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Tese - João Peixoto

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FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

MESTRADO INTEGRADO EM MEDICINA – TRABALHO FINAL

JOÃO PAULO DE SOUSA PEIXOTO

Anemias hemolíticas hereditárias:


fisiopatologia, clínica, e diagnóstico

ARTIGO DE REVISÃO

ÁREA CIENTÍFICA DE HEMATOLOGIA

Trabalho realizado sob a orientação de:


PROFESSORA DOUTORA ANA BELA SARMENTO ANTUNES CRUZ RIBEIRO
DRA. TABITA PILAR BERNARDO MAGALHÃES ASCENSO MAIA

MARÇO/2017
FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

TRABALHO FINAL DO 6º ANO MÉDICO COM VISTA À ATRIBUIÇÃO DO GRAU DE

MESTRE NO ÂMBITO DO CICLO DE ESTUDOS DE MESTRADO INTEGRADO EM

MEDICINA

ANEMIAS HEMOLÍTICAS HEREDITÁRIAS:

FISIOPATOLOGIA, CLÍNICA, E DIAGNÓSTICO

Investigadores:

João Paulo de Sousa Peixoto

Ana Bela Sarmento Antunes Cruz Ribeiro

Tabita Pilar Bernardo Magalhães Ascenso Maia

E-mail: joaodesousapeixoto@gmail.com
Resumo

O objetivo deste projeto é realizar uma breve revisão e atualização teórica dos

processos fisiopatológicos que levam ao desenvolvimento de uma anemia hemolítica

hereditária, assim como estabelecer um algoritmo eficaz no diagnóstico destes doentes.

As anemias hemolíticas hereditárias constituem algumas das mais comuns entidades

transmitidas geneticamente em todo o mundo. O seu panorama mundial está em constante

alteração graças a uma maior mobilidade das populações, observada nas últimas décadas, e

devido ao surgimento de comunidades multiétnicas. O desenvolvimento de novos exames

complementares de diagnóstico permitiu o esclarecimento fisiopatológico de várias

patologias, que, até à data, permaneciam idiopáticas, assim como, a determinação do

diagnóstico definito de forma eficaz e menos invasivo.

Para o cumprimento dos objetivos propostos, foi realizada uma revisão narrativa

sintetizando os principais achados da literatura, obtida através de bases de dados digitais,

pesquisas manuais e livros.

Foram abordadas todas as categorias de doenças que se fazem acompanhar com

anemia hemolítica hereditária, nomeadamente, os defeitos da membrana eritrocitária, os

defeitos enzimáticos, as hemoglobinopatias, as microangiopatias trombóticas hereditárias, e as

anemias deseritropoiéticas congénitas; dando especial enfoque a todos os elementos que

podem auxiliar na identificação da patologia em causa.

Um algoritmo a ser usado em todos os doentes em investigação para anemia

hemolítica hereditária é proposto na parte final deste projeto.

Palavras-chave: Anemia Hemolítica Hereditária; Anemia Hemolítica Congénita;

Hemoglobinopatias; Enzimopatias; Membranopatias; Síndrome de Upshaw-Schulman;

Síndrome Hemolítico Urémico Atípico; Anemia Deseritropoiética Congénita; Diagnóstico.

2
Abstract

The purpose of this project is to revise and update the physiopathological processes

that lead to the development of an hereditary hemolytic anemia, as well as establishing a

diagnostic algorithm that would be effective in the diagnosis of these patients.

Hereditary hemolytic anemias constitute some of the most common, genetically

transmitted diseases of the entire world. Their global panorama is in constant change due to a

larger migration mass across populations, observed in the last decades, as due to the

development of multiethnic communities. The development of newer diagnostic techniques

allowed the elucidation of physiopathological processes of several pathologies that remained

idiopathic until now, as well as, achieving definitive diagnosis in a less invasive and more

effective way.

To accomplish the proposed goals, a narrative overview synthetizing the findings of

literature retrieved from searches of computerized databases, hand searches and books.

Every disease that is accompanied by hemolytic anemia was addressed, such as:

membrane disorders, enzymatic disorders, hemoglobinopathies, hereditary thrombotic

microangiopathies, and congenital diseritropoietic anemias, giving greater focus to all the

elements that can help the identification of a specific pathology.

An algorithm, to be used on every patient being studied for an hereditary hemolytic

anemia, is proposed on the final part of this project.

Keywords: Hereditary Hemolytic Anemia; Congenital Hemolytic Anemia;

Hemoglobinopathies; Enzymopathies; Membranopathy; Upshaw-Schulman Syndrome;

Atypical Hemolytic Uremic Syndrome; Congenital Dyserythropoietic Anemia; Diagnosis.

3
Índice

1. Introdução ..................................................................................................................... 7

2. Materiais e métodos .................................................................................................... 10

3. Anemia hemolítica...................................................................................................... 12

3.1. Definição ............................................................................................................ 12

3.2. Abordagem clínica ............................................................................................. 12

3.3. Abordagem laboratorial ..................................................................................... 15

3.3.1. Hemograma ............................................................................................... 15

3.3.2. Parâmetros bioquímicos ............................................................................. 16

3.3.3. Teste de Coombs direto (DAT).................................................................. 19

3.3.4. Esfregaço de sangue periférico (ESP) ........................................................ 20

3.3.5. Outros exames complementares de diagnóstico e tratamento ................... 20

4. Membranopatias ......................................................................................................... 21

4.1. Composição da membrana eritrocitária ............................................................. 21

4.2. Esferocitose hereditária (HS) ............................................................................. 23

4.3. Eliptocitose hereditária (HE) ............................................................................. 32

4.4. Piropoiquilocitose hereditária (HPP) ................................................................. 33

4.5. Ovalocitose do Sudeste Asiático (SAO) ............................................................ 35

4.6. Estomatocitose hereditária (HSt) ....................................................................... 36

5. Hemoglobinopatias .................................................................................................... 39

5.1. Hemoglobina: estrutura, função e patologia ...................................................... 39

5.2. Hemoglobinas anormais que condicionam hemólise ......................................... 40

5.2.1. Hemoglobinas instáveis (HbX) .................................................................. 40

5.2.2. Hemoglobinas com solubilidade anormal .................................................. 42

4
5.2.2.1. Anemia falciforme ............................................................................ 43

5.3. Talassémias ........................................................................................................ 48

5.3.1. α-talassémia................................................................................................ 49

5.3.2. β-talassémia................................................................................................ 51

5.3.3. δβ-talassémia .............................................................................................. 52

5.3.4. Variantes talassémicas – HbE/β-talassémia ............................................... 53

6. Enzimopatias .............................................................................................................. 54

6.1. Metabolismo do glóbulo vermelho .................................................................... 54

6.2. Enzimopatias da via glicolítica (Embden-meyerhof) e do shunt Luebering-Rapoport

............................................................................................................................ 57

6.2.1. Piruvato Cinase (PK) ................................................................................. 58

6.2.2. Hexocinase (HK) ....................................................................................... 60

6.2.3. Glicose-6-fosfato Isomerase (G6PI) .......................................................... 60

6.2.4. Fosfofruto Cinase (PFK) ............................................................................ 61

6.2.5. Aldolase ..................................................................................................... 61

6.2.6. Triose-fosfato Isomerase (TPI) .................................................................. 62

6.2.7. Fosfoglicerato Cinase (PGK) ..................................................................... 62

6.2.8. Outras enzimas ........................................................................................... 63

6.3. Enzimopatias da via do metabolismo dos nucleosídeos ................................... 63

6.3.1. Pirimidina-5’-nucleotidase (P5N) .............................................................. 62

6.3.2. Adenilato Cinase (AK) .............................................................................. 65

6.4. Enzimopatias do metabolismo da glutationa e do shunt das pentoses-fosfato... 65

6.4.1. Glicose-6-fosfato Desidrogenase (G6PD) ................................................. 66

6.4.2. Glutationa Redutase (GR) .......................................................................... 68

5
6.4.3. 6-Fosfogluconato Desidrogenase (6PGD); γ-glutamil-cisteína-sintetase /

Glutamato cisteína ligase (GCL); Glutationa Sintetase (GS) .................... 69

6.4.4. Outras enzimas ........................................................................................... 69

7. Microangiopatias Trombóticas Hereditárias (TMA) hereditárias / Anemia Hemolítica

Microangiopática (MAHA) hereditária ..................................................................... 70

7.1. Púrpura Trombocitopénica Trombótica Congénita (TTP congénita) ................ 71

7.2. Síndrome Hemolítico Urémico Atípico (aHUS) ................................................ 73

8. Anemia Deseritropoiética Congénita (CDA) ............................................................. 76

8.1. Anemia Deseritropoiética Congénita tipo I (CDA-1) ........................................ 76

8.2. Anemia Deseritropoiética Congénita tipo II (CDA-2) ....................................... 77

8.3. Anemia Deseritropoiética Congénita tipo III (CDA-3) ..................................... 78

8.4. Variantes CDA ................................................................................................... 79

9. Conclusão e proposta de um algoritmo de diagnóstico .............................................. 80

10. Agradecimentos ........................................................................................................ 83

11. Referências bibliográficas ........................................................................................ 84

6
1. Introdução

Na prática clínica, a anemia é definida por uma diminuição do hematócrito, ou do

valor da hemoglobina1. A Organização Mundial de Saúde (OMS) define anemia como uma

redução da concentração de hemoglobina, dependente do sexo e da idade, sendo necessários

valores de hemoglobina inferiores a 13g/dl em homens adultos, e inferiores a 12g/dl em

mulheres adultas2.

Uma possível forma de classificação da anemia, é a classificação funcional, que a

divide em três grandes grupos: defeitos da produção medular (hipoproliferativas), defeitos da

maturação do eritrócito (eritropoiese ineficaz) e diminuição da sobrevida do eritrócito (anemia

por hemorragia e anemia hemolítica)2.

O glóbulo vermelho (GV) normal é fundamentalmente constituído por hemoglobina,

proteínas de membrana especializadas, e vias metabólicas de obtenção de energia; cruciais na

manutenção da capacidade de deformabilidade da célula, transporte de O2 e proteção contra

stresse oxidativo. Defeitos em qualquer um dos constituintes básicos do GV levam à redução

da sua semivida1, que habitualmente é de cerca 120 dias 3.

A excessiva destruição periférica de eritrócitos, tem como consequência o aumento da

produção medular de células eritropoéticas, que migram para o sangue periférico

precocemente (reticulócitos), causando uma reticulocitose, alteração comum a todos os

doentes com anemia hemolítica. No entanto, apesar da hemólise, a anemia não ocorre em

todos os doentes2, -dado que a medula óssea (MO) é capaz de compensar pequenas

diminuições na sobrevida do eritrócito, aumentando em até dez vezes a produção de

reticulócitos-4 sendo por vezes condição necessária a presença de outros fatores

desencadeastes para causar doença2.

7
A anemia hemolítica pode ser classificada de acordo com o seu tempo de evolução

(agudo versus crónico), mecanismo (corpuscular versus extracorpuscular, imune versus não-

imune) e local (intravascular versus extravascular) da destruição do GV e, finalmente de

acordo com a natureza do evento primário – adquirida, ou hereditária2,4–6. É também

necessário avaliar a existência de outras comorbilidades, por exemplo, a coexistência de uma

insuficiência hepática5.

Com frequência, os distúrbios adquiridos são mediados imunologicamente, sendo

rapidamente identificados através de um teste direto ou indireto de antiglobulina (DAT e

IAT), ou através do título das crioglobulinas, para assim detetar a presença de anticorpos

hemolíticos ou a destruição de eritrócitos mediado pelo complemento, respetivamente2.

Se a presença de marcadores hemolíticos e a negatividade de um teste da antiglobulina

aumentam a probabilidade de estarmos perante um distúrbio hereditário, a identificação de

uma entidade nosológica específica pode ser mais desafiante, uma vez que, por vezes, duas ou

mais entidades partilham a mesma apresentação clínica e hematológica7. Por este motivo, uma

história pessoal e familiar exaustiva2,6, microscopia para observação da morfologia

eritrocitária2,5, marcadores hemolíticos5,6, e com base nestes parâmetros de screening,

poderemos partir para testes discriminatórios como:estudo de hemoglobinas por focagem

isoleletrico ou eletroforese, medição da atividade enzimática, citometria de fluxo, estudos da

membrana eritrocitária ou estudos moleculares que podem ser necessários para o diagnóstico

diferencial destas patologias6.

Apesar das anemias hemolíticas hereditárias estarem entre as etiologias menos comuns

de anemia2, afetam uma proporção substancial da população pediátrica global, sendo causa de

hospitalização de muitas crianças devido a sequelas da doença7. Ainda -não obstante à sua

prevalência na população pediátrica- a doença pode afetar todos os grupos etários e é

caracterizada pela sua grande heterogeneidade clínica5,7.

8
Pretende-se com este projeto, fazer uma atualização dos mecanismos fisiopatológicos

de todas as classes de patologias que se incluem no grupo das anemias hemolíticas

hereditárias: defeitos das proteínas da membrana eritrocitária, enzimopatias,

hemoglobinopatias, microangiopatias trombóticas hereditárias e, finalmente, as anemias

deseritropoiéticas congénitas.

Para além disto, tem-se ainda como objetivo a realização de um algoritmo diagnóstico

que, de forma eficaz, permita fazer o diagnóstico de todas as patologias inseridas neste tema

de forma a minorar o seu atraso diagnóstico assim como diminuir o custo em exames

complementares desnecessários.

9
2. Materiais e métodos

As fontes de informações usadas para a realização desta dissertação estão apresentadas

na tabela 1.

Tabela 1: Fontes usadas nesta dissertação.

Pesquisa Pubmed: 2006-2016; key words: ‘’hereditary hemolytic anemia’’; ‘’congenital

hemolytic anemia’’; ‘’hemolytic anemia’’; congenital dyserythropoietic anemia’’; ‘’red cell

membrane disorder’’; ‘’unstable hemoglobin’’. Critérios de exclusão usados foram baseados

no desenho do estudo (estudos de caso foram excluídos), assim como os artigos cujo principal

objetivo era o tratamento destas patologias e com base no abstract do artigo.

Clínical Key: 2006-2016: ‘’hereditary hemolytic anemia’’; ‘’congenital hemolytic anemia’’;

‘’hemolytic anemia’’. Os critérios de exclusão foram os mesmos dos apresentados na

pesquisa bibliográfica acima.

A equação de pesquisa usada foi a seguinte: “((("Anemia, Hemolytic,

Congenital/diagnosis"[Mesh] OR "Anemia, Hemolytic, Congenital/etiology"[Mesh] OR

"Anemia, Hemolytic, Congenital/physiopathology"[Mesh]) AND (Review[ptyp] AND

"2006/06/04"[PDat] : "2016/05/31"[PDat] AND (English[lang] OR Portuguese[lang]))) AND

Review[ptyp] AND "last 10 years"[PDat])”. Sendo posteriormente selecionados os artigos

que mais se adequem ao trabalho a desenvolver.

Pesquisas manuais das referências bibliográficas dos artigos usados, e selecionados aqueles

que se acreditou serem relevantes.

Livros de texto são ocasionalmente citados para providenciar mais detalhes, entre os quais: ‘’

Longo, D.L.; Fauci, A.S.; Kasper, D.L.; Hauser, S.L.; Jameson, J.; Loscalzo J. eds. Harrison's

Principles of Internal Medicine, 19e. New York, NY: McGraw-Hill; 2015’’, ‘’Hoffbrand, A.

10
Victor; Higgs, Douglas R.; Keeling, David M.; Mehta, Atul B. Postgraduate Haematology, 7e,

West Sussex: Wiley Blackwel; 2016.’’, e ‘’Hoffman, R., Edward J. Benz, J., Silberstein, L.

E., Heslop, H. E., Weitz, J. I., & Anastasi, J. (2013). Hematology: basic principles and

practice. Philadelphia: Elsevier; 2013.’’

11
3. Anemia Hemolítica

3.1 Definição

O termo hemólise indica uma destruição periférica aumentada dos eritrócitos5,7 com

consequente diminuição da sua sobrevida5. Esta destruição pode ser devido a causas

mecânicas, químicas, autoimunes ou infeciosas e, se for grave o suficiente, pode levar à

diminuição dos valores de hemoglobina, e anemia5.

Apesar da anemia hemolítica ser caracterizada, por um número elevado de

reticulócitos no sangue periférico -reticulocitose- e por marcadores bioquímicos de hemólise2,

a ausência de reticulocitose nem sempre pode excluir a existência de uma anemia hemolítica5.

Existem condições hemolíticas em que a reticulocitose compensatória é inadequada, ou

ausente5,6, como é o caso das anemias deseritropoiéticas congénitas6. Por outro lado, a

existência de reticulocitose em sangue periférico, não pode ser vista como sinónimo de

hemólise, visto poder estar presente em outras patologias como na hipoxia crónica, na doença

pulmonar obstrutiva crónica ou na hemorragia aguda recente8. Contudo, a contagem de

reticulócitos permanece uma ajuda fundamental tanto no diagnóstico8, monitorização da

hemólise, resposta à terapêutica, e prognóstico5.

3.2 Abordagem clínica

O fenótipo clínico das anemias hemolíticas varia desde indivíduos clinicamente

assintomáticos, a condições severas potencialmente fatais3. Estas apresentam-se de diferentes

formas, e, de entre as diferentes características, a que mais influencia o quadro clínico do

doente é a velocidade de instalação2.

O doente poderá apresentar sinais e sintomas relacionados com o decréscimo da

hemoglobina: palidez, cansaço, tonturas, taquicardia, sopro sistólico7; devido à destruição de

12
eritrócitos: icterícia7, alteração na cor da urina (colúria)5, esplenomegalia4,7, litíase biliar;

como consequência do aumento de produção de GV: expansão da MO com alterações

morfológicas2,4; e ainda, relacionados com o processo principal pela qual a hemólise ocorre,

como por exemplo: acidente isquémico transitório ou acidente vascular cerebral, na anemia

falciforme4,7.

Como referido anteriormente, uma das formas de classificação da anemia hemolítica, é

a caracterização do seu local de destruição (intravascular ou extravascular)2,4–6; salvo algumas

exceções, a hemólise intravascular está maioritariamente associada a patologia adquirida7, e

esta pode-se manifestar por diminuição, ou ausência da haptoglobina (marcador de hemólise

intravascular)5. Apesar de poderem ocorrer crises hemolíticas agudas (défice glicose-6-fosfato

desidrogenase, ou anemia falciforme), se a patologia for de origem hereditária, os doentes

normalmente apresentam-se com doença de longa duração1,2, e podem ser observados

estigmas de hemólise crónica, como a presença de cálculos biliares pigmentados (e

complicações destes)7 ou esplenomegalia2,4. O quadro clínico do doente pode ainda ser

totalmente inocente, sem sinais ou sintomas de hemólise ou anemia, e o diagnóstico ser

apenas conseguido através do esfregaço de sangue periférico, como é o caso da eliptocitose

hereditária, em adultos6.

A maior parte das patologias hemolíticas adquiridas são imunologicamente mediadas,

sendo relativamente fáceis de detetar através de exames laboratoriais simples2. O desafio

prende-se na exclusão de causas adquiridas não-imunes, entre as quais: hemoglobinúria

paroxística noturna, secundária a infeções (através de múltiplos mecanismos fisiopatológicos)

(tabela 2), a fármacos, a microangiopatias trombóticas adquiridas, a válvulas cardíacas

mecânicas ou a hiperesplenismo6. A presença de hemoglobinúria, dor abdominal, hipertensão

pulmonar ou episódios trombóticos podem sugerir o diagnóstico de hemoglobinúria

paroxística noturna; doença hepática, alterações neuropsiquiátricas e anemia hemolítica não

13
imune podem estar presentes na doença de Wilson; febre cíclica, esplenomegalia, anemia

hemolítica e trombocitopenia pode ser indicativo de infeção parasitária por Plasmodium (que

é provavelmente a causa mais comum de anemia hemolítica a nível mundial6); finalmente, as

microangiopatias trombóticas adquiridas podem ser secundárias a fármacos, neoplasias,

gravidez, infeção por HIV (vírus da imunodeficiência humana) e DIC (coagulação

intravascular disseminada) 6.

Tabela 2. Microrganismos que podem estar associados a hemólise. Adaptado de [5]

Aspergillus Mycoplasma Pneumonieae

Escherichia Coli Neisseria meningitidis

Haemophilus influenzae Salmonella spp.

Leishmania donovani Shigella dysenteria

Leptospirans interrogans Streptococcus pneumoniae

Mycobacterium tuberculosis Toxoplasma spp.

Yersinia enterocolitica Vibrio chloreae

Epstein-barr vírus Vírus da pneumonia atípica

Coxsakie vírus Citolomegavirus

Herpes simplex Influenza A vírus

Rubéola vírus Varicela vírus

A distinção entre causa adquirida e hereditária pode então ser conseguida através de

uma anamnese e história familiar cuidadosa5. Desta forma, o questionário sistemático e

abrangente torna-se de grande importância na orientação destes doentes.

14
3.3 Abordagem laboratorial

Os exames laboratoriais são uma ajuda inestimável na confirmação da doença

hemolítica, exclusão de doença adquirida e diagnóstico de uma entidade nosológica

específica.

3.3.1 Hemograma

Como já foi referido anteriormente, a anemia é caracterizada por uma diminuição do

hematócrito (Ht) ou do valor da hemoglobina (Hb)1 que se define, segundo a OMS, em

função do sexo e da idade; em adultos define-se anemia com um valor de Hb inferior a 12g/dl

em mulheres e inferior a 13g/dl em homens2.

O valor da hemoglobina é o marcador mais representativo da severidade clínica,

podendo estar dentro de valores próximos do normal, ou moderada a severamente reduzida.

Um decréscimo rápido nos valores de hemoglobina origina sintomas relevantes ao passo que,

diminuição crónica e progressiva pode ser melhor tolerada5.

Os índices eritrocitários como o volume globular médio (VGM), hemoglobina

globular média (HGM) e concentração de hemoglobina globular média (CHGM)) são

parâmetros essenciais na avaliação da doença. Alterações na HGM e CHGM podem indicar

uma alteração do volume e do estado de hidratação da célula e auxiliar na identificação de

determinados defeitos como a esferocitose hereditária ou a estomatocitose hereditária3,6,9, o

VGM é um parâmetro chave na classificação da anemia1,2. O coeficiente de variação

eritrocitária (RDW) é um outro índice, que reflete a variação do tamanho celular da população

eritrocitária, parâmetro de grande utilidade no diagnóstico diferencial de anemia10.

As anemias hemolíticas são geralmente classificadas como normocíticas, ou

microcíticas (se se tratar de uma α ou β-talassémia)1, podendo ser classificadas como

macrocíticas quando a elevação do número de reticulócitos em sangue periférico é

15
marcada1,2,8 (por cada aumento de 1% de reticulócitos em sangue periférico haverá um

aumento de cerca de 1% no VGM)8.

Os reticulócitos são os precursores imediatos dos GV (com maior volume que estes),

representando apenas uma fração dos GV periféricos, sendo um índice da atividade

eritropoiética da MO5. A reticulocitose é um importante marcador de hemólise, com valores

absolutos a ultrapassar 100x109 células por litro7,10. Nas condições hemolíticas hereditárias,

mais crónicas, o valor de reticulócitos pode estar ligeiramente aumentado, contudo pode

elevar-se de forma dramática no contexto de crises hemolíticas agudas5. A resposta

reticulocitária pode não ocorrer se concomitantemente existirem outras patologias como:

infeção por parvovirus B19, falência da MO1, défices nutricionais severos7, ou síndromes

deseritropoiéticas5.

Existem ainda outras condições patológicas e fisiológicas em que a reticulocitose pode

ocorrer, como é o caso da hemorragia aguda, suplementação de ferro ou vitamina B12 e/ou

folato em doentes com défices nutricionais severos1 ou no parto5.

A diminuição do número de plaquetas poderá também ser indicativo de determinadas

patologias, como por exemplo microangiopatias trombóticas (quer adquiridas, quer

hereditárias) ou hiperesplenismo (que ocorre frequentemente no contexto de patologia

hereditária das proteínas da membrana do GV)5.

3.3.2 Parâmetros bioquímicos

A destruição periférica de GV tem parâmetros bioquímicos únicos (tabela 3), quando

comparado a outras etiologias de anemia5. Os aspetos laboratoriais da hemólise vão depender

das consequências do aumento da destruição e produção de GV, assim como, do processo

principal pela qual a destruição ocorre4.

16
Tabela 3: Marcadores de hemólise em diferentes anemias hemolíticas, adaptado de [4]
Membranopatias/enzimopatias Anemia deseritropoiética congénita Microangiopatias trombóticas
Hemoglobina -/-- --/--- --/---
Reticulócitos + até +++ -/= +
Esquizócitos = = ++
LDH + + ++
Haptoglobina --- -- -
Bilirrubina ++ + +
Ferritina ++ +++ =/+
Plaquetas =/- = --
Contagem de Leucócitos = = =
Hemosiderinúria = = =/+
Os valores são expressos em formato semiquantitativo para indicar a diferente intensidade da alteração em várias sindromes
hemolíticas, como: "+"/"++"/"+++" indica um aumento de intermédio a severo, "-"/"--"/"---" indica uma redução, e "=" indica
valores dentro do intervalo de normalidade.

A lactato desidrogenase (LHD) é uma enzima citoplasmática presente em múltiplos

órgãos e sistemas, incluindo no eritrócito. É um marcador inespecífico de hemólise, e é capaz

de fornecer pistas diagnósticas acerca do local desta5. Dependendo do grau de aumento da

enzima, é possível classificar a anemia hemolítica em intravascular (aumento significativo de

LDH) ou extravascular (aumento ligeiro da enzima) 6.

Devido a grande distribuição desta enzima, pode também estar elevada em contextos

de necrose celular ou em patologias com aumento do turnover tecidular (enfarte agudo do

miocárdio) 5.

Outro parâmetro cujo aumento pode ser indicativo de hemólise, é a bilirrubina

(especificamente, a fração não conjugada) 5,7. A grande maioria da bilirrubina em circulação é

originária da degradação da hemoglobina (grupo heme) no sistema reticuloendotelial (SRE) e,

deste modo, pode ser usada como um marcador indireto de hemólise extravascular (mediada

pelo SRE7) 1,5.

Se se correlacionar a bilirrubina indireta com a hemólise extravascular (mediada por

células fagocíticas)1, então a haptoglobina pode ser usada como marcador sensível de

hemólise intravascular1. A haptoglobina é uma molécula de grande relevo no diagnóstico de

hemólise; representando o parâmetro mais sensível para doença hemolítica, e o último a

normalizar após instituição de tratamento5. Trata-se de uma glicoproteína com propriedades

17
antioxidantes e imunomodeladoras, e atua como uma proteína de limpeza, ligando-se

irreversivelmente à hemoglobina livre circulante (libertada durante a lise do GV). Os

complexos formados são então removidos pelo SRE prevenindo a formação de radicais

livres1,5. Esta proteína encontra-se diminuída ou indoseável nas anemias hemolíticas

intravasculares, no entanto, no contexto de hemólise extravascular severa (onde uma ligeira

lise intravascular de eritrócitos estruturalmente alterados que escapam à remoção pelo SER

pode ter lugar), esta pode estar também reduzida5. Por outro lado, e por se tratar de uma

proteína de fase aguda, pode-se encontrar aumentada em doenças inflamatórias, apesar da

hemólise, mascarando-a1,5.

A hemosiderinúria é outro marcador relativamente específico de hemólise

intravascular. A presença de ferro no sedimento urinário (detetada através da coloração do

azul da Prússia ou Perls)1 é indicador de libertação de hemoglobina em quantidades grandes o

suficiente para exceder a capacidade de fixação da haptoglobina5. A nível renal, o ferro é

removido do heme e armazenado sob a forma de ferritina5 ou depositado na forma de

hemossiderina1,5. Quando ocorre descamação das células do túbulo contornado proximal, a

hemossiderina é excretada na urina1,5. Este fenómeno ocorre em contextos compatíveis com

hemólise severa, como é o caso da hemoglobinúria paroxística noturna, hemoglobinúria da

marcha, crise hemolítica na deficiência de Glicose-6-fosfato desidrogenase e em queimaduras

severas5. É observado 3 a 4 dias após início do episódio hemolítico e persiste por várias

semanas5.

Finalmente, a ferritina, também uma proteína de fase aguda, intracelular, cuja função

principal é o armazenamento de ferro. Pode-se encontrar aumentada em todas as anemias

hemolíticas hereditárias. Ainda que o mecanismo concreto deste aumento não seja claro,

sugere-se que o ferro libertado pela hemólise extravascular seja de eliminação difícil, e que a

própria anemia funcione como um poderoso estímulo à sua absorção5.

18
Apesar de nenhum exame individual ser específico de hemólise, a combinação da

elevação de LDH com um nível baixo de haptoglobina, tem uma sensibilidade de 90% para a

confirmar. Por outro lado, LDH normal e haptoglobina com níveis superiores a 25mg/dl

exclui doença hemolítica com sensibilidade superior a 90%1,5. Independentemente da sua

utilidade, a haptoglobina não pode ser usada como um marcador fiável em crianças com

menos de 3 anos de idade7.

3.3.3 Teste de Coombs direto (DAT)

Este exame é fundamental na distinção de causas de hemólise, hereditárias de

adquiridas, uma vez que uma proporção significativa das anemias hemolíticas de causa

adquirida são imunologicamente mediadas2. O teste de Coombs é capaz de detetar anticorpos

IgG (típicos das anemias hemolíticas a quente) ou a fração C3 do complemento (típicas das

anemias hemolíticas a frio) que revestem os eritrócitos nestas doenças1,2,5,7,10. Este teste é

capaz de diagnosticar grande parte das anemias hemolíticas e a sua relevância é indiscutível,

porém aproximadamente de 0.1% da população geral e 8-10% dos doentes hospitalizados irão

obter testes positivos, mesmo sem evidência clínica de hemólise1,10. Contudo, um DAT

negativo não pode também excluir doença hemolítica imunologicamente mediada, visto que

em alguns casos, o uso de outros exames mais sensíveis terá resultados positivos10. Baixos

títulos de anticorpos, sobrediluição da amostra ou anticorpos de baixa afinidade (IgA, ou

células natural killer7) poderão estar na origem destes falsos negativos1,7.

O uso de testes laboratoriais mais complexos no diagnóstico de anemias hemolíticas

autoimunes DAT-negativas está para além do objetivo deste trabalho. Este subgrupo de

patologias pode ainda ser diagnosticado com base na resposta a terapêutica imunomodeladora

empírica1.

19
3.3.4 Esfregaço de sangue periférico (ESP)

Não obstante à utilidade dos meios complementares de diagnóstico (MCD)

supracitados, a análise correta do ESP permanece um dos procedimentos diagnósticos mais

informativos, e o primeiro a ser utilizado após a história clinica e o exame objetivo10.

Revela alterações morfológicas únicas que ocorrem com os vários tipos de distúrbios

hemolíticos hereditários e que serão absolutamente fundamentais para o diagnóstico

destes10,11, permite avaliar inclusões intraeritrocitárias patognomómicas -como as que

ocorrem no caso da malária- e possibilita a avaliação de outras linhagens celulares10.

A observação do ESP permite também ultrapassar algumas limitações dos contadores

automáticos como a identificação de eritroblastos versus linfócitos10 ou a perda de linearidade

entre a relação do Ht e Hb, e número de GV, aquando da presença de aglomeração

eritrocitária nas anemias hemolíticas a frio8.

Todas estas alterações serão discutidas em pormenor nos capítulos seguintes.

3.3.5 Outros exames complementares de diagnóstico

Apesar das técnicas anteriormente citadas serem capazes de fazer o diagnóstico de

muitas patologias, estão ao dispor do clínico, outros exames complementares mais complexos

que vão permitir um estudo mais aprofundado, como por exemplo: eletroforese das

hemoglobinas, medição da atividade enzimática, citometria de fluxo, estudos de proteínas de

membrana, estudo genético, ou até mesmo medulograma e biópsia óssea.

20
4. Membranopatias

4.1. Composição da membrana eritrocitária

A membrana eritrocitária é uma das mais bem estudadas, quer em termos de estrutura,

função, ou distúrbios genéticos12. Não se trata de uma estrutura estática, mas sim, altamente

dinâmica13. As proteínas que a constituem têm múltiplas funções essenciais ao funcionamento

da célula: controlam a resistência, deformabilidade, e o estado de hidratação desta3,6,9. Para

além do seu papel na estrutura celular, as proteínas de membrana tem ainda função de

transporte, adesão, e antigénica9. A extensa deformabilidade da célula, que lhe permite a

realização das suas funções fisiológicas durante o seu tempo de vida, é feita à custa da sua

complexa, ordenada e específica organização estrutural9.

Uma possível e simplificada forma de caracterizar todas as interações que existem na

membrana do eritrócito é através da sua classificação em ligações verticais e horizontais. As

verticais são aquelas que são perpendiculares à bicamada lipídica, e tratam-se das proteínas

envolvidas nos complexos de banda 3, anquirina e 4.1R; a perda destas ligações leva à perda

da coesão membranar, formação de vesículas e diminuição da área de superfície9,10,14.As

ligações horizontais são aquelas paralelas à bicamada lipídica e incluiem o local de associação

dos heterodímeros de espectrina em tetrâmeros, assim como todas a interações que ocorrem

no complexo juncional10; as proteínas que formam o complexo juncional, têm um papel chave

na regulação da deformabilidade, estabilidade mecânica do eritrócito, e integridade em

resposta a forças de cisalhamento (encontradas na vasculatura humana) 9,10,12.

Este modelo tem particular utilidade na caracterização dos distúrbios relacionados com

a membrana10.

21
A bicamada lipídica (ocasionalmente penetrada por outras proteínas) é assimétrica12,15

e encontra-se unida às proteínas do citoesqueleto pelos complexo da anquirina, e da proteína

4.1R3,9 (Figura 1).

O complexo anquirina é composto por tetrâmeros de proteína de banda 3 (trocador

aniónico, de iões de cloro e bicarbonato), antigénios do grupo sanguíneo, CD47, glicoforina

A, e pelo antigénio de Lansteiner Wiener. Para além destas, está presente ainda a proteína 4.2

que medeia a interação da proteína de banda 3, entre o citoesqueleto e a bicamada lipídica9.

No complexo 4.1R (ou juncional) estão presentes dímeros de banda 3, antigénios de

grupos sanguíneos, glicoforina C/D, e p55, entre outras9,10,12.

Por sua vez, o citoesqueleto de espectrina é formado por tetrâmeros de espectrina,

composto por dois heterodimêros, α e β, articulados. As porções distais dos tetrâmeros de

espectrina conectam-se à proteína 4.1R, à aducina, à proteína de banda 4.9 (dematina), à

tropomiosina, e à tropomodulina, entre outras9,10,12.

Figura 1: Estrutura da membrana eritrocitária. Adaptado de [10]

22
Os mecanismos que permitem ao eritrócito manter a sua forma bicôncava ainda não

estão completamente esclarecidos16.

As mutações que afetam a membrana eritrocitária são frequentemente causa de anemia

hemolítica; são múltiplas e heterogéneas, contudo, o seu efeito no fenótipo pode ser

classificado segundo quatro categorias: (i) esferocitose hereditária (HS), (ii) eliptocitose

hereditária (HE) e a sua forma severa, piropoiquilocitose hereditária (HPP), (iii) ovalocitose

do sudeste asiático (SAO), e (iv) estomatocitose hereditária (HSt).4,13.

4.2 Esferocitose Hereditária (HS)

A HS é a membranopatia mais frequente no mundo3,6,9,12, e a anemia hemolítica

hereditária mais comum entre indivíduos do norte da europa11,14–16. Estima-se, que

sensivelmente 1% da população mundial, tenha um alelo mutado um defeito que cause HS,

sendo completamente assintomático14.

A maior parte dos casos de HS são devido a um défice de banda 3, anquirina, proteína

4.2, ou α ou β-espectrina (figura 1.) 3,6,9,11,12,16


. Em aproximadamente 70-80% dos casos, o

defeito genético é herdado segundo um padrão de transmissão autossómico dominante

(anquirina, banda 3, e β-espectrina)3,9,11,16–18. Nos restantes 20-30% é transmitida com padrão

não dominante (envolvendo mais frequentemente a proteína 4.2, e α-espectrina)6,11,12,14,17,18.

Através da eletroforese em gel, os defeitos proteicos na HS foram classificados segundo seis

categorias: (1) deficiência isolada em espectrina; (2) deficiência combinada em espectrina e

anquirina (mais comum na europa); (3) deficiência da banda 3 (presente em um terço dos

doentes); (4) deficiência na proteína 4.2; (5) deficiência no complexo Rh (raro); (6) defeito

não identificado14.

A doença é causada por mutações que afetam o acoplamento entre o citoesqueleto e a

bicamada lipídica (interações verticais9), levando à instabilidade da membrana e consequente

23
vesiculação, traduzida por: diminuição do ratio superfície/volume (e formação de células em

forma de esfera9), desidratação (com aumento do CHGM para valores >360g/L11), e redução

da deformabilidade, com conseguinte sequestração de células no baço e ulterior fagocitose por

macrófagos esplénicos3,6,9,11,12,15. O conteúdo das vesículas libertadas varia com o defeito

molecular em causa: defeitos na anquirina, espectrina ou proteína 4.2 reduzem a densidade do

citoesqueleto e originam microvesículas enriquecidas em proteína de banda 3; pelo contrário,

se o defeito ocorrer na banda 3, as microvesículas vão ser deficitárias nesta molécula, levando

à sua aglomeração na membrana do eritrócito, facilitando a opsonização in vivo por IgG, e

aumentado a clearence imunomediada destes (figura 2)3,14.

Figura 2: Fisiopatologia da HS. Adaptado de [15]

24
A expressão clínica desta patologia é relativamente uniforme entre a mesma família (a

não ser que esteja envolvido outro defeito co-herdado14), no entanto a severidade da doença

varia significativamente entre famílias18, devido à expressão desigual dos alelos mutados,6,14-

pode-se apresentar em qualquer idade (inclusive no período fetal, se doença severa9) mas é

mais frequentemente diagnosticada na infância9,11,16. Na maior parte dos recém nascidos, não

há sinais de anemia até às 3 semanas de vida, altura em que os valores de Hb decrescem

rapidamente; até um quarto destas crianças necessitarão de transfusão sanguínea ao primeiro

ano de vida14.

Um quarto dos doentes têm doença compensada com valores de Hb normais e

reticulocitose, podendo apenas apresentar sintomas em contexto infecioso ou gravidez6,11,14–18.

Cerca de dois terços dos doentes têm doença hemolítica moderada, palidez, icterícia (sinal

mais importante no período neonatal9 e comumente associada a infeção viral ou outro

stresse11), esplenomegalia, cálculos biliares, e, alguns doentes com mutação na proteína de

banda 3, podem apresentar-se com pseudohipercaliémia6,9,11,14,18. Os restantes 10% têm

doença severa com níveis de hemoglobina persistentemente baixos e necessidade de


11,14
transfusões intermitentes ; dentro destes, aproximadamente um terço demonstra doença

muito severa, com valores de Hb inferiores a 60g/l e necessidade de transfusões regulares;

este subgrupo de doentes tem, quase invariavelmente, doença não dominante (tabela 4)14.

Tabela 4: Classificação da esferocitose hereditária. Adaptado de [9,11,14,18]


Gravidade da doença Ligeira Moderada Moderadamente severa Severa

Hemoglobina (g/l) 110-150 80-120 60-80 <60

Reticulócitos (%) <6 >6 >10 >10

Bilirrubina (µmol/L) 17.1-34.2 >34.2 >34.2 >51.3

ESP Esferócitos Esferócitos Esferócitos Esferócitos e

ocasionais anisopoiquilocitose

Hereditariedade AD AD AD AR

25
No hemograma, observa-se que a maioria dos doentes tem valores de hemoglobina

compreendidos entre 80-150 g/l (doença ligeira a moderada), reticulocitose em sangue

periférico e o VGM está normal -ou ligeiramente diminuído. Em situações de doença severa,

o VGM pode estar diminuído -apesar da marcada reticulocitose-, refletindo a exuberante

perda de membrana, que também explica o aumento da HGM (410g/l) e da CHGM (>360

g/l); o RDW encontra-se também elevado (>14)9,11,17. Dois outros parâmetros que poderão ser

úteis no diagnóstico diferencial de HS e anemia hemolítica autoimune (AIHA), são o VGMr

e HGMr (VGM e HGM reticulocitário), que se encontram reduzido e aumentado

(respetivamente) na HS, mas não na AIHA9,14.

São também encontradas alterações laboratoriais compatíveis com hemólise, como o

aumento da bilirrubina, LDH e diminuição da haptoglobina9,11. A hiperbilirrubinémia pode

ser complicada pela presença do síndrome de Gilbert, que aumenta a severidade e frequência

desta, dando a falsa impressão de maior gravidade da hemólise14,18. A combinação destes

parâmetros com um teste de Coombs direto negativo é o passo inicial e necessário à

investigação de um diagnóstico hereditário de anemia9.

No ESP, observam-se esferócitos (células densas, redondas, hipercrómicas, sem

palidez central14) (figura 3), que apesar de auxiliarem o diagnóstico, não são específicos uma

vez que surgem também noutras situações mais frequentes como as anemias hemolíticas

autoimunes9, ou em situações mais raras, como por exemplo na hiperfosfatémia severa3,6,11.

A severidade da doença está diretamente relacionada com a extensão de área de

membrana perdida e, consequentemente, com a extensão da esferocitose9. Apesar do

esferócito ser a célula predominante em ESP, determinadas mutações estão associadas ao

surgimento de ocasionais células de morfologia distinta: mutação na banda 3 e células em

cogumelo, mutação na proteína 4.2 e ovalócitos e estomatócitos, mutação das proteínas do

26
complexo Rh e estomatócitos, mutação na β-espectrina e acantócitos (figura 3.), e mutação na

α-espectrina e poiquilócitos9,12,14(associada a doença severa11,12).

Figura 3: Esfregaço de sangue periférico em doente com HS. A) observa-se uma célula em cogumelo,
clássica da deficiência da banda-3 (seta verde), associadas a células esferocítica típicas (setas pretas), alguns
acantócicos (setas vermelhas) e um eritrócito basofílico (seta azul), devido ao stress hematopoiético. B)
defeitos na β-espectrina com numerosos acantócitos (setas vermelhas) em associação a esferócitos (setas
pretas). Adaptado de [13]

Apesar do diagnóstico ser possível através da análise da história familiar e do

esfregaço de sangue periférico, conta-se também com testes especializados para auxiliar o

diagnóstico desta entidade9,11. Estes exames são particularmente importantes quando não

existe história familiar sugestiva, ou a clínica não é típica18.

O teste de fragilidade osmótica (OF) mede a lise eritrocitária in vitro em soluções de

osmolalidade decrescente. A sensibilidade deste é de apenas 61%9, aproximadamente 25%

dos doentes com HS têm resultados normais (com amostras de sangue fresco), e pode-se obter

um resultado positivo em qualquer outra patologia em que os esferócitos estejam presentes,

limitando a sua utilidade11,14. Atualmente, o uso rotineiro deste, não está recomendado9,18.

O teste da lise pelo glicerol acidificado (AGLT) determina o intervalo de tempo

necessário para que a lise de 50% das células em amostra ocorra, em soluções de glicerol com

pH de 6.8515,16. À semelhança do teste OF, este não distingue HS de outras patologias que

27
cursem com a formação de esferócitos16, mas a sua sensibilidade é comparável com o teste da

eosina-5-maleimida (EMA) 18.

O teste da criohemólise baseia-se na (específica) suscetibilidade dos esferócitos à

hemólise em soluções hipertónicas quando ocorre rápida descida da temperatura de 37ºC para

0ºC16. É um bom teste de rastreio para a HS pelos seus altos valores preditivos18.

O teste da eosina-5-maleimida (EMA) (figura 4), é uma prova de citometria de fluxo

que se baseia na quantificação relativa de fluorescência média, que vai depender do número

de proteínas de banda 3 presentes na membrana9,11. A diminuição não só de banda 3, mas

também de anquirina e β-espectrina levam a uma redução da intensidade da fluorescência11 e

é considerado positivo se se verificarem diminuições na fluorescência superiores a 21% (no

entanto este cut-off é motivo de muito debate). Valores de diminuição de fluorescência >15%

e <21% devem ser objeto de investigação adicional9,13,15. Tem alta sensibilidade e

especificidade, é simples, de rápida execução, e não está dependente do fenótipo da doença,

obtendo-se resultados positivos mesmo em doentes com hemólise compensada9,11,13. Este


9,13
exame deteta HS provocada por qualquer defeito de membrana a ela associado . Todavia,

de salientar que existem outras patologias que reduzem a intensidade da fluorescência emitida

(anemia deseritropoiéticas congénita tipo II, ovalocitose do sudeste asiático, e

piropoiquilocitose hereditária)11, que fazem diagnóstico diferencial com a HS pelo ESP, pelo

que este exame permanece como a ferramenta de diagnóstico de escolha no rastreio de HS13.

Figura 4: Teste de fixação da EMA. Adaptado de [14] 28


A Ectacitometria é uma outra técnica possível no diagnóstico desta patologia9, tão

sensível e específico quanto o teste do EMA18. O ectacitómetro é uma técnica viscométrica,

em que a deformabilidade das células é avaliada como uma equação contínua, que varia em

função da osmolalidade9 (figura 5). Na HS, o índice de alongamento máximo (EImax) está

diminuído, a osmolalidade no ponto de elongação mínima (Omin) sofre um desvio para a

direita e a osmolalidade no ponto igual a EImax/2 (O’) sofre um desvio para a esquerda

(traduzindo a diminuição no ratio superfície/volume e o aumento da desidratação

celular)9,13,19. Para se poder firmar o diagnóstico de HS, o Omin tem que sofrer um desvio

para a direita por mais de 21.5% e o AUC (área sobre a curva) tem que diminuir pelo menos

18.5%, com valores preditivos positivos de 94 e 93% respetivamente19. Valores alterados de

O’ não são estatisticamente significativos9,19. As principais limitações deste exame é a

insuficiente disponibilidade do aparelho9, e a incapacidade de análise até 3 meses após

transfusão sanguínea13. Apesar deste método não permitir a distinção da HS e da AIHA, a

grande vantagem é a capacidade de distinção entre diferentes tipo de membranopatias19. No

entanto só existem 2 ectacitométros a nível Europeu (França e Alemanha) que apresentam a

enorme desvantagem de só processarem amostras a fresco (< 16h após a colheita) o que se

torna uma limitação para todos os países.

Figura 5: Curva de ectacitometria de um GV normal. Adaptado de [19]


29
O SDS-PAGE (eletroforese em gel de poliacrilamida com dodecil sulfato de sódio)

permite detetar a proteína atingida na maior parte dos casos de HS9. A sua utilização está

indicada quando: os testes de screening são equívocos, se pretende fazer diagnóstico pré-natal

ou quando existe desproporcionalidade entre o fenótipo e as provas laboratoriais9,18. Em cerca

de 8-11%%, o defeito não poderá ser identificado, especialmente em portadores

assintomáticos ou doentes com HS muito ligeira9,15,16. Se o defeito envolver a anquirina, este

deve ser avaliado em conjunto com a contagem de reticulócitos, pois estas células apresentam

em grande número estas proteína, podendo mascarar o defeito genético subjacente12,16.

A identificação molecular direta da mutação em causa, através de técnicas de PCR

(polymerase chain reaction), é também possível em doentes não diagnosticados, com doença

severa; porém, uma vez que a maior parte das proteínas envolvidas são codificadas por genes

de grandes dimensões, e com múltiplos exões, esta análise nem sempre é exequível14.

Alternativamente, os genes candidatos podem ser identificados através da comparação da

DNA genómico e mRNA reticulocitário (sob a forma de cDNA); este método é útil na

identificação de mutações de frameshift ou nonsense -não produzem RNA mutante, ou

proteína-, pelo que a comparação do DNA genómico com o RNA/cDNA, é capaz de

comprovar a existência de um alelo nulo14.

O diagnóstico de HS não exige a confirmação da mutação genética do gene

envolvido18.

Apesar de muitos exames distintos estarem ao alcance do clínico, não existe nenhum

que consiga diagnosticar 100% dos casos de HS16 e, a positividade num destes, deve ser

sempre confrontada com a clínica e com o ESP18 (tabela 5). Segundo as guidelines

internacionais devem ser usados dois testes de screening em conjunto15: o EMA e o AGLT ou

o teste da criohemólise. Dada a facilidade de diagnóstico pelos testes Gold-standard, o

diagnóstico de HS continua a ser rápido e fácil de realizar.

30
Tabela 5: testes de rastreio no diagnóstico diferencial da HS e outras doenças do eritrócito associadas à
membrana. Adaptado de [15, 16, 18]
Fixação de
Diagnóstico OF AGLT Ectacitometria Criohemólise
EMA
Diminuição do
Esferocitose
Aumento tempo de lise Perfil HS Aumento Diminuído
hereditária
(<900s)

Anemia hemolítica Normal/ Diminuição do Normal/Aumen


Perfil HS ?
autoimune Aumento tempo de lise tado

Esferocitose
Hereditária (não Normal Normal Perfil HE ? Normal
hemolítica)
Muito
diminuído
Piropoiquilocitose Diminuição do
Aumento Perfil distinto ? (abaixo do
hereditária tempo de lise
intervalo da
HS)
Estomatocitose
hereditária Aumento ? Perfil distinto ? Aumentado
hiperhidratada

Estomatocitose
Tempo de lise Normal/Aumen
hereditária Diminuída Perfil distinto ?
normal to
desidratada

Diminuído
?15/Perfil
Criohidrocitose ? ? ? (dentro do
distinto
intervalo HS)

Anemia Normal/ Não Normal/diminu


Normal/Aumen
deseritropoiética Aumento diminuição do deformável/ ído (dentro do
to
congénita tipo II tempo perfil HS-like intervalo HS)
Diminuído
Diminuição Não
Ovalocitose do (dentro do
da ? deformável/pad Aumento
sudeste asiático intervalo da
fragilidade rão distinto
HS)

31
4.3 Eliptocitose Hereditária (HE)

A eliptocitose hereditária é a membranopatia mais comum em regiões endémicas da

malária6,16,20, presumivelmente, porque os eliptócitos conferem resistência a esta doença11,20.

A sua verdadeira incidência é desconhecida11.

É causada por mutações nos genes da α (60%20) e β-espectrina (mais frequente em

doentes de raça negra15), da proteína 4.1 (mais frequente em doentes caucasianos15), ou da

glicoforina C/D11, transmitidas de forma dominante3,6,16, com casos raros relatados de

mutações de novo11.

Estas mutações afetam o citoesqueleto celular, interferindo no processo de

dimerização da espectrina, ou alterando a função do complexo juncional (interações

horizontais)9. Os defeitos genéticos podem levar a erros quantitativos, originando uma

redução da expressão de genes que codificam a proteína normal, ou qualitativos, criando

alterações das proteínas supracitadas, e resultando num aumento da fragilidade eritrocitária

face a forças de cisalhamento3,6. O desenvolvimento da suscetibilidade do GV a estas, leva a

fragmentação e perda de membrana, com consequente progressiva transformação do GV para

uma morfologia elítica3.

Os sintomas podem variar substancialmente dentro da mesma família, devido à

influência de alelos modificadores da expressão da espectrina11. Todavia, e apesar de um

exuberante ESP, a vasta maioria dos doentes são assintomáticos, e o diagnóstico feito

incidentalmente9,11,12,15, conquanto, no período neonatal, pode surgir doença expressiva com

marcada icterícia e anemia6, que regridem passadas algumas semanas a meses6. Neste período

de vida -devido à grande quantidade de hemoglobina fetal- há uma intensificação na

concentração de 2,3-difosfoglicerato na célula, molécula esta, que leva a instabilidade

adicional a nível do complexo juncional, justificando assim os sintomas observados9. A HE

neonatal pode ser difícil de distinguir de HPP9.

32
Apenas 10% apresentarão doença hemolítica, com anemia leve a moderada e,

ocasionalmente, esplenomegalia e coledocolitíase11.

O hemograma pode ser completamente inocente ou revelar uma diminuição ligeira do

VGM13.

No ESP, 10-100% dos GV observados são elíticos11,15. A forma destes pode ser

exageradamente alongada, caso a mutação em causa seja a da proteína 4.19,12. Na minoria dos

doentes com HE e sintomas hemolíticos, podem ser observados esquizócitos, para além dos

eliptócitos, no ESP.11.

O teste da OF é negativo em doentes assintomáticos e pode ser positivo em doentes

com HE severa ou HPP20.

O teste do EMA na HE foi semelhante ao de indivíduos saudáveis, não se observando

qualquer correlação estatisticamente significativa20. Nos doentes com hemólise, o teste da

EMA é anormal, com diminuição da imunofluorescência emitida9,11.

Por ectacitometria encontramos uma curva trapezóide, com padrão específico de HE,

diminuição do valor de EImax, refletindo uma diminuição da deformabilidade9,15.

A eletroforese em gel (em doentes com mutações na proteína 4.1) revela uma ausência

desta, da p55 e sensivelmente apenas 30% do conteúdo normal de glicoforina C/D9. Caso a

mutação seja nos genes da espectrina, observa-se uma diminuição nesta12, e um aumento do

ratio dímeros/tetrâmeros da proteína9.

4.4 Piropoiquilocitose hereditária (HPP)

Traduzido de forma literal, piropoiquilocitose refere-se às alterações eritrocitárias,

causadas por extensas queimaduras corporais12.

A HPP é uma patologia bialélica, ocorrendo em casos raros de homozigotos ou

heterozigotos compostos (combinação de um alelo de baixa expressão (αLELY) com um alelo

33
mutado da α-espectrina)16 para mutações que causam eliptocitose hereditária6,9,15,16. Existe

então uma forte associação entre a HE e a HPP, com aproximadamente um terço dos

familiares de doentes com HPP, a apresentar sintomas de HE11.

A clínica desta entidade é caracterizada por doença hemolítica severa, dependente de

transfusões, começando na infância, com valores de Hb variando entre 60-100 g/l15.

Contrariamente à HE, quase todos os doentes vão apresentar sintomas e sinais compatíveis

com hemólise11.

Na análise do hemograma destes doentes, encontramos um volume globular médio

muito diminuído (entre 50-60 fl) à custa da extensa fragmentação eritrocitária (característica

fundamental), em razão da maior quantidade de dímeros de espectrina na membrana9,15,16.

O ESP pode ser semelhante àquele encontrado na HE, apresentando também

poiquilócitos, picnócitos e microesferócitos11,20.

Alguns fragmentos podem ser contabilizados como plaquetas, dando origem a uma

pseudotrombocitose; nestas circunstâncias, as contagens plaquetares devem ser feitas

manualmente9.

O teste do EMA é positivo podendo-se observar diminuições da fluorescência

superiores a 21%, contudo, esta diminuição pode ser explicado pela fragmentação eritrocitária

(“células” com área de superfície muito reduzida); não obstante a esta redução, se os

esquizócitos forem excluídos, não se observa diminuição da fluorescência associada à

membrana13, sendo portanto dispensável, este exame, na avaliação de um doente com suspeita

de HE ou HPP13,20.

No estudo eletroforético pode-se verificar adicional diminuição no ratio

espectrina/banda 3 explicando assim a presença de esferócitos em sangue periférico9.

A identificação de um alelo αLELY (através de técnicas de PCR) num doente com

história familiar de HE ou HPP, e clínica e ESP compatíveis confirmam o diagnóstico de

34
HPP. Este polimorfismo é extremamente comum, sendo encontrado em heterozigotia e

homozigotia em 42 e 9%, respetivamente, na população caucasiana Europeia. A presença do

alelo αLELY, mesmo em homozigotia, não é suficiente para causar doença -uma vez que a

molécula em causa é sintetizada em grandes quantidades9.

Estudos moleculares não são necessários para o diagnóstico, mas podem ser úteis em

formas particularmente graves9.

4.5 Ovalocitose do Sudeste Asiático (SAO)

Pode ser também considerada como um subtipo de HE, é descrita em populações

originárias da região geográfica que lhe dá nome6 e, à semelhança da HE, presumivelmente

confere resistência à malária9,12.

É causada por uma única deleção -transmitida de forma dominante- no gene SLC4A1,

que codifica a banda 36,9,21. Esta deleção condiciona uma alteração no transporte de

bicarbonato e cloro no GV, assim como, a formação oligómeros lineares únicos na membrana

celular21. Pensa-se que é a oligomerização de banda 3 que determina a redução décupla da

deformabilidade e o aumento da estabilidade em 30-50%21.

É completamente assintomática em heterozigotos e -quase sempre- letal em

homozigotos (total desequilíbrio iónico no GV12), como tal, o diagnóstico é normalmente

feito acidentalmente6,9,13. Em recém-nascidos, pode existir clínica de hemólise (de curta

duração)9.

O hemograma pode ser normal, e não haver sinais bioquímicos de hemólise6,13. Ao

ESP surgem ovalócitos (células de morfologia oval com uma banda transversa de palor21) e

ovaloestomatócitos. Este, constitui o ECD mais valioso no diagnóstico da SAO6,9,13.

Em razão da alteração genética que caracteriza a SAO, o teste de fixação da EMA à

proteína 3 irá apresentar diminuição na fluorescência emitida superior a 21%13.

35
Esta entidade nosológica apresenta um padrão de deformabilidade distinto ao

ectocitómetro, que representa a dramática diminuição da deformabilidade das células9,13,15.

Ainda não foi completamente explicada a discrepância que se observa entre o fenótipo

leve e o robusto efeito que o defeito genético tem sobre a rigidez da membrana9,12.

O teste da OF e o SDS-PAGE são normais6.

4.6. Estomatocitose Hereditária (HSt)

A HSt é um espectro de doenças, cerca de 30-40 vezes menos comuns que a HS,

causadas por defeitos no transporte iónico, transmitidas de forma dominante3,6,9,15( ou de

novo, no caso da OHSt12).

Observa-se um efluxo catiónico que resulta em alteração na concentração de catiões

(Na+ e K+) intracelulares, e no volume globular3,6,9,15. Esta alteração altera o gradiente

osmótico na membrana e, por conseguinte, o volume e deformabilidade eritrocitária3.

Tal como ocorre nas restantes membranopatias, a variabilidade clínica é grande,

podendo-se apresentar de assintomática, a hemólise severa e anemia3,9. Estão identificados

quatro tipos de patologias: estomatocitose hereditária hiperhidratada, estomatocitose

hereditária desidratada, criohidrocitose, e pseudohipercaliémia familiar (não apresenta sinais

ou sintomas de hemólise)15,16.

A forma mais rara é a HSt hiperhidratada (OHSt), estando apenas descritos vinte casos

a nível mundial9. Pode ser causada por mutações na proteína banda 3, na glicoproteína

transportadora de amónia associado ao Rhesus (RhAG), ou no GLUT-1, provocando um

desequilíbrio no transporte do Na+/K+ na célula3,15, e caracteriza-se, clinicamente, por

hemólise expressiva, anemia, aumento significativo do VGM (110-150 fl9) e diminuição do

CHGM (refletindo o alterado estado de hidratação celular) e transformação da célula em

36
estomatócitos não deformáveis3,6. O número de estomatócitos (forma de boca) no ESP é

muito superior ao presente na DHSt e, portanto, o diagnóstico é fácil de establecer9.

A mais comum é a HSt desidratada (xerocitose ou DHSt), causada por uma mutação

no gene PIEZO1 levando a um ganho de função nas proteínas PIEZO (são subunidades

formadoras de poros dos canais catiónicos3,9), ocasionando efluxo de potássio e água

resultando em desidratação celular e aumento do CHGM6,15. Nestes, a Hb pode ser normal, o

CHGM está elevado (>360g/l9), há reticulocitose e hemólise ligeira. Observam-se xerócitos

(células de tamanho normal com a aparência de uma fenda ao longo de toda a célula) no

ESP9,12,15. Pseudohipercalémia pode estar presente, devido à perda e potássio dos eritrócitos

armazenados a temperatura ambiente, sem quaisquer consequências clínicas6,16. Para além dos

sintomas típicos de doença hemolítica, podem surgir edemas perinatais que resolvem

espontaneamente (mecanismo desconhecido) e está tipicamente associada a sobrecarga de

ferro com hepatosiderose6,12,16.

A criohidrocitose /criocitose (CHC) é outra forma rara de estomatocitose que se pode

fazer acompanhar por hemólise. Esta patologia é descrita em doentes com mutações que

transformam o transportador aniónico banda 3, num transportador catiónico9. O traço mais

característico é o vazamento de catiões monovalentes, dependente da temperatura12: há lise de

até 70% das células armazenadas em temperatura de refrigeração (4-8ºC), após 48h15,16. A

hemólise encontrada nestes doentes é ligeira a moderada.9

Finalmente, a Pseudohipercaliémia Familiar (FP) é um traço assintomático, ou

ligeiramente hemolítico com hipercaliémia artefactual12. A pseudohipercaliémia deve-se ao

efluxo de iões de potássio que ocorrem nos GV armazenados por várias horas 15. O

hemograma é normal16.

O diagnóstico da OHSt e da DHSt pode ser conseguido pelos seus padrões específicos

de ectacitometria, ou pela sequenciação dos genes envolvidos9,12,15. A importância do

37
diagnóstico da DHSt prende-se com o facto destes doentes não serem candidatos a

esplenectomia, pelo aumento do risco de fenómenos trombócitos, estando esta cirurgia

contraindicada15.

O diagnóstico da CHC e da FP pode ser conseguido pela sequenciação dos genes

envolvidos, ou pela fotometria de emissão de chama para quantificar [K+] plasmático, e [K+] e

[Na+] intracelular de amostras armazenadas (em temperatura ambiente e em temperatura de

refrigeração) e frescas15.

38
5. Hemoglobinopatias

5.1 Hemoglobina: estrutura, função e patologia

A hemoglobina (Hb) é o principal transportador de oxigénio em humanos3. É uma

proteína tetramérica composta por dois pares de cadeias globínicas diferentes3. No adulto

saudável, a maior parte das moléculas de hemoglobina são do tipo A (constituídas por duas

cadeias α e duas cadeias β), e uma pequena parte do tipo A2 (constituídas por duas cadeias α e

duas cadeias 𝛿) e do tipo F3,22. Durante o período fetal, a hemoglobina predominante é do tipo

F (constituída por duas cadeias α e duas cadeias γ)22. As cadeias α-globínicas são codificadas

por dois genes altamente homólogos localizados no braço curto do cromossoma 16; as cadeias

globínicas β, 𝛿, e γ são codificadas pelos seus respetivos genes localizados no braço curto do

cromossoma 11, no chamado cluster de genes β 22,23


. Os genes estão organizados de acordo

com a ordem com a qual são expressos durante o desenvolvimento, para produzir tetrâmeros

de Hb23. O switch da HbF para HbA e HbA2 é extremamente complexo e resulta da interação

centenas de diferentes proteínas23. Tanto a concentração de Hb, a sua integridade,

solubilidade, e afinidade pelo O2 são características fundamentais pela manutenção da sua

principal função3.

As hemoglobinopatias são doenças hereditárias causadas principalmente por mutações

dos genes das cadeias globínicas10. Com cerca de 7% da população portadora destas

patologias, trata-se da doença monogénica mais comum no mundo e um dos maiores

problemas de saúde a nível mundial24. Ocorrem com incidência particularmente alta em países

em desenvolvimento em razão da sua seleção pela malária endémica, porém, em

consequência das grandes movimentações populacionais das últimas décadas, a sua

frequência em países em desenvolvimento tem vindo a aumentar25. Devido à sua alta

prevalência e relativa severidade da doença, muitos países em todo o mundo começaram a

39
adotar programas para identificar portadores adultos e rastreios neonatais para identificar

crianças portadoras e doentes22.

As mutações podem ser classificadas como qualitativas (HbS e outras Hb instáveis),

quando a mutação leva à produção normal de uma cadeia estruturalmente anormal;

quantitativas (talassémias), quando há redução da produção de cadeias globínicas

estruturalmente normais3,25; ou podem ter características de ambas as categorias (como por

exemplo a HbE)24. Existem mais de 1500 mutações identificadas que causam

hemoglobinopatias qualitativas (sendo que a maioria não tem tradução fenotípica), mais de

330 que causam β-talassémia e mais de 200 que causam α-talassémia22. O fenótipo clínico,

originado por mutações nos genes das cadeias globínicas, vai depender não só do tipo de

mutação em causa, assim como, o local da molécula onde estas ocorrem: deleções, e mutações

pontuais que modifiquem radicalmente a estrutura da proteína, dão origem a alterações

quantitativas; por outro lado, mutações pontuais em locais específicos da molécula de Hb

(superfície, bolso heme, ou pontos de contacto) levam a alterações qualitativas, que estão

intrinsecamente relacionadas com o local mutado da proteína22,25.

Dentro do espectro de hemoglobinopatias, aquelas que condicionam anemia

hemolítica hereditária são: as que têm alteração na solubilidade (HbS), as que oxidam

rapidamente (Hb instáveis), e as formas graves de talassémia10.

5.2 Hemoglobinas anormais que condicionam hemólise

5.2.1 Hemoglobinas Instáveis (HbX)

Este grupo de hemoglobinopatias transmitidas dominantemente (no entanto, até 40%

dos casos descritos parecem tratar-se de mutações de novo6), são causadas por defeitos

estruturais que resultam de alterações da sequência de aminoácidos nas cadeias α ou β da

40
hemoglobina24. Estas são causa rara de anemia hemolítica e levam a um quadro clínico severo

quando presentes em indivíduos heterozigotos, e muitas vezes fatal se presentes em

homozigotia24.

Foram identificadas mais de 150 variantes que causam instabilidade da molécula de

hemoglobina, e hemólise24. As mutações que vão levar a hemoglobinas instáveis são

localizadas próximas do bolso do heme, ou, no contacto entre as cadeias α1-β1 (maior

parte6)25.

Clinicamente, a anemia é de gravidade variável, com doença crónica, e exacerbações

intermitentes, por vezes precipitadas por infeções virais, ou fármacos24,26. Estão presentes

ainda, sinais e sintomas típicos de doença hemolítica6.

Ao hemograma, observam-se valores altamente variáveis de hemoglobina24; o VGM

pode apresentar-se aumentado, o CHGM, diminuído e o RDW invariavelmente aumentado26.

O ESP apresenta-se com inúmeras formas e tamanhos (anisopoiquilocitose) mas com

predomínio de macrócitos e policromasia. São ainda observados, na coloração supra-vital,

corpos de Heinz (que vão ser o reflexo da instabilidade da hemoglobina mutada que

precipita)26.

A análise da Cromatografia líquida de alta eficiência (HPLC) revela a hemoglobina

instável (HbX) em cerca de 50% dos casos. Independentemente da sua identificação no HPLC

o estudo molecular é obrigatório e inicia-se pelo gene da cadeia β-globínica (bastante mais

frequente que as Hb Instáveis por alterações nas cadeias α-globínicas)6.

O diagnóstico deve ser suspeitado quando perante doentes com anemia hemolítica

crónica, inexplicada por outras patologias mais comuns26, e, se observa no ESP, corpos de

Heinz com o uso de coloração supra-vital. O estudo da família pode ser de extrema

utilidade25. Testes específicos como o teste da estabilidade ao calor ou ao isopropanol

41
confirmam o diagnóstico (tendo em atenção que valores superiores a 3% de HbF podem levar

a resultados falsamente positivos devido à sua instabilidade)6,25,26.

5.2.2 Hemoglobinas Com solubilidade Anormal

As variantes clinicamente mais relevantes, e comuns, são a HbS, HbE, HbC, HbD-
Punjab
, e HbO-Arab, cada uma delas causada por substituições de nucleosídeos específicos no

gene que codifica a cadeia β-globínica (HBB)22. Estas patologias são raras e, em

heterozigotia, ou não têm fenótipo clínico, ou causam doença ligeira24.

A homozigotia da mutação que gera HbC, é chamada também de doença da HbC, e

tem um fenótipo semelhante ao da anemia falciforme, com anemia microcítica, e clínica

menos severa22,24.

A HbE é uma variante extremamente comum do Sudeste asiático e, em homozigotia

produz um fenótipo semelhante ao da β-talassémia intermédia, com microcitose, células em

alvo no ESP e >81% de HbE no estudo de hemoglobinas por HPLC24,27. Além disso, visto

tratar-se ainda de uma molécula instável, podem ocorrer fenómenos hemolíticos na presença

de determinados fármacos, ou em contexto de infeções virais24.

As restantes variantes apenas ganham importância quando herdadas em heterozigotia

composta com o alelo βS.28

O diagnóstico destas variantes pode ser feito através de estudos das diferentes

hemoglobinas, por HPLC ou por cromatografia de fase inversa (que permite o estudo das

cadeias globínicas de forma individual)25. Estes estudos não fornecem o diagnóstico definitivo

pelo que outros métodos (confirmatórios) devem ser utilizados para especificar a variante

nucleotídea presente, uma vez que variantes menos comuns podem não ter tempos de retenção

específicos à HPLC e serem incorretamente diagnosticados22. O teste confirmatório mais

42
comummente utilizado nas variantes de Hb é o estudo molecular com recurso à sequenciação

do gene HBB22.

5.2.2.1 Anemia falciforme

A anemia falciforme refere-se à forma mais comum de doença falciforme, e é causada

pela transmissão em homozigotia do alelo βS 24,28.

Em determinadas populações, a anemia falciforme representa até 70% dos casos de

doença falciforme, sendo que os restantes são representados pela doença HbSC, ou pela co-

herança de alelos βS e β0 (talassémia). Existem muitos outros genótipos capazes de produzir

fenótipo falciforme, no entanto, são raros24,28. Salvo invulgares exceções, indivíduos com

apenas um alelo βS, são assintomáticos, clínica e hematologicamente3,24. Uma vez que tanto a

anemia falciforme, como os restantes síndromes falciformes são semelhantes, serão discutidos

em conjunto, de forma indiscriminada.

A distribuição mundial da anemia falciforme é indicativo de dois fatores: seleção dos

indivíduos portadores pela sua resistência à malária -cujo mecanismo ainda não está

totalmente esclarecido- e pela subsequente migração populacional28. A sua prevalência é

maior na África subsariana, onde cerca de 0.74% dos nados vivos são afetados pela doença28.

Estima-se que em Portugal, 0.5-1% da população seja portadora de um alelo βS, e que esta

percentagem suba para 5% entre a população imigrante24.

A HbS é causada por uma mutação no 17º nucleosídeo -timina para adenina- que leva

a uma substituição no sexto aminoácido da cadeia β-globínica (de ácido glutâmico,

hidrofílico, para valina, hidrofóbica)28,29. Esta mutação resulta numa nova ligação entre as

cadeias β1-β2 da molécula de hemoglobina, que, no estado desoxigenado, leva à cristalização e

expansão desta, preenchendo completamente o eritrócito. A polimerização da HbS resulta em

disrupção da arquitetura e flexibilidade da célula, e promove a desidratação celular. A taxa à

43
qual a cristalização ocorre depende principalmente da concentração de HbS, mas também do

intervalo de tempo de desoxigenação, e da concentração de hemoglobina fetal na célula - que,

pela ausência de cadeias β, diminui a concentração de HbS28.

A formação destes longos polímeros ativa uma cascata de alterações celulares, entre as

quais, a desregulação da homeostasia dos catiões -resultando em efluxo de potássio e

desidratação celular-, e a libertação do grupo heme e de Fe3+ promovendo a existência de um

microambiente oxidativo, que leva à disrupção da normal assimetria da membrana, e culmina

na lise do GV29.

As manifestações clínicas desta patologia são essencialmente devidas a dois

fenómenos: oclusão vascular com lesão isquémica (causada pela deformação dos GV e

consequente aumento da rigidez eritrocitária29), e hemólise28. A oclusão vascular é causada

pelo aprisionamento dos GV na microcirculação causando obliteração do vaso. Pensa-se que é

a inflamação (com envolvimento de neutrófilos e células endoteliais29), o evento primário,

que leva à lentificação do fluxo sanguíneo na microcirculação, aumentando o tempo que os

GV estão sujeitos a condições hipoxémicas permitindo a polimerização da HbS com alteração

morfológica do GV e que eventualmente resulta em vaso-oclusão, no entanto, este é ainda

motivo de estudo28,29.

Novas evidências sugerem que a própria hemólise pode ser também um fator

etiológico para o desenvolvimento de vasculopatia (caracterizada por hipertensão pulmonar,

disfunção vascular, e alterações proliferativas na íntima dos vasos), uma vez que, estas

alterações foram observadas noutras patologias que condicionam hemólise crónica28. A

hemoglobina livre no plasma gera espécies reativas de oxigénio que esgotam as reservas de

óxido nítrico (NO)28–30. A depleção crónica de NO leva à perda do seu efeito vasodilatador, e

facilita a ativação plaquetar contribuindo para o estado de hipercoagulabilidade e

hiperviscosidade observado28–30. Para além da alteração do metabolismo do NO, a hemólise

44
intravascular e subsequente libertação de ferro livre, pelo heme, é também fonte de stresse

oxidativo, que, por via da ativação de múltiplos fatores de transcrição, permite o aumento da

expressão de moléculas de adesão a nível do endotélio vascular29,30 (figura 6).

Apesar de manifestações clínicas dramáticas, aproximadamente 39% dos doentes não

reportam episódios de dor, contudo, 1% reporta mais de seis episódios por ano. Esta

variabilidade fenotípica pode ser parcialmente explicada pelos dois modificadores genéticos

mais bem estabelecidos: concentração de hemoglobina fetal e o traço α-talassémico28. O traço

α-talassémico pode ser observado em até 30% dos doentes de origem africana e até 50% dos

doentes com origem indiana; reduz a concentração de HbS na célula permitindo um

decréscimo das taxas de cristalização e hemólise28. A concentração de HbF no doente com

anemia falciforme varia entre 1% e 30% e esta variação vai explicar a parece explicar a

variabilidade clínica observada nestes doentes28 .

45
Figura 6: Fisiopatologia da anemia falciforme. NO = oxido nítrico; VCAM-1 = molécula de adesão celular vascular. Adaptado de [39].

46
O valor de hemoglobina dos doentes com drepanocitose está compreendido entre 60-

90g/l, e o VGM está dentro de parâmetros normais, traduzindo assim a presença de uma

anemia normocítica24. Os doentes com anemia falciforme têm leucocitose com neutrofilia, de

forma quase invariável, ao hemograma29. Os marcadores de hemólise encontram-se também,

previsivelmente, aumentados30.

A avaliação da LDH é um bom biomarcador na avaliação da hemólise intravascular e

correlaciona-se com a elevação da velocidade do jato regurgitante da tricúspide (JRT) (melhor

preditor da mortalidade). Velocidade de 2.5m/segundo ou mais do JRT está associada a 40%

de taxa de mortalidade a 3 anos em adultos30.

Se a necessidade de diagnóstico for urgente, este pode ser conseguido através da

conjugação do quadro clínico (crises álgicas, síndromes agudas de órgão, e anemia hemolítica

crónica), esfregaço de sangue periférico -através da observação de eritrócitos em forma de

foice-6, e pelo teste de falciformização eritrocitária26. Este último não deve ser realizado em

crianças com menos de 6 meses de vida uma vez que a maior concentração de HbF levará a

resultados falsos negativos26.

O diagnóstico desta patologia é extremamente simples e baseia-se na observação e

quantificação da HbS quer através da eletroforese (HPLC) e da sua confirmação por um teste

de solubilidade ou de falciformização. Pode ainda ser utilizada a sequenciação do gene

HBB28. O padrão da hemoglobina desta entidade por eletroforese ou HPLC mostra-se com

55-90% de HbS24.

No caso de coexistir uma mutação β-talassémica (β0), a anemia será hipocrómica e

microcítica, a eletroforese da hemoglobina revela >80% de HbS e o doente apresentará um

fenótipo severo24.

De notar que existem pelo menos 13 outras variantes hemoglobínicas que resultam de

mutações adicionais, para além daquela presente na anemia falciforme, e que mantêm a

47
capacidade de polimerização. O seu padrão eletroforético, contudo, pode ser diferente daquele

da HbS, e portanto é prudente realizar teste de falciformização eritrocitária quando há suspeita

de uma variante hemoglobínica não identificada26.

5.3 Talassémias

As talassémias são das doenças genéticas mais comuns em todo o mundo, com mais

de 60 000 nascimentos anuais de indivíduos severamente afetados23. Múltiplos estudos

relacionam o elevado número de doentes e portadores com uma diminuição da suscetibilidade

à infeção por Plasmodium falciparum31.

São um grupo heterogéneo de anemias hereditárias que resultam da redução da

biossíntese das cadeia α ou β globínicas, necessárias para formar o tetrâmero de

hemoglobina3,31.

As consequências fisiopatológicas destas entidades surgem secundariamente à

diminuição da concentração de Hb da célula (com consequente diminuição da sobrevida e da

capacidade de transporte de O2), mas mais importante, do desequilíbrio que se observa entre

as cadeias α ou β-globínicas31, resultando na precipitação das subunidades globínicas no

folheto interno da membrana celular levando a uma diminuição da deformabilidade do GV.

Ao nível dos precursores eritrocitários, a rápida destruição de cadeias globínicas livres resulta

na destruição destes, na MO, o que significa que o quadro clínico da anemia por uma

talassémia não é só devido à anemia hemolítica, mas também à eritropoiese ineficaz 3. O

fenótipo destes doentes é altamente variável, estando descritos indivíduos completamente

assintomáticos, a doentes severamente anémicos com necessidade de transfusões repetidas31.

48
5.3.1 α-talassémia

É causada maioritariamente por deleções (mais frequentes) ou mutações pontuais 22 no

gene da α-globina, que levam a uma diminuição ou ausência de síntese24,31. Estão descritas

sensivelmente 200 mutações/deleções deste gene22. Em cada cromossoma 16, existem 2 alelos

que codificam a α-globina e a gravidade clínica vai depender do número de alelos afetados,

assim como do tipo de mutação presente31. As deleções eliminam total (α0) ou parcialmente

(α+) a produção de α-globina num determinado cromossoma (em Portugal as mais comuns são

a α3.7 e a α4.2)24; as restantes mutações resultam ou em redução, ou ausência da produção de α-

globina, ou na síntese de cadeias estruturalmente aberrantes, associadas a um fenótipo clínico

mais grave31,32.

A quantidade de alelos mutados vai ser proporcional à quantidade de cadeias α

produzidas. Assim, indivíduos com apenas um alelo mutado, são portadores silenciosos, ou

apresentam índices eritrocitários borderline; indivíduos com dois alelos mutados (traço α-

talassémico), transmitidos em cis ou em trans (a identificação do tipo de transmissão é

irrelevante clinicamente falando, no entanto, pode ser essencial o seu esclarecimento no

âmbito da medicina reprodutiva)31, apresentam anemia ligeira, não hemolítica32.

Deleção dos quatro alelos da α-globina resulta em Hb Bart hidrópsia fetal, uma

condição geralmente incompatível com a vida32,33.

A doença da hemoglobina H é causada pela mutação em 3 dos 4 alelos da α-globina

com diminuição de mais de 70% da produção desta31,32. Durante o desenvolvimento fetal, as

cadeias γ em excesso vão formar homotetrâmeros (γ4), chamados de Hb de Bart; 6 meses após

o nascimento, são as cadeias β que formam tais homotetrâmeros (β4), a HbH, que devido à sua

instabilidade, precipitam nas células ainda em desenvolvimento31. A maior parte dos doentes

com HbH não irá depender de transfusões sanguíneas, mas o seu uso poderá ser necessário em

situações que aumentem o stresse oxidativo31. Clinicamente, os afetados apresentam-se com

49
anemia variável (26-133 g/l) e quantidades variáveis de HbH (0.8-40%), esplenomegalia,

icterícia , úlceras nos membros inferiores, cálculos biliares, sobrecarga de ferro, e episódios

hemolíticos em resposta a infeções, e a determinados fármacos32.

A hemoglobina Constant Spring (HbCS) é a variante α+-talassémica, não-delecional,

mais prevalente no mundo, com frequências génicas a atingir os 6% na Tailândia33 . Ocorre

devido a uma mutação pontual no codão STOP do gene α2 (aquele que tem maior expressão),

levando à elongação da proteína32. Esta mutação resulta na formação de mRNA instável e

apenas baixas quantidades de HbCS são produzidas34. Portadores desta mutação tendem a ter

manifestações ligeiramente mais graves da doença, uma vez que, para além da redução da

produção de Hb, há a produção de uma Hb instável34.

Os doentes com doença da HbH irão ter anemia de gravidade variável, com redução

do VGM e da HGM, e níveis normais ou ligeiramente reduzidos da HbA2 à análise da Hb. No

período fetal, quando os níveis de cadeias α caem abaixo dos 70%, Hb Bart pode ser detetada.

No adulto, no ESP, podem ser identificadas as moléculas de HbH (corpos de inclusão) através

do uso do azul de cresil brilhante, e, se em quantidade suficiente, esta pode ser detetada

através de técnicas eletroforéticas32.

O diagnóstico baseia-se no hemograma -que vai demonstrar uma anemia microcítica

hipocrómica- e no ESP (células microcíticas, de morfologia bizarra, com presença de

esquizócitos e, através de colorações supra-vitais corpos de inclusão -cadeias globínicas-)31. A

concentração de Hb e o valor do VGM vão ser tão mais baixos, quanto o número de alelos α

mutados24.

A presença de uma anemia microcítica, com elevação dos parâmetros de hemólise e

ausência de défice de ferro, e <3.4% de HbA2 na eletroforese da hemoglobina é sugestivo de

α-talassémia22. A HPLC pode demonstrar níveis elevados de Hb de Bart, ao nascimento, e de

50
HbH mais tarde na vida31. Estudos moleculares do DNA (sequenciação) são essenciais para

confirmar o diagnóstico de α-talassémia22,31.

5.3.2 β-talassémia

Existem mais de 300 alelos β-talassémicos, na sua maior parte, causados por mutações

pontuais no gene ou nas regiões que o flanqueiam, contudo, deleções removendo o gene β

também podem ocorrer22,23. Quando a β-globina é abolida pela mutação, estamos perante uma

talassémia β0 ao passo que, uma mutação que apenas reduza a síntese da cadeia, produz uma

talassémia β+ (fenótipo, geralmente, mais ligeiro26)22,23. Outras variantes estruturais podem

também ter um efeito β-talassémico (5.3.3 e 5.3.4) 23.

A severidade da doença é determinada pela extensão da redução da síntese de β-

globina, e pelo grau de excesso de cadeias α 31


, no entanto, doentes homozigotos para

mutações β+ idênticas podem ter uma extraordinária variação fenotípica: há doentes que são

dependentes de transfusões sanguíneas (β-talassémia major) e outros, independes destas (β-

talassémia intermédia)23,31. À semelhança do que ocorria na anemia falciforme, a co-herança

de outra patologia que diminua o desequilíbrio entre as α e β-globinas (α-talassémia) ou que

aumente a concentração de HbF está associada a manifestações clínicas mais leves23.

Uma mutação que afete apenas um alelo, normalmente não terá importância clínica,

porém, indivíduos com dois alelos mutados sofrerão de anemia severa (β-talassémia

intermédia ou β-talassémia major). A fisiopatologia da β-talassémia prende-se com o

desequilíbrio que ocorre entre as cadeias α e β: as cadeias α em excesso irão precipitar nos

precursores eritróides (causando deseritropoiese) e nos GV (causando hemólise)23,31.

Clinicamente, os doentes apresentam-se com anemia, esplenomegalia, deformações

ósseas devido à expansão da MO, atraso estatoponderal, e sobrecarga de ferro, que

eventualmente levará a lesão de órgão23,31.

51
Numa β-talassémia major, o hemograma, evidencia uma diminuição da concentração

de Hb (<80g/l), com hipocromia (HGM <20pg) e microcitose (VGM <70 fl); se se tratar de

uma β-talassémia intermédia, a anemia é de menor severidade e a microcitose mais ligeira23.

Doentes com β-talassémia minor (β0 ou β+ em heterozigotia, geralmente) têm apenas uma

ligeira anemia microcítica e elevação da HbA2 ao estudo eletroforético23; uma exceção a esta

regra ocorre quando, para além da mutação que condiciona uma alelo β0 ou β+, o doente herda

também um alelo α triplo (αα/ααα), ou quádruplo (αα/αααα)26.

O diagnóstico da β-talassémia major deve ser suspeitado se perante um doente

(normalmente de 3 a 6 meses de vida), de origem étnica sugestiva, desenvolve anemia

microcítica e hipocrómica, que não é devido a défice de ferro26; se se tratar de uma β-

talassémia intermédia, o doente é normalmente uma criança mais velha, que se apresenta com

anemia microcítica e hipocrómica, com hepatoesplenomegália, icterícia, e, por vezes,

expansão dos ossos da face26.

O diagnóstico definitivo é conseguido pela avaliação dos índices eritrocitários,

observação do ESP, e pela análise da hemoglobina: há um aumento das HbF e HbA2 (>3.5%)

com diminuição ou ausência de HbA; a HbE pode ser detetada em doentes com HbE/β-

talassémia23,26,31. A identificação de mutações, por meio da análise do DNA é um método bem

estabelecido e recomendado para a confirmação do diagnóstico23,31.

5.3.3 δβ-talassémia

Ocorre devido a uma grande deleção no locus do gene da β-globina formando uma

proteína de fusão entre o gene β e δ 33. Ao hemograma, identifica-se hipocromia e microcitose

na população de GV, cujo número absoluto pode estar aumentado. O estudo eletroforético

revela níveis elevados de HbA2 (na ordem dos 15%)33.

52
5.3.4 Variantes talassémicas – HbE/β-talassémia

A variante HbE é extremamente prevalente no sudeste asiático, atingindo até 60% em

determinadas populações, tornando o genótipo HbE/β-talassémia, de grande importância

clínica, e com enorme variabilidade fenotípica34. A HbE é uma variante estrutural β-globínica

que resulta tanto em diminuição da síntese da β-globina, como na formação de cadeias com

interação anormal com α-globina, e, se transmitido isoladamente (em hétero ou homozigotia),

condiciona talassémia minor31,34.

O alelo βE leva a uma redução da produção da cadeia e, se conjugado com os alelos β 0

ou β+ leva a uma forma clinicamente severa de β-talassémia23. Estudos sugerem que, em

determinadas populações, até 50% dos indivíduos com β-talassémia major têm o genótipo

βE/β+ ou βE/β0.23,31,34

Ao hemograma, identifica-se hipocromia e microcitose na população de GV, cujo

número absoluto pode estar aumentado. O estudo eletroforético revela níveis elevados de

HbA2 (na ordem dos 25-30%)33 e de HbE (58 ± 1.5%)27.

A transmissão da HbE, conjugado com outros genótipos que causam α-talassémia

(incluindo a Constant Spring) é também possível, e resulta em complexas interações génicas

culminando num fenótipo de talassémia intermédia (HBAE de Bart)34.

53
6. Enzimopatias

6.1 Metabolismo do glóbulo vermelho

Tendo em conta a ausência de organelos do eritrócito, as suas vias metabólicas são

relativamente limitadas, ainda assim, são capazes de o manter viável durante cerca de 120

dias3. Elas englobam: a glicólise anaeróbia (Embden-Meyerhof), os desvios das pentoses-

fosfato e de Luebering-Rapoport, o metabolismo da glutationa, e o metabolismo dos

nucleosídeos3,6,35. Têm como objetivo a manutenção da função adequada das bombas Na+/ K+,

manutenção da hemoglobina no seu estado reduzido e da sua afinidade pelo O2, manutenção

do balanço redox no pool de glutationa, e manutenção do pool de adenosina6,35.

A via Embdem-Meyerhof (EMP) converte glicose em piruvato ou lactato e é a única

fonte de ATP do GV possibilitando o funcionamento das bombas Na+/K+-ATPase

(diretamente envolvidas na conservação da integridade da membrana)35. Da via EMP advém

também a produção de NADH, cofator ao citocromo b5 redutase, que, por sua vez, é

responsável pela redução da hemoglobina oxidada35. O Shunt Luebering-Rapoport é único ao

eritrócito e permite a produção de 2,3-Difosfoglicerato (2,3-DPG) (cuja função é a regulação

da afinidade da Hb ao oxigénio)35. Em condições fisiológicas, 90% da glicose é metabolizada

pela via EMP para produzir ATP, e a restante metabolizada através da via das pentoses-

fosfato, cuja principal função é a síntese de NADPH35. O NADPH atua como cofator da

glutationa redutase, permitindo a sua manutenção no estado reduzido, providenciando então,

defesa contra o stresse oxidativo35 (figura 7).

54
Figura 7: Vias metabólicas do eritrócito. Adaptado de [22] 55
No GV maduro, o conteúdo de nucleosídeos é regulado principalmente pelo

metabolismo intracelular de purinas35. Durante a fase de maturação reticulocitária, a maior

parte dos derivados pirimidínicos é degradada e apresentam-se no GV maduro em

quantidades residuais, pelo contrário, os derivados de adenina representam cerca de 97% do

total da pool de nucleosídeos35. Dada a incapacidade de produzir estes compostos de novo

(necessários para a síntese de ATP), os derivados de purina são reconstituídos -através de

compostos intermédios- pela via de reciclagem das purinas3,35.

Múltiplas enzimas controlam todas estas vias metabólicas3. O fluxo glicolítico é

controlado pela hexocinase, fosfofrutocinase, glucose-fosfato isomerase, e piruvato cinase3. A

via das pentoses-fosfato é controlada pela glicose-6-fosfato desidrogenase3. A pirimidina-5-

nucleotisase é a principal enzima envolvida na via de reciclagem de nucleosídeos3.

As mutações que afetam o metabolismo do eritrócito, e que condicionam anemia

hemolítica, podem ser classificadas -arbitrariamente- segundo três tipos: (i) enzimopatias da

via glicolítica (via Embden-Meyerhof e do shunt de Luebering-Rapoport), (ii) enzimopatias

das vias de metabolismo dos nucleosídeos, e (iii) enzimopatias do metabolismo da glutationa

e do shunt das pentoses-fosfato10. A maioria das enzimopatias são herdadas recessivamente,

com sintomas apenas presentes em indivíduos homozigóticos, ou heterozigotos compostos35

(tabela 6).

56
Tabela 6: Disturbios enzimáticos do eritócito. Adaptado de [22]

Manifestações Sintomas Transmissão


Enzima Função no GV Miopatia
clínicas Neurológicos genética
Adenosina Deaminase Metabolismo nucleótido AHC - - AD
Adenilato cinase Metabolismo nucleótido AHC - - AR
Aldolase Via Embden-Meyerhof AHC ± ± AR
Fosfofrutocinase Via Embden-Meyerhof AHC - + AR
Fosfoglicerato cinase Via Embden-Meyerhof AHC + + Ligado ao X
AHC; induzida por
Glucose-6-fosfato desidrogenase Shunt Hexose monofosfato - - Ligado ao X
oxidantes
Glucose fosfato isomerase Via Embden-Meyerhof AHC ± - AR
AHC; induzida por
Glutationa redutase Metabolismo da glutationa - - AR
oxidantes
Glutationa sintetase Metabolismo da glutationa AHC + - AR
Hexocinase Via Embden-Meyerhof AHC - - AR
Pirimidina-5'-nucleotidase Metabolismo nucleótido AHC - - AR
Piruvato cinase Via Embden-Meyerhof AHC - - AR
Triosefosfato isomerase Via Embden-Meyerhof AHC + - AR
AHC: Anemia Hemolítica Crónica; AD: Autóssimica dominante; AR: Autossómica recessiva

6.2 Enzimopatias da via glicolítica (Embden-meyerhof) e do shunt de Luebering-Rapoport

Alterações nestas enzimas estão frequentemente associadas a manifestações não-

hematológicas como: disfunção neurológica, oligofrenia, miopatia e aumento da

suscetibilidade a infeções6.

Defeitos no shunt de Luebering-Rapoport não levam a hemólise mas sim a

policitémia, uma vez que é alterada a afinidade da hemoglobina pelo oxigénio6, como tal, o

estudo das suas alterações está para além dos objetivos deste projeto. Todas as enzimopatias

que ocorrem distalmente ao shunt de Luebering-Rapoport têm um aumento de 2,3-DPG com

consequente melhoria dos sintomas de anemia e maior tolerância aos esforços; este efeito

benéfico está ausente nas enzimopatias que ocorrem proximalmente ao shunt36.

57
6.2.1 Piruvato Cinase (PK)

O défice de piruvato cinase (PK) é a segunda causa mais frequente de anemia

hemolítica causada por défices enzimáticos e condiciona doença de severidade variável, que

agrava durante episódios infeciosos à custa da diminuição de ATP3,6,35.

A PK é uma enzima essencial na via EMP e está intimamente ligada à produção de

ATP3,37. É responsável pela transferência irreversível de um grupo fosfato do

fosfoenolpiruvato ao ADP levando a formação de lactato35,37. O funcionamento anormal da

PK reduz a quantidade de energia da célula, que é requerida para o seu funcionamento e

sobrevivência, levando a uma morte precoce (hemólise)37.

O défice de PK leva também ao aumento de 2,3-DPG -devido à acumulação de

metabolitos a montante da deficiência37- e, uma vez que ocorre um aumento na concentração

desta, há uma diminuição da afinidade da hemoglobina ao oxigénio e, este fenómeno, explica

a relativa boa tolerância à anemia (habitualmente severa), uma vez que compensa

parcialmente a hipóxia tecidular6,35,37. Para além de mascarar o fenótipo clínico, permitindo

aos doentes tolerar valores de Hb mais baixos com menor sintomatologia, a acumulação de

2,3-DPG pode prejudicar ainda mais a glicólise devido à sua ação inibitória sobre a

hexocinase37.

A maior parte dos casos é causada pela herança de uma mutação missense (70%) na

isoenzima da PK específica ao eritrócito, transmitida recessivamente3,35,37. Estão identificadas

180 mutações distintas que levam a anemia hemolítica por alteração da PK37.

As manifestações clínicas da deficiência em PK são semelhantes às restantes anemias

hemolíticas crónicas, porém, a severidade desta é extremamente variável: desde formas

assintomáticas com hemólise compensada, a formas neonatais severas com necessidade de

transfusões regulares37. Em doentes com fenótipo ligeiro a moderado, a anemia tende a

58
melhorar com o envelhecimento e é relativamente constante na idade adulta, havendo

exacerbações ocasionais com infeções ou gravidez37.

O mecanismo pelo qual o défice de ATP causa hemólise ainda não está

completamente esclarecido3 e não existe qualquer correlação entre grau de atividade da PK e

gravidade da clínica35.

O diagnóstico desta patologia começa com a confirmação de hemólise (aumento da

bilirrubina, aumento LDH, e diminuição da haptoglobina)35,37 e com a presença de um ESP

incaracterístico37, sem alterações morfológicas evidentes (contudo, em alguns casos de

deficiência de PK podem estar presentes equinócitos assim como anisopoiquilocitose)35.

O diagnóstico diferencial requer a demonstração da diminuição da atividade

enzimática, e confirmação através da análise de DNA35. Os testes de demonstração da

atividade enzimática são rápidos e pouco dispendiosos, e correlacionam a atividade da enzima

em estudo através da alteração da absorvância -ao longo do tempo.- num determinado

substrato, preparado especificamente35. A atividade enzimática de indivíduos afetados é

sempre abaixo de 25% do normal, podendo estar próxima de zero35. Apesar deste ser um teste

relativamente simples, existem múltiplas situações que podem levar a falsos negativos ou

positivos: condições de armazenamento e envio; remoção apropriada de leucócitos e plaquetas

(pela presença de isoenzimas funcionais); transfusões sanguíneas; e reticulócitos em sangue

periférico dado que a Hexocinase, Piruvato Cinase, Glicose-6-fosfato Desidrogensase, e

Pirimidina-5-nucleotidase são enzimas cuja atividade está aumentada em GV mais jovens. A

avaliação de qualquer enzima cuja concertação varie com a idade da célula deve ser

comparada outra deste género: se a atividade da PK é normal, e a da hexocinase estiver

aumentada, podemos estar perante uma deficiência de PK6,35.

Se perante suspeita de uma deficiência enzimática, a caracterização molecular do

defeito ao nível do DNA é essencial para a confirmação do diagnóstico35. Grandes deleções,

59
mutações em regiões regulatórias, e mutações que levem a splicing alternativo poderão não

ser detetadas pelas técnicas convencionais de Polymerase Chain Reaction37.

6.2.2 Hexocinase (HK)

Esta enzima catalisa a fosforilação da glicose a glicose-6-fosfato, usando o ATP como

dador do grupo fosfato36.

A deficiência nesta enzima é extremamente rara estando apenas descritos cerca de

duas dezenas de casos35. É causada por mutações transmitidas de modo recessivo,

condicionando anemia hemolítica crónica não esferocítica de severidade variável35,36. O

diagnóstico é feito através da análise da sua atividade, tendo em conta que esta molécula está

aumentada em GV mais jovens -reticulócitos-, e que é uma mas enzimas com menor atividade

enzimática in vitro35,36.

6.2.3 Glicose-6-fosfato Isomerase (GPI)

É responsável pela conversão reversível da glicose-6-fosfato em frutose-6-fosfato, o

segundo passo da via glicolítica EMP36,38.

O défice em GPI é a segunda causa de enzimopatia mais comum da via EMP 35; é uma

doença transmitida de forma recessiva e as mutações que a causam são, na sua maioria,

missense36,38.

Doentes afetados têm anemia hemolítica crónica de severidade variável (à semelhança

das restantes enzimopatias) com exacerbações agudas desencadeadas por infeções6,36. A

hidrópsia fetal parece ser a complicação mais comum do défice de G6PI, em comparação com

as restantes enzimopatias; foram ainda descritas alterações em tecidos não eritróides levando

a sintomas neurológicos (fraqueza muscular e oligofrenia)35,38 e disfunção granulocitária36.

60
Analiticamente, estes doentes apresentam os sinais típicos de anemia hemolítica com

especial tendência ao desenvolvimento de sobrecarga de ferro38.

O diagnóstico é conseguido pela análise da atividade enzimática, que estará reduzido

para menos de 25% da atividade normal, e não é influenciada pela presença de reticulocitose

em sangue periférico35,36.

6.2.4 Fosfofruto Cinase (PFK)

A PFK medeia a reação de fosforilação, ATP-dependente, de frutose-6-fosfato a

frutose-1,6-fosfato36. Esta enzima tem três diferentes subunidades presentes no organismo

humano, e, no eritrócito, estão presentes cinco isoenzimas de composição variável, que

contêm tanto a subunidade L (liver), como a subunidade M (muscle)35,36, portanto, défice

numa destas leva a apenas uma deficiência parcial de PFK35.

A deficiência de PFK é uma doença rara, autossómica recessiva36. Mutações que

envolvam a subunidade L vão levar apenas a anemia hemolítica crónica -normalmente ligeira-

ou doença compensada, ao passo que, mutações na subunidade M resulta não só em ausência

desta enzima no GV, como no tecido muscular, resultando em miopatia35,36. Cerca de um

terço dos doentes identificados, são de origem judaica36 .

6.2.5 Aldolase

A aldolase é uma enzima presente tanto no GV, como no tecido muscular, e permite a

conversão de frutose-1,6-fosfato para ou gliceraldeído-3-fosfato, ou fosfato de di-

hidroxiacetona36.

O défice nesta enzima é extremamente raro, estando descritos apenas 6 doentes.

Anemia hemolítica crónica moderada a severa estava associada em todos35. Para além da

61
anemia estão associados outros sintomas como: oligofrenia, miopatia, e alterações

psicomotoras36.

6.2.6 Triose-fosfato Isomerase (TPI)

Esta é a enzima com maior atividade in vitro e esta não está dependente do estado de

maturação da célula. Catalisa a interconversão de gliceraldeído-3-fosfato e fosfato de di-

hidroxiacetona (DHAP)36 e está presente em todos os tecidos39.

A deficiência de TPI é uma doença autossómica recessiva rara, considerada a mais

grave enzimopatias da via glicolítica35,39. A mutação mais frequente (80%) -Glu104Asp- é

também aquela que está associada a maior severidade de sintomas; esta não está relacionada

com a diminuição da atividade enzimática, mas sim com a instabilidade da enzima em si39.

Dada a sua alta atividade enzimática, mesmo quando esta está severamente reduzida, é

suficientemente alta para manter o fluxo glicolítico, não condicionando sintomomatologia39.

Sugere-se que é a acumulação de proteínas misfolded que vai condicionar o metabolismo

glicolítico, por mecanismos ainda não compreendidos39.

Esta patologia é caracterizada por anemia hemolítica severa, disfunção neurológica,

cardiomiopatia e aumento da suscetibilidade à infeção35,36,39. O défice de TPI leva à morte na

infância precoce35,39.

Indivíduos afetados apresentam ainda um aumento de 20-60 vezes da concentração

eritrocitária de DHAP, consistente com o bloqueio metabólico ao nível da TPI36 e pensa-se

que este aumento possa contribuir para o desenvolvimento dos sintomas neurológicos39.

6.2.7 Fosfoglicerato Cinase (PGK)

A PGK gera ATP através da conversão reversível de 1,3-bifosfoglicerato para 3-

fosfoglicerato36. Esta reação é completamente dispensável através do bypass de Luebering-

Rapoport36.

62
O gene responsável pela codificação desta enzima está presente no cromossoma X,

deste modo, esta é das únicas enzimopatias associadas a uma mutação ligada ao X35,36.

Clinicamente está associada a anemia hemolítica crónica (frequentemente totalmente

compensada), miopatia, e disfunção neurológica, no entanto, o fenótipo é extremamente

variável uma vez que é raro os doentes exibirem estas três alterações35,36.

A atividade da enzima pode variar entre 0-20% do normal, porém, não existe

correlação entre atividade desta, e o fenótipo clínico36.

6.2.8 Outras enzimas

Mutações na enolase, gliceraldeído-3-fosfato desidrogenase, lactato desidrogensase, e

fosfoglicerato mutase, ou não causam hemólise, ou ainda não foi estabelecida uma relação

causal definitiva com esta6,35,36, uma vez que não há casos identificados na literatura.

6.3 Enzimopatias das vias de metabolismo dos nucleosídeos

Há varias enzimas envolvidas no metabolismo das purinas e pirimidinas. As mais

relevantes são a pirimidina-5’-nucleotidase (metabolismo das pirimidinas), e a adenilato

cinase e a adenosina deaminase (metabolismo das purinas)35. Defeitos nestas vão levar a

anemia hemolítica não esferocítica35.

6.3.1 Pirimidina-5’-nucleotidase (P5N)

Durante a maturação do eritrócito, a P5N degrada todos os nucleosídeos pirimidínicos

dando origem a compostos solúveis e grupos fosfato35. A atividade da P5N reduz rapidamente

à medida que a célula envelhece, e, ao contrário das restantes enzimas dependentes da

maturação eritrocitária, a muito rápida queda da atividade nos primeiros dias de maturação é

seguida por adicional diminuição da atividade ao longo da semivida do GV40.

63
A deficiência em P5N é uma entidade transmitida recessivamente, com anemia

hemolítica de gravidade variável, e sinais típicos de hemólise35. Cerca de duas dezenas de

mutações causadoras de doença já foram identificadas; a grande maioria dos doentes

apresenta-se como homozigótico para tais mutações40.

Défice nesta enzima leva à acumulação de nucleosídeos pirimidínicos, que formam

agregados insolúveis. Estes agregados apresentam-se no ESP como ponteado basófilo

grosseiro, que, apesar de inespecífico, é muito sugestivo desta patologia35. Contudo, os

mecanismos precisos que levam à lise eritrocitária ainda não são totalmente conhecidos 40.

Sugere-se que o efeito metabólico exercido por estes compostos possa levar à alteração na

composição da bicamada lipídica40. Outros efeitos que podem explicar a diminuição da

sobrevida eritrocitária são: a quelação de iões de magnésio, inibindo a atividade de enzimas

que o usam como cofator; a interferência do fluxo glicolítico através da competição pelos

locais de ligação do ATP das enzimas glicolíticas; o comprometimento do shunt das pentoses

devido à diminuição do pH intracelular que inibe a ação da G6PD; aumento dos níveis de

glutationa reduzida40.

As manifestações clínicas desta patologia são as típicas observadas em doentes com

hemólise crónica. A hemólise pode ser totalmente compensada em casos raros, mas é

frequentemente ligeira a moderada40.

Analiticamente, além da macrocitose, observam-se os achados típicos de hemólise

com reticulocitose persistente e não relacionada com o grau da anemia40. Ao ESP observam-

se até 12% dos eritrócitos com ponteado basófilo grosseiro devido a precipitação intracelular

de RNA não catabolizado40.

O diagnóstico desta entidade inclui a medição espectrofotométrica de nucleosídeos

(scan dos nucleótidos) de purinas e pirimidinas no hemolisado desproteínizado e cálculo do

ratio purina:pirimidina - que se apresenta diminuído-35,40; e demonstração de diminuição da

64
atividade enzimática desta40. Existem múltiplos procedimentos que permitem quantificar a

atividade enzimática desta, que se varia entre 1% e 64% da sua atividade normal. A atividade

residual não se correlaciona nem com o fenótipo clínico, nem com o número de reticulócitos

em sangue periférico40.

6.3.2 Adenilato Cinase (AK)

É uma doença autossómica recessiva rara -com apenas 12 famílias identificadas- que

condiciona anemia hemolítica moderada a grave e detioração psicomotora35,41.

A AK é responsável pela manutenção da homeostase energética da célula41.

Todos os mutantes estudadas demonstram uma diminuição, mais ou menos variável,

das suas propriedades catabólicas, no entanto, o mecanismo fisiopatológico que leva a anemia

ainda não foi esclarecido e o fenótipo clínico correlaciona-se mais fortemente com o tipo de

mutação em causa, do que com a atividade enzimática residual41.

6.4 Enzimopatias do metabolismo da glutationa e do shunt das pentoses-fosfato

Estas vias metabólicas são o principal meio de proteção do GV contra o stresse

oxidativo, e a glutationa reduzida é a principal fonte de poder redutivo da célula35. Para

alcançar o estado reduzido desta molécula, o eritrócito usa o desvio das pentoses-fosfato para

produzir NADPH35. Em condições normais, apenas uma minoria das moléculas de glicose é

desviada para a vias das pentoses-fosfato, porém, em situações de stresse, o fluxo de glicose-

6-fosfato por este shunt pode aumentar vinte vezes, por influência das enzimas TPI e

gliceraldeído-3-fosfato desidrogenase (sensíveis a estados oxidativos)42.

Distúrbios das enzimas associadas a estas vias normalmente causam hemólise apenas

em condições de grande stresse oxidativo, levando ao desenvolvimento de anemia hemolítica

aguda35.

65
6.4.1 Glicose-6-fosfato Desidrogenase (G6PD)

A G6PD catalisa o primeiro passo do shunt das pentoses-fosfato produzindo 6-

fosfogluconolactona através da glicose-6-fosfato com concomitante redução do NADP a

NADPH, essencial no processo de redução da glutationa35,43,44.

Deficiência nesta enzima constitui a causa mais frequente de anemia hemolítica

devido a uma enzimopatia6,43. O défice de G6PD é um distúrbio ligado ao cromossoma X e

afeta mais de 400 milhões de pessoas a nível mundial35,43,44. Apesar de ser uma patologia

tipicamente associada ao sexo masculino, o desvio da lionização do cromossoma X pode

ocorrer em mulheres a partir dos 40 anos e pode levar ao desenvolvimento do fenótipo típico

da deficiência de G6PD; devido também à grande prevalência de variantes polimórficas, não é

raro a ocorrência de doentes do sexo feminino com homozigotia para alelos mutados43,44.

A razão pela qual esta patologia é tão prevalente é explicada pela vantagem seletiva

dos afetados à infeção por plasmodium, no entanto, os mecanismos pela qual esta vantagem

ocorre, ainda não estão perfeitamente esclarecidos43.

Clinicamente, esta patologia pode ser dividida em 5 classes, sendo que a maior parte

dos afetados pertence à classe II, III, e IV e estão associados apenas a episódios agudos de

hemólise em consequência de situações que aumentam os níveis de stresse oxidativo. Em

contraste, a classe I tem níveis de atividade enzimática inferior a 1%, e está associada a

hemólise crónica não esferocítica, para além das crises hemolíticas supramencionadas35. A

classe V é composta por indivíduos que vêm a sua atividade enzimática de G6PD

aumentada44.

A icterícia neonatal é um achado relativamente frequente em doentes com deficiência

de G6PD, afetando principalmente aqueles com as variantes mais severas da doença, como a

variante mediterrânea, mas ocorre também em variantes associadas a doença ligeira43.

66
As crises hemolíticas manifestam-se como episódios agudos de hemólise intravascular

num indivíduo previamente assintomático após a exposição de determinados fármacos,

infeções ou ingestão de feijões-fava43. Mal-estar geral, dor abdominal, icterícia, e

hemoglobinúria são sinais e sintomas característicos das crises hemolíticas; analiticamente,

observam-se valores de hemoglobina muito baixos sintomáticos, reticulocitose importante e

hiperbilirrubinémia e níveis muito elevados de LHD. Ao ESP com a coloração standard

(May-Grünwald-Giemsa) podem ser observadas células de stress oxidativo (também

chamadas de bite cells) que são GV com aspeto de mordedura, e com coloração supra-vital

(azul de cresil ou violeta de metilo), corpos de Heinz (hemoglobina precipitada)35,44 assim

como anisopoiquilocitose e policromasia43,44. A severidade da anemia vai variar dependendo

do estímulo oxidativo em causa, e da mutação presente; as crises hemolíticas podem estar

presentes em ambos os géneros, porém, a sintomatologia é menos severa no sexo feminino43.

Apesar da sua potencial gravidade, a maior parte das crises hemolíticas são autolimitadas,

uma vez que à medida que as células mais antigas lisam -devido ao stresse oxidativo-, são

substituídas por células mais jovens, com níveis maiores de atividade enzimática43.

Como foi referido anteriormente, a anemia hemolítica crónica é também possível em

doentes com atividade enzimática extremamente baixa; estes indivíduos apresentam-se com

sintomas característicos (esplenomegalia, aumento da frequência de litíase biliar e

hiperferritinémia). Para além da doença crónica, as crises agudas são também possíveis e com

um maior número de fármacos (e com menores doses)43.

Apenas raramente (G6PD Volendam e G6PD Amsterdam), défice de G6PD leva a

sinais e sintomas não hematológicos, como doença granulomatosa crónica, devido a disfunção

neutrofilica. A relativa não afeção das células nucleadas é explicada pela sua constante

produção enzimática43.

67
Existe um elevado número de mutações associadas a esta patologia, algumas das

quais, com frequência superior a 1%, passando então a chamar-se variantes polimórficas43.

Diferentes regiões vão ter diferentes prevalências de polimorfismos: a variante mediterrânea é

prevalente nas áreas mediterrânicas, médio-oriente e índia , ao passo que a variante A- é

responsável pela vasta maioria de défice de G6PD em África43. Estas variantes polimórficas

vão são incluídas na classe II (atividade enzimática entre 1-10%44) e III (atividade enzimática

entre 10-60%44)43.

As variantes esporádicas surgem com frequências muito mais reduzidas, sendo

causadas maioritariamente por mutações missense; estão associadas a hemólise crónica, e são

de classe I43. Não existem mutações nonsense ou frameshift desta enzima especulando-se que

a sua total ausência levaria a morte in útero43.

O diagnóstico desta patologia é conseguido através do teste de beutler (teste de

rastreio rápido não específico44) ou pela medição espectrofotométrica da atividade da enzima,

podendo ambos serem falsamente negativos, se o indivíduo em causa estiver na fase de estado

da crise hemolítica, devido ao elevado número de reticulócitos em sangue periférico43,44.

Perante um episódio de hemólise aguda, tanto os métodos de rastreio, como a medição

da atividade enzimática são normais, neste caso o exame molecular é preferível44.

6.4.2 Glutationa Redutase (GR)

Esta enzima é responsável pela conversão da glutationa oxidada em glutationa

reduzida. O seu défice é extremamente raro, e é causada por mutações transmitidas

recessivamente35. O fenótipo clínico é semelhante ao da deficiência de G6PD, com indivíduos

afetados geralmente assintomáticos, com suscetibilidade aumentada à ingestão de

determinados fármacos ou feijões-fava predispondo a crises hemolíticas agudas35.

68
6.4.3 6-Fosfogluconato Desidrogenase (6PGD); γ-glutamil-cisteína-sintetase / Glutamato

cisteína ligase (GCL); Glutationa Sintetase (GS)

As deficiências nestas enzimas são raras e condicionam apenas hemólise ligeira, sendo

que o seu fenótipo é principalmente marcado por manifestações extra-hematológicas, como

alterações neurológicas e aumento da suscetibilidade à infeção 42,45.

O diagnóstico é conseguido pela análise molecular do gene que as codifica. 42,45.

6.4.4 Outras enzimas

Defeitos na glutationa peroxidade e noutras enzimas envolvidas na defesa contra o

stresse oxidativo não foram associadas a fenómenos hemolíticos35,42.

69
7. Microangiopatias Trombóticas Hereditárias (TMA) hereditárias / Anemia

Hemolítica Microangiopática (MAHA) hereditária

Com a descoberta de deficiências hereditárias da proteína ADAMTS13 na púrpura

trombocitopénica trombótica (TTP congénita) e, mais recentemente, de mutações em

proteínas-controlo do complemento em até dois terços dos doentes com síndrome hemolítico

urémico atípico, surge a necessidade de separar estas duas entidades, que têm fisiopatologia,

clínica e tratamento muito distintos6.

A TMA é definida pela presença de trombos de fibrina ou plaquetas na

microcirculação. É caracterizada pela presença de anemia hemolítica não imune,

trombocitopenia, e lesão de órgão-alvo6,46.

A distinção entre a TTP congénita e o síndrome hemolítico urémico atípico, é feita

clínica e laboratorialmente e pode trazer consigo grandes desafios; geralmente, ambas as

entidades se apresentam com trombocitopenia, anemia hemolítica, e esquizócitos no ESP, no

entanto, os mecanismos que os produzem, são completamente distintos6,46,47. Os esquizócitos

(eritrócitos fragmentados) são indicadores de aumento forças de cisalhamento e, na ausência

de dipositivos intravasculares (como válvulas cardíacas mecânicas), são a consequência da

estenose a nível arteriolar e capilar46.

O diagnóstico destas duas patologias passa pela exclusão de outras causas de hemólise

microangiopática e trombocitopenia como: dispositivos intravasculares, doença neoplásica,

doença autoimune, infeção (Escherichia coli, Shigella dysenteriae, S. pneumoniae, HIV),

pancreatite, hipertensão severa (não exclui formas frustes de aHUS), fármacos (ticlopidina,

bevacizumab, mitomicina, gentamicina, e inibidores da calcineurina), coagulação

intravascular disseminada, hemoglobinúria paroxística noturna, síndrome do anticorpo

antifosfolipídico, trombocitopenia induzida pela heparina ou Síndrome HELLP46.

70
7.1 Púrpura Trombocitopénica Trombótica Congénita

A TPP congénita (também conhecida por Síndrome de Upshaw–Schulman) é causada

por mutações da ADAMTS13 (e ausência de autoanticorpos para esta48) e é responsável por

menos de 10% dos casos de TTP49,50. As mutações (maior parte missense50) são herdadas

recessivamente51, podem ocorrer dispersadas por todo o gene (não sendo conhecidos

hotspots), e resultam numa diminuição da secreção/síntese/atividade da protease, ou no

aumento da sua degradação48,50.

A ADAMTS13 é uma metaloprotease determinante na prevenção da agregação do

fator Von Willebrand (VWF) às plaquetas em circulação46, clivando os multímetros do VWF

-secretados pelas células endoteliais- em formas mais pequenas, hemostaticamente ativas, mas

não protrombóticas51.

Na deficiência da ADAMTS13, a propensão do VWF e da plaqueta para formar

agregados depende de vários fatores, sendo que o mais importante é o perfil tensional de

cisalhamento na microcirculação46. Em alguns doentes, a tensão de cisalhamento poderá não

ser suficiente para ativar o VWF e a sua interação com a plaqueta não irá ocorrer (mesmo

perante deficiência severa da ADAMTS13): este fenómeno irá explicar a grande variabilidade

clínica encontrada46. Existem doentes que têm a sua primeira manifestação da doença na

idade adulta, enquanto outros, manifestam doença de início precoce49,50.

A TTP congénita está frequentemente associada a deficiência severa da ADAMTS13

(definida por uma atividade da protéase menor que 10%); estes doentes têm acumulação de

multímetros VWF ultra-grandes, não clivados, e estes, podem fazer parte do principal

mecanismo fisiopatológico neste grupo de doentes49. Estes indivíduos têm um risco de 41%

de recorrência de manifestações clínicas aos 7 anos e meio versus 4% em indivíduos com

atividade superior a 10%49. Doentes com alguma atividade residual da ADAMTS13 estão

71
relativamente protegidos até que algum evento desafie o seu precário equilíbrio (gravidez,

processo infecioso, ingestão alcoólica, cirurgia por exemplo)49,50.

Estudos sugerem que doentes com baixos níveis de ADAMTS13 (<5%) têm tendência

para ter níveis significativamente diminuídos de plaquetas (≤30 x109/l), diminuição da

creatinina sérica (≤ 2.26 mg/dl), e anticorpos antinucleares positivos: a combinação destes três

critérios obteve uma especificidade de 98.1% na identificação de doentes com baixos níveis

da protease47,52. O uso da contagem das plaquetas e da creatinina sérica poderá assim prever

os valores da ADAMTS13 para assim chegar ao diagnóstico de forma mais célere49,52.

O fenótipo desta patologia é explicado pela formação de agregados de VWF e

plaquetas na microcirculação levando então à isquemia tecidual, e manifestando-se por

alterações neurológicas (25-79% dos doentes52), dor abdominal, pancreatite, enfarte agudo do

miocárdio46, febre50 e lesão renal52.

O doente típico com TTP congénita será o recém-nascido que desenvolve

trombocitopenia e icterícia horas após o nascimento, hemólise e esquizócitos no ESP,

ocasionalmente, episódios convulsivos e obnubilação mental, e que responde favoravelmente

a transfusão sanguínea ou exsanguineotransfusão. Laboratorialmente, apresenta atividade

reduzida da ADAMTS13 (<10%) e não tem presentes anticorpos inibitórios para esta

proteína53.

De notar que os afetados podem apresentar lesão renal aguda e ser erroneamente

diagnosticados com aHUS até que seja realizado o teste da atividade da ADAMTS1346,47. Da

mesma forma, a presença de deficiência severa de ADAMTS13 não deve imediatamente

excluir a presença de uma possível aHUS47.

O diagnóstico da TTP congénita é feito através da documentação da trombocitopenia,

anemia hemolítica microangiopática com sinais de fragmentação dos GV (e exclusão de

72
causas alternativas que possam explicar estes achados), redução da atividade da ADAMTS13,

e pela análise molecular do gene que a codifica49,50.

7.2 Síndrome Hemolítico Urémico Atípico (aHUS)

O sistema complemento é parte integral do sistema imune e compreende as vias

clássica, da lectina, e alternativa. As vias clássica e da lectina são ativadas por complexos

imunes ou pela manose microbiana, e levam à formação do complexo de ataque à membrana

(C5b-9) e de toxinas anafilactóides (C3a e C5a). A via alternativa, tem como função a

amplificação das anteriores, e está regulada por múltiplas proteínas (fator I, fator H, CD46, e

trombomodulina), permitindo a cessação da atividade do complemento, assim que a infeção

seja resolvida54 (figura 8).

Figura 8. Ativação do sistema complemento e sua regulação. adaptado de [54].


Legenda: CFP – fator P do complemento; CFB – fator B do complemento; CFD – fator D do
complemento; CFI – fator I do complemente; MCP – proteína cofatora de membrana; THBD –
trombomodulina; CFH – fator H do complemento; CFHR1 – proteína 1 relacionada com fator H do
complemento; CPB2 – carboxipeptidase B2; CPB2a – forma ativa da carboxipeptidase B2

73
A aHUS resulta da deficiente regulação do sistema complemento46. Pode resultar de

mutações de perda de função (do fator H, do CD46, do fator I, ou da trombomodulina), de

ganho de função (do fator B, do C3), ou ainda da presença de autoanticorpos para o fator H

(extremamente raros55) 46, cujo estudo está para além do objetivo deste projeto. Porque a lista

de moléculas afetada permanece incompleta, um teste genético não exclui o diagnóstico de

aHUS46,47,54.

O defeito no complemento leva à ativação descontrolada de C5b-9, provocando lesão

endotelial, e expondo moléculas protrombóticas do subendotélio conduzindo a estenose

vascular e ativação do sistema de coagulação46,54.

A produção de C3a e C5a está associada a alterações da permeabilidade capilar com

consequente edema de múltiplos órgãos; clinicamente, este edema reflete-se por: lesão renal,

alterações neurológicas (10-30%52), disfunção cardíaca, derrame pericárdico, infiltrados

pulmonares, dor abdominal, náusea, vómitos, diarreia, pancreatite, ascite, e anasarca46.

Doentes que apresentem lesão renal irão ter um prognóstico menos favorável: cerca de metade

chegarão a um estádio de doença renal terminal no primeiro episódio de aHUS e dois terços

nos cinco anos subsequentes56.

Tanto a TTP congénita como a aHUS se podem apresentar com sintomas

neurológicos, pelo que a presença/ausência destes não podem ser usados na distinção entre

estas duas entidades46,47.

Estudos recentes têm tido resultados contraditórios quanto ao uso da atividade da

ADAMTS13 no diagnóstico de aHUS, principalmente, pela ausência de critérios exatos e

sensíveis no diagnóstico desta patologia, inobstante, o uso deste teste tem ainda utilidade na

diferenciação entre estas duas entidades, e permite a realização do correto diagnóstico e da

conduta apropriada na maior parte dos doentes47.

74
Biomarcadores que traduzem a ativação desregulada do complemento, como o C3,

fator H ou C4, são de utilidade limitada, uma vez que apenas um terço dos doentes (com

aHUS confirmado por sequenciação de DNA) se apresentam com alteração nestes55.

O diagnóstico de aHUS pode ser sugerido num doente com MAHA, atividade não

deficitária de ADAMTS13, envolvimento renal mais severo, trombocitopenia (contagens de

plaquetas mais altas que na entidade anterior, sendo que alguns doentes podem apresentar

uma contagem normal56), ausência de outra patologia que possa explicar o quadro clínico, e

por uma resposta favorável ao tratamento empírico com eculizumab47,54. O diagnóstico

definitivo pode necessitar do sequenciamento de múltiplos genes (em até 50% doentes, o

diagnóstico é apenas inferido com base na sua melhoria clínica após tratamento

específico)46,47,55. Para além do diagnóstico, a identificação do tipo de gene envolvido

contribui para avaliar o prognóstico do doente55.

Atualmente, a procura por novos MCD para a aHUS são uma área de intensa investigação.

75
8. Anemia Deseritropoiética Congénita (CDA)

As CDA são um grupo heterogéneo de doenças raras que afetam a eritropoiese.

Caracterizam-se pela associação de eritropoiese ineficaz congénita, precursores eritróides

morfologicamente anormais, resposta eritrocitária subótima, e ausência de alterações

morfológicas nas restantes linhagens celulares. Historicamente eram divididas em 3 classes

(tipo 1, tipo 2, e tipo 3) baseado na morfologia dos eritroblastos a nível medular 57. Em geral,

o diagnóstico destas entidades faz-se pela presença de quatro critérios: presença de anemia

congénita ou hereditária, evidência de eritropoiese ineficaz, alterações morfológicas típicas ao

exame da MO, e exclusão de outras síndromes que preenchem os dois primeiros critérios

(talassémias)57.

8.1 Anemia Deseritropoiética tipo I (CDA-1)

A CDA-1 é uma patologia rara, transmitida recessivamente, não havendo quaisquer

alterações clinicas ou hematológicas em heterozigotia57. Foram identificados dois genes

possivelmente implicados na fisiopatologia desta doença: o CDAN1 e C15ORF41. Com base

nos genes envolvidos, sugere-se que a CDA-1 resulta de defeitos na replicação de DNA e da

organização da cromatina58.

No período fetal e neonatal, estes doentes apresentam restrição de crescimento,

hepatoesplenomegália, icterícia, e hipertensão pulmonar. Os doentes podem ainda apresentar

alterações esqueléticas (polidactilia ou sindactilia), e, nos casos mais severos, expansão dos

ossos frontal e parietal. Praticamente todos os doentes irão desenvolver sobrecarga de ferro57.

O valor da hemoglobina varia entre 70-111 g/l e a anemia é macrocítica (VGM 100-

120 fl), o RDW encontra-se aumentado e o número de reticulócitos está abaixo daquele que se

esperaria para o grau de anemia. Os níveis de LDH, ferritina e bilirrubina encontram-se

76
aumentados57,59. Ao ESP observa-se anisopoiquilocitose, ponteado basófilo em alguns GV, e

precursores eritróides57,60.

A MO é hipercelular com presença de precursores eritroides anormais com um aspeto

megaloblástico, com presença de células tri e tetranucleadas. A presença de pontes de

cromatina internucleares afetando uma pequena percentagem de eritroblastos é quase

patognomónica desta patologia e permite o seu diagnóstico57–59. À microscopia eletrónica,

estes doentes apresentam eritroblastos com heterocromatina com aspeto de “queijo suíço”61.

O diagnóstico da CDA-1 pode ainda ser alcançado através da sequenciação dos genes

afetados60,61.

8.2 Anemia Deseritropoiética Congénita tipo II (CDA-2)

A CDA-2 é a CDA mais frequente58,60, estando reportados mais de 450 casos no

mundo58. É transmitida recessivamente, sendo causada por mutações no cromossoma

20q11.260, mais especificamente no gene SEC23B (cuja proteína está envolvida nas vias

secretoras das células eucariotas)57–59, essencial para a homeostasia da membrana, a

localização das proteínas dentro da célula, e a secreção de fatores extracelulares61 . Estudos

indicam que a fisiopatologia desta doença está relacionada com defeitos na glicosilação das

proteínas da membrana eritrocitária (proteína de banda 3, banda 4.5 e glicoforina A)60,

levando a uma agregação anormal das proteínas de banda 3 na membrana da célula e

aumentando a sua destruição na circulação esplénica61.

O diagnóstico desta patologia costuma ser mais tardio, devido à menor severidade da
59
anemia associada (Hb (g/l): 95±7 ); para além desta, os doentes apresentam-se ictéricos,

com hepatoesplenomegália, e com sinais de sobrecarga de ferro57,59,60. Esta patologia tem

clínica semelhante à HS, pelo que uma correta avaliação do número de reticulócitos (normal

77
ou ligeiramente aumentado, e inapropriadamente baixo para o valor de Hb59) e do valor da

ferritina, são essenciais para o diagnóstico diferencial entre estas duas entidades61.

A anemia é normocítica, o RDW encontra-se aumentado, assim como os valores de

LDH, ferritina e bilirrubina indireta; ao ESP observa-se anisopoiquilocitose, anisocromasia,

ponteado basófilo em alguns GV, e precursores eritróides57,60,61. A MO apresenta-se

hipercelular com hiperplasia eritróide, e com um grande número de eritroblastos binucleados

(núcleos de tamanho e desenvolvimento semelhante)60,61. À microscopia eletrónica detetam-se

eritroblastos com porções da membrana duplicada (devido ao excesso de reticulo

endoplasmático)57,60.

Os eritrócitos dos doentes com CDA-2 sofrem lise em soro acidificado (teste de Ham),

devido à presença de um anticorpo da classe IgM que reconhece um antigénio específico

destes61 .O teste de Ham tem alta especificidade no diagnóstico da CDA-2, porém, devido à

sua complexidade e difícil padronização, caiu em desuso58; os eritrócitos destes doentes

aglutinam em soro contendo anticorpos anti-antigénio i e, apesar desta resposta ser altamente

sensível, não é específica60. A análise da membrana eritrocitária através do SDS-PAGE

provou-se extremamente importante uma vez que identifica um perfil típico da proteína de

banda 3 (e da banda 4.558), devido ao defeito na sua glicosilação6,57,59,60.

Num doente fenotipicamente típico, o diagnóstico definitivo é conseguido pela sequenciação

do gene mutado, não sendo necessários outros testes como a microscopia eletrónica da MO ou

o SDS-PAGE58.

8.3 Anemia Deseritropoiética Congénita tipo III (CDA-3)

É um subtipo raro da doença, transmitida de modo autossómico dominante estando

também descritos mutações de novo57,58,60. É causada por uma mutação no gene KIF23

resultando em alterações na citocinese e formação de células multinucleadas58.

78
A clínica é menos severa que os restantes subtipos, e a anemia é ligeira. Os doentes

apresentam-se com alterações oculares, não têm sobrecarga de ferro (porque têm anemia

hemolítica intravascular) ou hepatoesplenomegália57,60.

O valor da hemoglobina varia entre 80-140g/l, o VGM está aumentado e o RDW está

aumentado. A LDH está aumentada, porém, os valores de ferritina e de bilirrubina estão

normais57. O ESP revela anisopoiquilocitose marcada e macrocitose60.

À observação da MO, observam-se células precursoras gigantes frequentemente

multinucleadas ou com poliploidia (conteúdo de DNA pode ser até 48 vezes mais que o

normal)60.

8.4 Variantes CDA

São outras formas de CDA que não se enquadram em nenhumas das patologias

supracitadas, (refletindo a grande variabilidade que existe neste grupo de doenças) causadas

por defeitos em múltiplos outros genes incluindo os fatores de transcrição específicos da linha

eritrocitária (GATA-1 e KLF1) e noutros onde a CDA faz parte de uma síndrome clínica mais

alargada58.

79
9. Conclusão E Proposta De Um Algoritmo De Diagnóstico

Se é relativamente fácil chegarmos ao diagnóstico de uma anemia hemolítica

hereditária, mais desafiante será a identificação da entidade nosológica exata. As anemias

hemolíticas são um grupo heterogéneo de doenças, com enorme variabilidade fenotípica

podendo mesmo, duas ou mais entidades, apresentarem-se de forma semelhante (clínica e

hematologicamente). Torna-se fundamental, a realização de uma história pessoal e familiar

exaustiva.

Estando perante o desenvolvimento de exames diagnósticos cada vez mais complexos

e tecnicamente exigentes, não devemos descurar os meios mais básicos, por sua vez, mais

informativos, tais como o esfregaço de sangue periférico e o hemograma completo. Face ao

crescente número de MCD disponível para a identificação destas patologias, torna-se

essencial o conhecimento fisiopatológico de cada uma delas, de modo a evitar o uso

irrefletido destes, que tornam apenas mais moroso e dispendioso, o correto diagnóstico do

doente.

Aliado ao conhecimento fisiopatológico, o clínico deve ainda saber identificar

determinados fatores que podem conduzir a suspeição para determinadas doenças, e afastar

doutras, entre os quais: a origem étnica do doente e a prevalência mundial da doença.

Numa tentativa de padronizar este grupo complexo de patologias, propõe-se na

figura9, um algoritmo diagnóstico que permita, de forma eficaz, chegar ao diagnóstico

definitivo. O diagnóstico exato é crucial uma vez que não existem medidas terapêuticas que

não estejam isentas de riscos de agravamento da saúde do doente. De notar, que não estão

contempladas no algoritmo, situações onde mais de uma entidade nosológica está presente,

assim como doentes com múltiplas comorbilidades com potencial de mascarar o diagnóstico.

80
Futuramente, pesquisas adicionais devem ser levadas a cargo de forma a testar e

validar o algoritmo proposto, e permitir a sua integração na prática clínica.

81
Figura 9: Proposta de algoritmo diagnóstico para as anemias hemolíticas hereditárias

82
10. Agradecimentos

À professora Doutora Ana Bela Sarmento, minha orientadora, e à Dra. Tabita

Magalhães Maia, minha coorientadora, pela disponibilidade, compreensão e amizade que

demonstraram, e pelo seu imensurável contributo científico.

Aos meus pais, Renato e Rosalina, e à minha irmã Ana, pelo incansável apoio.

Aos meus amigos e colegas, Filipe, André, e Patrícia por me terem acompanhado nesta

viagem, e pelo seu precioso contributo neste projeto.

83
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