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O Laboratório Poético

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UNIDADE

TEXTOS CRÍTICOS 1

Fernando Pessoa
O LABORATÓRIO POÉTICO
José Gil
Ele tinha o seu laboratório de linguagem. Estava consciente disso, e espantava­‑se e maravilhava­‑se
como se tudo se passasse fora dele. «No lado de fora de dentro», como ele próprio diria. Porque era real‑
mente dentro dele que se produzia a obra, que se aceleravam os mecanismos que acompanham a produ‑
ção de palavras, de metáforas, de versos, de poemas, de odes inteiras. Observa­‑se, examinava atentamente
o trabalho rigoroso do poeta, as transformações sofridas por essa matéria­‑prima (as sensações) de que
emergia a linguagem. Matéria­‑prima ou transformada, porque se tratava também dos efeitos das palavras
sobre a recetividade dos sentidos; não importa: por uma dessas reviravoltas em cascata em que ele era
mestre, e graças às quais o segundo se torna primeiro, o direito, avesso, ou o dentro, fora, o seu próprio
laboratório poético transformou­‑se em matéria de linguagem; produtor de sensações aptas a converter­‑se
em poema.
Talvez nunca a reflexão sobre o processo criador se tenha tanto e tão maciçamente integrado na obra
de um autor. Diz­‑se muitas vezes, de modo banal: porque escrever se tornara para ele mais do que uma
segunda vida. (É verdadeiro e falso, e os dois num sentido diferente daquele que, demasiado simples, se
atribui à dicotomia, de origem romântica, literatura/vida.) Numa quantidade enorme de poemas, o questio‑
namento acerca do sentir, acerca do movimento de construção da linguagem poética, acerca do ato de
escrever no momento em que este se desencadeia, acerca do pensamento e da experiência, e da experi‑
ência e do pensamento, acerca da realidade «esculpida» e criada pela palavra poética e acerca da realidade
dita por certa sensação, não traça apenas os contornos dos «temas», mas oferece­‑se também como matéria
sensível da língua trabalhada.
A um nível mais elevado, a estética de Pessoa comporta uma arte poética que considera as sensações
como unidades primeiras, a partir das quais o artista constrói a sua linguagem expressiva.
A doutrina das sensações, concebia­‑a Pessoa como uma ciência — e a atividade de analista, como
aquilo que dava sentido à vida obscura de Bernardo Soares: «Reduzir a sensação a uma ciência, fazer da
análise psicológica um método preciso como um instrumento, de microscopo [sic] — pretensão que ocupa,
sede calma, o nexo de vontade da minha vida…» (Livro do desassossego). Em vários textos teóricos, em sim‑
ples notas sem continuidade, Pessoa volta incessantemente ao mesmo tema: é preciso criar a ciência futura
das sensações, fundar a sua objetividade investigando os princípios de método mais adequados. Esta ciên‑
cia é a ciência do sonho, quer dizer a arte.
Mas porquê analisar as sensações? Toda a arte poética de Pessoa gira em torno dessa operação. É pre‑
ciso analisar as sensações, porque desse modo é possível revelar as mais escondidas, as mais microscópicas
e, portanto, as mais exacerbadas; porque é a melhor forma de as multiplicar, uma vez que cada uma delas
contém uma infinidade que é preciso trazer à luz, «exteriorizar»; porque, ao serem analisadas nesse meio de
semiconsciência, segregado pelo estado experimental, as sensações originárias de sentidos diferentes
entrecruzam­‑se naturalmente, o vermelho torna­‑se agudo, o olfato dota­‑se de visão — assim se suscitam
como que metáforas naturais; porque as sensações desdobram um espaço próprio que só pode ser apre‑
endido se o espaço e o tempo normais, macroscópicos, tiverem já deixado de impor a sua dominação —
ora a análise, ao decompor os blocos de sensações, desestrutura o espaço euclidiano, fazendo nascer outros
espaços, que acompanham as sensações minúsculas; trata­‑se por fim de testar os processos de abstração
das emoções, procurando criar sensações já analisadas.
Tudo isto forma, na realidade, o programa experimental de Pessoa. Podemos resumi­‑lo num só enun‑
ciado: «sentir tudo de todas as maneiras».
Ora, acontece que a literatura e, em particular, a poesia permitem fazer sentir melhor o que se sente
fora delas (nas situações naturais da vida) de modo grosseiro, ou confuso, ou misto, ou enfraquecido. Sentir
tudo de todas as maneiras institui­‑se assim como princípio poético, o princípio primeiro da arte poética
pessoana. Encontram­‑se­‑lhe imediatamente subordinadas duas exigências: tornar literários os órgãos dos
sentidos; e ser­‑se capaz de múltiplos devir­‑outros.

José Gil, Fernando Pessoa ou a metafísica das sensações, in Carlos Reis e António Apolinário Lourenço,
História crítica da literatura portuguesa, vol. viii, Lisboa, Verbo, 2015, pp. 144­‑147 (com adaptações).
UNIDADE

1 FERNANDO PESSOA ORTÓNIMO


Jacinto do Prado Coelho
Fernando Pessoa

O Pessoa ortónimo diverge muito de Caeiro e Reis porque não expõe uma filosofia prática, não inculca
uma norma de comportamento; nele há quase apenas a expressão musical e subtil do frio, do tédio e dos
anseios da alma, de estados quase inefáveis em que se vislumbra por instantes «uma coisa linda», nostalgias
de um bem perdido que não se sabe qual foi, oscilações quase impercetíveis de uma inteligência extrema‑
mente sensível, e até vivências tão profundas que não vêm «à flor das frases e dos dias» mas se insinuam
pela eufonia dos versos, pelas reticências de uma linguagem finíssima. Lirismo puro (se impura, no dizer do
poeta, é a humanidade em que se enraíza), voz de anima que se confessa baixinho, num tom menor, melan‑
cólico, de uma resignação dorida, agravada, de quem sofre a vida sendo incapaz de a viver.
Moderna, aparentada com Nobre e Sá­‑ Carneiro pelo egotismo exacerbado, pelo ceticismo, pela sen‑
sação do tédio, pela ideia de que Saturno estigmatizou o poeta para a solidão e o desamparo […], pelo
arrojo da expressão figurada ou analítica, esta poesia insere­‑se contudo na linha do lirismo nacional, tem um
«sentido lusitano», como Pessoa diz da de Nobre num artigo comovido.
Herdeiro, como Nobre, do gosto garrettiano pelo popular, também o seduz […] o mundo fantástico
da infância, adotando para o sugerir reminiscências de contos de fadas, de cantigas de embalar e toadas de
romanceiro. Mas separa­‑o de Nobre, como, de um modo geral, da lírica portuguesa do «coração ao pé da
boca», o seu estrutural antissentimentalismo, a ausência do biográfico na sua poesia, a tendência para redu‑
zir as circunstâncias humanas concretas a verdades gerais. O sentimentalismo confessional estava natural‑
mente fora do seu caminho porque Pessoa viveu essencialmente pela inteligência intuitiva ou discursiva,
pela sensibilidade que lhe é própria e pela imaginação.
A sua extrema lucidez torna límpida, definida, a expressão dos próprios sentimentos indefinidos. Se há
obscuridade, não é no texto mas no pré­‑texto, no motivo, tantas vezes um quase, um não sei quê.
Ou então esclarece, depois do uso do símbolo, o sentido simbólico: «Aqui à beira do rio / Sossego sem
ter razão. / Este seu correr vazio / Figura, anónimo e frio, / A vida vivida em vão.»
Refiro­‑me, claro está, à maneira típica de Pessoa. Com efeito, na poesia ortónima não há propriamente
duas fases, mas duas maneiras. Uma delas é a «modernista», tão diferente da outra que justificaria mais um
heterónimo. Ela própria abrange várias tendências, do simbolismo nefelibata de «Hora absurda» […] ao
intersecionismo impressionista da «Chuva oblíqua», sem esquecer «Ficções do interlúdio», que se diria cari‑
caturarem a poesia­‑música de Verlaine, em ritmo de «minuete invisível», com profusão de aliterações e rimas
interiores.
O período «modernista» (incluindo o Simbolismo, o «Paulismo», o Intersecionismo) começa em 1913,
se não antes, porque de março de 1913 data o poema «Pauis», e termina em 1917 […]. Portanto, não durou
muito, exatamente por o constituírem as «atividades literárias» que, segundo uma carta de Pessoa ao
mesmo Côrtes­‑Rodrigues, são apenas dos «arredores da sua sinceridade», quer dizer, mostram mais o virtu‑
ose que o homem espiritual.
No Pessoa ortónimo o ritmo alicia, as próprias vivências são muitas vezes de essência musical; instintiva
ou calculadamente, de qualquer modo apoiado à nossa melhor tradição lírica, Pessoa tira das combinações
de sons efeitos muito felizes: Leve, breve, suave, / Um canto de ave / Sobe no ar com que principia / O dia. /
Escuto, e passou… / Parece que foi só porque escutei / Que parou.
O processo é característico de Pessoa: primeiro a imagem­‑símbolo, depois a reflexão que lhe extrai o
sentido. O verso inicial, só constituído por adjetivos (sugestivo de um som esguio e doce pelas duas pausas
entre os três dissílabos, rigorosamente monossílabos, terminados em fricativa, e ainda pela rima interior),
contém o que mais importa: a ideia da leveza, da brevidade, da suavidade do momento psicológico simbo‑
lizado pelo canto, cujas curvas descritas no ar (cf. «Ela canta, pobre ceifeira…») parecem ser reproduzidas
pelo desenho estrófico, com versos de tamanho muito desigual e rimas suaves em ‑ave e ‑ia. Depois, o
súbito aparecimento do canto: «Escuto, e passou…» É o eu consciente do poeta que intervém, a quebrar o
encanto do momento inefável. A sintaxe da coordenação, da linguagem viva e espontânea, descreve
melhor a rapidez com que o canto se esvaiu. Escutar no presente, passar no pretérito: o canto não chega a
ser apreendido pela consciência. Depois, a filosofia desalentada: «Parece que foi só porque escutei / Que
parou.» Na estrofe seguinte, a expressão quase épica (com ênfase da repetição da negativa e a aliteração:
«Nunca, nunca, em nada…») grita aos quatro ventos a amargura do poeta. Aliança perfeita da comoção
intelectual e da notação dos seus imponderáveis com a mais cativante musicalidade.

Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, 7.ª edição, Lisboa, Verbo, 1982, pp. 41­‑ 47 (com adaptações).
UNIDADE

BERNARDO SOARES
Jacinto do Prado Coelho
1

Fernando Pessoa
Bernardo Soares é o menos autonomizado dos principais heterónimos, e por isso Pessoa o diz um
semi­‑heterónimo, isto é, não uma personalidade muito diferente da sua, mas a sua personalidade mutilada:
«Sou eu menos o raciocínio e a afetividade», definição aliás pouco rigorosa. Surge em Pessoa quando este
se encontra «cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e
de inibição». Daí o parecer­‑se com Álvaro de Campos. Mas nem sempre.
Em 1913 está ainda latente, porque o trecho do Livro do desassossego, publicado em A águia em agosto
desse ano, vem assinado por Fernando Pessoa e revela, de facto, a atmosfera de O marinheiro e dos poemas
modernistas ortónimos. Nos restantes trechos vindos a lume, adivinha­‑se, pelo contrário, a rotina da vida quo‑
tidiana — oscilações do tempo, breves episódios de rua, cenas de escritório, encontros de restaurante ou de
café —, embora transfigurada por um devaneador; o próprio estilo se torna menos trabalhado, aparentemente
mais sincero, próximo do vivido. São páginas de um «diário» assinado por Bernardo Soares, que vingou como
autor do Livro no espírito de Pessoa, após uma vacilação entre o seu nome e o de Vicente Guedes.
Tanto Bernardo Soares como Álvaro de Campos nos deixam entrever o Fernando Pessoa da biografia,
solitário e discreto correspondente comercial, num vaivém entre o real, dum lado, e a meditação, o sonho,
a criação estética, do outro; quer dizer, negam bastantes vezes a afirmação de Casais Monteiro, de um modo
geral exata, de que a obra de Pessoa é uma obra de divórcio «com a realidade presente». Soares, mordido
pelo tédio, sonha diante das pautas de um ofício ou das filas vulgares de um armazém. O comércio dá­‑lhe
ainda assim bons pretextos para imaginar.
Talvez por o achar demasiado confessional, autobiográfico, direto, Pessoa deixasse Bernardo Soares um tanto
informe e na penumbra. A sua prosa tem, em dados trechos, um vago sabor a adolescência. Amigo, como Cesá‑
rio, de vaguear pela Baixa pombalina, turbado pelo mistério que envolve os homens e as coisas, amarfanhado
pelo sem­‑sentido da existência, melancólico, abúlico, um dos seus principais méritos consiste em confirmar em
Fernando Pessoa uma temática obsessiva e a permanência de certos estados psicológicos fundamentais.
A sensação de não ser nada, pura ausência consciente («Minha alma é um maelstrom negro, vasta
vertigem à roda do vácuo»), a incompetência para a vida, o desgaste da indagação incessante («Para com‑
preender, destruí­‑me»), o desdobramento em vários, a descoberta de si mesmo através da ocultação e do
disfarce («Só disfarçado é que sou eu») — eis outras tantas afinidades com Fernando Pessoa ele próprio. De
cultura predominantemente francesa (esta uma das suas marcas individualizantes), Bernardo Soares vê­‑se
refletido em passos de Chateaubriand e sobretudo Amiel.

Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, 7.ª edição, Lisboa, Verbo, 1982, pp. 67­‑ 69 (com adaptações).

O LIVRO DO DESASSOSSEGO
Richard Zenith
«Fernando Pessoa não existe, propriamente falando.» Quem nos disse foi Álvaro de Campos, uma das
personagens inventadas por Pessoa para lhe poupar o esforço e o incómodo de viver. E para lhe poupar o
esforço de organizar e publicar o que há de mais rico na sua prosa, Pessoa inventou o Livro do desassossego,
que nunca existiu, propriamente falando, e que nunca poderá existir. O que temos aqui não é um livro mas
a sua subversão e negação, o livro em potência, o livro em plena ruína, o livro­‑sonho, o livro­‑desespero, o
antilivro, além de qualquer literatura. O que temos nestas páginas é o génio de Pessoa no seu auge.
Muito antes de os desconstrutivistas chegarem para nos ensinar que não há nenhum hors­‑texte, Fer‑
nando Pessoa viveu, na carne — ou na sua anulação —, todo o drama de que eles apenas falam. A falta de
um centro, a relativização de tudo (inclusive da própria noção de «relativo»), o mundo todo reduzido a
fragmentos que não fazem um verdadeiro todo, apenas texto sobre texto sobre texto sem nenhum signi‑
ficado e quase sem nexo — todo este sonho ou pesadelo pós­‑modernista não foi, para Pessoa, um gran‑
dioso discurso. Foi a sua íntima experiência e ténue realidade. E este livro­‑caos de desassossego foi o seu
testemunho, lucidíssimo .
Dúvida e hesitação são os dois absurdos pilares­‑mestres do mundo segundo Pessoa e do Livro do
desassossego, que é seu microcosmo.
O Livro nasceu pelo menos um ano antes do trio Caeiro, Campos e Reis, com a publicação, em 1913, de
«Na floresta do alheamento», a primeira prosa criativa publicada por Pessoa.
UNIDADE

1
Tendo Ricardo Reis parado de evoluir […] e Alberto Caeiro […] cessado de escrever em 1930, Pessoa
insuflou então nova vida no Livro do desassossego, que passou a impor­‑se não menos do que Álvaro de
Campos (sempre uma presença marcante) na obra e no espírito do seu criador. Campos e Bernardo Soares
Fernando Pessoa

nunca se conheceram no «drama em gente» encenado por Pessoa, mas é curioso notar que o primeiro
documento contido no primeiro envelope do seu vastíssimo Espólio traz a indicação «A. de C. (?) ou L. do
D. (ou outra coisa qualquer)». Havia, de facto, uma forte concordância intelectual e emocional entre o aju‑
dante de guarda­‑livros e o Campos do último período. Talvez não seja completamente por acaso que a
figura de Soares se revele mais plenamente quando a biografia do engenheiro naval já se tinha definhado.
Não que uma ficção pudesse substituir a outra, mas havia paralelismos nos seus hábitos. Soares, quando
não estava no escritório, gostava de caminhar na Baixa, onde frequentava talvez os mesmos cafés e a
mesma tabacaria que Campos, e os dois sentavam­‑se talvez não longe um do outro nos mesmos elétricos.
Eram personagens de origem bem diversa no mundo definido por Pessoa, mas acabaram por ocupar o
mesmo campo da sua sensibilidade, que por sua vez foi definida, ou muito colorida, pela cidade de Lisboa.
O Livro do desassossego, um não­‑livro dentro da não­‑Biblioteca, é sintomático do embaraço do autor.
Dá início ao seu projeto escrevendo textos que tentam elucidar um estado psíquico através de descrições
do tempo e de paisagens irreais […], visões idealizadas de mulheres assexuadas […] e imagens orientais […]
e medievais, com reis, rainhas, cortejos e palácios. São prosas poéticas, com muita atenção dada à cadência
das frases e aos efeitos sonoros. Numa «Paisagem de chuva», o autor fez questão de sublinhar o som de x
na frase «o chiar da chuva baixou». Nestes textos, a psique subjacente pertence a Pessoa, mas fica em abs‑
trato. A escrita é impessoal, a voz narrativa etérea, e as coisas e as frases que designam as coisas pairam,
vibrando levemente com tons amarelos. A palavra desassossego refere­‑se não tanto a uma perturbação
existencial no homem como à inquietação e incerteza inerentes em tudo e agora destiladas no narrador
retórico.
Mas a força dum outro desassossego — mais íntimo e profundo — impõe­‑se pouco a pouco, e o livro
assume dimensões inesperadas. Uma destas outras dimensões não era, na verdade, tão inesperada. Refiro­
‑me ao aspeto teórico e até pedagógico, tendência quase omnipresente na obra de Pessoa. Assim, a exis‑
tência de trechos oníricos conduziu, muito naturalmente, a textos que explicavam o como e o porquê dos
sonhos.
Em Bernardo Soares — prosador que poetiza, sonhador que raciocina, místico que não crê, decadente
que não goza — Pessoa inventou o melhor autor possível […] para dar unidade a um livro que, por natu‑
reza, nunca poderia tê­‑la. A ficção de Soares (a quase­‑realidade de Pessoa), mais do que uma mera justifica‑
ção ou explicação deste desconexo Livro, é proposta como modelo de vida para todas as pessoas que não
se adaptam à vida real normal e quotidiana, e não só. Pessoa sustentava que para viver bem a vida era
preciso manter sempre vivo o sonho, sem nunca realizá­‑lo, dado que a realização seria sempre inferior ao
sonhado. E deu­‑nos Bernardo Soares para mostrar como se faz.
Viver sonhando, sonhar imaginando, imaginar sentindo — era este o credo que ressoava em quase
todos os cantos do universo pessoano, mas Soares era o exemplo mais prático disto. Enquanto as outras
estrelas heteronímicas falam de sonhar e de sentir tudo, Bernardo Soares sonha e sente «realmente», diaria‑
mente. Para isso são fundamentais aqueles trechos pós­‑simbolistas com florestas, lagos, reis e palácios, pois
são eles­‑mesmos sonhos, postos em palavras.
Pessoa sabia demasiadamente bem que «a Natureza é partes sem um todo» («O guardador de rebanhos»,
xlvii) e que qualquer unidade é uma ilusão. Qualquer, não. Uma unidade relativa, provisória, fugitiva, uma uni‑
dade que não pretende ser absoluta e nem sequer especialmente una, construída em torno de uma imagina‑
ção, uma ficção, uma caneta — esta foi a unidade que Fernando Pessoa procurou. O Livro do desassossego, na
sua dispersão e impossibilidade, conseguiu esta muito modesta mas verdadeira unidade. Talvez não haja, neste
nosso século já quase no fim, outro livro mais honesto do que este Livro que nem sequer o é.
Na prosa «musicante» de Bernardo Soares, ainda mais vincadamente do que nos outros eus que faziam
parte do coro, Pessoa escreveu­‑se, escreveu o seu século e escreveu­‑nos a nós até aos infernos e paraísos
que habitam cada um, mesmo que sejamos, como Pessoa, descrentes. Soares chamou a este não­‑livro as
suas «confissões», mas estas nada têm a ver com confissões religiosas ou literárias. Não há, nestas páginas,
nenhuma esperança, nem sequer desejo de remissão, salvação, ou coisa parecida. Também não há auto‑
compaixão, nem embelezamento da sua condição irremediavelmente humana. Bernardo Soares não con‑
fessa, salvo no sentido de «reconhecer». Conta, relata, o seu próprio ser, porque é a paisagem mais próxima,
mais sua, mais real. E é um caos.

Richard Zenith, «Introdução», in Bernardo Soares, Livro do desassossego, Lisboa, Planeta DeAgostini, 2006, pp. 13­‑30 (com adaptações).
UNIDADE

ALBERTO CAEIRO
Jacinto do Prado Coelho
1

Fernando Pessoa
Há dois Caeiros, o poeta e o pensador, sendo o primeiro que em teoria se desdobra no segundo. Os
motivos fundamentais do poeta consistem na variedade inumerável da Natureza, nos estados de semicons‑
ciência, de panteísmo sensual, na aceitação calma e gostosa do mundo como ele é.
Os seus olhos azuis, infantis, se dermos fé ao testemunho de Campos, demoravam­‑se extasiados em
cada coisa, admirando o que a tornava diferente das outras e diferente dela própria noutro momento.
Caeiro surge, pois, como lírico espontâneo, instintivo, inculto (não foi além da instrução primária,
informa Campos), impessoal e forte como a voz da Terra, de candura, lhaneza, placidez ideais. Tudo assume
nele, diz ainda Campos, «qualquer coisa de luminoso e de alto, como o sol sobre a neve dos píncaros ina‑
tingíveis». Sol e neve, símbolos da pureza e da verdade.
O certo, porém, é que é o autor de poemas; e começa aqui o paradoxo da sua poesia. Às palavras
procura transmitir Caeiro a inocência, a nudez da sua visão. Daí, algumas vezes, a simplicidade quase infan‑
til do estilo, as séries paratáticas, a familiaridade de algumas expressões, as imagens e comparações come‑
zinhas, realistas, caseiras ou de ar livre. Mas como podia Caeiro exprimir linguisticamente a infinita diversi‑
dade, as incontáveis metamorfoses do mundo? A linguagem situa­‑nos numa esfera de abstrações.
Até certo ponto, é verdade, o artista pode […] restituir à linguagem a virgindade perdida. Mas o estilo
de Caeiro, pobre de vocabulário, predominantemente abstrato, incolor, discursivo, de modo algum se pres‑
tava à descrição pictórica impressionista fiel à individualidade das coisas. Em Caeiro, o pensador, o «racioci‑
nador», suplanta o poeta; eis o que se induz do próprio estilo. Se aqui ou ali Caeiro se corrige, para adequar
a linguagem à realidade experimentada, é ainda a inteligência de análise que intervém.
Aqui está: Pessoa, ao forjar Caeiro, partiu de uma imagem mental, de uma atitude apenas vivida pela
inteligência, que «ilustrou» dando voz a uma «personagem» típica. Por isso, apesar de Caeiro, ao falar de si
próprio, e Campos, ao evocar o mestre, quererem convencer­‑nos de que o pensamento de Caeiro é o pen‑
samento ingénuo de um poeta, o fruto verde de uma experiência instintiva, a poesia deste nos deixa uma
impressão totalmente contrária. Medularmente, Caeiro é um abstrator paradoxalmente inimigo das abstra‑
ções; daí a secura, a pobreza lexical do seu estilo. Em regra, ouvimo­‑lo argumentando, criticando, não
transmitindo sensações mas discorrendo sobre sensações — está então no seu elemento. É sintomático da
qualidade do seu espírito que o conteúdo da sensação lhe seja indiferente, que sublinhe o ato de ver, não
o objeto da visão: «Vejo.» «Vi como um danado.» Igualmente sintomática a preponderância da vista sobre
os outros sentidos, porque a vista é o menos sensual de todos eles, aquele que pode metaforicamente
indicar a perceção, a compreensão. Indubitavelmente, Caeiro é sobretudo inteligência. Filosofa contra a
filosofia. Aqui o feitiço volta­‑se contra o feiticeiro: lendo Caeiro não vemos árvores, ouvimos expor uma
teoria.
Caeiro vacila, não tem aquela inteireza de vidente e apóstolo, porta­‑voz de uma doutrina de felicidade,
que as «Notas» de Campos levam a crer. As contradições [outros exemplos: animiza os fenómenos naturais,
rasgo da sua faceta impressionista; alude, bafejado por um sopro de franciscanismo, à Terra­‑Mãe, às irmãs
plantas; fantasia o que está para além de uma janela, embora logo se empertigue e afirme nunca transpor
a realidade imediata; fala em Deus, em destino, em fatalidade sublime, etc.], é certo que tornam mais humana
e dramática a sua poesia. Caeiro, longe de consubstanciar o paganismo, é um homem inseguro de si, em
luta consigo mesmo. A sua lucidez (a inexorável lucidez de Fernando Pessoa) não lhe permite uma felici‑
dade completa. Ora quer parecer que não pensa, ora se censura por querer perceber. Mas não denunciam tais
oscilações e inconsequências que Fernando Pessoa, tendo visionado Caeiro como protótipo de uma dou‑
trina sobre­‑humana, ficou, ao realizar os seus poemas, aquém do ideal proposto, que transparece do que
Caeiro diz de si próprio, e revelou a madre intelectual da gestação deste, a precedência efetiva da teoria em
relação às vivências poéticas, só mentalmente vividas […] e portanto abstratamente expressas?
O verdadeiro Caeiro define­‑se por íntimas tensões, por uma ascese da ingenuidade como limite dis‑
tante; é um civilizado que procura libertar­‑se da carga, tornada insuportável, dos produtos de uma razão
milenária; representa­‑nos; tenta, como nós, fazer a lavagem ao cérebro tornada necessária […]. Glosando
aqui o tema da felicidade em função do dilema consciência­‑inconsciência — tema partilhado pelos demais
heterónimos e Pessoa ortónimo —, Caeiro desvenda­‑se na raiz como personagem nascida para encarnar
uma aspiração, «como que o reverso ou o negativo — dirá Robert Bréchon — de uma consciência de si, de
que tem a experiência autêntica».

Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, 7.ª edição, Lisboa, Verbo, 1982, pp. 23­‑32 (com adaptações).
UNIDADE

1 RICARDO REIS
Jacinto do Prado Coelho
Fernando Pessoa

A ressonância moral da poesia de Reis, «pagão por carácter», na definição de Campos, traduz­‑se num
estilo denso e construído.
O seu conceito de vida terrena aparenta­‑se, nas linhas gerais, com o homérico. Simplesmente, é um
pagão que duvida, ou não fosse discípulo de Caeiro e condiscípulo de Pessoa…
Em Reis a conceção dos deuses é vária e incerta. Vivem perto de nós, «tranquilos e imediatos», nos rios,
nos campos, nos bosques? A sua presença confundir­‑se­‑á com a presença visível das coisas, de acordo com
a lição de Caeiro. Ou moram no indefinido, plasmados em «matéria longínqua e inativa»? Ou não passam
de realidades subjetivas que nos obsidiam?
Assim angustiado perante um Destino mudo que o arrasta na voragem, Reis procura na sabedoria dos
antigos um remédio para os seus males. Também os Gregos sofreram agudamente a dor da caducidade e
o peso da Moira cruel. Simplesmente, optaram por aceitar com altivez o destino que lhes era imposto.
Reconhecendo que a vida terrena outorgada a cada um, não obstante a sua instabilidade e contingência, é
o único bem em que podemos, até certo ponto, firmar­‑nos, souberam construir a partir dele uma felicidade
relativa, encarando com lucidez o mundo e compensando a sua radical imperfeição pela criação estética,
fazendo da própria vida uma arte. Reis copia­‑lhes o exemplo. Não hesita em confessar a Lídia que, de qual‑
quer modo, prefere o presente precário a um futuro que teme porque o desconhece. Mas como habilmente
fruir do pouco que nos é dado — o dia que passa?
O poeta deixa­‑se tentar pelo ópio da perfeita inconsciência. Considera o contentamento dos que
vivem distraídos. Ele próprio algumas vezes experimentou viver exterior a si, como os campos, regressar ao
Caos e à Noite. Mas a noção da dignidade humana […] fá­‑lo arrepiar caminho, refluir ao eu consciente. Quer
encarar o destino frente a frente, lúcido e solene. Já nisto segue Epicuro, para quem «uma clara perceção
das coisas» era o melhor dom que sobre a Terra podíamos desejar.
Embora com tintas de estoicismo, devidas talvez ao facto de ser Horácio o seu autor de cabeceira, Reis
formula uma filosofia da vida cuja orientação é, na verdade, epicurista (epicurismo também haurido, em
parte, se não quase exclusivamente, na poesia do Venusino). O homem de sabedoria edifica­‑se, conquista
a autonomia interior na restrita área de liberdade que lhe ficou. Essa conquista começa por um ato de abdi‑
cação: «Abdica / E sê rei de ti próprio.» Reis propõe­‑se e propõe­‑nos um duro esforço de autodisciplina.
O primeiro objeto é a submissão voluntária a um destino involuntário, que deste modo cumprimos altiva‑
mente, sem um queixume. O homem de sabedoria chega a antecipar­‑se ao próprio destino, aceitando
livremente a morte. O segundo objetivo é evitar as ciladas da Fortuna, depurando a alma de instintos e
paixões que nos prendam ao transitório, alienando a nossa vida. Com Epicuro, […] que via tranquilamente
a vida «à distância a que está», digno como um deus, aprendeu Reis que a ataraxia é a primeira condição de
felicidade. A ataraxia, note­‑se, não implica para Epicuro ausência de prazer mas indiferença perante todo o
prazer que nos compromete, colocando­‑nos na dependência dos outros ou das coisas. Além da sensação
elementar de existir, os prazeres tipicamente epicuristas são espirituais, como a volúpia levemente melan‑
cólica de recordar os bons momentos do passado.
Tão repetidamente, às vezes com pequenas variantes, glosa Reis certos temas horacianos, decalcando
atitudes e processos de estilo, que as suas odes chegam a dar a impressão de exercícios literários tornados
possíveis por afinidades de temperamento e gosto.
Moralistas ambos, tanto Reis como Horácio fundam a sua filosofia prática na reflexão sobre o fluir do
tempo, a inanidade dos bens terrenos, os enganos da Fortuna e a morte. Ambos descrevem em pequenos
apontamentos o inverno e o regresso da primavera, evocam o dançar cadenciado das ninfas, lembram a
brevidade da existência humana. Ambos pregam a moderação nos desejos e nos prazeres, as delícias do
viver campestre, a vantagem em iludir o sofrimento com o vinho e o espetáculo das flores.
A imitação parece em desacordo com o frouxo erotismo de Reis quando este dirige apelos a mulheres
fictícias, cujos nomes foram colhidos no próprio Horácio (Lídia, Neera, Cloe…), para corresponderem ao seu
desejo amoroso, aquecidas pela ideia de que a juventude passa e a morte ronda. Igualmente horaciana a
conceção da grandeza do poeta, inteiramente consagrado à obra.
Reis parece existir apenas em função de um problema, o problema crucial de remediar o sentimento
da fraqueza humana e da inutilidade de agir por meio de uma arte de viver que permita chegar à morte de
mãos vazias e com um mínimo de sofrimento.

Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, 7.ª edição, Lisboa, Verbo, 1982, pp. 23­‑32 (com adaptações).
UNIDADE

ÁLVARO DE CAMPOS
Jacinto do Prado Coelho
1

Fernando Pessoa
Poeta sensacionista e por vezes escandaloso (qualificativos da carta de Pessoa a Casais Monteiro, já
citada), Campos é o primeiro a retratar­‑se e a referir circunstâncias biográficas, o que reforça a simulação e
daria ao próprio Fernando Pessoa estímulos para se manter na pele do heterónimo. Descreve­‑se «de monó‑
culo e casaco exageradamente cintado», «franzino e civilizado», «pobre engenheiro preso a sucessibilíssimas
vistorias». Escreve, febril, «à dolorosa luz das grandes lâmpadas elétricas da fábrica», ou, no seu cubículo,
ouvindo o «tic­‑tac estalado das máquinas de escrever».
Dos vários heterónimos é aquele que mais sensivelmente percorre uma curva evolutiva. Tem três fases:
a do «Opiário», poema com a data fictícia de 3­‑1914; a do futurismo whitmaniano, exuberantemente docu‑
mentado na «Ode triunfal» (4­‑1914), em «Dois excertos de odes» (30­‑ 6­‑1914), «Ode marítima» (publicada no
n.º 2 do Orpheu, 1915), «Saudação a Walt Whitman» (11­‑ 6­‑1915) e «Passagem das horas» (22­‑5­‑1916), para só
episodicamente assomar em poemas posteriores; enfim, uma terceira fase a que chamarei pessoal por estar
liberta de influências nítidas, desde «Casa branca nau preta» (11­‑10­‑1916) até 1935, ano da morte de Pessoa.
Campos é o primeiro a reconhecer uma evolução. E, na poesia à memória de Caeiro, declara que o
mestre, acordando­‑ o para a «sensação» e a «nova alma», lhe tirou a capacidade de ser apenas um deca‑
dente «estupidamente pretensioso / Que poderia ao menos vir a agradar…».
Compreende­‑se que este Álvaro de Campos que desponta — o da segunda fase — com a sua vitali‑
dade transbordante, o seu amor ao ar livre e ao belo feroz, venha a condenar a literatura decadente, planta
de estufa corrompida, em cujos pecados, como o Fernando Pessoa ortónimo, incorreu: fá­‑lo­‑á a defender
uma estética não aristotélica baseada já não na ideia de beleza, no conceito de agradável, em suma, na
inteligência, mas sim na ideia de força, na emotividade individual pela qual o escritor subjuga os outros sem
procurar captá­‑los pela razão.
Intelectual, apesar do rótulo de sensacionista, a poesia de Campos é­‑ o tanto como a de Caeiro.
Justifica­‑a o desejo de afogar o tédio, de suprimir pela embriaguez a dor de viver. Campos sentiu como
Whitman para deixar de sentir como Campos.
Publicados na revista Athena em 1924, estes «Apontamentos para uma estética não aristotélica» esclare‑
cem o que Álvaro de Campos já era, como poeta emotivo e sensacionista, em 1914. Grassava então, nos meios
literários avançados, o entusiasmo por uma poesia que espelhasse a civilização industrial da época. Em França
e na Itália, Marinetti divulgara a partir de 1909 os princípios basilares do futurismo: luta sem quartel às tradições,
à cultura feita; exaltação dos instintos guerreiros; apologia de um novo Homem protótipo isento de sensibili‑
dade, saudável, amoral, dominador, livre de todas as peias. Na arte, o futurismo daria pela cor, pelo som ou pela
palavra «a própria sensação dinâmica», «a vibração noturna dos arsenais e dos estaleiros».
Em França são Apollinaire, Blaise Cendrars e Valery Larbaud os poetas das fulgurações da mecânica, do
automóvel, do paquete, do avião, da «respiration légère et facile des locomotives», como diz A. O. Barna‑
booth. Mas o grande precursor de uns e de outros, como tal reconhecido por Marinetti, é Whitman, já
influente a ponto de Henri Ghéon temer que o entusiasmo pelo «bárbaro» genial fizesse esquecer a tradição
estética da poesia francesa. Será também Whitman o grande inspirador de Álvaro de Campos da segunda
fase, aquele que realiza a intenção inicial de Pessoa: criar um poeta da vertigem das sensações modernas,
da volúpia da imaginação, da energia explosiva.
Após a descoberta do futurismo e de Whitman, Campos adotou, além do verso livre, já usado pelo seu
outro mestre Caeiro, um estilo esfuziante, torrencial, espraiado em longos versos de duas ou três linhas,
anafórico, exclamativo, interjetivo, monótono pela simplicidade dos processos, pela reiteração de apóstrofes
e enumerações de páginas e páginas, mas vivificado pela fantasia verbal perdulária, inexaurível.
Neste estilo vagabundo, vertiginoso, cantou ele ora a hipertrofia de uma personalidade viril que tudo
integra em si e não respeita limites, ora os impulsos que emergem da lava sombria do inconsciente, o maso‑
quismo, a volúpia sensual de ser objeto, vítima, a prostituição febril às máquinas, à Humanidade, ao mundo,
a ponto de se tornar «um monte confuso de forças», um eu­‑Universo, disperso nas coisas mais díspares.
A partir de 1916, Campos é o poeta do abatimento, da atonia, da aridez interior, do descontentamento
de si e dos outros.
Decadente, não já no sentido histórico­‑literário da palavra, mas por se ter despenhado da exaltação
heroica, nervosamente conseguida, dos longos poemas à Whitman. Longe de ser medularmente o «turbu‑
lent, fleshy and sensual» autor de Leaves of grass, corre­‑lhe nas veias o sangue aguado de Pessoa; e a curva
evolutiva da sua poesia mostra que o seu pretenso dinamismo é narcótico para afogar o tédio, bebedeira
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para transpor «o muro da sua lógica», da sua inteligência «limitadora e gelada». O estilo ressente­‑se da
modorra como das crises de histerismo. Atira desordenadamente ao papel desejos, pensamentos, imagens
que lhe ocorrem, num estado de semi­‑inconsciência, à deriva. Brusco e opresso, as suas palavras são agora
Fernando Pessoa

mais humanas, lateja nelas maior sinceridade.


Perante este Campos decaído, cosmopolita, melancólico, devaneador, irmão do Pessoa ortónimo no
ceticismo, na dor de pensar e nas saudades da infância ou de qualquer coisa irreal, compreende­‑se que seja
o único heterónimo que comparticipe da vida extraliterária de Fernando Pessoa. Conta Alfredo Guisado que
às vezes Pessoa o encontrava na rua e lhe dizia: «Você hoje vai falar com o Álvaro de Campos.» E não era só
por blague, acrescenta Guisado: «tinha realmente nesse dia uma maneira de falar, uma maneira de dizer,
uma maneira de sentir diversa daquela com que costumávamos encontrá­‑lo.»
Campos disserta de vez em quando em prosa, chegando a criticar e refutar opiniões de Pessoa ortónimo.
No entanto, contrariamente ao plano de simulação, Campos e Pessoa estão por vezes de acordo: pensam
ambos, por exemplo, que a metafísica é a pseudociência de se figurar mundos impossíveis; Campos assevera
que nada se prova, que todo o pensamento enche eternamente um tonel eternamente vazio […], o que Pes‑
soa confirma, em seu próprio nome, nas «Palavras de crítica a Entrevistas» a respeito de Cabral Metello, em 1923:
«Teve razão porque a não teve. [Campos escrevera: «Diga ao Fernando Pessoa que não tenha razão.»] Interpre‑
tar é não saber explicar. Explicar é não ter compreendido.» Ambos aprenderam a lição de Caeiro…
No íntimo, a divergência é mais temperamental, e daí estilística, do que de opiniões ou preocupações.
É palpável sobretudo na poesia. Campos, desordenado, febril, ora nos surge na dependência da circunstân‑
cia exterior, do estado dos nervos, das sensações do momento, ora mergulha em si próprio para sentir o
terror do mistério de todas as coisas; em qualquer caso é o poeta da inspiração sem comando, da expressão
solta e desleixada, dos hiatos da inteligência que organiza e clarifica. Pelo contrário, Pessoa, fiel a uma longa
tradição estética, procede a uma estilização mais avançada da matéria lírica; transmite em versos musicais,
densos, sóbrios, serenos, translúcidos, vivências subtis e dignas de recato. Distinção, aliás, que nem sempre
se observa com a mesma nitidez.

Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, 7.ª edição, Lisboa, Verbo, 1982, pp. 57­‑ 66 (com adaptações).

CAMPOS E CAEIRO
Cleonice Berardinelli
Formalmente, […] Caeiro e Campos igualam­‑se na maioria dos versos deste, mas iludir­‑se­‑ia quem
supusesse que igual forma expressaria mensagens semelhantes. Na verdade, é fundamental a divergência
dos caminhos percorridos pelos dois poetas, divergência sintetizada nas definições que Pessoa dá de seus
filhos na tantas vezes citada carta a Casais Monteiro. Tendo Pessoa ele­‑mesmo como ponto de origem,
Caeiro é o que dele mais se afasta; Campos é o que nele mais se adentra. Caeiro, o mais objetivo; Campos,
o mais subjetivo, e, pois, emotivo, extrovertidamente emotivo, a lamentar, em versos de insuperável beleza,
o não poder ser o outro, o mestre que tentou levá­‑lo «para o alto dos montes» onde ele, «criança das cida‑
des do vale, não sabia respirar».
Do mesmo modo que, em decassílabos rimados, heroicos ou sáficos, Camões cantou tanto os seus
próprios problemas existenciais — tendo por centro o amor —, como as glórias da pátria, utilizando, pois,
um mesmo veículo para diferentes fins, o verso livre e brando dos heterónimos pessoanos será usado por
Caeiro como linguagem entre narrativa e reflexiva, totalmente despida de ênfase, por vezes quase tocando
a prosa; a linguagem de Campos é também por vezes narrativa, por vezes reflexiva, diferindo ele de Caeiro
por não propor uma filosofia, como o mestre; suas reflexões são sobre alguém (sobretudo ele mesmo) ou
alguma coisa; não pretendem generalizar, atingindo a totalidade. Muitas vezes é passionalmente enfática.
Pode­‑se dizer que o Caeiro de «O guardador de rebanhos» é quase o mesmo dos «Poemas inconjun‑
tos». O diferente é o de «O pastor amoroso»: e o que surpreende é a manutenção do mesmo tom, manso e
fluente, com repetições insistentes, anafóricas ou não, a reforçar o empenho em persuadir, próprio do mes‑
tre. Enquanto guardador de rebanhos, o poeta se relaciona com o mundo fenomenológico através dos
sentidos; enquanto pastor amoroso, tem entre si e a natureza o objeto do amor que lhe interceta a perceção
pura, fazendo­‑o pensar com o coração.

Cleonice Berardinelli, «O discurso inovador de Caeiro e Campos», in Carlos Reis e António Apolinário Lourenço,
História crítica da literatura portuguesa, vol. viii, Lisboa, Verbo, 2015, pp. 152­‑153 (com adaptações).
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Mensagem
Jacinto do Prado Coelho
1

Fernando Pessoa
D. Sebastião, protótipo da loucura heroica, obsidia com frequência a moderna lírica portuguesa, quer
para simbolizar a decadência quer polarizando as esperanças messiânicas no ressurgimento pátrio.
Tentando a épica sem abandonar uma atitude lírica essencial, Fernando Pessoa insere­‑se na mesma
corrente. [J]á em 1912, Fernando Pessoa rematava com estas palavras uma série de artigos sobre «A nova
poesia portuguesa» dados a lume em A águia: «E a nossa grande Raça partirá em busca de uma Índia nova,
que não existe no espaço, em naus que são construídas «daquilo de que os sonhos são feitos». E o seu
verdadeiro e supremo destino, de que a obra dos navegadores foi o obscuro e carnal anterremedo, realizar­
‑se­‑á divinamente.» Anunciava assim, com a obscuridade própria de um profeta, uma extraordinária aven‑
tura espiritual para que as almas dos Portugueses deviam preparar­‑se.
O autor de Mensagem singulariza­‑se como um épico sui generis, introvertido, cantor, sem tuba ruidosa,
de miríficas irrealidades. Escreve o seu livro «à beira­‑mágoa», de olhos humedecidos, para expandir a «febre
de Além» que atribui ao infante D. Fernando, para condensar em verbo poético o sonho de uma Índia que
não há, por isso melhor. Ao Império português do século xvi não chamou ele «obscuro e carnal anterre‑
medo»? O idealismo estreme, ocultista ou platónico, de alguns dos seus poemas líricos reduz o mundo
visível a cópia grosseira do mundo invisível. Aqui sobre a terra «tudo é noturno e confuso», tudo são proje‑
ções, sombras, fumo de um lume escondido; no outro mundo é que vivemos como almas. Mensagem
reafirma a cada passo a mesma repugnância pelo carnal, pelo que o sonho ou a loucura não redimem.
São as potências do invisível, o mito («nada que é tudo»), a tenda, a chama que desce a iluminar o herói,
são essas potências que, fecundando a realidade, tornam a vida digna de ser vivida, ou, melhor, transformam
a existência, mero vegetar, em vida, quer dizer, promessa do que não há, perseguição do Impossível, grandeza
de alma insatisfeita. «Braços cruzados, fita além do mar.» Olhar sem alvo definido, olhar típico da Mensagem.
Deus ou os deuses talharam o destino dos povos.
Mensagem é também um elogio do Português, desvendador e dominador de mundos. O que o define
não é a ânsia do poderio terreno mas a fome de Absoluto, um ideal cujo escopo pertence à «alma interna».

Jacinto do Prado Coelho, Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, 7.ª edição,


Lisboa, Verbo, 1982, pp. 49­‑52 (com adaptações).

Mensagem — À PROCURA DA IDENTIDADE /


a PENETRAÇÃO NA ALMA DA PÁTRIA
Dalila Pereira da Costa
À procura da sua identidade, desse seu eu perene, que incessantemente à sua apreensão imediata e
fenomenal lhe fugia, sempre vivera como poeta.
Agora essa identidade de novo é procurada e encontrada, pela união com a pátria. Assim ela surge em
Mensagem. Pela sua consciência mítica, pela comunhão no saber existencial desse ser, o poeta atinge aqui
a identidade tão ansiada, sob outra forma ou plano. Assim, não empiricamente, não subjetivamente, mas
pela sua transcendência, através dum outro ser: dum não­‑eu.
Assim, essa identidade, esse conhecimento, é­‑lhe dado por uma ligação anímica vivida, profunda, que
é a do amor: essa a que se referiria ao chamar­‑lhe «o meu intenso sofrimento patriótico».
[P]oder­‑se­‑á dizer que, em Mensagem, ele expressou poeticamente os mitos que os Descobrimentos
tinham expressado sob a forma de ação.
Assim a lenda se escorre / A entrar na realidade, / E a fecundá­‑la decorre.
E por esta transmutação do real, sobre este real mais verdadeiro, o poeta se curvará, a partir dos pri‑
mórdios da sua pátria, no mesmo movimento para captá­‑la, desde as origens, tal como fará na sua aventura
espiritual sobre si mesmo, na mesma finalidade de, por esta tomada total de consciência através dos seus
tempos, tentar captar sua identidade, seu ser eterno, aquele que emerge e subsiste, incólume ao tempo, ao
devir. Tal como para si mesmo, «como as páginas já relidas, vergo minha atenção sobre quem fui de mim»,
nesse regresso às fontes, para refazer depois a sua história.
E num processo, o de lógica dos mitos, poderosamente estruturado, mas não seguindo o desenvolvi‑
mento realista da história; nela elegendo e fazendo subir a existência só os factos e os homens que em si
contêm uma essência paradigmática.
UNIDADE

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Assim este curvar­‑se sobre um ser em transformação incessante, a pátria na sua história, não implicará
em si um propósito e uma visão puramente ou intencionalmente historicista, mas antes, toda a obra
Mensagem, na sua particular formulação simbólica e mitológica, implicará e transportará nela uma conceção
Fernando Pessoa

trans­‑histórica. Como toda a realidade dita por esta forma de conhecimento, ela conterá em si uma reali‑
dade para além das coordenadas do tempo. Uma perene atualidade que não vive na história, mas noutro
plano: aí onde a cronologia não é a deste tempo do mundo real e fenomenal, mas como a feição dum outro
movimento: como o desenvolvimento interno duma aventura que se faz (e se deve ver), no mundo e tempo
da alma. Aí, todos esses homens, reais antepassados fundadores e heróis, evoluem numa paisagem que já
não é a deste mundo e as figuras e feitos possuem um recorte e erguem­‑se num halo de eternidade.
Aí há uma transcrição da história duma nação, mas transfigurada. Uma transfiguração das personagens
históricas em míticas. Que assim, pelo arquétipo, acedem a outro plano da realidade.
Foi o ser eterno, «a vida verdadeira» da pátria, o que o poeta tentou fixar na sua poesia. Tal como o
pretendeu para si próprio e a sua vida. E foi uma certa e peculiar história de Portugal aquela que ficou
expressa em Mensagem, como uma criação mítico­‑poética.
Aí também, ele tentou captar um ser «para além do tempo e do espaço»: esse feito de sentido eterno
e transcendente que múltiplas vezes surge formulado na sua obra como ideal último a atingir.
Conjunto de gestos arquetipais desses antepassados, que abriram o caminho da realização dum ente
coletivo (ou iniciaram um mundo), Mensagem surge a um tempo como mito e rito que conta a criação
duma pátria — tal como outra cosmogonia.
Assim, ele não explicou, mas tornou visíveis na sua obra os mitos fundamentais da sua pátria, tornando
possível a sua maior tomada de consciência por esse povo — erguendo­‑ os a mitos significativos. Serão
esses os que estruturam toda a obra Mensagem. E, entre eles, acentuará sobretudo os que a ligaram a uni‑
versalidade: os propulsores dos descobrimentos. Estes, vistos como o momento da sua verdadeira realiza‑
ção. O seu ato mais específico e mais universal.
Mensagem poderá ser vista como uma epopeia. Porque parte dum núcleo histórico, mas a sua formulação,
sendo simbólica e mítica, do relato histórico, não possuirá a continuidade. Aqui, a ação dos heróis só adquire
pleno significado dentro duma referência mitológica. Aqui serão só eleitos, terão só direito à imortalidade,
aqueles homens e feitos que manifestam em si esses mitos significativos. Assim, sua estrutura será dada pelo
que, noutra linguagem, se poderá chamar os esquemas ideológicos, ou as ideias­‑forças desse povo: regresso ao
paraíso, realização do impossível, espera do messias… Raízes do desenvolvimento dessa entidade coletiva.
Os antepassados, os fundadores, que pela sua ação criaram a pátria, a ergueram a personalidade,
separada, ou a plasmaram na sua alma própria; as Mães, as que estão na origem das suas dinastias, cantadas
como «Antigo seio vigilante », ou «humano ventre do Império»; os heróis navegantes, aqueles que percor‑
reram o mar em busca do caminho da imortalidade, cumprindo um dever individual e pátrio (realização
terrestre duma missão transcendente); e, finalmente, depois desta missão cumprida, desta realização, na era
crepuscular de fim de vida, os profetas, as vozes que anunciam já aquele que viria regenerar essa pátria
moribunda, abrindo­‑lhe novo ciclo de vida, uma nova era — o Encoberto.
Assim, a estrutura de Mensagem, sendo a dum mito numa teoria cíclica, a das Idades, transfigura e
repete a história duma pátria como o mito dum nascimento, vida e morte dum mundo; morte que será
seguida dum renascimento. Desenvolvendo­‑a como uma ideia completa, de sentido cósmico e dando­‑lhe
a forma simbólica tripartida — Brasão, Mar Português, O Encoberto. Que se poderá traduzir como: os funda‑
dores, ou o nascimento; a realização, ou a vida; o fim das energias latentes, ou a morte: essa que conterá já
em si, como gérmen, a próxima ressurreição, o novo ciclo que se anuncia — o Quinto Império. Assim,
a terceira parte é toda ela um fim, uma desintegração; mas também toda ela cheia de avisos, prenhe de
pressentimentos, de forças latentes prestes a virem à luz: depois da Noite e Tormenta, vem a Calma e a Ante‑
manhã: estes são os Tempos. E aí sempre perpassarão, com um repetido fulgor, a nota cantada, como evo‑
cação religiosa num coro pátrio, sempre a mesma mas em modulações diversas, a nota da esperança:
D. Sebastião, O Desejado, O Encoberto…
É dessa Tormenta, o mítico caos, a noite, o abismo, donde surgirá o novo mundo, «Que jaz no abismo
sob o mar que se ergue […] Isto, e o mistério de que a noite é o fausto… / Mas súbito, onde o vento ruge, /
O relâmpago, farol de Deus, um hausto / Brilha, e o mar’scuro ‘struge».
E como uma penetração na alma pátria, na sua mitologia, é tanto mais profunda quanto maior é o seu
poeta, e como a universalidade deste é também tanto maior quanto mais genuinamente ele carrega em si
e traz à luz o seu mais particular, específico e profundo ser anímico, será dado aqui, nestes poemas, medir
a grandeza de Fernando Pessoa.
Dalila Pereira da Costa, O esoterismo de Fernando Pessoa, 4.ª edição, Porto, Lello Editores, 1996, pp. 162­‑171 (com adaptações).
UNIDADE

a estrutura simbólica dE Mensagem


António Quadros
1

Fernando Pessoa
Poeta­‑filósofo, Poeta­‑mágico e Poeta­‑alquimista, dá Fernando Pessoa a Mensagem uma estrutura rigo‑
rosa em termos simbólicos.
Observe­‑se como as três grandes teorias proféticas em cujo corpus o poeta se inspirou, a das Sete ida‑
des de Santo Agostinho, reinterpretadas por Fernão Lopes; a das Três idades de Joaquim Flora, aperfeiçoadas
por Dinis e Isabel, os Franciscanos e os Cavaleiros portugueses da Ordem do Templo–Ordem de Cristo e a
dos Cinco impérios, do Profeta Daniel, de Luís de Camões ou do Padre António Vieira, estão subjacentes à
poética de Mensagem, cuja estrutura se baseia efetivamente nos números 3, 5, 7 e também 12, conjunção
do 5 e do 7.
O livro divide­‑se efetivamente em três Partes ou três Épocas: Brasão, Mar Português e O Encoberto, cor‑
respondentes, em termos lusíadas, às Idades do Pai (os fundadores da nação portuguesa), do Filho (os que,
recolhendo a herança, a dilataram pelos mares e continentes) e do Espírito (que ainda não veio, embora
tenha sido anunciada, o Espírito encoberto, que espera o Desejado).
Na Parte I, Brasão, retrato heráldico da Pátria antiga, os Sete Castelos correspondem exatamente, embora
transpostos para uma história lusíada sacralizada, às Sete Idades. A primeira não é a do mítico Adão, como
em Santo Agostinho, fundador da raça humana, mas a do não menos mítico Ulisses, o lendário fundador de
Ulissipona ou Lisboa, a que se seguem Viriato, o Conde D. Henrique, D. Tareja e D. Afonso Henriques, ocu‑
pando sintomaticamente D. Dinis o lugar da 6.ª Idade, a da preparação para o segundo Advento, ele que
criou a Ordem de Cristo sobre as cinzas ainda ardentes da Ordem do Templo e ritualizou as Festas da Coro‑
ação do Imperador do Espírito Santo. Como em Fernão Lopes, a Sétima Idade Portuguesa é aberta por
D. João I, agora ladeado por Filipa de Lencastre. O primeiro é apresentado como Mestre, sem o saber, do
Templo / Que Portugal foi feito ser; lembramo­‑nos aqui da simbólica do Templo de Salomão e da Jerusalém
Celeste que, na profecia de São João em Patmos, há de descer sobre a Cidade dos Homens. E a segunda é
vista como Princesa do Santo Graal / Humano ventre do Império./ Madrinha de Portugal, assim estatuindo, como
no par Conde D. Henrique–D. Tareja, o equilíbrio dos princípios masculino e feminino, paternal e maternal.
Ulisses, Viriato, o Conde D. Henrique, D. Afonso Henriques / D. Tareja, D. Dinis e D. João I / D. Filipa
seriam, pois, os castelos do brasão português, os seus bastiões paradigmáticos, em número fixado a partir
da dinastia de Avis no brasão nacional.
Se os Castelos são 7, as Quinas ou as Chagas de um Portugal­‑ Cristo, sacrificando­‑se a um destino glo‑
rioso porque da Ordem divina, são 5, correspondendo a 5 mártires da pátria. O quinto é D. Sebastião, Rei de
Portugal, sendo os anteriores o Rei D. Duarte, o Infante Santo, D. Fernando, o lnfante D. Pedro e o Infante
D. João. Aliás, para encontrar cinco príncipes­‑mártires, todos de Avis, Fernando Pessoa teve que forçar a
nota, pois, verdadeiramente, só o Infante Santo e D. Sebastião poderiam ser considerados mártires ao ser‑
viço de uma causa nacional; a analogia dos restantes, embora todos com mortes prematuras, é problemá‑
tica, sendo discutível admitir que D. Pedro tenha sido levado a uma morte violenta em Alfarrobeira, por
razões outras de que a sua ambição pessoal.
Estranha, mas compreensível, é a designação de Nun’Álvares, afinal de contas Condestável do Reino,
mas não o Rei, como o portador da coroa. É que, tal como o fizeram Oliveira Martins e Guerra Junqueiro,
também Pessoa o vê como o arquétipo do herói­‑cavaleiro puro. Ele é o cavaleiro da Távola Redonda, que,
como Lancelote, Parsifal ou Galaás, parte em demanda do Graal, levando consigo a espada do Rei Artur,
Excalibur. É Nun’Álvares que coroa simbolicamente o fundador da dinastia de Avis, D. João l, com o qual se
inicia a sétima idade do Mundo. Entre Nun’Álvares, o herói­‑cavaleiro que acabou os seus dias entrando em
religião e escolhendo a pureza e a castidade, o Infante D. Henrique, sábio, visionário e casto, e D. Sebastião,
o herói­‑cavaleiro que morreu também casto, há analogias mais do que evidentes, pois trata­‑se de outras
tantas metamorfoses do herói­‑Galaás.
O timbre do brasão português, o dragão, surge nas armas portuguesas com D. Filipa, a princesa do
Santo Graal, pois heraldicamente provém da casa dos Lancaster. É interessante e aliás aberta à controvérsia
a substituição feita por Fernando Pessoa: o grifo que se representaria como um animal fabuloso, com
cabeça e asas de águia, e corpo de leão — é nomeado em vez do dragão, representado heraldicamente
como uma espécie de serpente com asas. O dragão ou serpe que na heráldica não exprime obviamente a
representação negativa do espírito do mal, mas antes a função da realeza, é também um símbolo ambiva‑
lente do Yin e do Yang, significando a complementaridade ambígua do princípio terrestre e do princípio
celeste.
UNIDADE

1
Porque terá feito o poeta esta transferência heráldica? Talvez porque, havendo nítidas analogias sim‑
bólicas entre o dragão e o grifo, contudo este último, vincando melhor em termos icónicos uma dupla
natureza celeste (a águia) e terrestre (o leão) as duas qualidades de sabedoria e de força ou mesmo a dupla
Fernando Pessoa

natureza, divina e terrestre, de Cristo, desvela de forma mais nítida a agência dessas duas realidades positivas
na história mítica de Portugal.
Eis porque, para o poeta, a cabeça do Grifo, o Espírito, a Sabedoria, o Sonho inspirado do Alto, é repre‑
sentado pelo lnfante D. Henrique, o único Imperador que tem deveras / o globo mundo em sua mão. Exprime
aqui Pessoa mais uma vez a sua conceção agostiniana, cisterciense e renovadamente templária, embora em
termos gnósticos, de que o verdadeiro Império é o da Cidade de Deus, como Império eminentemente
intelectual e espiritual. O Infante não foi um conquistador, foi o iniciador, o sonhador, o «descobridor da
ideia da descoberta», a cabeça da Ordem de Cristo e da epopeia, o destinatário de uma mensagem provi‑
dencial e o seu missionário arquétipo.
Em contrapartida as asas do grifo, isto é, os órgãos físicos, materiais que transportaram o sonho, do
plano celeste ao plano terrestre, que o asseguraram, que o solidificaram, incorrendo aliás no risco de um
desvio por falta de energia criativa, são as figuras paradigmáticas da força e da potência: D. João II e Afonso
de Albuquerque.
O 7 com o 5 dá 12, exatamente o número de poemas da Segunda Parte ou Época, Mar português. É tão
rica a simbólica deste número que só poderemos reter aqui algumas das suas significações: a de que era
um número de eleição, o número do povo de Deus, do povo eleito: os 12 filhos ou as 12 tribos de Israel, os
12 frutos da árvore da vida, os 12 discípulos de Cristo, as 12 portas da Jerusalém Celeste no Apocalipse de
São João, os 12 fundamentos da Cidade do futuro, em ouro fino, o número da Igreja triunfante, o número do
ciclo completo, do cumprimento, que por isso é o número dos Cavaleiros do Rei Artur, que hão de encontrar
o Graal perdido.
O que se descreve em Mar Português é primeiro a epifania oceânica do novo povo eleito, depois a sua
perdição na noite e na tormenta e, enfim, a sua prece a Deus, para o ressurgimento ou a reconquista da
Distância, símbolo que eleva desde o sentido literal, de distância geográfica para a Ásia e as Américas, até
ao sentido anagógico, de distância para o mistério do absoluto ou do divino.
Toda a terceira parte, O Encoberto, se baseia no 5 e no 3. Cinco símbolos, revelando os cinco grandes
mitos portugueses: o de D. Sebastião, que regressará numa manhã de nevoeiro; o do Quinto Império, em
que a terra será teatro / Do dia claro…; o do Desejado, que virá revelar o Santo Graal; o das Ilhas Afortunadas,
onde o rei aguarda e espera; e o do Encoberto, visto portuguesmente como o Messias — D. Sebastião —
Pedra Filosofal, não um Ditador político, como por vezes se tem avançado de forma reducionista, mas,
rosa­‑crucianamente, como um Mestre, um lluminado, um Guia, um Emissário, um Avatar do Cristo­‑Espírito
do Segundo Advento.
As Sete Idades podem resumir­‑se nos Cinco Impérios e estes essencializar­‑se nos Três Reinos de Joa‑
quim da Flora: Três são os Avisos (dos Profetas de Portugal, o Bandarra, o Vieira e Pessoa); e três são, como
vimos, a Cabeça e as duas Asas do Grifo.
E por último, cinco tempos, culminando com o Quinto, por aqueles profetas vaticinado, o tempo do
Nevoeiro, o tempo do Encoberto, o tempo do Regresso ou da Hora, o tempo do Quinto Império, Império do
Espírito como Espírito da Verdade, em que se reunirão enfim o lado esquerdo e o lado direito da sabedoria, a
razão e a intuição, a ciência e a mística, a matemática e a gnose ou a cabala — e que é também a Sétima
Idade do Mundo (Santo Agostinho, Orósio, Fernão Lopes) e a Terceira (Joaquim de Flora).
E no fim o anúncio­‑mensagem: É a Hora! (que nós vemos frustrado, mas que permanece uma pro‑
messa em aberto, pois o nevoeiro continua cerrado), revela­‑nos como o poeta, mais do que evocar a poesia
lusíada ou cantá­‑la em termos líricos­‑épicos, quis fazer ou refazer. Fazer ou refazer Portugal, como Portugal­
‑Universo, gema ou ovo de universalidade virtual num mundo espiritualmente diminuído. Regenerar pela
mente. «Mens agitat molem.» Recriar na adunação do político e do social ao mítico, ao iniciático, ao intelec‑
tual, ao espiritual.
Injunção mágica e operação criacionista e alquímico­‑poética num ritual em que não se sentia sozinho
e, por isso, apôs ao poema propriamente dito uma discreta mensagem aos irmãos (aos iniciados, aos por‑
tugueses arquétipos, aos compatriotas em geral): Valete, Fratres.

António Quadros, «O título de Mensagem», in Fernando Pessoa, Mensagem — Poemas esotéricos,


edição crítica de José Augusto Seabra, Madrid, Archivos/CSIC, 1993, pp. 233­‑237 (com adaptações).

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