentais para o
conhecimento produzido na ou para a educação básica. Os conteúdos abordados na
sala de aula devem estar sempre embasados nos conceitos desenvolvidos pela
teoria da História, ou por outras áreas do conhecimento, desde que sejam úteis para
o conhecimento histórico.
Portanto, é fundamental que o professor de História conheça as diferentes
tendências e perspectivas desenvolvidas pela historiografia, para que possa se
apropriar daquelas contribuições que lhe pareçam mais pertinentes para o
desenvolvimento de seus objetos de aprendizagem. Se o docente não tiver clareza
das seleções teóricas por trás de sua abordagem da História, corre o risco de
trabalhar conhecimentos do senso comum em sala de aula, e assim o ensino não
contribuirá para que o aluno desenvolva a capacidade de analisar a realidade social
de forma mais profunda. Além de promover um ensino que contribua para que os
alunos façam uma leitura mais adequada do mundo, conhecer as diferentes formas
de se fazer História permite ao professor ter maior liberdade e autonomia para definir
o que será abordado e a partir de quais perspectivas teóricas.
Fundamentado na importância que a teoria tem para a identificação dos
objetos e fenômenos do mundo, permitindo a atribuição de sentidos à realidade para
além das simples aparências, o que propomos aqui é introduzir para o professor de
História algumas das principais discussões teóricas, metodológicas e historiográficas

1
Para a análise de uma discussão mais ampla sobre a relação entre saber acadêmico e saber escolar ver
MONTEIRO, Ana Maria F.C. A história ensinada: algumas configurações do saber escolar. História & Ensino,
Londrina, v.9, p. 37-62, out. 2003.
10

que têm sido travadas em relação à História do Cotidiano. Nosso objetivo é


apresentar esta dimensão da vida humana como uma perspectiva possível de ser
utilizada em sala de aula.
Mas por que o cotidiano pode ser importante nas aulas de História? Como
veremos no capítulo 1, o conhecimento histórico, a filosofia e as ciências sociais
têm se preocupado há algumas décadas com a questão da vida cotidiana. Da
variedade de trabalhos e perspectivas teóricas sobre o tema, muitas delas
divergentes, existem alguns aspectos em comum que indicam a relevância da
cotidianidade na pesquisa científica. Para os historiadores, esta é uma dimensão
privilegiada para se compreender as experiências concretas vividas pelos indivíduos,
nem sempre visíveis nos estudos centrados nos sistemas mais amplos de
determinações e condicionamentos políticos, econômicos e culturais de cada época.
Além disso, depois de muito tempo relegado ao campo das curiosidades, o cotidiano
tem sido identificado como plano fundamental do acontecer histórico. Os processos
propriamente históricos se desenvolvem nele e por meio dele. O dia a dia das
pessoas não é simplesmente o reflexo de determinações estruturais da sociedade,
mas um momento onde se desenvolvem diferentes relações de poder, lutas sociais,
tensões, conflitos e resistências que devem ser analisados se quisermos
compreender as sociedades passadas.
A noção de cotidiano existe previamente no conhecimento de alunos e
professores. Todos possuem um saber comum sobre ela, que a identifica como a
vida de todos os dias, o pano de fundo das ações humanas. Estas noções são
importantes para a inteligibilidade do mundo, mas insuficientes para a compreensão
desta dimensão da vida humana em toda a sua complexidade. É preciso, portanto,
desnaturalizá-la, resgatando sua dimensão política. Trata-se de valorizar o cotidiano
como perspectiva de análise, buscando evidenciar para os alunos a importância dos
atos (conscientes e inconscientes) das pessoas comuns no desenrolar do processo
histórico.
Além de definir uma perspectiva de análise, é preciso também pensar nos
materiais empíricos que podem ser utilizados no processo de ensino. Os
documentos que, na pesquisa histórica, se transformam em fontes, na sala de aula
convertem-se em importantes recursos para o professor. Tais recursos são as
formas de recuperar realidades passadas, e devem ser interpretados a partir das
11

perspectivas teóricas selecionadas para que se desenvolva uma aprendizagem


adequada. Neste sentido, apresentamos no capítulo 2 algumas discussões sobre as
possibilidades e potencialidades de se trabalhar com textos literários no ensino de
História, especificamente alguns contos do escritor brasileiro Machado de Assis
(1839 - 1908). A partir de reflexões desenvolvidas no conhecimento histórico e na
crítica literária, analisou-se que aspectos da realidade social poderiam ser
acessados e trabalhados em sala de aula por meio da obra machadiana. Tais
reflexões permitiram o desenvolvimento de interpretações possíveis de quatro
contos do escritor: Virginius: história de um advogado (1864); Mariana (1871); Uns
braços (1896) e Pai contra Mãe (1906). Através destas leituras, fundamentadas na
perspectiva do cotidiano, elaborou-se um conjunto de atividades. Estas são
apresentadas em material anexo à pesquisa, denominado Caderno do Professor,
com sugestões para as aulas de História no oitavo ano do Ensino Fundamental 2.
Consta também, neste material, uma síntese daqueles aspectos discutidos na
presente pesquisa que foram considerados mais importantes para a compreensão e
utilização pelo professor do produto didático.
Uma destas propostas de atividades, sobre o conto Pai contra Mãe, foi
aplicada em quatro turmas de 8º ano da rede pública de ensino do município de
Gramado/RS. Assim, a descrição, análise e avaliação desta experiência,
apresentadas no capítulo 3, encerram a pesquisa, estabelecendo uma reflexão
sobre os difíceis caminhos percorridos pelo professor desde a elaboração de seus
objetos de ensino até as ações práticas com os alunos em sala de aula.

2
Os temas propostos para as aulas, como indicado no título da pesquisa, são a escravidão e o paternalismo.
Estes dois processos históricos estão profundamente relacionados com a História da população brasileira de
origem africana. Neste sentido, o presente trabalho insere-se no conjunto de reflexões e práticas pedagógicas
que nos últimos anos têm buscado trabalhar as relações étnico-raciais na escola na perspectiva da Lei
10.639/03, que torna obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas públicas e
privadas do ensino fundamental e médio do país.
12

Capítulo 1 – HISTÓRIOGRAFIA, ENSINO DE HISTÓRIA E COTIDIANO

1.1 Como diferentes tendências da historiografia influenciaram os estudos


sobre o cotidiano?

Muito tem se discutido sobre as transformações que ocorreram no


conhecimento histórico a partir das últimas décadas do século XX. Nesse período,
novas tendências e perspectivas teóricas e metodológicas ganharam destaque,
provocando importantes discussões que contribuíram significativamente para o
desenvolvimento do conhecimento histórico. Apesar de estar longe de compor um
movimento homogêneo, este processo de renovação promoveu uma série de
reflexões em comum que foram aos poucos sendo desenvolvidas e apropriadas por
muitos historiadores.
A multiplicidade de temas é sem dúvida uma das contribuições mais
importante desta “nova história”3. Objetos até então ausentes ou marginalizados na
historiografia passaram a fazer parte das preocupações dos pesquisadores. Uma
das questões que ganhou centralidade foi a vida cotidiana. Durante muito tempo, as
experiências diárias dos seres humanos não foram consideradas importantes na
pesquisa histórica. As ações do dia a dia, aquilo que era habitual na vida das
pessoas, por seu caráter repetitivo e impessoal, foram relegadas como
desnecessárias para a compreensão das sociedades. Foi, sobretudo, a partir dos
anos 1980 que alguns pesquisadores começaram a olhar com mais atenção para
essa dimensão da vida humana, enxergando nela um novo campo de possibilidades
para se compreender melhor o passado.
No entanto, em seu início, nos estudos sobre o cotidiano não houve uma
abordagem mais profunda. Estes por vezes estiveram muito próximos do pitoresco.
Tal dimensão foi seguidamente tratada nas pesquisas como uma mera janela para
as curiosidades da vida humana, e não como uma perspectiva por meio da qual se
poderia desvelar aspectos mais profundos e fenômenos gerais da realidade social. A
própria noção de cotidiano não possuía uma definição teórica, classificada nas

3
Esse amplo leque de transformações é comumente caracterizado por um único nome: “a nova história”. Tal
designação utilizada para descrever esse conjunto de mudanças não deve, no entanto, encobrir a diversidade
que marcou o movimento de renovação da historiografia, nem a persistência de importantes traços de
tradições epistemológicas anteriores.
13

pesquisas ora como tema, outras como âmbito, perspectiva, categoria. No Brasil, tal
dimensão também despertou o interesse de muitos historiadores. Em artigo de 1992,
Sílvia Petersen4 examinou de que forma a questão da vida cotidiana esteve presente
na historiografia brasileira a partir dos anos 1980. A autora constatou a existência de
grande quantidade de pesquisas que, a partir de seus títulos, sugeriam a vida
cotidiana como objeto de estudo. No entanto, na análise dos principais trabalhos
produzidos nesse período, Petersen afirmou haver o predomínio de um
conhecimento comum do cotidiano, um alto grau de empirismo que não o abordava
com densidade e profundidade teórica, tomando-o em seu grau mais aparente: a
vida de todos os dias, o palco onde as tramas acontecem.
Apesar disso, muitos dos historiadores que se dedicaram à vida cotidiana
desenvolveram importantes trabalhos, com maior consistência teórica e abordando o
cotidiano como um instrumento para se compreender a sociedade. Tais estudos têm
demonstrado relação com algumas das variadas tendências teóricas e
metodológicas que se desenvolveram na historiografia na segunda metade do
século XX. Destas, abordaremos de forma mais atenta três movimentos intelectuais
cujas contribuições tiveram papel decisivo para impulsionar os estudos sobre o
cotidiano: a terceira geração da “Escola” dos Annales, os historiadores marxistas
britânicos e a micro-história italiana.

A terceira geração da “Escola” dos Annales5

Inaugurada nos anos 1930, a “Escola” dos Annales passou ao longo do tempo
por uma série de transformações significativas, havendo por isso a necessidade de
diferenciar algumas das gerações que a constituíram. Embora a produção dos
historiadores da chamada terceira geração - desenvolvida nos anos 1980 - seja
caracterizada por uma diversidade de vertentes e temas, podem ser assinalados
alguns pontos em comum que criaram uma identidade entre o variado grupo de

4
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Dilemas e desafios da historiografia brasileira: a temática da vida cotidiana.
Porto Alegre, RS: UFRGS/Curso de pós-graduação em história/ Cadernos de estudo, 1992.
5
As obras que serviram de base para este item foram: PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz; LOVATO, Barbara.
Introdução ao estudo da História: temas e textos. Porto Alegre: UFRGS, 2013 e BURKE, Peter. A escola dos
Annales. 1929-1989. A revolução francesa da historiografia. São Paulo: UNESP, 1991.
14

pesquisadores que são associados a ela6. Muitos desses pontos tiveram papel
importante no desenvolvimento dos estudos sobre o cotidiano. O primeiro, já
mencionado anteriormente, é o surgimento de novos objetos na pesquisa histórica 7,
antes relegados a segundo plano ou mesmo ausentes da produção dos
historiadores. Além disso, foram propostas novas formas de abordar estes objetos 8,
promovendo uma verdadeira revolução documental que ampliou consideravelmente
o conceito de fonte histórica. Nessa multiplicidade de objetos, o cotidiano entrou no
foco de preocupação de muitos historiadores, o que não seria possível sem o
alargamento das formas de se acessar o passado, com a inclusão de documentos
mais propensos ao registro da vida diária.
Outra contribuição importante da terceira geração que pode ser associada à
maior presença do cotidiano como objeto de estudo está relacionada à questão das
temporalidades. Assim como alguns importantes historiadores da segunda geração,
sobretudo Braudel, muitos pesquisadores privilegiaram as permanências ao longo
dos processos históricos, distanciando-se de importantes tradições epistemológicas
que tinham como foco de preocupação exclusivamente as transformações9. Tal
questão foi essencial para que a dimensão cotidiana da vida humana alcançasse um
papel de destaque na historiografia. O cotidiano é o momento privilegiado para a
investigação das permanências. É constituído principalmente por ações e hábitos
que são herdados e apropriados a partir da repetição em tempos de maior duração.
Claro que nele também se produzem mudanças, mas elas, em geral, ocorrem em
um ritmo mais lento. As relações sociais que formam a vida cotidiana têm como
característica fundamental a continuidade de elementos do passado.
Mais importante que o interesse pelas permanências para a abordagem do
cotidiano foi a centralidade dada por muitos historiadores da terceira geração dos
Annales à complexa relação entre a ação dos sujeitos e as estruturas. As estruturas,
tão caras às gerações anteriores, foram repensadas no conhecimento histórico. Sem
negar sua influência, parte dos pesquisadores ligados à terceira geração afastou-se
de uma perspectiva determinista, privilegiando as ações dos indivíduos. Este é, até
hoje, um dos motivos que levam os historiadores a estudarem o passado a partir do

6
São identificados à terceira geração os historiadores Jacques Le Goff, Pierre Nora, Paul Veyne, Philippe Ariès,
Georges Duby, entre outros.
7
Sobre isso, ver LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre, História: Novos Objetos, 3ª. Ed. RJ: Francisco Alves, 1988.
8
Ver LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre, História: Novas Abordagens, 3ª. Ed. RJ: Francisco Alves, 1988.
9
Não se pode atribuir esta preocupação com as permanências a todos os historiadores da terceira geração.
15

cotidiano, já que é uma perspectiva privilegiada para a compreensão das relações


entre sujeitos sociais e as pressões estruturais que limitam e possibilitam suas
ações, mas que também são transformadas por essas mesmas ações. Um dos
historiadores a quem se pode atribuir estas preocupações é Michel de Certeau que,
como veremos mais adiante, produziu reflexões de grande valor sobre a vida
cotidiana.

Os historiadores marxistas britânicos10

Outro movimento que teve grande impacto nos estudos sobre a vida cotidiana
foi a história social inglesa, de inspiração marxista, que se desenvolveu a partir dos
anos 1960 na Grã-Bretanha. Um grupo de historiadores, dos quais Eric Hobsbawm e
Edward Thompson tornaram-se os principais nomes, foi responsável por uma
renovação na historiografia tradicional inglesa, exercendo influência na pesquisa
histórica como um todo. Partindo de preocupações e temas em comum, como o
desenvolvimento do capitalismo na Inglaterra e o papel do movimento operário na
formação da sociedade inglesa, Hobsbawm, Thompson e outros desenvolveram
algumas questões teóricas que influenciaram posteriormente os historiadores que se
dedicaram à história do cotidiano.
Entre as contribuições deste movimento, está a revisão da concepção
estruturalista que caracterizava a produção marxista anterior. As estruturas eram
tratadas na pesquisa histórica como entidades anônimas que agiam de forma
avassaladora sobre os atos dos indivíduos. Os comportamentos destes eram
compreendidos como sendo determinados totalmente por elas. Não havia espaços
de liberdade e atuação autônoma dos sujeitos. A partir de uma nova forma de
compreender a relação entre a teoria e o material empírico utilizado pelo historiador,
os pesquisadores britânicos dedicaram sua atenção às experiências dos sujeitos
sociais. A crítica de Thompson11 sobre o marxismo predominante até então
enfatizava justamente a inversão existente na relação entre teoria e realidade, em
que os conceitos eram tomados como “fôrmas” dentro das quais a realidade deveria

10
Para este item, foram consultados PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz; LOVATO, Barbara. Introdução ao estudo da
História: temas e textos. Porto Alegre: UFRGS, 2013 e KAYE, Harvey. Los historiadores marxistas britânicos: un
análisis introductório. Zaragoza: Universidad de Zaragoza, 1989.
11
Ver THOMPSON, Edward Palmer. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento
de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
16

ser “encaixada”. Ao definir como ponto de partida as experiências vividas pelos


indivíduos, os marxistas britânicos complexificaram a relação entre estrutura e
sujeito, permitindo compreender melhor os condicionamentos e possibilidades que
atuam sobre as ações humanas. Como já mencionado anteriormente, essa relação
estrutura/sujeito também foi uma preocupação importante do grupo de historiadores
que são identificados com a terceira geração dos Annales, o que demonstra que
essa é uma questão teórica chave para a historiografia contemporânea, que
encontrou na vida cotidiana um espaço importante para desvendá-la.
Além disso, deve-se ressaltar a atenção dedicada pela história social inglesa
às experiências das pessoas comuns, no que foi chamado de uma história “desde
baixo”. Os grupos sociais que tiveram sua atuação resgatada pelos marxistas
britânicos geralmente compunham as classes mais baixas da sociedade inglesa. Era
a massa anônima, excluída das esferas de poder político e econômico. O foco nas
classes populares permitiu compreendê-las como sujeitos ativos nos processos de
transformação da sociedade, criadores e não apenas consumidores passivos de
valores e ideias, tendo papel significativo no desenvolvimento histórico. Tal mudança
teve grande contribuição para os estudos posteriores que identificaram na vida
cotidiana um importante espaço de resistência dos grupos populares.

A micro-história italiana12

Assim como a “Escola” dos Annales e a história social inglesa, a micro história
italiana foi mais uma vertente historiográfica a repensar o papel das estruturas sobre
a ação humana. No entanto, diferente das tendências analisadas anteriormente, as
contribuições da micro-história estão relacionadas muito mais a questões
metodológicas que teóricas. Desenvolvida nos anos 1970 e tendo como principais
nomes Giovanni Levi e Carlo Ginzburg, tal prática historiográfica somou-se às
reflexões produzidas no conhecimento histórico no final do século XX que
promoveram mudanças importantes nos paradigmas científicos.

12
Foi utilizada como bibliografia de base PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz; LOVATO, Barbara. Introdução ao
estudo da História: temas e textos. Porto Alegre: UFRGS, 2013; GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros
ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. e LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter. A
escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.
17

Preocupados com as lacunas presentes nas obras mais voltadas para a


totalidade social, que analisavam os fenômenos a partir de uma visão mais ampla e
geral, privilegiando aspectos quantitativos, como o marxismo clássico e a história
das mentalidades, historiadores italianos propuseram uma redução de escala na
pesquisa histórica. O foco voltado para os elementos individuais, singulares na
história, como o moleiro de Ginzburg13, não significou a rejeição dos aspectos mais
amplos da sociedade, mas sim a procura da relação entre o individual e o coletivo,
buscando a partir de casos específicos fenômenos mais gerais da sociedade. A
redução da escala de observação é, de acordo com tal perspectiva, um meio para o
entendimento do todo, conferindo maior protagonismo aos sujeitos, maior densidade
às relações sociais e conseguindo compreender as condições gerais que permitem a
atuação dos indivíduos. Tal preocupação, como visto anteriormente, foi central em
variadas vertentes e tendências historiográficas do final do século passado.

***

As “escolas históricas” analisadas não possuem fronteiras rígidas entre elas.


A terceira geração da “Escola” dos Annales, os historiadores marxistas britânicos e a
micro-história italiana foram movimentos da historiografia que se influenciaram
mutuamente e desenvolveram uma série de reflexões em comum. É preciso
destacar também que dentro de cada uma destas tendências existem divergências
importantes na produção dos historiadores que as compõem, não apenas em
relação aos temas de estudo, mas também no que se refere a questões teórico-
metodológicas. Além disso, tais movimentos não foram explorados em toda sua
complexidade neste trabalho, mas apenas a partir de um panorama geral.
Tampouco foram os únicos a se desenvolver e influenciar a produção histórica no
período analisado. Fez-se aqui um esforço de síntese de algumas das principais
contribuições dos trabalhos do movimentado final do século XX para o conhecimento
histórico como um todo, e, mais especificamente, para a questão da vida cotidiana.
Trata-se de uma busca das “matrizes” dos estudos recentes sobre o cotidiano,
tentando responder, de forma inicial, quando e por que a vida cotidiana tornou-se
objeto de estudo. Porém, não se abordou ainda trabalhos mais específicos. É
13
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2006.
18

preciso, então, analisar algumas obras produzidas sobre o cotidiano e descobrir em


que medida foram influenciadas pelas contribuições teóricas e metodológicas da
historiografia.14

1. 2 Como tem sido pensado na historiografia brasileira?

O processo de renovação da historiografia analisado anteriormente alterou de


forma muito significativa a produção do conhecimento histórico, possibilitando o
estudo de outras dimensões da vida humana, com maior amplitude e profundidade
teórica e alargando de forma considerável as possibilidades de pesquisa dos
historiadores. As inovações e avanços analíticos promovidos por esta “nova história”
influenciaram a historiografia brasileira que se desenvolveu a partir dos anos 1980.
Aqui a questão da vida cotidiana também passou a estar presente nas pesquisas
acadêmicas de forma cada vez mais frequente, tornando-se uma verdadeira “moda”
em determinado momento. Como mencionado anteriormente, muitas dessas
pesquisas sobre o cotidiano inovaram apenas no tema, sem se apropriar das
questões teóricas e metodológicas mais profundas produzidas no período. Mas em
alguns trabalhos é nítida a influência de diversas reflexões efetuadas pela
historiografia da segunda metade do século XX, que permitiram a seus autores
pensar o cotidiano como uma perspectiva analítica a partir do qual se compreendia e
explicava uma determinada realidade.
Entre as primeiras obras sobre o cotidiano reconhecidas pela consistência
teórica e acentuado valor para o conhecimento histórico estão: Trabalho, lar e
botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque, de
Sidney Chalhoub15; Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, de Maria Odila
Leite da Silva Dias16 e A vida fora das fábricas: cotidiano operário em São Paulo,
1927-1934, de Maria Auxiliadora Guzzo Decca17. Os três trabalhos foram analisados

14
Sobre a História do Cotidiano, há ainda uma vertente alemã, desenvolvida na década de 1980, reconhecida
pelo termo Alltagsgeschichte (correspondente ao termo em inglês, “the history of the everyday life”).
Encabeçada pelo historiador Alf Lüdtke, não há ainda obras traduzidas para o português de nenhum
pesquisador ligado a este movimento intelectual.
15
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle
époque. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2012.
16
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no séc. XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984.
17
DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo. A vida fora das fábricas: o cotidiano operário em São Paulo, 1927-1934.
Campinas: UNICAMP, 1983 (Dissertação de Mestrado).
19

em artigo já referido de Petersen18, que atribuiu aos autores uma utilização do


cotidiano como categoria explicativa. Segundo ela:

Nestes autores [...] o cotidiano é considerado local de algumas


práticas de dominação e do exercício de mecanismos disciplinares e
de algumas dimensões da luta de classes, da resistência organizada,
de confronto com o sistema, da criação de papéis informais e redes
de solidariedade. Assim, atribui-se um caráter político à vida
cotidiana.
Além disso, o cotidiano é uma categoria que expressa para os
autores um conjunto de relações e práticas significativas para a
explicação dos objetos que trabalham e desta forma, possui uma
função de instrumental analítico.

Portanto, apesar de investigarem realidades bastante diversas, as três


pesquisas partem da mesma perspectiva – a dimensão cotidiana da vida humana –
e possuem questões teóricas em comum. Uma análise mais detalhada das obras
permite-nos compreender melhor de que forma a cotidianidade serviu para explicar a
realidade estudada pelos autores.
Em Chalhoub, o problema de pesquisa é a constituição de uma nova
ideologia de trabalho entre o final do século XIX e início do XX na cidade do Rio de
Janeiro, a partir dos mecanismos de controle social instituídos pelas autoridades
policiais e judiciárias. Para isso, o autor reconstrói as experiências diárias dos
trabalhadores nos primeiros anos do século XX por meio de uma série de conflitos
envolvendo assassinatos ou tentativas de homicídio. Seu objetivo é mostrar como se
interiorizava, afirmava e reproduzia, no cotidiano dos trabalhadores, um conjunto de
relações de subjugação imposto pelas classes dominantes na busca da construção
de uma ética de trabalho capitalista. As brigas entre os trabalhadores são o ponto de
partida para a compreensão de seus padrões de comportamento e de como foram
incorporados na conduta cotidiana os novos valores atribuídos ao trabalho. Nestas
tensões diárias existentes nas relações de trabalho, interferem e modificam-se
relações culturais, econômicas e políticas não cotidianas do período, como as forças
produtivas, a mentalidade popular, a imigração europeia para a cidade e a ideologia
do trabalho veiculada pelas classes dominantes.
Em “Trabalho, lar e botequim”, é na vida cotidiana que se constrói a nova
ética de trabalho. Os discursos produzidos e veiculados pela elite política sobre o

18
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Dilemas e desafios da historiografia brasileira... Op. Cit., n.p.
20

que é o trabalho e qual a sua importância para o desenvolvimento da nação são


incorporados pelos trabalhadores a partir de suas práticas diárias, por meio de uma
série de mecanismos de controle social que disciplinam o tempo e o espaço não
apenas no ambiente de trabalho, mas também em sua vida privada (família) e
coletiva (botequim, rua). Nestas práticas, os indivíduos afirmam as concepções
ideológicas das classes dominantes, mas também as modificam, de acordo com
uma leitura própria que os permite movimentarem-se melhor nas lutas diárias pela
sobrevivência, às vezes inclusive produzindo mecanismos cotidianos de resistência
às relações de trabalho impostas desde cima.
Em outro trabalho, Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX, Maria
Odila Leite da Silva Dias tem como problema principal compreender o
desenvolvimento de papéis informais pelas mulheres pobres no processo de
urbanização da cidade de São Paulo entre o final do século XVIII e as vésperas da
abolição. A noção de “papéis informais” é fundamental na obra, pois é a partir dela
que se aborda a diferença entre os discursos normativos sobre como deveria ser o
comportamento feminino e a realidade concreta dos indivíduos. As necessidades
diárias de sobrevivência impunham a estas mulheres o cumprimento de atividades
que eram tradicionalmente atribuídas aos homens, como determinados trabalhos e
responsabilidades em relação à manutenção do lar. Por meio de uma extensa
pesquisa documental, Dias identifica uma parcela muito significativa de domicílios
chefiados por mulheres, boa parte delas solteiras, contrariando os papéis
prescritivos da época que tratavam esta situação de mando como uma obrigação
masculina. A noção de “papel informal” utilizada na obra recupera a experiência
vivida por um enorme contingente de mulheres pobres, excluídas das esferas de
poder, que no seu dia a dia confrontavam a rigidez dos espaços sociais aos quais
eram relegadas por sua condição feminina.
A historiadora demonstra que os papéis sociais, criados no seio dos grupos
dominantes, ao afirmarem-se no dia a dia das camadas mais pobres da sociedade,
frequentemente chocavam-se com dificuldades e necessidades específicas desta
parte da população. A manutenção total de tais papéis, por mais rígidos que
pudessem ser os mecanismos sociais de disciplinarização, tornava-se impossível
nas classes desfavorecidas. Mesmo que algumas normas, práticas e valores
contivessem traços importantes dos discursos normativos hegemônicos, uma análise
21

do cotidiano das camadas populares permitiu desvelar o desenvolvimento de


atitudes de improvisação que resistiam e modificavam os papéis oficiais, e permitiam
o aparecimento de comportamentos mais adequados às necessidades diárias de
sobrevivência.
Na obra A vida fora das fábricas: cotidiano operário em São Paulo, 1927-
1934, de Maria Auxiliadora Guzzo Decca, a realidade estudada é outra, mas há uma
preocupação em comum com os outros dois autores: “pretender contribuir para o
conhecimento das condições concretas dos trabalhadores [...]”19. A autora busca em
documentos como recenseamentos, leis, decretos, anuários e periódicos reconstruir
as condições de vida do proletariado industrial e urbano em São Paulo,
compreendendo as formas de controle do cotidiano operário fora do ambiente de
trabalho, bem como os mecanismos de resistência desenvolvidos pelos
trabalhadores a estas normas disciplinarizadoras.
O cotidiano dos trabalhadores industriais era caracterizado por condições
extremamente precárias de moradia, salário, alimentação e vestuário. A dominação
de uma massa de descontentes como essa exigia a instituição de mecanismos de
controle social que atuassem também fora do ambiente de trabalho, e que se
exerciam de formas diversas, que “emergiam pontual e ‘inconscientemente’ no
interior da sociedade capitalista visando conformar o operariado à ordem
burguesa”20. Este controle efetuava-se pelo poder público a partir de iniciativas que
regulassem aspectos cotidianos dos trabalhadores como a alimentação e a moradia.
Iniciativas que, mais do que melhorar sua qualidade de vida, tinham uma função
educativa e disciplinarizadora, com o objetivo de aumentar a produtividade do
trabalho e conformar os operários à ordem vigente. A criação de um salário mínimo,
de restaurantes populares, a construção de vilas operárias, entre outras medidas,
eram estabelecidas pelos poderes públicos - municipais e estaduais - baseando-se
em pesquisas encomendadas pelo próprio Estado. Nelas, ressaltava-se um caráter
supostamente “técnico” e “cientifico” e, portanto, “exato” e “neutro”, para decidir o
que deveria ser feito para melhorar as condições de vida do proletariado. Assim,
retirava-se do trabalhador qualquer possibilidade de se manifestar sobre a sua
própria situação, concentrando nas mãos do Estado toda a autoridade para
determinar o que era melhor para ele.
19
DECCA, Maria Auxiliadora Guzzo. A vida fora das fábricas... Op. Cit., n.p.
20
Ibidem, p. 39-40.
22

A Igreja, as escolas e as indústrias também eram agentes importantes no


domínio que se exercia sobre a classe trabalhadora fora das fábricas, especialmente
em atividades de lazer e de instrução. A gerência dos diversos grupos e instituições
sociais sobre a vida do proletariado crescia na medida em que este aumentava sua
força social. A imprensa operária denunciou, em diversas vezes, tal controle, que se
fazia de forma explícita em alguns momentos, tentando organizar e dirigir o tempo
livre do trabalhador e de sua família para sua “adequação” e conformação à ordem
social. A autora concentra sua análise nas redes de instituições ligadas ao poder dos
grupos dominantes da sociedade, mas não deixa de salientar que – por diversos
motivos – essa conformação dos trabalhadores nem sempre era bem sucedida na
prática. Sua não afirmação acontecia por contradições, fragilidades e outras
dificuldades internas ao próprio projeto hegemônico, mas também pela atuação e
resistência organizada dos trabalhadores.
Nas três pesquisas, a reconstrução das experiências cotidianas resulta de um
trabalho de minuciosa investigação das entrelinhas dos documentos. As fontes
analisadas, grande parte documentos oficiais como recenseamentos, leis e inúmeros
processos judiciais, estão carregadas de juízos de valor e estereótipos que
representam os valores dominantes da sociedade. O cotidiano é para os autores
uma perspectiva analítica privilegiada para recuperar e analisar as experiências
concretas dos indivíduos, para além dos papéis normativos e projetos oficiais da
época em que viveram. A análise do cotidiano dos grupos subalternos permitiu aos
historiadores mencionados compreender que tais discursos hegemônicos
dificilmente se afirmavam totalmente no dia a dia dos atores estudados. Colidiam
com as dificuldades de sobrevivência e com a resistência inconsciente ou
organizada dos sujeitos. Em suas ações, mesmo que os indivíduos interiorizassem
muitos das normas e dos valores ideológicos elaborados pelos grupos dominantes,
os alteravam de acordo com suas necessidades. Os autores, sobretudo os dois
primeiros, estão preocupados com o “ser”, e não com o “dever ser”, com os espaços
conquistados, não prescritos, com as tensões que se opõe ao domínio das normas
culturais, com o processo propriamente histórico das vidas das classes subalternas.
Em relação ao modo como a realidade foi explicada a partir do cotidiano, é
possível identificar nos três trabalhos uma série de características em comum.
Primeiro, há uma delimitação clara de quais grupos sociais estão sendo abordados:
23

a classe trabalhadora; as mulheres das classes subalternas, livres, forras ou


escravas e os operários industriais urbanos. Mesmo dentro de cada grupo, o
cotidiano é heterogêneo, as possibilidades de comportamentos diários são
diferentes dependendo de questões como nacionalidade, raça, gênero, local de
moradia, de trabalho, entre outras.
Segundo, não é possível compreender a experiência cotidiana dos indivíduos
sem relacioná-la com as práticas discursivas e interesses das classes dominantes.
Para isso, o cotidiano é historicizado, ou seja, inserido em contextos históricos
específicos. Ao longo de toda a análise do material empírico os autores buscam
estabelecer uma relação entre aquilo que é cotidiano (as brigas, a linguagem, a
fiscalização exercida pelos aparelhos policiais e outras instituições públicas e
privadas, o trabalho, a habitação, a alimentação) e o que não é (ideologias, bases
materiais, dispositivos legais, sistemas de produção), mostrando como o não
cotidiano interfere no cotidiano, ao mesmo tempo em que é modificado por ele. Para
estabelecer essa relação, Chalhoub, Dias e Decca analisam de forma articulada os
padrões de comportamento de seus personagens com uma série de outras questões
macro-sociais: dados demográficos referentes à população total das cidades, aos
postos de trabalho, ao número de trabalhadores imigrantes e nacionais, às
características da população feminina; as teses, pesquisas e discursos científicos e
sanitários de cada época; características e localização das moradias, entre outros
aspectos relevantes para a compreensão da estrutura social analisada.
Por fim, a vida cotidiana é nas realidades estudadas um espaço de
dominação e de resistência. Os padrões de conduta dos sujeitos são modelados e
geridos com o objetivo de construir um tipo de pessoa que atue alheio às relações
sociais que produzem suas ações diárias, cumprindo os papéis que lhe são
impostos. No entanto, como em toda sociedade, há nas diferentes estruturas sociais
margens de movimento que permitem que o indivíduo possa exercer sua liberdade.
Estas margens são maiores ou menores dependendo da esfera da vida social e do
grupo do qual o indivíduo faz parte. Os mesmos mecanismos de dominação que
modelam os comportamentos cotidianos são sutilmente modificados pelos
trabalhadores e trabalhadoras ao se constituírem em práticas diárias. As diferentes
leituras realizadas pelos seres humanos dos projetos normativos impostos pelas
classes dominantes mostram certas brechas existentes no aparato de controle
24

político-burocrático de cada época, brechas que permitiam aos populares criarem


formas de resistência no cotidiano.
A importância manifestada pelos três autores sobre a necessidade e
possibilidade de se investigar as ações efetivas de seus personagens históricos é
sem dúvida influência da história social inglesa analisada anteriormente,
especialmente Edward Thompson. A obra A formação da classe operária, publicada
originalmente em 1956, está na bibliografia dos três livros. Quando os autores põem
em evidência a preocupação com a experiência concreta dos indivíduos, são
devedores da noção de experiência desenvolvida pelos historiadores marxistas
britânicos como um instrumento de mediação entre o conjunto de relações sociais
que chamamos de estrutura e as ações dos sujeitos sociais. Além disso, os autores
destacam a importância do estudo de grupos sociais identificados com as classes
populares, os marginalizados, seguindo uma tendência do conhecimento histórico
que teve como expressão máxima, como dissemos anteriormente, os estudos
desenvolvidos pela historiografia marxista britânica.
Para a presente pesquisa, que tem como objetivo principal pensar o cotidiano
como uma perspectiva importante para a história ensinada, os trabalhos revisados
indicam caminhos significativos. Contribuem, por exemplo, para a compreensão da
vida diária em diferentes realidades, para a sua identificação em determinados
materiais empíricos e para a necessidade de compreender a realidade escolhida a
partir do recorte de temas específicos. Além disso, demonstram a relevância da vida
cotidiana como uma perspectiva para examinar uma sociedade para além dos
papéis atribuídos a homens e mulheres. Nos autores analisados, o estudo das
relações, situações e comportamentos desenvolvidos no dia-a-dia permite entender
de maneira adequada como as pessoas construíam e experimentavam estes papéis
em sua cotidianidade, tornado-se sujeitos da própria dominação ou resistindo em
maior e menor grau a ela.
25

1.3 Como o cotidiano foi desenvolvido teoricamente na História, Filosofia e


Ciências Sociais?

Apesar da qualidade e valor dos trabalhos revisados, deve-se destacar que


não há em nenhuma das obras a apropriação das contribuições de autores que se
dedicaram especificamente ao desenvolvimento teórico sobre o cotidiano. Um
esforço mais profundo de teorização da cotidianidade tem sido feito há pelo menos
cinquenta anos. Desde a década de 1960 que tal dimensão é objeto de reflexão.
Pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, partindo de preocupações e
perspectivas teóricas distintas, contribuíram para pensar a complexidade das
práticas e situações que compõem essa esfera da vida humana. Entre os mais
importantes, estão os pesquisadores ligados ao campo teórico marxista George
Lukács, Henri Lefevbre, Agnes Heller e Karel Kosik; Michel Maffesoli e Alfred Schutz,
no âmbito da sociologia compreensiva e, mais recentemente, o historiador Michel de
Certeau, ligado ao já mencionado movimento conhecido como Nova História.
As reflexões desenvolvidas por estes autores são parte de um debate de
grande complexidade, marcado muito mais por divergências do que por
aproximações. Em comum, todos eles identificam um suposto caráter universal da
cotidianidade. Para os pesquisadores, em toda época histórica que possamos
analisar, o cotidiano estaria presente na vida de todos os indivíduos. Tal hipótese,
que tem origem na obra de Lukács e que seguiu no pensamento marxista em Heller,
Kosik e Lefevbre, é de grande importância para a historiografia, pois uma dimensão
assim tão ampla da vida humana certamente pode revelar aspectos significativos
das diferentes sociedades do passado. Porém, como todas as outras esferas de
nossa existência, a compreensão da sociedade a partir de sua dimensão cotidiana
possui limites.
Um deles está no caráter heterogêneo da cotidianidade. De acordo com
Heller21, a vida cotidiana é uma estrutura composta por diferentes atividades. Estas
coexistem e sucedem-se, em movimento articulado, simultâneo pelos seres
humanos, que participam nela com todos os aspectos de sua individualidade:
sentidos, capacidades intelectuais, habilidades, sentimentos, ideologias. Nem
sempre é possível ou mesmo desejável aos historiadores acessar a totalidade dos

21
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
26

elementos que compõe a vida cotidiana. Muitos deles são pouco visíveis nos
documentos e outros de menor relevância para a explicação da realidade analisada.
Ao optar por essa perspectiva de análise, os pesquisadores têm proposto diferentes
significações do cotidiano estudado. Estas são realizadas de acordo com os recortes
de pesquisa estabelecidos e com as informações presentes nos documentos. Essa
heterogeneidade também se manifesta na existência de diferentes cotidianos dentro
de um mesmo espaço-tempo, criados, vividos e reproduzidos de formas distintas
pelos indivíduos de acordo com o grupo social ao qual pertencem. Em função dos
seres humanos experimentarem a vida cotidiana de formas variadas, não é possível
compreender inteiramente a estrutura conjunta da sociedade analisada a partir desta
instância da vida social de um determinado grupo ou pessoa. Tal constatação,
porém, não invalida a potencialidade de se investigar a realidade a partir do
cotidiano. Afinal, nas práticas diárias de cada indivíduo estão interiorizadas certas
relações estruturais (sistemas de produção, dogmas religiosos, discursos científicos,
ideologias, bases materiais, etc). Assim, o cotidiano nos diz muito sobre a estrutura
de uma sociedade, mesmo que não se possa compreendê-la totalmente por meio
dele, o que, diga-se de passagem, não é possível a partir de nenhuma outra
dimensão da vida social.
Os autores marxistas citados anteriormente dirigem seus estudos sobre o
cotidiano partindo de uma mesma preocupação: o fenômeno da alienação. Em
Heller22, por exemplo, todo ser humano já nasce inserido em uma cotidianidade, a
qual vai aprendendo a partir do convívio com os diferentes grupos (família, escola,
pequenas comunidades) que fazem a mediação entre o indivíduo e os costumes e
normas. Atinge o amadurecimento quando adquire todas as habilidades
imprescindíveis para a vida cotidiana do grupo social ao qual pertence na sociedade
em questão. Portanto, as condições prévias de sua existência estão colocadas
desde o início de sua vida. Nessa apropriação dos elementos da cotidianidade de
seu grupo e sociedade, os indivíduos vão se fragmentado em papéis sociais,
construídos, reforçados e mantidos por aparatos de controle e disciplinarização
pouco visíveis. Quanto mais identificado com seu papel ou papéis sociais, mais
precisamente se revela a alienação. Tanto em Heller quanto em Kosik23, tais papéis
vividos cotidianamente são construídos e controlados a partir de uma série de
22
Idem.
23
KOSIK, Karel. La cotidianidad y la historia. In: Dialéctica de lo Concreto. México, Grijalbo, 1963.
27

mecanismos que provocam uma atuação alheia e inconsciente dos indivíduos em


relação a tais mecanismos e às diferentes relações de dominação e reprodução que
modelam suas possibilidades de atuação diárias. Nestes autores, o cotidiano é a
esfera onde a alienação se gera, é o momento fundante deste fenômeno. A
cotidianidade se manifesta como anonimato e como imposição de um poder
impessoal que dita a cada indivíduo seu comportamento, seu modo de pensar, seus
gostos.
Em ambos, no entanto, também é possível suspender a vida cotidiana.
Conforme Heller, “embora constitua indubitavelmente um terreno propício à
alienação, não é de nenhum modo necessariamente alienada” 24. A partir do
momento em que o indivíduo toma consciência da relação entre o particular e o
genérico, e dos diferentes atores, mecanismos e relações que modelam as
estruturas de seu cotidiano, estabelece-se uma ruptura com a vida cotidiana. Esta
ruptura dá-se com o desenvolvimento e escolha autônoma e consciente de um
projeto, obra ou ideal. Porém, a suspensão do cotidiano não é uma fuga, mas um
circuito, porque sempre se retorna a ele, mas de forma modificada, abrindo
possibilidades de transformação do cotidiano singular e coletivo. Assim, a resistência
aos papéis sociais impostos e à alienação que caracteriza a vida cotidiana da
maioria das pessoas só é possível, nestes autores, com a concentração dos
esforços em torno de uma única questão, que provoque uma transformação total do
indivíduo, manifestada em atos de consciência em que o homem ou mulher,
deliberadamente, recuse seu papel social, construindo novas formas de
sociabilidade. Portanto, as possibilidades de resistência às circunstâncias em que o
indivíduo está inserido, uma atuação mais autônoma e livre das pessoas só são
possíveis com atos praticamente revolucionários, que provoquem alterações
profundas no cotidiano destes indivíduos que conseguem recusar seus papéis
sociais.
A noção de resistência dos “teóricos do cotidiano” marxistas, sobretudo Kosik
e Heller, é de menor importância em suas obras. Como dito anteriormente, é a
produção do fenômeno da alienação que os interessa e que motivou as pesquisas
sobre o cotidiano. Por outro lado, outros autores que se dedicaram ao
desenvolvimento analítico da vida cotidiana concentraram seus esforços nas

24
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história... Op. Cit., p. 57.
28

diferentes formas de resistência criadas pelos seres humanos em suas práticas


diárias. Destes, a contribuição mais significativa é a do historiador Michel de
Certeau. Na obra A invenção do cotidiano25, o autor analisa como dentro da própria
vida cotidiana é possível o desenvolvimento de formas de subversão às imposições
dominantes e diferentes meios de alienação. A apropriação pelas pessoas comuns
dos produtos impostos pelas elites culturais é feita, segundo ele, de forma “criativa”,
rejeitando o autor o mito do consumidor passivo. Assim, Certeau analisa as formas
de consumo, de interiorização e transformação feitas pelas classes populares dos
projetos hegemônicos da sociedade. Identifica também nas relações de dominação
que constituem o cotidiano certos momentos onde os indivíduos podem exercer sua
liberdade em maior ou menor grau. Os mecanismos de controle dos
comportamentos diários possuem sempre algumas fissuras, brechas em que os
seres humanos podem resistir e lutar contra certas imposições sociais. Neste
sentido, Certeau afirma que:

[...] a cultura comum lança caminhos plurais para fugir de seus amos,
sonhar com a felicidade, enfrentar a violência, provar as formas
sociais do saber, dar nova forma ao presente e realizar essas
viagens do espírito sem as quais não há exercício da liberdade.26

O cotidiano é, pois, para o autor, um espaço de resistência. Nele as pessoas


comuns desenvolvem procedimentos, chamados de táticas, que de forma
inconsciente e temporária jogam com os mecanismos de disciplinarização impostos
pela ordem dominante por meio de estratégias, alterando-os de acordo com suas
necessidades.
As discussões e reflexões teóricas sobre o cotidiano desenvolvidas pelos
autores acima, como dito anteriormente, fazem parte de um debate muito mais
amplo, que envolve outros pesquisadores importantes e outras áreas do
conhecimento. Apesar de já haver nos anos 1980, quando o cotidiano passou a ser
um objeto relevante na pesquisa histórica, um acúmulo de conhecimento científico
sobre o tema, os trabalhos dos historiadores que nessa época se dedicaram ao
estudo da vida cotidiana não possuem relação explícita com este conhecimento. O
resultado da não apropriação das contribuições de Heller, Kosik, Certeau, entre

25
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
26
Ibidem, p. 342.
29

outros, pode explicar a existência, segundo Petersen27, de pouquíssimas obras


historiográficas reconhecidamente importantes para o conhecimento histórico
produzidas nesta década, em meio a uma grande quantidade de trabalhos sobre o
cotidiano marcados pela falta de consistência teórica e alto grau de empirismo.
Alguns destes autores, sobretudo Heller e Certeau, só tiveram influência em
alguns dos trabalhos mais recentes da historiografia brasileira, como os de
Scarano28, Schmidt29 e Machado30. Tais autores, partindo da perspectiva do
cotidiano, investigaram realidades bastante diversas, como a vida da população
negra no período colonial, a trajetória de um militante socialista na primeira metade
do século XX e a situação de trabalhadores rurais na ditadura civil-militar,
respectivamente. A variedade dos temas comprova a abrangência e utilidade desta
perspectiva da vida humana para a análise histórica. Em todos os estudos, é
possível identificar os efeitos das vertentes do conhecimento histórico desenvolvidas
nas últimas décadas do século XX. Os trabalhos somam-se às pesquisas analisadas
anteriormente na defesa do cotidiano como um meio de se compreender as
condições de vida dos oprimidos, analisando os mecanismos de imposição de certos
papéis sociais, mas também olhando práticas fora dos parâmetros das ideologias
dominantes, hábitos e atitudes diárias que se encontram à margem dos processos
de dominação, muitas vezes movimentos espontâneos que se colocam contra o
sistema de controle social, motivados por necessidades de sobrevivência.
Apesar da variedade de trabalhos sobre o cotidiano na historiografia
brasileira, nenhum deles se propôs a aprofundar teoricamente esta noção.
Tampouco os teóricos do cotidiano produziram uma definição bem acabada de tal
dimensão. Como visto, há inclusive pontos importantes de divergência entre estes
autores. No entanto, tal indefinição teórica não invalida o cotidiano como perspectiva
por meio da qual se pode analisar as diferentes sociedades do passado. Os
historiadores têm buscado em autores variados definições teóricas que permitam
caracterizar e compreender a vida cotidiana, e o têm feito com sucesso. Portanto, ao

27
PETERSEN, Sílvia Regina Ferraz. Dilemas e desafios da historiografia brasileira... Op. Cit., n.p.
28
SCARANO, Julita. Cotidiano e solidariedade: vida diária da gente de cor nas Minas Gerais do século XVIII. São
Paulo, Editora Brasiliense, 1994.
29
SCHMIDT, Benito Bisso. Uma reflexão sobre o gênero biográfico: a trajetória do militante socialista Antônio
Guedes Coutinho na perspectiva de sua vida cotidiana (1868-1945). Porto Alegre: UFRGS, 1996 (Dissertação de
Mestrado).
30
MACHADO, Maria Clara Tomaz. A urdidura do cotidiano no mundo rural mineiro: relações de trabalho e
práticas culturais em transformação (1970-1985). Varia história, Belo Horizonte, nº 22, p. 158-169, 2000.
30

pensarmos no cotidiano como uma perspectiva importante também para o ensino de


História, é preciso se apropriar das reflexões daqueles pesquisadores que possam
contribuir para o estudo da História a partir desta dimensão da vida humana. É neste
sentido que propomos na presente pesquisa a utilização de algumas definições
teóricas que contribuem para a caracterização do cotidiano para além de sua
apropriação de senso comum. Não são as únicas nem definitivas, apenas algumas
possíveis, a partir das reflexões dos autores analisados anteriormente. Destes, três
propõem conceitos e atributos que ajudam a compreender de forma adequada a
vida cotidiana, avançando em alguns pontos de maneira mais complexa que outros
autores: Agnes Heller31, Karel Kosik32 e Michel de Certeau33.
A partir das considerações destes pesquisadores, bastante diferentes entre si,
sobretudo o último em relação aos dois primeiros, podemos definir a vida cotidiana
como as situações e os atos repetitivos que se sucedem de forma imediata e
superficial no dia a dia, garantindo a sobrevivência e reprodução social dos
indivíduos. Imediata porque há uma relação direta entre pensamento e ação. Esta
relação se produz de forma automática, espontânea. Superficial porque os
indivíduos, em geral, não compreendem as relações que produzem os fenômenos
cotidianos. Vivem o cotidiano de forma natural, sem questionar seu sentido. No
entanto, para ir além desta definição básica, compreendendo tal dimensão em toda
a sua complexidade, é preciso levar em consideração outras de suas características.
A suposta universalidade da vida cotidiana, ponto comum nos três autores,
indica que esta perspectiva pode ser utilizada para a leitura de realidades em
diferentes espaços-tempos. Porém, como salienta Kosik, a vida cotidiana também é
histórica, o que significa que se transforma de acordo com a época e lugar. Assim,
para compreendê-la, é preciso situá-la em um determinado contexto. Em Kosik e
Heller, o cotidiano encontra também sua característica fundamental: a dialética. Na
vida diária, não há uma fronteira rígida entre o que é estrutura e o que é ação
humana. As circunstâncias são também resultado das ações e aspirações dos
indivíduos e ambas interagem e se modificam em uma ligação recíproca. As
relações estabelecidas entre os diferentes elementos de um determinado sistema
social se produzem, reproduzem e modificam nas e a partir das ações cotidianas

31
HELLER, Agnes. O cotidiano e a história... Op. Cit.
32
KOSIK, Karel. La cotidianidad y la historia... Op. Cit.
33
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano... Op. Cit.
31

dos sujeitos. O cotidiano é o conjunto de relações sociais produzidas e


experimentadas a partir do encontro entre o particular e o global, entre o singular e o
coletivo, entre os sujeitos e as estruturas. Segundo Kosik, o ser humano “nunca
nasce em condições que lhe são próprias” 34,está sempre inserido em um mundo
modelado a partir de uma série de condições herdadas, mas estas só se constituem
de fato no próprio viver, na prática, “no curso do qual a realidade é dominada e
modificada, reproduzida e transformada” 35.
Além do caráter heterogêneo da vida cotidiana, presente muito fortemente no
pensamento de Agnes Heller e já explorado anteriormente, a autora também
contribui para pensar a hierarquização existente entre as práticas cotidianas.
Segundo Heller, existe uma hierarquia entre as diferentes relações sociais que
constituem o cotidiano. Esta hierarquia é espontânea e não é rígida, depende de
vários fatores e altera-se de acordo com a época, lugar, fase da vida e posição que
o individuo ocupa em cada modelo societário existente. Portanto, identificar que
elementos ocupam espaços mais ou menos importantes nesta hierarquia da
estrutura da vida diária e por que são mais relevantes pode fornecer algumas
respostas para a compreensão de aspectos da sociedade analisada.
Por fim, as reflexões de Heller e Kosik permitem identificar as relações de
dominação e a imposição de papéis sociais que formam as diferentes formas de
alienação no dia-a-dia dos indivíduos. Em caminho oposto, a partir principalmente de
sua definição de “tática”, Michel de Certeau estabelece possibilidades de leitura dos
mecanismos de resistência que se produzem internamente e inconscientemente no
cotidiano dos indivíduos. Embora parta de uma abordagem oposta à dos autores
marxistas, a noção de resistência desenvolvida por Certeau pode ser articulada à de
alienação de Heller e Kosik. Ambas contribuem para pensar a vida cotidiana como
espaço hierarquizado e desigual, de luta e tensão, mesmo que a partir de
perspectivas diferentes.
A partir destas reflexões sobre a vida cotidiana, fundamentadas
principalmente nos estudos realizados no campo marxista, mas também com a
contribuição importante da Nova História, é possível compreender que se trata de
uma perspectiva extremamente complexa, que possui um grande valor para a
compreensão e explicação de diferentes realidades. Embora existam abordagens
34
KOSIK, Karel. La cotidianidad y la historia... Op. Cit., p. 99.
35
Ibidem, p. 100.
32

diferentes, todas compreendem o cotidiano como um espaço significativo da


experiência humana, conferindo uma dimensão política às práticas diárias, na
medida em que estão inseridas em uma espécie de jogo de força entre dominantes
e dominados. Além disso, pensam tal perspectiva como privilegiada para
compreender a relação entre estrutura e ação e o papel dos sujeitos sociais. A
noção de cotidiano que é proposta aqui para a abordagem de diferentes conteúdos
pelo professor em sala de aula é composta dessas características básicas
desenvolvidas pelos autores analisados: um cotidiano histórico, heterogêneo,
dialético, hierarquizado, espaço de dominação e de resistência.

1.4 Como o cotidiano tem sido pensado no ensino de História?

No ensino da disciplina o que impera ainda, sobretudo quando se aborda os


períodos mais recentes da História, são as transformações, momentos específicos
de mudança ou acontecimentos que fogem à normalidade: guerras, revoltas,
revoluções, disputas políticas, sistemas de pensamento, a aprovação de certas leis,
as lutas e movimentos por modificações em determinados aspectos da sociedade.
Em geral, pouca atenção se dá a como estas transformações afetam o dia a dia das
pessoas, ou como se produzem nele. E muitas vezes se tomam os discursos sobre
as transformações como evidências delas, justamente quando alguns estudos a
respeito das experiências cotidianas têm demonstrado que nem sempre tais
transformações se fazem sentir imediatamente no dia a dia das pessoas comuns,
tampouco alteram completamente a vida diária dos indivíduos, tendo um ritmo
diferenciado de afirmação, mais lento e com a permanência de elementos do
passado, mesmo em períodos de mudanças radicais nas sociedades.
Os personagens privilegiados no ensino de História ainda são, sobretudo,
entidades como povos, nações, países e instituições. As experiências e ações mais
concretas dos seres humanos são relegadas a um número limitado de conteúdos.
Além disso, enquanto o historiador realiza recortes em seus objetos de estudo, por
vezes recorrendo às reduções de escala características da micro-história, o
professor tenta muitas vezes dar conta de “todos” os aspectos de uma determinada
realidade, como se isso fosse possível. É preciso, parece-nos, no ensino também
estabelecer certos recortes, temas mais específicos que serão trabalhados de forma
33

mais aprofundada, e que revelem aspectos gerais da sociedade em questão. Não


está se propondo uma fragmentação da história ensinada, afinal deve-se sempre ter
em vista a compreensão de fenômenos mais amplos. Mas muitas vezes situações
singulares são meios possíveis – e talvez mais reveladores da complexidade da vida
social – de se alcançar tais fenômenos.
Assim como na pesquisa histórica, incorporar ao trabalho do professor a
perspectiva do cotidiano significa um enriquecimento analítico importante,
relativizando o peso do reducionismo estrutural e institucional, e permitindo
reconstituir de forma mais completa o espaço e o tempo das práticas sociais. É
neste sentido que alguns pesquisadores da área de ensino de História pensaram a
relevância de se explorar a vida cotidiana na sala de aula.36
Em artigo de 2005, Kátia Abud37 propõe o ensino de história a partir da
perspectiva da vida cotidiana, utilizando como recurso didático a música Três apitos,
composta em 1933 por Noel Rosa. A partir da canção sugerida, a autora indica os
possíveis temas que podem ser abordados em sala de aula: trabalho, moda,
mentalidade, todos eles analisados a partir da vida cotidiana. Mas que vida cotidiana
é essa?
O tema da música é identificado pela autora como uma declaração de amor
de um homem a uma mulher que trabalha em uma fábrica de tecidos. Tal
mensagem é constatada a partir de conhecimentos prévios da historiadora sobre a
época em que a obra foi composta. Esse é, portanto, o primeiro movimento da ação
pedagógica: situar a música em seu contexto histórico mais amplo – o processo de
industrialização no Brasil – abordando aspectos específicos que são importantes
para a compreensão da música, tais como a proeminência de fábricas de tecidos no
início da industrialização brasileira e a grande presença feminina nestas unidades de
produção.
Em seguida, a autora significa o cotidiano presente na canção: o apito da
fábrica e o uso de meias e de automóveis. Trabalhar, vestir-se e dirigir, todas essas
são ações diárias que, na proposta didática, ajudam a explicar aspectos da estrutura

36
As pesquisas foram selecionadas a partir de consultas ao repositório digital da Scielo
(http://www.scielo.org/) e ao portal de periódicos e banco de teses e dissertações da Capes
(www.periodicos.capes.gov.br e www.bancodeteses.capes.gov.br). Acesso em 25/05/2016.
37
ABUD, Katia. Registro e representação do cotidiano: a música popular na aula de história. Caderno Cedes.
Campinas, 2005, vol. 25, n. 67, p. 309-317, set./dez.
34

social. O apito é um mecanismo de disciplinarização do tempo do trabalhador, o não


uso de meias pela personagem da música é a afirmação de uma nova mentalidade
sobre o comportamento feminino, e a utilização do automóvel pelo jovem, mais que
um meio de transporte, constitui-se em uma forma de entretenimento que interioriza,
na vida cotidiana, os novos valores de uma jovem burguesia.
As reflexões de Katia Abud contribuem menos para pensar questões teóricas
relacionadas ao cotidiano, já que estas não são discutidas no artigo, e mais para
identificar a vida cotidiana no material utilizado como recurso didático. Primeiro, é
preciso situá-lo em um contexto histórico específico; segundo, reconhecer os grupos
sociais estudados (as mulheres operárias, os jovens burgueses); terceiro, associar
as práticas cotidianas (trabalhar, vestir-se, dirigir) com aspectos não cotidianos
(forças produtivas, ética do trabalho, mentalidade popular, ideologia). Assim, explica-
se a cotidianidade e ao mesmo tempo parte-se dela para ensinar certos fenômenos
mais amplos da sociedade.
Em outro trabalho da área de ensino, Elisa Vermelho38 analisa como o
cotidiano é abordado em livros didáticos de história das séries finais do Ensino
Fundamental. A preocupação da autora é compreender se os materiais incorporam
os novos objetos e abordagens da historiografia, especialmente as contribuições do
movimento conhecido como Nova História. Segundo Vermelho, a vida cotidiana é
um dos objetos de pesquisa que apresenta potencialidades significativas para o
ensino de história, pois aproximaria os alunos do passado estudado, fazendo-os
compreender melhor a dinâmica da vida social dos indivíduos e como os
personagens anônimos experimentavam e interpretavam os acontecimentos de sua
época.
Antes de abordar suas fontes, a autora realiza uma ampla discussão sobre os
principais pesquisadores que contribuíram para o desenvolvimento teórico a respeito
da vida cotidiana. A partir desta discussão, é analisada de que maneira a História do
Cotidiano é apresentada em duas coleções didáticas: o Projeto Araribá – História
(obra coletiva), editado em 2006; e uma série de 1980 (História do Brasil e História
Geral) da autora Elian Alabi Lucci.

38
VERMELHO MORALES, Elisa. História do cotidiano e ensino de história: concepções teóricas presentes em
livros didáticos para o ensino fundamental II (1980-2000). Dissertação (Mestrado em História Social) -
Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2012.
35

Na primeira coleção, foram selecionados, a partir do sumário das obras,


capítulos e subcapítulos com as seguintes expressões: cotidiano, vida cotidiana,
como era a vida... e como viviam... Segundo a autora, tais passagens do material
didático estão sempre segregadas dos aspectos principais que, na obra, mostram-se
fundamentais para compreender a sociedade ou os processos sociais que são
objetos de aprendizagem. A vida cotidiana aparece de forma complementar,
geralmente relacionada a questões culturais. Quanto à abordagem do cotidiano,
Elisa Vermelho indica que:

[...] o livro didático analisado limita-se a descrever situações. A


criança não é exposta a uma tentativa de análise, obviamente
adequada às limitações de sua faixa etária, de como essas
características do cotidiano podem auxiliá-lo a compreender mais a
realidade histórica do povo estudado. As informações estão, muitas
vezes, ainda no nível anedótico, do pitoresco [...]39.

Assim, embora o livro incorpore a vida cotidiana como tema de estudo, sua
abordagem é meramente descritiva, sem ultrapassar aquilo que é aparente.
Nenhuma das contribuições teóricas produzidas na historiografia e em outras áreas
do conhecimento ao longo das últimas décadas é mobilizada para a apresentação
de uma História do Cotidiano. A vida diária aparece fundamentada apenas em um
conhecimento comum, não como um espaço político, marcado por tensões. Tal
dimensão da vida não se explica a partir de aspectos macro-sociais e nem serve
para explicá-los.
Em relação à segunda obra analisada, produzida em 1980, o cotidiano não é
apresentado nem de forma descritiva ou anedótica. A preocupação da autora do
material didático é exclusivamente com os aspectos mais gerais e estruturais da
sociedade, especialmente os relacionados a questões políticas, militares e
econômicas.
Para Elisa Vermelho, contribui para a ausência das contribuições teóricas
sobre a vida cotidiana nos materiais didáticos as indefinições ainda existentes no
conhecimento científico sobre tal dimensão, além de uma possível resistência e
desconhecimento por parte dos educadores. De acordo com a autora, uma boa
forma de atribuir potencial analítico a esta perspectiva seria apresentando os textos

39
Ibidem, p. 110.
36

e documentos que falam das experiências cotidianas dos indivíduos junto aos textos
básicos do conteúdo, que tratam das características e transformações estruturais da
sociedade. Dessa forma, poderiam ser desenvolvidas atividades que orientassem o
estudante a compreender de que forma os padrões de comportamento dos seres
humanos interferem na sociedade de maneira mais ampla, e de como certas
práticas cotidianas são desenvolvidas para solucionar questões de sobrevivência
dos atores sociais.
O trabalho de Vermelho, embora analise um material empírico pouco
significativo em termos de quantidade, indica uma ausência do cotidiano como
objeto teórico importante nas reflexões daqueles que produzem livros didáticos.
Nossa proposta se aproxima de suas considerações sobre a vida cotidiana, na
medida em que a autora a pensa como um instrumento valioso para a explicação de
realidades passadas. Além disso, sua ampla revisão de autores que desenvolveram
teoricamente a cotidianidade corrobora a avaliação da presente pesquisa que
considera já existir um acúmulo de conhecimento científico suficiente para que esta
perspectiva possa ser mais bem pensada no ensino de história.
Além das pesquisas acima, os únicos trabalhos encontrados que tratam do
ensino de história do cotidiano são duas obras mais gerais sobre ensino de
História40. Nelas, a História do Cotidiano é apresentada como uma das tantas
possibilidades de ensino pelo professor, ressaltando-se algumas de suas vantagens,
como a compreensão das experiências vividas pelos agentes sociais e a capacidade
de uma reflexão do próprio aluno sobre suas práticas diárias, enxergando-se ele
também como sujeito histórico. No entanto, o caráter mais geral das referidas obras
faz com que não haja uma discussão teórica mais profunda sobre o cotidiano, nem
alguma proposta de ensino específica a partir de tal dimensão da vida em
sociedade.
Os trabalhos aqui revisados brevemente indicam que, apesar de o cotidiano
ainda carecer de uma abordagem teórica bem definida, seu uso como perspectiva já
está consolidado na historiografia, com trabalhos importantes que recuperam a ação
dos agentes sociais a partir de suas vidas diárias. Porém, quando analisamos o
ensino de História, as lacunas são bem maiores em relação ao uso do cotidiano por

40
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de Historia: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.
e FERREIRA, Marieta de Moraes. Aprendendo História: reflexão e ensino. São Paulo: Editora do Brasil, 2009.
37

professores e pesquisadores da área. Há ainda um espaço amplo de pesquisa que


merece ser explorado, com o objetivo de aproveitar todas suas potencialidades para
a construção de conhecimentos nas aulas de História.
38

Capítulo 2 – HISTORIOGRAFIA, ENSINO DE HISTÓRIA E LITERATURA

2.1 Como usar a literatura no Ensino de História?

O ensino de História pela perspectiva do cotidiano pode ser feito de variadas


formas. Como ocorre com qualquer objeto de estudo, o professor tem a sua
disposição uma enorme quantidade de materiais possíveis de serem trabalhados
com os alunos. Entre eles estão os textos literários. A Literatura, ou “as literaturas”,
também são vestígios do passado, compõe parte da documentação por meio da
qual o historiador pode se valer para acessar a vida humana em outras épocas e
construir conhecimentos sobre ela. Assim, também podem se converter em fontes
históricas. Essa viabilidade, no entanto, é resultado de uma série de transformações
que tem se desenvolvido na historiografia desde o final do século XIX, e que
promoveram uma importante redefinição do conceito de fonte histórica.
Em um primeiro momento, quando a História foi postulada a um campo
científico do conhecimento pelos historiadores do século XIX, a noção de fonte
histórica esteve associada exclusivamente aos chamados documentos escritos
oficiais, que tratavam predominantemente de feitos e acontecimentos relacionados a
personalidades políticas e militares. O processo de crítica da fonte consistia apenas
em confirmar a autenticidade de um documento e sua veracidade. Partia-se do
princípio de que existia uma verdade incontestável e absoluta que poderia ser
reconstituída de forma objetiva a partir de determinados textos. Entre o final do
século XIX e as primeiras décadas do século XX, porém, a relação dos historiadores
com parte dos vestígios do passado transformou-se, e a noção de documento foi
ampliando-se consideravelmente. A constatação dos limites de se utilizar apenas
textos escritos oficiais para a pesquisa histórica e a possibilidade de os mesmos
materiais serem abordados de formas diferentes foram o ponto de partida para essa
mudança. O resultado foi o alargamento dos documentos possíveis de serem
utilizados e a compreensão de que são as perguntas do historiador que transformam
um documento em fonte. Assim, passou a ser considerada fonte histórica todo o
vestígio do passado que forneça informações sobre a vida humana quando
interrogado por um historiador.
39

Contribuiu para o enriquecimento das fontes históricas as mudanças na


historiografia do período, especialmente o papel da chamada “Escola” dos Annales,
que trouxe para a pesquisa novos objetos de estudo, exigindo também outras
abordagens e formas de acessar o passado. Essa ampliação do conteúdo das
fontes continuou ao longo do século XX, alcançando seu auge a partir da década de
1960, quando foi caracterizada como uma verdadeira revolução documental. Mas o
uso mais frequente e em maior quantidade de outros tipos de documentos pelos
historiadores não foi a única transformação importante relacionada às fontes
históricas. Alterou-se também a noção de verdade associada a elas, o que impôs
novos procedimentos de crítica, para além da mera verificação de sua autenticidade.
O documento foi transformado em monumento, um registro sobrevivente do
passado, uma construção intencional, resultado de escolhas efetuadas sob
determinadas tensões, que contribui para a construção de uma memória coletiva e
de uma imagem sobre o conjunto de ações às quais se refere. O novo estatuto dos
documentos, apresentado primeiramente por Foucault41, foi desenvolvido também
por Le Goff, que afirma:

O documento não é qualquer coisa que fica por conta do


passado, é um produto da sociedade que o fabricou segundo
as relações de forças que aí detinham o poder. Só a análise do
documento enquanto monumento permite à memória coletiva
recuperá-lo e ao historiador usá-lo cientificamente, isto é, com
pleno conhecimento de causa42.

Assim, ao abordar determinado documento com o objetivo de compreender o


passado, é preciso investigar suas condições de produção, em seus aspectos
conscientes e inconscientes, problematizando seu processo de “monumentalização”.
Ou seja, é tarefa do historiador questionar as diferentes tensões que contribuíram
para a representação de mundo existente nos documentos selecionados, bem como
as razões para a sua sobrevivência ao longo do tempo e o próprio critério do
pesquisador ao escolhê-los, em detrimento de outros materiais empíricos.
As considerações acima, centradas nos cuidados necessários com as fontes
históricas na pesquisa acadêmica, servem como referência também para o trabalho

41
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
42
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, UNICAMP, 1990, p. 545.
40

do professor de História na educação básica. O uso de fontes em sala de aula tem


sido explorado por pesquisadores da área de ensino como forma de permitir aos
educandos a produção de conhecimentos de maneira mais autônoma,
compreendendo a história como um discurso cientificamente construído e
desenvolvendo habilidades como a seleção e crítica de diferentes documentos que
produzem representações sobre o passado43.
Todo documento, no entanto, tem as suas especificidades. Ao pensar no uso
da Literatura para ensinar história, é preciso levar em consideração uma série de
pontos em comum que esta possui com a narrativa histórica: ambas são formas de
construir narrativamente os tempos, os espaços, os eventos, os sujeitos, os
personagens; só existem como produto de tramas, de enredos, da imaginação
humana. Assim, segundo alguns pesquisadores44, não poderia ser tratada apenas
como mais uma fonte inocente, que não sabe o que diz, que só revela suas
informações ao ter suas entrelinhas minuciosamente decifradas pelo trabalho do
historiador.
Para desvelar a melhor forma de trabalhar o texto literário é preciso, portanto,
conhecer parte das reflexões que se estabeleceram sobre a relação entre Literatura
e História. Os limites entre os dois campos estiveram durante muito tempo no centro
dos debates sobre a natureza do conhecimento histórico. Depois de séculos
consideradas duas formas de um mesmo gênero, a fronteira entre ambas tornou-se
extremamente rígida no século XIX, quando se iniciou um esforço para colocar a
História entre os domínios do conhecimento científico. Até então, não havia uma
distinção radical entre as ciências e as letras, foi a noção de verdade que criou uma
barreira separando-as. As fronteiras entre Literatura e História voltaram a se
flexibilizar somente no final do século XX, quando as duas práticas de representação
e escrita passaram a ser pensadas a partir de aspectos em comum, levando-se em
conta dois processos distintos e fundamentais: a aproximação entre uma e outra
como formas de narrativa e o uso mais frequente da Literatura como fonte.

43
Sobre a utilização de fontes históricas na sala de aula, ver: PEREIRA, Nilton Mullet; SEFFNER, Fernando. O que
pode o ensino de História? Sobre o uso de fontes na sala de aula. Anos 90-Revista do Programa de Pós-
Graduação em história, v. 15, nº 28, dezembro de 2008 e CAIMI, Flávia Eloisa. Fontes históricas na sala de aula:
uma possibilidade de produção de conhecimento histórico escolar? Anos 90-Revista do Programa de Pós-
Graduação em história, v. 15, nº 28, dezembro de 2008.
44
Entre os historiadores que pensaram as relações entre Literatura e História para além do seu uso
“documental” está ALBUQUERQUE JR, Durval. História: a arte de inventar o passado. Ensaios de teoria da
história. Bauru, SP: Edusc, 2007.
41

Em relação ao primeiro ponto, foram principalmente o “retorno” da chamada


história-narrativa45 e as reflexões de Hayden White46 que contribuíram para a
reaproximação entre História e Literatura. Estes dois movimentos trouxeram para o
ofício do historiador a necessidade de repensar a ligação entre forma e conteúdo no
desenvolvimento de seus trabalhos. Desde o século XIX, quando se efetuou a
separação entre historiadores e literatos, a preocupação dos primeiros com o estilo
de sua escrita assumiu uma importância menor. Esta divisão, uma construção que
pretendia aproximar o conhecimento histórico da racionalidade e objetividade que
caracterizava os padrões de ciência da época, fixou os dois campos disciplinares
como opostos. Assim, tudo que estivesse relacionado à ficção passou a fazer parte
dos domínios da Literatura. A História deveria se preocupar apenas em encontrar a
realidade das coisas nos documentos escritos. A subjetividade, invenção e
imaginação foram expurgadas do trabalho do historiador, pois seu texto era
considerado apenas um meio de transmissão da realidade.
Ainda no século XIX e principalmente ao longo do XX as concepções de
Ciência e de História alteraram-se profundamente. Além das mudanças já
mencionadas sobre o estatuto dos documentos históricos, o passado deixou de ser
visto como uma realidade objetiva externa ao indivíduo que o investiga, e o texto do
historiador passou a ser compreendido também como uma construção cujos
aspectos retóricos são decisivos para o conteúdo de seu discurso. Veja-se o que
Schmidt (2014) afirma sobre esse processo:

Ou seja, o historiador não pode mais ser indiferente às figuras de


linguagem que aciona, aos recursos estilísticos que utiliza, aos
tempos verbais que entrecruza, pois são eles que dão sentido à
narrativa, e não algo que é exterior a ela47.

As novas formas de se narrar o passado empreendidas pelos historiadores


tiveram importante contribuição da Literatura e foram responsáveis pela nova
relação desta com o conhecimento histórico. Os modelos de linguagem utilizados

45
Uma síntese das discussões estabelecidas nas últimas décadas sobre a narrativa histórica pode ser
encontrada em VASCONCELOS, José Antônio. A História e a sedução da narrativa. Revista Uniandrade
(Impresso), v. 11, p. 19-29, 2010.
46
WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. Trad. José L. de Melo. São Paulo: Edusp,
1995.
47
SCHMIDT, Benito Bisso. Biografia: um gênero de fronteira entre a História e a Literatura. In: Margareth Rago;
Renato Aloizio de Oliveira Gimenes. (Org.). Narrar o passado, repensar a História. 1 ed. Campinas, 2000, v. , p.
193-202, p. 196.
42

pela criação artística e outros aspectos durante muito tempo negligenciados pela
pesquisa histórica como a capacidade imaginativa do sujeito que escreve voltaram a
fazer parte da historiografia. Tal aproximação, no entanto, não pretendeu nem
poderia diluir completamente as diferenças entre Literatura e História. O historiador
trabalha seguindo determinadas concepções teóricas e metodológicas que
distinguem sua narrativa sobre o passado da narrativa literária. Seguindo algumas
reflexões de Certeau48, o compromisso do profissional de História com o verdadeiro
se efetua a partir do cumprimento de um conjunto de técnicas - como a seleção,
crítica e descrição das fontes – que legitimam e dão credibilidade ao seu discurso
sobre o passado. Ainda assim, embora seguindo um processo diferente de
construção, com menos liberdade criativa, o historiador pode e deve servir-se dos
conhecimentos da Literatura para sua construção textual. Esta tem muito a
enriquecer e complexificar o argumento de seu discurso, permitindo pensar de
outras formas, por exemplo, o conjunto variado de possibilidades que compõem a
vida de seus personagens históricos, bem como as diferentes temporalidades que
se entrecruzam nas trajetórias dos indivíduos.
Outro processo que aproximou as duas disciplinas, porém de forma diferente,
foi a maior utilização de textos literários como fontes históricas. Neste caso, o
historiador serve-se da Literatura como o material empírico que o permitirá acessar
as diferentes experiências vividas pelos seres humanos ao longo do tempo.
Segundo Antônio Celso Ferreira, a retomada da Literatura como fonte está
relacionada à percepção dos historiadores de “sua riqueza de significados para o
entendimento do universo cultural, dos valores sociais e das experiências subjetivas
de homens e mulheres no tempo” 49.
Tomando-a, portanto, como fonte histórica, ao analisar um texto literário o
historiador precisa, como faz com qualquer outro documento, adotar uma série de
procedimentos que permitam situá-lo em seu contexto e compreender seu processo
de construção. O primeiro passo para isso é pensar o tipo de Literatura que será
trabalhada. Não há uma definição universal de Literatura, ela assume formas e
objetivos diversos que estão relacionados aos interesses e condições históricas de

48
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982, p. 101.
49
FERREIRA, Antônio Celso. “Literatura: a fonte fecunda”. In: PINSKY, C.; LUCA, T. (Orgs). O historiador e suas
fontes. São Paulo: Contexto, 2012, p. 61.
43

cada grupo em diferentes épocas e lugares. As questões mais formais, como o


gênero literário, são importantes. Romances, “históricos” ou não, poesias, contos,
crônicas, entre outros, possuem diferenças estéticas que também estão
relacionadas ao seu conteúdo.
Assim, é tarefa do historiador investigar os aspectos principais que envolvem
o processo de construção e “monumentalização” do texto literário. Somente assim
poderá se aproximar de forma mais verossímil dos significados históricos presentes
na obra, compreendendo a representação de mundo desenvolvida pelo escritor.
Recorrendo novamente à Ferreira:

[...] os historiadores [...] devem compreendê-las [as fontes literárias]


em seus contextos históricos e sociais, o que requer a consulta a
outras fontes da época. Toda fonte pode ser legítima na medida em
que contribua para o entendimento do objeto específico de estudo e
se tenha em conta sua natureza; política, econômica, científica,
religiosa, artística, técnica ou outra. É preciso, contudo estar atento
aos ambientes socioculturais do período analisado para se evitar o
tratamento anacrônico da fonte. Indagações básicas servem para
começar este trabalho: como um texto antigo, medieval ou mais
recente era produzido? Como se difundia e a que fins se destinava?
Quais as suas convenções?50

Portanto, embora não exista um método único e definitivo, como, aliás, não
existe para a análise de nenhuma outra fonte, há alguns cuidados básicos que
devem ser tomados quando se pretende compreender a experiência humana no
tempo por meio de obras literárias.
Os pontos de aproximação apontados até aqui em relação ao uso da
Literatura na pesquisa histórica também têm sido preocupações de muitos
professores e pesquisadores da área de ensino de História. Em um breve
levantamento de trabalhos sobre o assunto51, algumas experiências práticas e
outras propostas de atividades servem como referência para se analisar de que
forma os textos literários têm sido utilizados e pensados na educação básica.

50
Ibidem, p. 81.
51
As pesquisas foram selecionadas a partir de consultas ao repositório digital da Scielo
(http://www.scielo.org/) e ao portal de periódicos e banco de teses e dissertações da Capes
(www.periodicos.capes.gov.br e www.bancodeteses.capes.gov.br). Acesso em 22/05/2016.
44

Em artigo publicado em 2014, por exemplo, Glória Solé, Diana Reis e Andreia
Machado52 apresentam um estudo sobre o uso de ficção histórica no ensino dessa
disciplina. De acordo com as autoras, textos literários facilitam o processo de
compreensão dos acontecimentos e/ou conceitos, aproximando os estudantes da
realidade estudada e estimulando o uso da imaginação para um conhecimento
adequado do passado. A partir de uma análise de outras pesquisas relacionadas ao
tema, discutem-se algumas potencialidades do uso da Literatura:

[...] contribui para a organização de sequências cronológicas; ajudam


a compreender as mudanças através dos tempos, a duração de
certos acontecimentos, as causas e os efeitos dos
eventos/acontecimentos; permitem identificar as semelhanças e
diferenças entre vários períodos e distinguir o passado e o presente;
contribuem para promover o desenvolvimento da linguagem de
tempo. 53

Portanto, ao justificar a escolha por textos literários para a atividade


desenvolvida com os alunos, destacam-se os aspectos retóricos desse tipo de
documento. Sua capacidade narrativa, segundo as autoras, apresenta vantagens em
relação a outros materiais, especialmente pelo interesse que desperta nos
estudantes e pelo fato de que pode facilitar sua compreensão das diferentes
temporalidades presentes na aprendizagem em História.
Em seguida, é descrita a atividade com o uso de narrativas ficcionais
realizada em uma turma de 6º ano de uma escola de Portugal. O conteúdo das aulas
é a Revolução de 25 de Abril e os textos literários atuam como ponto de partida para
o estudo desta situação histórica. Na atividade, a leitura das obras propostas (O
Tesouro, de Manuel António Pina, e História de uma flor, de Matilde Rosa Araújo) é
seguida de uma consulta a outros documentos, textuais e visuais, em uma
abordagem comparativa por meio da qual as obras literárias são reanalisadas com o
objetivo de compreender de que forma o processo histórico é representado nelas.
No desenrolar da proposta, a partir de problemas colocados pelas professoras
sobre o conteúdo estudado, os alunos foram instigados a construir uma narrativa
própria respondendo a tais questões, sequencializando acontecimentos e
explicando-os. De acordo com a conclusão das autoras, a Literatura ajudaria o

52
SOLÈ, Glória; REIS, Diana; MACHADO, Andreia. Potencialidades didáticas da literatura infantil de ficção
histórica no ensino de história. História & Ensino, Londrina, v. 20, n. 1, p. 7-34, jan./jun. 2014.
53
Ibidem, p. 13;
45

discente a construir sua própria narrativa sobre o evento examinado, possibilitando a


elaboração de um pensamento histórico mais bem estruturado e coerente. No
estudo acima, a Literatura é explorada tanto como um vestígio por meio do qual se
acessa o passado quanto pelo valor de sua capacidade narrativa para o
desenvolvimento da escrita e argumentação dos educandos. Ao articular a ficção
com outros documentos, tal proposta permite ao estudante compreender como se dá
a construção do conhecimento histórico, praticando etapas da operação
historiográfica como a análise de fontes, a resolução de problemas e a construção
de uma narrativa. O fato de cada aluno ter que produzir um texto a partir das
mesmas fontes possibilita também a compreensão do caráter relativamente aberto
da História, integrando várias interpretações possíveis construídas a partir dos
mesmos materiais empíricos.
Em outra pesquisa, Odilse Grasselli Engel54 propõe outra forma de abordar a
Literatura nas aulas de História, utilizando como recurso o romance A Cocanha
(2000), de José Clemente Pozenato. Segundo Engel, a literatura possui vantagens
que a distinguem do texto historiográfico e a tornam um importante recurso para o
ensino, pois permitiria pensar de uma forma mais adequada os atores sociais e suas
possibilidades de avaliar e agir na realidade à sua volta. Além disso, a autora aponta
a capacidade do romance de enfatizar pequenos eventos, aspectos da vida
cotidiana, dando uma dimensão mais humana à História e resgatando aspectos que,
segundo Engel, seriam negligenciados pela maior parte da historiografia sobre o
processo abordado: a imigração italiana para o Rio Grande do Sul.
Ao propor o ensino deste conteúdo a partir da obra A Cocanha, a referida
autora explicita um método articulando o texto literário com textos historiográficos. A
partir do contexto histórico representado no romance, enfatizando alguns pontos
abordados na literatura como os costumes, a linguagem, o cenário, as vestimentas,
a alimentação, a organização familiar, as formas de lazer, as manifestações
artísticas, as profissões, a religiosidade, os ritos, entre outros, se propõe a
associação da leitura com a explicação histórica de aspectos como as relações de
trabalho e modos de produção.
Para a autora, a Literatura deve ser utilizada com o objetivo de recuperar o
passado de uma forma que o torne mais acessível para o estudante, pois se trata de
54
ENGEL, Odilse Grasselli. Literatura e História: diálogos na sala de aula. Dissertação de Mestrado, UCS. 2007.
46

um texto em que a dinâmica da vida humana é facilmente identificada pelos alunos.


O texto literário é tratado, portanto, como uma forma de representação válida não
apenas para acessar, mas também para compreender o passado. Assim, embora
proponha o uso de textos historiográficos para a explicação das práticas e situações
narradas no texto literário, tal procedimento não tem como objetivo comparar as
duas narrativas, mas complementar ou mesmo comprovar o que está representado
no romance.
Além da proposta acima, Engel também aponta, de forma breve, outra
possibilidade para se usar a literatura na sala de aula, para além da compreensão
de eventos e situações históricas, refletindo sobre o uso do texto literário com vistas
à construção de conceitos. Usando como exemplos passagens do romance que
descrevem hábitos religiosos dos imigrantes italianos, ela se propõe, por exemplo, a
contribuir para a construção do conceito de identidade cultural. Essa reflexão não
ocupa um espaço importante na pesquisa, pois não é a proposta principal da autora.
Porém, tal questão foi mais bem explorada em artigo de 200355. Nele, Rafael Ruiz
contribui para pensar de forma mais profunda esta outra abordagem para o uso da
Literatura em sala de aula.
Baseado em considerações de François Hartog, Ruiz defende o uso da ficção
de forma comparativa, ensinando os alunos a “edificarem o próprio edifício da
História”. Em suas palavras:

Ensinar a edificar o próprio ponto de vista histórico significa ensinar a


construir conceitos e aplicá-los diante das variadas situações e
problemas, significa ensinar a selecionar, relacionar e interpretar
dados e informações de maneira a ter uma melhor compreensão da
realidade estudada. Ensinar a construir argumentos que permitam
explicar a si próprios e aos outros [...] a apreensão e compreensão
da situação histórica [...].56

Como exemplo para seu método, o autor propõe a construção do conceito de


História a partir de trechos de três obras: A vida e as estranhas aventuras de
Robinson Crusoé, de Daniel Defoe; a Utopia, de Thomas More, e Palomar, de Ítalo
Calvino.

55
RUIZ. Rafael. Novas formas de abordar o ensino de História. In: KARNAL, Leandro (Org.). História na Sala de
Aula – conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2003.
56
Ibidem, p. 77-78.
47

São analisados então recortes dos livros referidos em que o comportamento


dos personagens permite aferir os modos de entender a História em diferentes
épocas. No romance de Defoe, a herança do passado direcionando as atitudes de
Robinson Crusoé no Novo Mundo possibilita a compreensão do conceito de História
como “mestra da vida”, inaugurado por Tucídides e Cícero e que predominou até o
século XVIII.
Na Utopia de More, o autor analisa o nascimento do conceito moderno de
História ao comparar a obra com O Príncipe, de Maquiavel. A diferença presente nas
obras em relação à concepção do “ser” e do “dever ser” seria o divisor fundamental
entre o mundo clássico-medieval e o mundo moderno. Enquanto para More a boa
sociedade depende da produção de um homem bom, para Maquiavel bastava que o
homem se comportasse de uma maneira correta. Ambas as obras representariam o
papel ativo do pensamento moderno, onde o que importa não é apenas a
contemplação da realidade, mas a sua transformação. A partir de tal mentalidade se
produz o conceito moderno de História no final do século XVIII, uma História como
processo progressivo e teleológico.
E, por fim, Rafael Ruiz encerra sua abordagem comparativa dos modos de
entender a História com uma análise da obra Palomar, em que o personagem
principal procura recortar e compreender uma determinada realidade do presente
com o uso de um método científico. Aqui é realizada uma analogia com o trabalho
do historiador, que se debruça sobre uma realidade fragmentada que pode ser
analisada sob variados pontos de vista.
Assim, o autor repensa a História a partir da tradição literária da qual ela se
originou, oferecendo vários exemplos de como a Literatura pode contribuir para a
construção de conceitos históricos em sala de aula, seguindo sempre duas
premissas básicas: a construção de um ponto de vista próprio e uma análise
comparativa. Esta construção, em Ruiz, faz-se pela busca, na Literatura, do conjunto
de características e recorrências que constituem o conceito histórico – no caso, os
conceitos de História em três momentos diferentes do passado. Diferentes
realidades representadas em textos distintos podem, em um primeiro momento,
destacar-se pelas suas singularidades. Mas, por meio de uma análise que busque
uma abstração, sintetizando o aspecto essencial, a partir da generalização de
48

observações particulares, de características comuns, constrói-se a categoria


desejada.
Nas pesquisas revisadas acima, a Literatura assume formas diferentes no
processo de ensino realizado ou proposto. Não se apresenta apenas como uma
fonte, tampouco como uma forma de representação em pé de igualdade com a
História. O tratamento que recebe para ou no trabalho em sala de aula com os
alunos varia de acordo com o texto específico e com os objetivos educacionais. Nos
dois primeiros, em que o objetivo das aulas é compreender eventos e situações
históricas, os materiais utilizados recebem um tratamento mais próximo ao que o
historiador aplica com os documentos que transforma em fontes. Já no último, em
que o objetivo final é a construção de conceitos em sala de aula, o texto literário tem
valor não pelo conteúdo de sua representação do passado, mas pelas
características de uma determinada categoria que podem ser abstraídas a partir
dele. Em comum, em nenhuma das pesquisas a Literatura foi o material escolhido
apenas pelas informações sobre a realidade que dela podem ser retiradas, mas
principalmente pela forma como representa esta realidade. As obras abordadas
foram selecionadas por se tratarem de recursos privilegiados para acessar o
passado, o que, de certa forma, vai ao encontro do que diz Durval Muniz
Albuquerque Júnior57 quando analisa as potencialidades do discurso literário para a
História. Conforme o autor, a Literatura é uma fonte diferente, está mais próxima da
narrativa histórica que qualquer outro documento. Tal proximidade entre ambas as
formas de ter acesso a variados períodos da trajetória humana faz dela uma
importante ferramenta para conhecer realidades passadas. Segundo Albuquerque
Júnior, as particularidades da Literatura permitem nos conectarmos às diferentes
formas de sentir, gostar, pensar, viver em geral, de um modo que nos aproxima dos
dramas, sonhos, dificuldades, esperanças e tensões dos seres humanos do
passado.
Em sala de aula, no trabalho com crianças e adolescentes, questões como
essas muitas vezes estão presentes nas preocupações dos professores. Instigar o
interesse dos estudantes para o conteúdo abordado é sempre um facilitador do
processo de aprendizagem. Determinadas obras literárias, mais do que outros
documentos, possibilitam potencialmente uma maior empatia entre o aluno e o

57
ALBUQUERQUE JR, Durval. História: a arte de inventar o passado... Op. Cit.
49

conteúdo. Segundo Kátia Abud, “o conceito de empatia facilita a compreensão


58
histórica, ao aproximar as pessoas do passado às do presente” , pois:

a compreensão histórica vem da forma como sabemos como é que


as pessoas viram as coisas, sabendo o que tentaram fazer, sabendo
o que sentiram em uma determinada situação.59

Assim, acredita-se que a Literatura forneça vários exemplos de obras que


possibilitam uma inteligibilidade adequada do passado, com representações
capazes de estabelecer um sentido histórico, permitindo compreender a vida
humana não como algo estanque, mas em movimento, aproximando o leitor dos
processos de constituição de desejos, sentimentos, preocupações, valores, lutas e
sofrimentos dos sujeitos ao longo do tempo, menos evidentes em outros
documentos mais tradicionais. Deste modo, para a construção de uma metodologia
de ensino, o discurso literário presta-se como um valioso recurso para analisarmos
as práticas cotidianas em diferentes espaços/tempos. Mas antes do trabalho com os
alunos, ao utilizar o texto como um vestígio do passado, é preciso adotar alguns
critérios semelhantes àqueles que o historiador tem com os documentos que
converte em fontes, sob o risco de promover uma aprendizagem marcada por
anacronismos ou mesmo inverdades, contribuindo para a formação e manutenção
de memórias e identidades fundamentadas em conhecimentos comuns.

2.2 Como usar Machado de Assis no ensino de história?

A partir das preocupações apontadas pela teoria da História sobre a forma de


compreender a realidade social na Literatura, impõe-se aqui pensar especificamente
a respeito da obra literária escolhida para nossa proposta de ensino: os contos de
Machado de Assis. Para cumprir nosso objetivo - ensinar história pela perspectiva da
vida cotidiana por meio dos contos machadianos - é preciso questionar sua obra:
que representações de mundo social ele criou? Por que as criou desta forma? Até
que ponto são verossímeis? Para responder tais perguntas, recorremos a alguns
autores - da historiografia e da teoria literária - que exploraram a obra do escritor.

58
ABUD, Katia. Registro e representação do cotidiano... Op. Cit., p. 27.
59
Ibidem, p. 28.
50

O primeiro deles é o crítico literário Roberto Schwarz, um dos mais


importantes estudiosos de Machado de Assis. Em Ao vencedor as batatas60,
publicado originalmente em 1977, o autor situa os primeiros romances do escritor
em seu contexto histórico, apontando como Machado teria identificado contradições
fundamentais na ordem social brasileira e feito delas o tema principal de suas
narrativas.
Para o autor, haveria no Segundo Reinado - época em que Machado escreve
e em que acontecem suas histórias - um desacordo entre certas ideias liberais
importadas da Europa e a prática da escravidão, traço fundamental da vida no país:
“Sendo embora a relação produtiva fundamental, a escravidão não era o nexo
efetivo da vida ideológica” 61. Os valores burgueses do Velho Mundo, como as ideias
de igualdade e liberdade, apropriados pela elite brasileira, chocar-se-iam com as
circunstâncias estruturais do Brasil, circunstâncias que essa mesma elite esforçava-
se em manter, como o latifúndio e o trabalho compulsório. Existiriam, portanto,
tentativas de afirmar as ideologias exteriores, mantendo práticas opostas ao que tais
ideias defendiam. Para Schwarz, o ritmo de nossa vida ideológica acompanhava a
Europa, em contrapartida com nossa vida prática, sem provocar alterações
profundas na ordem social: “Em resumo, as ideias liberais não se podiam praticar,
sendo ao mesmo tempo indescartáveis” 62.
O resultado dessa combinação de elementos contraditórios seria o
estabelecimento de uma cultura do favor, que viria a ser o mecanismo fundamental
da relação entre o latifundiário e os chamados “homens livres”, colocados assim
entre aspas, pois, apesar de legalmente serem de condição livre, tinham sua
sobrevivência dependente do favor de um grande proprietário. Esta cultura, que se
desenvolve no campo, estender-se-ia à sociedade como um todo, caracterizando um
traço essencial da ordem social brasileira. Conforme Schwarz:

60
SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as batatas: Forma literária e processo social nos inícios do romance
brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2012.
61
Ibidem, p.15.
62
Ibidem, p. 26. O argumento de Schwarz sobre o deslocamento de ideias no Brasil, embora tenha influenciado
muitos pesquisadores, recebeu fortes contestações. A crítica mais conhecida da formulação de “ideias fora de
lugar” é de Maria Sylvia de Carvalho Franco, em CARVALHO FRANCO, M. S. de. 1976. “As idéias estão em seu
lugar”. Cadernos de Debate, nº 1. Para uma análise mais ampla de tais discussões, ver PALTI, Elias José. Lugares
y no lugares de las ideas en América Latina. El tiempo de la política. El siglo XIX reconsiderado. Buenos Aires:
Siglo Veintiuno Editores, 2007.
51

Assim, com mil formas e nomes, o favor atravessou e afetou no


conjunto a existência nacional, ressalvada sempre a relação
produtiva de base, esta assegurada pela força. Esteve presente por
toda a parte, combinando-se às mais variadas atividades, mais e
menos afins dele, como administração, política, indústria, comércio,
vida urbana, Corte, etc. Mesmo profissões liberais, como a medicina,
ou qualificações operárias, como a tipografia, que, na acepção
européia, não deviam nada a ninguém, entre nós eram governadas
por ele. E assim como o profissional dependia do favor para o
exercício de sua profissão, o pequeno proprietário depende dele para
a segurança de sua propriedade, e o funcionário para o seu posto.63

Essa relação de dependência que regulava a vida da maioria das pessoas no


país foi, de acordo com o autor, a matéria central da prosa literária de Machado de
Assis, aparecendo não de forma involuntária como em outros escritores, mas como
princípio construtivo. Segundo ele, esta é a grande façanha do escritor, que coloca
no centro de suas obras os elementos contraditórios que compõem a vida social.
Nos romances e contos de Machado, a cultura do favor se materializaria
fundamentada no que historiadores e críticos literários têm chamado de
paternalismo. Para Schwarz, esta mentalidade – uma ideologia senhorial, síntese de
violência e benignidade, baseada nas relações familiares e no escravismo, em que o
senhor seria autoridade inquestionável - era o parâmetro das relações de
dependência na sociedade como um todo64. Há divergências no que se refere à
análise de tais aspectos na chamada primeira fase da obra de Machado de Assis,
classificada comumente como o período que vai até 1878, ano de publicação do
romance Iaiá Garcia. Enquanto Schwarz atribui, por meio da análise do
comportamento dos personagens destas obras, a existência de um conformismo e
até aperfeiçoamento do paternalismo na sociedade brasileira, outros autores, como
Sidney Chalhoub65, apontam uma critica de Machado a esta ideologia já neste
momento.
Em Chalhoub, a obra de Machado de Assis ganha outra interpretação,
baseada em uma análise histórica. Para o autor, as relações de dependência
existentes na prosa literária machadiana são “desmascaradas” e contrariadas. Isso

63
Ibidem, p. 16.
64
A noção de paternalismo está inserida em um amplo debate na historiografia recente, formulada e
reformulada nas últimas décadas em importantes trabalhos sobre a escravidão e as relações de trabalho livre
no Brasil Colônia e Império. Para uma análise mais profunda desta noção, ver LARA, Sílvia Hunold. Campos da
violência. São Paulo, Paz e Terra, 1988.
65
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
52

ocorreria a partir de práticas cotidianas de alguns dos personagens que se


encontram no lado mais fraco dessa relação, sem que, no entanto, seja possível
romper com a lógica da dominação. Para o autor, a própria experiência pessoal de
Machado de Assis, que cresceu como agregado em uma casa senhorial e, portanto,
dependente, permitiu ao escritor uma compreensão mais adequada dos
condicionamentos existentes na vida das pessoas que estavam inseridas nesse tipo
de situação de poder.
Porém, estas questões seriam mais bem aprofundadas na chamada segunda
fase de Machado, em que se desenvolveram obras como Memórias Póstumas de
Brás Cubas (1880), Dom Casmurro (1899) e a maior parte dos seus contos.
Novamente Schwarz, desta vez em Um mestre na periferia do capitalismo 66,
publicado pela primeira vez em 1990, contribui para pensar de que forma o escritor
produz uma representação da vida social no final do século XIX. O livro é um bom
caminho para se entender a prosa machadiana, indicando os cuidados a serem
tomados pelo leitor em relação aos narradores das obras, geralmente personagens
que expõem preocupações, interesses e valores do grupo ao qual pertencem.
Cuidados que são fundamentais para compreender como Machado de Assis
pensava e descrevia a sociedade brasileira, sem tomar a visão de mundo exposta
pelos protagonistas como equivalente à do escritor.
Na obra, o que temos em Machado são personagens pertencentes a grupos
diferentes, com relações de poder bem definidas e que conhecem os papéis sociais
que devem cumprir. De acordo com Schwarz, a interpretação da sociedade feita
pelo escritor dá um tom bastante verossímil às relações sociais de sua época. As
possibilidades de vida dos personagens mais pobres dependem da relação que
estabelecem com os proprietários (de terras, de bens, de pessoas). A cultura do
favor é, portanto, determinante, e se efetiva por meio de uma série de mecanismos
que regulam os comportamentos nas relações de trabalho, de vizinhança, de
amizade, familiares e afetivas. Os pobres, marginalizados, dependem do favor para
sua sobrevivência. Os membros da classe dominante sabem disso, e utilizam esta
situação de acordo com seus interesses. De acordo com o autor, as obras deste
período são importantes meios para se compreender a desproteção das classes
mais baixas ao longo do século XIX. Diz ele:
66
SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades,
Editora 34, 2012.
53

Dada a assimetria destas relações, em que [...] a parte pobre não é


ninguém, tudo se resume na decisão da parte proprietária, a que não
há nada que acrescentar. Deste ponto de vista, a fabulação reduzida
expressa uma correlação de forças, e reitera a face taciturna do
poder.67

Portanto, os personagens, embora muitas vezes caricatos e estereotipados,


concentram em seus padrões de comportamento características gerais e
possibilidades de vida da classe à qual pertencem, em correspondência com a
estrutura social do país. Porém, ao analisar o papel dos desfavorecidos na obra
machadiana, novamente as conclusões de Chalhoub68 divergem do estudo de
Schwarz.
No livro Machado de Assis, historiador, a relação entre proprietários e
dependentes não é tão rígida quanto na interpretação de Schwarz, tampouco a
dominação das elites se efetivava da forma como Brás Cubas, Bentinho e outros
personagens-narradores induzem o leitor a crer. Chalhoub não nega que há, nessa
época, relações de poder assentadas no paternalismo. Porém, essa estrutura de
dominação social, que para o autor está fortemente arraigada nas relações de
trabalho e mentalidade escravista, na obra machadiana também é composta por
espaços de liberdade, que permitem ações dos indivíduos que fogem aos padrões
de comportamento estabelecidos pelos grupos dominantes. Tal enfraquecimento do
poder senhorial seria resultado da identificação por parte do escritor de
transformações na sociedade brasileira, provocadas, por exemplo, pela Lei do
Ventre Livre de 187169. Chalhoub analisa o espaço importante que os dominados –
escravos, dependentes, subalternos – têm nas obras desse período. Identifica em
suas atitudes táticas que visam violar a ideologia senhorial, jogando de diferentes
formas com a autoridade dos senhores, de modo que tivessem seus interesses e
necessidades atendidos. Os personagens secundários das histórias, segundo
Chalhoub, têm a capacidade de:

[...] penetrar a lógica senhorial, desvendá-la, e então interpretar


corretamente as motivações e atitudes de seus antagonistas de

67
Ibidem, p. 90-91.
68
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis, historiador... Op. Cit.
69
Promulgada em 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre, entre outras medidas, tornava de condição
livre os filhos de escravas nascidos a partir daquela data.
54

classe. As pessoas não são boas ou más [...] apenas expressam


seus preconceitos sociais e culturais.70

Em outras palavras, nos escritos machadianos, as pessoas apenas


cumpririam os papéis que lhes eram impostos em dada estrutura social. No entanto,
aqueles que ocupam um espaço mais frágil nessa estrutura acabariam improvisando
dentro destes papéis, no interior, porém, dos limites estabelecidos. Assim, de forma
dissimulada, os dependentes iriam alcançando seus objetivos, e ao mesmo tempo,
inconscientemente, abalando alguns alicerces da dominação sofrida. Para
Chalhoub, este é o tema central das obras da fase final de Machado. Enquanto os
primeiros escritos mostrariam a fortaleza da lógica de dominação paternalista,
mesmo que burlada em diversas situações, nos últimos a autoridade inquestionável
da vontade senhorial iria sendo corroída de forma cada vez mais forte, pois já não
possuiria as mesmas bases sólidas de sustentação. Em sua análise, Chalhoub
aprofunda as origens da percepção de Machado sobre a história social e política do
Brasil no século XIX, reconstruindo parte de sua experiência profissional como
funcionário público e seu empenho no cumprimento da Lei do Ventre Livre, o que
estaria profundamente relacionado com seu comprometimento em expor a ideologia
senhorial arbitrária e violenta que regia a vida no país.
Assim, como vimos, há interpretações diferentes da obra de Machado de
Assis. Porém, para a presente pesquisa, não há a necessidade de optar por uma em
detrimento de outra. Ambas contribuem para o desenvolvimento de nossa proposta
de ensino, pois ajudam a pensar diferentes aspectos que não são necessariamente
excludentes. Schwarz assinala a maestria com que o escritor identificou as
circunstâncias sociais existentes em sua época e como elas se efetivavam no dia a
dia das pessoas, afirmando e reproduzindo uma cultura paternalista, centrada no
favor, que colocava as condições de existência de uma massa gigantesca de
homens e mulheres livres sob a dependência de diferentes grupos de proprietários.
Chalhoub não nega a verossimilhança de tal representação da realidade, mas alerta
para as possibilidades de liberdade contidas nas ações dos indivíduos que estavam
submetidos à dependência dos senhores.
Portanto, os dois autores contribuem para compreender as obras de Machado
de Assis à luz de seus contextos sociais, situando-as em processos mais gerais da

70
Ibidem, p. 53.
55

época em que foram escritas e fornecendo modelos confiáveis de interpretação da


sociedade brasileira do final do século XIX. Nosso objetivo é investigar que aspectos
do passado podem ser acessados e compreendidos através da obra de Machado de
Assis. A conclusão é que podemos entendê-la não apenas como a reprodução de
estereótipos e discursos dominantes, mas como uma possibilidade de resgatar
certas experiências subjetivas dos indivíduos em relação a essas normas gerais. Tal
perspectiva mostra-se bastante viável tendo em vista os citados estudos realizados
por Chalhoub e Schwarz, que indicam uma correspondência entre a narrativa
machadiana e o funcionamento da estrutura social do país no século XIX, permitindo
compreender circunstâncias que estabeleciam as condições para as ações dos
indivíduos, bem como o desenvolvimento de papéis informais e modos de não
adequação ou resistência às ideologias dominantes, muitas das quais, também por
contradições internas do Brasil, não se podiam efetivar. São inúmeros os exemplos
de personagens machadianos que expõem, em seus comportamentos diários, a
interiorização de tais circunstâncias, ainda que para burlá-las. Sua obra é, portanto,
uma ferramenta adequada para investigar os mecanismos de imposição de certos
papéis sociais, o desenvolvimento de atitudes de improvisação às normas culturais
dominantes, as dificuldades em assimilar os projetos normativos na vida diária,
enfim, as possibilidades de experiências vividas quotidianamente pelos indivíduos do
século XIX.
Embora as análises realizadas até aqui tratem da prosa literária machadiana
de uma forma geral, fazem-se necessárias ainda algumas reflexões sobre as
especificidades do gênero escolhido para a presente proposta de ensino: o conto.
Tal forma narrativa é comumente comparada ao romance, tendo como distinção
principal a apresentação de um enredo de forma condensada e sintética, focado
geralmente em um único conflito e composto de menos personagens. Nos estudos
já citados da obra de Machado de Assis, apesar de Schwarz e Chalhoub centrarem-
se nos romances do escritor, as pequenas referências que são feitas sobre os
contos indicam que estes reproduzem a mesma lógica dos romances. Chalhoub
inclusive estabelece paralelos entre personagens de contos e de romances,
reforçando a existência de “semelhanças estruturais significativas” 71 entre ambos,

71
Ibidem, p. 80.
56

como no trecho abaixo, em que compara a representação de mundo social


desenvolvida por Machado no conto Mariana (1871) e no romance Helena (1876):

Em ambos os casos, a ideologia paternalista dos senhores e as


relações de dependência provocam situações de violência e
humilhação. Não há maniqueísmo na forma de tramar as situações;
as personagens não são inerentemente boas ou más. Os senhores
mostram estima pelos dependentes, mas ao fazê-lo produzem
apenas sofrimento e humilhação; os dependentes — escravos e
livres, Mariana ou Helena — são sinceramente agradecidos aos
senhores, mas sabem que não há perspectivas e que serão sempre
lembrados de sua situação de inferioridade social. Os dois enredos
nos levam à imbricação entre escravidão e “liberdade” em situação
de dependência, mostrando que havia uma e somente uma lógica
hegemônica de reprodução das hierarquias e desigualdades
sociais.72

Dos cerca de duzentos contos escritos por Machado, a maior parte foi feita na
chamada segunda fase de sua obra, oitenta somente na década de 1880 73, tratada
por críticos literários como o auge de sua explosão criativa. Sobre a importância
deste gênero, afirma John Gledson, outro destacado estudioso da obra machadiana:

Contos podem parecer fáceis, escritos algo apressadamente como


uma espécie de subproduto de um trabalho mais sério e profundo
para a realização de um grande romance, ou até como sintomas de
uma incapacidade passageira de empreender “obras de maior tomo”
(palavras de Dom Casmurro), mas nada está mais longe da verdade.
Contos não são romances imperfeitos, ou até poemas em prosa –
existem com seus direitos próprios, e, além do mais, por essa época,
quando Machado começou a escrever os seus melhores, o gênero
estava conquistando uma nova dignidade, uma consciência nova dos
seus poderes74.

Portanto, o conto ocupou um espaço relevante na produção ficcional em


prosa de Machado de Assis. O momento de maior produção de narrativas deste
gênero coincide com o ápice de sua carreira literária, os anos 1880, quando desfruta
de grande respeito no panorama literário carioca e de estabilidade financeira 75. Para
a proposta de ensino deste trabalho foram escolhidos quatro contos: Virginius:

72
Ibidem, p. 80.
73
Os dados foram retirados de ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis: seleção, introdução e notas
de John Gledson – São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
74
Ibidem, p. 8.
75
Machado de Assis construiu desde o final dos anos 1860 uma carreira de sucesso no funcionalismo público
do Império. Sobre sua atuação profissional nos órgãos governamentais, ver a obra de CHALHOUB, Sidney.
Machado de Assis, historiador... Op. Cit.
57

história de um advogado (1864); Mariana (1871); Uns braços (1896) e Pai contra
Mãe (1906). Os dois primeiros foram publicados no Jornal das Famílias, espaço de
divulgação de quase todos os contos da primeira fase de sua obra literária. Os dois
últimos aparecem em duas coletâneas organizadas pelo escritor: Várias Histórias e
Relíquias da Casa Velha. Virgínius e Mariana são considerados pela crítica
tradicional como sendo de menor importância na obra machadiana 76, enquanto os
dois últimos aparecem como exemplares da melhor fase do escritor. No entanto, não
é o mérito literário dos contos que nos interessa aqui, mas os aspectos da realidade
que podem ser acessados a partir deles77. Além disso, a escolha pelo conto como
recurso para o ensino de História leva em consideração também aspectos práticos
da escola. Contos são narrativas mais curtas, que exigem um tempo menor de
leitura. Podem, portanto, ser exploradas em sala de aula com mais intensidade em
uma quantidade menor de períodos, inclusive superando com mais facilidade as
possíveis resistências dos estudantes não habituados à leitura de ficção.
Assim, como vimos, a pergunta que dá título à primeira parte deste capítulo
não tem uma resposta única. São várias as possibilidades de se utilizar a Literatura
no ensino de História, dependendo sempre de questões como os objetivos
educacionais, o tipo de texto literário, o seu conteúdo e as condições que
envolveram sua produção. No caso dos contos de Machado de Assis, a partir das
reflexões de Schwarz e Chalhoub, foi possível identificar a interpretação realizada
pelo escritor de sua época, permitindo abordar os sentidos históricos desta leitura
feita por ele como possíveis meios para se compreender parte das experiências
vividas pelas pessoas no Brasil do século XIX. Assim, seguindo algumas reflexões
da teoria da História78, a obra machadiana não é uma fonte inocente, mas uma
representação de mundo coerente e verossímil de parte da estrutura social
brasileira. Porém, essa constatação só foi obtida devido aos estudos realizados por

76
Para Gledson, levando-se em conta a qualidade literária, os contos da chamada primeira fase de Machado de
Assis não possuem o mesmo mérito que os produzidos a partir da década de 1880. Segundo o autor, isso se
deve em grande parte à necessidade de Machado de se ajustar às exigências dos locais de publicação, quase
sempre jornais literários conservadores que impunham condições e critérios aos escritores, limitando aspectos
de suas obras que iam desde a forma até o conteúdo. Para uma análise mais profunda das condições de
produção dos contos da primeira fase machadiana, ver CRESTANI, Jaison Luís. A colaboração de Machado de
Assis no Jornal das Famílias: subordinações e subversões. Revista Patrimônio e Memória, UNESP – FCLAs –
CEDAP, v.2, n.1, 2006 p. 154.
77
Tais aspectos estão descritos no capítulo 3, quando se aborda o conteúdo proposto para as atividades a
serem desenvolvidas em sala de aula.
78
ALBUQUERQUE JR, Durval. História: a arte de inventar o passado... Op. Cit.
58

historiadores e críticos literários, que investigaram as condições de produção da


obra machadiana, bem como os aspectos internos ligados à forma e conteúdo de
seus textos. Assim, a interpretação criada por Machado de Assis da realidade de
seu tempo presta-se como um valioso instrumento para o ensino de História pela
perspectiva do cotidiano, analisando-se a partir dela alguns dos condicionamentos
estruturais existentes e as diferentes possibilidades de ação dos indivíduos inseridos
nestas circunstâncias.
59

CAPÍTULO 3 – AÇÕES PEDAGÓGICAS

3.1 Propostas para o estudo da história do cotidiano por meio dos contos de
Machado de Assis.

Aqui chegamos ao aspecto mais “prático” da pesquisa. Trata-se de uma


proposta de atividades pedagógicas para serem utilizadas por professores de
História do ensino fundamental. Para isso, faz-se necessário retomar algumas
reflexões desenvolvidas até agora e conectar os pontos principais abordados no
trabalho.
A partir da análise de diferentes estudos sobre a vida cotidiana, realizados
nos âmbitos do conhecimento Histórico, Ciências Sociais, Filosofia e ensino de
história, buscaram-se possíveis definições teóricas que permitissem estudar a vida
cotidiana para além de sua apreensão de senso comum, ultrapassando aquilo que é
aparente e compreendendo a complexidade das relações sociais desenvolvidas
nesta esfera da vida humana. Apropriado de tais definições, o professor poderá
utilizá-las para a leitura de um material empírico, explorado como um recurso
didático por meio do qual é possível acessar os conteúdos da vida cotidiana e a
partir deles construir conhecimentos. Aqui sugerimos o uso da Literatura como
recurso, mais especificamente algumas obras de Machado de Assis. Para isso,
apontamos no segundo capítulo certos cuidados necessários para quem desejar
utilizar sua prosa literária nas aulas de História.
Da vasta obra machadiana, propomos alguns de seus contos a partir dos
quais se pode ensinar História pela perspectiva da vida cotidiana em um
determinado recorte espaço-temporal. Como mencionado anteriormente, Machado
escreveu mais de duzentos contos ao longo de toda a sua carreira como escritor. Os
temas abordados são variados. Em comum, na maior parte deles as tramas se
desenvolvem no período da história brasileira conhecido como Segundo Reinado.
Em uma rápida análise deste período nos livros didáticos79, principal referência
bibliográfica para a maior parte dos professores de História, verificamos os mesmos

79
Foram analisados três dos livros aprovados na última avaliação pedagógica do Ministério da Educação
(2014): “História: Sociedade & Cidadania”– Edição reformulada, 8º ano/Alfredo Boulos Júnior. – 2. ed. – São
Paulo: FTD, 2012; “Projeto Araribá: História”, 8º ano/obra coletiva concebida, desenvolvida e produzida pela
Editora Moderna; editora responsável Maria Raquel Apolinário. – 3. ed. – São Paulo, 2010 e “Perspectiva
história”, 8º ano/Renato Mocellin, Rosiane de Camargo. – 2. ed. – São Paulo: Editora do Brasil, 2012.
60

temas na maioria deles: as disputas entre Liberais e Conservadores pelo poder


político, a rebelião praieira, a guerra do Paraguai, a economia cafeeira, o processo
de industrialização, o fim gradual da escravidão e a imigração europeia. Todos os
conteúdos elencados são abordados a partir de aspectos estruturais e institucionais.
Mas de que forma tais acontecimentos e processos faziam-se sentir na vida diária
da população? Esta é a única forma possível de compreender a história do Brasil
nessa época? Partindo de tais perguntas, e fundamentando-se em todas as
reflexões desenvolvidas até aqui sobre História, cotidiano e Literatura, propomos
outros meios de se ensinar aspectos do Segundo Reinado brasileiro, utilizando a
interpretação desta realidade histórica desenvolvida por Machado de Assis em
alguns de seus contos e a vida cotidiana como perspectiva para compreendê-la.
Como já analisamos no capítulo anterior, Machado compreendia a sociedade
de seu tempo a partir de práticas sociais baseadas em uma mentalidade que a
historiografia chamou de paternalismo. Tal ideologia, fortemente fundamentada no
escravismo que caracterizava a vida no país, regia a existência de grande parte da
população. De acordo com os autores analisados anteriormente – Schwarz e
Chalhoub – este elemento foi o tema principal da prosa literária de Machado. As
relações de poder baseadas na mentalidade paternalista são abordadas em todos
os seus romances e em grande parte de seus contos. Assim, o tema que propomos
para as aulas de História está relacionado a esta matéria central da obra
machadiana: a dissolução do escravismo e as consequências deste para a
elaboração do paternalismo.
A partir de uma série de contos, selecionados de acordo com o objetivo
educacional escolhido, podemos compreender algumas características da
escravidão no Brasil e as permanências de certas práticas e formas de pensar
ligadas a ela na vida das pessoas do século XIX. Para isso, o cotidiano pode ser
uma perspectiva importante para se ensinar tal processo. Propomos, assim, um
conjunto de aulas a partir de guias interpretativos para alguns contos. Tais guias se
apresentam como uma forma possível de entender a realidade histórica
representada nos textos de Machado de Assis e, a partir dela, ensinar História em
sala de aula. Evidentemente, tal interpretação não é definitiva, os contos escolhidos
podem ser abordados de diversas outras formas e a partir de objetivos educacionais
variados. Também não se tem a pretensão de discutir de forma mais profunda as
61

intenções de Machado de Assis ao escrever cada uma das narrativas selecionadas.


A abordagem dos contos foi realizada com a finalidade de acessar e compreender
realidades passadas, com base nas leituras que Schwarz e Chalhoub realizaram da
obra machadiana. Todos os guias interpretativos e atividades sugeridas para serem
realizadas a partir deles com os alunos foram organizados em um material didático
apresentado de forma anexa a este trabalho.
Apesar disso, como professores, sabemos que entre o planejamento das
aulas e o conhecimento de fato construído pelos alunos sempre há um distância a
ser percorrida. Muitas vezes há diversos obstáculos no caminho, fazendo com que
nem sempre se alcancem os objetivos da forma como era inicialmente esperada.
Neste sentido, nos propomos aqui a aplicar em sala de aula parte das atividades
elaboradas. Apresentamos no próximo item, portanto, o guia interpretativo para o
conto Pai Contra Mãe (1906), seguido de uma cópia das atividades entregues aos
alunos e de uma descrição e discussão do desenvolvimento e dos resultados das
aulas sobre a obra.

3.2 Aplicando as atividades: guia interpretativo para o conto Pai contra Mãe

Tema: A condição escrava no Segundo Reinado

A escravidão, embora esteja presente em boa parte das histórias de


Machado de Assis, aparece de forma mais direta em toda sua brutalidade na
obra do escritor somente após a Abolição. São dois os contos que tratam da
violência e injustiça dessa instituição. O mais marcante é Pai contra mãe,
publicado em 1906 na obra Relíquias da Casa Velha80.
O conto é um bom instrumento para se ensinar a condição escrava
durante o Segundo Reinado. Embora esta tenha se alterado muito ao longo do
período, ser escravo foi, durante todo o tempo em que durou a escravidão, ser
um sujeito privado legalmente de liberdade, considerado pela lei uma
“mercadoria”. No entanto, como bem tem sido explorado pela historiografia

80
O outro conto que aborda de forma explicita a escravidão é “O caso da vara”, publicado pela primeira vez em
1891 no jornal carioca Gazeta de Notícias.
62

recente81, o escravo também era uma figura ativa no contexto histórico da


escravidão, protagonista na construção das condições do cativeiro e na
abertura de possibilidades para a liberdade. Tais características essenciais da
“experiência do cativeiro” podem ser construídas em sala de aula a partir de
situações e informações presentes no conto. Comecemos pelo início do texto.
Nele, Machado descreve alguns dos meios utilizados pelos proprietários para
exercerem o controle sobre os cativos:

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá


sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns
aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o
ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara
de folha de flandres. A máscara fazia perder o vício da
embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três
buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás
da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a
tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do
senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam
dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas.
Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem
sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os
funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas.82

A narrativa é carregada de ironia, um recurso estilístico bastante


empregado pelo escritor e geralmente utilizado para criticar certos aspectos da
sociedade representada, como a violência da escravidão e a visão das elites
sobre ela. Nos parágrafos seguintes são descritas outras formas de controle
social: o ferro ao pescoço, “aplicado aos escravos fujões”; “apanhar pancada”
ou uma simples repreensão. Contra tais punições, a fuga tornou-se uma prática
corrente, como também eram os anúncios de escravos fugidos nos jornais:

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem


lho levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais

81
A partir principalmente dos anos 1980, houve uma mudança importante na historiografia sobre a escravidão
no Brasil. Até então centrada na violência e repressão como forma de manutenção do sistema escravista, nas
últimas décadas foram produzidos importantes trabalhos que procuraram resgatar o papel ativo do escravo
como sujeito de sua própria história. Para uma visão mais ampla desta virada nos estudos sobre a escravidão,
ver CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990. .
82
Os contos utilizados foram todos acessados on-line, por isso não há paginação nas citações. É possível
acessar estes e a obra completa do escritor no site www.machadodeassis.ufsc.br. Acessado pela última vez em
25 de julho de 2016.
63

do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro


por onde andava e a quantia de gratificação. [...] Protestava-se
com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.

A descrição de determinadas condutas e situações relacionadas à


escravidão presentes nos primeiros parágrafos do conto serve para situar o
leitor no contexto em que se desenrolará a narrativa principal da obra. Mas a
partir destes poucos trechos é possível compreender o cotidiano violento
vivenciado por milhares de pessoas escravizadas. A condição escrava se
efetivava a partir de certas práticas diárias, repetitivas na vida das pessoas.
Uma delas era o uso de objetos de punição e castigo, que serviam para
modelar o comportamento dos cativos, mantê-los submissos, obedientes, com
o objetivo de evitar as fugas e quaisquer outras ações que pudessem
prejudicar seu trabalho ou a autoridade dos senhores. A violência era um
elemento fundamental da relação entre senhores e escravos e na manutenção
do sistema escravista. Outro aspecto comum era a presença diária das fugas
nos jornais e em outros espaços públicos de anúncio, o que mostra uma
resistência à dominação dos senhores. A imprensa era utilizada como forma de
controle e recaptura dos escravos. Tal situação estava presente no dia a dia
das pessoas que andassem nas ruas e tivessem o hábito de ler periódicos.
Com isso, afirmava-se a condição legal da escravidão, bem como a tentativa
de “coisificação” do escravo diante da população, tornando-o e considerando-o
propriedade, algo que tinha somente valor financeiro.
A partir de então, conta-se a história de Cândido Neves, homem pobre
que tinha como ofício “pegar escravos fugidos”. A história toda se passa na
cidade do Rio de Janeiro, na década de 1850. Vivendo de favores e aluguel,
sem dinheiro suficiente para garantir as necessidades mais básicas de
sobrevivência e na iminência de ter que entregar um filho recém nascido para
adoção em função desta extrema pobreza, Cândido deposita suas esperanças
na captura de uma escrava - de nome Arminda – pelo que o dono
recompensava com alta quantia. A história termina com uma cena cruel e
trágica: em meio a lutas, choros e pedidos de socorro, Arminda é capturada e
devolvida ao seu senhor, descrito pela escrava como “muito mau”, que
“provavelmente a castigaria com açoites”. Cândido pode manter seu filho,
64

graças ao dinheiro recebido, enquanto Arminda, grávida, “levada do medo e da


dor”, perde o seu em consequência de um aborto.
Em Pai contra a mãe, Machado de Assis permite uma compreensão
densa e complexa das relações entre os diferentes grupos sociais. Nem
Cândido, tampouco Arminda são membros de classes abastadas da
sociedade, mas as dificuldades de sobrevivência e a instituição da escravidão
impõem a opressão de um sobre o outro. A pobreza e dependência aproximam
os personagens, mas a noção de propriedade os distancia. A escravidão não
se manteve durante tanto tempo apenas por causa do controle direto exercido
pelos senhores sobre seus escravos, mas também pela aceitação de grande
parte da sociedade, inclusive pessoas livres e pobres, de sua legitimidade 83. A
legalidade da escravidão não se efetivava somente pela existência de leis, mas
de como elas se afirmavam no dia a dia das pessoas - através de objetos,
anúncios, recompensas, ofícios - fazendo com que muitos indivíduos
enxergassem no escravo uma propriedade, contribuindo para a manutenção e
reforço deste sistema de dominação.
Apesar disso, ao pensar no conto como recurso didático para o ensino
de história, é preciso levar em conta alguns fatores. Machado o publicou quase
vinte anos após o fim legal da escravidão. A história se passa na metade do
século XIX, provavelmente em época anterior à memória e mesmo ao tempo
de vida de boa parte de seus leitores. A ênfase dada à violência e brutalidade
da escravidão pode muito bem ter como objetivo lembrar ou mesmo apresentar
para o leitor um mundo no qual esse não estava bem situado e que, para o
autor, deveria ser conhecido. Mas, na história de Pai contra mãe, há várias
possibilidades de se abordar a escravidão para além da visão do “escravo
coisa”, já tão contestada pela historiografia84. O conto é também uma
importante ferramenta para se analisar a subjetividade dos escravos e suas
capacidades de negociar as condições do cativeiro em seu favor. As fugas,

83
Tal situação pode ser interpretada a partir da definição de alienação de Heller e Kosik, discutida no item 1.3,
em que os autores compreendem o cotidiano como o espaço em que, por meio de uma série de práticas
repetitivas, os aparatos de controle e disciplinarização impostos pela ordem dominante vão fragmentando o
comportamento das pessoas em diferentes papéis sociais, contribuindo para que se mantenham e reforcem
sistemas de dominação como, por exemplo, a escravidão.
84
O termo é uma referência à “teoria do escravo-coisa”, criada por Chalhoub na obra Visões da Liberdade, em
que o autor critica a ideia de passividade e anomia dos escravos presente nos estudos anteriores sobre a
escravidão no Brasil. Para mais detalhes, ver CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade... Op. Cit.
65

cada vez mais frequentes durante o Segundo Reinado, ajudavam a corroer a


legitimidade do escravismo, além, é claro, de ser o efeito explícito da não
adequação dos cativos ao papel social que lhes era imposto. A partir delas, é
possível compreender que o escravo não era um sujeito passivo, totalmente
submetido às condições desumanas do sistema. A violência excessiva não era
aceita, o castigo frequente poderia ter o efeito contrário ao desejado pelo
senhor: em vez de submeter o escravo, inviabilizar sua autoridade sobre ele.
Ou seja, sem negociações para a abertura de brechas de liberdade a
escravidão não teria se mantido por muito tempo85. Muitos, assim como
Arminda, fugiam, reagiam, se articulavam socialmente, enfim, resistiam. Não
apenas uma resistência organizada e de grandes dimensões como a criação
de Quilombos, mas também em pequenos momentos cotidianos. Assim, ao
mesmo tempo em que Machado ressalta o exercício costumeiro da violência,
em suas páginas é possível ver também uma cidade em que escravos circulam
pelas ruas sozinhos, com certa autonomia, fogem com frequência,
desenvolvem relações familiares e de amizade - às vezes com os próprios
senhores - que os protegem em momentos de dificuldade e permitem amparo
para aqueles que, como Arminda, evadem. Tais situações são evidências da
subjetividade destas pessoas, das práticas de improvisação dentro de uma
estrutura opressora, das possibilidades de resistência em uma sociedade que
os considerava objetos de direito, enfim, do protagonismo destes sujeitos no
enfraquecimento da escravidão. Tais características também devem estar
presentes em uma situação de aprendizagem que tenha como objetivo
compreender a condição escrava no Segundo Reinado.

3.3 Apresentação das atividades desenvolvidas em aula

Atividades:

85
Tais negociações podem ser lidas a partir das noções de estratégia e tática desenvolvidas por Certeau, já
discutidas no item 1.3. Constituíam-se em formas de manter a dominação dos senhores sobre os escravos
diante do enfraquecimento de seu poder de mando, mas ao mesmo tempo criavam fissuras no sistema de
dominação que poderiam ser exploradas pelos cativos para a vivência de práticas cotidianas que contrariavam
o papel social esperado deles pelos senhores, contribuindo ainda mais para debilitar as bases da escravidão.
66

A leitura do conto tem como objetivo compreender algumas das condições de


vida e experiências de cativeiro das pessoas escravizadas nos ambientes urbanos
durante o período da História do Brasil conhecido como Segundo Reinado (1840-
1889). Para isso, responda as questões a seguir:

1. O título do conto, Pai contra mãe, sugere quais são os dois personagens
principais da história. Identifique-os e anote algumas informações contidas no texto a
respeito de cada um deles:

a)__________________________________________________________________
___________________________________________________________________

b)__________________________________________________________________
___________________________________________________________________

2. Quais as semelhanças entre os personagens? Em que se diferenciam?


___________________________________________________________________
___________________________________________________________________

Releia o trecho a seguir e responda as questões:


A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras
instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício.
Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de
folha de flandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por
lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era
fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação
de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que
matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade
certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se
alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à
venda, na porta das lojas.
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira
grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e
67

fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal.
Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com
pouco era pegado.

3. Quais eram os objetos utilizados para castigar os escravos? Quais os objetivos


destes castigos?
___________________________________________________________________
__________________________________________________________________

Releia o trecho a seguir e responda as questões:


Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem
todos gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e
nem todos gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida;
havia alguém de casa que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além
disso, o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói.
A fuga repetia-se, entretanto. Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de
contrabando, apenas comprado no Valongo86, deitava a correr, sem conhecer as
ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não raro, apenas ladinos 87, pediam ao
senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora, quitandando88.
Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse.
Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o
defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação.
Quando não vinha a quantia, vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou
"receberá uma boa gratificação". Muitas vezes o anúncio trazia em cima ou ao lado
uma vinheta, figura de preto, descalço, correndo, vara ao ombro, e na ponta uma
trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei contra quem o acoutasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas
por ser instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta

86
Região portuária do Rio de Janeiro onde desembarcavam os navios que traziam os escravos do continente
africano.
87
Escravos nascidos no Brasil ou já bem adaptados ao país, que falavam o português e conheciam as condições
de trabalho.
88
Muitos escravos não trabalhavam diretamente para seus proprietários, eram “alugados” para outras
pessoas, para quem faziam serviços diversos. Esse era muitas vezes o destino daqueles que não aceitavam a
autoridade e as condições de trabalho impostas por seu senhor.
68

outra nobreza implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício
por desfastio ou estudo; a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para
outros trabalhos, o acaso, e alguma vez o gosto de servir também, ainda que por
outra via, davam o impulso ao homem que se sentia bastante rijo para pôr ordem à
desordem.

4. De acordo com o texto, as relações entre todos os senhores e escravos eram


iguais? Justifique sua resposta.
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________

5. Por que muitas vezes a punição era “moderada”?


___________________________________________________________________
___________________________________________________________________

6. Quais eram os procedimentos adotados pelos senhores para reaver os escravos


fugidos?
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________

7. De acordo com o conto, os escravos aceitavam a violência praticada pelos


senhores? Justifique sua resposta.
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________

8. A partir do trecho, quais as diferentes situações que poderiam ser experimentadas


por um escravo que fugisse?
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________

Releia o trecho a seguir e responda as questões:


[...] Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de coisas remotas, via
passar um escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o
69

nome, o dono, a casa deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do


vicioso. [...]
[...] Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em
escravo fiel que ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa
vez capturou um preto livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de
murros que lhe deram os parentes do homem. [...]
[...] Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As gratificações
pela maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma,
porém, subia a cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto
e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão
do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora,
porém, a vista nova da quantia e a necessidade dela animaram Cândido Neves a
fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de manhã a ver e indagar pela Rua e
Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela parecia andar, segundo o
anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda se lembrava de ter
vendido uma onça de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que tinha os sinais
indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu
cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta
ou barata.

9. Após a fuga, como era o dia a dia de Arminda e dos outros escravos que fugiam?
E os escravos “fiéis” que andavam sozinhos a serviço, por que será que não fugiam?
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________

10. Em determinado momento, Cândido Neves desiste de procurar Arminda. A que


ele atribui as dificuldades para encontrar a escrava? O que isso indica sobre as
relações sociais estabelecidas pelos escravos?
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________

11. Como era a reação dos escravos capturados por Candinho? Por que nenhuma
pessoa ajudou Arminda quando ela pediu socorro?
70

3.4 Descrição das aulas

As atividades apresentadas anteriormente foram aplicadas em quatro turmas


de 8º ano do Ensino Fundamental na cidade de Gramado/RS: duas de uma escola
estadual no centro da cidade, Turma A, composta de 28 alunos e Turma B, com 26
estudantes; uma de escola também estadual localizada na zona rural, Turma C, com
14 alunos; e outra de escola da rede municipal, Turma D, com apenas 7 alunos. No
total, foram 41 trabalhos entregues - já que nas turmas maiores as atividades
puderam ser respondidas em duplas ou trios - com um tempo de duração que variou
entre três e quatro períodos. Ao longo das aulas, na medida do possível, foram feitas
algumas anotações de comentários, perguntas e demais reações dos alunos,
considerados importantes por demonstrarem como se deu sua interação e
entendimento da história do conto. Com a ajuda destas anotações, foi descrito o
desenvolvimento das atividades. Em seguida, é realizada uma análise do material
escrito respondido pelos estudantes. Para esta etapa, as perguntas das folhas de
atividades foram agrupadas em duas categorias, de acordo com os objetivos
educacionais propostos.
As aulas se iniciaram com a leitura do conto pelo professor, acompanhada
pelos alunos no texto impresso que receberam. A leitura foi longa, em torno de 25
minutos, mas em todas as turmas foi ouvida com atenção. Ao final, os estudantes
foram questionados se haviam gostado da história e se gostariam de trabalhar com
outros contos como aquele, ao que responderam positivamente. A leitura foi
interrompida uma única vez, na Turma D, após o quarto parágrafo. Nesta parte, em
que se descrevem os objetos de punição aplicados aos escravos, a aluna V. F. 89 fez
a seguinte afirmação: “nossa os escravos eram ‘tipo bicho’”. Como foi uma
afirmação, e não uma pergunta, prosseguimos a leitura sem mais nenhuma parada.
O comentário foi registrado posteriormente por ser revelador da impressão que o
conto causa em seu início, do escravo como uma mercadoria viva. Esta condição,
aliás, estava bastante presente no imaginário dos alunos sobre como era ser
escravo. Em comentários realizados após a leitura de todo o texto, os estudantes
que se manifestaram ressaltaram a questão da violência como elemento mais
marcante da escravidão. Esta parece ser a imagem mais veiculada das experiências
89
Para preservar a identidade dos alunos, seus nomes foram abreviados com as letras iniciais do primeiro e
último nome.
71

de cativeiro, não apenas na escola, mas nas outras influências culturais com os
quais os alunos convivem e que produzem representações sobre o passado, como
as novelas e filmes sobre o assunto.90 Tal característica, facilmente identificada no
início do conto e já presente na mentalidade dos alunos, fazia parte da condição
escrava que se pretendia ensinar, mas era importante que a ela se somassem
outros componentes essenciais que caracterizavam o ser escravo, como a sua
agência e subjetividade, para além desta que era uma visão predominantemente
senhorial.

3.5 Análise dos resultados: compreendendo a condição legal da escravidão

As questões 1, 2, 3, 5, 6 e 11 tinham como objetivo principal compreender os


aspectos legais da condição escrava, como a privação da liberdade e a noção de
propriedade associada a estes indivíduos, que os diferenciavam do resto da
população. Para a resolução da primeira questão - a identificação e descrição dos
personagens - solicitou-se que os alunos atentassem para as condições de vida e as
relações sociais desenvolvidas por Cândido Neves e Arminda. Sobre o primeiro, os
alunos ressaltaram questões como sua pobreza, o ofício de pegar escravos, o fato
de viver de aluguel ou de favor e morar com a tia e a esposa. Sobre Arminda,
personagem central para nossos objetivos, segue abaixo uma tabela com as quatro
características mais frequentes nas respostas:

Escrava 33 menções
Fugitiva 28 menções
Estava grávida 22 menções
Trabalhava/vivia com seu senhor/dono 14 menções
Possuía um amante/relacionamento 13 menções

Além das respostas acima, outras características apareceram em menos


trabalhos, como o fato de ser pobre. Apenas dois alunos não identificaram Arminda

90
No momento em que as atividades foram realizadas, estava sendo veiculada na Rede Globo a novela
“Liberdade, liberdade”, sobre a qual foram feitas muitas referências pelos alunos. Além disso, em uma das
turmas os alunos comentaram que haviam assistido nas aulas de história do ano anterior o filme “12 anos de
escravidão” (2013), do qual, pelos comentários, a violência sobre os escravos era o elemento que permaneceu
mais forte na memória dos estudantes.
72

como a personagem principal, mas sim Clara, a mulher de Cândido Neves. Todos os
treze trabalhos que mencionaram a existência de um amante na vida da escrava
foram produzidos nas Turmas A e B. Em ambas, duas alunas perguntaram em voz
alta se a personagem apenas se relacionava com seu senhor. Na Turma B, após o
questionamento, outra aluna imediatamente respondeu que “se ela tava grávida é
porque tinha alguém”. Sem dar uma resposta definitiva, foi lida novamente para os
alunos a passagem do conto em que Candinho acreditava que Arminda havia sido
acolhida por um amante91. Na Turma A o mesmo trecho foi lido após a pergunta. As
intervenções das alunas parecem ter influenciado parte das turmas, pois em mais da
metade dos trabalhos entregues – 13 de 22 - foi identificado um possível
relacionamento afetivo da escrava, como pode ser visto nas respostas a seguir:

“A mãe era Arminda que trabalhava para seu senhor porém fugiu e
conviveu com outras pessoas e ficou grávida”. (R. B. e G. R.)

“Ela era escrava, provavelmente ela tinha uma relação, era pobre,
estava grávida, ela morava com seu senhor.” (G. M)

“Arminda, escrava, tinha um amante, era fugitiva, vivia com seu


senhor e depois fugiu.” (A. C.)

“Arminda, pobre, vivia com seu amante após ter fugido.” (K. N.)

“Arminda – escrava, tinha um filho e no texto sugere que ela tinha


um amante”. (P. G. e E. D.)

O possível vínculo de Arminda com outras pessoas, além de seu senhor, é


um ponto importante que deve ser trabalhado na história, pois é revelador das
diferentes relações sociais estabelecidas pelos escravos e como tais relações
constituíam-se em táticas92 de resistência cotidiana dentro do cativeiro. Não se
esperava que os alunos percebessem tal situação já na primeira atividade, mas o
fato de ter acontecido, ainda que não por todos, é um indício da compreensão da
condição escrava para além de seu aspecto jurídico, ou seja, de propriedade.

91
“Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido Neves andara a pesquisá-la
sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que algum amante da escrava a houvesse recolhido”.
92
Táticas no sentido empregado por Certeau, compreendida no caso específico do conto como movimentos
cotidianos de liberdade aproveitados pelos escravos, constituindo-se em possibilidades de resistência sem, no
entanto, objetivar ou provocar a ruptura com o sistema escravista.
73

Na segunda questão, o objetivo era que os alunos percebessem a situação de


pobreza que aproximava os personagens e a noção de escravidão que os
diferenciava. As respostas foram agrupadas da seguinte maneira:

Arminda era escrava e Cândido livre 30


Ambos tinham filhos 28
Eram pobres 20
Outras 8

A maior parte identificou a diferença principal entre os personagens e um


número menor conseguiu apontar as semelhanças. Em relação à terceira atividade,
todos os 41 trabalhos reconheceram facilmente os objetos de punição usados pelos
senhores. A maioria assinalou a possibilidade de fuga como o motivo principal de
seu uso, mas muitos mencionaram a utilização da máscara de flandres com o
objetivo de evitar que os escravos bebessem e roubassem seus senhores. Tal
questão tinha como finalidade que os alunos compreendessem os aparelhos como
forma cotidiana de controle comportamental, adequando o escravo a um
determinado papel social que estivesse de acordo com os interesses dos
proprietários.
A questão número 5 – Por que muitas vezes a punição era “moderada”? –
tinha dois objetivos: compreender o escravo do ponto de vista senhorial, sua noção
de um bem com valor financeiro, mas também introduzir a percepção da importância
de suas ações para obter melhores condições de cativeiro. As respostas dos alunos
foram classificadas de acordo com dois critérios: aquelas que indicam que os
estudantes alcançaram os dois objetivos – escravo propriedade e sujeito - e os que
identificaram apenas um dos dois.

Escravo propriedade e sujeito 16


Escravo propriedade 17
Escravo sujeito 8
74

Tomaram-se como exemplos de respostas que alcançaram os dois objetivos


aquelas que mencionam o valor atribuído pelo senhor ao seu escravo e também a
possibilidade de fuga como forma de evitar a violência, como as abaixo:

“Porque se ele batesse no escravo ele pode morrer ou até mesmo


querer fugir novamente e também poderia acabar ficando doente, o
que faria com que ele não produzisse e nem trabalhasse. Assim o
dono não ia lucrar nada”. (E. K. e W. S.)

“A punição era moderada pois se eles batessem muito neles eles


perderiam a eficácia, perdendo a utilidade no trabalho e também
fugiam para não apanhar”. (R. B. e G. R.)

“Para os escravos não fugirem e eles (os senhores) continuarem com


os escravos”. (D. C. e G. A.)

Ainda que respostas como estas indiquem uma visão predominantemente


senhorial, pois encaram a fuga como um prejuízo para o senhor - o que, é
importante mencionar, é a ideia indicada claramente pelo narrador do conto93 - o fato
de registrarem a fuga associa ao escravo a possibilidade de criar condições mais
favoráveis de cativeiro. Claro que tal noção pode não ter sido construída de forma
consciente no conhecimento dos estudantes. Como dito anteriormente, neste
momento inicial da atividade o objetivo era apenas introduzir a percepção de que os
escravos tinham protagonismo na construção de suas circunstâncias de vida. Tal
situação foi mais bem explorada em outras questões, como se verá adiante. De
outro lado, nos resultados abaixo, os alunos perceberam o destino do escravo como
sendo exclusivamente dependente da vontade do senhor e do valor financeiro que
este via no cativo:

“Pois punindo severamente os escravos poderiam matá-lo de forma


que ele perdesse um escravo tendo de comprar outro”. (N. O. e G.
F.)

“Porque os senhores não queriam matar seus escravos para não


perder sua mão de obra”. (A. A. e E. P.)

“Porque ‘o dinheiro também dói’. E também porque às vezes o dono


não era mau”. (L. P. e J. S.)

93
“[...] o sentimento da propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói”.
75

“Porque algumas vezes os senhores eram bons, porque os escravos


dependendo do castigo o escravo poderia morrer ou ficar com
sequelas graves que iria diminuir o desempenho”. (G. S. e D. J.)

A enorme quantidade de respostas que mencionam a possibilidade de o


escravo morrer ou ficar aleijado por causa das punições não tem relação direta com
o enredo do conto, já que em nenhum momento da história há referência a
personagens que apanham até morrer ou que ficam com sequelas em função dos
castigos. Tal imagem de violência extrema contra os cativos é resultado de outras
representações sobre esta época, e não da trama de Pai contra mãe, reforçando a
ideia já discutida anteriormente de que o elemento da violência é o mais presente
quando se fala em escravidão.
Nas outras oito respostas, é mencionada apenas a possibilidade de fuga
como o motivo principal das punições “moderadas”. Não se aborda em nenhuma
delas prováveis prejuízos desta evasão para os senhores, portanto, indicando uma
leitura desta prática mais próxima do ponto de vista do escravo, distanciando-se da
noção de propriedade transmitida pelo narrador.
Na pergunta número 6 – Quais eram os procedimentos adotados pelos
senhores para reaver os escravos fugidos? – quase todos colocaram a resposta
esperada: a publicação de anúncios e o pagamento de recompensas. Tal questão,
bem como a segunda pergunta da número 11 – Por que nenhuma pessoa ajudou
Arminda quando ela pediu socorro? – tinham como objetivos promover uma
compreensão dos meios cotidianos de afirmação da legalidade da escravidão diante
da população, na medida em que tanto a frequência dos anúncios quanto o fato de
as pessoas não ajudarem Arminda indicam o reconhecimento popular da noção de
propriedade e de privação da liberdade dos escravos. A resposta mais comum para
a número 11 foi a menção à condição de escrava fugitiva de Arminda. Além disso,
outros comentários demonstram a compreensão da situação jurídica do escravo,
como os reproduzidos abaixo:

“Porque capturar escravos era algo normal”. (A. A. e E. P.)

“Porque ela era escrava e já imaginavam o que estava acontecendo.


E estariam agindo contra a lei”. (A. R.)

“Porque a lei não permitia ajudar os escravos fugidos”. (A. G.)


76

“Compreendiam que ela havia fugido do seu senhor”. (E. C.)

3.6 Análise dos resultados: compreendendo a agência e subjetividade dos


escravos

Nas questões 4, 7, 8, 9 e 10, esperava-se que os alunos compreendessem


outras características importantes das experiências vividas pelos escravos: a
existência de diferentes relações estabelecidas com seus senhores, as liberdades
de movimento que tinham nas cidades e o papel importante que a possibilidade de
fuga tinha na construção de condições melhores de cativeiro.
Em relação à primeira - De acordo com o texto, as relações entre todos os
senhores e escravos eram iguais? Justifique sua resposta. - seguem-se algumas
resoluções:

“Não, às vezes algum de casa servia de padrinho, e o mesmo dono


não era mau”. (G. H.)

“Não, porque uns eram maus e outros não”. (L. G. e A. F.)

“Não, alguns senhores batiam, castigavam os escravos e outros os


defendiam”. (P. G. e E. D.)

“Não porque tinha senhores bons e maus alguns deixavam os


escravos saírem e outras coisas e outros eram bons por medo do
escravo”. (G. S.)

“Não, porque nem todos os senhores eram maus, tinha senhores que
deixavam os escravos trabalharem fora, e outros senhores eram
bons porque tinham medo dos escravos”. (K. M. e A. B)

“Não, porque às vezes as relações eram boas, quando eles eram


protegidos por alguém da casa”. (G. M.)

“Não, porque alguns eram violentados, alguém da casa servia de


padrinho, alguns era repreendidos, alguns fugiam mas voltavam”. (A.
C.)

Como visto, as respostas são simples, algumas copiadas do conto. Mas o


importante é que neste momento se compreendesse a possibilidade de diferentes
relações entre senhores e escravos. Nenhum trabalho apresenta a ideia de uma
única relação possível, como a da violência, por exemplo. Percebe-se que em geral
os alunos seguem a ideia transmitida pelo narrador do conto de que um tratamento
77

melhor ou pior dependia apenas da bondade ou maldade do senhor. Mas o fato de


muitos terem mencionado a proteção que parte dos escravos recebia em casa e
alguns, ainda que poucos, terem ressaltado o fato de escravos poderem sair e
trabalharem fora – duas situações que aparecem no conto – revela um início de
entendimento das margens de autonomia e sociabilidade existentes no cotidiano de
muitos cativos. As respostas para a questão número 8 – Quais as diferentes
situações que poderiam ser experimentadas por um escravo que fugisse? – indica
por parte da maioria dos alunos, novamente, a compreensão das múltiplas
possibilidades de vida dentro do cativeiro. Os resultados foram agrupados em duas
categorias: os que mencionaram o castigo como único destino do escravo que
fugisse e os que ressaltaram a possibilidade de outras situações:

Castigo 10
Outras situações 28
Não respondeu 3

Aqueles que responderam apenas com a possibilidade de o escravo ser


punido, em geral, mencionaram os instrumentos e formas de punição descritos no
início do conto. Os que descreveram outras experiências também apontaram a
probabilidade de castigo, mas ressaltaram a existência de outros cenários, como se
percebe nas respostas abaixo:

“Poderia ser capturado e apanhar ou apenas ser repreendido para


não fugir novamente ou ser recolhido por um amigo ou amante”. (E.
L.)

“Eles podiam ficar na casa de alguém. Eles podiam apanhar ou


receber castigo”. (V. S.)

“O ferro ao pescoço, outro ao pé. Mas nem todos eram castigados


quando fugiam”. (L. D.)

“Alguns apanhavam, outros eram defendidos por alguém da casa do


senhor”. (B. K.)

“Os escravos que fugissem seriam fugitivos para sempre. E os que


fossem capturados novamente teriam algum castigo ou seriam
repreendidos, para que não fugissem novamente”. (P. G. e E. D.)
78

“Os que eram capturados geralmente apanhavam, outros eram


repreendidos, já alguns voltavam por conta própria, o que levava-os
a ter uma relação melhor com o seu senhor”. (E. K. e W. S.)

Na questão sete – De acordo com o conto, os escravos aceitavam a violência


praticada pelos senhores? Justifique sua resposta. - o papel ativo dos escravos
aparece de forma mais clara para os alunos. Das 41 respostas, apenas três diziam
que, apesar de não gostarem de apanhar, os escravos eram obrigados a aceitar a
violência. Outros treze trabalhos responderam negativamente sem, no entanto,
justificar a resposta. E finalmente, a maioria (25) identificou a fuga como evidência
do não consentimento de uma relação baseada em agressões, como nas respostas
abaixo:

“Não, quando a violência era muito forte eles fugiam”. (D. C. e G. A.)

“Não porque muitos escravos fugiam do senhor para não apanhar


mais do senhor.” (A. G.)

“Muitos não aceitavam a violência e fugiam com frequência”. (P. G. e


E. D.)

A fuga não pode ser considerada uma prática cotidiana do escravo. Mas está
presente no cotidiano da cidade, dos senhores e de pessoas como Cândido, que
dependem dela para sua sobrevivência. Está diariamente nos jornais e demais
folhas públicas, no medo dos senhores, no trabalho de Candinhos. Além disso, a
fuga de um escravo, ou simplesmente a possibilidade de que isso pudesse
acontecer, poderia ter como consequência a transformação do dia a dia dos cativos.
Uma transformação que muitas vezes era positiva para eles, pois, presente nos
temores dos senhores, evitá-la exigia abrir negociações com os escravos. O
resultado de tais negociações era a existência de cotidianos mais “livres” vividos por
eles. Alguns destes movimentos de liberdade são explorados mais
aprofundadamente nas questões 9 – Após a fuga, como era o dia a dia de Arminda e
dos outros escravos que fugiam? E os escravos fiéis que andavam sozinhos a
serviço, por que será que não fugiam? - e 10 – Em determinado momento, Cândido
Neves desiste de procurar Arminda. A que ele atribui as dificuldades para encontrar
a escrava? O que isso indica sobre as relações sociais estabelecidas pelos
escravos? Estas duas atividades, que encerram a análise das respostas produzidas
79

pelos alunos, são momentos fundamentais dos objetivos educacionais propostos,


pois é a etapa em que se compreende de forma mais clara os espaços de
autonomia conquistados pelas pessoas escravizadas e as táticas de sobrevivência
que permitiam melhores condições de vida. Vejamos algumas respostas para a
questão número 9:

“Ela tinha uma vida aparentemente normal, e os escravos não tinham


um local para ficar e não apanhavam.” (N. O. e G. F.)

“O dia a dia era normal, ela caminhava nas ruas, ia nas lojas como
se não estivesse fugindo de nada. Eram fiéis pois os donos tratavam
bem”. (P. G. e E. D.)

“Eles viviam um dia a dia normal como os outros escravos, os


escravos fiéis não fugiam porque eram bem tratados”. (L. G. e A. F.)

“Era normal, pois pelo que percebemos ela caminhava pelas ruas
como uma pessoa livre, mas não era seu caso. Porque talvez eles
soubessem que assim sem fugir eles poderiam andar na rua
normalmente e teriam um pouco de liberdade. Também pode ser que
fugir os deixariam na rua pois não teriam aonde ir”. (E. K. e W. S.)

“Ela andava pelas ruas tranquila, comprando coisas. Para ganhar


confiança do senhor, porque se fugiam e voltavam o senhor não
confiaria mais nele.” (A. C.)

“Eles andavam normalmente. E eles não fugiam porque sabiam que


não iam apanhar”. (G. D.)

As respostas revelam três fatores importantes da compreensão dos alunos.


Primeiro: a dinâmica da vida social dos escravos, que circulavam normalmente pelas
cidades, confundindo-se na multidão com livres, libertos e, no caso dos escravos
fugidos, como se estivessem nas ruas a serviço de seu proprietário. Segundo: as
experiências de cativeiro mais favoráveis vividas por alguns escravos, em que não
havia violência e estes possuíam brechas de liberdade em seu dia a dia, de forma
que não vissem a necessidade de fugir. Terceiro: a importância do desenvolvimento
de relações sociais para possíveis resistências às condições de cativeiro, pois,
segundo alguns alunos, os escravos não fugiam porque não teriam para onde ir,
diferente de Arminda que, aparentemente, tinha um amante. Todas estas situações
foram exploradas com os estudantes a partir de passagens do conto em que
Arminda, depois de fugida, é vista circulando por algumas ruas, comprando
mercadorias em uma farmácia, quando é abordada por Cândido e volta-se para ele
80

“sem cuidar malícia”, e a parte em que Cândido “Mais de uma vez, a uma esquina,
conversando de coisas remotas, via passar um escravo como os outros, e descobria
logo que ia fugido [...]”. Tais trechos do conto, que caracterizam diferentes
experiências vividas por Arminda e outros personagens escravos, permitiram que a
maior parte dos alunos compreendesse de forma adequada a subjetividade das
pessoas escravizadas e as práticas de improvisação desenvolvidas dentro da
estrutura opressora que representava o sistema escravista.
Por fim, a partir da questão número 10, é possível abordar de forma mais
profunda as articulações sociais desenvolvidas pelos escravos e a importância
destas relações como táticas de resistência dentro do sistema escravista. Tais
situações reforçam a agência destas pessoas no enfraquecimento dos mecanismos
de controle social impostos pela ordem dominante. No total, em 24 trabalhos os
alunos atribuem as dificuldades de encontrar Arminda após sua fuga à possibilidade
de esta ter um amante, como indica a passagem do conto já referida
anteriormente94. Para responder a segunda pergunta desta mesma questão, muitos
interpretaram o relacionamento de Arminda como parte de um fenômeno mais geral,
qual seja, as relações sociais desenvolvidas pelos escravos, conforme algumas
respostas a seguir:

“Porque ele achou que algum amante dela podia ter recolhido ela.
Que eles podiam não só andar pelas ruas mas sim conversar com
outras pessoas conviver com mais pessoas sem ser seu dono”. (E.
K. e W. S.)

“Pois achava que algum amante da escrava a houvesse recolhido.


Isso indica que eles não se relacionavam só com seus donos e
outros escravos. Mas também com outras pessoas”. (P. G. e E. D.)

“Porque ele achava que ela tinha um amante e tendo um amante ela
teria um lugar para ficar”. (G. S.)

“Porque Cândido achou que Arminda tinha ficado com o seu amante,
que os escravos não ficavam só na casa do seu senhor por exemplo
os escravos saíam para comprar algo e acabavam se relacionando
com outras pessoas”. (A. G.)

“Ele achava que ela vivia com um amante, isso indica que eles se
comunicavam com outras pessoas”. (A. C.)

94
Ver a nota número 91.
81

A questão do amante já havia sido abordada por alguns em questões


anteriores, como a número 1, em que se descrevem características dos
personagens. Porém agora tal situação aparece de modo mais claro para um
número maior de alunos e com a possibilidade de explorá-la de outra forma: o
relacionamento afetivo de Arminda permitiu à escrava encarar de uma maneira
diferente sua situação de dominação, encontrando, por exemplo, proteção após sua
fuga. Além disso, tal episódio fez com que os alunos compreendessem melhor a
dinâmica da vida social de boa parte dos escravos urbanos, que estabeleciam laços
de amizade com outras pessoas. Tal processo evidencia outras características
importantes da condição escrava no século XIX, objetivo principal das aulas.

3.7 Avaliação da atividade

Ao longo das aulas, o diálogo entre professor e alunos esteve presente


constantemente. Dúvidas foram tiradas todo o tempo, trechos do conto foram lidos e
relidos em diversas ocasiões e termos utilizados pelo escritor tiveram que ser
explicados algumas vezes. A partir dos questionamentos feitos pelos alunos, pôde-
se perceber que sua maior dificuldade foi compreender que não havia uma resposta
única para a maior parte das questões. O conto e as perguntas sobre a história
tratavam justamente da existência de diversas possibilidades de vida que poderiam
ser experimentadas pelos escravos. Boa parte dos alunos seguia sempre uma
tendência de apontar a violência como elemento único ou preponderante das
relações entre senhores e escravos. Assim, no diálogo estabelecido com os
estudantes, houve um esforço em ressaltar no enredo do conto as múltiplas
experiências de cativeiro, sendo a violência também uma delas, mas não a única e,
em muitos momentos, não a principal.
A partir desta constatação, seria interessante que se tivesse realizado antes
da leitura do conto uma abordagem para conhecer em detalhes as características
das representações dos alunos sobre os conhecimentos relacionados à escravidão
no Brasil. O 8º Ano do Ensino Fundamental não é o primeiro momento em que se
aborda tal conteúdo na escola. Além disso, este é um tema sobre o qual os alunos
recebem fora do ambiente escolar diversas representações sociais ao longo de sua
vida, como em novelas e filmes. Uma abordagem preliminar como esta
82

provavelmente evidenciaria a imagem que boa parte dos estudantes tem do escravo
como um indivíduo constantemente submetido à violência e com poucos espaços de
ação mais autônoma em seu dia a dia. O objetivo de estudar a escravidão a partir de
uma perspectiva da vida cotidiana tinha como um dos objetivos principais justamente
demonstrar que a violência não era o único elo que prendia os indivíduos ao
cativeiro. Mesmo sem obter a liberdade, havia dentro do sistema escravista margens
de movimento que permitiam aos escravos agirem de forma mais autônoma, o que
contribuía também para o enfraquecimento deste sistema.
No desenvolvimento das atividades e especialmente na correção das
questões foi possível identificar um processo de construção gradual da situação
histórica estudada. Noções equivocadas sobre o conteúdo foram sendo construídas
e desconstruídas durante as aulas. Duas frases de alunos de turmas diferentes são
bons exemplos de como se deu esta evolução do conhecimento histórico: na
primeira, dita na primeira aula e já mencionada anteriormente, a aluna V. F. percebia
o escravo como um “bicho”; no segundo comentário, dito na última aula das
atividades, o aluno G. S. afirmou que “então não era tão ruim assim ser escravo”. Tal
afirmação evidencia as dificuldades de se trabalhar o tema da escravidão em sala de
aula. Trata-se de um tema complexo também na historiografia, marcado por amplo
debate com importantes divergências sobre as complicadas relações entre
dominadores e dominados. Para alguns estudantes, passou-se de um extremo a
outro, do escravo submisso e subjugado para uma ideia de que ser escravo não era
“tão ruim”. Provavelmente, para um aluno que tinha uma única imagem da
escravidão, baseada em violências e privações, perceber o escravo como um
indivíduo que muitas vezes dispunha e explorava de brechas de liberdade em seu
cotidiano tenha provocado tal mudança radical de pensamento. O entendimento
expressado pelo aluno não está adequado, afinal, por mais margens de autonomia
que os indivíduos pudessem dispor, a escravidão sempre envolvia uma série de
privações e possíveis violências. No entanto, a transformação do escravo “coisa” em
escravo “pessoa” pode ser considerada um ponto de êxito importante das aulas.
Ainda assim, as duas frases, bem como todos os trabalhos que não alcançaram
totalmente os objetivos esperados, demonstram a importância da intervenção do
professor durante e no encerramento das atividades. É preciso identificar o que não
83

ficou bem compreendido e dar uma forma final ao conhecimento a partir, por
exemplo, de exposições orais e de comentários feitos nos trabalhos avaliados.
Apesar disso, além da situação histórica específica que foi trabalhada em sala
de aula – a condição escrava no Segundo Reinado – a escolha pelo cotidiano como
perspectiva e da literatura como recurso didático tinha outro objetivo: a compreensão
de que a vida dos sujeitos está inserida em um campo de possibilidades, que varia
de acordo com uma série de condições que estão além da vontade dos indivíduos.
Esta, como discutido anteriormente, era uma das grandes dificuldades dos alunos no
início da atividade. Ao final, a maior parte dos estudantes percebeu que estava
analisando vidas humanas que, como tal, são marcadas por múltiplas experiências
possíveis, e que estas dependem das circunstâncias históricas dadas em
determinado espaço/tempo. Este foi um dos grandes êxitos da atividade, possível
graças ao referencial teórico, que permitiu analisar de forma mais densa as relações
sociais, e ao material empírico escolhido, que aproximou os alunos da subjetividade
dos personagens e das trajetórias viáveis em um contexto histórico especifico.
Assim, tornou-se possível compreender parte dos condicionamentos que limitam as
condições de vida dos seres humanos, neste caso, das pessoas escravizadas no
Brasil da segunda metade do século XIX.
Por fim, toda a experiência em sala de aula descrita acima provocou a
revisão de alguns pontos do trabalho. Algumas questões mostraram-se repetitivas
ou desnecessárias para o cumprimento dos objetivos educacionais propostos. Além
disso, o trabalho com o conto teve desdobramentos, muitos em função de
solicitações dos alunos, como a análise de imagens e de outros documentos que
pudessem ser relacionados ao conteúdo da narrativa. Assim, as atividades
sugeridas para serem desenvolvidas sobre o conto Pai contra mãe que aparecem no
material didático apresentado ao final da pesquisa possuem algumas diferenças em
relação às que foram aplicadas e analisadas neste capítulo. É importante ressaltar
que estas, assim como as questões dos outros contos, são apenas sugestões, pois
sabemos que no ensino de História, assim como na pesquisa, não há uma forma
única e definitiva de abordar o mesmo material. Cabe ao professor/pesquisador
tratá-lo de acordo com os seus objetivos e com os interesses e necessidades de seu
público.
84

Considerações Finais

No primeiro capítulo, abordamos algumas das discussões que foram


realizadas sobre a questão da vida cotidiana em diferentes áreas do conhecimento.
Buscamos na teoria da História, Filosofia e Ciências Sociais as origens dos estudos
sobre a vida cotidiana, bem como as preocupações dos pesquisadores que se
dedicaram a compreender esta dimensão da vida humana. Como vimos, embora
muito tempo relegada ou ausente da pesquisa histórica, a vida cotidiana ocupou nas
últimas décadas um espaço importante no trabalho dos historiadores. Tal mudança
só foi possível devido às importantes transformações recentes na historiografia, bem
como à apropriação de reflexões efetuadas por outras disciplinas. Apesar disso, as
pesquisas da área de ensino de História indicam ainda uma pequena utilização
desta perspectiva de análise na abordagem dos conteúdos em sala de aula. Neste
sentido, a partir do conhecimento científico produzido sobre a questão da vida
cotidiana, o objetivo principal do presente trabalho foi apresentá-la como uma
perspectiva útil e importante para ser explorada pelos professores da educação
básica. Para isso, propomos uma caracterização possível do cotidiano, realizada a
partir de definições teóricas elaboradas pelos filósofos Agnes Heller, Karel Kosik e
pelo historiador Michel de Certeau. A partir delas, espera-se que o professor de
História que desejar incorporar o cotidiano como perspectiva de análise para a
elaboração e ensino de seus conteúdos possa identificar e compreender em
diferentes materiais empíricos as características essenciais desta dimensão da vida
humana.
No segundo capítulo, discutimos as possibilidades e potencialidades de se
utilizar a Literatura, mais especificamente os contos de Machado de Assis, como o
material empírico por meio do qual se pode ensinar História pela perspectiva do
cotidiano. Como visto, o tratamento que será dispensado pelo professor aos textos
literários varia de acordo com uma série de fatores, como o tipo de texto, as
condições de sua produção, a forma como a realidade está representada nele e os
objetivos educacionais. Assim, são necessários alguns cuidados semelhantes aos
que o historiador tem com outros documentos que transforma em fontes. Apesar
disso, a escolha pela Literatura como recurso em sala de aula raramente se faz
apenas pelo conteúdo de suas representações, mas também e principalmente pela
85

forma como as representa. Trata-se de um documento diferente, em muitos


aspectos parecido com a narrativa histórica, e com vantagens em relação a outros
documentos mais tradicionais que o tornam um valioso recurso para o trabalho em
sala de aula. Em relação aos contos de Machado de Assis, conforme estudos do
crítico literário Roberto Schwarz e do historiador Sidney Chalhoub, o escritor
construiu uma interpretação de sua época coerente e verossímil com o
funcionamento da estrutura social do país, permitindo ao professor utilizá-los como
meios para o ensino de temas da História do Segundo Reinado Brasileiro.
Dos temas possíveis de serem trabalhados em sala de aula a partir dos
contos do autor, optou-se por aqueles que têm relação com a matéria central da
prosa literária machadiana: o escravismo e o paternalismo. Duas situações históricas
interligadas e fundamentais para a compreensão da realidade histórica do Brasil.
Neste sentido, elaboramos um material didático com propostas de leituras e
atividades para quatro contos. O Caderno do professor, além de pretender contribuir
para a prática docente na educação básica, tem como objetivo ser um exemplo do
argumento defendido ao longo do trabalho, de que é possível e importante ensinar
História, pela perspectiva da vida cotidiana, a partir dos contos de Machado de
Assis.
Uma das atividades deste material, sobre a obra Pai contra Mãe, foi aplicada
em turmas de 8º ano do Ensino Fundamental. A descrição das aulas e avaliação dos
resultados obtidos com os alunos está presente no capítulo três. Nele, buscamos
identificar o ponto final - e decisivo - do processo de construção da história ensinada:
esta nunca se encerra na elaboração das atividades pelo professor, mas sim no
trabalho prático com seu público, os alunos, que têm um papel ativo e fundamental
na produção do conhecimento escolar. Na interação do professor com os alunos,
etapa principal da atividade docente, nem sempre os objetivos traçados são
alcançados da forma esperada. Esta é uma das especificidades do conhecimento
escolar, nele há uma longa e sinuosa estrada a ser percorrida entre o planejamento
das aulas e a construção de fato do conhecimento pelos alunos. Apesar disso,
espera-se ter contribuído com esta pesquisa, ainda que de forma muito limitada,
para uma iluminação um pouco melhor de algumas das rotas possíveis de serem
trilhadas nesta estrada.
86

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Raul Costa de Carvalho

Ensino de História,
Cotidiano e Literatura
Escravidão e Paternalismo em contos de Machado de Assis

Caderno do Professor
ENSINO DE HISTÓRA, COTIDIANO E LITERATURA
Escravidão e Paternalismo em contos de Machado de Assis
Caderno do Professor
Material produzido para o Curso de Mestrado Profissional em Ensino de História da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Autor: Raul Costa de Carvalho
Orientador: Prof. Dr. Benito Bisso Schmidt

Imagem de capa: Jean-Baptiste Debret, Le collier de fer: châtiment des fugitifs, 1835.
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin, São Paulo.

Porto Alegre, RS. 2016

91
Caro (a) Professor (a):

Este material foi elaborado com a finalidade de apresentar sugestões de atividades


para serem realizadas em sala de aula. O conteúdo proposto são alguns aspectos do
período da história brasileira conhecido como Segundo Reinado (1840-1889).
Geralmente estudado pela primeira vez no 8º ano do Ensino Fundamental, costuma-se
abordar este período em sala de aula a partir de temas como: as disputas entre Liberais e
Conservadores pelo poder político, a Rebelião Praieira, a Guerra do Paraguai, a economia
cafeeira, o processo de industrialização, o fim gradual da escravidão e a imigração
europeia, quase sempre privilegiando aspectos estruturais e institucionais. Propomos
aqui outros meios de se ensinar parte da história do Segundo Reinado, utilizando a
interpretação dessa realidade histórica desenvolvida por Machado de Assis em alguns de
seus contos e a vida cotidiana como perspectiva para compreendê-la. Para isso, dividimos
este material em três partes:

1. Ensino de História e Cotidiano;


2. Ensino de História e Literatura;
3. Contos de Machado de Assis nas aulas de História.

Bom trabalho!

Raul Costa de Carvalho


Professor de História

92
Parte 1 Ensino de História e Cotidiano

Durante muito tempo, as Muitos pesquisadores, do


experiências diárias dos seres humanos conhecimento histórico e também de
não foram consideradas importantes na outras áreas, como a Filosofia e Ciências
pesquisa histórica. As ações do dia a dia, Sociais, desenvolveram definições
aquilo que era habitual na vida das teóricas que permitem compreender a
pessoas, como as condições de moradia, vida cotidiana. Portanto, ao pensarmos no
de alimentação, o uso de objetos e os cotidiano como uma perspectiva
costumes, por seu caráter repetitivo e importante também para o ensino de
impessoal, foram relegados como História, é preciso se apropriar das
desnecessários para a compreensão das reflexões que possam contribuir para o
sociedades. Foi principalmente a partir estudo dessa disciplina a partir de tal
dos anos 1980 que muitos pesquisadores dimensão da vida humana. Os filósofos
começaram a olhar com mais atenção Agnes Heller, Karel Kosik e o historiador
para essa dimensão da vida humana, Michel de Certeau são exemplos de
enxergando nela um novo campo de pensadores que ajudam a responder a
possibilidades para se compreender difícil pergunta “O que é a vida
melhor o passado. Desde então, a partir cotidiana?”.
da apropriação das contribuições das A partir das considerações destes
mudanças na historiografia que pesquisadores, bastante diferentes entre
aconteceram neste período, bem como de si, sobretudo o último em relação aos dois
reflexões de outros campos do primeiros, podemos definir a vida
conhecimento, os historiadores que se cotidiana como as situações e os atos
dedicaram à vida cotidiana puderam repetitivos que se sucedem de forma
desenvolver importantes trabalhos, imediata e superficial no dia a dia,
abordando-a como uma perspectiva útil garantindo a sobrevivência e reprodução
para a análise histórica. Neles, a vida social dos indivíduos. Imediata porque
cotidiana é tomada como uma dimensão nela há uma relação direta entre
privilegiada para se compreender as pensamento e ação. Esta relação se
experiências concretas dos indivíduos, produz de forma automática, espontânea.
sobretudo as diferentes relações de Superficial porque os indivíduos, em
dominação e resistência nas quais estão geral, não compreendem as relações que
inseridas as classes populares em produzem os fenômenos cotidianos.
diferentes espaços/tempos. Vivem o cotidiano de forma natural, sem

93
Parte 1 – Ensino de História e Cotidiano

questionar seu sentido. No entanto, para próprias, está sempre inserido em um


ir além desta definição básica, muito mundo modelado a partir de uma série
próxima do senso comum, de condições herdadas. No entanto, estas
compreendendo tal dimensão em toda a só se constituem de fato no próprio viver,
sua complexidade, é preciso levar em na prática, no curso do qual a realidade é
consideração outras de suas dominada, reproduzida e transformada.
características. A grande divergência entre Heller,
Em comum, os três autores Kosik e Certeau está nas relações de
concordam com a universalidade e dominação e resistência vividas na esfera
historicidade da vida cotidiana, o que cotidiana. Os dois primeiros dirigem seus
significa que em toda época histórica que estudos partindo de uma mesma
possamos analisar, o cotidiano está preocupação: o fenômeno da alienação.
presente na vida de todos os indivíduos, Em Heller, todo ser humano já nasce
mas se transforma de acordo com o inserido em uma cotidianidade, a qual
período, o lugar e o grupo social. As vai aprendendo a partir do convívio com
relações afetivas e condições de os diferentes grupos (família, escola,
habitação, por exemplo, são situações que pequenas comunidades) que fazem a
sempre existiram, mas foram vividas de mediação entre o indivíduo e os costumes
diferentes formas ao longo do tempo. e normas. Atinge o amadurecimento
Além disso, em um mesmo quando adquire todas as habilidades
espaço/tempo, nem todas as pessoas imprescindíveis para a vida cotidiana do
vivem o cotidiano do mesmo modo. Ele é grupo social que pertence na sociedade
experimentado de maneiras distintas em questão. Portanto, as condições
pelos indivíduos conforme o grupo social prévias de sua existência estão colocadas
ao qual pertencem. Kosik e Heller desde o início de sua vida. Nessa
abordam também a característica apropriação dos elementos da
dialética do cotidiano. Para os autores, na cotidianidade de seu grupo e sociedade,
vida diária, não há uma fronteira rígida os indivíduos vão se fragmentado em
entre o que é estrutura e o que é ação papéis sociais, construídos, reforçados e
humana. O cotidiano é o conjunto de mantidos por aparatos de controle e
relações sociais produzidas e disciplinarização pouco visíveis, como
experimentadas a partir do encontro ideologias, leis, instituições, entre outros.
entre o particular e o global, entre o Quanto mais identificado com seu papel
singular e o coletivo, entre os sujeitos e as ou papéis sociais, mais precisamente se
estruturas. Para Kosik, o ser humano revela a alienação. Nestes autores, o
nunca nasce em condições que lhe são cotidiano é a esfera onde a alienação se

94
Parte 1 – Ensino de História e Cotidiano

gera, é o momento fundante deste todas compreendem o cotidiano como um


fenômeno. A cotidianidade se manifesta espaço significativo da experiência
como anonimato e como imposição de humana, conferindo uma dimensão
um poder impessoal que dita a cada política às práticas diárias, na medida em
indivíduo seu comportamento, seu modo que estão inseridas em uma espécie de
de pensar, seus gostos. jogo de força entre dominantes e
Por outro lado, Michel de Certeau dominados. Além disso, pensam tal
analisa como dentro da própria vida perspectiva como privilegiada para
cotidiana é possível o desenvolvimento de compreender a relação entre estrutura e
formas de subversão às imposições ação e o papel dos sujeitos sociais.
dominantes e diferentes meios de Portanto, incorporar ao trabalho do
alienação. O autor identifica nas relações professor de História a perspectiva do
de dominação que constituem o cotidiano cotidiano significa um enriquecimento
certos momentos onde os indivíduos analítico importante, relativizando o peso
podem exercer sua liberdade em maior do reducionismo estrutural e
ou menor grau. Os mecanismos de institucional, e permitindo reconstituir de
controle dos comportamentos diários forma mais completa o espaço e o tempo
possuem sempre algumas fissuras, das práticas sociais. A noção de cotidiano
brechas em que os seres humanos podem que é proposta aqui para a abordagem de
resistir e lutar contra certas imposições diferentes conteúdos em sala de aula é
sociais. O cotidiano é, pois, para o autor, composta dessas características básicas
um espaço de resistência. Nele as pessoas desenvolvidas pelos autores analisados:
comuns desenvolvem procedimentos, um cotidiano histórico, heterogêneo,
chamados de táticas, que de forma dialético, espaço de dominação e de
inconsciente e temporária jogam com os resistência.
mecanismos de disciplinarização
impostos pela ordem dominante por meio
de estratégias, alterando-os de acordo
com suas necessidades.
A partir destas reflexões sobre a
vida cotidiana, é possível compreender
que se trata de uma perspectiva
extremamente complexa, que possui um
grande valor para a compreensão e
explicação de diferentes realidades.
Embora existam abordagens diferentes,

95
Parte 1 – Ensino de História e Cotidiano

Notas sobre os autores


Agnes Heller nasceu em Budapeste,
Hungria, em 1929. Estudou filosofia na
Universidade Eötvös Loránd, na mesma
cidade. Ligada ao campo teórico marxista,
integrou a chamada Escola de Budapeste,
formada pelos discípulos mais próximos de
Georg Lukács. Atualmente, leciona na New
School for Social Research, em Nova York.

“A vida cotidiana é a vida de todo homem.


Todos a vivem, sem nenhuma exceção, HELLER, Agnes. O cotidiano e a
qualquer que seja seu posto na divisão do história. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz
trabalho intelectual e físico”. e Terra, 2011. p. 31.

Karel Kosik nasceu em Praga, atual


República Tcheca, em 1926. Estudou
Filosofia e Sociologia na Universidade
Carolina de Praga. Assim como Heller,
também integrou a Escola de Budapeste,
ligada ao campo teórico marxista. Morreu
em 2003.

“De certo modo a cotidianidade desvenda a


verdade da realidade, pois a realidade à
margem da vida de cada dia seria uma
KOSIK, Karel. Dialética do Concreto,
irrealidade transcendente, isto é, uma
São Paulo: Paz e Terra, 1976. p. 83.
configuração sem poder nem eficácia [...].”

Michel de Certeau nasceu em Chambéry,


França, em 1925. Estudou Filosofia, História,
Teologia e Letras Clássicas nas Universidades de
Grenoble, Lyon e Paris. Morreu em 1986,
deixando uma importante produção para o
conhecimento histórico.

“Se é verdade que por toda a parte se estende e se


precisa a rede da “vigilância”, mais urgente ainda
é descobrir como é que uma sociedade inteira não
se reduz a ela: que procedimentos populares
(também “minúsculos” e cotidianos) jogam com CERTEAU, Michel de. A invenção
os mecanismos da disciplina e não se conformam do cotidiano: artes de fazer.
com ela a não ser para alterá-los [...]” Petrópolis: Vozes, 1994. p. 41.

96
Parte 2 – Ensino de História e Literatura
Parte 2 Ensino de História e Literatura

O ensino de História pela narrativa e o uso mais frequente da


perspectiva do cotidiano pode ser feito de Literatura como fonte histórica.
variadas formas. Como ocorre com Em relação ao primeiro ponto, nas
qualquer tema, o professor tem a sua últimas décadas do século passado houve
disposição uma enorme quantidade de uma reaproximação entre Literatura e
materiais possíveis de serem trabalhados História devido à preocupação dos
com os alunos. Entre eles estão os textos historiadores em repensar a ligação entre
literários. forma e conteúdo no desenvolvimento de
Para desvelar a melhor forma de seus trabalhos. Neste processo, os modelos
trabalhar o texto literário em sala de aula de linguagem utilizados pela criação
é preciso conhecer parte das reflexões que artística e outros aspectos durante muito
se estabeleceram sobre a relação entre tempo negligenciados pela pesquisa
Literatura e História. Os limites entre os histórica como a capacidade imaginativa
dois campos estiveram durante muito do sujeito que escreve voltaram a fazer
tempo no centro dos debates sobre a parte da historiografia. Assim, a Literatura
natureza do conhecimento histórico. contribuiu para enriquecer e
Depois de séculos considerados complexificar a narrativa histórica,
duas formas de um mesmo gênero, a permitindo ao historiador pensar de
fronteira entre ambos tornou-se outras formas, por exemplo, o conjunto
extremamente rígida no século XIX, variado de possibilidades que compõem a
quando se iniciou um esforço para vida de seus personagens, bem como as
colocar a História entre os domínios do diferentes temporalidades que se
conhecimento científico. Até então, não entrecruzam nas trajetórias dos
havia uma distinção radical entre as indivíduos.
ciências e as letras, foi a noção de verdade Outro processo que aproximou as
que criou uma barreira separando-as. As duas disciplinas, porém de forma
fronteiras entre Literatura e História diferente, foi a maior utilização de textos
voltaram a se flexibilizar somente no final literários como fontes históricas. A
do século XX, quando as duas práticas de Literatura, ou “as literaturas”, também são
representação e escrita passaram a ser vestígios do passado, compõe parte da
pensadas a partir de aspectos em comum, documentação por meio da qual o
levando-se em conta dois processos historiador pode se valer para acessar a
distintos e fundamentais: a aproximação vida humana em outras épocas e construir
entre uma e outra como formas de conhecimentos sobre ela.

97
Parte 2 – Ensino de História e Literatura

Tomando-a, portanto, como fonte diferentes no processo de ensino proposto.


histórica, ao analisar um texto literário o O tratamento que recebe no trabalho com
historiador precisa, como faz com os alunos deve variar de acordo com o
qualquer outro documento, adotar uma texto específico e com os objetivos
série de procedimentos que permitam educacionais. Em geral, a Literatura
situá-lo em seu contexto e compreender nunca é o material escolhido apenas pelas
seu processo de construção. O primeiro informações sobre a realidade que dela
passo para isso é pensar o tipo de podem ser retiradas, mas principalmente
literatura que será trabalhada. Não há pela forma como representa esta
uma definição universal de literatura, ela realidade. Afinal, é uma fonte diferente,
assume formas e objetivos diversos que está mais próxima da narrativa histórica
estão relacionados aos interesses e que qualquer outro documento. Tal
condições históricas de cada grupo em proximidade entre ambas as formas de ter
diferentes épocas e lugares. As questões acesso a diferentes períodos da trajetória
mais formais, como o gênero literário, são humana faz dela uma importante
importantes. Romances, “históricos” ou ferramenta para conhecer realidades
não, poesias, contos, crônicas, entre passadas, permitindo nos conectarmos às
outros, possuem diferenças estéticas que diferentes formas de sentir, gostar, pensar,
também estão relacionadas ao seu viver em geral, de um modo que nos
conteúdo. Em seguida, é preciso aproxima dos dramas, sonhos,
questionar a obra escolhida: que dificuldades, esperanças e tensões dos
representações de mundo social o escritor seres humanos do passado. Mas antes do
criou? Por que as criou desta forma? Até trabalho com os alunos, ao utilizar o texto
que ponto são verossímeis? como um vestígio do passado, é preciso
Assim, é tarefa do historiador adotar alguns critérios semelhantes
investigar os aspectos principais que àqueles que o historiador tem com os
envolvem o processo de construção e documentos que converte em fontes, sob o
sobrevivência do texto literário. Somente risco de promover uma aprendizagem
com estes cuidados básicos, comuns à marcada por anacronismos ou mesmo
análise de outros documentos, poderá se inverdades, contribuindo para a formação
aproximar de forma mais verossímil dos e manutenção de memórias e identidades
significados históricos presentes na obra, fundamentadas em conhecimentos
compreendendo a representação de comuns.
mundo desenvolvida pelo escritor. A partir das preocupações
A partir destas reflexões, em sala apontadas pela Teoria da história sobre a
de aula, a Literatura pode assumir formas forma de compreender a realidade social

98
Parte 2 – Ensino de História e Literatura

na Literatura, impõe-se aqui pensar relações de trabalho, de vizinhança, de


especificamente a respeito da obra amizade, familiares e afetivas. Os pobres,
literária escolhida para nossa proposta de marginalizados, dependem do favor para
ensino: os contos de Machado de Assis. sua sobrevivência. Os membros das
Importantes estudiosos da prosa classes dominantes sabem disso, e utilizam
machadiana, como o crítico literário esta situação de acordo com seus
Roberto Schwarz e o historiador Sidney interesses. Já para Chalhoub, também é
Chalhoub, a partir de investigações sobre possível identificar na obra de Machado
as condições de produção de suas obras, de Assis os espaços de liberdade que
bem como os aspectos internos ligados à existiam nesta estrutura de dominação
forma e conteúdo de seus textos, social. Segundo o autor, os personagens
percebem a narrativa presente nos dominados – escravos, dependentes,
romances e contos do escritor como uma subalternos – violam constantemente a
representação de mundo coerente e ideologia senhorial, jogando de diferentes
verossímil de parte da estrutura social formas com a autoridade dos senhores, de
brasileira. Assim, em sala de aula, a modo que tem seus interesses e
interpretação que Machado fez da necessidades atendidos. Assim, de forma
realidade de seu tempo pode ser utilizada dissimulada, os dependentes vão
como um recurso importante para se alcançando seus objetivos, e ao mesmo
compreender parte das experiências tempo, inconscientemente, abalando
vividas pelas pessoas no Brasil do século alguns alicerces de sua dominação.
XIX. A historiografia nomeou de
Para Schwarz e Chalhoub, a paternalismo estas relações de
matéria central da obra machadiana dependência, dominação e resistência
foram as relações de dependência, presentes na estrutura social do Segundo
baseadas em uma cultura do favor, que Reinado e representadas por Machado de
regiam a vida da maioria da população no Assis em seus romances e contos. Tal
período do Segundo Reinado, colocando a noção está inserida em um amplo debate
existência de uma enorme massa de recente, formulada e reformulada nas
homens e mulheres pobres sob a últimas décadas em importantes trabalhos
submissão dos grandes proprietários (de sobre a escravidão e as relações de
terras, de bens, de escravos). De acordo trabalho livre no Brasil Colônia e Império.
com Schwarz, esta cultura do favor se Para Schwarz e Chalhoub, trata-se de uma
efetiva na obra machadiana por meio de complexa ideologia senhorial, síntese de
uma série de mecanismos que regulam os violência e benignidade, fortemente
comportamentos dos indivíduos nas fundamentada no escravismo, em que o

99
Parte 2 – Ensino de História e Literatura

senhor era autoridade inquestionável e


possuiria poder total sobre seus
dependentes. Mas, apesar disso, continha
uma série de brechas em seu
funcionamento que eram constantemente
exploradas e alargadas por aqueles que
estavam no elo mais fraco destas relações
de poder.
A partir destes elementos
principais dos textos de Machado de Assis,
o tema que propomos para as aulas de
História está relacionado a esta matéria
central da obra machadiana: a dissolução
do escravismo e as consequências deste
para a elaboração do paternalismo. A
partir de uma série de contos,
selecionados de acordo com o objetivo
educacional escolhido, podemos
compreender algumas características da
escravidão no Brasil e as permanências de
certas práticas e formas de pensar ligadas
a ela na vida das pessoas do século XIX.
Para isso, o cotidiano pode ser uma
perspectiva importante para se ensinar tal
processo. Apresentamos, assim, um
conjunto de atividades a partir de guias
interpretativos para alguns contos. Tais
guias se apresentam como uma forma
possível de entender a realidade histórica
representada nos textos de Machado de
Assis e, a partir dela, ensinar História na
sala de aula.

100
Parte 2 – Ensino de História e Literatura

Notas sobre os autores

Sidney Chalhoub nasceu no Rio de Janeiro,


em 1929. Estudou História na Universidade
de Lawrence e fez doutorado na Universidade
Estadual de Campinas. Atualmente, leciona
História da América Latina e do Caribe na
Universidade de Harvard, Estados Unidos.

“Em suma, a vigência do enredo da


dominação paternalista não significava que os
subordinados estavam passivos, incapazes de
perseguir objetivos próprios, impossibilitados
de afirmar a diferença. Ao contrário, apesar
do perigo constante de invasão e rapina por
seus algozes, e decerto por isso mesmo, o CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis:
desafio de Helena, Luís Garcia, Capitu e tantos historiador. São Paulo: Companhia das
outros era afirmar a diferença no centro Letras, 2003. p. 39.
mesmo dos rituais da dominação senhorial.”.

Roberto Schwarz nasceu em Viena, Áustria.


Veio ao Brasil aos quatro meses de idade.
Estudou Ciências Sociais na Universidade de
São Paulo. É doutor em Estudos Latino-
Americanos (Estudos Brasileiros) pela
Universidade de Paris III. Foi professor de
Teoria Literária na Universidade Estadual de
Campinas entre 1978 a 1992.
“O favor é a nossa mediação quase universal
– e sendo mais simpático do que o nexo
escravista, a outra relação que a colônia nos
legara, é compreensível que os escritores
tenham baseado nele a sua interpretação do SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as batatas:
Brasil [...]” Forma literária e processo social nos inícios
do romance brasileiro. São Paulo: Duas
Cidades, Editora 34, 2012. p. 16-17.

101
Guia interpretativo – Pai contra Mãe
Parte 3 Contos de Machado de Assis nas aulas de História

Pai contra mãe


Tema: A condição escrava no Segundo Reinado

Guia interpretativo

A escravidão, embora esteja presente em boa parte das histórias de Machado de


Assis, aparece de forma mais direta em toda sua brutalidade na obra do escritor somente
após a Abolição. São dois os contos que tratam da violência e injustiça dessa instituição. O
mais marcante é Pai contra mãe, publicado em 1906 na obra Relíquias da Casa Velha1.
O conto é um bom instrumento para se ensinar a condição escrava durante o
Segundo Reinado. Embora esta tenha se alterado muito ao longo do período, ser escravo foi,
durante todo o tempo em que durou a escravidão, ser um sujeito privado legalmente de
liberdade, considerado pela lei como uma “mercadoria”. No entanto, como bem tem sido
explorado pela historiografia recente2, o escravo também era uma figura ativa no contexto
histórico da escravidão, protagonista na construção das condições do cativeiro e na abertura
de possibilidades para a liberdade. Tais características essenciais da “experiência do
cativeiro” podem ser construídas em sala de aula a partir de situações e informações
presentes no conto. Comecemos pelo início do texto. Nele, Machado descreve alguns dos
meios utilizados pelos proprietários para exercer o controle sobre os cativos:

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras


instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo
ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também
a máscara de folha de flandres. A máscara fazia perder o vício da
embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois
para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado.
Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era
dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam

1 O outro conto que aborda de forma explicita a escravidão é “O caso da vara”, publicado pela primeira vez
em 1891 no jornal carioca Gazeta de Notícias.
2 A partir principalmente dos anos 1980, houve uma mudança importante na historiografia sobre a escravidão

no Brasil. Até então centrada na violência e repressão como forma de manutenção do sistema escravista, nas
últimas décadas foram produzidos importantes trabalhados que procuraram resgatar o papel ativo do escravo
na criação de melhores condições de vida. Para uma visão mais ampla desta virada nos estudos sobre a
escravidão, ver CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na
Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

102
Guia interpretativo – Pai contra Mãe

dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal


máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o
grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à
venda, na porta das lojas.3

A narrativa é carregada de ironia, um recurso estilístico bastante empregado pelo


escritor para criticar certos aspectos da sociedade representada, como a violência da
escravidão e a visão das elites sobre ela. Nos parágrafos seguintes são descritas outras
formas de controle social: o ferro ao pescoço, “aplicado aos escravos fujões”; “apanhar
pancada” ou uma simples repreensão. Contra tais punições, a fuga tornou-se uma prática
corrente, como também eram os anúncios de escravos fugidos nos jornais:

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho
levasse. Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o
nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a
quantia de gratificação. [...] Protestava-se com todo o rigor da lei contra
quem o acoutasse.

A descrição de determinadas condutas e situações relacionadas à escravidão


presentes nos primeiros parágrafos do conto serve para situar o leitor no contexto em que se
desenrolará a narrativa principal da obra. Mas a partir destes poucos trechos é possível
compreender o cotidiano violento vivenciado por milhares de pessoas escravizadas. A
condição escrava se efetivava a partir de certas práticas diárias, repetitivas na vida das
pessoas. Uma delas era o uso de objetos de punição e castigo, que serviam para modelar o
comportamento dos cativos, mantê-los submissos, obedientes, com o objetivo de evitar as
fugas e quaisquer outras ações que pudessem prejudicar seu trabalho ou a autoridade dos
senhores. A violência era um elemento fundamental da relação entre senhores e escravos e
na manutenção do sistema escravista. Outro aspecto comum era a presença diária das fugas
nos jornais e em outros espaços públicos de anúncio, o que mostra uma resistência à
dominação dos senhores. A imprensa era utilizada como forma de controle e recaptura dos
escravos. Tal situação estava presente no dia a dia das pessoas que andassem nas ruas e
tivessem o hábito de ler periódicos. Com isso, afirmava-se a condição legal da escravidão,
bem como a tentativa de “coisificação” do escravo diante da população, tornando-o e
considerando-o propriedade, algo que tinha somente valor financeiro.
A partir de então, conta-se a história de Cândido Neves, homem pobre que tinha
como ofício “pegar escravos fugidos”. A história toda se passa na cidade do Rio de Janeiro,
na década de 1850. Vivendo de favores e aluguel, sem dinheiro suficiente para garantir as
necessidades mais básicas de sobrevivência e na iminência de ter que entregar um filho

3
Os contos utilizados foram todos acessados on-line, por isso não há paginação nas citações. É possível acessar
estes e a obra completa do escritor no site www.machadodeassis.ufsc.br. Acessado pela última vez em 25 de
julho de 2016.
103
Guia interpretativo – Pai contra Mãe

recém nascido para adoção em função desta extrema pobreza, Cândido deposita suas
esperanças na captura de uma escrava - de nome Arminda – pelo que o dono recompensava
com alta quantia. A história termina com uma cena cruel e trágica: em meio a lutas, choros
e pedidos de socorro, Arminda é capturada e devolvida ao seu senhor, descrito pela escrava
como “muito mau”, que “provavelmente a castigaria com açoites”. Cândido pode manter
seu filho, graças ao dinheiro recebido, enquanto Arminda, grávida, “levada do medo e da
dor”, perde o seu em consequência de um aborto.
Em Pai contra a mãe, Machado de Assis permite uma compreensão densa e complexa
das relações entre os diferentes grupos sociais. Nem Cândido, tampouco Arminda são
membros de classes abastadas da sociedade, mas as dificuldades de sobrevivência e a
instituição da escravidão impõem a opressão de um sobre o outro. A pobreza e dependência
aproximam os personagens, mas a noção de propriedade os distancia. A escravidão não se
manteve durante tanto tempo apenas por causa do controle direto exercido pelos senhores
sobre seus escravos, mas também pela aceitação de grande parte da sociedade, inclusive
pessoas livres e pobres, de sua legitimidade4. A legalidade da escravidão não se efetivava
somente pela existência de leis, mas de como elas se afirmavam no dia a dia das pessoas -
através de objetos, anúncios, recompensas, ofícios - fazendo com que muitos indivíduos
enxergassem no escravo uma propriedade, contribuindo para a manutenção e reforço deste
sistema de dominação.
Apesar disso, ao pensar no conto como recurso didático para o ensino de história, é
preciso levar em conta alguns fatores. Machado o publicou quase vinte anos após o fim
legal da escravidão. A história se passa na metade do século XIX, provavelmente em época
anterior à memória e mesmo ao tempo de vida de boa parte de seus leitores. A ênfase dada à
violência e brutalidade da escravidão pode muito bem ter como objetivo lembrar ou mesmo
apresentar para o leitor um mundo no qual esse não estava bem situado e que, para o autor,
deveria ser conhecido. Mas, na história de Pai contra mãe, há várias possibilidades de se
abordar a escravidão para além da visão do “escravo coisa”, já tão contestada pela
historiografia5. O conto é também uma importante ferramenta para se analisar a
subjetividade dos escravos e suas capacidades de negociar as condições do cativeiro em seu
favor. As fugas, cada vez mais frequentes durante o Segundo Reinado, ajudavam a corroer a
legitimidade do escravismo, além, é claro, de ser o efeito explícito da não adequação dos

4
Tal situação pode ser interpretada a partir da definição de alienação de Heller e Kosik, discutida na primeira
parte do material, em que os autores compreendem o cotidiano como o espaço em que, por meio de uma série
de práticas repetitivas, os aparatos de controle e disciplinarização impostos pela ordem dominante vão
fragmentando o comportamento das pessoas em diferentes papéis sociais, contribuindo para que se
mantenham e reforcem sistemas de dominação como, por exemplo, a escravidão.
5 O termo é uma referência à “teoria do escravo-coisa”, criada por Sidney Chalhoub na obra Visões da

Liberdade, em que o autor critica a ideia de passividade e anomia dos escravos presente nos estudos anteriores
sobre a escravidão no Brasil. Para mais detalhes, ver CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade... Op. Cit.
104
Guia interpretativo – Pai contra Mãe

cativos ao papel social que lhes era imposto. A partir delas, é possível compreender que o
escravo não era um sujeito passivo, totalmente submetido às condições desumanas do
sistema. A violência excessiva não era aceita, o castigo frequente poderia ter o efeito
contrário ao desejado pelo senhor: em vez de submeter o escravo, inviabilizar sua
autoridade sobre ele. Ou seja, sem negociações para a abertura de brechas de liberdade a
escravidão não teria se mantido por muito tempo6. Muitos, assim como Arminda, fugiam,
reagiam, se articulavam socialmente, enfim, resistiam. Não apenas uma resistência
organizada e de grandes dimensões como a criação de Quilombos, mas também em
pequenos momentos cotidianos. Assim, ao mesmo tempo em que Machado ressalta o
exercício costumeiro da violência, em suas páginas é possível ver também uma cidade em
que escravos circulam pelas ruas sozinhos, com certa autonomia, fogem com frequência,
desenvolvem relações familiares e de amizade - às vezes com os próprios senhores - que os
protegem em momentos de dificuldade e permitem amparo para aqueles que, como
Arminda, evadem. Tais situações são evidências da subjetividade destas pessoas, das práticas
de improvisação dentro de uma estrutura opressora, das possibilidades de resistência em
uma sociedade que os considerava objetos de direito, enfim, do protagonismo destes sujeitos
no enfraquecimento da escravidão. Tais características também devem estar presentes em
uma situação de aprendizagem que tenha como objetivo compreender a condição escrava
no Segundo Reinado.

6 Tais negociações podem ser lidas a partir das noções de estratégia e tática desenvolvidas por Certeau, já
discutidas anteriormente. Constituíam-se em formas de manter a dominação dos senhores sobre os escravos
diante do enfraquecimento de seu poder de mando, mas ao mesmo tempo criavam fissuras no sistema de
dominação que poderiam ser exploradas pelos cativos para a vivência de práticas cotidianas que contrariavam
o papel social esperado deles pelos senhores, contribuindo ainda mais para debilitar as bases da escravidão.
105
Atividades Atividades – Pai contra Mãe

A leitura do conto tem como objetivo compreender algumas das condições de vida e
experiências de cativeiro das pessoas escravizadas nos ambientes urbanos durante o período
da História do Brasil conhecido como Segundo Reinado (1840-1889). Para isso, responda
as questões a seguir:

1. O título do conto, Pai contra mãe, sugere quais são os dois personagens principais da
história. Identifique-os e anote algumas informações contidas no texto a respeito de cada
um deles:

a)_________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

b)_________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

2. Quais as semelhanças entre os personagens? Em que se diferenciam?


___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

Releia o trecho a seguir e responda as questões:


A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras
instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles
era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha de flandres. A
máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só
três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um
cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos
vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados
extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social
e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as
tinham penduradas, à venda, na porta das lojas.
O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa,
com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás

106
Atividades – Pai contra Mãe

com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim,
onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.

3. As duas imagens abaixo são litografias feitas em 1835 pelo pintor francês Jean-Baptiste
Debret (1768-1848). Identifique nelas os objetos de punição descritos no conto e explique
quais eram as funções desses castigos.

Le collier de fer: châtiment des fugitifs.

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107
Atividades – Pai contra Mãe

4. Baseado nas informações presentes no conto e conforme o exemplo abaixo, escreva como
seria o anúncio de fuga feito pelo senhor de Arminda e utilizado por Cândido Neves para
recapturar a escrava.
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Releia o trecho a seguir e responda as questões:


Há meio século, os escravos fugiam com frequência. Eram muitos, e nem todos
gostavam da escravidão. Sucedia ocasionalmente apanharem pancada, e nem todos
gostavam de apanhar pancada. Grande parte era apenas repreendida; havia alguém de casa
que servia de padrinho, e o mesmo dono não era mau; além disso, o sentimento da
propriedade moderava a ação, porque dinheiro também dói. A fuga repetia-se, entretanto.
Casos houve, ainda que raros, em que o escravo de contrabando, apenas comprado no
Valongo7, deitava a correr, sem conhecer as ruas da cidade. Dos que seguiam para casa, não
raro, apenas ladinos8, pediam ao senhor que lhes marcasse aluguel, e iam ganhá-lo fora,
quitandando9.

7
Região portuária do Rio de Janeiro onde desembarcavam os navios que traziam os escravos do continente
africano.
8 Escravos nascidos no Brasil ou já bem adaptados ao país, que falavam o português e conheciam as condições

de trabalho.
9 Muitos escravos não trabalhavam diretamente para seus proprietários, eram “alugados” para outras pessoas,

para quem faziam serviços diversos. Esse era muitas vezes o destino daqueles que não aceitavam a autoridade e
as condições de trabalho impostas por seu senhor.
108
Atividades – Pai contra Mãe

Quem perdia um escravo por fuga dava algum dinheiro a quem lho levasse. Punha
anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o
tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação. Quando não vinha a quantia,
vinha promessa: "gratificar-se-á generosamente", -- ou "receberá uma boa gratificação".
Muitas vezes o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura de preto, descalço,
correndo, vara ao ombro, e na ponta uma trouxa. Protestava-se com todo o rigor da lei
contra quem o acoutasse.
Ora, pegar escravos fugidios era um ofício do tempo. Não seria nobre, mas por ser
instrumento da força com que se mantêm a lei e a propriedade, trazia esta outra nobreza
implícita das ações reivindicadoras. Ninguém se metia em tal ofício por desfastio ou estudo;
a pobreza, a necessidade de uma achega, a inaptidão para outros trabalhos, o acaso, e
alguma vez o gosto de servir também, ainda que por outra via, davam o impulso ao homem
que se sentia bastante rijo para pôr ordem à desordem.

5. De acordo com o texto, as relações entre todos os senhores e escravos eram iguais?
Justifique sua resposta.
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___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

6. Por que muitas vezes a punição era “moderada”?


___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

7. De acordo com o conto, os escravos aceitavam a violência praticada pelos senhores?


Justifique sua resposta.
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___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

8. A partir do trecho, quais as diferentes situações que poderiam ser experimentadas por um
escravo que fugisse?
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___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

109
Atividades – Pai contra Mãe

Releia o trecho a seguir e responda as questões:


[...] Mais de uma vez, a uma esquina, conversando de coisas remotas, via passar um
escravo como os outros, e descobria logo que ia fugido, quem era, o nome, o dono, a casa
deste e a gratificação; interrompia a conversa e ia atrás do vicioso. [...]
[...] Já lhe sucedia, ainda que raro, enganar-se de pessoa, e pegar em escravo fiel que
ia a serviço de seu senhor; tal era a cegueira da necessidade. Certa vez capturou um preto
livre; desfez-se em desculpas, mas recebeu grande soma de murros que lhe deram os
parentes do homem. [...]
[...] Naquela reviu todas as suas notas de escravos fugidos. As gratificações pela
maior parte eram promessas; algumas traziam a soma escrita e escassa. Uma, porém, subia a
cem mil-réis. Tratava-se de uma mulata; vinham indicações de gesto e de vestido. Cândido
Neves andara a pesquisá-la sem melhor fortuna, e abrira mão do negócio; imaginou que
algum amante da escrava a houvesse recolhido. Agora, porém, a vista nova da quantia e a
necessidade dela animaram Cândido Neves a fazer um grande esforço derradeiro. Saiu de
manhã a ver e indagar pela Rua e Largo da Carioca, Rua do Parto e da Ajuda, onde ela
parecia andar, segundo o anúncio. Não a achou; apenas um farmacêutico da Rua da Ajuda
se lembrava de ter vendido uma onça10 de qualquer droga, três dias antes, à pessoa que
tinha os sinais indicados. Cândido Neves parecia falar como dono da escrava, e agradeceu
cortesmente a notícia. Não foi mais feliz com outros fugidos de gratificação incerta ou
barata.

9. Após a fuga, como era o dia a dia de Arminda e dos outros escravos que fugiam? E os
escravos “fiéis” que andavam sozinhos a serviço, por que será que não fugiam?
___________________________________________________________________________

10. Em determinado momento, Cândido Neves desiste de procurar Arminda. Por que ele
achou que seria difícil encontrar a escrava? O que isso indica sobre com quem os escravos
se relacionavam?
___________________________________________________________________________

11. De que forma as atitudes dos escravos poderiam ajudar a melhorar suas condições de
vida?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

10
Nome popular dado à moeda da época.
110
Guia Interpretativo - Mariana
Mariana
Tema: A condição escrava no Segundo Reinado

Guia interpretativo

O segundo conto proposto para ser trabalhado em sala de aula também apresenta
um cotidiano marcado por desigualdades e tensões sociais características da sociedade
brasileira do século XIX. Mariana foi escrito em 1871 e publicado originalmente no Jornal
das Famílias, periódico para o qual Machado escreveu até 1878. O enredo começa em
1871, portanto, no ano de sua escritura, com um encontro de amigos que não se viam há
muito tempo. Rapidamente a história se transporta para 1856, quando um dos personagens,
Coutinho, resgata a lembrança de um romance com uma escrava de sua família.
Mariana, “gentil mulatinha nascida e criada como filha da casa”, é descrita ao longo
de todo o texto como uma escrava diferente, “quase senhora”, em função dos privilégios que
recebeu ao longo de sua criação, sendo educada na leitura, escrita, bordado, entre outras
práticas típicas de moças de famílias ricas da época. Porém, ao mesmo tempo em que se
acentuam as regalias obtidas pela criada, marcam-se as diferenças sociais que distinguem
sua condição de escrava das senhoras e senhores da casa:

Não se sentava à mesa, nem vinha à sala em ocasião de visitas, eis a


diferença; no mais era como se fosse pessoa livre, e até minhas irmãs
tinham certa afeição fraternal. Mariana possuía a inteligência da sua
situação, e não abusava dos cuidados com que era tratada. Compreendia
bem que na situação em que se achava só lhe restava pagar com muito
reconhecimento a bondade de sua senhora.

O escritor revela, portanto, os mecanismos cotidianos que disciplinam o


comportamento de Mariana, adequando-a a seu papel social de escrava11. Os espaços que
ocupa dentro da casa, o lugar de suas refeições, todas estas atividades diárias são
controladas de maneira que afirmassem a diferença da criada em relação aos outros
moradores do domicílio. A saída em público também lhe era proibida, como fica claro na
fala de um dos parentes da família:

Mariana era apreciada por todos quantos iam a nossa casa, homens e
senhoras. Meu tio, João Luís, dizia-me muitas vezes: — “Por que diabo está
tua mãe guardando aqui em casa esta flor peregrina? A rapariga precisa de
tomar ar”.

11
Aqui resgatamos novamente a caracterização da vida cotidiana feita por Heller e Kosik, compreendendo-a
como o espaço onde se gera a alienação dos indivíduos a partir do cumprimento de certos papéis sociais.
111
Guia Interpretativo - Mariana

O personagem-narrador tenta acentuar ao longo do conto as supostas limitações da


vida diária de Mariana em função de ser uma escrava. Ressalta em diversos momentos que a
condição privilegiada da menina não a deixava livre da possibilidade de passar por
situações de violência pelas “faltas” que cometia, tais como não respeitar os espaços que lhe
eram destinados nem o modo subserviente como devia obedecer às normas estabelecidas.
Mas mesmo conhecendo os limites que condicionavam seu cotidiano, Mariana escapava o
tempo todo às regras sociais com a quase certeza de que não seria punida, como nas vezes
em que foge de casa e fica por um tempo desaparecida, quando se recusa a responder o que
lhe é pedido, ainda que sob ameaças de punição, quando frequenta espaços na casa que lhe
são proibidos, e mesmo os sentimentos que nutria e confessava por seu senhor, violando os
limites determinados a uma escrava12. Em diversos momentos paira sobre Mariana a
possibilidade de castigo:

Creio que devemos fazer esforços para capturá-la, e uma vez restituída à
casa, colocá-la na situação verdadeira do cativeiro.
[...]
Ficou assentado que se procuraria a fugitiva e se lhe daria o castigo
competente.
[...]
Sofrerás as consequências da tua ingratidão.

Nenhuma das ameaças se efetiva, a escrava sempre encontra algum meio sutil de ser
perdoada, como se conhecesse as margens de movimento em que lhe são permitidas certas
atitudes autônomas, fora do controle cotidiano exercido por seus senhores. As ações da
escrava revelam a sua não adequação total ao papel que lhe era imposto - de submissão e
obediência absolutas - denunciando alguns espaços possíveis de liberdade dentro da
estrutura violenta e autoritária do escravismo brasileiro.
A história se passa na cidade do Rio de Janeiro. Esse é um momento em que ocorre
uma série de medidas que enfraqueciam o sistema escravista, como a Lei Eusébio de Queiróz
(1850) e as pressões inglesas pelo fim da escravidão13. Como capital do Império, a cidade
era o centro de tais discussões, que nela tinham impacto mais rápido do que em outras
regiões do país. Além do tempo da narrativa, não se pode ignorar também o tempo de
produção da obra, o ano de 1871, data em que a escravidão recebe um de seus golpes mais

12
Todas estas condutas praticadas por Mariana podem ser compreendidas como movimentos de resistência
cotidiana. Através delas, a escrava fugia aos projetos normativos de sua época, experimentando ações de
liberdade dentro de um sistema opressor. O conceito de tática de Certeau, mais uma vez, permite tal
interpretação.
13
Desde a década de 1830 a Inglaterra pressionava o Brasil para que acabasse com o tráfico de escravizados.
Em 1831 foi aprovada uma lei que proibia o tráfico internacional de escravos, porém, a lei não teve efeito. A
partir de 1845 o governo inglês passou a aprisionar navios negreiros mesmo em águas brasileiras. A pressão
teve resultado e, em 1850, foi a provada a Lei Eusébio de Queiróz, que estabelecia medidas duras para acabar
com o tráfico de africanos no Brasil.
112
Guia Interpretativo - Mariana

fortes: a Lei do Ventre Livre14. Possivelmente esteja aí uma chave importante para entender
por que Machado escreveu pouco tempo após a aprovação da lei um de seus únicos contos
que tem como protagonista uma escrava. Não uma escrava qualquer, mas uma que foge aos
padrões de comportamento estabelecidos pelas elites. Assim, a abordagem do conto em sala
de aula pode ser feita relacionando-o ao estudo destas leis, buscando identificar com os
alunos algumas das circunstâncias que, no Segundo Reinado, ajudaram a corroer as bases
de dominação senhorial, abalando também seu poder de mando. Muitos dos traços
essenciais da mentalidade escravista permaneceram mesmo diante destes duros golpes,
porém com a abertura cada vez maior de brechas de liberdade e autonomia que eram
constantemente exploradas pelos cativos.

14
Entre outras medidas, tornava de condição livre os filhos de mulher escrava nascidos após sua promulgação.
113
Atividades Guia Interpretativo - Mariana

A leitura do conto tem como objetivo compreender a autonomia cada vez maior dos
escravos durante o Segundo Reinado e o enfraquecimento do poder senhorial nessa época. A
história de Mariana se passa na década de 1850, período em que a escravidão sofreu um
duro golpe com a aprovação da Lei Nº 581 – de 4 de setembro de 1850, conhecida como Lei
Eusébio de Queiróz. Leia e analise o primeiro artigo desta lei:

Estabelece medidas para a repressão do tráfico de africanos neste Império

Art. 1º. As embarcações brasileiras encontradas em qualquer parte, e as estrangeiras


encontradas nos portos, enseadas, ancoradouros, ou mares territoriais do Brasil, tendo a seu
bordo escravos, cuja importação esta proibida pela Lei de sete de novembro de mil
oitocentos e trinta e um, ou havendo-os desembarcado, serão apreendidas pelas autoridades,
ou pelos navios de guerra brasileiros e consideradas importadoras de escravos. Aquelas que
não tiverem escravos a bordo, porém que se encontrarem com os sinais de se empregarem
no tráfico de escravos, serão igualmente apreendidas, e consideradas em tentativa de
importação de escravos.

1. Com que prática a Lei Eusébio de Queiróz queria acabar?

Analise a tabela e responda as questões:

Ano Número de escravos africanos


desembarcados no Brasil
1848 76 338
1849 70 827
1850 37 632
1851 7 058
1852 1 234
Dados retirados de www.slavevoyage.com. Acessado em julho de 2016.

2. A Lei Eusébio de Queiroz atingiu seus objetivos? Justifique sua resposta.

3. Sabendo que a maior parte dos proprietários de escravos dependia do tráfico


internacional, que impactos você acha que a lei teve para a escravidão no Brasil?

114
Atividades - Mariana

4. A partir da leitura do conto, descreva como era a composição de uma família das
camadas mais altas da sociedade brasileira nas cidades.

5. Copie algum trecho do conto que indique que Mariana era considerada membro da
família.

6. Preencha a tabela abaixo descrevendo as semelhanças e diferenças nas condições de vida


de Mariana e das filhas de sua senhora:

Mariana Filhas

Semelhanças

Diferenças

Releia o trecho abaixo e responda as questões:

— Chamava-se Mariana, continuou ele alguns minutos depois, e era uma gentil
mulatinha nascida e criada como filha da casa, e recebendo de minha mãe os mesmos
afagos que ela dispensava às outras filhas. Não se sentava à mesa, nem vinha à sala em
ocasião de visitas, eis a diferença; no mais era como se fosse pessoa livre, e até minhas irmãs
tinham certa afeição fraternal. Mariana possuía a inteligência da sua situação, e não
abusava dos cuidados com que era tratada. Compreendia bem que na situação em que se
achava só lhe restava pagar com muito reconhecimento a bondade de sua senhora.
A sua educação não fora tão completa como a de minhas irmãs; contudo, Mariana
sabia mais do que outras mulheres em igual caso. Além dos trabalhos de agulha que lhe
foram ensinados com extremo zelo, aprendera a ler e a escrever. Quando chegou aos 15

115
Atividades - Mariana

anos teve desejo de saber francês, e minha irmã mais moça lho ensinou com tanta paciência
e felicidade, que Mariana em pouco tempo ficou sabendo tanto como ela.
Como tinha inteligência natural, todas estas coisas lhe foram fáceis. O
desenvolvimento do seu espírito não prejudicava o desenvolvimento de seus encantos.
Mariana aos 18 anos era o tipo mais completo da sua raça. Sentia-se-lhe o fogo através da
tez morena do rosto, fogo inquieto e vivaz que lhe rompia dos olhos negros e rasgados.
Tinha os cabelos naturalmente encaracolados e curtos. Talhe esbelto e elegante, colo
voluptuoso, pé pequeno e mãos de senhora. É impossível que eu esteja a idealizar esta
criatura que no entanto me desapareceu dos olhos; mas não estarei muito longe da verdade.
Mariana era apreciada por todos quantos iam a nossa casa, homens e senhoras. Meu
tio, João Luís, dizia-me muitas vezes: — “Por que diabo está tua mãe guardando aqui em
casa esta flor peregrina? A rapariga precisa de tomar ar”.

7. Quais as proibições que existiam no dia a dia de Mariana?

8. Ao longo da história, Mariana cumpre todas as proibições impostas sobre ela? Copie
alguns trechos que justifiquem sua resposta.

9. Em que situações Mariana foi ameaçada de receber algum castigo? Em algum momento
as ameaças foram cumpridas?

10. De que forma Mariana escapava das punições?

11. Em que situações Mariana conseguiu impor sua vontade sobre seus senhores?

116
Guia Interpretativo - Virgínius
Virginius: narrativa de um advogado

Tema: A passagem do trabalho escravo para o trabalho livre15

Guia interpretativo

Virginius foi publicado originalmente em 1864 também no Jornal das Famílias. O


tempo narrado é algum ano não especificado da década de 1850. A história se desenrola a
partir do olhar de um advogado, contratado para defender judicialmente um pai que
cometeu assassinato da própria filha em uma fazenda no interior, ao que tudo indica, do Rio
de Janeiro. Por trás desta tragédia, revela-se um cotidiano marcado por relações de
dependência e de lutas por sobrevivência.
Ao chegar à vila onde aconteceu o crime, o protagonista toma conhecimento do
primeiro personagem importante para nossa proposta:

Tirei do bolso o misterioso bilhete e entreguei-o aberto ao meu amigo. Ele,


depois de lê-lo, disse:
— É a letra de Pai de todos.
— Quem é Pai de todos?
— É um fazendeiro destas paragens, o velho Pio. O povo dá-lhe o nome
de Pai de todos, porque o velho Pio o é na verdade.
— Bem dizia eu que há romance no fundo!... Que faz esse velho para que
lhe dêem semelhante título?
— Pouca coisa. Pio é, por assim dizer, a justiça e a caridade fundidas em
uma só pessoa. Só as grandes causas vão ter às autoridades judiciárias,
policiais ou municipais; mas tudo o que não sai de certa ordem é decidido
na fazenda de Pio, cuja sentença todos acatam e cumprem. Seja ela contra
Pedro ou contra Paulo, Paulo e Pedro submetem-se, como se fora uma
decisão divina. Quando dois contendores saem da fazenda de Pio, saem
amigos. É caso de consciência aderir ao julgamento de Pai de todos.
— Isso é como juiz. O que é ele como homem caridoso?
— A fazenda de Pio é o asilo dos órfãos e dos pobres. Ali se encontra o que
é necessário à vida: leite e instrução às crianças, pão e sossego aos adultos.
Muitos lavradores nestas seis léguas cresceram e tiveram princípio de vida
na fazenda de Pio.

Em seguida, revela-se que o fazendeiro, além de grande proprietário de terras,


também possui muitos escravos, como indica o diálogo do advogado com um deles:

15
A ideia de “passagem para o trabalho livre”, ou de “substituição do trabalho escravo pelo livre” é bem
criticada na historiografia recente da escravidão. Em artigo de 1998, Silvia Lara utiliza o termo “teoria da
substituição” para se referir aos estudos que criavam uma oposição radical entre o trabalho escravo e o livre,
afastando, assim, os ex-escravos das pesquisas históricas que se centravam no desenvolvimento do trabalho
livre no Brasil. Embora o termo “passagem” e outros similares tenham sido mantidos nesta proposta, os
objetivos de se utilizar o conto Virginius em sala de aula levam em consideração o argumento e as
preocupações de Sílvia Lara e outros historiadores. Ou seja, pretende-se resgatar as experiências dos ex-
escravos no processo de abolição que se fez de maneira gradual e controlada ao longo da segunda metade do
século XIX, analisando a convivência entre diferentes formas de trabalho neste período. Ver LARA, Sílvia
Hunold. Escravidão, Cidadania e História do Trabalho no Brasil. Projeto História, Revista do Programa de
Estudos Pós-Graduados de História. PUC-SP, vol. 16, 1998, p.25-38.
117
Guia Interpretativo - Virgínius

— É escravo de Pio?
— Escravo é o nome que se dá; mas Pio não tem escravos, tem amigos.
Olham-no todos como se fora um Deus. É que em parte alguma houve
nunca mais brando e cordial tratamento a homens escravizados. Nenhum
dos instrumentos de ignomínia que por aí se aplicam para corrigi-los
existem na fazenda de Pio. Culpa capital ninguém comete entre os negros
da fazenda; a alguma falta venial que haja, Pio aplica apenas uma
repreensão tão cordial e tão amiga, que acaba por fazer chorar o
delinquente. Ouve mais: Pio estabeleceu entre os seus escravos uma espécie
de concurso que permite a um certo número libertar-se todos os anos.
Acreditarás tu que lhes é indiferente viver livres ou escravos na fazenda, e
que esse estímulo não decide nenhum deles, sendo que, por natural
impulso, todos se portam dignos de elogios?

No dia seguinte, o advogado visita na cadeia o réu que vai defender, de nome Julião:

Julião fora um daqueles a quem a alma caridosa de Pio dera sustento e


trabalho. Suas boas qualidades, a gratidão, o amor, o respeito com que
falava e adorava o protetor não ficaram sem uma paga valiosa. Pio, no fim
de certo tempo, deu a Julião um sítio que ficava pouco distante da fazenda,
para lá fora morar Julião com uma filha menor, cuja mãe morrera em
consequência dos acontecimentos que levaram Julião a recorrer à proteção
do fazendeiro.

Os outros personagens importantes para a história são apresentados na sequência:


Elisa, a filha de Julião, e Carlos, o filho do fazendeiro. Ambos amigos de infância, foram
conhecendo ao longo da vida as desigualdades que os separavam devido à condição social
de seus pais. A partir daí desenrola-se a tragédia. Carlos passa a desejar Elisa, e pretende
tomá-la à força se preciso for. É o que faz. Desesperado, Julião mata a própria filha para
“salvá-la da desonra”. O tribunal o condena a dez anos de prisão. Após a sentença, volta a
viver nas terras de Pio, que fez do filho soldado como castigo pela violência cometida contra
Elisa.
São quatro os personagens que mais nos interessam no conto: Pio, Carlos, Julião e
Elisa. Na história identificam-se relações de poder entre eles. Julião e Elisa, livres e pobres,
não possuem terras ou casa própria, tendo que se ajustar aos interesses dos proprietários da
área rural: Pio, principalmente, mas também Carlos, herdeiro natural da fazenda. Julião é
agregado nas terras de Pio, pois não possui condições de se estabelecer autonomamente.
Assim como ele, os escravos que são libertos também continuam vivendo e trabalhando no
mesmo local. A propriedade da terra permite ao fazendeiro produzir dependentes,
garantindo seu poder sobre os trabalhadores livres e libertos. Além disso, por seu poder
econômico, Pio exerce as funções de juiz informal sobre todas as pessoas da vila. Temos
aqui, portanto, um exemplo clássico de uma estrutura social fundamentada no latifúndio e
no escravismo, que vai se transformando aos poucos com o desenvolvimento de novas
relações de trabalho. Estas nascem vinculadas a uma cultura do favor, em que homens e
118
Guia Interpretativo - Virgínius

mulheres livres e libertos dependem de um proprietário para sobreviver e continuam


sujeitos à sua vontade e autoridade. A situação de dependência, submissão, imposição do
poder de um grupo sobre outro e de comportamentos considerados adequados se produzem
na esfera cotidiana da vida humana, a partir de situações e ações vivenciadas de forma
repetitiva, superficial e espontânea pelos indivíduos, como as condições de habitação e de
trabalho.16
O contexto histórico da narrativa, a década de 1850, é um momento de profundas
transformações na sociedade brasileira. As pressões inglesas para o fim da escravidão eram
cada vez mais fortes. No primeiro ano da década é aprovada a Lei Eusébio de Queiróz, que
proíbe o tráfico internacional de escravos. Os grandes latifundiários viam a necessidade de
pensar em saídas para o que se apresentava como o possível fim do escravismo. Como uma
das soluções a esse problema foi criada a Lei de Terras em 185017, uma medida que
dificultava ainda mais o acesso do trabalhador pobre à terra, obrigando-o a fornecer sua
força de trabalho para a grande lavoura. Os conteúdos tradicionalmente relacionados a esse
contexto que são ensinados nas escolas privilegiam as experiências dos imigrantes europeus
que vieram trabalhar no Brasil. Pouca ou nenhuma atenção se dá aos trabalhadores locais.
O conto é um bom recurso para resgatar experiências subjetivas de milhares de pessoas
pobres que, mesmo livres, tinham sua sobrevivência relacionada aos interesses dos grandes
proprietários rurais.
Porém, apesar de o conto permitir uma compreensão das redes de poder que
organizavam hierarquicamente a sociedade rural no período, beneficiando aparentemente
apenas os proprietários, revela também certas dificuldades experimentadas pelos senhores
de terra e novas situações vivenciadas pela população livre e liberta. Embora precisassem de
um grande proprietário para sobreviver, a população rural, muitas vezes, tinha a liberdade
de escolher para quem trabalharia. Também não era obrigada a aceitar abusos dos senhores,
como no episódio em que Julião tira satisfações com Carlos. Os grandes proprietários
também eram dependentes do trabalho dos outros. Com a expectativa crescente de que a
escravidão pudesse ter um fim, fazia-se necessário pensar em formas de garantir a
continuidade da mão de obra. Tais circunstâncias obrigavam os fazendeiros a apresentarem
condições satisfatórias de moradia e trabalho para seus agregados, o que poderia criar
oportunidades de crescimento para esses trabalhadores. Conforme a passagem já referida do
conto, Julião recebe um sítio, o que certamente não era moradia qualquer. Em momentos

16
Retomando as reflexões de Heller e Kosik sobre o cotidiano como um conjunto de práticas que promovem a
dominação de alguns grupos sobre outros.
17 A Lei de Terras (Lei n. 601, de 18.09.1850) determinou a compra e venda como meio exclusivo de obtenção

de lotes agrícolas, não mais por cessão gratuita em nome do sesmeiro ou do posseiro, como ocorria desde o
período colonial.
119
Guia Interpretativo - Virgínius

posteriores da história, percebem-se as possibilidades do trabalhador de prosperar naquelas


terras:

Laborioso por necessidade e por gosto, Julião bem depressa viu frutificar o
seu trabalho. Ainda assim não descansava. Queria, quando morresse,
deixar um pecúlio à filha. Morrer sem deixá-la amparada era o sombrio
receio que o perseguia. Podia acaso contar com a vida do fazendeiro
esmoler?
[...]
Uma tarde, quinze dias depois do incidente que narrei acima, voltava Julião
da fazenda do velho Pio. Era já perto da noite. Julião caminhava
vagarosamente, pensando no que lhe faltaria ainda para completar o
pecúlio de sua filha.

Ou seja, Julião sabia que não poderia contar com a proteção de Pio para o resto da
vida, por isso nutria expectativas reais e fortes de que pudesse sair algum dia daquela
relação de dependência. Seu trabalho lhe permitia cultivar tais esperanças. Ao que parece, o
fazendeiro também se preocupava com a permanência dos escravos na propriedade. Uma
vez livres, os ex-escravos teriam a liberdade de escolher em quais terras iriam trabalhar.
Muitos inclusive se recusavam a trabalhar nas plantações onde tinham sido escravos, para
evitar qualquer permanência de relações violentas com seus antigos senhores. O tratamento
“brando” dispensado pelo personagem Pio aos cativos, a ausência de “instrumentos de
ignomínia que por aí se aplicam para corrigi-los”, a “repreensão tão cordial e tão amiga”, e
a situação mais sintomática de todas, o “concurso que permite a um certo número libertar-
se todos os anos”, podem ser encaradas como estratégias18 para a garantia da continuidade
de mão de obra em uma época na qual a escravidão tinha um futuro cada vez mais incerto.
Assim, embora a Lei de Terras e as relações hierárquicas no meio rural provocassem a
permanência de traços essenciais do sistema escravista no incipiente trabalho livre,
mantendo certa lógica de dominação característica da escravidão, abriam-se também no
mesmo período novas expectativas e oportunidades que beneficiavam a população pobre
livre e liberta.

18
O termo “estratégia” é empregado de acordo com a definição de Certeau.
120
Atividades Guia Interpretativo - Virgínius

A leitura do conto tem como objetivo compreender parte do processo de fim do


trabalho escravo e do crescimento do trabalho livre nas zonas rurais brasileiras. Para isso,
antes é preciso conhecer o conteúdo de duas leis importantes que foram promulgadas na
época em que a história se passa: a Lei Nº 581 – de 4 de setembro de 1850, conhecida como
Lei Eusébio de Queiróz, que proibiu o tráfico internacional de escravos; e a Lei Nº 601, de
18 de setembro de 1850, conhecida como Lei de Terras, que regulou a posse de terras no
país. Sobre o impacto de ambas, leia o texto a seguir do historiador Boris Fausto:

“Após a tomada de medidas efetivas de combate ao tráfico, a escravidão estava


destinada a acabar. Os proprietários de escravos no Brasil nunca se preocuparam com sua
reprodução, ficando na dependência do fluxo de importações. Estancadas as importações, o
número de cativos tendia a tornar-se insuficiente para prestar os variados serviços a que se
destinavam. Além disso, o fim do tráfico constituía um divisor de águas, do ponto de vista
político e ideológico. Se o Brasil tornava ilegal a importação de escravos, a manutenção do
escravismo no país perdia legitimidade. Mas, a partir daí, várias perguntas surgiam. Em que
prazo e de que forma acabaria a escravidão no Brasil? Quem substituiria a mão de obra
escrava?
Um início de resposta pode ser encontrado na Lei de Terras, aprovada em 1850, duas
semanas após a extinção do tráfico. A lei tentou por ordem à confusão existente em matéria
de propriedade rural. Determinou que, no futuro, as terras públicas seriam vendidas e não
doadas, como acontecera com as antigas sesmarias, estabeleceu normas para legalizar a
posse de terras e procurou reforçar o registro das propriedades. A legislação foi concebida
como uma forma de evitar o acesso à propriedade da terra por parte de futuros imigrantes.
As terras públicas deveriam ser vendidas por um preço suficientemente elevado para afastar
posseiros e imigrantes pobres.”
FAUSTO, Boris. História Concisa do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2012. p. 107.

1. Quais foram as principais determinações da Lei de Terras?

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___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

2. Qual a relação entre a Lei de Terras e a Lei Eusébio de Queiroz?

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___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

3. Por que é possível dizer que a Lei de Terras beneficiava os grandes fazendeiros e
prejudicava as pessoas mais pobres das zonas rurais?

___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
121
Atividades - Virgínius

4. Anote, ao lado dos nomes dos personagens a seguir, algumas informações contidas no
texto a respeito de cada um deles, destacando o seu papel social.

Pio:________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

Julião:______________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

Carlos:_____________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

Elisa:_______________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

5. Preencha a tabela abaixo, identificando as relações de poder entre os personagens


principais:

Personagens Personagens sobre os quais


exercia sua autoridade
Pio

Julião

Carlos

6. Qual o personagem da história que possui maior capacidade de impor sua autoridade
sobre os outros? Por que este personagem tinha mais poder?
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___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

7. Qual o termo utilizado pelas pessoas da vila para se referir a Pio? O que ele revela sobre
o poder do fazendeiro?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

122
Atividades - Virgínius

8. Onde Julião e Elisa moravam? Como haviam obtido sua moradia?


___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

9. Copie os trechos do conto em que são descritas características do trabalho e da moradia


de Julião.

___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

10. A partir dos trechos copiados na questão anterior, como você avalia as condições de
moradia e de trabalho de Julião?

___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

11. Por que você acha que Pio tratava bem seus escravos e libertava alguns todos os anos?

___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

12. Onde passavam a morar e trabalhar os escravos libertos por Pio? Por que você acha que
eles ficavam nesse lugar?

___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

13. Que relações podem ser estabelecidas entre as condições de moradia e trabalho das
pessoas pobres - livres e libertas - no meio rural e a Lei de Terras de 1850?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

123
Atividades - Virgínius
Uns braços

Tema: O trabalho livre nos meios urbanos

Guia interpretativo

O conto “Uns Braços”, publicado originalmente em 1896 no livro Várias Histórias,


narra, novamente com um olhar retrospectivo, uma história que se passa na década de
1870. A partir do cotidiano dos personagens é possível abordar em sala de aula as relações
de dependência e subordinação vivenciadas por aqueles que estavam entre os dois extremos
da hierarquia social do período: nem senhores, nem escravos. Nestas relações, percebe-se a
influência de certas práticas e maneiras de pensar características do sistema escravista nas
relações de trabalho livre do período. Trata-se da história de Inácio, um jovem de 15 anos
que mora como agregado na casa de um conhecido de sua família e acaba tendo um
romance com a esposa do hospedeiro. Já no início do conto, Machado oferece indicações
importantes para compreender a origem social dos personagens:

O pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer


que era, do solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe
parecia que os procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na
Rua da Lapa, em 1870.

Tanto o pai de Inácio quanto Borges são profissionais liberais, mas com condições
econômicas distintas. A profissão de Borges – solicitador – algo entre procurador e
advogado, tinha possibilidades de ganho bem melhores do que a de um barbeiro. O
acolhimento de agregados era prática comum entre as camadas médias e altas da sociedade
brasileira no século XIX, tratava-se de estratégia importante no processo de produção de
dependentes. Essa realidade dava-se de diversas formas e por vários motivos. Em conto
anteriormente analisado, Virginius, era um mecanismo que garantia proteção à população
rural desprovida de terras e também mão de obra para a grande lavoura. Em Uns Braços, há
referência ao abrigo de filhos de famílias próximas com uma finalidade educativa e
produtiva: os jovens adquiriam competências e conhecimentos, proporcionando um alívio
na renda familiar e, ao mesmo tempo, mão-de-obra para aqueles que os recebiam. Além de
Inácio, o trabalhador agregado, e Borges, dono da casa e seu patrão, faz parte da história D.
Severina, “senhora que vivia com ele maritalmente, há anos”. O cotidiano dos três é
marcado por uma série de tensões, como se percebe no trecho a seguir:

Inácio estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que


este lhe apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes,
malandro, cabeça de vento, estúpido, maluco.

124
Guia Interpretativo – Uns braços

— Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu
pai, para que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de
marmelo, ou um pau; sim, ainda pode apanhar, não pense que não.
Estúpido! Maluco!
— Olhe que lá fora é isto mesmo que você vê aqui, continuou, voltando-se
para D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, há anos.
Confunde-me os papéis todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir
a outro, troca os advogados: é o diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De
manhã é o que se vê; primeiro que acorde é preciso quebrar-lhe os ossos...
Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura!
D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges expetorou
ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens.

O trecho acima permite reconhecer algumas das práticas e situações que constituem
o cotidiano dos personagens. Dar moradia, alimentação e trabalho para agregados era uma
forma de homens com maior poder econômico transformarem estranhos em dependentes.
Consequentemente, os trabalhadores ficavam subordinados à autoridade do patrão para
além dos espaços de trabalho, tendo seu comportamento controlado e modelado também na
esfera doméstica. Ao longo do conto, revelam-se mais aspectos importantes das relações de
poder entre patrão e empregado:

— Homem, você não acaba mais? bradou de repente o solicitador.


Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, já fria, e retirou-se, como
de costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto
de zanga e desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que
davam para o mar. Cinco minutos depois, a vista das águas próximas e das
montanhas ao longe restituía-lhe o sentimento confuso, vago, inquieto, que
lhe doía e fazia bem, alguma coisa que deve sentir a planta, quando abotoa
a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar. Havia cinco semanas
que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o Borges,
andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao
distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde, jantava e
recolhia-se ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe
dava intimidade na família, que se compunha apenas de D. Severina, nem
Inácio a via mais de três vezes por dia, durante as refeições. Cinco semanas
de solidão, de trabalho sem gosto, longe da mãe e das irmãs; cinco semanas
de silêncio, porque ele só falava uma ou outra vez na rua; em casa, nada.

O trecho acima, assim como o anterior, permite aferir que Borges institui seu poder
por meio de uma série de mecanismos cotidianos de disciplinarização do tempo e das
atividades de Inácio, como o horário em que acorda e que faz as refeições, as tarefas que
deve executar no trabalho, os espaços que ocupa dentro da casa, sua relação com D.
Severina. A autoridade do solicitador sobre Inácio impõe-se também pela linguagem e pela
força, com agressões verbais e físicas. Como chefe e senhor da casa, acredita ter o direito da
violência sobre o agregado.

125
Guia Interpretativo – Uns braços

Inácio demonstra um comportamento subalterno, não reage às ofensas e ameaças,


atende imediatamente às ordens para retirar-se da mesa de jantar e permanece em silêncio
absoluto dentro de casa. Mas quem cala, nem sempre consente. O menino não tem o
comportamento desejado por Borges. Não cumpre corretamente os horários nem se
empenha da maneira esperada no trabalho. A moradia, a alimentação e o trabalho de Inácio
são favores concedidos por Borges, que espera como retribuição um comportamento
considerado adequado, qual seja, empenho e obediência diante de suas vontades. Ao
perceber que ele não cumpre bem seus “deveres”, o chefe da família irrita-se, pois não
consegue impor sua dominação, por mais rígidos que sejam os mecanismos de controle. A
“preguiça do corpo”, o “sono pesado e contínuo”, o “devanear à larga”, evidenciam seu não
enquadramento absoluto no papel social que lhe é atribuído. Ao não se adequar totalmente
aos horários e tarefas diárias, Inácio abala os meios de dominação, ainda que de forma
inconsciente e sem contestar as estruturas das relações de trabalho.
Sem se efetivar no trabalho produtivo do menino, a autoridade do patrão tampouco
se estende aos sentimentos de Inácio:

"Deixe estar, — pensou ele um dia [Inácio] — fujo daqui e não volto mais."
Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina.
Nunca vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe
permitia encará-los logo abertamente, parece até que a princípio afastava
os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que eles não tinham
outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de
três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso.
Aguentava toda a trabalheira de fora, toda a melancolia da solidão e do
silêncio, toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por
dia, o famoso par de braços.
[...]
D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz
parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho.
Um dia recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse
água fria depois do café quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga
e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e confusão.
Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, coisa que
jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que
contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que
recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa
estando calada, não o era menos quando ria.

As refeições se tornaram para Inácio o momento mais importante do dia, pois era
quando via os braços de D. Severina, por quem ia desenvolvendo uma paixão cada vez
maior. Paixão essa que era secretamente retribuída, e que se manifestava em ações diárias
de carinho e generosidade da mulher para com o menino. Ainda que o solicitador Borges se
esforçasse de diversas formas para privar Inácio da intimidade da família, o sentimento
criado entre ele e D. Severina, efetivado em práticas cotidianas, o colocava em uma posição
mais confortável dentro da hierarquia familiar. A relação entre os dois termina com o ato de
126
Guia Interpretativo – Uns braços

traição (ou meia traição), em que a mulher dá um beijo no menino que, dormindo, o recebe
em um sonho. A nova forma de encarar e vivenciar o cotidiano desenvolvida por Inácio
devido à paixão por D. Severina efetua-se como uma reação à mentalidade que atribui a
Borges poder de mando sobre o agregado. Mas a reação é frágil, e não se mostra capaz de
desestruturar as relações de poder. Após o adultério, uma D. Severina “vexada” volta a se
comportar com a severidade de antes, e a história termina com a saída de Inácio da casa do
solicitador:

Borges mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez
zangado, porque o tratou relativamente bem e ainda lhe disse à saída:
— Quando precisar de mim para alguma coisa, procure-me.

Mesmo que não se explique o porquê do fim da permanência do jovem na


residência, é possível concluir a partir da leitura de todo o conto que a não efetivação total
do papel social dele esperado seja a razão principal. Ao utilizar o texto em sala de aula, é
possível trabalhar a manutenção nas relações de trabalho entre homens livres de uma série
de elementos característicos do escravismo, como o exercício costumeiro da violência, a
relação de dependência e a concepção de uma autoridade inquestionável do senhor. Mas
ainda que conservem aspectos do escravismo, as novas relações de trabalho são diferentes.
O senhor é patrão, não mais proprietário. Não possui as prerrogativas legais de mando e de
uso da força que possuía sobre o trabalhador escravizado. O controle de Borges sobre Inácio
não se efetiva da maneira esperada pelo solicitador. A única saída é romper definitivamente
a relação entre ambos, não há outra possibilidade de adequar o comportamento do menino.

127
Atividades Guia Interpretativo – Uns braços

A leitura do conto tem como objetivos compreender algumas características do


trabalho livre nas cidades. Especialmente as relações de dependência entre patrões e
empregados e a influência de certos aspectos do trabalho escravo no trabalho livre.

1. Anote, ao lado dos nomes dos personagens a seguir, algumas informações sobre as
condições de vida e personalidade de cada um deles:

a) Inácio:
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

b) Borges:
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

c) Dona Severina:
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

2. Baseado nas informações do conto, escreva um parágrafo comentando como era o dia a
dia de Inácio.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

3. Preencha a tabela a seguir com as pessoas que conviviam com Inácio e indique o tipo de
relação mantida entre eles:

Pessoas com as quais convivia Tipo de relações mantidas no dia a dia

128
Atividades – Uns braços

4. Por que Inácio vivia com o solicitador Borges?


___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

5. Quais eram as obrigações de Inácio? Ele as cumpria corretamente? Justifique.


___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

6. De que forma Borges tentava fazer com que Inácio cumprisse suas obrigações? Estas
tentativas funcionavam sempre?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

Releia o trecho a seguir e responda as questões:

"Deixe estar, — pensou ele um dia [Inácio] — fujo daqui e não volto mais."
Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca vira outros tão
bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los logo abertamente,
parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os pouco a pouco, ao ver que
eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo, mirando e amando. No fim de
três semanas eram eles, moralmente falando, as suas tendas de repouso. Agüentava toda a
trabalheira de fora, toda a melancolia da solidão e do silêncio, toda a grosseria do patrão,
pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de braços.
[...]
D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz parecia acabada,
e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia recomendava-lhe que não
apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café quente, conselhos,
lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma ainda maior inquietação e
confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um dia à mesa, coisa que jamais
fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque era ele que contava um caso
engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que recebe. Foi então que D. Severina viu
que a boca do mocinho, graciosa estando calada, não o era menos quando ria.

7. Por que Inácio queria fugir? E por que ele não fugiu?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

8. Quais eram os momentos do dia mais esperados por Inácio? Por quê?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

129
Atividades – Uns braços

9. Descreva que mudanças ocorreram no dia a dia de Inácio após o momento em que ele e
D. Severina passaram a gostar um do outro.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

10. Se Inácio e D. Severina gostavam um do outro, por que não ficaram juntos? O que
poderia acontecer com os dois se o solicitador descobrisse o beijo entre eles?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

11. Por que você acha que o chefe de Inácio o mandou embora de sua casa?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

12. Que situações Inácio vivia em seu dia a dia que eram semelhantes a situações vividas
pelos trabalhadores escravos?
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________

130
Machado de Assis

Nota sobre o autor

Joaquim Maria Machado de Assis


nasceu em 1839, no Rio de Janeiro.
Neto de escravos, filho de um pintor
com uma imigrante açoriana, ambos
pobres, viveu a infância como
agregado na casa da viúva de um
senador do Império. Além de
escritor, foi funcionário público.
Morreu em 1908. É considerado o
principal escritor brasileiro.

131
Bibliografia Machado de Assis

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão
na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

_________________. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras,


2003.

HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. São Paulo; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.

KOSIK, Karel. La cotidianidad y la historia. In: Dialéctica de lo Concreto. México, Grijalbo,


1963. p. 92-104.

LARA, Sílvia Hunold. Escravidão, Cidadania e História do Trabalho no Brasil. Projeto


História, Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados de História. PUC-SP, vol. 16, 1998,
p.25-38.

SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as batatas: Forma literária e processo social nos inícios do
romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2012.

________________. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo:


Duas Cidades, Editora 34, 2012.

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