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Artigos Cultura e História

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DIÁLOGOS

SOBRE
História

E CULTURA
DIÁLOGOS
SOBRE
História
E CULTURA

Coletânea Diálogos sobre História


Volume 06
Nathany A. W. Belmaia; Cassio H. dos S. Amador;
Maria Caroline Sagais; Otávio L. V. Pinto
(Organizadores)

DIÁLOGOS
SOBRE
História
E CULTURA

1a. edição
Coletânea Diálogos sobre História
Volume 06

Setor de Ciências Humanas,


2024.
Reitor:
Prof. Dr. Ricardo Marcelo Fonseca

Vice- reitora:
Profa. Dra. Graciela Ines Bolzón de Muniz

Pró-Reitor de Extensão e Cultura:


Prof. Dr. Rodrigo Arantes Reis

Pró-Reitor de Graduação e Educação Profissional:


Prof. Dr. Julio Gomes

Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação:


Prof. Dr. Francisco de Assis Mendonça

Diretor do Setor de Ciências Humanas:


Prof. Dr. João Frederico Rickli

Coordenadora do curso de História:


Profa. Dra. Roseli Boschilia

Vice-coordenador do curso de História:


Prof. Dr. Marcos Gonçalves

Secretária:
Luiza Rubini Soffiatti

Coordenador do curso de História e Imagem:


Prof. Dr. Pedro Plaza Pinto

Vice-Coordenadora do curso de História e Imagem:


Profa. Dra. Rosane Kaminski

Secretário:
Fernando de Oliveira Gonçalves

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em História:


Profa. Dra. Ana Paula Vosne Martins

Vice-Coordenador do Programa de Pós-Graduação em História:


Prof. Dr. Luiz Geraldo Santos da Silva

Secretária do Programa de Pós-Graduação em História:


Maria Cristina Parzwski
Diálogos sobre História e Cultura (Coletânea Diálogos sobre História, volume 06) 1a. Edição
Arte da capa e projeto gráfico: Nathany A. W. Belmaia (Canva)
Diagramação e editoração: Cassio H. dos S. Amador; Nathany A. W. Belmaia;
Organizadores: Nathany A. W. Belmaia; Cassio H. dos S. Amador;
Maria Caroline Sagais; Otávio L. V. Pinto

Comitê Editorial e Científico:


Cassio H. dos S. Amador; Heitor E. Henrique; Henrique S. Vitchmichen; Karen Piovam; Maria Caroline Sagais; Nathany A.
W. Belmaia; Otávio Luiz Vieira Pinto; Roberta Bentes

Todos os conteúdos textuais e imagéticos contidos nessa coletânea são de responsabilidade exclusiva dos(as)
autores(as) de cada capítulo e não refletem, necessariamente, opiniões e posições dos organizadores ou da
Universidade Federal do Paraná.

Catalogação na publicação
Universidade Federal do Paraná - Biblioteca de Ciências Humanas

D536 Diálogos sobre história [recurso eletrônico] : e cultura. / Organizadores:


Nathany A. W. Belmaia ...[et.al.]. – Curitiba : Universidade Federal do
Paraná. Setor de Ciências Humanas, 2024. 1 recurso online : PDF. –
(Coletânea Diálogos sobre História; v. 06).

e-ISBN 978-65-5458-243-8

1. História – Estudo e ensino. 2. Cultura. I. Belmaia, Nathany


Andrea Wagenheimer. II. Universidade Federal do Paraná.
III. Setor de Ciências Humanas. IV. Título.

CDD – 907

Fernanda Emanoéla Nogueira – CRB 9ª/1607

Licença Creative Commons CC-BY.


ÍNDICE

11 História em Estudos Culturais


Jimmy Iran dos Santos Melo
Tiara Cristiana Pimentel dos Santos
Pedro Jorge Coutinho Guerra

144
Uma leitura dos mangás Showa
e Marcha para a morte: entre
memória e história

49
Antonio Augusto Zanoni
Música e sociedade: interfaces
entre a história social da
música e a sociologia da música
Caique G. Oliveira de Carvalho

178
Assassina, porém honesta:
Sylvia Serafim e a tentativa de
imitar Nelson Rodrigues

76
Imagens em revista: cultura Sergio Schargel
política e visual nos tempos da
Boa-Vizinhança (1939-1945)

Carolina Machado dos Santos


RELEITURAS LITERÁRIAS

207
Repensando a colonialidade na
prática: as releituras literárias do

115
Escultura contemporânea em
Exército Zapatista de Libertação
panorama: episódios e rupturas
Nacional (EZLN) em 1994 na
na trajetória da arte
figura do Velho Antonio.
tridimensional no século 20
Igor Marconi
Renan Battisti Archer

239
“Da colonização à civilização, a
distância é infinita”: diálogos
literários na História
contemporânea da Nigéria e da
Palestina
Débora Pinese Frias
Priscilla Marques Campos
Cinema e história

288 A história nos filmes: a


construção de representações
História e saberes médicos
na mise en scène de filmes
históricos

Bruno José Yashinishi


402 Da corrupção uma nova
concepção: vermes, parasitas e
conceituações sobre a vida na
História da Saúde

324
A história do ator no cinema: da
desteatralização à possibilidade
Eduardo Mangolim Brandani da Silva
emancipatória
Rodrigo Perles Dantas
Ricardo Di Carlo Ferreira

432 Introdução sobre a história do


medicamento do século XIX

366 Alan Moore: entre as “marés da


história” e o futuro distópico ao Amanda Peruchi
fim da guerra fria na obra V de
vingança

Gustavo Henrique Soares Silva


Diálogos Sobre História e Cultura 8

Prefácio

Temos o direito de ser iguais quando a nossa


diferença nos inferioriza; e temos o direito de
ser diferentes quando a nossa igualdade nos
descaracteriza. Daí a necessidade de uma
igualdade que reconheça as diferenças e de
uma diferença que não produza, alimente ou
reproduza as desigualdades (Boaventura de
Souza Santos)

É notório o quanto estamos caminhando rumo a


uma sociedade que, cada vez mais, depende da Ciência e
da tecnologia. Isso evidencia, de forma mais latente, a
desigualdade entre aqueles que possuem, ou não, os
recursos adequados para a inserção nessa realidade,
tornando atos que visam a democratização do
conhecimento, fundamentais.
Com grande satisfação apresentamos os capítulos
deste livro, que surgiram a partir da terceira edição do
evento “Diálogos sobre História: Ciclo de minicursos
online da UFPR”, no ano de 2023, um evento
inteiramente realizado na modalidade virtual e gratuito.
Embora seja uma gota no oceano, essa iniciativa
visou corroborar com a difusão de preceitos científicos
da História e o estabelecimento de diálogos com o
público geral, contribuindo para a introdução desses
últimos aos conhecimentos acadêmicos produzidos nessa
área. Esta coletânea é fruto do esforço conjunto de
egressos, discentes e docentes do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal do
Paraná, com a colaboração de um membro da
Universidade Tecnológica Federal do Paraná.
Diálogos Sobre História e Cultura 9

A primeira edição do evento “Diálogos sobre


História” ocorreu em 2020, em meio ao contexto de
isolamento imposto pela pandemia de Covid-19 e a busca
de formas para transformar esse período em um momento
de continuidade de aprendizado e trocas.
A segunda edição do evento, realizada no ano de
2021, aconteceu em um cenário de vacinação da Covid-
19 e afrouxamento do distanciamento social. Com o
objetivo de continuar proporcionando um espaço de
ensino e aprendizagem, foi realizada a terceira edição do
evento “Diálogos sobre História”. Mantendo ainda as
características da primeira edição, ocorreu de forma
online, utilizando a plataforma do YouTube.
O evento, composto por minicursos gravados, que
variaram de duas até quatro horas e puderam ser
assistidos assincronamente, contou com a participação de
professores e estudantes de pós-graduação de diversas
áreas e instituições do país. Agradecemos aos que
contribuíram, criando minicursos, gravando e
compartilhando os seus conhecimentos por meio de
vídeos e também de textos, como os presentes nesta
coletânea, que são relacionados com as temáticas dos
minicursos ofertados.
Neste sexto volume da Coletânea Diálogos sobre
História, os ministrantes dos minicursos foram
convidados para escrever sobre os temas abordados no
evento, resultando nos capítulos reunidos nesta coletânea.
A História Cultural se faz necessária para
compreender não só os eventos, mas a complexidade que
os envolve por meio dos sujeitos que os produzem,
compreendendo que diferentes culturas compõem
diferentes tipos de história. Tecendo os fios da tradição e
da memória, a cultura vem como uma seda rica, pronta
ser utilizada para compreender as mais diversas situações
Diálogos Sobre História e Cultura 10

humanas, e desse modo, a história cultural se vê como


terreno fértil para o ofício do historiador, que encontra
nessa área de estudo oportunidades de se trabalhar com
fontes e temáticas não antes exploradas pela
historiografia tradicional.
A fotografia, o cinema, a história oral, a literatura,
a música, assim como tantas outras representações da
cultura, revelam nuances eclipsadas pela História factual.
Tal como é, pode ser utilizada de várias formas, como
vemos nos artigos desta coletânea, alguns deles contendo
as articulações complexas que a história pode ter com a
arte e a mídia e, por outro lado, memórias que
impactaram esta ou determinada cultura. Com um recorte
interdisciplinar a coletânea do “III Diálogos sobre
História”, volume Diálogos sobre Estudos Culturais,
abrange uma gama de trabalhos diversos para os mais
variados leitores. Desejamos que tirem proveito dos
trabalhos apresentados ao longo do livro, com votos de
uma agradável leitura a todos!

Heitor E. Henrique
Nathany A. W. Belmaia
Maria Caroline Sagais
Diálogos Sobre História e Cultura 11

História em Estudos Culturais


History in Cultural Studies
Jimmy Iran dos Santos Melo1
Tiara Cristiana Pimentel dos Santos2
Pedro Jorge Coutinho Guerra3

Resumo

O artigo tem como finalidade apresentar uma discussão


da História dos Estudos Culturais, cujo objetivo está
relacionado ao III Diálogos sobre História, ciclo de
minicursos on-line da Universidade Federal do Paraná
(UFPR), trabalho sobre a História em Estudos Culturais.
O texto faz um percurso na história da disciplina dos
Estudos Culturais, mostrando sua construção teórica e
metodológica. Assim, temos uma trajetória da área
estudada.
Palavras-chave: Estudos Culturais; Cultura; História.

1
Doutorando em História pela Universidade de Passo Fundo
(PPGH/UPF). Bolsista CAPES (doutorado).
2
Doutoranda em História pela Universidade de Passo Fundo
(PPGH/UPF). Bolsista Prosuc (doutorado).
3
Doutorando em História pela Universidade de Passo Fundo
(PPGH/UPF).
Diálogos Sobre História e Cultura 12

Abstract

The purpose of this article is to present a discussion of


the History of Cultural Studies, whose purpose is related
to the III Dialogues on History: Cycle of online short
courses at the Federal University of Paraná (UFPR),
work on History in Cultural Studies. The text makes a
journey in the history of the discipline of Cultural
Studies, showing its theoretical and methodological
construction. Thus, we have a trajectory of Cultural
Studies.

Keywords: Cultural Studies; Culture; History.


Diálogos Sobre História e Cultura 13

História em Estudos Culturais


Jimmy Iran dos Santos Melo
Tiara Cristiana Pimentel dos Santos
Pedro Jorge Coutinho Guerra

Introdução

A investigação e o ensino da Cultura tornaram-se,


nos últimos anos, realidades cada vez mais presentes nos
contextos universitários, o que se deve, em primeiro
lugar, à valorização social crescente que tem sido
concedida a essa área, quer nos mais latos e clássicos
domínios da formação humanística e artística, quer
enquanto fator de conhecimento e compreensão das
novas dinâmicas sociais e culturais da
contemporaneidade (BAPTISTA, 2012). Já inicialmente,
é preciso deixar claro que a área de Estudos Culturais é
menos uma disciplina, academicamente “policiada”, com
os seus “especialistas” e paradigmas consensualmente
estabelecidos, com metodologias previamente
determinadas e configurações interdisciplinares rígidas
ou sequer estabilizadas, e caracteriza-se mais como uma
área “pós-disciplinar”, ou seja, um lugar de encontros e
partilha de saberes, métodos e experiências de
investigadores de diversas áreas, que têm em comum um
interesse particular pelas questões culturais.
É pelo fato de os Estudos Culturais constituírem
um lugar de prática intensa de interdisciplinaridade,
estimulando a constituição de equipes muito
Diálogos Sobre História e Cultura 14

heterogêneas que se formam a propósito de projetos


específicos de investigação, cuja ação se encontra
sobredeterminada por uma questão ou problemática
científica concreta, frequentemente esgotando-se no
terminus desse processo investigativo, que essa área se
apresenta fluida e instável, mas simultaneamente tão
desafiante e intelectualmente estimulante (BAPTISTA,
2012). Mais do que uma disciplina científica clássica
(modo de organização tipicamente Moderna), os Estudos
Culturais representam-se como um centro gravitacional
(constituído em primeiro lugar pelo problema sob
investigação), que atrai investigadores de muitas áreas,
interessados em participar na desafiante aventura de
coconstrução do conhecimento científico (BAPTISTA,
2012).

1. Uma gênese dos Estudos Culturais

O campo dos Estudos Culturais surge, de forma


organizada, por meio do Centre for Contemporary
Cultural Studies (CCCS), diante da alteração dos valores
tradicionais da classe operária da Inglaterra do pós-
guerra. Inspirado na sua pesquisa, The Uses of Literacy
(1998), Richard Hoggart funda o centro, em 1964. Ele
surge ligado ao English Department da Universidade de
Birmingham, constituindo-se em um espaço de pesquisa
de pós-graduação da mesma instituição. As relações entre
a cultura contemporânea e a sociedade, isto é, suas
formas culturais, instituições e práticas culturais, assim
como suas relações com a sociedade e as mudanças
Diálogos Sobre História e Cultura 15

sociais, vão compor o eixo principal de observação do


CCCS (ESCOSTEGUY, [200-]).
Três textos que surgiram no final dos anos 1950
são identificados como as fontes dos Estudos Culturais:
Richard Hoggart, com The Uses of Literacy (1998),
Raymond Williams, com Culture and Society (2017), e E.
P. Thompson, com The Making of the English Working-
class (1996). O primeiro é em parte autobiográfico e em
parte história cultural do meio do século XX. O segundo
constrói um histórico do conceito de cultura, culminando
com a ideia de que a “cultura comum ou ordinária” pode
ser vista como um modo de vida em condições de
igualdade de existência com o mundo das Artes,
Literatura e Música. Já o terceiro reconstrói uma parte da
história da sociedade inglesa de um ponto de vista
particular: a história “dos de baixo” (ESCOSTEGUY,
[200-]).
Na pesquisa realizada por Hoggart (1998), o foco
de atenção recai sobre materiais culturais, antes
desprezados, da cultura popular e dos meios de
comunicação de massa, por meio de metodologia
qualitativa. Esse trabalho inaugura o olhar de que, no
âmbito popular, não existe apenas submissão, mas
também resistência, o que, mais tarde, será recuperado
pelos estudos de audiência dos meios massivos. Tratando
da vida cultural da classe trabalhadora, transparece nesse
texto um tom nostálgico em relação a uma cultura
orgânica dessa classe. A contribuição teórica de Williams
(2017) é fundamental para os Estudos Culturais, a partir
de Culture and Society. Através de um olhar diferenciado
sobre a história literária, ele mostra que cultura é uma
categoria-chave que conecta a análise literária à
Diálogos Sobre História e Cultura 16

investigação social. Seu livro The Long Revolution


(WILLIAMS, 2012) avança na demonstração da
intensidade do debate contemporâneo sobre o impacto
cultural dos meios massivos, mostrando um certo
pessimismo em relação à cultura popular e aos próprios
meios de comunicação. Tendo em vista a contribuição de
Thompson, pode-se dizer que ele influencia o
desenvolvimento da história social britânica de dentro da
tradição marxista. Para ambos, Williams e Thompson,
cultura era uma rede vivida de práticas e relações que
constituíam a vida cotidiana, dentro da qual o papel do
indivíduo estava em primeiro plano. Mas, de certa forma,
Thompson resistia ao entendimento de cultura enquanto
uma forma de vida global. Em vez disso, preferia
entendê-la enquanto um enfrentamento entre modos de
vida diferentes (ESCOSTEGUY, [200-]).
Esses quatro textos foram seminais para a
configuração dos Estudos Culturais. Entretanto, Hall
(1996, p. 32) ressalta que eles não foram, de forma
alguma, “livros didáticos” para a fundação de uma nova
subdisciplina acadêmica: nada poderia estar mais distante
de seu impulso intrínseco. Quer fossem históricos ou
contemporâneos em seu foco, tais textos eram, eles
próprios, focalizados pelas pressões imediatas do tempo e
da sociedade na qual foram escritos, organizados por
meio delas, além de serem elementos constituintes de
respostas a essas pressões. Embora não seja citado como
membro do trio fundador, a importante participação de
Stuart Hall na formação dos Estudos Culturais britânicos
é unanimemente reconhecida. Avalia-se que, ao substituir
Hoggart na direção do Centro, de 1968 a 1979,
incentivou o desenvolvimento da investigação de práticas
Diálogos Sobre História e Cultura 17

de resistência de subculturas e de análises dos meios


massivos, identificando seu papel central na direção da
sociedade; exerceu uma função de “aglutinador” em
momentos de intensas distensões teóricas e, sobretudo,
destravou debates teórico-políticos, tornando-se um
“catalizador” de inúmeros projetos coletivos
(ESCOSTEGUY, [200-]).
Enfim, esses são os principais atores e uma
perspectiva da história do início da configuração desse
campo de estudos. Em contraposição a essa versão
dominante, afirma-se que, em outras localidades e em
outros momentos, podem ser identificadas “outras”
origens para os Estudos Culturais. A existência de
diferenças nacionais e a confluência de um conjunto
particular de propostas de cunho teórico-político geraram
outros exemplos de Estudos Culturais que desestabilizam
a narrativa sobre uma origem centrada, sobretudo, em
Birmingham, na Inglaterra (ESCOSTEGUY, [200-]).
É importante ressaltar que os três autores citados
como os fundadores do campo dos Estudos Culturais,
embora não tenham uma intervenção coordenada entre si,
revelam um leque comum de preocupações que
abrangem as relações entre cultura, história e sociedade.
Apesar de existirem desacordos entre os considerados
“pais fundadores” dos Estudos Culturais — Williams,
Thompson e Hoggart —, é mais significativo para a
constituição dessa tradição destacar os pontos de vista
compartilhados entre eles (ESCOSTEGUY, [200-]):

O que os une é uma abordagem que insiste em


afirmar que através da análise da cultura de
uma sociedade – as formas textuais e as práticas
documentadas de uma cultura – é possível
Diálogos Sobre História e Cultura 18

reconstituir o comportamento padronizado e as


constelações de ideias compartilhadas pelos
homens e mulheres que produzem e consomem
os textos e as práticas culturais daquela
sociedade. É uma perspectiva que enfatiza a
‘atividade humana’, a produção ativa da
cultura, ao invés de seu consumo passivo
(STOREY, 1997, p. 46 apud ESCOSTEGUY,
[200-]).

Na verdade, é uma concepção particular de


cultura que gera a singularidade do projeto dos Estudos
Culturais e seu enfoque sobre a dimensão cultural
contemporânea. Para Agger (1992 apud ESCOSTEGUY,
[200-]):

O grupo do CCCS amplia o conceito de cultura


para que sejam incluídos dois temas adicionais.
Primeiro: a cultura não é uma entidade
monolítica ou homogênea, mas, ao contrário,
manifesta-se de maneira diferenciada em
qualquer formação social ou época histórica.
Segundo: a cultura não significa simplesmente
sabedoria recebida ou experiência passiva, mas
um grande número de intervenções ativas —
expressas mais notavelmente através do
discurso e da representação — que podem tanto
mudar a história quanto transmitir o passado.
Por acentuar a natureza diferenciada da cultura,
a perspectiva dos estudos culturais britânicos
pode relacionar a produção, distribuição e
recepção culturais a práticas econômicas que
estão, por sua vez, intimamente relacionadas à
constituição do sentido cultural (AGGER,
1992, p. 89 apud ESCOSTEGUY, [200-]).
Diálogos Sobre História e Cultura 19

Essa afirmação salienta que o coletivo de


pesquisadores que originalmente caracterizou essa
tradição analisa as práticas culturais simultaneamente
como formas materiais e simbólicas. Logo, postula-se
que a criação cultural se situa no espaço social e
econômico, dentro do qual a atividade criativa é
condicionada. Porém, os Estudos Culturais atribuem à
cultura um papel que não é totalmente explicado pelas
determinações da esfera econômica. A relação entre
marxismo e os Estudos Culturais inicia-se e desenvolve-
se por meio da crítica de um certo reducionismo e
economicismo daquela perspectiva, resultando na
contestação do modelo base-superestrutura. A perspectiva
marxista contribuiu para os Estudos Culturais, no sentido
de compreender a cultura na sua “autonomia relativa”,
isto é, ela não é dependente das relações econômicas,
nem seu reflexo, mas tem influência e sofre
consequências das relações político-econômicas. Existem
várias forças determinantes — econômica, política e
cultural — competindo e em conflito entre si, compondo
aquela complexa unidade que é a sociedade
(ESCOSTEGUY, [200-]).
A operacionalização de um conceito expandido de
cultura, isto é, que inclui as formas nas quais os rituais da
vida cotidiana, instituições e práticas, ao lado das artes,
são constitutivos de uma formação cultural, rompeu com
um passado, em que se identificava cultura apenas com
artefatos. A extensão do significado de cultura — de
textos e representações para práticas vividas e suas
implicações na rígida divisão entre níveis culturais
distintos — propiciou considerar em foco toda produção
de sentido. Ao enfatizar a noção de cultura como prática,
Diálogos Sobre História e Cultura 20

dá-se relevo ao sentido de ação, de agência na cultura.


No momento em que os Estudos Culturais prestam
atenção a formas de expressão culturais não tradicionais,
descentra-se a legitimidade cultural. Em consequência, a
cultura popular alcança legitimidade, transformando-se
em um lugar de atividade crítica e de intervenção. Dessa
forma, a consideração sobre a pertinência de analisar
práticas que tinham sido vistas fora da esfera da cultura
inspirou a geração que desenvolveu os Estudos Culturais,
principalmente, a partir dos anos 60. Logo, os Estudos
Culturais construíram uma tendência importante da
crítica cultural que questiona o estabelecimento de
hierarquias entre formas e práticas culturais,
estabelecidas a partir de oposições, como cultura
alta/baixa, superior/inferior, entre outras binariedades
(ESCOSTEGUY, [200-]).
Em síntese, os princípios que se constituem em
pilares do projeto dos Estudos Culturais são:

[...] a identificação explícita das culturas


vividas como um projeto distinto de estudo, o
reconhecimento da autonomia e complexidade
das formas simbólicas em si mesmas; a crença
de que as classes populares possuíam suas
próprias formas culturais, dignas de nome,
recusando todas as denúncias, por parte da
chamada alta cultura, do barbarismo das
camadas sociais mais baixas; e a insistência em
que o estudo da cultura não poderia ser
confinado a uma disciplina única, mas era
necessariamente inter, ou mesmo anti,
disciplinar (SCHWARZ, 1994, p. 380 apud
ESCOSTEGUY, [200-], p. 5).
Diálogos Sobre História e Cultura 21

Tendo como ponto de partida um conjunto de


proposições que, à primeira vista, mostra-se tão amplo
quanto aberto a entendimentos diversos, conclui-se que
se a versão britânica sobre as origens e constituição desse
projeto não apresenta implicitamente uma posição teórica
unificada, também, não está composta por um conjunto
tão díspar que não apresente uma unidade. Indagar-se
sobre “a unidade na diferença” é reconhecer que essa
responde a condições particulares — a um contexto
intelectual, político, social e histórico específico
(ESCOSTEGUY, [200-]).
As peculiaridades do contexto histórico britânico,
abrangendo da área política ao meio acadêmico,
marcaram indelevelmente o surgimento desse movimento
teórico político. Os Estudos Culturais ressaltaram os
nexos existentes entre investigação e formações sociais,
nos quais se desenrola a própria pesquisa.

Os estudos culturais não dizem respeito apenas


ao estudo da cultura. Nunca pretenderam dizer
que a cultura poderia ser identificada e
analisada de forma independente das realidades
sociais concretas dentro das quais existem e a
partir das quais se manifestam (BLUNDELL et
al., 1993, p. 2 apud ESCOSTEGUY, [200-], p.
5).

Deve-se, também, acentuar o fato de que os


Estudos Culturais britânicos devem ser vistos tanto do
ponto de vista político, na tentativa de constituição de um
projeto político, quanto do ponto de vista teórico, isto é,
com a intenção de construir um novo campo de estudos.
Diálogos Sobre História e Cultura 22

A partir dessa dupla agenda, os Estudos Culturais


britânicos devem ser pensados. Do ponto vista político,
são sinônimo de “correção política” (JAMESON, 1994
apud ESCOSTEGUY, [200-]), podendo ser identificados
com a política cultural dos vários movimentos sociais da
época de seu surgimento. Por essa razão, sua proposta
original é considerada por alguns como mais política do
que analítica. Pela perspectiva teórica, resultam da
insatisfação com os limites de algumas disciplinas,
propondo, então, a inter/trans ou, ainda, para alguns, a
antidisciplinaridade. Isso não impediu, entretanto, que em
alguns lugares tenham se institucionalizado
(ESCOSTEGUY, [200-]).
Os Estudos Culturais não configuram em uma
“disciplina”, mas uma área onde diferentes disciplinas
interatuam, visando ao estudo de aspectos culturais da
sociedade. Tal área, segundo um coletivo de
pesquisadores do Centro de Birmingham que atuou,
principalmente, nos anos 1970, não s constitui em uma
nova disciplina, porém resulta da insatisfação com
algumas disciplinas e seus próprios limites (HALL et al.,
1980, p. 7 apud ESCOSTEGUY, [200-]). É um campo de
estudos em que diversas disciplinas se interseccionam no
estudo de aspectos culturais da sociedade contemporânea,
constituindo-se em um trabalho historicamente
determinado (ESCOSTEGUY, [200-]).
Em termos de disciplinas, no seu primeiro
momento de formação, o encontro entre Literatura
Inglesa, Sociologia e História propiciou pensar em uma
conexão entre três níveis distintos. A primeira contribuiu
com a preocupação com as formas culturais populares,
assim como com textos e textualidades, estes últimos
Diálogos Sobre História e Cultura 23

podendo estar situados além da linguagem e literatura; à


sociologia atribui-se o exame da reprodução estrutural e
da subordinação e da história vem o interesse da “história
de baixo” e o reconhecimento da história oral e da
memória popular (ESCOSTEGUY, [200-]).
Na realidade, os Estudos Culturais britânicos se
constituíram na tensão entre demandas teóricas e
políticas. Embora sustentassem um marco teórico
específico (não obstante, heterogêneo), amparado
principalmente no marxismo, a história desse campo de
estudos esteve entrelaçada com a trajetória da New Left,
de alguns movimentos sociais (Worker’s Educational
Association, Campaign for Nuclear Disarmament etc.) e
de publicações — entre elas, a New Left Review — que
surgiram em torno de respostas políticas à esquerda.
Ressalta-se, ainda, nas suas origens, um forte laço com o
movimento de educação de adultos em salas de aula não
convencionais (SCHULMAN, 1999 apud
ESCOSTEGUY, [200-]).

2. O que e o como da investigação em


Estudos Culturais

A área de Estudos Culturais é intrinsecamente


paradoxal, objeto de discussão e incerteza.
Caracterizando-se por uma forte presença acadêmica nos
discursos intelectuais, revela discórdias internas
profundas em relação a praticamente tudo: para que
serve, a quem servem os seus resultados, que teorias
produz e utiliza, que métodos e objetos de estudo lhe são
adequados, quais os seus limites e assim por diante. Na
Diálogos Sobre História e Cultura 24

verdade, se algum “método” há nos Estudos Culturais,


ele consiste na contestação dos limites socialmente
construídos (por exemplo, de classe, género, raça etc.)
nas mais diversas realidades humanas. A “naturalização”
dessas categorias tem sido precisamente objeto de grande
contestação, a partir dos Estudos Culturais. Não é de
admirar, em função disso e pela marca da contestação e
crítica constantes com que nasceu e da qual se alimenta,
que esse domínio científico tenha tantas dificuldades em
autolimitar-se (BAPTISTA, 2012).
A história dos Estudos Culturais, enquanto
disciplina académica, está efetivamente marcada pela
contestação, já que, aquando da sua emergência nos anos
1970, ela formula e procura corresponder a uma “virada
cultural” das ciências sociais e humanas. Em um mesmo
movimento, contribuiu, igualmente, para desestabilizar as
fronteiras de disciplinas já com longa tradição
acadêmica, como a História, a Sociologia, a Literatura,
entre outras (BAPTISTA, 2012).
Assim, os Estudos Culturais têm funcionado
como agente e sintoma na reconfiguração da estrutura
disciplinar, quer das Humanidades, quer das Ciências
Sociais, em um processo que ainda hoje está em curso e
se encontra longe de estar terminado. Na prática, os
Estudos Culturais abrigam um conjunto múltiplo de
investigadores e investigações de formação muito diversa
(nem sempre compatível) e de origens acadêmicas e
geográficas muito diferentes. Muitos investigadores
chegam a essa área por razões intelectuais e até políticas
muito diferentes. De qualquer modo, há traços distintivos
na forma como é praticada a análise cultural
(BAPTISTA, 2012).
Diálogos Sobre História e Cultura 25

A primeira característica de aproximação possível


de destacar é a ideia de complexidade (MORIN, 2003), a
qual se revela primariamente como um profundo
compromisso com a ideia de complexidade do fenômeno
cultural. Para além disso, os investigadores dessa área
colocam uma particular ênfase na produção contextual,
multidimensional e contingente do conhecimento
cultural, procurando refletir nos resultados da sua
investigação a complexidade e o carácter dinâmico e até,
frequentemente, paradoxal do objeto cultural que
abordam (BAPTISTA, 2012).
Uma outra característica muito frequente na
análise praticada pelos Estudos Culturais consiste no
compromisso cívico e político (no sentido grego e mais
radical de intervenção e envolvimento nos assuntos da
polis) de estudar o mundo, de modo a poder intervir nele
com mais rigor e eficácia, construindo um conhecimento
com relevância social (PINA, 2003 apud BAPTISTA,
2012). Esse compromisso político (no sentido mais lato e
profundo do termo) filia-se em um contexto mais
genericamente definido, a partir dos princípios da
democracia cultural. Ou, como afirma Barker:

[…] os estudos culturais constituem um corpo


de teoria construída por investigadores que
olham a produção de conhecimento teórico
como uma prática política. Aqui, o
conhecimento não é nunca neutral ou um mero
fenómeno objectivo, mas é questão de
posicionamento, quer dizer, do lugar a partir do
qual cada um fala, para quem fala e com que
objectivos fala (BARKER, 2008, s/p apud
BAPTISTA, 2012, p. 27).
Diálogos Sobre História e Cultura 26

Em suma, os Estudos Culturais (e já desde a sua


génese com Stuart Hall, nos anos 60, no contexto
britânico) estão geneticamente ligados a um modo de
produção de análise cultural que faz convergir princípios
e preocupações acadêmicas com uma exigência de
intervenção cívica, ou seja, articula inquietações
simultaneamente teóricas e preocupações concretas com
a polis (BAPTISTA, 2012). Na prática, tudo isso
apresenta um grande grau de variabilidade nas
investigações conduzidas no âmbito dos Estudos
Culturais, pois essa dupla atenção à teoria e à prática tem
resoluções contextuais muito diversas, apresenta
implicações práticas e cívicas com focos muito diferentes
e revela estilos de atuação muito específicos. Assim,
enquanto para alguns praticar a investigação em Estudos
Culturais é uma forma de política cultural que deve
sempre resistir a se “disciplinar” no âmbito de uma
instituição acadêmica, para outros, os Estudos Culturais
devem legitimar-se precisamente no contexto acadêmico,
o que constitui por si só um objetivo político
(BENNETT, 1998 apud BAPTISTA, 2012).
Mas até o aspecto mais estritamente cívico
proclamado por muitos investigadores na área dos
Estudos Culturais pode surgir na academia de diferentes
formas: o elemento “político” pode estar apenas
implícito, por exemplo, em uma investigação que critica
os discursos dominantes, usando toda a metodologia e
modelos das ciências sociais mais objetivistas ou, em um
outro extremo, apresentar-se como pura desconstrução
crítica, mesmo que seja por meio de um ato performativo
(BAPTISTA, 2012).
Diálogos Sobre História e Cultura 27

Nessa seara, os Estudos Culturais apresentam-se,


desde a sua origem, menos como uma disciplina e mais
como um “campo gravitacional” para intelectuais de
diferentes origens (BENNETT, 1992 apud BAPTISTA,
2012). Entre as diversas formações dos investigadores
que trabalham nessa área, destacam-se aqueles que são
oriundos dos Estudos Literários, Linguística, Sociologia,
História, Antropologia, Comunicação, Geografia,
Estudos Fílmicos, Psicologia, Educação e Filosofia;
menos presentes, mas, por vezes, participantes
empenhados no desenvolvimento de projetos de
investigação em Estudos Culturais encontram-se
economistas, juristas e peritos em Relações
Internacionais. Apesar dessa diversidade, resulta um
cruzamento disciplinar que não é só mistura caótica, mas,
frequentemente, verdadeira interdisciplinaridade que
procura resolver um conjunto de problemas culturais por
meio do uso de paradigmas teóricos, metodológicos e
estilísticos de origem diversa (BAPTISTA, 2012).
Como se pode facilmente deduzir a partir do que
já foi dito, a educação e a formação nessa área
apresentam conflitos teóricos e práticos, que têm
conduzido a disputas, mas também a consensos diversos
(como é o caso, entre outros, de algumas discussões entre
as áreas dos Estudos Literários e dos Estudos Culturais
(SILVESTRE, 1999 apud BAPTISTA, 2012). Porém, a
maior clivagem nessa área diz respeito às diferenças
entre a aproximação mais “textual” (tipicamente das
“humanidades”) e a mais “sociológica” (tipicamente
ligada às “ciências sociais”), na qual o diálogo
interdisciplinar, quer ao nível metodológico, quer teórico,
é mais difícil. No entanto e de um modo um tanto
Diálogos Sobre História e Cultura 28

paradoxal, é no ponto de convergência entre essas duas


tendências que os Estudos Culturais são mais inovadores
e podem trazer as mais importantes contribuições para o
desenvolvimento científico (BAPTISTA, 2012).
A propósito das linhas de desenvolvimento da
investigação em Estudos Culturais, refere-se,
primeiramente, a todo um conjunto de trabalhos que se
têm centrado no estudo dos fenômenos de
mercantilização generalizada, induzidos pela cultura
contemporânea (sublinhe-se aqui a importância de uma
postura crítica trazida pela Escola de Frankfurt, mas
também a relevância da reflexão sobre a agenciosidade
preconizada por Marx). Essa linha de investigação tem
frequentemente conduzido os investigadores a
desenvolverem os seus projetos centrando-se nas relações
entre o poder e os mercados, articulando-os com a cultura
popular ou desenvolvendo as relações entre textos e
audiências, na linha dos estudos de Pierre Bourdieu e
Certeau (BAPTISTA, 2012).
Uma outra vertente importante no âmbito dos
Estudos Culturais tem aprofundado fenômenos ligados à
noção de Estado nas sociedades capitalistas
contemporâneas. Esses projetos têm se concentrado
desde os “aparelhos ideológicos do Estado”, de Althusser
(1980), até aos trabalhos sobre o poder e o micro-poder
de Foucault (2008).
Um terceiro domínio de interesse no âmbito dos
Estudos Culturais tem-se desenvolvido em torno do
estudo sobre a luta pela hegemonia e contra-hegemonia
com consequências na produção do sentido e nas diversas
representações (do Estado, mas também dos movimentos
cívicos e sociais), bem como sobre a condição pós-
Diálogos Sobre História e Cultura 29

moderna de abandono e descrédito das meta-narrativas


(LYOTARD, 1987 apud BAPTISTA, 2012).
Já o estudo relativo aos modos de construção
política e social das “identidades”, abordando as questões
da nação, raça, etnicidade, diáspora, colonialismo e pós-
colonialismo, sexo e gênero, por exemplo, têm sido das
temáticas mais investigadas nos últimos anos, dando
origem a uma importante massa de resultados de grande
qualidade e importância fora e dentro das academias
(BAPTISTA, 2012).
Por fim e mais recentemente, os investigadores
dessas áreas têm-se centrado no estudo dos fenômenos
relacionados à globalização, articulando-a com questões
de desterritorialização da cultura, movimentos
transnacionais de pessoas, bens e imagens. Nesse
domínio, tem sido ainda objeto de pesquisa a nova
sociedade em rede, fenômenos de terrorismo, choques
civilizacionais, a crise ambiental global, entre outras
temáticas. Salienta-se que, no âmbito dos Estudos
Culturais, tem havido muita produção sobre metodologia
(ALASUUTARI, 1995; GRAY, 2003; MCGUIGAN,
1995) e pouca sobre métodos (BAPTISTA, 2012).
De qualquer modo, de uma forma geral, os
estudos nessa área são predominantemente qualitativos e
a verdade é entendida como relevando essencialmente do
campo da interpretação e do ensaio crítico. Em todos os
casos, a vigilância autocrítica e a reflexividade sobre os
métodos a se utilizar têm sido vista nessa área como o
elemento crucial a garantir o rigor e a qualidade dos
resultados. De acordo com Barker (2000), dentre as
metodologias mais frequentemente usadas nos Estudos
Culturais, destacam-se as seguintes: a) Metodologia
Diálogos Sobre História e Cultura 30

Etnográfica, que enfatiza o elemento vivencial da


experiência; b) Abordagem Textual; c) Estudos de
Recepção (BAPTISTA, 2012).
Quanto à metodologia etnográfica (RORTY,
1989, 1991), ela designa essencialmente procedimentos
de observação participante, entrevistas em profundidade
e grupos focais. Tem como elemento fundamental a
concentração no detalhe do cotidiano, enquadrando-o no
todo da vida social. Para isso, procura articular de forma
profunda e fundamentada a abordagem empírica e
teórica. Destaca-se o quanto, nessa perspectiva, a
investigação em Estudos Culturais trabalha
essencialmente com problemas de “tradução” e
justificação, não procurando propriamente a “verdade
objetiva”, mas a compreensão do significado mais
profundo dos discursos e das representações sociais e
culturais. Compreende-se, assim, que essa metodologia
se encontre particularmente apta a abordar questões de
cultura, estilos de vida e identidades (BAPTISTA, 2012).
Por sua vez, a abordagem textual apresenta
resultados diversos, de acordo com os diferentes modos
de tratar o texto: em uma perspectiva semiótica, o texto é
visto como signo, procurando-se encontrar ideologias e
mitos; em uma perspectiva essencialmente ligada à teoria
narrativa, os textos são vistos e compreendidos como
histórias que procuram explicar o mundo e fazem isto de
forma sistemática, com uma estrutura frequentemente
repetitiva (NEALE, 1980; TODOROV, 1977); por fim, a
abordagem desconstrucionista, na linha de Derrida,
procura, quer nos campos da literatura, quer no âmbito da
teoria pós-colonial, surpreender os pares hierárquicos
clássicos da cultura ocidental (homem/mulher,
Diálogos Sobre História e Cultura 31

preto/branco, realidade/aparência etc.), distinguindo o


que um texto diz daquilo que ele significa (BAPTISTA,
2012).
Finalmente e no que se refere aos estudos de
recepção, a investigação parte da consideração de que o
sentido do texto é ativado pelo leitor, audiência ou
consumidor. O modo como um tal processo se
desenvolve em cada contexto histórico e social é o objeto
desses estudos. No âmbito dos estudos de recepção, têm-
se desenvolvido duas linhas fundamentais: a) o modelo
“codificação/descodificação” (HALL, 1980), que
sublinha o fato de a codificação ser polissêmica, sendo
que a decodificação da mensagem pode não coincidir
com o sentido original, sobretudo se as pessoas não
partilharem o mesmo meio cultural, social, econômico
etc.; b) o modelo clássico da tradição hermenêutica e
literária (GADAMER, 1976; ISER, 1978), que defende a
perspectiva de que a compreensão depende sempre do
ponto de vista daquele que compreende. Assim, o leitor
também produz sentido não tanto a partir do sentido
inicial, mas das oscilações entre o texto e a sua própria
imaginação (BAPTISTA, 2012).

3. História Cultural “clássica” e


“descanonização” em fins do XX

Deslocando nosso eixo em direção a um ponto


perpendicular próximo (a História) e recuando em nosso
passo cronológico-textual, Peter Burke (2000) menciona
o termo “história cultural” como remontando ao século
XVIII (pelo menos na Alemanha), considerando a
Diálogos Sobre História e Cultura 32

influência anterior dos humanistas da Itália renascentista


ao redor da Europa até, pelo menos, o século XVII. Tal
relação se torna relevante pela percepção do medievo
como uma “idade média” de trevas, ou seja, entre a
Antiguidade Clássica e um Renascimento ou “retorno da
luz” informado por uma valorização de uma “Era de Luz
Antiga”, representada por uma retomada do pensamento
e formas de expressão Antigas (BURKE, 2000).
Nesse sentido, a percepção de que as coisas têm
uma história passou a ter um lugar de destaque no
pensamento europeu, fazendo surgir diferentes tipos de
“histórias”: da língua e da literatura, da arte, dos artistas e
da música, da doutrina e mesmo das ideias (BURKE,
2000). Como se percebe, há uma espécie de
“delimitação” que une todas essas histórias e lhes dá um
atributo valorativo: sua erudição. É exatamente essa que
será colocada em xeque, quando, ao longo do século
XVIII, “a mente selvagem” ou a “mentalidade exótica”
começa a ser uma preocupação dos intelectuais europeus,
segundo Burke (2000).
Aqui, cabe um breve adendo: mesmo havendo, à
época, tal interesse no outro, este era visto, como é
presumível, a partir de uma perspectiva etnocêntrica. O
olhar pautava-se em um viés principalmente europeu, em
relação às culturas não hegemônicas, em potencial tom
de exotismo. Isso se relaciona a uma discussão
contemporânea mais abrangente que Ana Carolina
Escosteguy (2010) empreende, em relação às próprias
identidades culturais, evidenciando duas grandes
matrizes: o essencialismo e a construção social. A
primeira pauta-se em uma perspectiva
racionalista/universalista, já a segunda em um âmbito que
Diálogos Sobre História e Cultura 33

Escosteguy (2010) denomina historicista. Ou seja: grupos


entendidos a partir de categorias inatas a eles versus a
presença do grupo enquanto produto social.
A autora adverte, a partir de tais matrizes, que
ambas podem correr o risco de tornarem-se
preconceituosas: a universalista pela ênfase em uma
verdade absoluta e uma continuidade histórica pode
descuidar-se da especificidade do outro, julgando a
cultura de outrem e impondo seus próprios ditames; e a
historicista, por reiterar a especificidade, pode
desenvolver uma construção do outro como inferior.
Resultam, então, segundo Escosteguy ([200-)], duas
formas possíveis de racismo: I) não aceitação do outro,
por não saber reconhecer/aceitar sua diferença; II) recusa
do outro, por ser tão absolutamente diferente que é tido
como inferior.
Retomando Burke (2000) e a discussão sobre o
interesse no outro, o que se percebia era a necessidade de
uma espécie de alteridade no fazer histórico, em função
tanto do distanciamento histórico inerente ao trabalho dos
historiadores, quanto das diferenças culturais perceptíveis
— mesmo que, a idos do século XVIII, o olhar fosse
emoldurado por uma ótica colonizante e de valorização
do erudito. Os estudos sobre cultura ou o interesse sobre
o âmbito cultural no século XVIII se centravam em
costumes mais ou menos “requintados”, relacionados a
diferentes modos de pensamento. A ideia de que a cultura
é uma totalidade ou, pelo menos, que a ligação entre as
diferentes artes e disciplinas é muito importante foi uma
das principais realizações dos estudiosos da Modernidade
(BURKE, 2000).
Diálogos Sobre História e Cultura 34

Com a continuação de uma espécie de distinção


entre uma cultura de caráter erudito e uma cultura tida
como popular, a própria História Cultural clássica — ou
da cultura — vinha se estabelecendo. Dentre alguns dos
preceitos estabelecidos por uma História Cultural
clássica, estão as características atribuídas à dualidade
erudito-popular: a cultura erudita se dava como a
relacionada à literatura, à arte e a determinadas ideias
tidas como sofisticadas, enquanto a popular era tida como
exótica, acarretando juízo de valor e estabelecendo que
certos grupos possuíam cultura (representada pela
proximidade com a erudição europeia) e outros não —
culturas “selvagens”, dotadas de exotismo e vistas a
partir de uma perspectiva etnocêntrica (BURKE, 2000).
No entanto, ao longo da primeira metade do
século XX, tal perspectiva recebeu diversas críticas.
Dentre as objeções a uma História Cultural clássica, com
base em Peter Burke (2000), estão o ato de ignorar a
infraestrutura econômica, a estrutura política social e
assim por diante — caracterizando uma crítica,
primordialmente, marxista. Além disso, a dependência do
postulado de unidade ou consenso cultural (representado
pelo “espírito do tempo”, por exemplo), no
estabelecimento de uma espécie de período homogêneo,
culturalmente. A concepção de tradição também foi
passível de ser problematizada, em seu suposto teor de
continuidade inalterada (“o que se recebe é o mesmo que
foi dado”, “herança, “legado cultural”), na
desconsideração das próprias dinâmicas que caracterizam
a própria cultura e suas práticas, através do tempo. Para
citar mais duas características que sofreram críticas,
estiveram a cultura como implícita (equiparação de
Diálogos Sobre História e Cultura 35

cultura à “cultura erudita”) e a própria inadequação da


História Cultural clássica à virada do século, por
exemplo, pois foi escrita por elites europeias sobre elas
mesmas, na contramão do horizonte de descanonização
do fim do século XX e do desconforto, em relação a uma
espécie de grande narrativa do desenvolvimento da
cultural ocidental (BURKE, 2000).
Nessa seara, Burke (2000) já advertia na virada do
século que tal perspectiva não se adequava à época,
devido a uma perspectiva de herança europeia e escrita
pelas elites. A partir de tal problemática, em fins do
século XX, com a “descanonização” da cultura e dos
estudos culturais, instaurou-se o desconforto para com a
narrativa do desenvolvimento da cultura ocidental,
desconstruindo uma espécie de justificação de pretensa
superioridade das elites que se sustentava no próprio
cânone cultural.
Segundo Pesavento (1995), em contexto de fim e
virada de século, houve uma série de constatações
relativamente consensuais, como a crise de paradigmas
de análise da realidade, o fim da crença nas verdades
absolutas legitimadoras da ordem social e a ascensão da
interdisciplinaridade. Deixava de ter sentido, assim, uma
teoria geral de interpretação dos fenômenos sociais,
descambando na ocorrência de uma segmentação das
ciências humanas e uma associação multidisciplinar em
busca de saídas. Dessa forma, surgem novos objetos,
problemas e sentidos, em um horizonte de crise de
paradigmas e ecletismo teórico. E os próprios estudos
culturais latino-americanos se inserem nesse panorama
de mudanças e de “descanonização” da cultura e das
Diálogos Sobre História e Cultura 36

próprias identidades culturais num final do milênio,


como coloca Ana Carolina Escosteguy ([200-]).

4. Teoria interpretativa da cultura: uma


possibilidade à História Cultural

Dentro de tal panorama, o entendimento do qual


partimos, aqui, sobre uma possível noção de cultura é
bastante próximo da antropologia, evidenciando, de certa
forma, a própria perspectiva interdisciplinar característica
dos estudos em cultura. Temos, enquanto principal
referencial nesse sentido, Clifford Geertz (2008) e sua
teoria interpretativa da cultura, com algumas ressalvas à
sua descrição densa4. Dito isso, já assumimos o teor
4
Adam Kuper entende a descrição densa como sendo “tudo, menos
densa”. Segundo Kuper, abordando um dos exemplos de Geertz, o
relato (no qual se inserem berberes e franceses em A Interpretação
das Culturas) concebido como denso é uma narrativa de “uma ação
direta, uma história de aventura que reúne uma série de incidentes
dramáticos”. O relato se dá, segundo o autor, de forma incompleta,
no qual o leitor recebe “um relato diluído de um acontecimento
histórico complexo”. Aqui, embora compreendamos o ponto de
partida da crítica, não podemos deixar de mencionar o teor de
fragmento suscitado por Kuper. Se o relato é incompleto ou diluído,
há diversas variáveis que contribuem para tal ocorrência, sejam elas
o caráter de vestígio e de representação intrínseco aos relatos ou a
impossibilidade de o pesquisador tornar-se um nativo e possuir um
cabedal cultural que o possibilite ler um fenômeno, a partir de um
marcador interpretativo local. Ademais, a questão da memória, em
sua possível constante tensão entre apagamentos, seleções e
legitimação, também pode atravessar o trabalho etnográfico. E
mesmo compreendendo, nesse texto, a descrição densa como sendo
uma descrição dentre as possíveis, é necessário entendimento sobre
sua intenção de verdade e não pretensão de verdade. Partindo do
Diálogos Sobre História e Cultura 37

interpretativo que advém do próprio Geertz como um dos


elementos teórico-metodológicos possíveis para estudos
em cultura — o que abrange a própria História Cultural.
Neste âmbito, suscitar o interpretativo e o sentido
atribuído às concretudes do mundo, no que tange a
fenômenos de cultura, pressupõe representação, e a
entendemos, aqui, a partir de Stuart Hall (2016), na
consideração, principalmente, da linguagem. Ao tratar de
representação, o autor a destaca como parte constitutiva
das coisas. Em suma, damos sentido às coisas pela
maneira como as representamos. Isto abarca, inclusive,
nossas práticas culturais. A representação é uma parte
essencial do processo pelo qual os significados são
produzidos e compartilhados (linguagem) entre os
membros de uma cultura. Representar envolve o uso da
linguagem, de signos e de imagens que significam ou
representam objetos, pessoas ou mesmo ideais – a partir
de um repertório (ou sistema) de conceitos organizados,
dispostos e classificados em relações complexas com
outros.
Clifford Geertz (2008) parte de uma abordagem
com ênfase no simbólico, com a própria leitura dos
significados culturais se dando a partir da leitura de
âmbito interpretativo ressaltado por Geertz, o que temos é uma
narrativa possível e, minimamente, contextualizada, sim, mas não
livre de limitações. Principalmente, essas últimas não levam ao
descarte da teoria interpretativa enquanto possibilidade para o estudo
da cultura. Por fim, uma das principais críticas de Kuper se dá no
âmbito de uma suposta habilidade cosmopolita do etnógrafo que
permeia a descrição densa de Geertz, pois a implicação seria a de
“que por trás dos textos construídos por informantes existe um texto
mais profundo que pode ser lido apenas por um cientista
cosmopolita, que está equipado com outra habilidade externa à
cultura” (KUPER, 2002, p. 147-148).
Diálogos Sobre História e Cultura 38

representações simbólicas circunscritas historicamente,


contextualizadas. Nesse contexto, inclusive um dos
críticos do autor, Adam Kuper, reconhece a noção de
cultura oferecida por Geertz como coerente. Qual seja:
cultura enquanto comunicação simbólica, na qual
compreender a primeira significa interpretar seus
símbolos — uma concepção valiosa, principalmente, para
os historiadores abatidos pela insuficiência da noção de
mentalidades no século XX (KUPER, 2002). Nessa
linha, Pesavento (1995) argumenta que o termo
mentalidades sofreu diversas críticas no campo da
História ao longo, principalmente, da segunda metade do
século XX. Le Goff e Nora (1976) chamou a noção de
mentalidade de vaga, ambígua, inquietante, enquanto
Philipe Ariès (1978) a aproximou à noção de
inconsciente coletivo, espécie de estrutura mental ou
visão de mundo dos tempos passados. Foi a partir,
inclusive, da impressão de que tudo é, realmente, história
(nada escapa ao campo do historiador), da suscitação de
olhares até então inusitados sobre a realidade, que houve
a emergência dos estudos sobre o imaginário em fins do
século passado — enquanto ainda controverso, mas com
melhor contorno de entendimento e aproximação teórica
do que as mentalidades.
Dentre um dos principais pontos de enfoque na
teoria geertziana, coloca-se a questão contextual, além de
sua abordagem semiótica sobre cultura e seus fenômenos.
Partindo de um estudo dos signos nos processos de
significação na cultura, o autor suscita que os signos
comunicam algo e isso resvala em direção à sua própria
definição de cultura: para o ele, o humano é um animal
amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu, e a
Diálogos Sobre História e Cultura 39

cultura é entendida como tais teias e sua análise.


Compreende-se, nesse caso, a cultura também se
apresenta como ciência interpretativa em busca de
significados (GEERTZ, 2008), em um interesse não
somente sobre “o que é”, mas sobre “o que significa”.
Geertz (2008) indica que nossos dados são nossas
próprias construções das construções de outras pessoas,
do que elas e seus pares se propõe, indicando que sempre
estamos explicando explicações — o que retoma a
questão de uma impossibilidade de totalidade das fontes
históricas e dos relatos etnográficos, por exemplo, bem
como seu caráter interpretativo por parte do historiador,
mesmo em seu esforço de consciência histórica e
intenção de verdade, enquanto compromissos, inclusive,
éticos. Isso dialoga com a percepção de Geertz sobre a
cultura como espécie de texto, sendo a etnografia um
“tentar ler”, no sentido de “fazer uma leitura de” um
manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses,
incoerências, comentários tendenciosos que vão sendo
escritos pelo comportamento modelados dos indivíduos
circunscritos em determinado contexto cultural
(GEERTZ, 2008).
Neste ponto, é possível questionar, afinal, o que
devemos indagar ao lidar com a cultura. De acordo com
Geertz (2008), a indagação deve ser qual a importância
dos comportamentos e práticas, ou seja, o sentido sendo
transmitido, seja ele ironia, deboche ou orgulho. São
essas práticas que informam representações, que por sua
vez podem informar outras práticas, em uma relação
bastante próxima entre o que podemos chamar de
concretude e representação, constituintes da realidade
como coloca Sandra Pesavento (1995). O próprio Geertz
Diálogos Sobre História e Cultura 40

(2008), inclusive, adverte sobre a linha tênue entre modo


de representação e o conteúdo substantivo (representado)
na própria análise cultural.
Por essa razão, retomando a questão contextual, a
própria cultura se faz no contexto, dentro do qual se
podem ser descritos ou, melhor, interpretados os
acontecimentos sociais e comportamentos, por exemplo,
segundo Geertz (2008). Compreender a cultura de um
grupo expõe sua normalidade sem reduzir sua
particularidade, pois aquilo existente enquanto
significados partilhados é entendido como normalizado
dentro de sua especificidade de ocorrência. Segundo
Geertz (2008), é preciso olhar as “incoerências
coerentes”, aquilo que ocorre dentro do contexto,
informado e limitado àquilo que nossos interlocutores
podem nos levar a entender sobre eles mesmos e sua
cultura (nunca nos tornaremos nativos) e isso é
fundamental na teoria interpretativa do autor.
Dentre alguns dos indicativos principais da teoria
interpretativa geertziana, está seu caráter interpretativo,
dedicado ao fluxo do discurso social, circunscrevendo o
dito, colocando em formas pesquisáveis e sendo
microscópico (“na aldeia”). Há, ainda, a necessidade de a
teoria conservar-se próxima do terreno, evitando voos
imaginativos demasiado longos e perdidos em sonhos
lógicos e embrutecidos. Neste contexto, a abordagem
semiótica possibilita ganhar acesso ao mundo conceitual,
no qual vivem os sujeitos, para que possamos tentar
conversar com eles. No entanto, existe, também, o
reconhecimento da dificuldade do estabelecimento de
uma teoria cultural geral, dada a diversidade do
conhecimento sobre cultura(s), além do reconhecimento
Diálogos Sobre História e Cultura 41

de que teoria cultural não é profética, pois apenas fornece


vocabulário sobre o que o ato simbólico tem a dizer sobre
ele mesmo — sobre o papel da cultura na vida humana.
Para Geertz (2008), a teoria interpretativa objetiva tirar
grandes conclusões de fatos pequenos, mas entrelaçados,
e afirmar o papel da cultura na vida coletiva, ressaltando
as especificações complexas. Naturalmente, a teoria
depende da interpretação realizada, e o autor reconhece a
análise cultural como sendo incompleta, menos marcada
por perfeição e consenso e mais por refinamento de
debate, na tentativa de tentar manter as formas simbólicas
ligadas aos acontecimentos sociais e ocasiões concretas.

5. Estudos Culturais latino-americanos:


norteador introdutório

Escosteguy (2010) também enfatiza a importância


do contexto a seu modo — ou, melhor, da pesquisa
contextualizada —, no sentido de estabelecimento de
estudos culturais latino-americanos, e não somente na
América Latina, como uma espécie de extensão dos
estudos europeus, por exemplo. Embora a vertente latino-
americana tenha emergido e se localizado
preferencialmente no âmbito acadêmico, surge
entrelaçada com um momento conjuntural de
redemocratização da sociedade e de observação intensa
da ação dos movimentos sociais da época. As profundas
alterações que vêm ocorrendo na vida social dirigem o
olhar dos intelectuais que individualmente têm elaborado
análises críticas sobre a vida social e cultural
contemporânea. É esse tipo de engajamento político que
Diálogos Sobre História e Cultura 42

se dá nos estudos culturais latino-americanos e os


diferencia tanto do momento inicial da vertente britânica,
quanto do seu desenvolvimento em solo norte-americano.
Tudo isso se dá, pois a “América Latina abarca
heterogeneidades culturais, pluralidades étnicas,
diversidades econômicas, experiências diferentes e
desigualdades estruturais” (ESCOSTEGUY, 2010, p. 18).
Nesse sentido:

[...] a análise latino-americana pode ser lida


tanto como um exemplo da perspectiva dos
estudos culturais quanto como uma
exemplificação que retém tudo que é distintivo
a seu respeito. Adotando essa posição, ambas as
perspectivas – o programa dos estudos culturais
e a investigação cultural latino-americana –,
embora partilhem um mesmo objeto, isto é, a
relação comunicação e cultura, e uma certa
afinidade teórica, preservam suas diferenças e
originalidades. Portanto, a idéia de tradução,
utilizada aqui, não endossa o princípio de
existência de um original – no caso, a proposta
dos estudos culturais britânicos – e sua
tradução, entendida como mera aplicação de tal
proposta em outros territórios. Os estudos
culturais compõem, hoje, uma tendência
importante da crítica cultural que questiona o
estabelecimento de hierarquias entre formas e
práticas culturais, estabelecidas a partir de
oposições como cultura “alta” ou “superior” e
“baixa” ou “inferior” (ESCOSTEGUY, 2010, p.
18-19).

A colocação de Escosteguy parte da consideração


do papel constitutivo da cultura e das representações nas
próprias relações sociais. Além disso, isso suscita uma
Diálogos Sobre História e Cultura 43

concepção mais abrangente de sociedade, vista como


terreno contraditório de dominação e resistência, no qual
a cultura tanto se relaciona à reprodução das relações
sociais, quando à abertura de possíveis espaços para
mudança (ESCOSTEGUY, 2010, p. 20-23). Os estudos
culturais, nessa perspectiva, segundo autora, dão ênfase à
ação social. Ou seja, trata-se de teoria engajada nas
diferenças culturais, considerando a pertinência da
investigação de práticas e formas simbólicas.
A ideia de cultura que esta discussão suscita está
deslocada de um âmbito exclusivo da reprodução, indo,
por sua vez, em direção ao campo dos processos
constitutivos e transformadores do social, de acordo com
Escosteguy (2010). Em suma, com base no pensamento
da autora e adequando ao interesse deste texto, a intenção
dos estudos culturais se volta para a construção de uma
narrativa sobre os sujeitos e suas práticas. Também por
isso privilegiamos, aqui, o espaço do popular e das
práticas da vida cotidiana. E, ainda segundo a autora,
adotada a premissa de estudos culturais latino-
americanos e não apenas “traduções de um original” fora
da América Latina, a investigação da “cultura popular”
que assume uma postura crítica em relação àquela
definição hierárquica de cultura, na contemporaneidade,
suscita um remapeamento global do campo cultural, das
práticas da vida cotidiana e dos produtos culturais,
considerando, também, os processos sociais que
permeiam a produção cultural. Isso não renega a cultura a
um espaço menor ou sempre dependente a outras
instâncias, mas complexifica a discussão e não perde de
vista os atravessamentos inerentes às sociedades
Diálogos Sobre História e Cultura 44

contemporâneas e que permeiam, também, a própria


cultura.

Considerações finais

A teoria ocupa um lugar central e determinante


nos Estudos Culturais, pois proporciona os instrumentos
lógicos para pensar o mundo de um modo mais profundo,
crítico e rigoroso. Na verdade, os Estudos Culturais
rejeitam a ideia empiricista de que o conhecimento é
simplesmente uma questão de “reunir fatos”, a partir dos
quais as teorias seriam deduzidas para, em seguida,
serem elas próprias testadas e validadas por tais fatos.
Pelo contrário, nos Estudos Culturais, a teoria está
sempre implicada no trabalho empírico por meio de um
conjunto de decisões metodológicas e posicionamentos
epistemológicos presentes sobretudo nas fases de escolha
do tópico a investigar, na focalização da investigação,
bem como pelo uso de paradigmas, teses e conceitos, por
meio dos quais a empiria é interpretada e discutida
(BAPTISTA, 2012).
Desse modo, é objetivo primeiro dos Estudos
Culturais construir um discurso crítico e autorreflexivo
que procure constantemente redefinir e criticar o trabalho
já feito, repensar mecanismos de descrição, de definição,
de predição e controlo das conclusões a que se chega,
bem como ter um papel “desmistificador” em face de
textos culturalmente construídos e dos mitos e ideologias
que lhes subjazem (BAPTISTA, 2012).
Diálogos Sobre História e Cultura 45

Importante que se diga que nenhuma das linhas de


investigação propostas no âmbito do Estudos Culturais se
exclui mutuamente. Elas sugerem, por sua vez, múltiplas
possibilidades de cruzamentos, pois os métodos
utilizados, apesar de serem diversos, podem
complementar-se. É precisamente esse apelo à
interdisciplinaridade que se constitui, no âmbito dos
Estudos Culturais, como um desafio à construção de uma
cultura de diálogo entre as diferentes disciplinas
(BAPTISTA, 2012).
Em síntese, as questões próprias da investigação
em Estudos Culturais multiplicam-se e constituem focos
problemáticos de luta intelectual contínua, que têm
apenas como ponto unificador o conceito, equívoco e
problemático de Cultura. Apesar disso, os investigadores
têm revelado ao longo dos anos a invariável e persistente
vontade em se comprometerem com a complexidade do
fenômeno cultural, colaborando na construção do que
poderíamos designar pela (inter)disciplina ou pós-
disciplina que é hoje o domínio de investigação dos
Estudos Culturais (BAPTISTA, 2012).
Diálogos Sobre História e Cultura 46

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Música e sociedade: interfaces entre


a história social da música e a
sociologia da música
Music and society: interfaces between
the social history of music and the
sociology of music
Caique G. Oliveira de Carvalho1

Resumo

Este presente texto tem como finalidade geral discutir


como a relação “música e sociedade” foram e podem ser
discutidas pelos campos da história e da sociologia.
Nesse sentido, focamos em abordar as interfaces das
áreas que mais se especializaram nesse tipo de estudo nas
respectivas áreas, a saber: a Sociologia da Música e a
História Social da Música. Ao fim, discutimos possíveis
caminhos metodológicos que podem auxiliar o
pesquisador e a pesquisadora em investigações desta
natureza.
Palavras-chave: Música; Sociedade; Sociologia da
música; História social da música.

1
Doutorando em Ciências Sociais no PPGCS/UFBA. Mestre em
Ciências Sociais pelo PPGCS/UFBA e Licenciado em Sociologia
pela UFBA. Bolsista CAPES. Email de contato:
caiquecarvalho6@gmail.com.
Diálogos Sobre História e Cultura 50

Abstract

This text has the general purpose of discussing how the


relationship between “music and society” has been and
can be discussed in the fields of history and sociology. In
this sense, we focus on addressing the interfaces of the
areas that most specialize in this type of study in their
respective areas, namely: the Sociology of Music and the
Social History of Music. Finally, we discuss possible
methodological paths that can assist researchers in
investigations of this nature.
Keywords: Music; Society; Sociology of music; Social
history of music.
Diálogos Sobre História e Cultura 51

Música e sociedade: interfaces entre a


história social da música e a sociologia da
música
Caique G. Oliveira de Carvalho

Introdução

A perícia era, na verdade, grande; o instrumento é


que era pequeno. O que ele tocou não era Weber
nem Mozart; era uma cantiga do tempo e da rua,
obra de ocasião. (O machete, Machado de Assis)

Inácio Ramos é o artista dividido entre a auto-


contemplação privada e a oculta pretensão de sucesso e
agrado público. Sua preferência pelo violoncelo, não foi
a primeira, nem a última. Este, logo o afeiçoou quando o
viu nas mãos de um músico alemão que de passagem ao
Rio de Janeiro executou peças que levaram o público —
e o jovem músico — ao deslumbramento. Tal impressão
o fez abandonar a rabeca e perseguir a posse e
aprendizado do instrumento desejado, do qual
concentraria seu tempo e energia durante boa parte da
vida.
Já a viola machete é outra história, sua preferência
nasce de caminho tortuoso e é colhida em meio à
frustração do músico que lamenta — em idade madura —
a insipiência quanto ao instrumento que ganhava vida nas
mãos do amigo Barbosa, entusiasmando os ouvintes
Diálogos Sobre História e Cultura 52

presentes. Conforme indica a epígrafe, a matéria


exprimida pela machete vem doutro lugar, distinto das
peças para violoncelo que Inácio interpretava ou
compunha. É desta silenciosa e aguda tensão vivida por
Inácio que podemos partir. Afinal de contas, o que tem a
música a haver com a sociedade?
Ela não seria apenas um amontoado de notas e
compassos? Um arranjo de sons graves e agudos? Um
conjunto de ondas sonoras que nada de substantivo
consegue dizer? Estes questionamentos, aparentemente
ingênuos, já ultrapassou séculos na história do
pensamento dando vazão a perspectivas distintas. Ao fim
e ao cabo, o que se encontra como pano de fundo de tais
indagações é o caráter abstrato e temporal da música.
É com Eduard Hanslink que temos uma das
críticas mais importantes da teoria estética musical,
quando, ao publicar em meados do século XIX o seu
clássico Do belo musical, se voltava contra toda uma
concepção estética que defendia uma relação privilegiada
da música com os sentimentos humanos. Ao colidir com
tal interpretação corrente na história, Hanslick (1994)
adota no seu lugar uma postura formalista que encara a
expressão sonora da música como um meio que expressa
ela mesma, a música. Ao construir esta tese, cai por terra
— ao menos sob a ótica hanslinkiana — qualquer
possibilidade de indagar nos sons algo próximo a um
“conteúdo social”.
Mais ou menos nesta linha argumentativa se
encaixa a crítica feita pelo compositor Igor Stravinsky
frente às análises estéticas e sociológicas da obra de
Beethoven, na qual tais intérpretes a enxergavam como
uma expressão do ethos revolucionário burguês:
Diálogos Sobre História e Cultura 53

Como é irrelevante a questão de se a Terceira


Sinfonia foi criada sob a inspiração do
Imperador Napoleão! Só a música é que
importa (...) Em suas composições para piano, o
ponto de partida de Beethoven é o piano; em
suas sinfonias, aberturas, peças de música de
câmara, o ponto de partida é o elenco
instrumental. (STRAVINSKY. Citado em
FISCHER, Ernst. 1987, p.205).

As reflexões acerca da constituição da música


enquanto uma forma abstrata2 e temporal é antiga, e já a
encontramos em Platão (2000) quando o filósofo aponta
sua preocupação com este tipo de arte, decorrente da sua
“beleza” e “forma envolvente”, o que o leva a encará-la
como uma arte perigosa, capaz de se apossar dos corpos e
desencaminhar as mentes, desvirtuando, deste modo, o
projeto pedagógico que integrava a sua república ideal.
Também em Hegel (2010) vemos vir ao primeiro
plano da sua escrita, preocupações quanto a estas
características da expressão sonora, a qual o filósofo
compara com a arquitetura — dado seu caráter abstrato
— ainda que dela se afaste ao considerar a condição
fugidia dos sons, que logo após ser exprimido se esvai
para dar lugar a uma outra sonoridade.
Decerto, quando comparada com outras formas
artísticas como a pintura ou cinema, a música se
apresenta de forma bastante singular. Enquanto essas
artes conseguem exprimir de forma objetiva uma
determinada cena importante para a sua estória (como faz
2
Enquanto estas considerações são integralmente válidas apenas
para a música de tipo instrumental, elas se adequam apenas
parcialmente às obras que articulam no seu interior a música à uma
poesia ou letra, como é o caso da forma canção.
Diálogos Sobre História e Cultura 54

o cinema), ou imortalizar um episódio histórico a partir


de uma representação figurativa estática (como faz a
pintura), a música é carente de tais meios figurativos.
Este impasse presente na obra artística desemboca
no próprio artista que fora lido muito mais sob a ótica do
gênio isolado, do que da do indivíduo participante e
influenciado pelo mundo. Para os defensores desta
perspectiva, a análise da obra dever-se-ia partir, portanto,
da própria música e do instrumento, e nela se deter, como
pretende Stravinsky na crítica reproduzida há pouco.
Sobre este tema, mantém-se atual a indagação de Ernst
Fischer segundo a qual “Um músico então, só conhece
pianos e nada pode saber de revoluções?” (FISCHER,
1987, p.206).
Voltemos ao impasse vivido por Inácio Ramos: no
conto vemos através da ironia machadiana o
dessecamento das ilusões e presunções do protagonista.
Nesta obra, embora a música seja alçada inicialmente à
qualidade de expressão do “coração” e da “alma” e o
artista fluminense encarado, desde pequeno, como dotado
de grande vocação musical, vemos o desmanchar de tal
perspectiva romântica, quando o valor da música é
adentrado a todo momento pela sociedade.
O valor da música é diretamente transpassado
pelo lugar social que esta ocupa, como se expressa ao
descrever a sua mãe “cuja alma parecia superior à
condição em que nascera, tão elevada tinha a concepção
do belo” (ASSIS, 2019, p. 1059). Já a rabeca, herança
artística do seu pai, quando contraposta ao violoncelo,
aparecia como de menor capacidade expressiva,
ocupando na sua vida, apenas o lugar compendioso do
trabalho. Não é à toa, que a efusividade quanto a música
Diálogos Sobre História e Cultura 55

violoncelista executada por Inácio virá, não da esposa


que a apreciava, mas não a “entendia”, mas sim de
Amaral, estudante de direito em férias no Rio de Janeiro
que era “todo arte e literatura” com “alma cheia de
música alemã e poesia romântica” um “exemplar daquela
falange acadêmica fervorosa e moça animada de todas as
paixões, sonhos, delírios e efusões da geração moderna”
(ASSIS, 2019, p. 1063). Contudo, é com seu amigo
Barbosa, também estudante de direito, porém, diferente
de Amaral, com “espírito medíocre”, que as frições
internas de Inácio se desenvolvem e se expandem.
Ao ver o público se entusiasmar mais com a
“pequena”3 viola machete, do que com seu violoncelo,
desdobra-se no seu interior a decepção e desgosto,
resultado dos contrastes sociais quanto ao significado da
música e as noções sociais de “beleza” e “autenticidade".
Em O machete vemos uma justaposição de diversos
elementos que ultrapassam a expressão artística,
tornando-se, mais do que uma expressão abstrata e sem
conteúdo, um objeto atravessado e informado pela
sociedade. Os sons da viola vem da rua e do tempo, mas
como os distinguir?
Tais questões desafiadoras, já indagadas há muito
na estética, não ficaram enclausuradas no campo
filosófico, transbordando para o debate nas ciências
humanas, notadamente através da História e da
Sociologia. Buscaremos aqui observar como estas duas
áreas avançaram em propostas teórico-metodológicas
capazes de desvendar a relação entre música e sociedade

3
Esta adjetivação, presente na epígrafe deste texto, ocupa o lugar
ambíguo do “pequeno” como estatura ou extensão e a sua noção
valorativa: de pouca importância ou significado.
Diálogos Sobre História e Cultura 56

e como os problemas levantados no âmbito da estética


foram debatidos e resolvidos nesses campos.

1. História social da música

A História da Música repousou por muito tempo


em uma espécie de “história do gênio”, na qual
importava, sobretudo, realizar uma investigação dos
“grandes compositores” tendo como foco especial a sua
biografia. Procedia-se, muitas vezes, a partir de uma
perspectiva evolucionista traçando um rastreio dos
sujeitos que influenciaram uns aos outros, ocultando da
investigação compositores de pouco sucesso ou respaldo.
A partir desta perspectiva, a música deveria ser analisada
levando-se em conta a relação entre o artista, o
instrumento e a pauta, e quando muito, o ambiente e vida
pessoal do compositor.
É apenas no século XX que começa-se a superar
tal tipo de procedimento ao perscrutar nas obras musicais
elementos que ultrapassam a vida privada do artista e seu
círculo social4. Nesse sentido, o advento da História
Social é de grande importância, pois ela se inscreve no
campo historiográfico como uma área que promove uma
abertura e multiplicação dos objetos de estudos,
principalmente a partir da fundação da Escola dos
Annales e seu projeto interdisciplinar.
4
Em seu texto de 1985 (referenciado na bibliografia), Ivo Supicic
elenca (no tópico acerca da História Social da Música) diversas obras
que se inserem neste projeto historiográfico, de investigar a obra de
arte e o artista no conjunto da sociedade em que se encontram
inseridos. De modo que ele é recomendado para pesquisadores que
queiram acessar o estado da arte relativo ao tema até o ano referido.
Diálogos Sobre História e Cultura 57

Com esta escola, as fronteiras historiográficas são


expandidas iniciando diálogos com a sociologia,
economia, antropologia e outras áreas do saber. Já o
artista isolado, que funcionava como referência canônica,
perde espaço para uma explicação que o recoloca no
meio social. A obra História Social da Música: da idade
média a Beethoven de Henry Raynor é basilar para
entendermos essa nova perspectiva historiográfica da
música que começa a se desdobrar no século XX.
Para Raynor (1981) a setorização da história em
campos especializados a levava necessariamente a um
falseamento da realidade na medida em que os
fenômenos da vida social (interdependentes entre si) são
reconstruídos de forma autônoma. Desse modo, a escrita
de uma história da música — e demais outros ramos da
historiografia — exige que se leve em conta as diversas
transformações que venham a ocorrer no panorama social
em que esta se encontra inserida. De modo, que para a
sua reconstrução e entendimento, é necessário buscar
observar o público de determinado fenômeno musical,
possíveis patrocinadores, transformações tecnológicas,
econômicas etc.
As crenças políticas e religiosas também não
ficaram de fora do arcabouço discutido por Raynor, que
chega a catapultar a música para a esfera das ideias.
Dessa maneira, sob a música haveria a influência de
ideias, costumes e hábitos, ainda que de forma sutil. Bem
como, a própria música poderia vir a intervir na
sociedade. Evidente que esta relação não pode — e não é
essa a intenção do teórico — desembocar em uma relação
arbitrária entre as transformações sociais e aquelas
processadas na música. É diante dessa preocupação que
Diálogos Sobre História e Cultura 58

as fontes empíricas tornam-se importantes para


fundamentar e estabelecer bases coerentes às
interpretações do historiador5.
Embora Raynor as reconheça enquanto escassas,
ao menos em relação aos seus objetos de estudos
(compositores da música de concerto até o século XIX), é
possível se buscar elementos empíricos em cartas
trocadas, testemunhos e rabiscos deixados pelos artistas
ou críticas musicais, comentários editoriais e/ou do
público etc, que possam indicar possíveis caminhos de
interpretação da obra, o seu lugar na sociedade e suas
potencialidades. A investigação das cartas de Mozart feita
por Raynor (1981), por exemplo, demonstra a grande
preocupação nutrida pelo compositor austríaco em
agradar seu público sem, porém, perder a coerência
interna de sua obra6. O que desmistifica a figura
socialmente construída dos compositores enquanto
gênios que se rebelam contra a sociedade e exercem sua
liberdade criativa sem se importar com o julgamento do
público.
O fato de uma peça musical não sobreviver
apenas na partitura, sendo necessário, também, sua
execução, demonstra, portanto, como a atividade musical
é, essencialmente, uma atividade social. Isto porque, sua
execução pressupõe a existência de músicos, a produção
5
Apesar de suas contribuições, Raynor ainda conserva certas
características das produções anteriores como seu foco demasiado na
chamada “música erudita” passando ao largo da música popular e
uma construção de uma “história geral do mundo” que tem como
referencial a história européia, conforme discute Felipe Araujo
(2021).
6
Na contemporaneidade, como discutiremos mais a frente, as fontes
possíveis de análises historiográficas se expandem ainda mais para o
pesquisador e a pesquisadora.
Diálogos Sobre História e Cultura 59

e venda de instrumentos, a existência de espaços para


apresentações musicais, patrocinadores (privados ou
estatais) e um público que compre o ingresso. É de se
presumir que toda esta rede de relações influencia a
produção musical de uma época, bem como, suas
transformações ocasionam, ainda que de forma gradual,
modificações na própria música.
Se nos lembrarmos bem, é este o dilema vivido
pelo personagem ficcional de Machado de Assis, cuja
avidez para agradar e se sentir alentado pelo público era
confrontada por obstáculos advindos das transformações
acerca dos valores sociais da música na sociedade de sua
época, quando esta passava a encarar a música popular
executada pela machete do amigo Barbosa como mais
estimulante que as peças europeias que constituíam seu
repertório.
Além disso, a história pode se utilizar da música
como um importante dado empírico capaz de desvelar
diversos setores da sociedade. Para José Geraldo Vinci de
Moraes (2000), este seria o caso dos setores populares,
pouco estudado pela historiografia e com escassez de
fontes documentais, mas que tem na produção musical
um forte conjunto de elementos capazes de nutrir e
potencializar as pesquisas historiográficas.
No caso da pesquisa em história social da música
latino-americana do século XX, Juan Pablo González e
Claudio Rolle (2007) destacam temas profícuos que
podem ser tratados como: a indústria da música, a
“massificação” do folclore ou a influência estrangeira.
Em relação às abordagens, estas podem ser diversas, o
historiador e historiadora pode buscar investigar: como
determinada música foi produzida naquela sociedade, em
Diálogos Sobre História e Cultura 60

quais espaços circulou, as condições de consumo,


formação do cânone, a construção social do gosto, dentre
diversos outros aspectos que atravessam a experiência
musical nas sociedades.
Contudo, entender um grupo, sociedade ou nação
através da sua música, requer o enfrentamento de
desafios, tanto teórico-metodológicos, quanto outros que
são circunstanciais a cada contexto. Tanto Moraes (2000)
quanto Marcos Napolitano (2008) apontam elementos
circunstanciais no caso do Brasil que dificultam a
pesquisa nessa área, tais como a desorganização dos
arquivos e dispersão de fontes relativas à produção
musical.
Outros desafios, esses gerais a todo pesquisador E
e pesquisadora deste campo, estão relacionados ao fato
da música ser um objeto estético de alto teor
interpretativo, que como toda peça artística joga e brinca
com a polissemia, mensagens encobertas, dentre outros
artifícios. Este é um obstáculo que deve ser encarado
mesmo para as pesquisas que não tem como objetivo
principal entender as transformações estéticas internas à
obra, e exige do investigador e investigadora um certo
grau de domínio da linguagem musical.
Já no caso de pesquisas que se propõem a
entender a música de épocas em que a técnica de
reprodutibilidade do áudio ainda não tinha sido
desenvolvida, têm-se que debruçar em produções como
as visuais e literárias buscando captar a música a partir
do silêncio. Tais dificuldades podem ser superadas com
sucesso a partir do estudo e aprendizado com os trabalhos
já feitos nessa área, cujo acúmulo teórico e metodológico
Diálogos Sobre História e Cultura 61

— sempre gradual — é dado por cada nova pesquisa


publicada.
No contexto atual, distinto daquele em que Henry
Raynor escreveu, encontramos uma quantidade muito
maior de estudos no âmbito da história social da música
(ainda que pequena quando comparada com os outros
setores da historiografia). O que é interessante seja para
outras áreas da história ou mesmo para os mais variados
pesquisadores do campo musical. Obras que vão desde o
clássico História social do jazz de Eric J. Hobsbawm e
Historia social de la musica popular en chile (1890-
1950) de Juan Pablo González e Claudio Rolle. No
Brasil, destacam-se trabalhos como História social da
música brasileira de José Ramos Tinhorão e Seguindo a
canção: engajamento político e indústria cultural na
trajetória da música popular brasileira de Marcos
Napolitano.
Ainda assim, a escuta do passado7 — e do
presente — é um trabalho a ser feito pela historiografia
brasileira, uma vez que, muito do que conhecemos das
músicas produzidas continuam sendo mediadas pelas
produções jornalística, crítica e folclorista, cujos meios e
finalidades distinguem-se dos objetivos e métodos
propostos pela história.

2. Sociologia da música

Os desafios teóricos gerados pelos filósofos da


arte perduraram, influenciando o surgimento da
7
Tomo de empréstimo o termo utilizado por González e Rolle
(2007).
Diálogos Sobre História e Cultura 62

Sociologia da Música e moldando a delimitação de suas


funções e propostas na análise do fenômeno social. As
duas palavras que nomeiam esta área científica, como
percebe Theodor Adorno (2017), guardam entre si, à
primeira vista, uma distância profunda, levando a uma
aparente atrofia de um destes dois momentos quando
colocados em conjunto. Como já vimos, parte dos
estudiosos da música e da estética, recusou prontamente
uma análise da obra musical que tenha como meios
explicativos elementos extra-estéticos, postura que
também que se encontra presente na sociologia.
Bastante pautada, no século XX, por uma
perspectiva positivista e empírica, parte considerável dos
sociólogos encarou a música de forma exitosa,
arriscando, apenas, extrair do fenômeno musical, os
elementos exteriores à própria obra artística. Assim,
temos pontos de vista como os de Alphons Silbermann
(1962) que definia como tarefa da sociologia da música a
compreensão da relação entre o artista e o público, uma
vez que, indagações sobre o conteúdo musical e sua
relação com a sociedade estariam fadadas ao fracasso e
inacessíveis ao sociólogo. Surgiu daí, o embate —
presente em todo o campo da sociologia da arte, e, talvez
mais forte na sociologia da música —, entre as
perspectivas teórico-metodológicas que privilegiam,
enquanto objeto investigativo, a arte em si e as que têm
por preferência os aspectos exteriores à expressão
artística, como os estudos acerca da produção e recepção
da obra8.
8
Nos limitamos neste ponto à constatação das divergências que
fizeram e fazem parte da constituição do campo de pesquisa das
sociologias da arte. De modo, que isso não significa, de nenhum
modo, que reafirmamos a noção na qual estas duas orientações
Diálogos Sobre História e Cultura 63

A sociologia empírica da música, como


Silbermann a nomeava, se enquadra nessa segunda
perspectiva. Para ele, a sociologia deveria abrir mão de
questionamentos sobre o “sentido” ou “significado” da
música investigada — empreendimento, a seu ver, estéril
— e deter-se a entender, no seu lugar, as questões
externas ao objeto. Isto porque, pela sua ótica, para o
sociólogo produzir algo de verdadeiramente científico,
deveria se orientar a buscar responder questões como a
mudança no padrão de gosto da sociedade ou a reação do
público para com a música ouvida. Nesse sentido, a
finalidade da sociologia da música estaria em investigar o
ser humano enquanto um agente sociocultural, sua
relação entre o indivíduo e o grupo vivenciado no
contexto da música a partir da “experiência musical”.
Aos sociólogos estaria portanto resguardado o
estudo das transformações e coerções institucionais e seu
efeito sob à seleção das obras ou os mecanismos de
tomadas de decisão em grupo. Importaria, sobretudo, ao
campo da sociologia, como aponta Vera Zolberg (2013)
ao analisar o estado da arte da disciplina nos Estados
Unidos, o processo social de criar status através da arte,
seu uso social simbólico9. Esta perspectiva, como vemos,
aproxima bastante a discussão sociológica daquela
elaborada pela História Social e acaba perdendo de vista
a obra artística, tratada como objeto incognoscível.
A perspectiva de Adorno (2021), por outro lado,
compreende a sociologia da arte enquanto uma área que
investigativas não possam estar articuladas entre si nas pesquisas
sociológicas.
9
A discussão feita por Pierre Bourdieu em torno da Sociologia da
Arte, seus possíveis métodos e finalidades, caminham também neste
sentido.
Diálogos Sobre História e Cultura 64

abrange todos os aspectos concernentes à relação entre


arte e sociedade. Por esta via, o privilégio de apenas um
desses enfoques poderia significar um engessamento
sociológico, no qual apenas uma dimensão da arte e da
experiência humana junto a ela, viria a ser captado. Ao
seguir esta trilha, perder-se-ia, na sua compreensão,
diversos outros elementos significativos para a
compreensão do fenômeno social a ser investigado.
Enquanto a perspectiva de Silbermann, como bem
aponta Supicic (1988), está inserida em um projeto maior
de converter a sociologia da música em uma ciência
positiva, o que equivalia eliminar desta, todos os
possíveis traços de uma reflexão filosófica e
especulativa, vemos nas discussões de Adorno (1980;
1983; 2017; 2021) uma proposta que caminha no sentido
contrário, ao reafirmar a necessidade da articulação entre
sociologia e estética, para se entender a arte na sua
totalidade. Desse modo, "o futuro da sociologia da
música” dependeria, na sua compreensão, da capacidade
desta disciplina utilizar a “reflexão dos métodos de
análise musical” junto à “sua relação com o conteúdo
espiritual” (ADORNO, 1980, p. 261).
Na proposta adorniana encontramos uma
articulação direta com a tradição dialética iniciada em
Hegel ao encarar a expressão musical como um espaço
frutífero de indagação e descoberta: tanto sociológica,
quanto estética. Em parte, é esta a proposta de Adorno
em relação à construção de uma sociologia da arte e da
música, qual seja, a compreensão de que as investigações
sociológicas não devem se encontrar desapartadas de
procedimentos próprios à estética ou mesmo às ciências
musicais.
Diálogos Sobre História e Cultura 65

Visto que, a música esconde seu conteúdo na


mesma medida em que se exprime, a compreensão do seu
sentido social exige ferramentas e artifícios específicos.
É justamente esta a principal tarefa da análise sociológica
para Adorno, a de descobrir na forma musical o seu
conteúdo social:

Sirva de orientação a ideia de que todas as


formas musicais, todos os seus elementos
materiais e de linguagem, foram eles mesmos
conteúdos; que são testemunhos de
configurações sociais, e que a insistência do
olho crítico pode recuperar esta dimensão (...)
interessam sobretudo as tendências que levaram
à transformação desses elementos
primitivamente conteudísticos, socialmente
funcionais, em elementos formais de
composição. (ADORNO, 1983, p. 266)

Assim, temos a mediação como um importante


conceito no conjunto da sua perspectiva teórica, por
apontar a análise imanente do objeto como o ponto de
partida para se encontrar os elementos sociais que foram
cristalizados no interior da forma artística. Neste sentido,
a sociologia passa a ter como objetivo a decifração dos
elementos abstratos do som musical, resgatando nele as
contradições sociais que influenciaram sua existência.
Ao encarar a música desta maneira, compreende-
se, conforme discute Anderson Costa (2018), que esta
inscrição da realidade social na obra de arte não se dá de
forma mecânica, como um reflexo ou cópia fiel da
realidade. Através desta perspectiva, a música é resultado
do trabalho do artista que colhe do mundo suas
impressões, interiorizando-as e mesclando-as com uma
Diálogos Sobre História e Cultura 66

série de outros elementos, que são, posteriormente,


objetivados na forma e no conteúdo artístico. Deste
entendimento, uma das possíveis formas de investigação
sociológica da música é a análise de sua representação
artística, ou seja, o produto do processo criativo do artista
que, de forma voluntária ou involuntária, interpreta o
mundo.
É importante apontar, que cada obra de arte, pode
requerer um caminho específico para se desvelar este
nexo entre sociedade e expressão artística, do mesmo
modo que a influência e os condicionamentos sociais sob
a arte variam de acordo com a sociedade na qual esta se
encontra inserida, podendo, de um contexto para outro,
ter deslocada, seu conteúdo, forma e função. Visto isso, a
afirmação de Ramón Barce (1988) segundo a qual a
música ganha suas características mediante a tessitura
social na qual está inserida10, é bem vinda para essa
discussão.
Porém, ao falarmos de condicionamentos sociais,
não os encaramos como um fator determinista que
pressupõe reações pré-determinadas por parte do sujeito,
mas sim, de circunstâncias sócio-históricas que
influenciam o resultado final da criação artística. Em
virtude disso é necessário considerar a condição de
autonomia relativa da obra de arte — incluindo-se aí, a
música — diante da realidade social na qual se encontra.
10
Em um plano imediato podemos citar as possibilidades de difusão,
compensação econômica, tipo de público ao qual se dirigir. Já em
uma instância mediada, e nem por isso menos importante, podemos
apontar a situação social do país ou comunidade que o compositor
vive, as crises econômicas e sociais, as ideologias predominantes na
sociedade, as mudanças e movimentos políticos, as expectativas
nutridas no interior da nação, a fome ou a guerra etc.
Diálogos Sobre História e Cultura 67

Isto significa, que ocorre em cada peça artística um


entrecruzamento das dimensões subjetivas e objetivas,
não podendo reduzi-la há apenas um desses aspectos.
A experiência do compositor, conforme
compreende Fischer (1987), nunca é puramente musical,
mas, também, pessoal e social. Assim, o fato da música
ser o resultado dessa complexa atividade humana na qual
diversas dimensões se imbricam no processo da sua
elaboração, é o que possibilita à própria arte, como
elucida Costa (2018), a capacidade de transcender o
espaço e o tempo.
Em Lukács (1982) também encontramos
proposições semelhantes a estas. Ao conferir ao artista o
papel de sujeito ativo e criador, que elabora suas obras a
partir de um complexo desafio de aproximação e
distanciamento da realidade, o filósofo aponta não apenas
para o conteúdo em si mesmo como social, mas, também,
para a própria forma obtida e criada em determinado
momento histórico11.
Nesta perspectiva destaca-se a proposta de Kurt
Blaukopf (1988) para quem a sociologia teria como
objetivo a busca pela compreensão da produção e
reprodução da música frente ao desenvolvimento
histórico da sociedade humana, o que consistiria para o
autor, em “iluminar as motivações sociais nas mudanças

11
É possível, observar esta noção já em Hegel, a partir de outras
terminologias: “Sob este aspecto, a missão particular da música
consiste em apresentar ao espírito este conteúdo, não como se
encontra na consciência enquanto representação geral ou tal como
existe já para a intuição, com determinada forma exterior mais ou
menos elaborada pela arte, mas de tal modo que possa ser apreendida
pela subjetividade interior e nela se possa revelar de uma forma
vivente” (HEGEL, 2010, p. 300)
Diálogos Sobre História e Cultura 68

históricas da música”12 (BLAUKOPF, 1988, p. 5),


incluindo-se aí, as modificações dos sistemas musicais.
Nesse debate, a afirmação feita por Adorno
(2017) de que a “mediação entre música e sociedade
torna-se evidente na técnica” (ADORNO, 2017, p. 394) é
significativa por trazer importantes caminhos para a
análise sociológica.
Seus estudos acerca do hit musical funcionam
como um bom exemplo, quando o teórico desvenda na
forma musical das composições de sucesso, elementos
extra-estéticos concernentes à estrutura do capitalismo
avançado que determinam sua forma estética. Essa
influência pode ser percebida através do processo de
padronização, como, por exemplo, um número
aproximado de palavras a ser utilizadas na canção, uma
definição prévia da sua duração, a quantidade de refrões
que irão compor a obra ou padrões rítmicos e harmônicos
a serem explorados13. Tais elementos, faz do hit uma
propaganda de si mesmo, no qual cada sucesso converte-
se numa preparação e impulsionamento para o próximo
que virá. Esta discussão exige, evidentemente,
compreender a arte como uma mercadoria, tal como os
frankfurtianos discutiram a partir da teoria da indústria
cultural, conceito incontornável para pensar as funções e
possibilidades da arte na contemporaneidade14.
12
Tradução nossa de: “iluminar las motivaciones sociales en los
cambios históricos de la música” (BLAUKOPF, 1988, p. 5)
13
Estes elementos, evidentemente, não andam separados de artifícios
como a circulação da música em rádios e televisões, que
impulsionam sua disseminação na sociedade.
14
Apesar das imensas contribuições feitas por Adorno no campo da
sociologia da arte e da música, é necessário fazer adaptações e
críticas quando da sua utilização, para não incorrer em erros e
exageros tais como: a ultra-potencialização dos mecanismos das
Diálogos Sobre História e Cultura 69

Em relação ao campo da sociologia da música,


têm-se feito progressos com trabalhos significativos
como os de Simon Frith (2001) na Inglaterra e
contribuições como as de Filipe Baqueiro (2020), Marcia
Tosta Dias (2000) e Dmitri Cerboncini Fernandes e
Carlos Sandroni (2016), que juntos organizaram uma
interessante obra acerca da relação entre Música e
Ciências Sociais.

3. Música e Sociedade: possíveis


caminhos teórico-metodológicos

Como vimos, a relação entre música e sociedade


pode ser abordada de diversas maneiras, seja adotando
uma postura mais externa ou interna à obra ou até mesmo
articulando na pesquisa ambas dimensões. Do mesmo
modo, o estudo social da música exige, necessariamente,
uma postura interdisciplinar para conseguir desvendar as
diversas características presentes nessa área temática.
Em virtude dessa condição, as diferenças entre a
História e a Sociologia, embora existentes, não são
irreconciliáveis. Sua intercalação é, inclusive, frutífera
para o processo de pesquisa, que pode se desdobrar,
fundamentalmente, nos estudos de produção, circulação,
recepção e representação da música. Sendo que, cada um
desses encaminhamentos exige metodologias de
pesquisas e proposições teóricas distintas.

indústrias da arte e a supressão do ouvinte como indivíduo crítico,


portador de agência ou o julgamento excessivo e eurocêntrico feito
pelo teórico em relação a música popular, em particular ao jazz.
Diálogos Sobre História e Cultura 70

Enquanto fonte de dados para o estudo da música


temos as descrições de viajantes, pinturas e romances,
como importantes objetos dos quais podemos extrair
informações da música do passado. A obra Sons dos
negros no Brasil de José Ramos Tinhorão é um exemplo
bastante interessante em que essas fontes são utilizadas
para se reconstruir a musicalidade — e seu lugar social
— de outrora junto às praticas religiosas e dançarinas que
a acompanhavam.
Na contemporaneidade essas fontes se
multiplicam. A utilização de discos vinis para se
compreender a trama social que possibilitou o surgimento
da produção artística objetivada no LP, como propõe
Milton Moura (2020), pode ser bastante promissora para
pesquisas que buscam entender processos produtivos e de
circulação da música e artistas em questão.
As indagações que o pesquisador e pesquisadora
podem fazer ao disco são variadas. Esta pode partir desde
sua ficha técnica, como é o caso exemplificado por
Moura (2020) ao apontar uma diferença fundamental
ocorrida no disco O movimento de 1993 do grupo
musical Olodum, que insere pela primeira vez
instrumentos de metais e teclados, o que exige
profissionais com expertise necessária para realizar os
arranjos musicais.
Desta característica, a princípio secundária, pode-
se buscar entender “os mecanismos de interação entre
diferentes setores da produção de música” (MOURA,
2020, p. 7). Além disso, têm-se as capas dos discos de
vinis, comentários críticos e de apresentação ao álbum
musical, bem como, logos de patrocinadores e
produtoras, que se revelam enquanto dados instigantes
Diálogos Sobre História e Cultura 71

que podem fornecer pistas concretas acerca das relações


que possibilitaram a produção e circulação do disco.
Esses elementos abordados em relação ao disco
de vinil podem ser expandidos para uma série de outros
produtos relacionados às divulgações e circulação do
produto musical, desde flyers e outras peças de
marketing, no qual é possível identificar parte
considerável dos patrocinadores envolvidos e os eventos
contratantes dos artistas. As rádios, programas de
entrevistas de redes sociais e meios de comunicação
tradicionais, que abrem espaço para determinado artista,
também são outros espaços potencialmente úteis para as
pesquisas.
A própria música gravada é também — como
vimos acima — um objeto de análise, seja para a
historiografia ou para a sociologia. Para isto, como
aponta Marcos Napolitano (2008), o pesquisador deve
estar atento à articular a linguagem técnico-estética às
representações contidas nelas, buscando entender quais
elementos da sociedade influenciaram sua produção e
vice-versa.
Esta investigação da representação musical pode
ser realizada através da metodologia de
decomposição/recomposição musical, em que a obra é
fragmentada em partes, tais como: a melodia, harmonia,
letra, afinações vocais etc. Sua análise deve ser articulada
a uma contextualização buscando extrair dela seu
significado social, o que depende do tempo e espaço em
que foi produzida. Após este procedimento, deve-se
observar a música no seu todo, recompondo-a e
observando como aqueles elementos investigados
Diálogos Sobre História e Cultura 72

separadamente, funcionam de forma conjunta e o que


comunicam ao ouvinte.
As entrevistas e questionários são também uma
outra ferramenta que pode ser uma importante aliada às
pesquisas que querem entender elementos como a
produção e recepção da obra. No caso da esfera
produtiva, estas podem ser utilizadas para indagar artistas
e produtores musicais acerca das condições de elaboração
da arte, possíveis inspirações e dificuldades. Já em
relação à recepção, os questionários e entrevistas podem
ser encaminhados ao público consumidor e não-
consumidor do artista ou gênero musical, buscando
entender e captar as motivações que o aproximam ou
distanciam daquela produção.
Além dessas ferramentas utilizadas nas ciências
humanas, o pesquisador pode buscar metodologias de
outros campos do saber. Tais como, métodos semióticos,
como o construído por Luiz Tatit (2003), que se revelam
bastante úteis pensar e interpretar a canção popular,
sendo proveitosos à análise musical que busca desvendar
possíveis relações entre a música e a sociedade, bem
como, ferramentas analíticas oriundas da musicologia e
etnomusicologia. Tal expansão das fronteiras entre estes
campos são necessárias para promover as articulações
entre a música e a sociedade. Contudo, o pesquisador
deve-se atentar às necessárias adaptações ao arcabouço
teórico-metodológico da pesquisa e área de estudo,
garantindo deste modo, sua coerência interna e solidez
científica.
Diálogos Sobre História e Cultura 73

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Diálogos Sobre História e Cultura 76

Imagens em revista: cultura política


e visual nos tempos da Boa-
Vizinhança (1939-1945)
Images in periodical: politic and visual
culture in the Good Neighbor Policy
(1939-1945)
Carolina Machado dos Santos1

Resumo

A partir da análise do periódico carioca ilustrado Revista


da Semana, esse trabalho propõe investigar como foi
noticiada em suas páginas a política de estreitamento da
amizade hemisférica entre Estados Unidos e Brasil
durante a II Guerra Mundial, no período de vigência do
Estado Novo sob o comando de Getúlio Vargas. Atuando
dentro do campo de estudo da cultura visual,
reconhecendo a fotografia enquanto agente histórica, se
compromete em observar de que forma a revista e as
imagens fotográficas que nela circulavam ajudavam a
construir e conformar cultura(s) política(s).
Palavras-chave: Cultura visual; cultura política; Estado
Novo; Política da Boa-Vizinhança

1
Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense;
Mestranda em História Política pelo PPGH - UERJ e bolsista
CAPES.
Diálogos Sobre História e Cultura 77

Abstract

Based on the analysis of the illustrated periodical Revista


da Semana (from Rio de Janeiro), this paper proposes to
investigate how the policy of strengthening the
hemispheric friendship between the United States and
Brazil during World War II, during the period of the
Estado Novo under the command of Getúlio Vargas, was
reported in its pages. Working within the field of study of
visual culture, recognizing photography as a historical
agent, it is committed to observing how the magazine and
the photographic images that circulated in it helped to
build and shape political culture(s).

Key-words: Visual culture; politic culture; Estado Novo;


Good Neigbhour Policy
Diálogos Sobre História e Cultura 78

Imagens em revista: cultura política


e visual nos tempos da Boa-
Vizinhança (1939-1945)
Carolina Machado dos Santos

Introdução

Um ponto que devemos reconhecer sobre a


prática historiográfica é que ela se encontra em constante
movimento e mudança, desde o estabelecimento da
História enquanto um campo científico. As discussões
sobre nossos métodos, temas e fontes são inerentes a
área, e estamos constantemente nos deparando com
novas abordagens e teorias. As mudanças historiográficas
ocorridas a partir da década de 1970 são muito caras a
essa discussão. Primeiro no que se refere ao ‘retorno do
político’ (RÉMOND, 1996), que demonstrou a
importância de se compreender que cultura não é um
mero reflexo, mas ponto crucial de entendimento de
ações políticas. E segundo, o que tange o estabelecimento
da imagem, mais especificamente, a fotografia, enquanto
fonte e objeto de estudo (MAUAD, 2008). O tema aqui
proposto surge do interesse de se investigar de que forma
a política da Boa Vizinhança e o alinhamento entre Brasil
e Estados Unidos estava circulando na imprensa, como se
tornavam notícias, mais precisamente, a partir das
revistas ilustradas. Afinal, como poderíamos ver a partir
Diálogos Sobre História e Cultura 79

das fotografias ali colocadas essa aproximação


hemisférica?
A pesquisa aqui apresentada possui como recorte
temporal o período de 1939-1945, que corresponde ao
desenrolar da Segunda Guerra Mundial e processo de
solidificação da solidariedade hemisférica entre Brasil e
Estados Unidos com a ‘Política da Boa-Vizinhança’, que
inovou nos métodos de controle e teve como base de sua
ação a construção de uma cultura política visual
específica. Nesse período no Brasil temos o Estado Novo
que sob o comando de Getúlio Vargas interveio e
direcionou as políticas culturais de uma forma que
conseguisse construir uma cultura política que
legitimasse o governo e suas ações.
Inscrito nos estudos sobre cultura visual, esse
trabalho propõe uma reflexão reconhecendo o papel da
imagem técnica como importante meio de produção de
sentido social, por meio da análise da prática fotográfica
como construtora de uma narrativa histórica e no uso da
fotografia pública no cumprimento de função política,
dando atenção a relação entre experiência e prática social
(MAUAD, 2008). Compreendendo que a Política da Boa-
Vizinhança inova nos métodos de controle e constrói uma
cultura política visual específica, essa pesquisa, a partir
da análise da Revista da Semana, propõe investigar como
foi expressa/noticiada em suas páginas a política de
estreitamento da amizade hemisférica entre Estados
Unidos e Brasil, além de se comprometer em investigar
de que forma a revista e as imagens que nela circulavam
ajudavam a construir e conformar cultura(s) política(s).
Alguns questionamentos irão direcionar esse
trabalho, como por exemplo: de que forma a política da
Diálogos Sobre História e Cultura 80

Boa Vizinhança inovou? A partir de quais instrumentos?


Qual foi a cultura política visual que a mesma buscou
construir? De que forma o Estado Novo direcionou as
políticas culturais? Qual era sua relação com a imprensa?
Qual cultura política buscava construir? E o
questionamento basilar é: de que forma as fotografias
fomentam e conformam determinada visão de mundo?

1. O que foi a Política da Boa Vizinhança?

A política da Boa-Vizinhança, como discute


Gerson Moura (1984) nasce com Franklin Delano
Roosevelt (eleito em 1933), onde se propunha uma
solidariedade hemisférica sob um ideal atualizado do
pan-americanismo, mas é importante salientar que essa,
como dito anteriormente, não foi a primeira tentativa de
aproximação dos Estados Unidos com as repúblicas da
América Latina. As ações referentes à América Latina
por parte dos Estados Unidos retomam a primeira metade
do século XIX, com a política da Doutrina Monroe. Essa
política se constituía de uma forma onde o objetivo era
de se colocar contra as novas tentativas de colonização
européia nas Américas, e para tal, passaram a defender a
autodeterminação dos povos americanos, invocando o
princípio “América para os americanos”.
Partindo para o inicio do século XX, sob o
governo de Theodore Roosevelt surge a política do Big
Stick, que reservava aos Estados Unidos o direito de
intervir militarmente em qualquer região da América caso
os seus interesses econômicos e políticos na área não
estivessem sendo atendidos da forma como prezavam.
Diálogos Sobre História e Cultura 81

Este autoproclamado direito de intervenção sentido pelos


Estados Unidos, com óbvias intenções imperialistas,
passou, já em fins da década de 20, como prossegue
Moura (1984), a causar objeções por parte dos latinos
americanos que, insatisfeitos, desaprovavam essa postura
estadunidense, e reclamavam pelo respeito a
autodeterminação dos povos e pela não-intervenção.
Já na década de 30, a crise que se instala por
conta da depressão econômica, se reflete nos âmbitos
políticos e sociais, colocando as organizações políticas
das democracias liberais em cheque, tornando o terreno
fértil para ascensão de governos autoritários e ultra-
nacionalistas – leia-se nazifascistas -, que se
comprometiam em instalar uma ‘nova ordem’ de
influência. A América Latina vê ascender em seu
território governos que seguiam diretrizes similares com
teor antidemocrático e autoritário. É nessa conjuntura que
surge a política da Boa-Vizinhança cunhada por
Roosevelt que, se comprometia em se afastar de ações
intervencionistas e construir, a partir de então, relações
harmoniosas e cooperativas entre Estados Unidos e a
América Latina.
A Boa Vizinhança se apresentou enquanto melhor
método para mediar as relações entres as repúblicas
americanas, com objetivo também de afastá-las da
influência e presença nazifascista. Neste sentido, ela se
constrói com vistas a estabelecer a hegemonia
estadunidense no Cone Sul do continente americano no
contexto da Segunda Guerra Mundial. Nessa conjuntura,
o Brasil tornou-se um parceiro preferencial, por diversas
razões, sendo algumas delas: a sua posição geográfica
estratégica no Cone Sul; a disponibilidade de matérias
Diálogos Sobre História e Cultura 82

primas necessárias para o esforço de guerra como a


borracha, por exemplo, e por último a influência do
nazifascismo na política durante o governo Vargas.
Tratava-se de um contexto onde, em que ao mesmo
tempo em que se buscava garantir o apoio da região à
causa liberal e contra a expansão do nazifascismo,
buscavam também garantir o potencial mercado
consumidor latino americano. A Boa Vizinhança possui
então como alguns de seus ideais a reafirmação do mito
americano e propagação do american way of life.
A partir dos filmes e comerciais, vemos o tema da
“solidariedade hemisférica” sendo retratado, com cada
país atuando naquilo que deveria ser sua função.
Possuindo como exemplos filmes produzidos por Walt
Disney, e filmes atuados por Carmem Miranda é possível
enxergar a estereotipização dos povos latinos, enquanto
selvagens, exóticos, e inferiores, e os estadunidenses
enquanto povo supremo, sendo a associação entre os dois
países uma – suposta - vantagem para ambos.
Há um esforço na construção de uma cultura
política visual que se inscrevia nas propagandas, filmes e
documentários produzidos. Essa cultura visual foi o
instrumento utilizado para realizar a aproximação das
regiões, de uma forma em que os Estados Unidos
cunharam sua autoimagem como nação ideal que ajudaria
seus vizinhos a se desenvolveram até alcançarem tal
perfeição política e cultural. Dessa forma, além de
criarem a imagem perfeita sobre si, forjaram a imagem
do Outro, exaltando suas belezas naturais, culturas
exóticas e potencial para o progresso, definindo assim o
lugar e a função de cada país latino americano nas
relações sociais estabelecidas (MAUAD, 2002). Apesar
Diálogos Sobre História e Cultura 83

de reafirmarem a ideia de “solidariedade hemisférica”, a


partir de um princípio de igualdade entre as nações, fica
claro que o que moldava a política eram os interesses
norte-americanos.
A disseminação de determinados traços da cultura
norte-americana, podendo citar como exemplo principal
os ideais do american way of life, não foi, citando Gerson
Moura (1984), espontâneo, mas planejado. É importante
salientar de forma incisiva esse ponto, pois, primeiro,
retira do imaginário essa ideia de espontaneidade no que
tange a exportação cultural norte-americana, e explicita
os propósitos imperialistas que permeavam suas
tentativas de implementação de um controle cultural
hegemônico, construído sob um alicerce de interesses
políticos e econômicos.
Segundo, colabora para a compreensão da
autonomia e agência do governo brasileiro nesse cenário,
entendendo a sua escolha pela relação e alinhamento com
o governo americano, afastando a ideia de subalternidade
política do país. E por último, permite que se entenda as
complexidades que atravessam a escolha do governo
brasileiro de se alinhar com o governo norte-americano, é
importante reconhecermos que ao optarmos por mixar
pontos da cultura americana para com a nossa, não
fazemos apenas uma escolha cultural, mas também, e
principalmente, uma escolha política (TOTA, 2000).
Diálogos Sobre História e Cultura 84

2. Imprensa, Estado Novo e a Revista da


Semana

O governo Vargas, principalmente sob a vigência


do Estado Novo, apresentou formas de intervenção e
aparelhamento político-cultural até então inéditos;
entendendo a importância de fomentar e divulgar uma
imagem do governo e de seu líder, o Estado vê na
imprensa o instrumento crucial para tal. Passando a fazer
uso e controle dos veículos de comunicação para
propaganda favorável ao regime e criação de
departamentos e repartições públicas específicas para
atuarem nessa área (GOMES, 2018).
Como afirma Gomes (2018), antes da instalação
do Estado Novo em 1937, já haviam sido criados
departamentos responsáveis para atuarem na questão de
propaganda, por exemplo o DOP (Departamento Oficial
de Propaganda) de 1931 – logo após a entrada de Vargas
na presidência pela Revolução de 30 -, que se encontrava
dentro do Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Em
1934, o DOP foi reformulado e se tornou o DPCD
(Departamento de Propaganda e Difusão Cultural), que
ficou sob o comando de Lourival Fontes. É com a
instauração do Estado Novo em 1937 que vemos o
aumento no interesse na área de propaganda, difusão e
controle cultural, dessa forma, o DPDC se transforma no
DPN (Departamento Nacional de Propaganda), que
seguia sob o comando de Fontes dentro do Ministério da
Justiça, e demostrava uma ampliação no campo de
atuação/intervenção do departamento. Sobre a
implementação do Estado Novo e sua relação com a
imprensa, Tânia de Luca discute que:
Diálogos Sobre História e Cultura 85

Foi sobretudo a partir do Estado Novo que o


projeto cultural e político do regime dispôs dos
meios necessários para sua difusão em ampla
escala. De fato, desde então houve significativo
investimento para criar e difundir uma imagem
positiva do regime, para o que era essencial
subordinar os meios de comunicação de massa
ao executivo. (LUCA, 2008, p. 170-171)

Com o interesse de aplicar políticas que


garantissem adesão e legitimidade ao regime do Estado
Novo recém instaurado, e reconhecendo o papel
protagonista dos meios de comunicação, ou seja, da
imprensa, para realização de tal tarefa, a constituição de
1937 com o Artigo 122 ‘DOS DIREITOS E
GARANTIAS INDIVIDUAIS’, postulava
direcionamentos a mesma, por exemplo:

[...] 15) todo cidadão tem o direito de


manifestar o seu pensamento, oralmente, ou por
escrito, impresso ou por imagens, mediante as
condições e nos limites prescritos em lei.
A lei pode prescrever:
a) com o fim de garantir a paz, a ordem e a
segurança pública, a censura prévia da
imprensa, do teatro, do cinematógrafo, da
radiodifusão, facultando à autoridade
competente proibir a circulação, a difusão ou a
representação;
b) medidas para impedir as manifestações
contrárias à moralidade pública e aos bons
costumes, assim como as especialmente
destinadas à proteção da infância e da
juventude;
Diálogos Sobre História e Cultura 86

c) providências destinadas à proteção do


interesse público, bem-estar do povo e
segurança do Estado.
A imprensa reger-se-á por lei especial, de
acordo com os seguintes princípios:
a) a imprensa exerce uma função de caráter
público;
b) nenhum jornal pode recusar a inserção de
comunicados do Governo, nas dimensões
taxadas em lei;
c) é assegurado a todo cidadão o direito de
fazer inserir gratuitamente nos jornais que o
informarem ou injuriarem, resposta, defesa ou
retificação;
d) é proibido o anonimato;
e) a responsabilidade se tornará efetiva por
pena de prisão contra o diretor responsável e
pena pecuniária aplicada à empresa; [...]
(CONSTITUIÇÃO 1937)

Esse artigo de lei nos apresenta alguns pontos


cruciais para entender de que forma se colocava a relação
entre o Estado Novo e a imprensa, a começar pelo fato de
estar atribuído ao regime o direito de intervir e censurar
caso interpretem que o material que está circulando
apresente algum perigo a ordem e segurança pública. Em
seguida, outro ponto importante é que a imprensa alça a
exercer uma função de caráter público, que naquele
contexto era moldado de acordo aos interesses do regime
já listados anteriormente; outros dois pontos que valem a
pena ser enfatizados é que primeiro, os jornais não
poderiam se negar a fazer circular comunicados do
governo, e segundo, havia a ameaça de prisão ao diretor
do periódico que não cumprisse com os postulados
legais.
Diálogos Sobre História e Cultura 87

É com base nesse aparato legal e direcionador


para com a imprensa, que em 27 de dezembro de 1939 é
criado o DIP – Departamento de Imprensa e Propaganda
-, que agora não respondia mais ao Ministério da Justiça,
mas era subordinado diretamente à Presidência da
República e mantinha Lourival Fontes a sua frente. O
decreto-lei nº 1.915 que criava o DIP expressava algumas
de suas atribuições, sendo elas:

- centralizar, coordenar, orientar e superintender


a propaganda nacional, interna ou externa, e
servir, permanentemente, como elemento
auxiliar de informação dos ministérios e
entidades púbicas e privadas, na parte que
interessa à propaganda nacional;
- fazer a censura do Teatro, do Cinema, de
funções recreativas e esportivas de qualquer
natureza, de rádio-difusão, da literatura social e
política, e da imprensa, quando a esta forem
cominadas as penalidades previstas por lei;
- coordenar e incentivar as relações da imprensa
com os Poderes Públicos ao sentido de maior
aproximação da mesma com fatos que se
liguem aos interesses nacionais;
- proibir a entrada no Brasil de publicações
estrangeiras nocivas aos interesses brasileiros, e
interditar, dentro do território nacional, a edição
de quaisquer publicações que ofendam ou
prejudiquem o crédito do país e suas
instituições ou a moral; (DIP, Decreto-lei n°
1.1915 de 27 de dezembro de 1939)

Como afirma Marialva Barbosa no seu livro


‘História Cultural da Imprensa: Brasil 1900-2000’, no
que se refere as funções do DIP “[...] Todos os aspectos
discricionários e de incentivo à produção de um discurso
Diálogos Sobre História e Cultura 88

único em torno dos aspectos relevantes para o Estado


estão contemplados.” (BARBOSA, 2007, p. 118). O DIP,
de acordo com a autora, atuava não apenas pela coerção –
censurando e fechando jornais ou prendendo seus
diretores – mas também, por meio de incentivos
econômicos, como corrobora Tânia de Luca (2008, p.
172), com a isenção de taxas alfandegárias na importação
de papel que era utilizado pela imprensa.

Se por um lado há periódicos que reagem ao


discurso hegemônico, sofrendo em
consequências sanções, há também aqueles que
se beneficiam das cercanias do poder. Para
conseguir o apoio financeiro irrestrito não
faltam expedientes os mais diversos, como
isentar os jornalistas de Imposto de Renda ou
subsidiar inteiramente o papel da imprensa para
os jornais que apoiam o governo. (BARBOSA,
2007, p. 111)

O que podemos compreender da discussão


realizada pelas respectivas autoras é que, primeiro, o
Estado Novo apresenta formas inéditas de intervenção e
de propaganda pró governo. O reconhecimento da
necessidade de colocar os meios de comunicação a
serviço dos interesses do regime se expressou na criação
de departamentos e repartições públicas responsáveis não
apenas pelo controle e censura, mas também focados no
desenvolvimento de ações políticas no âmbito político-
cultural que fomentassem e incentivassem a adesão de
um conjunto de normas e valores considerados
fundamentais pelo governo. E para vinculação de tal
projeto político-cultural, a imprensa foi o principal meio
utilizado.
Diálogos Sobre História e Cultura 89

Observamos que havia uma hierarquização


documental no ofício do historiador em meados do
século XX, e os jornais eram considerados como fontes
parciais e subjetivas, explicando que a imprensa era vista
como ‘uma mera caixa de ressonância de valores,
interesses e discussões ideológicas’ (LUCA, 2008, p.
116). E quando os jornais passaram a ser utilizados nas
pesquisas, em princípio, eram como meras fontes
confirmadoras de análises, ou seja, procuravam em suas
páginas as informações específicas que corroboram com
suas respectivas pesquisas, sem se preocupar em realizar
uma análise mais aprofundada sobre o veículo de
informação. Reconhecendo a imprensa enquanto um
instrumento de manipulação de interesse e de intervenção
na vida social, entendemos que estudar jornais e
periódicos é uma excelente maneira de se compreender
dada sociedade em determinado momento histórico
(FRANZ, 2018).
Para essa pesquisa foi escolhida a revista ilustrada
Revista da Semana, e a escolha desse tipo de fonte se dá
pelo entendimento de dois pontos importantes, o primeiro
é que foram elas, as revistas ilustradas, os principais
meios de divulgação de imagens fotográficas, atuando na
difusão de um padrão de sociabilidade burguês,
naturalizando as representações deste determinado grupo
social e a sua forma de ver o mundo como a correta e
fidedigna, e, por considerar que as imagens produzidas
pela imprensa ‘[...] sejam suporte de uma de uma
memória coletiva que registra, retém e projeta no tempo
histórico uma versão dos acontecimentos’ (MAUAD,
2008, p.25). E segundo é que, a presença de imagens foi
uma das estratégias utilizadas para atrair um público mais
Diálogos Sobre História e Cultura 90

diversificado, reconhecendo que no contexto a maior


parte da sociedade brasileira era analfabeta. Dessa forma,
é na imagem que a imprensa encontra uma forma de
transmitir a mensagem desejada (BARBOSA, 2007, p.
32).
A Revista da Semana foi uma revista ilustrada do
Rio de Janeiro que circulou de 1900 a 1959, e foi
fundada por Álvaro de Tefé. No levantamento histórico
de criação dessa revista, deparei-me com um conflito de
informações sobre quem era o proprietário da Revista. A
exemplificar, uma bibliografia afirma que a Revista da
Semana nasce como um encarte do Jornal do Brasil e que
em 1915 deixa de pertencer ao mesmo, sendo vendido.
Outra bibliografia, afirma que o Jornal do Brasil adquiriu
o controle da Revista da Semana, abrindo espaço para
inferir que a mesma pertencia a outra pessoa/grupo2. Uma
terceira discussão aponta que a revista pertencia ao Jornal
do Brasil e em 1915 foi vendida para a Companhia
Editorial Americana, e uma quarta discute que a revista
era um suplemento do Jornal do Brasil e a proprietária
era a Companhia Editorial Americana.
Uma quinta afirma que a revista era editada pela
Companhia Editorial Americana e logo após sua
fundação foi comprada pelo Jornal do Brasil que passou a
encartá-la como suplemento literário, e em 1915 foi
vendida a Carlos Malheiro Dias, Aureliano Machado e
Artur Brandão. E por último, há um texto que afirma que
a Revista foi adquirida pelo Jornal do Brasil após sua
criação, e que em 1915 foi transferida novamente, agora

2
BARBOSA, Marialva. História cultural da imprensa: Brasil, 1900-
2000. Rio de Janeiro. Mauad X, 2007. P. 34
Diálogos Sobre História e Cultura 91

para Carlos Malheiro Dias, Aureliano Machado e Artur


Brandão.
Apesar dessa confusão bibliográfica sobre seu
histórico inicial, alguns pontos são coincidentes em toda
bibliografia, a começar por: a utilização de reportagens
fotográficas foi um elemento inovador na época e desde
seu lançamento a revista utilizava métodos fotográficos
pioneiros, como o fotozinco e a fotogravura e é apontada
‘unanimemente como marca do surto – que se
prolongaria por décadas – das chamadas revistas
ilustradas ou de variedades’ (LUCA, 2008, p.121). Sobre
seu editorial, o periódico passa por ‘significativas
mudanças nos projetos editoriais ao longo do tempo’
(LUCA, 2021, p.8), seu público alvo inicialmente era
principalmente os homens, mas em 1915, vemos uma
mudança no seu editorial, e a partir de então o público
alvo da revista se torna o feminino. Importante salientar
que apesar da mudança em relação ao gênero do público
alvo, a Revista tem como foco as classes mais abastadas
da sociedade.
Ainda em sua apresentação a Revista se coloca
enquanto um periódico de variedades, ou seja, possuiria
conteúdo diversificado, e isso se deve a tentativa de
conquistar leitores; outro ponto que chama a atenção é ao
fato de se colocar enquanto um espaço que não tratará de
política, porém essa afirmação não irá se conferir na
prática. Como dito anteriormente, a Revista da Semana
circulou de 1900 a 1959 e todas suas edições foram
digitalizadas e estão disponíveis online no site da
Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional. Os
periódicos analisados para essa pesquisa estavam em
boas condições, sendo possível compreender a imagem e
Diálogos Sobre História e Cultura 92

ler os textos expostos; poucos foram os casos onde isso


não era possível.
No recorte aqui proposto que se refere aos anos de
1939 a 1945, a Revista da Semana publicou um total de
369 periódicos, e na realização da pesquisa foram
encontrados um total de 219 reportagens que
correspondiam ao tema investigado. Fica impossibilitada
a exposição de todos os recortes encontrados, dessa
forma, para construção dessa discussão foram
selecionadas as reportagens que, dentro da minha
concepção, melhor se encaixam para exemplificar as
propostas aqui colocadas. Entendendo que a fotografia
não apenas informa, mas também conforma determinada
visão de mundo, a seguir, serão expostas algumas
amostras encontradas sobre a retratação da Política da
Boa-Vizinhança em suas páginas, dando ênfase ao seu
âmbito cultural, político e visual, que serão associadas a
bibliografia especializada, já previamente apresentada
aqui, com o intuito de investigar qual cultura política e
visual a Revista estava ajudando a construir, fomentar e
divulgar.
Na análise da revista foi possível enxergar que,
nos anos anteriores do alinhamento do Brasil aos Estados
Unidos e ao bloco dos Aliados e sua entrada na guerra, a
cobertura do conflito bélico se dava de forma que
podemos considerar focado no factual, ou seja, apenas
apresentava os fatos do conflito bélico em poucas
páginas, tendo inclusive criado um tópico na revista
chamado “Páginas da Guerra”. Além disso, diversas eram
as reportagens sobre os avanços da Alemanha nazista e
da Itália fascista, em alguns trechos foi possível ver a
exaltação da retórica dos grandes líderes, citando Hitler,
Diálogos Sobre História e Cultura 93

Vargas e Churchil; com o alinhamento do Brasil com o


bloco dos Aliados, a cobertura da Revista sobre o conflito
se aprofundou, mostrando mais sobre as as frentes aliadas
no conflito, os esforços de guerra brasileiro e condenando
as ações do bloco do Eixo. Nas figuras 1 e 2 que retratam
a Conferência de Neutralidade que ocorreu no Rio de
Janeiro, onde temos um exemplo da postura ‘neutra e
equidistante’ que o governo brasileiro primeiro adotou.

Figura 1. ‘Para manter inviolável a neutralidade americana’.


Fonte: Revista da Semana, periódico nº 3, 20 de janeiro de 1940, p.
23. Disponível em:
<http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/revista-semana/02590
9>
Diálogos Sobre História e Cultura 94

Imagem 2. ‘FLagrante da Conferência de Neutralidade’.


Fonte: Revista Semana, periódico nº 4, 27 de janeiro de 1940, p. 26.
Disponível em:
<http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/revista-semana/02590
9>

Com o avanço da política da Boa Vizinhança e


total alinhamento entre Brasil e Estados Unidos, as
matérias sobre a guerra começaram a focar nos esforços
de guerra e união entre as nações americanas contra a
ameaça do Eixo, com matérias que exaltavam nossa
Diálogos Sobre História e Cultura 95

participação, o semanário passou a cobrir com mais


afinco o conflito bélico, a atuação dos nossos
combatentes, desde seus treinos em bases estadunidenses,
até o seu retorno ao Brasil ao fim da guerra. Nas
amostras a seguir, imagens 3 e 4 é possível ver a
cobertura que a Revista deu a III Conferência Consultiva
das Repúblicas Americanas, que teve presença dos
chanceleres americanos que ocorreu no Rio de Janeiro
em 1942, onde ficou decidido o alinhamento brasileiro
com o governo americano, e o rompimento diplomático
com os países do Eixo.

Imagem 3. ‘No Rio os chanceleres americanos’. Fonte: Revista da


Semana, periódico nº 3, 17 de janeiro de 1942, p. 24-25. Disponível
em:
<http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/revista-semana/02590
9>
Diálogos Sobre História e Cultura 96

Imagem 4. ‘O rompimento diplomático do Brasil com o Reich, Japão


e Itália’.
Fonte: Revista de Semana, periódico nº 6, 7 de fevereiro de 1942, p.
28. Disponível em:
<http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/revista-semana/02590
9>

Imagem 5. ‘O Brasil entra na guerra ao lado das Nações Unidas’.


Fonte: Revista de Semana, periódico nº 1, 2 de janeiro de 1943, p.
24. Disponível em:
<http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/revista-semana/02590
9>
Diálogos Sobre História e Cultura 97

Imagem 6. ‘De volta!’. Fonte: Revista da Semana, periódico nº 30,


28 de julho de 1945, p. 3-6. Disponível em:
<http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/revista-semana/02590
9>)
Diálogos Sobre História e Cultura 98

As imagens 4, 5 e 6 aqui expostas expressam três


momentos políticos cruciais para a nação brasileira no
período do Estado Novo. A imagem 4 é uma fotografia
que capta o momento que rompemos oficialmente com os
países do Eixo. A imagem 5 é uma montagem de três
fotografias: a primeira (do lado esquerdo) temos o
Presidente Getúlio Vargas em reunião, a do meio mostra
o atentado que sofreu os nossos navios, e a terceira a
multidão que se reuniu para se manifestar contra os
ataques do Eixo. E por último, a Figura 6, são uma
sequência de fotografias que cobrem o retorno dos
pracinhas da II Guerra Mundial; nessas fotografias vemos
além dos pracinhas, o Presidente Getúlio com
representantes militares e civis, e também vemos as
multidões que se reuniram para dar as boas-vindas para
os recém chegados.
Alguns aspectos dessas fotografias precisam ser
apontados, a começar que em todas elas temos a presença
do chefe do governo. Nas duas primeiras figuras com
maior destaque, centralizado, presidindo uma reunião em
que as Repúblicas Americanas decidiram-se por romper
diplomaticamente com os países do Eixo, e o Brasil
então, se alinharia completamente com os Estados
Unidos e a causa aliada. E na terceira fotografia, Vargas
aparece acompanhado de personalidades militares e civis,
em um momento de comemoração e consagração da
finalização da participação do Brasil no conflito bélico.
Além disso, é interesse perceber que, apesar de ser um
militar e ter subido ao poder na Revolução de 30 com
apoio militar, Vargas priorizava o uso de roupas civis e
não fardas e uniformes militares (WILLIAMS, 2001).
Diálogos Sobre História e Cultura 99

Outro aspecto importante a ser citado é a presença


das multidões (CAPELATO, 2008). Na Figura 5, a
multidão se apresenta enquanto corpo unido sob um
objetivo comum: manifestar o seu desagrado frente ao
ataque do Eixo contra os navios brasileiros; já na Figura
6, a multidão, também se apresenta enquanto corpo
unido, porém em modo de celebração e manifestação de
felicidade para com o retorno dos pracinhas. Além disso,
há também na Figura 6 a valorização das Forças
Armadas, sempre expostas como os corajosos que
lutaram para defender o seu país e contra regimes
autoritários europeus; há diversos momentos captados
pela câmera da chegada dos pracinhas e do seu contato
com a multidão ali presente. Na figura 3 a participação da
multidão no evento da III Conferência foi marcante; as
pessoas se dirigiam aos aeroportos para ver a chegada
dos chanceleres, ficavam do lado de fora do Palácio
Tiradentes e do Itamaraty, e celebravam as
personalidades políticas ali presentes.
Essas fotografias veiculadas na Revista da
Semana expõem a priorização e centralidade da figura de
Getúlio Vargas e a presença cívico-popular nos eventos
políticos da época. A forma e o momento como são
fotografadas, pressupõem uma unidade e consonância
dos desejos e sentimentos entre a população e o Estado
Novo de Getúlio, além de conformar a ideia de líder
onipresente que guia as massas nessa nova era da nação
brasileira.
Como já dito, um ponto importante da política da
Boa Vizinhança foi o uso do cinema enquanto
instrumento de aproximação entre Brasil e Estados
Unidos (VALIM, 2017), e com isso, ocorreram duas
Diálogos Sobre História e Cultura 100

missões da boa vontade muito importantes no período: a


de Walt Disney, Embaixador da Boa Vizinhança, e do
diretor Orson Welles, que veio ao país com o propósito
de realizar um filme. A Revista da Semana exibiu em
suas páginas reportagens sobre a presença ilustre de
ambos em solo nacional.

Imagem 7. ‘Disney aclamado pelos cariocas’. Fonte: Revista da


Semana, periódico nº 34, 19 de agosto de 1941, p. 18-19. Disponível
em:
<http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/revista-semana/02590
9>
Diálogos Sobre História e Cultura 101

Imagem 8. ‘A Bahia em Hollywood’.


Fonte: Revista da Semana, periódico nº 4, 27 de janeiro de 1945, p.
37-41. Disponível em: <http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-
digital/revista-semana/025909>
Diálogos Sobre História e Cultura 102

Imagem 9. ‘Orson Welles: Sua Viagem ao Norte do Brasil’.


Fonte: Revista da Semana, periódico nº 13, 28 de março de 1942, p.
22-23. Disponível em: <http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-
digital/revista-semana/025909>

Imagem 10. ‘Orson Welles gravando It’s All True’.


Fonte: Revista da Semana, periódico nº 24, 13 de junho de 1942, p.
18. Disponível em:
<http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/revista-semana/02590
9>
Diálogos Sobre História e Cultura 103

Imagem 11. ‘a morte trágica do Jangadeiro’.


Fonte: Revista de Semana, periódico nº 22, 30 de maio de 1942, p.
26. Disponível em:
<http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/revista-semana/02590
9>

Como podemos ver pela imagem 7, a chegada de


Walt Disney foi exposta em páginas que ficaram
completamente tomadas por fotografias. Na página 18 a
Revista expôs três quadros com fotografias do filme
‘Fantasia’ que o diretor veio divulgar em turnê enquanto
Embaixador da Política da Boa Vizinhança. Na página 19
podemos ver fotografias tiradas na chegada de Disney ao
país e ao seu redor a população acompanhava esse
Diálogos Sobre História e Cultura 104

momento; a partir dessas imagens é possível perceber a


comoção geral e animação pela chegada do diretor no
Brasil.
Em 1941, Disney assina contratos com o governo
americano e passa então a produzir filmes que ajudem no
esforço de guerra e diplomacia norte-americana. Isso se
deu em um momento onde, o produtor se encontrava com
grandes dívidas, após o fracasso de Fantasia, seu estúdio
passava por uma greve realizada pelos funcionários, e
então para continuar funcionando, ele aceita se tornar
uma das faces da política da boa vontade. Vem em turnê
para a América Latina em 1941 com o objetivo de colher
informações e material sobre nossas culturas para auxiliar
na produção de animações que abrangessem esses temas
(FRANZ, 2018). Sua chegada no Brasil foi muito
celebrada, e aqui apresentou seu mais novo filme
Fantasia, um grande sucesso no país, diferentemente do
que ocorrera na sua terra natal. Após sua passagem pelo
país, o desenhista criou o personagem Zé Carioca, que
vimos nos filmes ‘Alô, amigos’ (1942) e ‘Você já foi a
Bahia?’ (1944). A imagem 8 expõe imagens do filme
‘Você já foi a Bahia?’, onde podemos ver Alzirinha
Camargo e os personagens criados por Disney, dando
ênfase ao Zé Carioca, criado pelo diretor para representar
o Brasil. As fotografias demonstram aspectos das
filmagens do filme, expondo a interação entre a Alzirinha
com os personagens animados; a partir dela conseguimos
ver detalhes do cenário, dos figurinos e dos desenhos.
A imagem 9 se refere ao diretor Orson Welles. Ele
veio ao Brasil em 1942 com o objetivo de fazer um filme
sobre dois temas: o primeiro, o carnaval carioca e a
história do samba, e o segundo sobre os Jangadeiros da
Diálogos Sobre História e Cultura 105

São Pedro. A revista fez uma extensa cobertura da


presença de Welles no Brasil, sempre exaltando a figura
do diretor, admirando sua inteligência artística e criativa.
Nesse recorte (imagem 9), vemos imagens de
Welles na praia de Iracema na companhia de Jacaré,
Jeronimo, Manuel e Tatá, realizaram uma viagem de
jangada partindo de Iracema, Fortaleza com destino à
capital da República para falar com o Presidente Getúlio
Vargas e poderem então, pessoalmente, reivindicar os
direitos trabalhistas da categoria. Acontece que durante
as filmagens do que seria a chegada dos jangadeiros no
Rio de Janeiro, a jangada onde se encontravam sofre um
baque das ondas e Jacaré morre afogado no mar da Barra
da Tijuca (ABREU, 2007). A insistência de Welles em
reproduzir imagens mais honestas e reais sobre o
carnaval no Brasil e a história dos Jangadeiros, que iam
de encontro com os propósitos do Office de criar um
“país para americano ver’, somada com a tragédia que
acometeu Jacaré (imagem 11), fizeram com que o projeto
‘It’s All True’ não saísse da gaveta e nunca fosse lançado
(imagem 10).
Outra figura importante nesse contexto foi nossa
Pequena Notável: Carmem Miranda, embaixadora da
política da Boa Vizinhança. Carmen Miranda e o Bando
da Lua começaram a obter sucesso nos Estados Unidos
no ano de 1939, participando de shows de auditório e se
apresentando também na Broadway. Em meados de 1940,
ela retorna ao Brasil e a cobertura feita pela Revista
inspira admiração pela cantora, alegando com orgulho
que ela representava o país na terra do Tio Sam, sendo de
fato considerada a Embaixadora da Política da Boa
Vizinhança. Na imagem 12 abaixo, podemos ver fotos de
Diálogos Sobre História e Cultura 106

Carmem interagindo com as multidões que acenavam e


gritavam para ela. A partir dessa imagem é possível
visualizar o sucesso e reconhecimento que a Pequena
Notável portava naquele momento.

Imagem 12. ‘Uma artista querida do povo’. Fonte: Revista da


Semana, periódico nº 29, 20 de julho de 1940, p. 21. Disponível em:
<http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/revista-semana/02590
9>
Diálogos Sobre História e Cultura 107

Imagem 13. ‘A nova Carmen’.


Fonte: Revista da Semana, periódico nº 20, 22 de maio de 1945, p.
28. Disponível em:
<http://hemerotecadigital.bn.br/acervo-digital/revista-semana/02590
9>

Com o passar dos anos, as matérias e comentários


sobre Carmen não se mantiveram tão positivos,
despendendo críticas não só aos filmes que ela atuaria,
mas a personalidade em si, justificando que Carmen se
transformara num estereótipo ofensivo da mulher latina,
não representando a cultura brasileira com todos aqueles
trajes e trejeitos exagerados e caricatos. Críticas
alegavam que a cantora se perdera da essência brasileira
e estava voltando americanizada.
Diálogos Sobre História e Cultura 108

A imagem de Carmem Miranda era muito


vinculada, desde fotografias sobre seus filmes, eventos e
shows, até momentos de sua intimidade. O tratamento da
mídia dado a Carmem quando de sua ascensão pode ser
visto circunscrito nas páginas, dos elogios às críticas.
Sobre a figura 13 retiramos o trecho abaixo que expressa
muitas das críticas que direcionavam a Carmem Miranda:

““A nova Carmen”

O maior elemento da atração de Carmen


Miranda, para as plateias americanas do norte, é
justamente aquele que mais a tem prejudicado
junto ao nosso publico: sua maneira de vestir. O
que para nós constitui um motivo de censura -
aquela sua exuberante roupagem, aquela
preocupação de ficar mais alta, aqueles ‘carros
alegóricos’ a cabeça – é justamente o que maior
soma aplausos provoca nos cinemas dos
Estados Unidos, da Inglaterra e, com certeza,
em outros lugares.
Sempre que nos anunciam ‘uma nova Carmen’
no filme seguinte, vamos assisti-lo com a
esperança de ser realmente nova a atriz que nos
mostram, senão na idade – o que seria absurdo
admitir – ao menos no modo por que se
apresenta ou no papel que vai representar. Mas
as esperanças vão se dissipando a medida que o
filme deslisa no ‘ecran’. E quando os últimos
metros do celuloide se projetaram, estamos com
os últimos remanescentes de esperança diluídos
também.
Ai está porque estas novas poses de Carmen
são recebidas com a nossa mais visível
simpatia. A nossa e a do publico. Ninguém vai
exigir da sempre lembrada interprete do
‘Taboleiro da Baiana’ que apareça nos filmes
Diálogos Sobre História e Cultura 109

vestindo longas túnicas, ‘bancando’ a vestal e


moderada nos gestos, nas atitudes, em tudo,
enfim. Que se vista a vontade, que dê trabalho
as mãos e as movimente a grande; mas que
também apareça na tela servindo de modelo,
vestindo uma ‘toilette’ capaz de ser copiada por
uma elegante carioca.” (Fonte: Revista da
Semana, periódico nº 20, 22 de maio de 1945,
p. 28)

Sobre as missões de “boa vontade” de Orson


Welles e Walt Disney, o periódico semanal não deixou a
desejar e disponibilizou um material minucioso sobre
essas presenças ilustres no país. Reuniões, eventos,
estreias, comemorações, homenagens, encontros oficiais,
toda a agenda de Welles e Disney foi exposta nas páginas
da Revistas, seguidas de muitas fotografias que
flagravam tais momentos. Nossa pequena notável não
ficou de fora dos olhos do periódico. A imagem de
Carmem Miranda era muito vinculada, desde fotografias
sobre seus filmes, eventos e shows, até momentos de sua
intimidade. O tratamento da mídia dado a Carmem
quando de sua ascensão pode ser visto circunscrito nas
páginas, dos elogios às críticas
Por fim, apesar de na sua primeira edição ter
declarado que em suas páginas não teria espaço para
política, como dito anteriormente, esse posicionamento
não se conferiu por muito tempo. A Revista fez uma
grande cobertura sobre as Conferências que tratavam de
temas referentes à Segunda Guerra Mundial, seja a que
discutia a questão da neutralidade, seja a que decretou o
alinhamento entre Brasil e Estados Unidos, e nosso
rompimento diplomático com o Eixo.
Diálogos Sobre História e Cultura 110

Considerações finais

A partir dessas amostras podemos assimilar


alguns dos pontos que levantamos na discussão, a
começar por: a Revista da Semana fazia um extenso uso
de fotografias. Em vários casos, as páginas ficam
completamente tomadas de fotografias, com poucos
textos, sendo eles em alguns casos, uma breve legenda
sobre do que se trata a foto, quem está presente nela e
etc. Apesar de na sua primeira edição ter declarado que
em suas páginas não teria espaço para política, como dito
anteriormente, esse posicionamento não se conferiu por
muito tempo. A Revista fez uma grande cobertura sobre
as Conferências que tratavam de temas referentes a
Segunda Guerra Mundial, seja a que discutia a questão da
neutralidade, seja a que decretou o alinhamento entre
Brasil e Estados Unidos, e nosso rompimento
diplomático com o Eixo.
Com as discussões apresentadas podemos
compreender que, o governo de Vargas fez um
investimento consciente no campo político cultural,
entendendo a importância de se fomentar uma cultura
política que legitimasse os posicionamentos e os
direcionamentos realizados. Outra questão crucial que
pode ser refletida com essa discussão é a importância de
estudar cultura e a forma como essa influi na política, e
vice-versa. O governo Vargas, principalmente sob a
vigência do Estado Novo, apresentou formas de
intervenção e aparelhamento político-cultural até então
inéditos; entendendo a importância de fomentar e
divulgar uma imagem do governo e de seu líder, o Estado
vê na imprensa o instrumento crucial para tal.
Diálogos Sobre História e Cultura 111

Ao final, foi possível realizar a reflexão


pretendida de analisar o período escolhido sob as lentes
da história da imagem. É possível então compreender de
que forma as ações do Estado Novo modularam a
imprensa, e com as imagens que circulavam na Revista,
também tornou possível entender como a fotografia
pública, com sua função política, conforma uma visão de
mundo.
Diálogos Sobre História e Cultura 112

Referências

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Diálogos Sobre História e Cultura 115

Escultura contemporânea em
panorama: episódios e rupturas na
trajetória da arte tridimensional no
século 20
Contemporary sculpture in panorama:
episodes and ruptures in the trajectory
of 20th century tridimensional art
Renan Battisti Archer1

Resumo

Este texto é resultado de um exercício de reflexão e de


pesquisa bibliográfica, que buscou explorar as conexões
entre episódios da história da arte contemporânea, com
foco nas transformações no pensamento tridimensional
de artistas. Buscamos expoentes, identificamos
tendências e rupturas na atuação de artistas globais entre
diferentes contextos para entender o que se resume sob o
termo “escultura contemporânea”. Entendendo que este
amplo tema já ocupou diferentes historiadores que não
esgotaram possibilidades de pesquisa, o que se pretende é
encontrar alguns pontos de partida para as diversas
bifurcações que se produziram tamanha profusão de
1
Mestre em História pela Universidade Federal do Paraná e
graduado em Artes Visuais pela mesma instituição. Pesquisa a
história, crítica e teoria da arte, com interesse e experiência em
projetos artísticos de arte pública. É também curador e crítico.
Diálogos Sobre História e Cultura 116

expressões e falta de paradigmas. Verificamos algumas


balizas pelas quais é possível delinear caminhos de
entendimento. A seguir, exploramos o trabalho de
diferentes fontes bibliográficas, bem como conduzimos
leituras de projetos artísticos e a atuação de instituições
públicas e privadas. Antes de mais nada, existe aqui uma
exploração e análise de pesquisas, atravessadas de
conclusões particulares, que podem contribuir para um
olhar mais detido sobre o fértil campo da produção
tridimensional em artes visuais. O texto foi adaptado de
outro produzido inicialmente, que integrou a dissertação
de mestrado do autor (ARCHER, 2023).
Palavras-chave: Escultura contemporânea; arte
contemporânea; arte tridimensional; arte pública.

Abstract

This text is the result of an exercise of thought and


bibliographical research, which sought to explore the
connections between episodes contemporary art history,
focusing on transformations in the three-dimensional
thinking of artists. We looked for exponents, identify
trends and ruptures in the work of artists among different
contexts to understand what can be understood under the
term “contemporary sculpture”. Understanding that this
broad topic has already occupied different historians
without exhausting research possibilities, the aim is
precisely to find some starting points for the various
bifurcations considered when we analyze such a
profusion of expressions and lack of paradigms. We
verify that it is possible to identify some landmarks and
Diálogos Sobre História e Cultura 117

outline paths of understanding. Next, we explore the


work of different bibliographic sources, as well as
conducting readings of artistic projects and the influence
of institutions. The aim is not to find answers, much less
to summarize what is possible to understand from the
study of this topic. First of all, there is an exploration and
analysis of research here, interspersed with particular
conclusions, which can contribute to a closer look at the
fertile field of three-dimensional production in visual
arts. The text was adapted from another research, which
was part of the author's master's dissertation (ARCHER,
2023).
Keywords: Contemporary sculpture; contemporary art;
tridimensional art; public art.
Diálogos Sobre História e Cultura 118

Escultura contemporânea em
panorama: episódios e rupturas na
trajetória da arte tridimensional no
século 20
Renan Battisti Archer

O campo fértil da experimentação tridimensional


em artes desembocou em diferentes formas de atuação no
último século, alimentando e sendo alimentado por
referências para além da linguagem tradicional da
escultura, entre instalação, happening, land art,
performance art, entre outros. Não só isso, possibilitou
com que certas práticas se reinventassem, como é visto a
partir da liberdade da produção que começou a ocupar o
espaço urbano a partir da década de 1960. Atualmente,
pode parecer redundante discutir a prática da escultura
sob uma perspectiva contemporânea, sobretudo porque a
pluralidade de manifestações artísticas não se aglutinam
nos debates sobre uma linguagem. Na verdade, procurar
definir vertentes, encontrar movimentos,
responsabilidades ou rótulos que identificam atitudes são
posturas desnecessárias - para não dizer ultrapassadas -
quando se considera o atual contexto cultural global.
Quando se trata da discussão sobre escultura
contemporânea, não há contornos definidos sobre sua
determinação e protagonismo. Os diferentes autores
estabelecem diferentes inícios e fronteiras, de acordo
com seu contexto e tempo. De qualquer forma, surgem
similaridades quando se analisam os trabalhos de
pesquisadores célebres do tema, como Michael Archer
Diálogos Sobre História e Cultura 119

(2012) Miwon Kwon (2002), Alberto Tassinari (2001),


Stéphane Huchet (2012) e Brian O’Doherty (2002). Para
se estender na análise do porquê esses autores
selecionarem uns e outros artistas, seria necessário
explorar o debate na historiografia da arte, o que não é o
intuito. De partida, basta saber que existe uma tendência
a estabelecer certas balizas históricas conectadas
diretamente aos movimentos artísticos e sua recepção
crítica, como é o caso do pioneirismo tipicamente
atribuído ao minimalismo estado-unidense. É certa a
relevância do movimento, mas procuramos também ir
além. Os autores consultados observam algumas
características compartilhadas numa série de trabalhos
bidimensionais e tridimensionais para a construção,
objetiva ou subjetiva, de espaços particulares imagéticos
ou volumétricos. Mais importante que isso, observam um
tipo de novidade, a partir da segunda metade do século
20, na articulação do ambiente imediato em que esses
trabalhos são colocados ou construídos. Vale reparar que
esse ineditismo é percebido em relação às características
gerais da produção artística do período anterior, que
seriam as pinturas e esculturas do século 19 e início do
século 20, num início de desvencilhamento de tradições
acadêmicas.
O recorte que os autores realizam varia entre
movimentos e artistas selecionados para a análise e que
teriam capitaneado algum ineditismo. Não existem
limites definidos para categorizar2, apenas semelhanças.
2
Tassinari, por exemplo, em seu “Espaço Moderno”, propõe uma
relação direta entre artistas modernismos e contemporâneos a partir
de suas considerações e manipulação sobre o espaço. Para o autor, o
ato de tomar o mundo e o cotidiano como referência, o que é uma
realidade para a escultura contemporânea, é herdeira diretamente da
Diálogos Sobre História e Cultura 120

Archer (2012) e Kwon (2002), apontam principalmente


para o minimalismo estado-unidense e seus artistas
(Robert Morris, Carl Andre, Donald Judd, Sol LeWitt,
Dan Flavin e outros) como os pioneiros de uma nova
percepção em relação ao espaço. A principal
característica que une esses artistas é como realizam, em
seus trabalhos, uma consideração fenomenológica sobre
o ambiente, fazendo com que seus trabalhos se tornem
pontos de interação com o que está ao redor, e não
somente um corpo físico. Logo, é possível que
espectadores se tornem ativos, indo além da visualização.
Para Archer (2012, p. 11), há uma preocupação
generalizada das vanguardas artísticas, sobretudo a partir
do dadaísmo, em abrir-se para o mundo e suas dinâmicas
cotidianas, indo além das teorias e paradigmas artísticos.
Para o autor, o minimalismo seria o desfecho
tridimensional dessa vontade. Junto a isso, também existe
a utilização de materiais e tintas industriais, que se
distanciam dos materiais duráveis da tradição escultórica,
como o bronze, a pedra e o gesso. Esse gosto por esses
materiais não é somente conceitual, mas também estético,
já que produziam a impressão que tais trabalhos
chegavam a ir além da intervenção humana, reduzindo o
reconhecimento da intervenção de artistas. Nenhuma
escultura minimalista possui um ponto focal, uma
narrativa que precisa ser identificada em seus elementos,
e convidam para a interação corpórea – ao menos, em
teoria.
vontade de “destruir uma espacialidade” da arte moderna quando se
volta à tradição acadêmica. Neste sentido, dado que a desconstrução
de paradigmas é o que movimenta esse campo inicialmente, é
impossível simplesmente traçar barreiras definidas.
Diálogos Sobre História e Cultura 121

Por sua vez, Miwon Kwon chama atenção para


um outro aspecto do minimalismo que compreende uma
nova postura em relação ao espaço, que é a dependência
de espaços específicos em situação de site-specific, ou
seja, de local específico. É o caso de esculturas que
interagem com seus locais de instalação de forma tão
dependente que emprestam características físicas e
ambientais ao ponto dessas serem determinantes para o
próprio trabalho. O minimalismo articulou esse aspecto
de forma relativamente tímida quando comparado com a
produção de “Double Negative” (1969), de Michael
Heizer, que envolveu a retirada de toneladas de terra para
criação de um enorme buraco em um cânion, e, portanto,
se concretizou em algo impossível de ser reproduzido
com exatidão em outro lugar. Na análise de Kwon (2002)
sobre o que produz algum tipo de fruição especial num
determinado local, essa relação de especificidade não
está apenas no espaço e suas características físicas, mas
também da colocação dos trabalhos em tal espaço e o
resultado dessa ação, envolvendo espectador e espaço
numa trama contínua. Entendendo tais características de
interação ambiental como parte da lógica artística, a arte
pública, que em sua maioria são site-specific (FREITAS,
2005), ganha força na interação com o pensamento
produtivo contemporâneo - mesmo que a cidade tenha
surgido na narrativa de Kwon como uma resposta às
galerias de arte.
Há, no site-specific, como resultado de novas
considerações sobre a especialidade na arte que surgem
nesse período, uma percepção não apenas sobre o objeto
artístico em relação ao seu ambiente, mas também na
atuação de espectadores. O caso de “Tilted Arc” (1981)
Diálogos Sobre História e Cultura 122

de Richard Serra é exemplar em vários sentidos. A


escultura, removida em 1989 da General Plaza, em Nova
Iorque, poderia ter sido transportada e instalada em novo
local, contemplada pelas mesmas pessoas, e se tornaria
um outro trabalho, dado que as condições do espaço
seriam diferentes da original. Também vale o seguinte:
mantém-se o espaço, a escultura e troca-se o observador,
então mudam-se as percepções e experiências sensoriais
obtidas na relação entre corpo, obra e espaço. Tudo isso,
claro, pode ser aferido considerando que o artista Richard
Serra produziu a escultura exatamente para aquele
espaço. Não à toa, após a remoção em 1989, o artista
teria recusado a proposta de instalar a escultura em outro
espaço, argumentando que não teria sido esse o
propósito.
Por definição, o conteúdo dos trabalhos site-
specific envolve o “comprimento, profundidade, altura,
textura e formato de paredes e salas; escala e proporções
de praças, prédios e parques; condições existentes de
iluminação, ventilação, padrões de circulação;
topografias distintas e assim por diante” (KWON, 2002,
p. 11), a depender das intenções de quem produz. Esse
entrelaçamento é capaz de produzir sentidos únicos
completamente conectados ao contexto, às condições
específicas onde se encontra o trabalho de arte. Para a
autora, aí está uma qualidade essencial dessas esculturas
que as diferenciam dos exemplares da arte moderna:

Se a escultura modernista absorveu seu


pedestal/base para romper a conexão ou
expressar indiferença pelo site, tornando-se
mais autônoma e autorreferencial, portanto
transportável, sem local e nomádica, então os
Diálogos Sobre História e Cultura 123

trabalhos site-specific, como aparecem pela


primeira vez com o minimalismo no fim dos
anos 1960 e começo dos 1970, forçaram uma
reversão dramática desse paradigma modernista
(KWON, 2002, p. 11, tradução nossa).

Essas considerações são relevantes para entender


como se dão, nas análises de Kwon, as transformações
em esculturas públicas. Para esses trabalhos, as
considerações tipicamente são outras, envolvendo não só
uma gama diferenciada de materiais e escala, mas
também na lógica de financiamento e mecenato. A autora
torna evidente como o relacionamento entre órgãos
públicos e artistas foi essencial para a realização de
trabalhos em espaços públicos, não só na perspectiva
financeira, mas também pela movimentação institucional
e da crítica de arte que se produziu ao redor dessas
manifestações. Logo, analisando os artistas e projetos
contemplados em alguns desses programas públicos, a
autora identifica tendências estéticas. Durante a década
1960, por exemplo, programas como o Art-in-
architecture Program e o Art-in-Public-Places Program
– ambos de natureza governamental – selecionavam
projetos que seguiam uma lógica autorreferencial, sem
conexão com seus espaços. Parecia ser possível instalá-
los em qualquer lugar. Alexander Calder e Henry Moore,
por exemplo, foram artistas que passaram pelo programa.
As mudanças são observadas a partir de 1974, quando a
National Endowment for the Arts, que organizava o
programa Art-in-Public-Places Program3, teria incluído
3
A National Endowment for the Arts é uma agência independente
nos Estados Unidos, criada em 1965, atualmente responsável por
patrocinar diferentes programas que envolvem o financiamento de
Diálogos Sobre História e Cultura 124

em suas diretrizes que os artistas precisavam incorporar o


espaço imediato em torno dos seus projetos. Segundo
Kwon (2002), o consenso parecia determinar que isso
tornaria os trabalhos “mais acessíveis e socialmente
responsáveis” (p. 66, tradução nossa). Contudo, isso
parece ter privilegiado trabalhos que se transformavam
em mobiliário urbano por representarem estruturas de
alguma utilidade funcional para a arquitetura e o design
urbano.
As diretrizes mudariam novamente por volta de
1982, quando a National Endowment for the Arts decidiu
que artistas, designers e planejadores urbanos
trabalhassem juntos para projetos de arte pública. Para a
autora Kwon (2002), isso fez com que “a arte pública não
seria mais uma escultura autônoma, mas estaria num tipo
de diálogo significativo e talvez coincidindo com a
arquitetura e/ou paisagem ao redor” (p. 67, tradução
nossa). Esse caráter funcionalista, então, passou a
determinar um tipo de critério pelo qual os projetos
seriam avaliados e construídos, sem significar
necessariamente um potencial artístico. Uma ruptura
dessa visão é percebida justamente em “Tilted Arc”, de

projetos artísticos, entre eles o Art-in-Public-Places. Ela é financiada


pelo governo, com seu dirigente sendo selecionado pelo próprio
poder executivo. (NATIONAL ENDOWMENT FOR THE ARTS,
2006). Já o programa Art-in-Architecture é criação da General
Services Administration (GSA), agência responsável pela
organização e funcionamento das demais agências públicas estado-
unidenses. Criado em 1963, o programa consiste no patrocínio de
trabalhos de arte para agregar em edifícios e complexos federais nos
Estados Unidos, sendo que, segundo as diretrizes atuais, 0,5% do
orçamento destinado à criação ou modernização de edifícios públicos
é direcionado aos projetos artísticos, direcionados a artistas estado-
unidenses para produção de trabalhos site-specific (GSA, 2022).
Diálogos Sobre História e Cultura 125

Richard Serra, cujo trabalho foi patrocinado pela General


Services Administration, instituição responsável pelo
programa de incentivo Art-in-Architecture. Serra
representava um tipo de visão não exclusiva, mas
compartilhada entre outros artistas, de que a lógica da
escultura em espaços específicos, públicos ou não, não
deveriam se conformar aos espaços, mas poderiam
conduzir rupturas e articulações inéditas, potencialmente
alterando rotinas e paradigmas4 Kwon (2002) afirma que,
artistas como Les Levine, Krzystof Wodiczko e as
Guerrilla Girls também tinham o mesmo propósito. O
fomento institucional para seus trabalhos – que
utilizavam, por exemplo, sistemas de comunicação de
massa, como os jornais e os outdoors – nos Estados
Unidos só aparecia ao fim da década de 1980, com
menos espaço dado para a arte pública interligada à
arquitetura.
Independentemente do marco que escolham para
suas narrativas, quais artistas participam de pioneirismos
e projetos com ações inéditas, todos os trabalhos e nomes
comentados apontam para uma das principais
características da escultura contemporânea: a não
4
A autora resgata um relevante depoimento de Serra que nos ajuda a
entender seu pensamento, escrito ainda antes da controvérsia
envolvendo “Tilted Arc”: “A especificidade de trabalhos site-oriented
significa que são concebidos, dependentes e inseparáveis de seus
locais. A escala, o tamanho e a localização dos elementos
escultóricos resultam de uma análise dos componentes ambientais
particulares de um dado contexto […] A análise preliminar de um
local leva em consideração não só características formais, mas
também sociais e políticas. Trabalhos site-specific invariavelmente
manifestam um juízo sobre um contexto social e político mais amplo
do qual fazem parte (SERRA, 1989 apud KWON, 2002, p. 74,
tradução nossa).
Diálogos Sobre História e Cultura 126

indiferença em relação ao espaço. Não só isso, mas a


consideração que a escultura habita um espaço com
características já existentes, ou seja, não está em um
campo neutro. Minimalismo e land art, movimentos que
possuem, em sua grande maioria, artistas estado-
unidenses em suas listas de realizadores, são precursores
de lógicas próprias, mas estão dentro de uma grande
troca de ideias e perspectivas compartilhadas com outros
movimentos e artistas de outras partes do mundo. Existe
uma série deles até mesmo inseridos em movimentos
coesos operados em grupo, inclusive no Brasil, com
referências importantes que ajudam a entender algumas
transformações na produção da escultura ao longo de
todo o século 20. Donald Judd, Carl Andre, Robert
Morris e cia dividiram tempo com Allan Kaprow e as
ações performáticas do grupo Fluxus, também nos
Estados Unidos. Nos anos 1950 e 1960, também houve as
enigmáticas intervenções (as primeiras realizadas em
galerias), segundo O’Doherty (2000, p. 108) de artistas
como Yves Klein e Arman, com seus trabalhos “Le Vide”
e “Le Plein”, realizados na mesma galeria, a Iris Clert,
em Paris: o primeiro envolvia o esvaziamento de uma
galeria de arte e sua transformação em um lugar
aparentemente anônimo, com as paredes brancas; o
segundo fez o completo inverso, enchendo o espaço da
mesma galeria com objetos diversos e mundanos. Ainda
nos anos 1960, Daniel Buren, Hans Haacke, Mieler
Laderman Ukeles, Michael Asher entre outros se
atentaram às questões ideológicas que envolviam os
museus e galerias que recebiam seus trabalhos,
identificando que tais espaços não carregavam a aparente
neutralidade representada em suas paredes brancas; suas
Diálogos Sobre História e Cultura 127

intervenções operavam dentro de uma crítica


institucional, exibindo como as características imediatas
desses lugares, suas convenções de prática e forma (as
paredes brancas, a iluminação artificial, o clima
controlado) apontavam também para um controle político
e econômico da criatividade. Em muitos casos, como no
trabalho de Buren, com suas faixas coloridas, não se
tratava apenas de tomar o espaço em um nível filosófico,
mas de transbordar os limites físicos dos locais de
exibição e incorporar o lado de fora, as calçadas, ruas e
paredes. Por sua vez, Gordon Matta-Clark começaria sua
incorporação de elementos do espaço urbano nos anos
1970, trabalhando com sua “anarquitetura”, um tipo de
intersecção entre arte e arquitetura que desconstruía o
espaço já existente, frequentemente em lugares públicos
(mesmo que pouco acessíveis), fugindo de práticas
típicas em espaços arquitetônicos já estabelecidos. Esses
artistas, donos de métodos e abordagens próprias, marcos
de uma revolução na forma de absorver e retrabalhar
referências, e que ganharam relevância por suas
experiências nos anos 1960 e 1970, trazem apenas alguns
exemplos do que pode significar “escultura
contemporânea” e seu transbordamento. O próprio termo
“escultura” parece pouco preciso em muitos momentos,
já que, muitas vezes, a própria materialidade é colocada
em cheque, mais materiais e linguagens são articulados,
fazendo com que cada projeto adquira características
particulares e exista numa referencialidade própria.
Hélio Oiticica é um nome que merece um
destaque particular, sobretudo por sua lógica produtiva
que captura elementos significativos de cada linguagem
para produzir trabalhos que existem numa natureza única.
Diálogos Sobre História e Cultura 128

O artista brasileiro construía ambientes articulando


diferentes elementos que funcionavam como estímulos
sensoriais. Por sua vez, cada elemento era herdado de
referências da própria linguagem visual. Sua série dos
“Penetráveis”, que se iniciou em 1961 e ganhou projeção
internacional com a exposição de Éden (1969), na
Whitechapel Gallery de Londres, Inglaterra, é grande
exemplo. Com instalações formadas por diferentes
núcleos, muitas vezes ocupando dezenas de metros
quadrados em diferentes pontos de um mesmo ambiente,
se distribuindo de forma pouco demarcável, o trabalho se
oferecia aos visitantes como um novo espaço com
características imprevisíveis, dentro de outro já existente.
Um espaço dentro do outro. Huchet (2012), por sua vez,
aponta que os trabalhos de Oiticica podem ser entendidos
pela intenção de inserir objetos no espaço real que se
transformarão em pontos de contato com outras
sensações, como um portal. São estimuladas percepções
através de uma “dinâmica de expansão de dentro para
fora” (p. 114). A ideia que faz Oiticica despontar de
outros de seu contexto é como ele consegue concretizar a
combinação e articulação de diferentes objetos e
visualidades, possibilitando experiências de fruição que
existem somente a partir da visão, mas envolvem também
outros sentidos imediatos, criam labirintos, antecipam
situações e aguçam intuições.
Não à toa, para Huchet (2012, p. 114) as
instalações de Oiticica criam um campo de forças
particular, que existe afetando mutuamente sua
localização inicial. Por sua vez, esse novo lugar que
surge não é como uma tábula rasa, mas sempre composto
pela gramática visual do artista, que articula os elementos
Diálogos Sobre História e Cultura 129

compositivos da produção artística com sensações e


gestos humanos. Cor, espaço, tempo, luz, volume e
estrutura não são apenas referências visuais, mas pontos
de contato com o corpo. Huchet percebe como, através
desse processo criativo, Oiticica não buscava criar novas
categorias ou elementos constitutivos nas artes visuais,
mas reorganizar os já existentes a fim de produzir
estruturas inéditas. É a busca de “conjuntos (quase
científicos) de categorias que, sem romper com o
passado, porque sempre foram determinantes na arte,
possam ser reorganizadas nas suas finalidades e nos
processos ativos” (HUCHET, 2012, p. 95). Nessa lógica,
é possível desconstruir os “Penetráveis” de Oiticica para
encontrar os membros que lhe dão corpo e entender os
labirintos sensíveis formados por, acima de tudo,
estímulos visuais de natureza plástica. É a cor, entre
todos os outros elementos, que funciona como célula
geradora de vida nos trabalhos de Oiticica, que se junta a
outros componentes e os combina para criar uma sinfonia
inédita. Seu pioneirismo está sobretudo na articulação
desses elementos visíveis de forma sensível.
Contemporâneas de Oiticica, Lygia Pape e Lygia
Clark instituíram a interatividade em vários de seus
projetos, fazendo com que cada trabalho pudesse ser
transformado a partir da presença do outro. As
experiências com os “Bichos”, de Clark, iniciam já em
1959, já dando a entender de que a artista deixaria nas
mãos de cada visitante a continuação da sua ação.
Contudo, não é apenas o outro que tem influência direta,
mas também seu trabalho é colocado em diálogo com a
ação que vem de fora. Cada trabalho funciona como uma
espécie de organismo que parece ter vontade própria,
Diálogos Sobre História e Cultura 130

Clark comentaria, porque sua natureza implica em


transformação constante. Em seus escritos, ela identifica
a vitalidade expressiva em cada uma das pequenas
esculturas, que possibilitam “uma espécie de corpo-a-
corpo entre duas entidades vivas”, entre trabalho e
espectador” (CLARK, 1960). Na mesma lógica de uma
troca de forças mútua com o ambiente são os trabalhos
como a série dos “Trepantes”, esculturas maleáveis feitas
com faixas de metal flexíveis que se conformam, como
que descansando, em cada superfície de madeira em que
são colocadas, podendo produzir novas configurações a
cada nova exibição.
Pape também buscou na interação um conteúdo
basilar de seus trabalhos. “Roda dos Prazeres” é um de
seus trabalhos que pede a atuação dos sentidos corporais,
trazendo o tato, o olfato e o paladar. Os visitantes
poderiam, literalmente, sentir os gostos do trabalho: eram
dispostas várias bacias preenchidas com líquidos
coloridos que os visitantes eram convidados a provar,
utilizando conta-gotas, e surpreenderam ao pensar nas
relações entre os aspectos visuais e o sabor de cada
líquido. Ambas as artistas, signatárias do Manifesto
Neoconcreto, de 1959 – e que fizeram parte do
movimento ao mesmo tempo que Hélio Oiticica -,
produziam trabalhos a partir de uma racionalização
crítica, em que os trabalhos existem essencialmente numa
constante troca com espaço ao redor e, assim, convida o
espectador a novas percepções sobre o lugar que ocupa,
numa crença de que a arte adquire sentido a partir das
sensações que desperta nos outros.
Até aqui, é possível entender que a arte
contemporânea possui uma certa lógica espacial que,
Diálogos Sobre História e Cultura 131

mesmo genérica, se identifica na disparidade em relação


à autonomia do objeto e indiferença ao espaço. Não
significa, é claro, que um trabalho precise possuir essas
características para se identificar às ideias de vanguarda.
Não existe uma determinação, um tipo de checklist
necessário para que um projeto artístico receba tal título.
A qualificação de “contemporâneo” muitas vezes
extrapola seu uso de referencial histórico e acaba sendo
utilizado como adjetivo para uma obra de arte inovadora,
experimental, indefinível etc. Tentamos não fazer isso.
De todo modo, os autores analisados se debruçaram sobre
os artistas e movimentos para identificar em qual
momento e sob quais práticas as transformações puderam
ser observadas. Sigamos.
Para Alberto Tassinari, então, as transformações
aparentam ser mais sutis do que aparentam e
interconectadas com o pensamento moderno. Todo o
conjunto de intenções que podem ser generalizadas como
práticas artísticas contemporâneas são vistas, pelo autor,
como consequência direta que da oposição ao
naturalismo como cânone, ou seja, contra a lógica de
introduzir ilusionismos como pilar da obra de arte. Tal
vontade é basilar também para o que habitualmente
entende-se como arte moderna. Em outras palavras, para
Tassinari, a escultura contemporânea pode ser vista como
uma espécie de continuação das intenções modernas.
Seria a partir do antagonismo ao espaço acadêmico, do
ilusionismo e do naturalismo, que se buscou o “espaço
moderno” iniciado com os movimentos da vanguarda
artística do fim do século 19 e início do 20. Não é uma
realidade dada, mas uma lógica de construção contínua,
de transformação na composição habitual e leitura dos
Diálogos Sobre História e Cultura 132

elementos espaciais em direção a uma constante


agregação do “mundo em comum” (TASSINARI, 2001,
p. 91), em que há a realidade material (o mundo comum,
banal e cotidiano, em todas as suas dimensões) como
possível conteúdo para a arte. Para ele, ao longo das
diferentes décadas e vanguardas artísticas, sobretudo a
partir do século 20, os trabalhos bidimensionais e
tridimensionais largaram, aos poucos, as referências e
especializações internas do universo artístico (acadêmico,
sobretudo) para agregar elementos comuns, mundanos.
Não só isso, há também a revelação do fazer, da arte
como coisa comum. Começa com a colagem e,
posteriormente, as assemblages (acúmulos sucessivos de
elementos em um plano, numa espécie de limite entre
bidimensional e tridimensional), ao construir para “fora”
da tela, lidando com o espaço que existe entre a parede e
o espectador. Para Tassinari (2002), são algumas das
balizas histórias que lançam a arte em direção ao mundo
real, que é também o lugar onde está também o público.
No espaço moderno, não há uma ilusão narrativa que
busca transportar ou simular outro lugar, mas o
reconhecimento de que o trabalho existe no mesmo
espaço que todas as outras coisas. É o entrelaçamento
entre arte e o “mundo em comum”, o espaço onde a vida
acontece:

Não é de frente para o mundo e o replicando


que uma obra contemporânea se relaciona com
o mundo da vida em comum, mas de permeio.
O que há de novo na arte contemporânea é que
a moldura espacial da obra não a separa mais
do mundo cotidiano. (TASSINARI, 2001, p.
91).
Diálogos Sobre História e Cultura 133

Na lógica do autor, portanto, essa lógica produtiva


aparece num sentido de constante aperfeiçoamento e
transmutação do que seria o espaço moderno.
Possivelmente, também, seria a sua descoberta, o
entendimento de que o trabalho de arte existe na mesma
realidade material que o resto do universo. Mais do que
um gesto inédito, portanto, os artistas são exploradores
de uma nova percepção do mundo. Essa agregação do
cotidiano não acontece apenas no nível em que o trabalho
de arte se oferece para o outro, mas também no nível
constitutivo, subjetivo e semântico.
Brian O’Doherty (2000) possui outras noções
sobre como funciona a articulação da arte tridimensional
com elementos para além da fisicalidade do trabalho de
arte, agregando o entorno e tudo que acontece nele, tanto
a nível físico quanto subjetivo, o que ele considera uma
ação do “Espectador”. É como chama o autor uma das
forças presentes nas ações artísticas do século 20, de
forma oscilante entre as décadas, mas que leva a arte em
direção ao espaço. Está presente naquelas mesmas obras
analisadas pelos autores anteriores: começa no volume
das colagens cubistas, ganha mais corpo com as
assemblages, envolve as pinturas com particularidades de
apresentação (que pensam a parede como parte do raio de
fruição do trabalho de arte e parte de sua ação para o
mundo), passa pelas esculturas abstratas e sem base,
envolve as intervenções e instalações dadaístas e chega
até os mais famosos exemplos da espacialidade
contemporânea. O “Espectador” é a função da arte que
toma o espaço como meio e fim, sendo o campo em que
o trabalho é construído e onde ele atua para se conectar
ao visitante, como ser fruidor. Na arte do século 20,
Diálogos Sobre História e Cultura 134

segundo o O’Doherty, o “Espectador” rivalizou com o


“Olho”, a outra grande tendência da arte do período, que
a leva em direção à exploração do campo pictórico
através da pintura. Não há limites claros entre esses dois
caminhos, mas eles apontam para aquilo que outros
atores já vêm dizendo: que a arte do século 20, as
chamadas moderna e contemporânea, tanto realizaram
uma incansável aventura intelectual através dos
elementos visuais no campo da imagem quanto se
alargaram para o espaço e incorporaram cada vez mais o
mundo comum. Em diferentes momentos, os dois se
cruzam, equilibram ou sobressaem-se: nas pinturas do
expressionismo abstrato norte-americano, por exemplo, a
discussão é antes de tudo pictórica, enquanto nos
happenings o espaço é um campo de ação mais relevante.
Para O’Doherty, a questão é que o “Olho” e o
“Espectador” produziram suas próprias tendências na arte
do século 20, influenciando mais ou menos determinados
artistas, mas a interação constante entre ambos são
determinantes para o encaminhamento das
transformações reconhecidas na arte contemporânea.
Assim, quando falamos em escultura,
tridimensionalidade e espacialidade, se trata do espaço de
ação do “Espectador”, a tendência que cada vez mais, ao
longo de décadas, produz uma concepção espacial mais
ampla e incorpora “o espaço real, onde tudo pode
acontecer.” (O’DOHERTY, 2000, p. 52). Logo, a partir
das ações vanguardistas que desmembraram a lógica do
objeto autossuficiente da escultura modernista, a a arte
tridimensional agrega toda a realidade material ao seu
redor. Tal questão não seria apenas consequência do
trabalho, mas uma busca ativa por parte de artistas que
Diálogos Sobre História e Cultura 135

levou ao surgimento de linguagens por completo, como


instalações, assemblagens, intervenções na arquitetura e
afins.
Para exemplificar o antagonismo entre o “Olho” e
o “Espectador”, podemos tomar como parâmetro do
primeiro a produção dos artistas do expressionismo
abstrato, como Jackson Pollock e Mark Rothko. Suas
telas, marcadas por intersecções de cores e gestualidade
são referência da atuação da figura do artista e sua ação
individual na pintura. Elementos como cor, linha,
contraste e forma são os índices básicos para entender e
apreciar esses trabalhos, fazendo parte da lógica poética
desses artistas. Em outra esfera e ao mesmo tempo, muito
se pensou e elaborou sobre o relacionamento entre arte e
espaço, como a teorização do site e non-site, de Robert
Smithson, que por sua vez produziu uma série de projetos
de land art, intervindo sobre a paisagem, realizando
amplos deslocamentos materiais. Ademais, o
investimento na espacialidade não evidenciou somente a
ênfase na tridimensionalidade de projetos diversos, mas
também trouxe luz para a relevância do tempo. As
esculturas minimalistas, as intervenções urbanas ou
mesmo os happenings devem ser aproveitados
temporariamente: nem sempre pela sua efemeridade, mas
sobretudo porque convocam uma experiência a ser
realizada e aproveitada em tempo real, frente a frente
com os objetos ou realizadores que conduzem o projeto.
Não à toa, os artistas neoconcretos, em seu manifesto,
pontuam a percepção sobre o espaço e a necessidade do
contato corporal; a necessidade de perceber, também
sensorialmente, a presença do trabalho de arte. Mais uma
vez, é válido relembrar o trabalho do brasileiro Helio
Diálogos Sobre História e Cultura 136

Oiticica, que de forma instigante articulou a percepção


corporal em suas instalações e objetos, intencionando que
o corpo funcionasse como motor da obra 5. Nos seus
“Parangolés”, essa lógica é bastante evidente, já é um
trabalho que necessita ser ativado pelo público,
convidado a vestir as capas e tecidos que compõem a
obra. Em seus “Penetráveis”, Oiticica consegue articular
as qualidades que instigam tanto “Olho” quanto
“Espectador”, para relembrar dos conceitos de Brian
O’Doherty. Nessas instalações, cor, forma e outros
elementos visuais ganham corpo e outras características
sensoriais.
Até então, falamos sobre uma série de nomes e
ações que exemplificam a diversidade da
tridimensionalidade contemporânea. Vale lembrar que
nenhum conceito ou rotulação vai criar uma expectativa
precisa das relações entre trabalho e espaço. Foram várias
as possibilidades discutidas. Um aspecto dessas
ramificações da obra de arte em relação a seu ambiente
não pode passar desapercebida: o impacto nas estruturas
de exposição. Não é foco deste texto refletir sobre como
as instituições trabalharam suas estruturas e estratégias de
expografia para dar conta da maior complexidade de
trabalhos tridimensionais. No entanto, vale comentar que
essas novas características da arte também implicou na
lógica arquitetônica dos espaços construídos para guardas
e exposições de arte. A maior amplitude desses lugares,
sua iluminação homogênea, a temperatura controlada, os
interiores monocromáticos e sem janelas padronizando o
5
Quem percebeu inicialmente essa característica e inteligentemente
escreveu sobre foi o crítico e curador Frederico de Moraes, autor do
influente texto “Contra a arte afluente: o corpo é o motor da obra”,
publicado pela primeira vez em 1970.
Diálogos Sobre História e Cultura 137

visual dos ambientes, os vários maquinários e fontes de


energia necessários para fazer funcionar todo tipo de
equipamento de montagem, as várias estruturas de
suporte disponíveis, para poder sustentar e expor todo e
qualquer tipo de projeto. Essas são algumas das
características que passaram a ser empregadas no
momento de construção desses espaços para que
dispusessem de infraestrutura necessária para a guarda,
montagem e exibição trabalhos dos mais complexos e
dinâmicos. À primeira vista, esse conjunto de
características parece cumprir o papel de produzir um
local de exposição neutro, para que toda a atenção recaia
sobre os trabalhos. O cânone do “cubo branco” tem sido
repensado e retrabalhado atualmente por meio de
múltiplas estratégias de curadoria e expografia, que
também agregaram a cenografia como aspecto
importante das exposições. Além disso, artistas que
produziram e produzem sob a lógica da crítica
institucional problematizaram a ideia de que as
instituições fornecem estruturas neutras de exposição,
indicando que essas podem ser também formas de
condicionamento e controle de trabalhos e discursos de
seus artistas.
Fora das salas de exposição, a arte pública
acompanhou de perto as transformações que a arte
contemporânea tridimensional conduziu, sendo
alimentada e agregando ao mesmo debate. Já falamos
brevemente sobre os episódios em que instituições nos
Estados Unidos atuaram para, em certa medida,
influenciar e condicionar o tipo de arte pública produzida
e financiada em seus programas de incentivo. Contudo, o
dinamismo desse tipo de produção artística e seu
Diálogos Sobre História e Cultura 138

entrelaçamento com a realidade cotidiana vão além das


qualidades materiais do trabalho, sua dependência ou não
de locais específicos. A cidade também tem servido como
conteúdo para concepção dos trabalhos. Para além de
abordar questões que participam do debate público ou
são relevantes dentro da esfera pública - episódios da
memória de grupos e momentos da história, mesmo que
não universais em uma cidade, alimentam pensamentos
populares -, estratégia essa já trabalhada em monumentos
e contra-monumentos, artistas tem lidado com as
questões urbanas de forma reflexiva e crítica,
transformando cotidianos e problemas da cidade em
componentes dos trabalhos. Interessantes exemplos dessa
prática estão nos trabalhos do Coletivo Poro, formado
pelos artistas brasileiros Brígida Campbell e Marcelo
Terça-Nada. A dupla costuma tomar como elementos
compositivos de seus projetos os objetos que compõem
uma típica visualidade urbana, como faixas de
sinalização independente, do mesmo tipo que são
costumeiramente empregadas para divulgar venda de
imóveis. No seu projeto “Perca Tempo”, de 2010, o Poro
pendurou uma série dessas faixas sobre as ruas de Belo
Horizonte, em Minas Gerais, todas elas contendo em
letras garrafais, bastante legíveis, a frase que dá nome ao
trabalho. Também realizaram performances em esquinas
de ruas da cidade, em que performers seguravam faixas
com a mesma frase em frente aos carros parados em
semáforos, para que seus motoristas pudessem ler. Com
esse trabalho simples e provocativo, em que o coletivo se
apropria de lógicas de comunicação típicas da cidade, os
artistas lançam mensagens reflexivas e críticas que
penetram no incessante fluxo de comunicação da urbe e
Diálogos Sobre História e Cultura 139

criam suas perturbações. A frase, peculiar e até bem-


humorada, funciona como um tipo de antítese da situação
urbana. Ela convida os espectadores, colocados numa
situação inesperada, a fazer aquilo que, muito
provavelmente, estão buscando evitar. Em 2012, o
Coletivo Poro foi contemplado no Prêmio Funarte de
Arte Contemporânea e levou poética para uma exposição
em Brasília, em 2013, com intervenções urbanas e
trabalho na galeria Fayga Ostrower.
As intenções que compõem trabalhos de arte
pública contemporâneos conseguem ser diversos, muitas
vezes dialogando não só com aspectos banais do
cotidiano e provocando rupturas, mas também
funcionando como comentários reflexivos a aspectos
críticos e problemáticos da realidade social urbana de
cada cidade. Dessa forma, atuam não só como trabalhos
site-specific, mas também podem funcionar na lógica
definida por Vera Pallamin (2002) como “arte pública
como prática crítica”. Porém, para além do conteúdo
discursivo, há a iminente problemática da permanência.
Ao abdicar de uma lógica monumental e assumir a
característica de intervenção urbana, geralmente a arte
assume uma efemeridade que vai condicionar sua
permanência às vontades da cidade. Mesmo que seja
produzida de forma oficial, patrocinada pelo poder
público e produzida com materiais duráveis, sua
inviolabilidade ou a continuidade de suas características
iniciais não estão garantidas. A cidade é imprevisível e tal
aspecto não significa necessariamente um ônus aos
projetos artísticos.
Diálogos Sobre História e Cultura 140

Considerações finais

Por fim, todas essas referências que exploramos


compreendem exemplos distintos, têm pontos de partida
díspares no tempo e deixam de fora várias experiências
interessantes. Procuramos unir neste debate alguns
diferentes autores e experiências que compreendem as
principais perspectivas da bibliografia. Mesmo com toda
a limitação, nosso texto conseguiu apontar para algumas
direções conjuntas quando falamos o que pode ser
produzido como “escultura contemporânea” e sua
suposta gênese. Vimos que existem algumas questões
específicas que geralmente qualificam esse tipo de
produção: introdução de novos materiais, além dos
tradicionais da prática escultórica (pedra, metal, argila,
gesso, etc.); a possibilidade da impermanência ou
finitude do próprio trabalho; a integração com outras
linguagens, como a pintura, a arquitetura, a música, o
teatro e afins; e, especialmente, a interação com o
“mundo em comum”. Empregamos de Tassinari (2001)
sua definição sobre esse conceito, quer seja a relação
íntima com a realidade contextual, o espaço que rodeia o
trabalho artístico e tudo o que acontece nele. Essa ideia
de entrelaçamento com questões materiais e subjetivas
que estão para além do objeto artístico implica uma
abertura para coisas que estão além da arte. Ao mesmo
tempo, essa lógica movimenta diretamente o que pode ser
entendido por arte, o que pode compor o debate artístico
e servir de conteúdo na poética de artistas. E é isso que,
de maneira geral, tem conduzido a produção artística nas
últimas décadas: um constante borramento de barreiras
entre disciplinas, conexões e rupturas entre arte e todas as
Diálogos Sobre História e Cultura 141

áreas possíveis da vida. Se é verdade que essa é uma base


comum para o pensamento artístico, então, seu
desdobramento tridimensional pode partir para as
direções mais imprevisíveis.
Diálogos Sobre História e Cultura 142

Referências Bibliográficas

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vontades: o Projeto Escultura Pública – Curitiba,
1992. 2023. 306 f. Dissertação (Mestrado em História) –
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Paraná, Curitiba (PR), 2023.
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concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
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Diálogos Sobre História e Cultura 143

KWON, Miwon. One place after another: site-specific


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O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco. A
ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes,
2002.
PALLAMIN, Vera. Cidade e cultura: esfera pública e
transformação urbana. São Paulo: Estação Liberdade,
2002.
TASSINARI, Alberto. O espaço moderno. São Paulo:
Cosac Naify, 2001.
Diálogos Sobre História e Cultura 144

Uma leitura dos mangás Showa e


Marcha para a morte: entre
memória e história
A reading of the mangas Showa and
Onward towards our noble deaths:
between memory and history
Antonio Augusto Zanoni1

Resumo

Os mangás, conhecidos mais por serem quadrinhos


japoneses, já estão presente na academia de forma mais
pungente, a pelo menos duas décadas e a partir deles,
podemos estudar história assim como a partir qualquer
outra fonte histórica. Dito isso, é a partir da leitura de
cinco mangás de Shigeru Mizuki, mangaká (autor de
mangá) que lutou pelo Exército Imperial Japonês durante
a Segunda Guerra Mundial no front do pacífico, que
podemos ter uma visão mais ampla do conflito. Para tal
empreitada, é mister salientar que Shigeru Mizuki se
forma em história após retornar da guerra ao Japão, e vai
construir sua narrativa de Marcha para a Morte
originalmente em 1973, quando o conceito da memória e
o recalque do passado não trabalhado começa a se fazer

1
Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História na
Universidade de Passo Fundo. Bolsista Capes. E-mail:
antonio_az@hotmail.com.
Diálogos Sobre História e Cultura 145

necessário. Já a coleção Showa vai de 1926 a 1989, data


da posse do trono imperial nipônico por Hiroito até a sua
morte. A importância da pesquisa está interligada com o
distanciamento das narrativas oficiais tradicionais ainda
muito dominantes Japão contemporâneo, visto que
Mizuki busca desmistificar algumas questões tanto
envolvendo o conflito direto, como a indubitável honra
do soldado japonês, ao passo que mostra a crueldade nua
e crua do campo de batalha, com o constante medo de
morte, a presença de doenças e da fome, assim como
expõe os resultados da guerra para o Japão até o fim da
era Showa, que em seu âmago, não altera o seu modo de
existir, mas modifica o foco no qual coloca seus esforços.
Palavras-chave: Mangá; Showa; Marcha para a morte;
Shigeru Mizuki.

Abstract

Manga, primarily known as Japanese comics, has been a


prominent presence in academia for at least two decades.
Through them, we can study history just as we would
from any other historical source. In this context,
exploring five mangas by Shigeru Mizuki becomes
particularly insightful. Mizuki, a mangaka (manga
author), fought for the Imperial Japanese Army in the
Pacific Front during World War II. Examining his works
provides a broader perspective on the conflict. It is
essential to note that Shigeru Mizuki, upon returning
from the war to Japan, pursued a degree in history. His
narrative, "Onward towards our noble deaths," was
originally written in 1973, a time when the concept of
Diálogos Sobre História e Cultura 146

memory and the repression of unresolved past events


became increasingly relevant. The "Showa" collection
spans from 1926 to 1989, the year of Emperor Hirohito's
reign until his death. The significance of this research lies
in its departure from the still-dominant traditional official
narratives in contemporary Japan. Mizuki aims to
demystify aspects surrounding the direct conflict, such as
the unquestionable honor of the Japanese soldier, as he
exposes the harsh realities of the battlefield, including the
constant fear of death, the presence of diseases and
famine, while highlighting the aftermath of the war for
Japan until the end of the Showa era, that at its core not
fundamentally altered the way of its existence, but shift
the focus in which put its efforts.
Keywords: Manga; Showa; Onward towards our noble
deaths; Shigeru Mizuki.
Diálogos Sobre História e Cultura 147

Uma leitura dos mangás Showa e


Marcha para a morte: entre
memória e história
Antonio Augusto Zanoni

INTRODUÇÃO

Não é de hoje que o mercado dos mangás se faz


presente em grande parte dos países do mundo. No
entanto, sua explosão mercadológica mundial é muito
recente – cerca de 40 anos – e muito mais recente são os
estudos que envolvem o mangá como objeto histórico.
Para fins desse trabalho, não voltaremos aos mangás e
suas estruturas antes da Segunda Guerra Mundial, mas
nos ateremos na sua forma contemporânea.
Antes de iniciarmos nossa jornada para com os
mangás propostos, temos que pensar alguns âmbitos em
que ele se insere. Para tal, proponho pensar em duas
esferas: o mangá como fenômeno cultural-mercadológico
e histórico-mnemônico.
Primeiramente, o mangá como fenômeno cultural-
mercadológico no pós-guerra só se desenvolve
propriamente após os anos 1960, com um aumento do
número de mangakás e de editoras que buscavam através
de revistas de mangás alcançar um número de vendas
maior que do método anterior de consumo desse objeto –
o do mangá de aluguel. Entretanto, juntamente com a
entrada de capital internacional devido a Guerra da
Coréia no mesmo período, a sociedade japonesa passa a
Diálogos Sobre História e Cultura 148

usufruir das novidades tecnológicas e de mais liberdade


econômica para adquirir os mais diversos produtos,
fazendo com que haja uma diminuição do consumo do
mangá, visto as novas possiblidades de diversão – como
aquisição de rádio, televisão, ida a estádios esportivos,
bares e diversos outros. Além disso, começa a haver uma
preocupação de pais e professores em relação a que tipos
de narrativas estão sendo consumidas pelos seus filhos.
Há também nesse período, a divisão de mangás por sexo
e idade. Com todos esses desafios, o mangá do pós-
guerra teve sempre que buscar sua reestruturação e
inovação para continuar a atrair o público. Sua produção
sempre concorreu com as diversas mídias presentes,
ideologias conservadoras e preconceitos (GRAVETT,
2006).
Até então, a temática dos mangás traziam
histórias simples, falando do cotidiano, ou de qualquer
outro assunto, desde que não atacassem as forças de
ocupação. A partir dos anos de 1970 e 1980, três
temáticas novas surgem: os mangás eróticos, os
informativos e os para mulheres adultas. Essas novas
temáticas ganham força a partir da luta por direitos de
grupos historicamente excluídos, além da ascensão do
individualismo ocidental que influenciou o Japão no
período. Tendo isso em consideração, as editoras veem
um novo público consumidor surgir e buscam assim,
produzir mangás que atendam seus desejos, ao mesmo
tempo que constroem um imaginário do que determinado
grupo deveria consumir. Nos anos de 1990, o mangá
estava bem dividido em suas temáticas, narrativas, faixas
etárias, etc., sendo que suas tiragens chegavam aos
milhões. Mesmo com a chegada da crise econômica, as
Diálogos Sobre História e Cultura 149

editoras se reinventam para continuar a sua produção em


larga escala (GRAVETT, 2006). Na atualizada, tentar
citar os estilos/gêneros de mangá se faz uma atividade
deveras laboriosa e infrutífera, pois, como visto acima,
suas narrativas são das mais variadas, passando por
heróis e sujeitos comuns, até criaturas de ficção de um
futuro inexistente a biografias históricas.
A exemplos anteriores, percebe-se que o mangá
não é unicamente um objeto lúdico que têm como
público-alvo as crianças. Sua potencialidade extrapola as
barreiras do senso comum e do conservadorismo. É
importante ter em mente que o mangá é uma expressão
cultural nipônica e, portanto, de determinada identidade
cultural. As relações que os mesmos criam entre leitor
individual e sociedade são reveladoras de um imaginário
tanto unitário quanto coletivo. Além disso, se faz
importante salientar a relação entre o mangá e seu leitor
no âmbito sentimental, isto é, as narrativas presentes nos
mangás são produtoras de novas identidades e
experiências entre o sujeito e o mundo que o cerca
(ROSENBAUM, 2013). Schodt (1983) ainda reforça que
o mangá se tornou parte integral da cultura japonesa a
partir de que, além da facilidade de leitura por parte das
crianças, de um preço acessível e da leitura ser rápida,
considerando que a sociedade japonesa num todo passa
grande parte do dia trabalhando ou fora de casa,
consumindo assim, mangás nos intervalos das suas
tarefas diárias, ou ainda em trens e ônibus, lendo
enquanto se deslocam. Ainda, no que tange mais
especificamente a contemporaneidade, a leitura pode ser
feita também através de celulares e outros aparelhos
Diálogos Sobre História e Cultura 150

eletrônicos, fazendo com que o consumo do mesmo não


se restrinja a compra física do mangá.
Não podemos deixar de pensar, entretanto, que o
mangá não é um todo único. Da mesma forma que há
filmes que são sucessos e são produzidos para o consumo
em massa e gerar renda, há outros que ficam restritos a
críticas sociais e, portanto, são por vezes reprimidos e
não contam com apoio publicitário. O mesmo acontece
com os mangás underground2, que falam de temas
sensíveis e por vezes traumáticos tanto do seu produtor,
quanto do contexto social em que ele está inserido. Nesse
interim, a discussão de Certeau (1998) para com as
relações de consumo entre o próprio consumidor e o
produtor se fazem essenciais como veremos mais à
frente.
É imprescindível, no entanto, pensarmos o mangá
como fonte impressa de memória e, portanto, de história.
Mizuki, o autor dos mangás que analisaremos, é
conhecido no Japão por suas produções yokai (mundo
fantasmagórico nipônico) e não muito por suas obras
histórico-mnemônicas. Podemos considerar que o
sucesso das obras Showa e Marcha para a Morte andam
lado a lado com o sucesso prévio de Mizuki, e, portanto,
acredito que em certo nível, o sucesso dessas obras é
devido ao status que Mizuki detém. Não podemos deixar
de lado essa questão pois ela nos leva a uma maior:
porque motivo essa história de Mizuki ganha espaço
internacional? As respostas são inúmeras, passando desde
como já dito, uma obra de um respeitado mangaká
nipônico com auxílio do marketing, a uma necessidade
de fala de Mizuki e de produção de um legado

2
Também conhecidos como gekiga.
Diálogos Sobre História e Cultura 151

mnemônico para a posterioridade como ele aparenta fazer


nas últimas páginas de ambos os mangás. Ainda,
passamos pela urgência de uma narrativa que vá
combater os discursos nacionalistas e os revisionismos
que vem ganhando espaço na cultura pop e nas mídias
nipônica (ROSENBAUM, 2013).
É evidente também que a mídia é um meio pelo
qual o poder se expressa, portanto, exerce coerção nos
sujeitos a partir de suas narrativas que não são de forma
alguma desligadas das diversas ideologias presentes na
contemporaneidade. Assim, é fácil afirmar já de começo
que Mizuki de fato vai se utilizar de todos os seus meios,
influência e técnica para produzir uma narrativa que vá
de acordo com suas crenças, isso é, de que a guerra é um
mal que assola a humanidade e que jamais deveria
acontecer algo semelhante a Segunda Guerra Mundial
novamente.
Meneses afirma que “elementos simbólicos são
colocados em ação tanto no momento da escritura do
evento na cena pública, como em sua inscrição no
tempo” (2012, p. 39). Além disso,

como sugeriu Ricœur em relação à construção


narrativa, consideramos que, quando qualquer
acontecimento é narrado, antecede-lhes um
agenciamento ancorado em três elementos
fundamentais: estruturais, simbólicos e
temporais (MENESES, 2012, p. 60).

No caso em que analisaremos, a potencialização


da narrativa se dá através da própria experiência de
Mizuki de sobrevivência do evento, após perder um
braço, sobreviver diversos ataques dos inimigos, a
Diálogos Sobre História e Cultura 152

malária e conviver com nativos locais, que tratavam


Mizuki como membro da tribo. Ao alcançar o sucesso
como mangaká, e com o avançar da idade, questões de
outrora surgem novamente a ele, onde tenta responde-las
através da maneira que sabe, os mangás. Para citarmos
apenas um exemplo, por meio de suas histórias, vai
buscar explicar os símbolos presentes durante a guerra –
como o ataque suicida por parte do exército japonês – e
como o que levou a mentalidade desses ataques
acontecerem ainda existe, mas reestruturada para a
contemporaneidade.

1. Memória

Pierre Ansart (2004) sugere que existem quatro


posturas que permeiam as lembranças de ressentimentos
individuais e coletivos. O esquecimento, de certa forma,
configura-se como uma defesa do corpo frente a questões
traumáticas e recordações difíceis. A recordação, por sua
vez, busca investigar o que se deseja esquecer, visando
positivar ou, ainda melhor, atribuir novos significados.
As revisões, de maneiras distintas por diversos grupos ou
indivíduos, consistem na utilização da memória para criar
novas narrativas de um evento. Por último, a
intensificação caracteriza-se pelo constante reuso da
memória ressentida para construir uma nova narrativa ou
um novo ressentimento (p. 28-34). Essas quatro posturas
permitem explorar os variados usos da memória ao longo
da história, evidenciando que o ressentimento se
manifesta de maneira diferente em relação aos sujeitos e
às sociedades. Neste trabalho, percorreremos todas essas
Diálogos Sobre História e Cultura 153

categorias, considerando que recordar algo implica em


esquecer outra coisa. Além disso, vários autores
apresentam suas perspectivas e as de seus
contemporâneos sobre um evento específico, bem como a
visão coletiva da época. Mesmo com o discurso geral de
que os soldados japoneses eram destemidos, os mangás
Showa e Marcha para a morte revelam o medo que
permeava o cotidiano desses combatentes. Dessa forma,
realizaremos uma revisão ao mesmo tempo em que
intensificamos as memórias do mangaká.
A partir da leitura de Tedesco (2011), percebemos
que quanto mais significado um sujeito ou grupo social
atribui a um determinado evento, mais difícil é esquecê-
lo, resultando na manutenção da ferida na memória. Da
mesma maneira, eventos dolorosos que se sucedem são
armazenados na memória do indivíduo, mas se
sobrepõem em relação à sua intensidade. Um exemplo
disso é a fome que os japoneses enfrentaram na fase final
da Segunda Guerra Mundial, um evento traumático que,
no entanto, não ocupa o mesmo espaço na memória que
as bombas atômicas ou da derrota anunciada pelo
Imperador Hirohito pelo rádio ocupam.
Vale ressaltar que tanto a memória quanto a
história são reconstruções e não resgates. A reconstrução
possibilita atribuir novos significados a eventos
anteriormente confinados em suas verdades. Ao
mencionar o resgate, estaríamos conferindo um sentido
de preservar algo na íntegra, perfeito, intocado e
concluído, o que é impossível na realidade humana. Além
disso, essa reconstrução ocorre por meio da linguagem,
seja oral, escrita ou pictográfica, mas, antes de tudo, a
Diálogos Sobre História e Cultura 154

linguagem derivada da memória é imaginada (LE GOFF,


2013).
Discutir sobre o evento implica mexer na ferida,
no estigma da memória – por vezes corporais – do
sujeito. Indivíduos que compartilham suas feridas
utilizam seu estigma para legitimar um discurso, muitas
vezes voltado para combater a causa do mesmo. Sua
ferida (memória) é usada para validar um discurso que
visa evitar a repetição de um ato catastrófico (histórico).
No entanto, o ressentimento também se manifesta através
do silêncio e, portanto, só se exterioriza quando o sujeito
detentor da memória opta por fazê-lo ou em momentos
de fragilidade emocional, onde algo emerge
involuntariamente (TEDESCO, 2011; LE GOFF, 2013).
Não menos relevante é considerar como as
políticas de governo e as ideologias vigentes influenciam
na manutenção da lembrança ou do esquecimento. Existe
uma contínua disputa pelo que deve ser lembrado e o que
deve ser esquecido. Portanto, é crucial compreender que
o que se deseja esquecer deve permanecer presente no
cotidiano das pessoas, não para se tornar banal ou
comum, mas para estimular uma reflexão constante sobre
determinada memória, promovendo um confronto entre
as duas esferas da memória (SÁ, 2014). Trabalhar com a
memória é, em última instância, uma escavação do não
palpável, embora não necessariamente do ausente.
Diálogos Sobre História e Cultura 155

2. Mizuki, Showa e Marcha para a morte:


memórias e assombros da Segunda
Guerra Mundial

Antes de mais nada, se faz mais do que necessário


contextualizarmos o autor dessas obras. Shigeru Mizuki
lutou no front de Papua Nova Guiné, na ilha de Rabaul.
Com 21 anos, em 1943, foi enviado ao campo de batalha
com alguns poucos meses de treinamento. Durante sua
luta para sobreviver, perdeu seu braço em um ataque
aéreo na unidade de tratamento de soldados feridos e
doentes enquanto lutava contra a malária 3. Apenas em
1946 foi repatriado e pode voltar ao Japão, onde se
dedicou a produção de mangás (ROSENBAUM, 2011, p
137).
Como comenta Rosenbaum (2011), a história da
série de mangás Showa4 se inicia em 1923 com o grande
terremoto de Kanto, devastando Tokyo, Yokohama e
diversas outras prefeituras, e levando o Japão como um
todo, a entrar em um momento de crise econômica e
finalizando o período conhecido como Democracia
Taisho (p. 137).
Em seus mangás Showa, Mizuki transcorre entre
suas histórias pessoais e a história do Japão. Mizuki
também recorre a um narrador-personagem conhecido
como rat-man, figura antropomórfica que auxilia na
conversa de Mizuki com as questões e os personagens

3
Apesar desse evento não ser retratado no livro Marcha para a morte,
em Showa essa situação se faz presente.
4
A versão utililizada é a inglesa, lançada entre 2013 e 2015, pela
editora Drawn & Quarterly.
Diálogos Sobre História e Cultura 156

históricos. Em certa medida, rat-man também é deveras


sarcástico e faz a função de lançar um segundo olhar
tanto sobre o que está escrito, quanto sobre as fontes
históricas por si só, de modo que deixa a entender que
Mizuki se utiliza de “fontes oficiais” para escrever as
questões históricas ao mesmo tempo em que lança
perguntas quando sua experiência de vida ou
pensamentos não segue o mesmo que o da “fonte
oficial”, ou quando ainda dúvida da “precisão histórica”
da fonte. Além disso, de modo a deixar simples para
todos os leitores, quando um novo personagem aparece,
termos em japonês são postos, ou pontos geográficos
citados, há notas de rodapé e de fim que sumarizam a
informação. Na fala final de Rosenbaum (2011) sobre a
série Showa, ele entende que Mizuki reconceitua a
história da perspectiva do povo comum, que suportou o
peso da ideologia do imperialismo militar e do imperador
(p. 137-8).
Já no mangá Marcha para a morte, originalmente
lançado em 19735, Mizuki salienta que a história criada
ali é 90% verídica. Ele sustenta que no final dela, para
não alongar muito, decidiu matar o seu eu para poder
finalizar a história, ou a mesma ficaria muito cumprida.
De fato, o mangá Marcha para a morte não tem a mesma
precisão que o da série Showa, no entanto, ele consegue
mostrar com uma riqueza de detalhes maior as relações
humanitárias entre os soldados, assim como as
dificuldades do front, principalmente a questão do ataque
suicida e da morte honrada, além de outras questões e
detalhes que carecem de espaço na série Showa.

5
A versão que utilizamos é a de 2018, lançada no Brasil, pela editora
Devir.
Diálogos Sobre História e Cultura 157

Adachi, um outro autor de mangá que escreve em


uma espécie de posfácio no mangá de Mizuki, salienta o
cotidiano entre levar tapas na cara dos oficiais – com o
sem motivo – se machucar nas atividades mais comuns,
como levar troncos de árvores, até ser morto por
crocodilos ou engasgado com um peixe enquanto se
pescava com granadas, tudo isso para salientar que
muitas mortes não aconteciam ligadas diretamente a
guerra (MIZUKI, 2018, p. 363), todavia, é válido lembrar
que essas pessoas só morreram dessas maneiras pois
estavam ali por causa da guerra.
Não menos relevante é a ligação que Mizuki faz
com a “Canção das Putas” nas páginas inicias e finais de
Marcha para a morte, canção na qual as “comfort
women6” cantavam sobre suas vidas, conforme visto nas
figuras 1, 2 e 3. Essa mesma canção é cantada pelos
próprios soldados quando indo realizar o ataque suicida.
Essas cenas ligadas a partir da narrativa de Mizuki
deixam visível a mensagem que o mesmo busca passar,
comparando o ofício das “confort women” para com o
dos soldados, não de modo a mostrar que ambos são
idênticos nos traumas que carregam, mas de modo a
mostrar que o ser humano comum é que está posto para
sofrer por ideologias que nem mesmo entendem, a partir
da manipulação das falas dos superiores na hierarquia
tanto social quanto militar.

6
O termo “comfort women” aparece tanto em itálico – pela questão
de ser expressão em outro idioma – quanto entre aspas por ser um
conceito utilizado pelo autor, mas que o mesmo crítica por ser um
conceito que torna mais leve as atrocidades sofridas por essas
mulheres. Assim, um termo mais preciso seria prostituição militar
forçada, como posto por Eric Ropers (ROSENBAUM, 2013).
Diálogos Sobre História e Cultura 158

Figura 1. Soldados esperam serem atendidos pelas “comfort women”


enquanto elas cantam uma música fúnebre relacionada a sua atual
identidade e ofício. A sequência continua nas figuras 2 e 3.
Lembrando que a leitura se dá dos quadros da direita para a
esquerda.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá Marcha para a Morte.
Diálogos Sobre História e Cultura 159

Figura 2.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá Marcha para a Morte.
Diálogos Sobre História e Cultura 160

Figura 3.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá Marcha para a Morte.
Diálogos Sobre História e Cultura 161

Em Showa 1926-1939, Shigeru Mizuki (nascido


Shigeru Mura) conta sobre sua infância, das brincadeiras,
das confusões, dos yokai7, dos seus familiares e de que,
como praticamente toda criança, desligada dos problemas
políticos e sociais que envolvem seu meio. Já no âmbito
histórico, quando da produção dos mangás Showa em
19888, o autor busca como supracitado, através de fontes
históricas, mostrar o contexto mundial no qual sua
história pessoal se inseria.
Um ponto em comum entre o pré-guerra e o pós-
guerra trazido por Mizuki é a relevância dos atletas que
se destacaram e ganharam medalhas nas olimpíadas. Em
um primeiro momento, antes dos eventos da guerra, as
vitórias serviam para inflar o ego nacionalista de
superioridade e grandeza nipônico. Num segundo
momento, após a guerra, as vitórias serviram para
encontrar uma identidade nipônica a algum tempo
perdida. Em ambos os casos, o conceito de identidade é
central para observarmos que se antes da guerra, as
vitórias nas olimpíadas destacavam determinado povo
como superior, já no pós-guerra é utilizado como orgulho
nacional desconexo de uma superioridade racial. O
mesmo vale quando também é ressaltada a vitória do
Nobel de física por Hideki Yukawa em 1949. Essas
vitórias eram relevantes porque representavam o Japão
idealizado através do imaginário coletivo, isso é, um
Japão vencedor – independente da esfera que fosse essa
vitória (FALCON, 2000).
7
Criaturas do sobrenatural nipônico. Mizuki é conhecido
principalmente por mangás que envolvem essa temática.
8
Apesar de 1988 ser a data original de sua produção, o mangá foi
republicado em 1994 com adaptações, tendo uma versão “definitiva”
lançada em 2013, na qual estamos a utilizar.
Diálogos Sobre História e Cultura 162

Muito do que é escrito e desenhado por Mizuki


em todos seus livros também está relacionado a questão
da política externa. No primeiro volume de Showa,
principalmente no que tange a China e a Coréia, Mizuki
tenta demonstrar a política expansionista nipônica e o
modo que os mesmos cometeram diversas atrocidades
para com as populações locais, de modo a justificar suas
ações com base na “Esfera de Coprosperidade da Grande
Ásia Oriental”. Ainda, o autor busca de forma sistêmica
mostrar as disputas internas entre comunistas e
nacionalistas, que vão da perseguição dos primeiros a
ascensão dos segundos, assim como as mudanças
internas no Japão, como é possível ver na figura 4.
A partir do mangá Showa 1939-1944, Mizuki vai
produzir uma narrativa que busca mostrar sua história de
cidadão comum a soldado das forças nipônicas, ao
mesmo tempo em que continua a efetuar uma história
factual sobre a Segunda Guerra Mundial, principalmente
na visão nipônica. Mizuki, entre as páginas 193 e 196, é
entrevistado pelo rat-man. Nessa entrevista, rat-man
pergunta sobre como Mizuki tem se sentindo dias antes
de seu alistamento. Shigeru diz que tem se sentido
filosófico, lido vários clássicos da filosofia9 e que em 2
ou 3 anos estará morto, e por isso busca algum
significado da vida e da morte. Basicamente, Shigeru
tinha em mente a realidade mais provável para os jovens
no momento, que era a morte durante a guerra e, em
conjunto as características intrínsecas do seu ser, ele
aceitou que iria morrer e sabia disso, mas necessitava
encontrar um sentido para tudo isso que não a narrativa

9
Como ele mesmo cita, Goethe e Seneca. Ele também tinha apreço
pela religião cristã e lera o novo testamento da bíblia até decorá-la.
Diálogos Sobre História e Cultura 163

clássica empregada em grande escala aos soldados da


época, isso é, morrer pelo imperador, pelo Japão, etc.

Figura 4. O cotidiano do Japão em guerra. Entre preces pelos filhos


enviados a guerra, as notícias vindas pelo rádio e a doutrinação
ultranacionalista.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá Showa 1939-1944.
Diálogos Sobre História e Cultura 164

É a partir de Showa 1944-1953 que as imagens


ganham um pouco mais de força, deixando de ser quase
exclusivamente desenhos, para serem desenhos-
fotografias. A narrativa não necessariamente se torna
mais dura por si só, mas ela de fato perde um pouco da
ideia de mangá e passa para o ambiente de gekiga,
contendo experiências mais tristes ao passo que a guerra
vai se encaminhando para seu final. Mizuki inicia esse
volume contando como se perdeu de seu esquadrão
durante um ataque aéreo a noite, enquanto urinava perto
de um penhasco. Após muita luta contra o ambiente,
fugindo de nativos e de soldados inimigos, consegue
retornar a uma base japonesa. Ele é recebido a tapas e
grosserias por ter perdido o seu rifle, propriedade do
imperador e ainda para piorar, contrai malária, como
observa-se na figura 5.
Quando Mizuki retorna para sua casa, familiares
dos mortos colegas de Mizuki vinham até ele para
falarem sobre o falecido. Em uma cena um tanto quanto
estranha, Mizuki começa a rir de forma descontrolada
narra rat-man, de modo que diz o seguinte: “It looks like
laughing, but the sadness is so overwhelming, he needs to
release10” (p. 372). Não é de se estranhar que Mizuki não
saiba como expressar seus sentimentos, ou ainda,
expresse eles de forma estranha a alguém que não tenha
vivido situações traumáticas similares a dele. É por isso
que o personagem rat-man se faz essencial: quando
Mizuki não sabe como contar em primeira pessoa sobre a
experiência, ele tenta narrar como alguém de forra, como

10
Parecia risada, mas a tristeza era tão esmagadora que precisava
extravasar.
Diálogos Sobre História e Cultura 165

um observador, pra tentar tornar essa situação plausível


ao leitor.

Figura 5.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá Showa 1944-1953.
Diálogos Sobre História e Cultura 166

Figura 6.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá Showa 1944-1953.

A representação do fim da guerra é um tanto


quanto simbólica, como pode-se ser observado na figura
6 acima: uma única página, com a imagem da nuvem em
formato de cogumelo com a onomatopeia Pika-don, que
significa explosão brilhante. Analiso essa imagem de
duas formas: primeiramente como um fim rápido,
simples, sem grandiosidade. Em segundo lugar, um
momento que Mizuki não consegue descrever, desenhar
ou representar de qualquer outra forma, tanto por não
estar de fato presente no Japão no momento, quanto pela
ausência de formas de representar tamanha atrocidade.
Mas mais do que isso, na parte de baixo da imagem,
vemos não unicamente os mortos dos ataques das
bombas, mas também pessoas lutando para sobreviver
Diálogos Sobre História e Cultura 167

naquele momento agoniante. Nesse sentido, o não visto


nessa figura fica em torno dos efeitos da radiação nos
sobreviventes que carregaram e ainda carregam esse
estigma, isso é, de serem os afetados pela bomba, os
hibakusha. Adiciono um último detalhe simbólico e
importante: A estética da explosão e a escolha das cores
por Mizuki, faz a imagem parecer também com a
bandeira imperial japonesa, isso é, a explosão não é uma
culpa que os EUA carregam sozinha, mas é também
compartilhada ao Japão Imperial.

Figura 7.
Fonte: Arquivo pessoal. Mangá Showa 1944-1953.
Diálogos Sobre História e Cultura 168

A página 399 do mangá, expressa na figura 7 é


muito simbólica, pois demonstra três grandes problemas
advindos da guerra: A fome, o estupro e os
traumas/problemas psicológicos. Em primeiro lugar, no
pós-guerra, como pode ser visto tanto aqui, quanto nos
mangás mais populares Túmulo dos Vagalumes e Gen
pés-descalços, a fome foi um dos maiores problemas,
levando muitos a morrer, enquanto os que tinham algo
como quimonos e joias, trocavam-nos por comida. Outro
ponto categórico a ser levado em consideração foram os
estupros cometidos pelo exército japonês nas campanhas
da Coréia e da China, que apesar de Mizuki não trazer de
forma mais detalhada, está presente na fala do homem no
último quadrado: “I got a taste for it [estupro] when I
was a soldier in China, I guess11”. Essa última fala
também levanta a questão das atrocidades que a guerra e
seu ambiente por vezes primitivo leva a cometer – como
no caso do estupro – a questões psicológicas que
impedem os que retornaram dos conflitos de seguirem
suas vidas de forma satisfatória. Por fim da análise dessa
página, o evento ali ocorrido junta as três questões: um
homem que volta da guerra, desse ambiente animalesco,
no qual cometia atrocidades para com as mulheres locais,
aproveita o caos social ainda presente em sua terra natal,
como a falta e comida, e atrai mulheres com alimentos
para então estuprá-las e matá-las. De fato, não sabemos
se o homem sofria de problemas psicológicos ou apenas
cometia barbáries pelo prazer em si mesmo, mas de fato a
guerra e o legado para a região do pacífico permitiu que
tais atos fossem possíveis.

11
Eu peguei um gosto por isso quando eu fui um soldado na China,
eu acho.
Diálogos Sobre História e Cultura 169

No que tange ainda a questão sexual, Mizuki


reitera que esse foi um problema que o governo japonês
teve que lidar de imediato após a guerra, pois as tropas
estadunidenses também tinham sua quota de estupros
(MIZUKI, 2014, p. 401). Houve a criação do RAA,
Recreations and Amusement Association, no qual o
governo nipônico recrutavas jovens japonesas para sanar
os desejos das tropas ocupantes e, por mais que a
prostituição pública havia sido banida, as mulheres
continuaram a executá-la.
Nas últimas páginas desse volume, a partir do rat-
man, Mizuki traz o evento da guerra da Coréia e salienta
na página 522 que houve muita morte e destruição, mas
fora a partir de tudo isso que o dinheiro inundou o Japão
e foi possível modernizá-lo. Rat-man declara: “It´s sad,
but Japan owes so much to the Korean War12”. Nesse
contexto, Mizuki conta sua história como artista de
Kamishibai, ou “drama de papel”, entre 1947 e 1957,
onde esse tipo de produção foi perdendo força em grande
medida pelo advento da televisão e de outra forma de se
produzir diversão nos papeis: o mangá.
Mas Mizuki não tem unicamente memórias
traumáticas ou difíceis da guerra. Durante tal período, ele
fizera amizade com uma tribo local, que o auxiliara e
alimentara, de modo que ficou tão próximo a eles, que o
tinham como membro da tribo, e queriam que ele não
voltasse ao Japão, mas morasse com eles. Anos depois
12
“É triste, mas o Japão deve muito à guerra da Coréia.” É
importante lembrar que graças à guerra da Coréia, os EUA fizeram
do Japão uma espécie de base militar para acessar a Coréia mais
facilmente e portanto, como ja comentado na introdução, houve
introdução de capital externo para aquecimento da econômia
nipônica.
Diálogos Sobre História e Cultura 170

Mizuki retorna a tribo, como descrito no próximo volume


de Showa, lembrando seus tempos de soldados e suas
experiências.
Em Showa 1953-1989, Shigeru Mizuki vai contar
sua história pessoal como mangaká enquanto demonstra a
reconstrução do Japão e ascensão do mesmo como
potência econômica e tecnológica. Ele reforça a
diversidade de pensamento entre a geração da guerra e
baby-boomers, que não experenciaram ela e tem uma
outra visão de mundo, além de que ambas gerações não
conseguem se comunicar de forma adequada uma para
com a outra, isso devido as suas diferentes ideias e
valores (p. 172).
Vemos na página 370 um ataque kamizake do ator
Mitsuyasu Maeno – politicamente ligado à direita
ultranacionalista – a casa de Yoshio Kodama, também da
direita ultranacionalista, por envolvimento do segundo
com corrupção. Maeno se vestia e admirava os pilotos
kamikazes. A questão é: porque em 1976, apenas 30 anos
após o fim da guerra, ações ultranacionalistas já tomavam
forma mais uma vez? Respostas para tal pergunta são das
mais variadas e podem passar por diversas esferas. No
entanto, a partir da situação supracitada e análise de
diversos documentos, observa-se que o Japão no pós-
guerra acaba por focar na reconstrução econômica do
país e deixa a qualidade de vida, a reformulação social e
a restauração psicológica de lado. Os eventos da Segunda
Guerra Mundial são deixados para o campo do silêncio.
A falta de um trabalho de memória que possa performar
diálogos entre o silêncio e a lembrança faz com que haja
uma busca nos referenciais de identidade nipônica já bem
estruturados, ou seja, aqueles ideais de honra dos
Diálogos Sobre História e Cultura 171

samurais, de tradições fixas e de rituais milenares. Além


do mais, a memória vai ser raptada pelo capital, onde a
guerra em si não é um problema no geral, desde que o
Japão não precise lutá-la, como diz Mizuki quando volta
a citar a Guerra da Coréia e seus benefícios ao Japão.
Os problemas sociais acabam crescendo com o
passar dos anos. Há mais pessoas e menos vagas de
trabalho devido a mecanização de muitas áreas da
indústria. O suicídio e a morte rondam os jovens que se
sentem pressionados pelo sistema e pelas famílias. Como
afirma Mizuki, “in some ways, the war is never over13”
(p. 487). Órfãos abandonados na China tentam durante o
pós-guerra achar seus parentes e familiares. Alguns
conseguem, mas tem dificuldade de se encaixar a
sociedade nipônica contemporânea; as mulheres que
foram escravas sexuais sofreram de preconceito e muitas
vezes foram excluídas de seu grupo familiar; os
hibakusha vivenciavam diariamente o legado da radiação
em seus corpos.
Quando do fim do período Showa e do início do
Heisei (1989), Mizuki comenta a partir da página 510
que seu coração ainda estava inquieto, pois tinha serviços
da era passada inacabados, salientando que tanto ele
quanto muitos outros lutaram em nome do imperador e
foram abatidos e desfigurados, mas ao mesmo tempo não
poderia estar bravo com ele, pois ele não significada nada
para Mizuki. A raiva de Mizuki se assentava no sistema
que forçou isso a ele, pois a guerra é maior que uma
única pessoa, sendo essa última parte um comentário
sobre o próprio Imperador14. Além disso, nas páginas que
13
De certo modo, a guerra nunca acabou.
14
É valido notar que as políticas efetuadas no pós-guerra perante a
retirada do caráter divino do Imperador obtiveram sucesso. Para
Diálogos Sobre História e Cultura 172

se seguem, Mizuki assume uma posição diferente de todo


seu texto. Com a chegada da idade, de mudanças na
sociedade, na sua família e do seu próprio eu, as
perguntas filosóficas que fazia antes da época do
alistamento retornam, mas agora em vez de encontrar
necessariamente um motivo para morrer, tenta entender o
que levou ao fanatismo militarista, reforça que o Japão
hoje está preso num ideal econômico, mas que perdeu o
ideal de irmandade, e por fim, salienta e repete em
algumas imagens a importância de não cometer os
mesmos erros do passado, desse nunca mais poder
retornar, legando aos leitores essa tarefa.

Considerações Finais

Retomando Certeau, o que Mizuki tenta deixar a


partir de sua experiência de vida nesse objeto cultural
ligado as relações de imprensa, não será necessariamente
absorvido, entendido e cumprido pelos seus leitores, pois
a lógica temporal e o lugar de inserção social são outros
que não o de Mizuki. Em suma, o leitor de sua narrativa
pode absorver a mesma de modo a entendê-la tanto
historicamente quanto de um passado que nunca existiu
de fato, ainda passando por apenas uma história para
divertir ou um apelo social pela paz. O que escolhe fazer
o leitor com a narrativa vai variar a partir das outras
esferas que compõem o sujeito.
Mas em defesa de Mizuki, a partir da fala Falcon
(2000) entendemos que

utilizarmos apenas de um exemplo presente nos mangás, como diz


Mizuki, o Imperador é “uma pessoa”.
Diálogos Sobre História e Cultura 173

A narração, portanto, não é algo sobreposto à


história, mas, sim, a mediação indispensável
que torna possível a obra histórica pois ‘a
narração é guardiã do tempo, na medida em que
não existiria um tempo pensado que não fosse
narrado’ (p. 125).

É imprescindível entender a ligação que Mizuki


tenta propor entre sua narrativa mnemônica e sobre a
guerra em si pois é a partir da narração do espaço e
experiência e o horizonte de expectativa de Mizuki que
esse pode delegar as gerações posteriores seus
aprendizados (RICŒUR, 2007), não de modo a produzir
excessos de significantes para o presente, mas de modo a
contribuir para a mediação desses excessos, mostrando
ao leitor que esse leva a caminhos perigosos, seja como
fora na Segunda Guerra Mundial, seja agora com uma
busca desenfreada pelo capital, que em minha visão de
análise, tem gerado, como os dados disponíveis nas mais
diversas fontes de informação mostram, uma sociedade
mais propensa ao suicídio.
Fogel (2000), na introdução do livro The Nanjing
Massacre: in History and Historiography sustenta que –
principalmente ao massacre, mas não só – o Japão
continua com um caráter, em nível nacional, de negação
das atrocidades cometidas por eles mesmos durante a
campanha da China, pois a imagem de um Japão
grandioso não pode ser manchada por erros, tornando a
derrota da guerra um fato a ser aceito, mas não indo
além. O autor reforça que os números de negacionistas
das atrocidades cometidas pelos soldados japoneses na
Segunda Guerra Mundial estão em ascensão, ignorando a
Diálogos Sobre História e Cultura 174

existência de fatos, provas, imagens, e memórias que


provam os crimes.
De fato, narrar e descrever a experiência de
Mizuki não terá o mesmo efeito que percorrer sobre sua
obra. No máximo, podemos entender que a narrativa de
Mizuki é a mesma de muitos outros autores que tentam
narrar as barbáries da história, pois como diz Benjamin,
“Nunca houve um monumento da cultura que não fosse
também um monumento da barbárie” (1987). Assim,
convido aos leitores desse trabalho também a buscar os
mangás aqui descritos, pois as narrativas das experiências
de Shigeru Mizuki só poderão ser entendidas, pelo menos
em parte, a partir dessa relação entre imagem, história e
memória que o próprio leitor fará.
Diálogos Sobre História e Cultura 175

Referências Bibliográficas

ANSART, Pierre. História e memória dos ressentimentos.


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Diálogos Sobre História e Cultura 178

Assassina, porém honesta: Sylvia


Serafim e a tentativa de imitar
Nelson Rodrigues
Murderer, yet honest: Sylvia Serafim and
the attempt to imitate Nelson Rodrigues
Sergio Schargel1

Resumo

Em 26 de dezembro de 1929, a escritora e jornalista


Sylvia Serafim atirou em Roberto Rodrigues, irmão de
Nelson Rodrigues, motivada por uma capa do jornal da
família, A Crítica, que trazia seu suposto adultério. O
crime entrou à memória coletiva e à cultura popular,
sendo transformado em narrativas para os mais diferentes
formatos artístico-culturais. Parte dessas recriações busca
imitar o estilo de Nelson Rodrigues, ficcionalizando o
assassinato de seu irmão como se fosse um prelúdio de
1
Professor Substituto da Universidade Federal de São João del Rei.
Doutorando em Letras pela USP. Mestre em Letras pela PUC-Rio,
mestre em Ciência Política pela Unirio. Especialista em Literatura
Brasileira pela UERJ. Venceu o Prêmio Abralic de melhor
dissertação do biênio 2020-2021, que se transformou no livro O
fascismo infinito, no real e na ficção. Sua pesquisa e produção
artística são focadas na relação entre literatura e política,
tangenciando temas como teoria política, literatura política,
fascismo, extrema direita, judaísmo, antissemitismo e a obra de
Sylvia Serafim. Contato: sergioschargel@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0001-5392-693X.
Diálogos Sobre História e Cultura 179

seu teatro. Este trabalho colocará em diálogo duas obras,


Sylvia não sabe dançar e O casamento, na tentativa de
evidenciar como o primeiro busca emular o segundo,
transformando tanto Sylvia quanto Nelson em
personagens de uma prosa rodrigueana. Dessa forma,
será possível lançar luz sobre a desumanização que
Sylvia Serafim sofreu, lembrada sempre como assassina,
nunca como jornalista ou feminista.
Palavras-chave: Sylvia Serafim; Nelson Rodrigues;
Sylvia não sabe dançar; O casamento; Crítica.

Abstract

On December 26, 1929, writer and journalist Sylvia


Serafim shot Roberto Rodrigues, Nelson Rodrigues’
brother, motivated by a news story in the cover of the
family's newspaper, A Crítica, which featured her
supposed adultery. The crime entered the collective
memory and popular culture, being transformed into
narratives for the most different artistic-cultural formats.
Part of these recreations extends the murder in such a
way that the story changes in its essence, going through
alternative paths. An even greater part seeks, in the
process, to imitate the style and content of Nelson
Rodrigues' works, fictionalizing his brother's murder as if
it were itself a prelude to his theater. Thus, this work will
put into dialogue two works, Sylvia não sabe dançar and
O casamento, in an attempt to show how the first seeks to
emulate the second, transforming both Sylvia and Nelson
into characters of a rodriguean prose. In this way, it will
be possible to shed light on the dehumanization that
Diálogos Sobre História e Cultura 180

Sylvia Serafim suffered, always remembered as a


murderer, never as a journalist, poet or political activist.
Keywords: Sylvia Serafim; Nelson Rodrigues; Sylvia
não sabe dançar; O casamento; Crítica.
Diálogos Sobre História e Cultura 181

Assassina, porém honesta: Sylvia


Serafim e a tentativa de imitar
Nelson Rodrigues2
Sergio Schargel

Introdução: a estética da violência

O ano é 1929. Um jovem Nelson Rodrigues,


então com 17 anos, está na redação de Crítica, jornal de
seu pai, Mário Rodrigues. Uma mulher, ela também uma
jovem no início da casa dos 20, entra na redação e pede
para falar com Mário. Mário pai não estava, tampouco
Mário Filho. Estava Roberto Rodrigues, um dos irmãos
de Nelson. Roberto era desenhista e ilustrador do jornal,
considerado um prodígio pela família. A mulher e
Roberto entram em um gabinete e, após algum tempo,
ouve-se um tiro. Para a surpresa dos presentes, a mulher
havia atirado em Roberto Rodrigues, que viria a morrer
três dias depois. Roberto havia ilustrado a matéria de
capa do mesmo dia, mostrando essa mesma mulher sendo
acariciada por um médico, sugerindo um adultério (ainda
que ela fosse desquitada) (Figura I).

2
Artigo originalmente publicado em Compós e Revista Piauí.
Diálogos Sobre História e Cultura 182

Figura 1.
Capa de Crítica de 26 de dezembro de 1929, mostrando o suposto
adultério.
Fonte: Biblioteca Nacional, Hemeroteca.

Não há registro sobre o que Serafim e Roberto


falaram naquela sala. Nelson Rodrigues (2016) sugere
que a conversa foi irrelevante, uma vez que ela já teria
tomado a decisão de matá-lo. É um argumento parecido
com o que foi usado pela acusação no julgamento. A
defesa contestou dizendo que a ré portava a arma apenas
Diálogos Sobre História e Cultura 183

para o caso de ter que se defender e que só atirou em


Roberto após ser ofendida verbalmente por ele.
No dia seguinte ao crime, começou a retórica da
desumanização de Serafim. Em notas veiculadas
diariamente no jornal Crítica, ela passou a ser tratada
como “meretriz assassina”, entre outras ofensas.
Conservadora, a publicação aproveitou o caso para
alertar seus leitores sobre os perigos de ter uma feminista
por perto.
O trauma marcaria Nelson (2016, p. 445) pelo
resto de sua vida, como ele comentaria em diversas
oportunidades: “o meu teatro não seria como é, nem eu
seria como sou, se eu não tivesse sofrido na carne e na
alma, se não tivesse chorado até a última lágrima de
paixão o assassinato de Roberto." Para os Rodrigues, a
maior vingança possível: ainda que a mulher, Sylvia
Serafim, jornalista e escritora conhecida na época,
frequente na alta sociedade carioca, membro da
Academia Fluminense de Letras, colunista do O Jornal
de Assis Chateaubriand, tenha sido absolvida, entrou à
lata de lixo da História. A despeito de sua atuação
pioneira em diversos campos – política, literatura,
jornalismo -, sua produção jornalística, política, feminista
e poética foi apagada da memória coletiva e ela passou a
ser lembrada apenas como assassina.
É perceptível a atualidade de diversos de seus
artigos. A efeito de exemplo, em um artigo publicado em
A Gazeta, intitulado Feminista, Sylvia afirma que “Sob a
reprovação quasi que geral, a feminista é no entretanto a
mulher mais verdadeira e nobremente mulher.” Em outro,
O trabalho intellectual feminino, publicado também em
A Gazeta, defende que
Diálogos Sobre História e Cultura 184

Muitos espíritos femininos há que para a


existência monótona e caseira foram feitos...
Porém os outros?... Aquelles cuja potência
intelectual se debate no círculo estreito e
monótono dos afazeres domésticos tal um filho
d’águia na gaiola de um canário? Será preciso
que para seguirem seu destino tenham de
renunciar à felicidade, e que a satisfação de sua
personalidade intellectual seja incompatível
com a realização de suas aspirações
sentimentaes?

Ainda que seja óbvio que o crime e o


assassinato existam desde que o homem fez-se homem
― afinal, a Bíblia já conta Caim como o primeiro
assassino ―, as novas configurações urbanas e
industriais do século XIX e XX não acabam apenas por
gerar um cientificismo que casa com a visão de homem
racional do liberalismo burguês, mas também cria novos
medos. O romance policial tem em sua gênese uma
ligação dupla: o positivismo e os medos urbanos. Da
mesma forma que a ficção científica absorve medos
existenciais e metafísicos do ser humano ― o tempo, o
ser, o espaço ―, o romance policial trata de seus pavores
mais mesquinhos, mundanos. O medo da violência, do
assassinato, do roubo, em suma, o medo do outro. O
medo do humano pelo outro humano. O crime é a rotina,
o comum, o perene. Quase irrelevante, à frente da
multidão de vidas e mortes que desabrocham todos os
dias. É por isso que o criminoso é um aspecto menor do
romance policial: o enigma é o aspecto dissidente da
normalidade, do tédio. É ele que motiva o detetive, este
super-homem, a epítome do científico e do racional, a
escapar do enfado de se saber vivo e mortal. O enigma
Diálogos Sobre História e Cultura 185

propicia ao detetive uma catarse, uma epifania que


precisa ser permanentemente estimulada para sua própria
existência. É exemplar, nesse sentido, um trecho de Um
estudo em vermelho em que Sherlock mostra-se
angustiado pelo tédio: “Não há mais crimes nem
criminosos em nossos dias – disse ele em tom queixoso.
– De que serve possuir inteligência em nossa profissão?”
(Doyle apud Figueiredo, 2020, p. 211). A experiência
urbana com a industrialização torna-se, portanto, o lócus
do crime, o espaço perfeito, com suas ondas amorfas de
seres anônimos cuja vida ou morte pouco importa à
conjuntura geral.
Mas o crime causa fascínio, produz estética.
Como já mostrava Thomas de Quincey em 1827, em On
murder considered as one of the fine arts, o crime na arte,
na cultura e no jornalismo fascina na mesma medida em
que é temido na realidade. Na prática, as configurações
urbanas surgidas com o liberalismo, o processo de
estabilização social, econômico e político do século XIX
descrito por Karl Polanyi em A grande transformação,
gera consigo novos medos. Se a sociedade liberal atua
como uma coleira civilizacional para restringir os
impulsos destrutivos do homem e prevenir o estado de
natureza hobbesiano, também é verdade que a supressão
desses instintos tem por consequência o desejo enrustido
pela violência. Em outras palavras, incapaz de praticar a
violência nos tempos modernos, o humano passa a
consumi-la de outras formas, estetizá-la e transformá-la
em catarse. Isto é, o propósito último da arte sobre a
violência é: “precisamente o mesmo que a tragédia, na
interpretação de Aristóteles, a saber, ‘limpar o coração
Diálogos Sobre História e Cultura 186

por meio da piedade e do horror” 3 (QUINCEY, 2012, p.


32). Como Quincey (2012, p. 12) diz, o assassinato
possui ao mesmo tempo uma função moralmente
condenável e um prazer implicado em gosto. Incapaz de
liquidar com suas frustrações cotidianas de forma literal
– como seria possível em um estado de natureza
hobbesiano – o consumidor purifica, de certa forma,
esses sentimentos através da arte. O que explica
parcialmente os motivos pelos quais a violência vende
tanto, seja na arte, no jornalismo ou em outras esferas.
Voltando para o crime de Sylvia, o que se seguiu
foi uma verdadeira estetização da violência, que se
tornou lócus para uma disputa política entre
progressistas, que defendiam que a ré teve sua
privacidade exposta e agiu em defesa da honra (um
argumento acatado pelo júri), e
conservadores/reacionários, que afirmavam que Sylvia
havia ofendido a família brasileira e ceifado um jovem
pai de família. Tendo sido o primeiro julgamento a ser
transmitido pelo rádio, o evento mobilizou paixões,
gerando uma disputa na imprensa da época. A Crítica
expunha todos os dias uma mensagem chamando Sylvia
de prostituta, literata do mangue, cadela das pernas
felpudas, entre outros epítetos, além de retratá-la,
paradoxalmente, como psicótica e perversa (ao ponto de
Mário Filho publicar uma montagem com Sylvia rindo ao
lado do caixão de seu pai, que morrera logo depois de
Roberto) (CRÍTICA, 1930) (Figura II); enquanto os
jornais de Chateaubriand, de quem Sylvia era
colaboradora, publicavam matérias como “Justo
3
Tradução livre de “For the final purpose of murder, considered as a
fine art, is precisely the same as that of tragedy, in Aristotle's account
of it, viz., ‘to cleanse the heart by means of pity and terror.’”
Diálogos Sobre História e Cultura 187

atentado!” e “Pelo direito de matar” (Ruy CASTRO,


1992, p. 89, 92). O caso mobiliza paixões ainda hoje,
quando o episódio de um programa de televisão sobre o
crime, veiculado no YouTube, dá continuidade às
disputas político-ideológicas de quase 100 anos antes. No
processo, Sylvia teve sua produção jornalística e
intelectual apagada, esquecida, a despeito de sua
relevância e influência na época.

Figura 2.
Montagem de Mário Filho mostrando Sylvia rindo ao lado do caixão.
Fonte: Biblioteca Nacional, Hemeroteca. A Crítica, número 555, dia
22 de agosto de 1930.

Em paralelo à disputa ideológica e política, o seu


crime entrou à cultura popular, assumindo em definitivo
o seu caráter estético. A figura da cruel assassina passou a
Diálogos Sobre História e Cultura 188

circular em filmes, peças, séries, livros, sem contar


mesmo trabalhos acadêmicos – uma busca simples no
Google encontra ao menos 30 citações. Todos, sem
exceção, a tratam apenas como criminosa. Ignorando, no
processo, suas várias outras facetas. Para além de uma
disputa ideológica e política que se manteve na esfera da
arte e do jornalismo, o crime por si só causou fascínio –
intensificado conforme crescia a fama de Nelson. Afinal,
como muitas dessas obras afirmaram, Sylvia era uma
“mulher rodrigueana até o último fio de cabelo” (Jéssica
PARIZOTTO). Em suma, era como se o real houvesse
antecipado em anos a arte, e era inevitável que isso fosse
explorado.
A história do assassinato de Roberto Rodrigues já
recebeu diversas versões. De O anjo pornográfico, de
Ruy Castro; a um episódio de Linha Direta, A primeira
tragédia de Nelson Rodrigues; além de livros como
Sylvia não sabe dançar; entre tantas outras. Algumas
exageram em alguns detalhes, distorcem alguns pontos,
modificam pedaços. São versões heterogêneas sobre um
fragmento em particular, mas todas elas revelam o
mesmo traço maniqueísta e unilateral: a necessidade de
um vilão. Às vezes os vilões são os Rodrigues, com
frequência é Sylvia, às vezes até Armando Serra
Menezes, bisavô do autor, que entra na história quase em
seu desfecho. Ademais, todas as narrativas se mostraram,
até hoje, incapazes de aprofundar a personagem de
Sylvia, invariavelmente interpretada de forma simplista.
Sua produção como escritora e jornalista foi esquecida,
apagada, restou apenas a memória coletiva de seu crime.
Talvez pelo próprio silêncio da família de Sylvia
Diálogos Sobre História e Cultura 189

Mas alguns desses materiais foram além. Não


apenas se dobraram sobre um fragmento da vida de
Nelson, como buscaram emular o próprio estilo de sua
prosa ao fazê-lo. Pegaram traços do real e o exageraram
exponencialmente, alimentando novas camadas a essa
estética da violência. Nesse processo de criação do real
paralelo artístico a partir de peças do real, esses autores
de fato transformaram não apenas Sylvia, mas o próprio
Nelson em personagens de uma prosa rodrigueana. Em
mais de uma, por exemplo, surge uma anacrônica relação
entre os dois. Quase todas recriam o momento máximo, o
ápice, o assassinato. O ponto de inflexão para o qual
ciclicamente tudo começa e tudo se encaminha. Outras,
vão além. Pegam as imagens canônicas criadas pela
Crítica e corroboradas, em parte, por Ruy Castro e tratam
Sylvia não apenas como uma assassina dotada de
estruturas freudianas antitéticas como perversa e
psicótica, mas também a infantilizam, tratam-na como
uma criança brincando em um mundo do qual não
entende. Sylvia se torna, então, para encarnar a imagem
clássica criada por Sandra M. Gilbert e Susan Gubar, a
mulher louca. A figura feminina insana incapaz do uso da
razão, a quem se deve temer por estar sempre a um passo
da violência. Como lembram as autoras, um processo de
desumanização secular que trata a mulher desviante
como insana:

a maioria dessas histórias tende a perpetuar


imagens extremas e debilitantes de mulheres
como anjos ou monstros [...] Afinal, Macbeth é
nobre; Lady Macbeth é um monstro. Da mesma
forma, Édipo é uma figura heroica, enquanto
Medeia é apenas uma bruxa, e a loucura de
Diálogos Sobre História e Cultura 190

Lear é gloriosa, enquanto a de Ofélia é


simplesmente patética. (GILBERT; GUBAR,
2000, p. 68)4

Entre os diversos exemplos possíveis, a seção


seguinte trará como objeto o livro Sylvia não sabe
dançar, colocado em diálogo com obras de Nelson na
tentativa de evidenciar esse processo de simulacro tanto
em forma quanto em conteúdo.

1. A serpente dançarina

Há poucas informações sobre a vida de


Sylvia Serafim, o que facilitou o processo de
ficcionalização que sofreu. Mesmo a nossa família
desconhece grande parte da vida da escritora, que se
encerrou aos 33 anos, em abril de 1936, quando ela
cometeu suicídio. Seu pai, o médico Augusto Serafim da
Silva, foi auxiliar técnico de Oswaldo Cruz na campanha
contra a febre amarela no Pará. Uma matéria do Jornal
Pequeno, de 1910, informa que era membro da Diretoria
de Saúde Pública do Rio de Janeiro (cargo que Thibau
Júnior, marido de Serafim, também ocuparia), o que
sugere sua relevância profissional. Morreu em 24 de
março de 1940, quase quatro anos depois da filha. Mauro
e Cláudio Thibau, os dois primeiros filhos de Sylvia,
4
Tradução livre para “As we have seen, however, most of these
stories tend to perpetuate extreme and debilitating images of women
as angels or monsters [...] It is Macbeth, after all, who is noble; Lady
Macbeth is a monster. Similarly, Oedipus is a heroic figure while
Medea is merely a witch, and Lear's madness is gloriously universal
while Ophelia's is just pathetic.”
Diálogos Sobre História e Cultura 191

compareceram à missa de sétimo dia do avô. O único


irmão dela, Mario Serafim da Silva, foi engenheiro da
Central do Brasil e morreu em 1975.
Ainda que heterogênea em si, a obra de
Nelson Rodrigues mantém identificáveis padrões.
Diálogos rápidos, sem longas descrições, reduzindo o ser
humano a seu aspecto mais mesquinho. O ridículo inunda
suas obras artísticas: indivíduos patéticos, sociedades
patéticas, desejos patéticos. Mais do que isso, Nelson se
dedica a explorar o pequeno. O indivíduo pequeno, em
suas pequenas relações humanas, controlado
artificialmente pela mesma coleira da sociedade liberal
contemporânea que, conforme explorado no início deste
trabalho, impulsiona a violência como estética. Uma
comédia/drama da vida privada, aos moldes brasileiros.
Nas obras de Nelson, esse mesmo indivíduo se
movimenta através de formas para, gritando, se libertar
dessas amarras e tornar explícito os instintos suprimidos.
Instintos que, quando enjaulados, formam um cristal de
hipocrisia proporcional ao quanto se tenta reprimi-lo.
Ainda que fosse crítico da psicanálise, a
obra rodrigueana apresenta, através da ficção, parte das
ideias de Sigmund Freud (2011) sobre repressão sexual,
como pode ser visto em A serpente, sua última peça.
Nela, uma irmã “empresta” seu marido para a outra,
insatisfeita com a impotência e violência do seu. Em um
desfile de falsidades, traições e hipocrisias, o quadrilátero
amoroso naturalmente termina em tragédia. Já em Anti-
Nelson Rodrigues, autodenominada “peça psicológica” e
reedição de uma crônica anterior, Cheque de amor, o
filho de um rico empresário se dobra na tentativa de se
relacionar com uma de suas funcionárias, disposto a tudo
Diálogos Sobre História e Cultura 192

para tê-la consigo. Tão mais mesquinho é o final,


conforme este filho tenta de fato comprar o seu interesse
amoroso.
Todos esses exemplos trazem à baila tanto o
cenário do ridículo em Nelson, como a importância do
sexo – e sua consequente repressão – à sua obra. Ainda
que sem incorrer a biografismos, com a ciência de que
qualquer obra é maior do que seu autor, é possível
apreender pedaços de reacionarismo em suas obras,
conforme sugere Flávio Aguiar (RODRIGUES, 2005, p.
85). Ainda que se afirme que a obra de Nelson, a despeito
de sua posição política, é progressista, na prática é
perceptível partículas da matriz maistreana clássica. Uma
visão predominantemente negativa do humano como
patético, degenerado, corrupto que não falha em emular
Joseph de Maistre (1974, p. 52).
E não há forma teatral melhor de explorar
um moralismo reacionário do que a farsa. A grande
crítica em formato de peça contra tudo e todos, sem
poupar ninguém, apropriado para explorar todos os
múltiplos aspectos da podridão humana. E Nelson (2004)
faz exatamente isso em Viuva, porém honesta.
Demolidor, destroça críticos de teatro, jornalistas,
psicanalistas, padres. Na farsa, bem como na sátira, os
personagens despem-se completamente da coleira social
que Nelson busca tanto mostrar, e o absurdo que advém
disso. Como lembra Flávio Aguiar, “Nenhum
personagem, numa farsa, deve ser levado a sério. O teatro
farsesco exibe as fraquezas do ser humano, o caráter
falível das suas iniciativas, sua tendência para corromper
ou se deixar corromper.” (RODRIGUES, 2004, p. 69) O
exagero como ferramenta de ataque às hipocrisias e
Diálogos Sobre História e Cultura 193

mesquinhez humanas, portanto, pois, como diz Belzebu


em dado momento da narrativa, é “falsa a família, falsa a
psicanálise, falso o jornalismo, falso o patriotismo, falsos
os pudores, tudo falso!” (RODRIGUES, 2004, p. 64) Em
uma ação paradoxal, Nelson inunda moralismo para
atacar, ele próprio, o moralismo fingido que implica em
degeneração das várias camadas sociais.
Da mesma forma que Nelson joga com a
metalinguagem ao colocar personagens reais em suas
peças, como Salim Simão em Anti-Nelson Rodrigues,
Cristiane Lisbôa o faz. E, da mesma forma que Nelson,
Lisbôa também exagera exponencialmente o ridículo
desses personagens, em particular os personagens reais
transpostos à ficção. Pega supostos fragmentos da
personalidade desses indivíduos e os eleva ao infinito. Se
Sylvia era adúltera, então ela também era incestuosa. Se a
literatura de Nelson era imoral, então ele próprio também
o era. A absorção do real pela ficção cria personagens
excessivos, em um processo de hipérbole do ridículo
humano: “Eu pensava, é interessante, que o Salim Simão
fosse mais um personagem do Nelson Rodrigues. E
quando d. Joice me disse, eu quis duvidar. Não é
possível” (RODRIGUES, 2005, p. 60).
Ainda que Sylvia não sabe dançar busque
emular a obra de Nelson no geral, sua proximidade com a
forma e conteúdo de O casamento é particularmente
perceptível. No livro, um rico e poderoso empresário,
guardião da moralidade e dos bons costumes apesar de
ser adúltero, estuprador e incestuoso, desloca uma figura
desumanizada de serafim à sua filha mais nova, o que o
faz sacralizar o vindouro casamento dela. Recebe com
choque, assim, a notícia de que seu genro é supostamente
Diálogos Sobre História e Cultura 194

homossexual. Com uma trama reduzida a um espaço de


alguns poucos dias, em que são justamente o preconceito
e a hipocrisia os catalisadores da destruição das
aparências de família burguesa ideal, da destruição da
coleira da civilização.
Em O casamento, nada é o que aparenta ser.
Assim como as outras peças que foram trazidas como
exemplo, o enredo é pura hipocrisia e falsidade. O
casamento é falso – não há amor - a moralidade do
protagonista é falsa – é um violento predador sexual. Até
mesmo o seu choque com a suposta homossexualidade de
seu genro é hipócrita, considerando que, conforme relata,
ele próprio teve experiências homossexuais. Em um ato
de projeção, os personagens buscam restringir e controlar
em terceiros justamente aquilo que desejam eles próprios.
Ou, para retomar Freud (2011), a repressão e frustração
sexual canalizada em tentativa de controlar o alheio. A
tentativa de criar um verniz inorgânico e maniqueísta de
benevolência, o conhecido “cidadão de bem”, implica na
supressão dos instintos mais básicos e, à luz das atitudes
do protagonista, Sabino, torna-se insustentável: “-
Sabino! Eu te conheço há trinta anos. E, durante esses
trinta anos, você já me disse, umas quinhentas vezes, que
é ‘um homem de bem’. É, Sabino, você gosta de se
apresentar como ‘homem de bem’” (RODRIGUES,
1992, p. 27). De modo igual, afirma-se cristão. Bom, pois
cristão. Como se o cristianismo o congelasse em cristal
de benevolência, tornasse qualquer imoralidade
impossível: “É mentira! Mentira! Sou católico praticante,
cristão. Eu não acredito que uma mãe seja lésbica da
própria filha! Não acredito! [...] É adúltera, mas lésbica,
não. E muito menos lésbica da própria filha. Eu sou
Diálogos Sobre História e Cultura 195

cristão, eu sou cristão!” (RODRIGUES, 1992, p. 207) Ao


final, como uma panela de pressão, as mentiras
acumuladas explodem e soterram Sabino, que acaba por
assumir um crime que não cometeu. É preferível, assim,
ser condenado a lidar um dia a mais na chuva torrencial
de fraudes.
Entretanto, à luz da História, torna-se
irônico Nelson colocar argumentos na boca ficcional de
Sabino semelhantes ao que sua família usou contra
Sylvia Serafim. Encarnando a mesma figura de “cidadão
de bem” e “família tradicional”, o assassinato foi
relegado a segundo plano. Seu crime maior foi ser
escritora e jornalista em 1929, ter tido a vaidade de
desmanchar “seu lar para escrever contos nos jornaes”.
Um argumento resumido pelo advogado de acusação,
quando este afirmou que a ré “Trocou sua condição de
anjo do lar pela profissão de jornalista, para satisfação de
sua vaidade” (CASTRO, 1992, p. 98). A edição de A
Crítica de 26 de agosto de 1930 (Figura III) trazia que
“Os amigos da assassina Sylvia Serafim tentam
equiparal-a ás virtuosas damas de nossa sociedade”. Já a
edição de 21 de agosto de 1930 (Figura IV) dizia “Como
classificar uma mãe que desmancha seu lar para escrever
contos nos jornaes? Ousará Sylvia Thibau fazer essa
singela pergunta ás mães cariocas?” Não é sem motivo
que o assassinato em si só é mencionado em letras
miúdas depois de palavras-chave como “família”, “mães”
e “lar”. A figura da família de bem não falha em ser
invocada, impondo o verniz de benevolência e
maniqueísmo.
Diálogos Sobre História e Cultura 196

Figura 3.
Segunda página de Crítica de 26 de agosto de 1930, número 558.
Fonte: Biblioteca Nacional, Hemeroteca.
Diálogos Sobre História e Cultura 197

Figura 4.
Matéria de capa de Crítica de 21 de agosto de 1930, número 554.
Fonte: Biblioteca Nacional, Hemeroteca.

Sylvia não sabe dançar bebe diretamente dessa


tradição rodrigueana. Aplica a mesma forma de
melodrama, pegando traços do real, frações do que de
fato aconteceu, para exagerá-los. Se afirma, em seu
subtítulo, uma “pulp fiction de costumes”. Uma comédia
de erros que mescla o grotesco e o bizarro, na tentativa
de simular os traços da farsa reacionária de Nelson, ainda
que se deseje ser um “Comovente relato de Sylvia”
(LISBÔA, 2008, p. 07). Neste romance, Sylvia é
transformada de jornalista e escritora para professora de
balé, ainda que mantenha os mesmos pseudônimos que
sua contraparte (assinava algumas de suas colunas como
Le Petit ou Petite Source), “conhecida em alguns locais
de fino trato como Le Petit” (LISBÔA, 2008, p. 07).
Desaparecem quaisquer traços de sua militância política,
Diálogos Sobre História e Cultura 198

substituída por uma caricatura infantilizada que parece


saída dos editoriais mais raivosos da Crítica. Nelson não
recebe tratamento muito melhor, termina vítima de sua
própria metalinguagem – se transformava personagens
reais em ficção, diversas ficções sobre sua vida fazem o
mesmo. Assume uma face semelhante à de Oswaldinho,
de Anti-Nelson Rodrigues, repensado ele também como
uma criança mimada e manipuladora. O assassinato de
Roberto, estetizado ao seu limite, torna-se não mais do
que uma disputa patética entre dois infantes brincando de
serem adultos.
Na obra de Lisbôa a sombra do incesto – e a
tentativa a qualquer custo de afastá-lo -, bem como em O
casamento, aparece como força motriz. Lisbôa consegue,
no processo, uma redução bem-sucedida de Sylvia à
figura mais caricata e patética descrita nas páginas mais
virulentas da Crítica. Pois nem A Crítica poderia fazer
melhor: muito mais do que Literata do Mangue ou
Cadela das Pernas Felpudas, não há vingança maior do
que tornar Sylvia uma personagem de Nelson Rodrigues,
absorvida por todo o ridículo que esse processo implica.
Considerando a lacuna de informação sobre como
teria sido a conversa entre Sylvia e Roberto nos
momentos que antecederam o assassinato, Lisbôa aplica
a licença de imaginá-la. Roberto torna-se tão caricato
quanto Sylvia e, na prática, quanto todos os personagens,
rindo debochadamente de suas súplicas patéticas – em
especial quando esta utiliza, em desespero, um
argumento de autoridade, um “você sabe com quem está
falando”?

Esta não é a melhor frase para um momento


como este, bem sei. Mas não posso aceitar a sua
Diálogos Sobre História e Cultura 199

oferta e sentar na cadeira em frente à mesa,


enquanto o senhor diz que não tenho razão de
chorar pelo desmoronamento da minha vida
inteira. Ao menos não na sua sala.
Assim que terminei de ler o jornal, demorei
muito para encontrar este azul vestido de tecido
fininho e, na pressa para entrar aqui, tive que
escolher entre passar o kajal com capricho ou
escolher, perfumar e vestir a calcinha. Minha
vaidade externa falou mais alto e cá estou. Bem
maquiada, vestida com elegância. Mas sem
calcinha.
O que eu quero? Que o tempo ande para trás.
Ou que o senhor desminta palavra por palavra
da matéria que o seu pasquim exibe hoje.
Não ria, por favor.
Se me dei o trabalho de vir até aqui, e olhar
bem na sua cara, é porque posso, preciso, quero
e vou desmentir. Com a sua ajuda. Ou você
acha que tem o direito de despedaçar uma
família inteira apenas para garantir o peru de
Natal da sua? Sem ofensas, oras. Estou apenas
sendo o mais sincera que uma mulher consegue.
Não ria.
Pegue seu nanquim, faremos isso juntos, posso
escrever a matéria de retratação, sou a Le Petit
da Gazeta Carioca, sabia?
Não ria. Estou implorando. (LISBÔA, 2008, p.
10-11)

Da mesma forma que Nelson em O casamento,


Lisbôa aplica um fluxo de pensamento em dadas
passagens. Sabino, no livro de Nelson, incorre aos
pensamentos mais absurdos nas horas mais impróprias.
Por exemplo, lembra da cena grotesca da morte do pai a
todo instante (RODRIGUES, 1992, p. 21). Igualmente,
Sylvia se lembra com frequência que está sem calcinha
Diálogos Sobre História e Cultura 200

(LISBÔA, 2008, p. 09). Mesmo nos momentos mais


cruciais, nas maiores crises, o fluxo de pensamento
desses personagens os joga para o ponto mais irrelevante
possível. A forma também se assemelha a O casamento,
com diálogos e descrições velozes, alternando
rapidamente entre os personagens.
Em O casamento, esse fluxo pontual também é
essencial para corroborar o egoísmo e a sordidez do
protagonista. Por exemplo, em uma passagem, ao saber
que sua sobrinha estava morrendo, a despeito de dizer
(como que para justificar e corroborar para si e para os
outros que é o cidadão de bem que afirma ser) que a
prioridade é “a saúde, a vida!” (RODRIGUES, 1992, p.
146) da sobrinha, pensa e preocupa-se inicialmente se ela
teria batido seu carro e prejuízo que isso causaria. Em
outra passagem, é sua esposa quem explicita o misto de
mesquinhez com individualismo, ao pensar se a morte da
secretária de Sabino iria prejudicar a repercussão do
casamento de sua filha. Afinal, pouco importa a morte do
alheio, pois “O importante é o casamento”
(RODRIGUES, 1992, p. 255). Nas estruturas urbanas e
liberais contemporâneas, nas quais os instintos devem ser
reprimidos a qualquer custo justamente para permitir a
existência dessa vida em sociedade, impõe-se um verniz
de preocupação com o outro, uma falsa empatia que
mascara o que o filósofo político Alexis de Tocqueville
apontou ao dizer que cada ser humano “existe apenas em
si mesmo e somente para si mesmo” (apud SENNET,
2003, p. 264). Sabino fica feliz ao saber que o carro está
intacto, e envergonhado por ficar alegre com isso
(RODRIGUES, 1992, p. 147).
Diálogos Sobre História e Cultura 201

A imagem de Sylvia na obra de Lisbôa é tão


paradoxal quanto a reforçada pela Crítica na época do
julgamento. Simultaneamente psicótica e perversa, com
requintes de histeria, Sylvia personifica a louca do sótão,
a bruxa a ser queimada na fogueira. Uma imagem de
bruxa que não falha em retomar os poderes sobrenaturais
que Ruy Castro (1992, p. 129) ou os Rodrigues a
concedem, como quando afirmam que “Era como se,
mesmo morta, Sylvia ainda tivesse em suas mãos o
destino de Joffre e não quisesse poupá-lo.” Ademais,
Sylvia não sabe dançar deixa ambíguo as motivações da
personagem-título. Por vezes, aparenta encarnar Lígia em
A serpente, com o aspecto clássico da mulher
dissimulada, calculista, femme fatale, como na abertura
ao apontar que Sylvia era “dona de um par de olhos
verdes como as cobras de peçonha mais belas”, mas
também dotada de “um coração puro, sofredor da
maldição do eterno desabrochar” (LISBÔA, 2008, p. 07).
Em outras, Sylvia aparece como vítima de manipulações
de Nelson ou de uma grande conspiração, como uma
criança ingênua perdida em um mundo que não
compreende (LISBÔA, 2008, p. 137).
A flexão entre real e ficção, a apropriação do real
à criação do real paralelo da ficção, é reforçado logo ao
início, quando a autora reforça que “Há partes muito
ricas em amor, ódio, vingança, doçura, verdade, mentira e
outras em que os fatos são apenas relatados. De qualquer
maneira, é sempre bom acreditar” (LISBÔA, 2008, p.
07). Assim, Lisbôa buscou propositalmente trafegar na
fronteira frágil entre real e ficção, flexionando linhas nem
sempre explícitas. Um exercício narrativo que não difere
muito do que foi feito extensivamente sobre a vida de
Diálogos Sobre História e Cultura 202

Sylvia, em parte por aqueles que buscam um verniz de


objetividade e imparcialidade, replicando, no processo, a
mesma mistura entre ficção e verdade. Para corroborar no
tráfego entre os dois reais, a autora abre o livro com uma
série de depoimentos que, de fato, empregam uma
mimésis impecável ao se aproximarem de frases
registradas pela História. “Quem terá coragem de
frequentar a missa aos domingos”, por exemplo, dita por
um repórter ficcional, não falha em repetir algumas das
manchetes da Crítica discutidas anteriormente, ou
argumentos dos grupos conservadores/reacionários.

Considerações finais

A obra de Nelson Rodrigues, via de regra, faz


uma apologia do pequeno, do irrelevante. Mulheres e
homens pequenos, sem importância e, por isso mesmo,
estetizados. Tanto Sylvia não sabe dançar quanto O
casamento, cada qual a seu modo, elevam
exponencialmente o mesquinho à maior potência,
sacralizam o banal e desenvolvem uma prosa sobre o
homem-nada. Mas, se as dissonâncias são consideráveis,
também o são as semelhanças, o que permite, em última
análise, colocar Sylvia não sabe dançar como uma
tentativa bem-sucedida de emular a estética de Nelson. E,
dentre elas, o banal. Em ambos, o traço comum da
melancolia de se saber insignificante no largo escopo das
coisas.
Quando se analisa a obra de Nelson Rodrigues,
em geral o primeiro termo que se pensa é patético. Em
segundo plano, cotidiano. Uma epifania do cotidiano
Diálogos Sobre História e Cultura 203

patético, o momento sublime sobre o inócuo. Belo,


justamente porque irrelevante. Uma epifania porque, na
era do gigante e dos extremos, apenas no pequeno pode
residir o sublime. Em Nelson o homem é pequeno porque
ordinário, imerso no individualismo medíocre que
característico das configurações urbanas modernas, com
suas cidades inundadas por milhões de anônimos. Um
homem pequeno que experimenta um momento
extraordinário – traição, violência, incesto – que o tira
bruscamente do “cotidiano banal”, para utilizar uma
imagem criada por Camila Uchoa (2017).
Cristiane Lisbôa procurou fazer parecido em seu
romance. Inicialmente é dado ao leitor uma professora de
balé, imersa na irrelevância, que comete um ato último.
Tanto Sylvia quanto Nelson se tornam, assim, vítimas do
próprio estilo rodrigueano: transpostos à pele de
personagens patéticos, hipócritas, engolidos por suas
pequenezas. As complexas motivações do crime real são
destroçadas na transposição para o crime ficcional. Ideias
políticas, fomentadas por um caldeirão econômico e
ideológico de ambos os lados, transformados em não
mais do que simples razão psicológica: ciúmes. Ciúmes
em uma relação bizarra, tão bizarra quanto os ímpetos
incestuosos de O casamento. Tão bizarra que poderia,
nesse sentido, ter sido escrita por Nelson Rodrigues.
Diálogos Sobre História e Cultura 204

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Diálogos Sobre História e Cultura 207

Repensando a colonialidade na
prática: as releituras literárias do
Exército Zapatista de Libertação
Nacional (EZLN) em 1994 na figura
do Velho Antonio.
Rethinking the coloniality in practice:
the literary reread of Zapatista Army of
National Liberation (EZLN) in 1994 in
the figure of Old Antonio.
Igor Marconi1

Resumo

Tendo em mente o conceito de colonialidade e a forma


como esta impacta as práticas culturais, de saber e poder,
propõe-se neste capítulo destacar o papel do Exército
Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) – movimento
social presente na atualidade e política mexicana desde
1994 – como um vetor de diferentes perspectivas
advindas de baixo e à esquerda, ou seja, não apenas em
um sentido emancipatório e de superação do sistema
econômico capitalista, isto é, anticapitalista, mas também
a partir de populações da periferia e vinculadas aos povos
originários do que hoje se chama América. Com isso,
1
Mestre em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).
E-mail de contato: igormarconi66@hotmail.com.
Diálogos Sobre História e Cultura 208

pretende-se abordar interpretações históricas sobre as


produções culturais do movimento, em especial as
literárias e vinculadas à figura de um ancião indígena,
Velho Antonio, transformado em personagem nos escritos
do Subcomandante Insurgente Marcos no ano de 1994.
Para tal, utiliza-se o suporte teórico de intelectuais como
Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Enrique Dussel, Emil
Keme, entre outros para observar a complexa relação
entre cultura e política para além de determinismos
históricos e formula-se a busca por uma análise pautada
na fonte e no documento enquanto repositórios de
memória. Desta forma, ainda, pretende-se trabalhar com
o envolvimento entre cultura e política na história e, em
especial, a vinculação desta inter-relação ao movimento
social em pauta.
Palavras-chave: EZLN; Velho Antonio; 1994; México.

Abstract

Keeping in mind the concept of coloniality and the form


it impacts the cultural practices, of knowledge and power,
we aim to put in fact the role of Zapatista Army of
National Liberation (in Spanish, Ejército Zapatista de
Liberación Nacional, EZLN) – a social movement that
exists in actuality and in the politics of Mexico since
1994 – as a vector of different perspectives coming from
below and from left, i.e., not just in terms of emancipate
and the overcome of capitalist economy system,
videlicet, anti-capitalist, but as well from the population
of periphery and attached to the original people of what
is nowadays is named America. Therefore, we order to
Diálogos Sobre História e Cultura 209

show historical interpretations of cultural productions of


EZLN, in special the literary and linked to the figure of
an ancient indigenous, Old Antonio, that became a
personage in the writers of Sub-Comannder Insurgent
Marcos in 1994. We pretend to utilize the theoretical
support of intellectuals as Walter Mignolo, Aníbal
Quijano, Enrique Dussel, Emil Keme, and others, to note
the complex relation between culture and politics from
beyond historical determinism e formulate the search for
an analyses lined in the sources and documents as a
repository of memory. Thus, we aim to understand the
implication of culture and politics in history and specially
attached to the social movement showed here.
Keywords: EZLN; Old Antonio; 1994; Mexico.
Diálogos Sobre História e Cultura 210

Repensando a colonialidade na
prática: as releituras literárias do
Exército Zapatista de Libertação
Nacional (EZLN) em 1994 na figura
do Velho Antonio.
Igor Marconi

Introdução

Era 1º de janeiro de 1994 quando o México e o


mundo acordaram com a notícia de um levante armado
no Estado de Chiapas, ao sul do país. As comemorações
de ano novo tiveram uma surpresa a mais. O levante se
dava por um grupo armado localizado na região da Selva
Lacandona, em um espaço de fronteira territorial. Os
rebeldes, utilizando pasamontañas, escondiam seus
rostos e publicavam uma declaração informando quem
eram: “Somos producto de 500 años de luchas”, uma luta
que estabelecia não apenas uma continuidade
cronológica, portanto, mas de vinculação histórica.
Este processo torna público a figura de um
movimento social existente até a atualidade no México: o
Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN).
Atuando em uma região autônoma controlada pelo grupo,
o movimento permanece em constante relação de disputa
de poder há quase 30 anos. Entre avanços e recuos, entre
um ou outro governo, adapta-se a diversas desavenças e
tentativas de extermínio, justamente por ser uma ameaça
Diálogos Sobre História e Cultura 211

constante à homogeneidade histórica, de uma narrativa


linear, que estabelece uma alternativa real e direta ao
capitalismo.
Todavia, para se propor ao mundo enquanto
alternativa, é preciso entender e indagar as condições de
existência do movimento e suas relações sociais,
culturais, políticas e econômicas, mesmo nas
contradições existentes. Neste sentido, a contraposição a
uma lógica dominante se demonstra em aspectos práticos
e discursivos: de que forma o movimento estabelece a
própria narrativa e como esta se envolve com a
administração cotidiana da vida e as visões de mundo
compartilhadas pelo grupo? Mais ainda, qual o impacto
dessa relação na perspectiva da historicidade, ou seja, da
construção e manutenção da identidade interna mas
também em relação ao mundo externo, em especial aos
mexicanos?
Com este intuito, observa-se a necessidade de se
analisar um dos aspectos que compõem a identidade do
movimento e a maneira como são apresentadas ao mundo
as perspectivas zapatistas. Para isso, este capítulo dá
enfoque a uma pequena parte da produção literária do
movimento: os escritos do então porta-voz do EZLN,
Subcomandante Insugente Marcos, que envolvem uma
relação íntima com um ancião e personagem histórico,
Velho Antonio, em produções literárias no ano de 1994.
Estes documentos, contidos no arquivo histórico
do movimento, disponível na rede mundial de
computadores e publicados em livro em 1998,
representam uma tentativa do EZLN em estabelecer
vínculos históricos e memoriais que envolvem a cultura
indígena de descendência maia e presente no movimento.
Diálogos Sobre História e Cultura 212

Estabelece um confronto com os discursos racistas que


defendiam o controle de membros indígenas do
movimento por parte de ladinos2, isto é, caracterizando
os indígenas como gentios3 (MARCONI, 2020, p. 23-36).
Por isso, “repensar a colonialidade na prática”,
como indica o título, tem o intuito de destacar o papel de
extrapolar esta lógica pautada no sistema-mundo
moderno-colonial capitalista que se institui no território
hoje conhecido como América desde o processo de
invasão por parte dos povos europeus e que se mantém
na atualidade (QUIJANO, 2009, p. 73-76).
Pensar a extrapolação desta lógica, para o
movimento zapatista, no sentido prático também é o de
estabelecer um levante armado, um controle territorial, e
uma reinterpretação total da história, da cultura, da
política, da economia e da sociedade mexicana e de
Chiapas. A emancipação, assim, envolve profundamente
a relação entre história e literatura como uma produção
cultural que executa e difunde uma outra visão de mundo
com herança indígena, neste caso de descendência maia e
parte para a difusão da superação da colonialidade no
território controlado pelo movimento. A literatura de
Marcos e Antonio são, assim, marcas de uma ação
socialmente global.
Como característica, os documentos destacados
estabelecem uma construção literária, com arranjos e
estruturas de contos de cunho infantil, fábulas, com
propostas de ensinamento, retratando e se vinculando aos
2
Para o contexto mexicano, a palavra ladino faz referência a brancos
e a mestiços, não-indígenas.
3
Ingênuo, incapaz, que precisa ser educado. Na perspectiva da
colonização, trata-se da maneira como os povos indígenas foram
tratados pelos europeus invasores. (DUSSEL, 1994, p. 50)
Diálogos Sobre História e Cultura 213

deuses e culturas de descendência maia. Uma produção


cultural que almeja representar, a partir de uma relação
própria entre o escritor e o personagem, aspectos da
interpretação de mundo do movimento social e,
principalmente, dos membros indígenas.
Para compreender a produção do movimento, é
necessário nos aprofundarmos em suas características e
ações. Para isso, este escrito se organiza em três partes:
na primeira, institui-se as características gerais do
movimento, os aspectos da organização e as práticas que
envolvem o ano de 1994 em uma perspectiva
cronologicamente ampla, além do papel do porta-voz e
do ancião no movimento e em sua relação literária; a
segunda, observa-se alguns conceitos fundamentais e
métodos para a análise das fontes, pontuando
perspectivas como a da colonialidade, da cultura e
temporalidade indígena; por fim, busca-se uma
apresentação e análise das fontes, almejando
compreender o processo de relação entre a cultura e a
política que se demonstram nos contos.

1. O Exército Zapatista de Libertação


Nacional (EZLN)

De maneira direta, é importante ressaltar que o


EZLN precisa ser entendido como um movimento social
indígena. A grande maioria dos seus membros, o Comitê
Clandestino Revolucionário Indígena – Comando Geral
(CCRI-CG), uma espécie de centro de operações do
movimento – com características militares, como o é
inicialmente a constituição do EZLN – bem como as
Diálogos Sobre História e Cultura 214

indagações e as demandas referem-se à situação e à


presença massiva de indígenas, naquilo que se articula
em uma situação dos movimentos sociais na chamada
comumente de América Latina (ALVAREZ, DAGNINO,
ESCOBAR, 2000, p. 16-57; MARCONI, 2020, p. 23-36).
Observar esta situação é, de início, central para a
concepção da leitura de mundo produzida pelo
movimento. Além disso, é essencial para pautar a revisão
das noções eurocentristas que abarcavam, no processo de
aparição pública dos zapatistas, uma infantilidade ou
incapacidade indígena. O próprio movimento, em seus
comunicados e ações, especialmente no controle das
decisões pelo CCRI-CG, deslegitima esta afirmação.
Em um exemplo, podemos citar o diálogo entre
Subcomandante Marcos e Angel, um indígena tzetal e
combatente do EZLN, sobre as publicações da imprensa
acerca da revolta chiapaneca em janeiro de 1994. Ao
revisar um periódico, o Subcomandante destaca que o
autor da publicação afirma que os indígenas,
costumeiramente, não se preparam tão bem e não são
articulados nas ações públicas, compreendendo que o
levante armado somente poderia ser resultado de uma
ação estrangeira ou não-indígena. Angel, revoltado,
afirma:

¿Por qué siempre nos piensan como niños


chiquitos? (…) ¿Por qué para ellos nosotros no
podemos pensar solos y tener buen pensamiento
con buen plan y buena lucha? (…) ¿Acaso la
inteligencia sólo llega en su cabeza de ladino?
¿Acaso nuestros abuelos no tuvieron bueno su
pensamiento cuando ellos eran? (EZLN, 26 jan.
1994).
Diálogos Sobre História e Cultura 215

É preciso, dessa forma, observar que a articulação


do movimento é dada pelas vontades indígenas, que se
estruturam de uma maneira própria, e unificadas a um
conjunto urbano. Portanto, o EZLN se demonstra como a
articulação de duas frentes, uma indígena, de origem
chiapaneca e descendência maia e outra, no ladino
urbano, revolucionário e marxista, em especial de grupos
maoístas que agiam no território de Chiapas. O
envolvimento destes dois grupos estabelece o EZLN.
Porém com a centralidade no primeiro, como já
destacado anteriormente.
Nas discussões sobre a origem do movimento, são
apresentadas as interações entre esses dois grupos. No
caso indígena, a movimentação tem como pauta os
direitos nativos que se desenvolvem com maior vigor no
México e especialmente em Chiapas a partir da década de
1970. Neste contexto, são organizados encontros e
articulados a interação dos diversos povos indígenas da
região a partir do Congresso Indígena de 1974, inspirado
pela Igreja Católica e o avanço da teologia da libertação
nas Américas. Em Chiapas, especificamente, articulados
pela ação do bispo Samuel Ruiz (ANDREO, 2010, p.
163-167).
De origem rural, os povos indígenas da região
acabam por se envolver em um contexto de maior
visibilidade que se apresenta seja no desenvolvimento de
uma antropologia que busca rever os aspectos
indigenistas das políticas mexicanas, em especial nas
ações do Instituto Nacional Indigenista (INI), criado em
1951 no país, ou nas ações dos organismos internacionais
como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a
promulgação da convenção 169 de 27 de junho de 1989,
Diálogos Sobre História e Cultura 216

em Genebra, com o tema “Sobre Povos Indígenas e


Tribais” que articulava espaço político aos grupos étnicos
nativos da agora América, entre outras ações como a
literatura indígena que começa a ganhar notoriedade nas
décadas de 1980 com Rigoberta Menchú na Guatemala,
na promulgação da década dos povos indígenas pela
Organização das Nações Unidas (ONU) em referência
aos anos 1990 ou ainda a data dos 500 anos de invasão e
conquista do território indígena (MARCONI, 2020, p.
23-36; VALLE ESCALANTE, 2015, p. 10-36).
De outro lado, parte do grupo formada por
ladinos, são de membros urbanos que se deslocam à
região de Chiapas para atuar como célula guerrilheira da
Frente de Libertação Nacional (FLN) que se instala no
norte do Estado com características marxistas-leninistas,
em estratégia foquista-guevarista, formada por parcelas
da classe média, como professores universitários, que
objetivavam fomentar a luta armada como processo
revolucionário. A estrutura da FLN se articulava
especialmente por um momento histórico de ascensão de
discrepâncias internas no México entre governo
controlado pelo Partido Revolucionário Institucional
(PRI) e intelectuais ligados à Universidade e parcelas das
classes médias. A cisão de um pacto de governo entre os
dois grupos é característico, de maneira cada vez mais
latente, após as manifestações estudantis de 1968-1969 e
o massacre da praça de Tlatelolco. (SMITH, 1998, p.
115-118).
Por meio da interação entre os dois grupos, dada
em anos de convivência na Selva Lacandona, o
movimento se estrutura para aquilo que se torna público
em 1994: um exército popular, com estrutura militar, que
Diálogos Sobre História e Cultura 217

entra em conflito com o governo mexicano. A


justificativa para o conflito, na visão zapatista, se dá
como alternativa final, ou seja, na proposta de que todos
os meios de diálogo e diplomacia haviam se esgotado,
restando apenas a luta armada.
Este processo está interligado a um conjunto de
ações políticas por parte do governo mexicano, em
especial a entrada em vigor do Tratado de Livre
Comércio da América do Norte (NAFTA, na sigla em
inglês). A articulação do tratado se deu por anos e, entre
as cláusulas para a entrada do México estava a estrutura
fundiária. Em 1992, o governo altera o art. 27 da
Constituição Federal e coloca fim à propriedade coletiva
dos ejidos4, compreendida pelo movimento como ação de
destruição da tradição e cultura dos povos indígenas,
vinculando-se à ação da Revolução de 1910 no México,
que foi a responsável pela estruturação legal deste tipo de
propriedade.
Estas ações colocam em cheque a proposta de
controle institucional da Revolução de 1910 que é dada
pelo PRI, partido que ficou no controle político mexicano
desde a consolidação da revolução até o ano 2000. Este
processo, em conjunto com as distensões políticas no seio
do partido, envolvem uma crise de governabilidade,
popularidade e de representação. Acentuada desde as

4
Propriedade coletiva de posse do Estado com características
comunitárias que foi instituída legalmente pela Constituição de 1917
após a Revolução de 1910, com enorme resultado para comunidades
indígenas. Foi obtida por meio da ação popular e indígena que
caracteriza o processo da Revolução. Apesar disso, é importante
destacar que a cessão de terras por parte do Estado para comunidades
indígenas ser prática comum desde o período colonial e da criação
do Estado Nacional Mexicano. (HARVEY, 1998, p. 50-51)
Diálogos Sobre História e Cultura 218

eleições de 19885, se torna latente no contexto das


eleições de 1994 e com o assassinato de Luis Donaldo
Colosio, candidato priísta à presidência da República.
A estrutura do movimento social, origens e ações
iniciais, envolvidas em um contexto de crise política e de
representação do governo, marcam o momento de
aparição pública do EZLN. Cabe observar como este
contexto é compreendido pelo movimento, na busca de
uma lógica de superação da colonialidade e, em especial,
como a literatura se torna uma forma de divulgação das
ideias zapatistas. Para isso, precisa-se observar o papel e
a relação entre o escritor dos comunicados zapatistas e o
personagem das histórias. Também é importante
estabelecer uma visão sobre a estrutura literária utilizada.
O autor dos comunicados e documentos do EZLN
no ano de 1994 é o porta-voz do movimento,
Subcomandante Insurgente Marcos. Trata-se de um dos
membros urbanos e ladinos presentes no EZLN.
Justamente por tal motivo, Marcos se torna uma
referência importante nas palavras zapatistas. Enquanto
intelectual, com formação superior, Marcos se destaca
pelo uso das palavras e na maneira de dialogar com a
sociedade civil, demonstrando os interesses do
movimento. Neste sentido, apesar do controle indígena, é
um ladino responsável por escrever os comunicados.
E qual seria o motivo? Por que não ser um
indígena? Na perspectiva do movimento, não se trata de
capacidade pautada na diferenciação racial, mas no
objetivo geral do movimento, que é de alcançar a
sociedade mexicana. Neste intuito, Marcos se torna um
5
Disputa presidencial entre Carlos Salinas de Gortari (PRI) e
Cuauhtémoc Cárdenas (FDN) em que ocorre uma fraude eleitoral,
dando vitória ao primeiro (FUSER, 1995, p. 25-28).
Diálogos Sobre História e Cultura 219

porta-voz das decisões do CCRI-CG e dos comunicados


criando uma estética própria. Capaz de desenvolver uma
relação de tradução, Marcos intercala as perspectivas das
origens do movimento: enquanto ladino e intelectual
urbano, consegue articular uma compreensão histórica,
social, política e cultural que encontra no mexicano das
cidades, também ladino, um interlocutor para com o
grupo rebelde. Ao mesmo tempo, devido ao longo
processo de interação com o mundo indígena, consegue
transportar a perspectiva rural e nativa para a população
urbana. Torna-se, então, um tradutor, uma ponte, um
vínculo necessário tanto à sociedade na compreensão do
movimento quanto ao movimento na interação com a
sociedade (MIGNOLO, 2019, p. 123-165).
É a partir de Marcos que as visões indígenas e
rurais chegam ao ladino urbano. E vice-versa. Neste
processo, a interação dos dois mundos representa a
manutenção do movimento, que se vê diante da
necessidade de apoio popular no momento que se torna
público. Para este processo, Marcos articula um modo de
escrever que se torna singelo no processo de tradução
destacado: as histórias e relatos na figura de Velho
Antonio.
Antonio foi um indígena chiapaneco que se
envolve com o movimento zapatista na década de 1980 e
teve um filho de mesmo nome que atuou no EZLN,
casado com Juañita e com uma filha levada pela fome.
Morre em 1994 em decorrência de uma tuberculose. É a
partir da relação com Antonio que Marcos escreve os
contos que se tornam referência do mundo indígena para
os ladinos. Neste processo de tradução, Marcos
representa uma inversão das perspectivas coloniais: se a
Diálogos Sobre História e Cultura 220

partir da invasão europeia o branco se viu no direito de


impor sua cultura ao indígena e se utilizava da tradução
dos escritos cristãos à linguagem nativa, o EZLN impõe
ao branco uma oralidade e ritmo rurais, com estruturas,
símbolos e mitos indígenas, com objetivo de ensinar aos
não-indígenas a mensagem política que carregam
(MARCOS, 1998, p. 7-17).
Esta relação é responsável pelos escritos literários
que são abordados aqui. Antonio se torna a referência, a
memória, a base indígena do zapatismo e do México.
Marcos se torna o tradutor, o professor e mestre que
ensina a partir do que aprendeu com o ancião. Os escritos
tornam-se a referência dessa relação que é representada
na própria estrutura: tratam-se de contos e fábulas que
são inseridas ou acompanham comunicados oficias do
movimento e que, no processo de escrever, são ditadas
enquanto histórias que envolvem a relação entre o autor e
algumas crianças, que pedem um conto.
Os contos, portanto, se envolvem com uma
estrutura fantástica, com a cultura indígena, e com o
contexto de criação. Por se tratarem de uma interação
infantil, também estabelecem um intuito pedagógico, que
é parte do processo de rebeldia do EZLN, ou seja, da
vontade de revolucionar a compreensão colonial e
estigmatizada dos indígenas na valorização dos símbolos
e mitos, do conhecimento.

2. Métodos e conceitos fundamentais

Agora que compreendemos as perspectivas gerais


do movimento e o contexto que o envolve, é importante
Diálogos Sobre História e Cultura 221

frisar a maneira que e quais as perguntas são feitas às


fontes. É preciso, assim, caracterizar o olhar dado e expor
as perspectivas que estruturam a leitura das fontes.
Em primeiro plano, cabe pontuar a compreensão
geral do movimento para com a superação da
colonialidade que são centrais na análise das fontes.
Assim, qual a compreensão de colonialidade é posta
aqui? De fato, o conceito é compreendido a partir das
noções de Aníbal Quijano. Enquanto sociólogo peruano,
a produção de Quijano estabelece uma leitura do
processo de implementação do capitalismo em um
sentido globalizante, em todo o planeta, e que se envolve
na transformação da Europa e da América em uma
relação de poder racial, de gênero e as formas de
reprodução, de subjetividade e da produção de
conhecimento, na divisão do trabalho, no controle da
natureza/dos recursos, e da autoridade (QUIJANO, 2005,
p. 107-115; 2009, p. 76-87).
Como base, a perspectiva de Quijano estabelece
uma fundamental visão sobre a continuidade do processo
de colonização e do controle social a partir da lógica do
poder: mesmo após as independências nas
Américas, há uma manutenção das características
etnicistas no controle político por parte das elites criollas
que tomam o poder. Este processo mantém a definição de
pessoas de segunda classe aos negros escravizados e
indígenas, subjugando e caracterizando as estruturas
racistas que são mantidas na atualidade. Tal perspectiva,
colocada em pauta, demonstra uma fórmula de
justificação ou naturalização de papéis sociais a partir das
raças, estabelecendo um plano metafísico/místico de
Diálogos Sobre História e Cultura 222

controle de um grupo (branco) sobre outro (não-branco)


tido como natural (idem, 2005, p. 118-126).
A colonialidade, então, é pensada em três planos
de compreensão teórica complementares, alinhado a uma
dinâmica da produção intelectual da América Latina:
primeiro, sob a ótica ética e de dignidade; segundo, sob a
perspectiva do tempo; e terceiro, sob a fundamentação da
produção cultural que envolve a noção de literatura
indígena.
Na perspectiva ética, cabe pontuar a compreensão
do conceito de diferença colonial cunhado por Walter
Mignolo na análise do movimento zapatista (2019). Em
tese, o autor apresenta a leitura de que a localização
geográfica e as culturas que envolvem o sujeito refletem-
se na maneira como este constitui a prática cotidiana.
Neste processo, o impacto da colonialidade estabelece
uma diferença entre as condições de alguém nascido e
que tenha vivido na Europa ocidental e outrem na
América do Sul, mesmo que possuam características
fenotípicas aproximadas. Mais ainda, transporta essa
característica a qualquer localidade que se tenha uma
relação de colonialidade.
Neste sentido, Mignolo estabelece que o levante
zapatista representa, na dinâmica de ação, uma mudança
que não se foca nas estruturas de poder, de controle do
Estado ou de ordem institucional, mas na reorganização
da perspectiva sobre os povos indígenas e os lugares que
ocupam no México. Para Mignolo, mais ainda, numa
perspectiva global sobre a visão dos indígenas em todo o
planeta. Assim, enquanto narra a fala de uma mulher
indígena a dizer, logo após o levante de 1994, que “los
zapatistas nos devolvieron la dignidad” destaca que:
Diálogos Sobre História e Cultura 223

(…) la dignidad se perdió por doquier en


Latinoamérica y el Caribe, así como en
Norteamérica, Australasia, Asia y otras regiones
donde no existió intervención directa de
España. Por ello propongo una formulación
más general: que la dignidad de los pueblos
indígenas les fue arrebatada por la colonialidad
del poder actuante en la configuración del
mundo moderno/colonial desde el Siglo XVI al
presente. (idem, 1994, p. 123).

O levante zapatista e a forma de organização e


ação do movimento estariam pautadas em uma
“revolución teórico/descolonial” do movimento, isto é,
que toma como pauta e como primeiro aspecto a
proporção ética para então sublinhar as práticas
econômicas. Neste sentido, a narrativa do movimento se
estabelece justamente sob uma ótica de
reestabelecimento da dignidade a partir da percepção
autônoma e capaz das populações indígenas.
Para nossa compreensão, a abordagem abre
espaço para se pensar as produções literárias como uma
maneira de abordar um questionamento cultural que se
estrutura na prática pedagógica. Ou seja, observa-se a
ação educativa dos textos como um movimento de
revisão das ações naturalizadas ao longo do processo de
colonização e de manutenção do poder por parte das
elites criollas. Ainda, estrutura-se sobre uma demanda
das populações indígenas, aqui referenciadas pelas
comunidades rebeldes chiapanecas que participam do
EZLN, sobre a retomada da dignidade não enquanto um
universal abstrato – que é pauta da Revolução Francesa,
por exemplo – mas como um conector de experiências
Diálogos Sobre História e Cultura 224

coloniais entre os povos colonizados e os conquistadores


em qualquer lugar do planeta (idem, p. 125).
Processo este que leva tempo. E este tempo
também se organiza de uma maneira diversa ao
movimento zapatista. Na ação de uma revisão sobre as
práticas naturalizadas, o tempo se estrutura como a
construção abstrata das relações humanas com a natureza
e entre si. Na demanda do controle sobre a vida. Neste
sentido, o tempo é marcado, pelo processo da
colonização, a partir da ótica eurocêntrica, ocidental e
cristã, associada a uma ideia linear, marcada pela
sistematização da vida em etapas de ação cotidiana que
se refletem sob desígnios como a instrumentalização da
natureza.
A partir da dinâmica zapatista, a reflexão sobre o
tempo se torna ímpar e parte da revolução aportada. Para
compreender este processo, é necessário conceituar que a
ótica do tempo se torna o ato de rebuscar as obervações e
vivências indígenas. Neste processo, Ríos Gordillo
pontua que o fator temporal se dinamiza e torna-se outra
bandeira de resistência que se reflete no EZLN:

Si la colonización implantó un tiempo lineal,


proprio del Occidente y el Cristianismo, el
resultado no fue la asimilación pasiva de éste
último. Los pueblos mayas preservaron el
tiempo cíclico y sagrado como parte de su
tradición y “el costumbre”, fuese en la siembra
del maíz o en una diversa gama de ritos,
danzas, rezos y fiestas (RÍOS GORDILLO,
2015, p. 93).

A resistência indígena, portanto, é estabelecida


como base de projeção do movimento e se torna prática
Diálogos Sobre História e Cultura 225

comum. Uma resistência que é realizada dentro e


enquanto perdura o processo de colonização. O EZLN
resgata a vivência indígena para estabelecer uma nova
dinâmica de tempo que, além de atingir as percepções
naturalizadas, expõe-se na prática zapatista.
Valemos de dois exemplos: primeiro sobre o
processo de negociação com o governo federal nos
primeiros meses de 1994, o que demanda um período
longo para o retorno das comunidades rebeldes devido à
estrutura de assembleias montadas em cada um dos
espaços de controle zapatista. Neste processo, de
fevereiro a maio de 1994, as comunidades foram
consultadas e deram um aval para a continuidade ou fim
do conflito. Uma proposta que envolve não apenas a
perspectiva de negociação e organização política, mas
que se atua na necessidade de respeito ao tempo
necessário (MARCONI, 2020, p. 37)
Outro exemplo é a forma como se deu o contato
dos membros ladinos do grupo para com os indígenas.
Um processo de estranhamento que se reflete na
característica de tempo adotada. Vale-se de um relato de
Marcos em 18 de março de 1994 à Rádio UNAM, em
que cita a dificuldade de compreender a sistematização
de ideias que os companheiros indígenas formulavam a
partir de uma mescla constante de temporalidades, de um
passado que era ao mesmo tempo presente (EZLN, 18
mar. 1994).
Neste intuito, o tempo se torna parte fundamental
da leitura às fontes visto que estrutura a noção cultural
indígena. Como característica, a construção do tempo de
maneira mais cíclica e ritualística se expande à forma
como o movimento expõe a narrativa, reelaborando
Diálogos Sobre História e Cultura 226

noções sobre o passado e o presente do México e da


situação dos povos indígenas.
Por conseguinte, na abordagem sobre a narrativa e
a construção memorial do levante zapatista de 1994, é
preciso observar as fontes literárias como produções
culturais alinhadas a uma dinâmica local e particular.
Neste sentido, é preciso observar que a produção literária
realizada por Marcos com a figura de Antonio perpassa
uma relação única: a de um tradutor, ladino, para com um
personagem, ancião.
Nesta dinâmica, o conceito de literatura indígena
aqui apresentado se envolve não com a produção direta
de um descendente indígena, mas de um porta-voz de um
movimento indígena. Um comunicador, portanto, que vai
se utilizar da cultura e tradição indígena para produzir um
documento literário com notável cunho político.
Utiliza-se a noção de uma literatura indígena com
ressalvas: a escolha é estética e pautada nas
características do escrito e do movimento que o origina.
Os limites dados à condição de literatura indígena se dão
no fato da origem do escritor, da língua utilizada, da
diferença colonial para com o autor e um indígena – para
se aplicar o conceito abordado anteriormente – o que se
reflete na estrutura dos contos. Nesta concepção, por fim,
a escolha se orienta mais pela importância do movimento
enquanto uma referência emancipatória para as
populações indígenas e, mais ainda, de controle e de
prioridade indígenas que pela característica da produção,
pelo que a define de maneira singular como literatura
indígena (VALLE ESCALANTE, 2015, p. 10-36).
Diálogos Sobre História e Cultura 227

3. Fontes e análises

Os documentos do EZLN foram compilados, em


2005, em um endereço eletrônico que se tornou o lugar
de reprodução e comunicação do movimento. Com um
local destinado ao arquivo histórico, o site organizou as
produções zapatistas a partir de datas de publicação. Tal
processo não apenas identificou um caráter de expansão
da capacidade comunicativa como a estruturação de uma
memória do grupo (EZLN, 25 nov. 2005).
Neste arquivo, nos documentos datados para o
ano de 1994, encontram-se os escritos aqui observados.
São oito documentos com contextos diferentes, mas que
estabelecem uma mesma dinâmica: uma história contada
ou relatada pelo então Subcomandante Insurgente Marcos
utilizando-se da memória e cultura indígenas a partir do
contato com o ancião, Velho Antonio.
Por tratarem da lógica de tradução discutida
anteriormente, os documentos também se caracterizam
enquanto foco de comunicação, envolvidos na produção
e divulgação de alguma decisão do CCRI-CG e do EZLN
como um todo. Tratam-se de suplementos literários que
acompanham estes comunicados.
Por fim, é importante destacar que o foco da
análise é a perspectiva da observação, crítica, revisão, de
repensar, a partir da produção de conhecimento e das
práticas culturais, a constância e permanência da
colonialidade. Neste sentido, os escritos são uma
representação da resistência indígena e uma tentativa de
extrapolar o domínio do pensamento eurocêntrico. Dessa
forma, são também parte da prática do EZLN de
(re)existir.
Diálogos Sobre História e Cultura 228

O primeiro documento em que o Velho Antonio


aparece enquanto personagem é de 28 de maio de 1994.
Intitulado “El Viejo Antonio: ‘En la montaña nace la
fuerza, pero no se ve hasta que llega abajo”, o
comunicado acompanha um outro documento de informe
sobre as consultas às bases sociais do movimento acerca
da negociação com o governo mexicano. É destinado aos
periódicos Proceso, El Financiero, La Jornada e Tiempo.
(EZLN, 28 mai. 1994).
O documento é produzido, como destaca Marcos,
como homenagem in memoriam ao Velho Antonio,
descrito pelo autor como o pai de outro Antonio que
aparece em um documento anterior, de 27 de janeiro de
1994, intitulado “Chiapas: el sureste en dos vientos, una
tormenta y una profecia”. Além disso, na estética do
autor, ressalta a presença de um terceiro personagem nas
histórias: Toñita, uma criança indígena das etnias de
descendência maia que pede a Marcos um conto.
É a partir dessa interação com a criança que o
escritor decide relatar aquilo que havia ouvido do
personagem, Antonio. Neste sentido, o escrito se envolve
em uma dinâmica pedagógica, como conto de criança,
que reproduz uma condição simbólica e cultural de
educar. Toñita transforma-se em uma outra personagem
importante para demonstrar não apenas o processo de
manutenção da cultura indígena de maneira hereditária,
mas da base para a inversão dos papéis sociais
estruturados na consolidação da colonialidade, ou seja, de
valorização do conhecimento indígena para além dos
determinismos eurocêntricos de primitivo ou de
relegados ao passado.
Diálogos Sobre História e Cultura 229

Nos demais documentos, outras personagens são


estabelecidas com a mesma proposta de Toñita, que são
Heriberto e Eva, duas crianças indígenas que interagem
constantemente com Marcos a partir de brincadeiras e
discussões que, por fim, remetem à escrita de um conto.
Esta característica é sublime para a proposta da revolução
teórica estabelecida pelo movimento, em especial por
aproximar o ato de contar, construído na dinâmica dos
documentos, com o de educar agora os não-indígenas,
isto é, na própria aproximação para com as crianças que,
na condição da idade, estão a aprender sobre o mundo. Se
os indígenas são tratados constantemente como crianças e
incapazes, os contos refletem a inversão de tratamento
direcionado aos não-indígenas6.
Voltemos ao primeiro documento. Marcos
estrutura-o a partir de uma relação para com Antonio. É
neste comunicado que também informa e é informado da
morte do ancião a partir do contato com Antonio filho,
responsável pelas atas da comunidade sobre a decisão das
negociações para com o governo. O escritor então se
torna o narrador de algo que, enquanto não-indígena,
havia conhecido por meio do contato com o ancião
(EZLN, 28 mai. 1994).
Nesta dinâmica relacional, destacam-se dois
processos que repensam a colonialidade e que se
apresentam ao longo dos documentos: em um primeiro
momento, a relação indígena para com o místico de
origem maia, ressaltando a continuidade da cultura
mesmo após o processo de conquista e extermínio;

6
Vide a referência a Angel na página 8 e a indignação quanto ao
tratamento infantilizado dado pelos não-indígenas aos indígenas.
Diálogos Sobre História e Cultura 230

segundo, a relação para com a natureza e a manutenção


da vida numa perspectiva rural e indígena.
Na constante relação com a cultura indígena, é
presente nos contos os deuses e explicações sobre o
mundo a partir da ótica dos povos de descendência maia.
Essa relação estabelece, primeiro, a organização e
estrutura do movimento social. É nos contos que Marcos
constantemente destaca a presença de uma assembleia de
deuses para tomarem decisões sobre situações da vida.
Seja na criação dos seres humanos, na criação do sol e da
lua, no nascimento das estrelas, na criação das cores e do
colorir do mundo, na criação das nuvens ou ainda das
palavras. Todos estes processos, relatados como ações
divinas, refletem uma perspectiva de decisão coletiva.
Esta decisão coletiva representa, como prática, a maneira
própria de organização do EZLN a partir das bases
sociais e comunidades, que se mantém na perspectiva do
tempo e das decisões políticas. Reestabelece, então, uma
revisão do conceito e da prática democrática a partir da
participação ampla das comunidades na tomada de
decisões.
Em segundo lugar, a constante relação dos povos
indígenas com a natureza é demonstrada como um plano
não apenas local, mas de observação e percepção da
natureza como parte fundamental da vida. Isto é, que não
a observa como recurso a ser utilizado na produção de
algo, submetido ao controle e desmandos humanos, mas
como uma semelhante, uma representação do que circula
e se interage na manutenção da vida. Assim, rechaça a
noção da natureza como algo a ser controlado,
conquistado e submetido, mas algo a ser cuidado, que se
interage com e se depende de.
Diálogos Sobre História e Cultura 231

Os documentos e contos se envolvem em uma


proposta política contextual. As primeiras impressões de
Antonio sobre a criação dos seres humanos e a crítica a
uma dinâmica racista de mundo são também parte da
percepção de Marcos sobre a maneira como as
negociações se dão para com o governo, ao menos as
primeiras estabelecidas no ano de 1994.
O mesmo para com a formulação da diversidade e
a necessidade de respeito ao diferente a partir da criação
das cores do mundo relatadas por Antonio a Marcos e
publicadas no documento de 27 de outubro de 1994. “La
historia de los colores” remonta a um momento de
ascensão da crise entre o governo e o EZLN após os
resultados das eleições de 1994 e o não reconhecimento
da vitória do PRI por parte dos zapatistas. No processo de
organização de uma nova seção da Convenção Nacional
Democrática7, o apontamento dado pelo escrito é o de
que as cores são diversas no mundo porque o mundo é
diverso e, portanto, é necessário o ouvir e o atender a
toda esta diversidade na medida de suas necessidades
(EZLN, 27 out. 1994).
Outra característica importante, por fim, se dá
para com a condição de sacrifício constantemente
ressaltada pelo movimento social enquanto parte de sua
existência. Seja com as chuvas e os arroios que nascem
na montanha para então, com força e destruição, fertilizar
a terra para que nasçam e sejam produzidos os alimentos,
7
Organização dada por um conjunto de movimentos democráticos
mexicanos que não reconheceram os resultados do pleito de 1994 e
orientaram-se na proposta de solução aos impasses e crise política.
Foi capitaneado pelo EZLN e teve a presença de políticos
importantes como Cárdenas e a FDN. Não logrou resultados diretos
devido às desavenças internas (MARCONI, 2020, p. 57-59).
Diálogos Sobre História e Cultura 232

ou então as estrelas que são necessárias para iluminar o


céu noturno, ou o sol e a lua que se nascem do sacrifício
de deuses e que devem ser seguidos pelos rebeldes, ou
das nuvens que, em tensão constante, seguem uma outra
para beijar, suavizar e tranquilizar a terra, os contos
persistem em dar ao EZLN uma característica de
sacrifício, de entrega pela causa.
É notável, portanto, que os documentos
constantemente refletem uma condição de extrapolar o
pensamento colonial. Mas uma condição que não é
apenas teórica, e sim que se utiliza da perspectiva teórica
para ser colocada em prática. É neste intuito que os
contos refletem e organizam tanto críticas ao modo de
tratamento dos povos indígenas de maneira singular –
para além da própria existência do movimento que é, por
si e em si, a crítica – mas também que a envolve em uma
perspectiva pedagógica, de referência a uma mudança de
visão sobre a classificação social, ressaltando e
valorizando o conhecimento e a cultura nativa.

Considerações finais

Se a colonialidade de poder e do saber


estabelecem a manutenção do controle branco ao mundo
indígena, a proposta de rebeldia zapatista coloca em
cheque a estrutura de então. Seja nas ações ou na própria
existência, o EZLN se molda como movimento social
que questiona a naturalização de um mundo em que o
indígena é um problema do passado a desaparecer. Como
formas de combater esta lógica, o movimento cria um
conjunto de documentos literários que destacam não
Diálogos Sobre História e Cultura 233

apenas o conhecimento, mas uma crítica à organização


do mundo, às ações racistas, ao desrespeito ao mundo
rural e indígena.
É a partir destes escritos, ainda, que há um
processo de educar e transportar à sociedade civil, ao
conjunto de pessoas do México, a realidade chiapaneca e
maia. Quer-se, portanto, pela maneira como são dados os
contos e histórias, levar uma reflexão de superação da
perspectiva colonial mantida após a independência. É
neste sentido que os contos ressaltam e se propõe a
resgatar a dignidade, a ética a partir dos apontamentos de
Antonio; ou de apresentar uma dinâmica temporal
diversa, que sobrevive ante a instrumentalização da
natureza.
Marcos e Antonio, nestes escritos, em relação
constante com crianças e brincadeiras, aplicam a inversão
da catequização indígena para atingir os não-indígenas e
moldá-los ao mundo nativo. De uma maneira menos
incisiva, é verdade, mas que se tornou referência mundial
aos próprios movimentos indígenas enquanto maneira de
alcançar um resultado prático. A guerra com o governo e
a luta armada foram base para que o México passasse a
acordar do sonho de ser um membro do primeiro mundo
e observasse suas mazelas e dificuldades internas8.
É, portanto, parte da revolução teórica dos
zapatistas realizar uma produção literária que
transportasse o mundo indígena para a cena nacional.
Assim, não apenas deflagra uma luta política, como
8
Em referência à própria forma como o anúncio da entrada do
México no NAFTA se deu pelo governo, enquanto o EZLN
publicava uma estruturação da sociedade mexicana em quatro
classificações, na estrutura de uma casa, na qual os indígenas
estariam nos porões (EZLN, 22 set. 1994).
Diálogos Sobre História e Cultura 234

também uma disputa no âmbito da cultura e das


mentalidades, almejando estabelecer uma alteração na
perspectiva naturalizante de um conjunto de pessoas
fadadas a desaparecer para, sim, alcançar a plenitude de
direitos, espaços políticos e respeito cultural. Na visão do
movimento, nada melhor que a literatura.
Diálogos Sobre História e Cultura 235

Referências

ALVAREZ, Sonia E.; DAGNINO, Evelina; ESCOBAR,


Arturo. O cultural e o político nos movimentos sociais
latino-americanos. In: ______ (orgs.). Cultura e política
nos movimentos sociais latino-americanos (novas
leituras). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000. p. 15-
57.
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“Da colonização à civilização, a


distância é infinita”: diálogos
literários na História
contemporânea da Nigéria e da
Palestina
"From Colonization to Civilization, the
Distance is Infinite": Literary Dialogues
in the Contemporary History of Nigeria
and Palestine
Débora Pinese Frias1
Priscilla Marques Campos2

Resumo

A literatura pode se apresentar como uma fonte de


pesquisa para a História, de forma que um livro, uma
charge, ou uma história em quadrinhos nos possibilitam
análises dos contextos históricos de suas produções, bem
como daquilo que seria representado em suas páginas.

1
Mestranda em História (UNIFESP), pesquisadora do Laboratório
de Estudos Orientais e Asiáticos (LEOA), dpfrias@unifesp.br,
@orienteahistoria.
2
Mestre em História da África (UNIFESP), pesquisadora do Núcleo
de Estudos em História da África Contemporânea, bacharela e
licenciada em História (UFRJ), priscilla.marques@unifesp.br,
@historiadoraobstinada.
Diálogos Sobre História e Cultura 240

Nesse capítulo, pretendemos abordar as possibilidades


das narrativas literárias como uma forma de construção
de saberes históricos, trazendo o enfoque para as
perspectivas afroasiáticas. Para tanto, explanaremos os
casos da Nigéria e da Palestina contemporâneas em
compreensões que se cruzam em relação a crítica ao
imperialismo britânico, além de trazerem suas
particularidades. Esses contextos foram desenvolvidos a
partir das obras No seu pescoço (2017), A educação de
uma criança sob o Protetorado Britânico (2012),
Palestina (2011) e Uma criança na Palestina (2011). Por
intermédio dessas literaturas, o capítulo visa se
aproximar das conjunturas sócio-políticas de Nigéria e
Palestina, discutindo sobre anti-imperialismo, narrativas
literárias, ocupação imperial/colonial e a particularidade
das representações sobre a infância.
Palavras-chave: Literatura; Nigéria; Palestina; História
Contemporânea.

Abstract

Literature can serve as a valuable source for historical


research, allowing the analysis of historical contexts
through books, cartoons, or graphic novels, revealing
insights into the productions and representations within
their pages. In this chapter, we aim to explore the
potential of literary narratives as a means of constructing
historical knowledge, with a focus on Afro-Asian
perspectives. To achieve this, we will examine the
contemporary cases of Nigeria and Palestine, exploring
commonalities in their critiques of British imperialism
Diálogos Sobre História e Cultura 241

while highlighting their distinct characteristics. These


analyses are based on the books The thing around your
neck (2017), The Education of a British-Protected Child
(2012), Palestine (2011), and A Children in Palestine
(2011). Through these literary works, the chapter seeks to
delve into the socio-political circumstances of Nigeria
and Palestine, engaging in discussions on anti-
imperialism, literary narratives, imperial/colonial
occupation and the unique representations of childhood.
Keywords: Literature; Nigeria; Palestine; Contemporary
History.
Diálogos Sobre História e Cultura 242

“Da colonização à civilização, a


distância é infinita”: diálogos
literários na História
contemporânea da Nigéria e da
Palestina
Débora Pinese Frias
Priscilla Marques Campos

Introdução

O fato é que a chamada civilização “europeia”,


civilização “ocidental”, tal como foi moldada por
dois séculos de governo burguês, é incapaz de
resolver os dois principais problemas aos quais sua
existência deu origem: o problema do proletariado e
o problema colonial. [...] A Europa é indefensável
(CÉSAIRE, 2020, p. 9).

As palavras de Aimé Césaire representam a


herança que a Europa deixou nos diversos territórios em
que se apossou ao longo da história moderna e
contemporânea. O problema colonial se apresentou de
diversas formas nos diferentes contextos, entretanto, o
caráter da dominação conecta a história dos países e
povos que passaram por processos similares de
colonização, guardando suas devidas proporções.
Subsidiadas pelos entendimentos de Ligia
Chiappini (2000) e Valdeci Borges (2010), buscamos
compreender como a literatura tem sido uma ferramenta
Diálogos Sobre História e Cultura 243

potente para auxiliar na construção da historiografia,


alimentando corações e mentes para os entendimentos
sobre o colonialismo britânico e ocidental, nesse caso, na
Nigéria e na Palestina.
Em Chiappini, o caminho não seria apenas ler o
texto literário e compreendê-lo como parte da história,
mas sim localizar a historicidade presente na literatura,
buscando articular críticas sobre o passado e o presente,
evitando anacronismos e ilusões sobre o passado, como
uma espécie de detetive que segue pistas (CHIAPPINI,
2000, p. 26).
Por sua vez, de acordo com Valdeci Borges
(2010), tratar de um texto como fonte histórica constitui
em abordar a tríade: escrita, texto e leitura. Dessa forma,
a compreensão do texto pode abarcar os aspectos sobre
quem fala, de qual local, o que se fala, a forma como se
apresenta a ideia e a posterior interpretação dos leitores,
seja ela individual ou coletiva. Essas percepções nos
auxiliaram na análise das obras selecionadas para este
estudo.
Nesse capítulo, tivemos dois momentos que
puderam trazer elementos que contribuíram para a
denúncia da violência estrutural do colonialismo do
século XX, para a manutenção dos mercados capitalistas
britânicos e ocidentais. Além de se utilizarem dos
recursos das instituições de ensino como plataformas de
discursos racistas e orientalistas. Divididos em quatro
partes: Localizando os caminhos para chegar nas
literaturas de Achebe e Adichie; Breves aspectos
históricos da Nigéria no século XX; Al Nakba e limpeza
étnica da Palestina na contemporaneidade; Debates
literários sobre a Palestina em uma perspectiva visual.
Diálogos Sobre História e Cultura 244

1. Localizando os caminhos para chegar


nas literaturas de Achebe e Adichie

Para compreender o território em questão,


sinalizamos que a região onde se localiza a fronteira
contemporânea do estado nacional nigeriano fica no
Golfo da Guiné, na África Ocidental, banhada pelo
Oceano Atlântico. A economia do país é uma das mais
dinâmicas do continente, porém, assim como o Brasil,
isso não significa acesso a direitos e à justiça social.
Sendo considerado como o “gigante africano” e “líder
continental”, ocupando a 14ª colocação em extensão
territorial, foi dividido em 36 estados e é o mais populoso
com aproximadamente 182 milhões de pessoas, sua
cidade mais habitada é Lagos, no litoral, que foi sua
capital durante a colonização britânica. Atualmente, a
capital é Abuja, localizada na região central do Estado.
Os países que possuem fronteira com a Nigéria
são: Benin, Niger, Chad e Camarões. A economia
nigeriana tem sua força comercial capitalista na
exploração do petróleo e do gás na região do Delta do
Niger, responsável pela receita majoritária das suas
exportações. Apesar de sua diversidade étnica ser a maior
do continente africano, a maior parte das pessoas são
haussá, yorùbá, igbo, fulani, tiv, kanuri, ibibio e ijaw - o
país é dividido entre muçulmanos e cristãos, protestantes,
católicos e anglicanos (FILIPPI; XAVIER, 2017).
Diálogos Sobre História e Cultura 245

Figura 1. Mapa político da Nigéria


Fonte: BRITANNICA, 2024

O Brasil possui uma produção de estudos sobre as


relações Brasil e Nigéria, a partir do mundo Atlântico e
em especial, sobre a diáspora3 que delineiam a história
sensível do passado escravista, mas também debates
sobre as contingências, rupturas, continuidades e
reconfigurações desenvolvidas em nossa cultura: no
idioma4, nas diversas religiões de matriz africana como o
3
Em 29 de novembro de 2023, foi lançado no Sesc 14 Bis em São
Paulo, durante o III Fórum Global contra o Racismo e a
Discriminação da UNESCO, o volume X do História Geral da
África que trouxe o conceito de África Global para avançar nos
estudos sobre a diáspora africana.
4
Para as associações do português com as línguas africanas, o
conceito de Pretoguês foi utilizado por Lélia Gonzales em A
Diálogos Sobre História e Cultura 246

Candomblé, na alimentação, na moda, na arquitetura, nos


instrumentos musicais, nas músicas populares, nas festas,
na arte etc. Um exemplo possível é o artista, cantor e
ativista Fela Kuti5 (1958-1997), yorubá/nigeriano,
nascido na região de Abeokuta, onde fundou uma
república pan-africanista, grande opositora ao governo
britânico. Kuti, também foi precursor do afrobeat, ritmo
constantemente tocado no Carnaval de rua do Rio de
Janeiro, pela Orquestra Voadora. Embora as referências
estejam sempre em forte ebulição, as Ciências Humanas
no Brasil estiveram distantes das Histórias endógenas
sobre África e sobre a Nigéria.
A força articuladora que mobilizou para o que
temos de acúmulos hoje em relação ao reconhecimento,
por meio da Lei 10.639/036, foi a do movimento negro,
em especial, o educador, como foi desenvolvido na obra
de Nilma Lino Gomes O Movimento Negro educador:
saberes construídos nas lutas por emancipação (2017),
que evidenciou a tradição na luta por educação, justiça e
direitos, a fim de reeducar o país para as relações étnico-
raciais. Sendo assim, os campos de conhecimentos sobre
África vêm sofrendo reviravoltas epistemológicas desde
então, no sentido de transformar a história colonial
eugênica que foi referendada pela tradição da Educação
categoria político cultural de Amerifricanidade (GONZALES,
1988). No século XIX, o bispo anglicano africano Samuel Ajayi
Crowther, foi o primeiro a elaborar uma gramática e dicionário para
grafar o Yorubá-Inglês.
5
O autor Carlos Moore desenvolveu uma biografia sobre a vida do
artista, Fela: This Bitch of a Life (MOORE, 2011).
6
Atualizada pela legislação 11.645/08, trazendo a discussão de
História e Cultura Indígena para os currículos escolares, em busca de
transformar as narrativas científicas elaboradas pelas Ciências
Humanas, no geral, que são insuficientes e distorcidas.
Diálogos Sobre História e Cultura 247

Brasileira, em perspectivas que destacam o sul global e


questões pós-coloniais e forma transgressora, positiva e
empoderadora. A lei tem sido uma ferramenta potente,
porém após 20 anos de sua promulgação, existe um
consenso sobre a necessidade de sua constante expansão
e ampliação de investimentos. Visto que setores
conservadores e racistas permanecem encabeçando
discursos de ódio carregados de afropessimismo,
preconceitos e racismo.
Nesse sentido, buscamos continuar o caminho
ancestral da luta, para que possam perdurar as reescritas
das narrativas que visam a reavaliação do papel dos
negros na história do Brasil (PEREIRA, 2011), como
contribuição para a luta antirracista no Brasil, pois não
podemos falar de Estudos Africanos sem falar de
antirracismo. Fizemos esse preâmbulo para inserir alguns
debates que envolvem as conexões com a literatura
nigeriana, localizando pontos em comum e outros
próprios, particulares da Nigéria, em especial a questão
racial. A literatura tem sido um caminho para conhecer
mais sobre os modos de vida, questões do cotidiano
comum que contribuem para as explicações estruturais e
macroeconômicas. “E, nesse contexto, vale destacar que
a literatura africana também foi absolutamente
primordial, embora não haja aqui espaço para esmiuçar
sua contribuição” (BARBOSA, 2020, p. 157). Apesar de
Barbosa não ter esmiuçado a temática de literatura, o
autor indicou uma nota com dezenas de pessoas autoras
de obras literárias africanas, em que encontramos os
nomes dos nigerianos Wole Soyinka, vencedor do Prêmio
Nobel de 1986 com The lion and the jewel (O leão e a
joia, 1963), Ben Okri romancista surrealista e das
Diálogos Sobre História e Cultura 248

pessoas autoras centrais nesse capítulo: Chinua Achebe e


da Chimamanda Adichie.
Muryatan Barbosa em Razão Africana (2020),
caminhou numa perspectiva de articular o que a
intelectualidade africana vem produzindo sobre as
Áfricas e sobre o mundo, com enfoque nas tradições
intelectuais acadêmicas, mas vale ressaltar que a origem
dessa razão esteve calcada em tradições milenares,
como o exemplo a filosofia dos núbios, a filosofia
kemética e chamando atenção do historiador e filósofo
Ibn Khaldun (FERREIRA, 2022) de Túnis do século
XIV. Mais do que trazer respostas, Barbosa forneceu um
manual orientador de escolas intelectuais, de campos de
compreensão, de choques e de consensos, de rupturas e
continuidades, de elasticidade dos conceitos e dos
fenômenos.
O primeiro autor a ser analisado, Chinua Achebe
(1930-2013), foi um literário igbo-nigeriano nascido em
Ogidi, Nigéria, filho de um pai evangelista e neto de um
ferreiro, o autor emergiu como uma figura central na
literatura africana, muitas vezes aclamado como o "Pai da
Literatura Africana". Seu legado literário inclui mais de
30 livros, sendo Mundo se Despedaça, (1958) sua obra-
prima.
Suas obras foram traduzidas para mais de 40
línguas, tornando-o uma referência para literatura
mundial, compartilhando as riquezas de sua cultura com
o planeta. Sua influência transcende o campo literário,
estendendo-se à diplomacia durante a Guerra Civil
Nigeriana, onde desempenhou um papel ativo em defesa
de Biafra (1967-1970). O livro A educação de uma
criança sob o Protetorado Britânico (2012) foi a última
Diálogos Sobre História e Cultura 249

sua última publicação, nele foram reveladas suas


memórias de quando era uma criança e estava
vivenciando questões que habilidosamente veio a
transformar em romances durante sua vida adulta.
Achebe ofereceu uma narrativa em primeira
pessoa, proporcionando uma perspectiva do meio-termo
entre as tradições africanas e o domínio colonial. Sua
oposição declarada ao regime colonial era evidente ao
retratar as escolas missionárias e o currículo importado
de Londres aplicado em sua escola. Assim, cotejamos
dois trechos do primeiro conto que recebeu o mesmo
nome do livro.

Mas vou expressar, com palavras simples, qual


é minha objeção fundamental ao domínio
colonial. A meu ver é um grave crime qualquer
pessoa se impor a outra, apropriar-se de sua
terra e de sua história, e ainda agravar esse
crime com a alegação de que a vítima é uma
espécie de tutelado ou menor de idade que
necessita de proteção. É uma mentira total e
deliberada. Parece que até o agressor sabe
disso, e é por essa razão que ele às vezes
procura camuflar seu banditismo com essa
hipocrisia tão descarada (ACHEBE, 2012, p.
17).
Embora Simpson fosse professor de
matemática, decretou uma norma que promovia
a leitura de romances e proibia a leitura de
qualquer livro escolar depois das aulas, três dias
por semana. Ele a chamou de “Lei dos Livros
Didáticos”. Segundo essa lei draconiana
podíamos ler ficção, biografias, revistas [...].
Eles não falavam sobre nós ou sobre pessoas
como nós, mas eram histórias emocionantes.
Mesmo histórias como as de John Buchan, em
Diálogos Sobre História e Cultura 250

que homens brancos lutavam heroicamente e


derrotavam os repulsivos habitantes nativos,
não nos perturbavam no início. Mas tudo isso
acabava sendo uma excelente preparação para o
dia em que teríamos idade para ler nas
entrelinhas e fazer indagações (ACHEBE,
2012, p. 29-30).

No primeiro, Achebe dissertou sobre seu


entendimento político acerca do colonialismo e da
relação com as múltiplas esferas da violência, visto que
se posicionava como opositor. No segundo, refletiu a sua
experiência escolar, no epistemicídio dos saberes igbo
nas cadeiras escolares, a educação eurocêntrica e como a
partir dessa experiência, teriam nascido suas indagações
contestatórias ao colonialismo. Projeto econômico e
cultural para subdesenvolver regiões a partir das guerras
por disputas de terras e da produção agrícola e mineral,
dos conflitos da administração autoritária na cobrança de
impostos, dentre outras ações.
Portanto, mesmo Achebe sendo criado dentro da
colônia, recebendo educação ocidental, isso não o
caracterizava com postura passiva diante do
estabelecimento da administração colonial. Neste caso, o
conhecimento da cultura e estruturas britânicas,
possibilitou que ele pudesse construir romances que se
tornaram os grandes clássicos para o questionamento
dessa política mundialmente. O seu relato em ter sido
uma criança que cresceu no Protetorado da Nigéria, o
colocou nesse lugar de meio-termo. Compreendemos
esse conceito pelo seu significado ontológico de ser
igbo/africano e crescer no espaço colonial britânico,
evitando recorrer apenas a um entendimento da categoria
Diálogos Sobre História e Cultura 251

de colonizado, por ela poder, em alguns casos, parecer


estanque e passiva. No meio-termo de Achebe
identificamos a ambivalência do sujeito histórico. O
conceito de meio-termo embasou o entendimento para
compreender as dinâmicas dos agentes durante o
processo, por ao mesmo tempo estarem inseridos e
questionarem.
Ao conectar Chinua Achebe à Chimamanda
Adichie, percebemos uma continuidade na riqueza
literária nigeriana. Ambos os autores, em suas obras,
contribuem para a historiografia nigeriana, utilizando a
literatura como uma poderosa ferramenta para contar
histórias autênticas e desafiar narrativas dominantes,
ambos utilizaram aspectos da infância como elementos
literários em suas obras. A literatura torna-se, assim, um
veículo vital para preservar a memória e moldar a
compreensão coletiva da história.
Chimamanda Ngozi Adichie, nascida em Enugu,
em 1977, escritora feminista contemporânea
igbo/nigeriana, destaca-se por suas contribuições
significativas para a literatura africana e global, Além da
sua carreira literária, ela se apresenta como uma
proeminente defensora dos direitos das mulheres e com
uma posição de influência nas mídias. Foi muito próxima
de Chinua Achebe, em entrevistas demonstrou sua
amizade e solidariedade com a família após o seu
falecimento em 2013, declarando como Achebe foi uma
personalidade inspiradora para sua trajetória.
Selecionamos para o trabalho de entendimento da
literatura como alicerce para os estudos históricos o seu
conto A historiadora obstinada, destacado no livro No
seu pescoço (2017), demonstrando a história de uma
Diálogos Sobre História e Cultura 252

família que viveu os estranhamentos e mudanças


provocadas pela presença colonial britânica, delineando
as transformações nos costumes, como a adoção do
idioma inglês enquanto critério para manter o direito a
terra, o estranhamento dos jovens que iam para escola a
forma que as mulheres cobriam ou não o corpo, as
mudanças de nomes igbo para nomes cristãos etc. Além
disso, o efeito das escolas missionárias na vida
especialmente das crianças, ressaltando uma análise dos
impactos sociais e culturais que ocorreram no contexto
das articulações coloniais. A diversidade de personagens,
como Nwamgba (a avó), Anikwena (o pai) e Afamefuma
(a neta), foi habilmente entrelaçada com a trama,
enriquecendo a narrativa com uma representação
multifacetada da experiência histórica. A protagonista
Afamefuma teve sua história contada a partir da vivência
de sua avó Nwamgba; quando adulta se tornou
historiadora, simbolizando a busca pelo entendimento e
preservação da história igbo, destacando a importância
dessa profissão na construção da identidade cultural.
Com alusão à universidade, ressaltou o papel da
educação superior como um meio de aprofundar a
compreensão do passado e de influenciar as perspectivas
futuras.

Nwamgba ouviu sua porta ranger ao ser aberta


e lá estava Afamefuma, sua neta que viera
sozinha de Onicha porque tinha passado várias
noites sem conseguir dormir, com seu espírito
inquieto insistindo que fosse para casa. Grace
largou a mochila, dentro da qual havia um livro
escolar com um capítulo intitulado A
pacificação das tribos primitivas do sul da
Nigéria, escrito por um administrador de
Diálogos Sobre História e Cultura 253

Worcestershire que vivera no meio deles


durante 7 anos (ADICHIE, 2017, p. 230).

Afamefuma, quando era criança, entrou em


contato nas aulas de História na escola missionária com
textos que tinham como título, por exemplo, A
pacificação das tribos primitivas do sul da Nigéria,
escrito por administradores britânicos coloniais que
contavam como tinham sido destruídas as aldeias e os
costumes sem sentidos que os selvagens tinham,
narrando de forma racista esses povos e suas culturas, em
detrimento da salvação e do progresso natural dos seres
humanos. Tais histórias não faziam sentido para
Afamefuma, que reconhecia principalmente em sua avó
Nwamgba, uma fonte de sabedoria e ensinamentos
inesgotáveis. Mais tarde, foi fazer História na
Universidade de Ibadan, onde travou debates incansáveis
para a implantação da disciplina de História da África,
em sua graduação. Da mesma maneira, lutou para uma
reavaliação da história desses povos (Ijaw, Ibibio, Igbo e
Efik do sul da Nigéria) nos trabalhos universitários, por
uma educação com compromisso, respeito, dignidade;
fugindo dos perigos da história única (ADICHIE, 2019).
Nesse sentido, escreveu o livro Pacificando com balas:
uma história recuperada do sul da Nigéria, e com esta
linha, passou a trabalhar em sua carreira como
historiadora.
No conto, pudemos localizar conexões da escrita
literária de Chimamanda Ngozi Adichie, com Chinua
Achebe, em sua obra O mundo se despedaça. Sendo
representado o processo conflituoso de desintegração da
organização social de uma aldeia, após a ofensiva
violenta da administração colonial britânica. Como
Diálogos Sobre História e Cultura 254

registro do ocorrido, o administrador responsável pela


missão escreveu um livro (relatório), anotando o ocorrido
pela sua perspectiva britânica do processo, nomeado A
pacificação das tribos primitivas do sul da Nigéria.
Interessante ser localizado o mesmo nome de livro que
Afamefuma lia na escola no conto de Adichie, que teve
essa menção referenciada no clássico O mundo se
despedaça, evidenciando sua conexão com Chinua
Achebe. Assim como ficaram evidentes as similaridades
do propósito político da autora em se posicionar em
parceria com Achebe contra o colonialismo britânico, por
meio da escrita literária. A ascendência igbo de ambos
seria um elemento aglutinador desses vínculos de
inspiração e amizade que tinham. Achebe foi Ministro da
Informação durante a Guerra do Biafra, sendo um grande
interlocutor internacional da causa, enquanto a família de
Adichie esteve em luta durante o conflito, na obra de
Adiche Meio sol amarelo (2006) quando ela se dedicou a
essa temática.

2. Breves aspectos históricos da Nigéria


no século XX

Neste preâmbulo literário, percebemos como a


literatura de Achebe e de Adichie trouxeram evidências
de elementos que demarcaram o período colonial, sem o
uso efetivo das categorias e definições das Ciências
Humanas, mas tangenciando os debates a partir dos
relacionamentos e do cotidiano. Identificamos como os
saberes e ações veiculados pelas instituições coloniais,
impactaram as culturas dos povos, na organização social,
Diálogos Sobre História e Cultura 255

na política, na economia e na educação. O campo


historiográfico dos Estudos Africanos em diversas partes
do mundo, vêm desenvolvendo debates sobre essas
tendências. No artigo de Toyin Falola e Abikal Borah
African Philosophies of History and Historiography
(2018), pudemos compreender a centralidade da
historiografia e suas implicações contemporâneas.
Segundo os autores, as transformações na historiografia
africana foram marcantes desde a década de 1950, por
destacarem a influência da visão afrocêntrica e as
mudanças nas filosofias da história. Reconhecendo a
complexidade e diversidade do passado africano, o artigo
ressaltou três perspectivas cruciais: a crítica à filosofia da
história europeia, a inclusão das formações
epistemológicas dos povos originários na narrativa
histórica e a expansão da filosofia africana na história
através do Pan-Africanismo e do Afropolitanismo
(MBEMBE, 2015), como uma cultura transnacional
negra definida por Achile Mbembe e que se conecta com
o conceito de África Global presente no História da
África X. Enfatiza-se a necessidade de compreender as
múltiplas imbricações na longa duração da história
africana para romper com visões estreitas na
historiografia do continente.
As administrações e companhias comerciais
coloniais europeias, especialmente - França, Inglaterra,
Portugal e Alemanha; desenvolveram manuais, relatórios,
pesquisas e livros, que tiveram como paradigmas de
compreensão dos processos - o racismo, a superioridade
racial branca, o devir civilizatório cristão da salvação
pela fé, educação, violência e a exploração dos recursos
naturais e humanos. Os contatos entre as regiões de
Diálogos Sobre História e Cultura 256

África e Europa, especialmente do litoral, datam desde a


Antiguidade, de formas diferentes em cada região. A
marca da ofensiva colonialista, pela perda de soberania
econômica e política seria datada no final do século XIX,
fincada sob a violência constante de armamento bélico
sofisticado, a exemplo do uso recorrente da metralhadora
Maxim. A Convenção de Bruxelas em 1890
(M’BOKOLO, 2011, p. 345), determinou a proibição de
venda de armamentos de tiro rápido para os africanos,
passando a ampliar a desvantagem bélica tecnológica nos
processos de conflitos armados.

- 1884/85 Conferência de Berlim – Royal Niger


Company monopólio inglês na região,
anteriormente em disputa com a Alemanha;
- 1914 - Unificação dos Protetorado Britânico
do Norte e Sul da Nigéria
- 1960 - Independência da Nigéria - 1ª
República
- 1966 - Tentativa de Secessão de Biafra
- 1967 - Ataque do governo e início da Guerra
Civil Nigeriana
- 1970 - Fim da Guerra - 2ª República
- 1991 - Capital em Lagos muda para Abuja
(CAMPOS, 2023)

Tal breve linha cronológica, destacou alguns


eventos da história do período colonial nigeriano do
século XX, marcado por uma trajetória muito mais
complexa do que apresentamos, entretanto, com esses
pontos, seria possível começarmos a compreender os
fenômenos - para que sejam analisados com mais
profundidade, em outras obras que se dedicam
especificamente na problematização de cada período
Diálogos Sobre História e Cultura 257

(CAMPOS, 2023). Frederick Lugard foi nomeado Alto


Comissário do Protetorado do Norte da Nigéria, de 1900-
1906, foi Governador das colônias do Norte e do Sul
entre 1912-1913 (SAWADA, 2011, p. 51) e Governador
Geral da Nigéria, de 1914 a 1919 (ABIODUN, 2013, p.
144), em conjunto com diretores de serviço e chefes de
departamentos sediados em Lagos. O território teria sido
anteriormente reivindicado, em 1885, pela Inglaterra,
devido às resoluções da Conferência de Berlim, retirando
a influência comercial em disputa com a Alemanha
(CAMPOS, 2023).
Neste capítulo pretendeu-se oferecer
entendimentos breves do século XX, sobre a questão da
unificação dos protetorados em 1914 e o racismo do
colonialista Frederick Lugard. Vale destacar a partilha
colonial europeia na Conferência de Berlim em 1884/85,
em que a Royal Niger Company consolidou o monopólio
britânico na região - onde antes havia disputa com a
Alemanha. A unificação dos Protetorados Britânicos do
Norte e Sul em 1914 estabeleceu majoritariamente a
fronteira atual. Em 1960, a busca de secessão de Biafra e
suas implicações, resultou na Guerra Civil Nigeriana
(1967-1970). A mudança da capital de Lagos para Abuja
em 1991, refletiu uma transformação na dinâmica
geopolítica mais recente.

A lei concedeu-lhe [Frederick Lugard] o


privilégio de legislar novas portarias,
ordenações e regulamentos, sendo assistido por
um Conselho Executivo composto pelo
Secretário Chefe, o Procurador General, o
Tesoureiro e outros oficiais europeus de alta
patente. Como Governador-Geral, Lugard
introduziu várias alterações administrativas. Em
Diálogos Sobre História e Cultura 258

primeiro lugar, o país foi dividido em duas


esferas, cada uma com o seu próprio
secretariado e chefiada por um Tenente
Governador. O esquema de Unificação de
Lugard concretizou-se. A.G Boyle foi nomeado
para chefiar o governo do Norte da Nigéria em
Zungeru, enquanto o Sir. Temple presidiu ao
secretariado para o Sul da Nigéria, situado em
Lagos (ABIODUN, 2013, p. 163, tradução
nossa).

No ano de 1914 houve a unificação


(amalgamation) dos protetorados do norte e sul,
estabelecendo as fronteiras da Nigéria unificada cuja
capital foi a cidade de Lagos. Essa unificação outorgada e
artificial, foi liderada por Frederick Lugard, diz-se assim,
porque ela não partiu de um sentimento de unificação dos
grupos étnicos ou das chefias locais, inclusive, a estrutura
de poder centralizado do norte, era bem diferente da
descentralização do sul. Mesmo ano que a Inglaterra
entrou na Primeira Guerra Mundial e impôs a DORA,
Defence of the Realm Act, de 1914. O ato foi estabelecido
no Reino Unido e nas suas colônias, autorizando ao
executivo britânico poderes extraordinários devido a
emergência da guerra, como a prisão de ativistas
antiguerra, a censura de filmes, requisição de edifícios ou
terrenos, dentre outras medidas que censuravam e
perseguiam contestadores ao regime (CAMPOS, 2023).
O modelo da administração colonial indireta tinha
sido utilizado por Lugard ao Norte com os fulani, que
tinham uma forma de governo mais centralizada, resultando
em algumas garantias para os britânicos em negociações
com parte das elites locais, no período anterior à unificação.
Porém, as regiões ao sul, especialmente as igbo e yorùbá
Diálogos Sobre História e Cultura 259

eram constituídas de chefias independentes e


descentralizadas. No sul, com a administração indireta, o
poder que era conferido às chefias acabava por causar
dissidências e divisões internas, pois, nem todos
concordavam com tais acordos. Inclusive, uma forma dos
ingleses conquistarem as alianças eram com ameaças de
violência, que as lideranças para não assistirem aos
massacres, cediam às imposições coloniais, sendo essa uma
forma recorrente de conseguir aliados (FALOLA, 2009, p.
32). Segundo Toyin Falola, o estado colonial foi estruturado
a partir da violência, como foi intitulado seu livro
Colonialism and violence (2014). Os britânicos estiveram
ativos na busca por adquirir territórios para exploração
econômica e cobranças de impostos, justificando com seus
discursos e com o uso da violência motivos para erguer a
África ao nível das supostas nações civilizadas europeias,
criando tensões entre os chefes e reis para lutarem entre si.
Utilizando o racismo como argumento de legitimação,
assim como no período da escravidão, pois a África seria
um fardo para o homem branco, sendo necessário utilizar de
todos os meios necessários para destruí-la e remontá-la à
sua maneira (FALOLA, 2009, p. 147).
Ao analisar a historiografia, percebemos em
diversos momentos nas referências que o olhar de Lugard
para os nigerianos era de viés racista, ao falar de suas
suposições sobre condições naturais de pessoas não
civilizadas, não educadas ou incapazes. Um exemplo
disso, teria sido o caso da sua declaração em resposta a
pedidos do movimento de trabalhadores por aumentos
salariais, sendo considerado um inimigo do povo.

Uma delegação sindical ao Governador Geral


Frederick Lugard, a 6 de abril de 1914, foi uma
experiência alarmante. Quando o sindicato se
Diálogos Sobre História e Cultura 260

queixou de que os funcionários públicos


africanos não tinham tido aumentos salariais
nos últimos vinte anos, Lugard respondeu que
os trabalhadores nigerianos estavam em melhor
situação do que outros. Os delegados
protestaram contra a barra que impedia os
africanos de ascenderem a postos mais altos.
Lugard disse que "gostaria de ver senhores
nativos ocuparem cargos superiores no serviço,
se houvesse nativos qualificados para ocupar
tais cargos". Os africanos asseguraram a Lugard
que havia homens adequados, se fossem
tomadas medidas para os encontrar". A opinião
de Lugard sobre os funcionários públicos
africanos pode ser discernida a partir de uma
carta que ele escreveu ao deixar a Nigéria, em
1919. "É talvez a mais grave dificuldade de
admiração na África tropical que é tão difícil
encontrar subordinados nativos honestos!"
(OKONKWO, 1995, s/p, tradução nossa).
Estou um pouco perplexo sobre como entrar em
contato com os nativos educados. Para
começar, não estou em simpatia com eles. Sua
presunção arrogante é de mau gosto para mim,
a sua falta de dignidade natural e de civilidade
antagonizam-me (MURRAY, 1973, p. 71 apud
LUGARD, 1912, p. 586, tradução nossa)

Quando Lugard recebeu o sindicato de


funcionários públicos africanos que contestavam sobre a
ausência de aumento salariais nos últimos 20 anos, suas
declarações foram bastante alarmantes. Isso porque ele
havia mencionado que não existiam africanos
qualificados para ocupar os cargos e que um dos grandes
problemas da África Tropical seria a dificuldade em
encontrar africanos honestos. Esse pensamento faz parte
de uma gama de muitos outros que fortalecem a
Diálogos Sobre História e Cultura 261

compreensão sobre o colonialismo ser um regime racista,


no qual a administração estrangeira imperialista britânica
qualificava os africanos como seres de segunda categoria
sem habilidades e honestidade. Essas declarações somam
voz aos ideais eugenistas que circulavam na época como
estratégia para segregação, herdados das justificavas
utilizadas durante a escravidão e o tráfico infame, no qual
invenções pseudocientíficas hierarquizavam os seres
humanos dentro de categorias raciais, colocando os
europeus como o auge da civilização e da evolução
humana. Dentro desses ideais eugenistas a função dos
europeus ao ocuparem regiões fora da Europa, seria de
levar a civilização para povos que consideravam não
desenvolvidos e civilizados. Não compartilhamos dessa
compreensão, visto que as regiões de todo o mundo já
tinham seu próprio desenvolvimento, suas instituições,
seus saberes filosóficos e suas tecnologias.

3. Al Nakba e limpeza étnica da Palestina na


contemporaneidade

Al Nakba é o termo em árabe utilizado para


identificar “a catástrofe”, mais especificamente, a que
ocorreu a partir de 1948 em solo palestino. Existem pelo
menos três narrativas propostas para os processos
históricos e políticos que se desenrolaram ao longo dos
séculos XX e XXI entre Palestina e Israel. A primeira, já
mencionada, enfoca na data de 1948 pela criação do
Estado de Israel, ataque às aldeias e êxodo em massa
palestino; a segunda também se ateve a essa
temporalidade, mas em um discurso oposto, buscando
Diálogos Sobre História e Cultura 262

por uma ideia de Guerra de Independência israelense;


enquanto a terceira buscou por uma compreensão mais
ampla, reconhecendo a Al Nakba, mas abordando de
maneira mais ampla a questão.
Ilan Pappé indicou em A limpeza étnica da
Palestina (2016) essas três concepções acerca da
Palestina, criticando especialmente a segunda, oriunda da
construção de uma história nacionalista israelense.
Pappé, como integrante dos novos/as historiadores/as
israelenses7, compreendeu que a narrativa sionista alegou
a existência de uma guerra cujo resultado seria a
evacuação voluntária dos/as palestinos/as, enquanto a
narrativa palestina se ateria demais a data e aos eventos
da catástrofe, sem responsabilizar diretamente o agente
opressor, no caso, o Estado de Israel. Dessa forma, o
termo limpeza étnica, para o autor, foi uma forma de
abordar o processo de forma mais completa, abarcando
eventos anteriores à data de 1948 e as situações
cotidianas da ocupação sionista em terras palestinas, que
por vezes, poderiam ser esquecidas ou pormenorizadas
diante das tragédias maiores e massacres.
A conceituação de Pappé sobre a limpeza étnica
se segue:

[...] um esforço para deixar homogêneo um país


de etnias mistas, expulsando e transformando
em refugiados um determinado grupo de
pessoas, enquanto se destroem os lares dos
quais elas foram enxotadas. Pode muito bem

7
Movimento da década de 1980 de revisionismo da história nacional
israelense por historiadores que obtiveram acesso às fontes dos
arquivos militares e puderam criticar a narrativa sionista da ocupação
(PAPPÉ, 2016, p. 17).
Diálogos Sobre História e Cultura 263

haver um plano mestre, mas a maioria das


tropas engajadas na limpeza étnica não precisa
de ordens diretas: sabe de antemão o que é
esperado delas. Os massacres acompanham as
operações, mas, quando acontecem, não são
parte de um plano genocida, mas sim uma tática
crucial para acelerar a fuga da população
marcada para a expulsão. Mais tarde, os
expulsos são apagados da história oficial e
popular do país e extirpados da memória
coletiva” (PAPPÉ, 2016, p.23).

Sendo assim, o historiador israelense denunciou a


existência de um processo de expulsão em massa de uma
população étnica específica – os/as palestinos/as – que a
fim concretizar sua fuga, por vezes, sofreram com
ataques violentos e massacres. Em levantamento
apresentado por Pappé, entre 30 de março e 11 de junho
de 1948 (compreendendo temporalidades anteriores e
posteriores a criação oficial do Estado israelense),
aproximadamente 290 vilarejos foram ocupados e seus
moradores expulsos ou aniquilados (PAPPÉ, 2016, p.
124-125).
Podemos compreender que a limpeza étnica da
Palestina foi um processo iniciado no século XX,
tomando corpo em meados do século com os Planos A,
B, C e D8, sendo este último colocado em prática entre os
anos de 1947 e 1948, traçando as orientações de
ocupação e aniquilação dos/as palestinos/as. Entretanto,
podemos considerar em consonância com diversos

8
Esses planos foram estudos promovidos por grupos sionistas que se
mobilizavam pela criação do Estado de Israel por meios militares,
intelectuais, políticos e financeiros, antes mesmo do Plano de
Partilha da ONU, em 1947 PAPPÉ, 2016, p. 47-48).
Diálogos Sobre História e Cultura 264

estudiosos da causa, como o próprio Ilan Pappé, que o


processo de limpeza étnica não se findou. Ainda nos dias
atuais testemunhamos as políticas de limpeza étnica
promovida pelo Estado de Israel, a exemplo do
deslocamento em massa e dos massacres promovidos a
partir de outubro de 2023.
Dados publicados pela Al Jazeera no dia 31 de
janeiro de 2024, apontam que desde 07 de outubro de
2023, foram 26.751 mortos em Gaza, somados a 370 na
Cisjordânia, enquanto em Israel o número era de 1.139.
Em relação aos feridos: 65.636 em Gaza; 4.250 na
Cisjordânia; e 8.730 em Israel (ADLER et al, 2024). A
disparidade dos números de assassinados e feridos, aliada
ao tamanho da força do militarismo israelense 9, e ao
impedimento promovido por Israel para que a ajuda
humanitária chegue em Gaza (OSGOOD; GADZO,
2024), são alguns elementos que nos evidenciam a
existência do processo de limpeza étnica até a atualidade.
Esses aspectos pontuados são apenas alguns dos
exemplos possíveis, uma vez que as políticas de Israel
contra os/as palestinos/as não se esgotam nesses eventos.

9
De acordo com notícia da CNN Brasil, Israel foi 14º país que mais
investiu em arsenal militar em 2022, equivalendo a 4,5% de seu PIB,
sendo que recebe apoio militar do campeão em investimentos
militares, os Estados Unidos (CNN BRASIL, 2023).
Diálogos Sobre História e Cultura 265

Figura 2.
Mapa da limpeza étnica na Palestina ao longo dos anos.
Fonte: HADDAD, 2022. Disponível em:
https://www.aljazeera.com/news/2022/5/15/nakba-mapping-
palestinian-villages-destroyed-by-israel-in-1948. Acesso em: 22 jan.
2024.

A imagem acima ilustrou as perdas de terras


palestinas perante a ocupação israelense. Ao início do
século XX, em 1917 - ao fim do Império Otomano e
anterior ao Império Britânico estabelecer um Mandato na
Palestina -, as áreas de predominância judaica eram a
minoria do território. Em 1948, com anuência das
Diálogos Sobre História e Cultura 266

potências ocidentais, da recém-formada Organização das


Nações Unidas (ONU) e principalmente da Inglaterra, o
Estado de Israel foi formado ocupando grande parte do
território e isolando os/as palestinos/as em duas áreas:
Faixa de Gaza e Cisjordânia. Com a Guerra de 1967,
Israel ocupou de vez os territórios palestinos, além da
Península do Sinai (Egito) e as Colinas de Golã (Síria). A
última representação cartográfica na imagem indica a
criação das áreas A, B e C na Cisjordânia 10, estabelecidas
pelos Acordos de Oslo (1993-1995).
Acordos esses que foram resultados de uma
política adotada pela Organização para a Libertação da
Palestina (OLP) e de seu representante a época, Yasser
Arafat, além de terem motivado muitas discordâncias
entre as diferentes vertentes do movimento palestino e
em um caso específico, do crítico literário Edward Said 11.
Dentre suas obras intelectuais, Said escreveu A Questão
da Palestina (2012), abordando a situação política da
Palestina, as origens da questão a ocupação israelense. O
autor apresentou críticas às narrativas históricas, políticas
e culturais que cercam a questão palestina,
principalmente nos Estados Unidos da segunda metade
do século XX, contexto em que Said escreveu.
Considerou que a perspectiva palestina tem sido
frequentemente ignorada ou distorcida em favor da
narrativa israelense, tanto nos meios de comunicação
10
Área A seria de controle palestino, área B de controle conjunto
entre Israel e palestinos/as e área C sob o controle israelense. Vale
ressaltar que a área C corresponde a maior porção da Cisjordânia.
11
Para entender melhor a posição de Edward Said sobre as posições
da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e de Yasser
Arafat, recomendamos a leitura do Prefácio à edição de 1992,
presente em A questão da Palestina (2012).
Diálogos Sobre História e Cultura 267

quanto nos círculos acadêmicos. Essa defesa


estadunidense ao Estado de Israel não acaba na discussão
teórica, de forma que tem desenvolvimentos em políticas
intervencionistas das quais o autor teceu críticas.
Para o autor, existia um consenso entre a visão
liberal ocidental estadunidense e a visão sionista-
israelense, a partir de discursos estigmatizantes sobre o
que seria o/a palestino/a e o/a árabe, construindo uma
visão de alteridade sobre “o outro” (SAID, 2012, p. 43-
44). O outro, neste caso, se apresenta também como o
inimigo a ser combatido pelos ideais ocidentais. Além da
consolidação de estereótipos negativos sobre os
palestinos que justificassem a ocupação sionista e o apoio
estadunidense, a crítica do Said também se estendeu a
falta ou o pouco espaço concedido à questão palestina no
jornalismo estadunidense da década de 1990. O crítico
literário utilizou o termo “blackout informativo” para
caracterizar a forma como os Estados Unidos apagava a
pauta da libertação palestina, para além da vilificação da
população e do apoio às políticas israelenses (SAID,
2012, p. 6).
Essa percepção de Said pode ser interpretada
como um desdobramento da sua investigação sobre o
“orientalismo”. Isso porque, para o autor, orientalismo,
para além de um campo de estudos, se constituiu em uma
forma específica de representação sobre territórios não-
ocidentais. No caso de Said, o enfoque de análise foi para
países da Ásia e Norte da África, mas principalmente, a
região que consideramos como Oriente Médio. Edward
Said compreendeu em sua obra homônima que os
orientalistas eram intelectuais que trabalhavam a serviço
dos impérios ocidentais, desde o século XVIII, com o
Diálogos Sobre História e Cultura 268

objetivo de estudar povos que consideravam


incivilizados, reforçando estereótipos coloniais de falta
de autonomia e de desenvolvimento. Assim, as políticas
coloniais ganhavam respaldo em espaços da
intelectualidade da época.

O Oriente que aparece no Orientalismo,


portanto, é um sistema de representações
estruturado por todo um conjunto de forças que
introduziram o Oriente na erudição ocidental,
na consciência ocidental e, mais tarde, no
império ocidental (SAID, 2007, p. 275).

A partir da reflexão sobre a disputa de territórios,


a consolidação de um Estado nacional a partir de uma
ocupação colonial em terras que já eram povoadas por
palestinos/as que não conseguiram seu reconhecimento
internacional de sua nação e a forma como essa questão
foi representada a partir do orientalismo presente no
ocidente, iniciamos as nossas ponderações. Na próxima
seção do capítulo trazemos a análise das obras Palestina
(2011) e Uma criança na Palestina (2011).

4. Debates literários sobre a Palestina em


uma perspectiva visual

A literatura nos possibilita leituras sobre o mundo


através da percepção de seus autores, de forma que uma
obra literária, seja ela ficcional ou não, permite a
aproximação com temáticas que concernem questões
sócio-políticas características dos contextos que
Diálogos Sobre História e Cultura 269

permeiam a sua produção. Nesta parte do capítulo nos


atemos a forma como duas obras que possuem tanto
linguagem visual quanto verbal, representaram os/as
palestinos/as em suas páginas. Palestina (2011), a
reportagem em quadrinhos de Joe Sacco e Uma criança
na Palestina (2011), com charges de Naji Al-Ali, foram
as fontes selecionadas para a análise.
Para iniciar a análise, retomamos o conceito de
orientalismo em conjunção com o livro Ideologia e
propaganda na educação: a Palestina nos livros
didáticos israelenses (2019), de Nurit Peled-Elhanan. No
estudo realizado pela pesquisadora israelense, a partir do
levantamento e investigação sobre as representações
dos/as palestinos/as e da Palestina em diversos livros
didáticos israelenses, Peled-Elhanan compreendeu que
em nenhuma das bibliografias eram apresentadas
características positivas sobre os/as palestinos/as. Todas
as representações que a autora teve acesso dos principais
livros didáticos mapeados por si, estavam permeadas
pelo racismo, utilizando de imagens degradantes e
desumanizadoras, reduzindo palestinos/as a três
categorias: terroristas, refugiados ou agricultores
rudimentares (PELED-ELHANAN, 2019, p. 82). Essas
representações foram compreendidas pela autora como
formas de propagar uma hostilidade em relação ao outro
(outgroups) e em contrapartida construir uma narrativa
nacional por meio da educação.
Outra pesquisadora que se debruçou sobre a
construção de narrativas nacionalistas por meio da
perspectiva das representações foi a brasileira Patrícia
Rangel, em seu artigo Desenhando o conflito Israel-
Palestina: narrativas e representações em HQs (2014).
Diálogos Sobre História e Cultura 270

Neste estudo, a autora identificou que as histórias em


quadrinhos podem ser utilizadas em vieses antagônicos a
depender das intenções de cada enunciador, uma vez que
podem contribuir para o fortalecimento da ordem e dos
valores sociais vigentes, mas também para a sua negação,
a partir da construção de narrativas que rompem com o
status quo. Rangel defendeu que essas formas de
representação sócio-política podem ser identificadas nas
histórias em quadrinhos para jovens e crianças, como As
Aventuras de Tintim e enredos de super-heróis, mesmo
que em uma primeira leitura pareçam narrativas
elaboradas apenas para entretenimento, sem a
intencionalidade de abordar questões políticas.
Essa, portanto, parece ser a questão principal no
debate sobre as representações referenciado aqui por
meio de Nurit Peled-Elhanan, Patrícia Rangel e Edward
Said. As obras literárias, bem como jornalísticas e demais
produções culturais de suas épocas, carregam percepções
de mundo e até ideologias específicas, que implicam em
questões políticas concretas em seus contextos. No artigo
de Rangel (2014) isso implicou na compreensão de que
histórias e personagens dirigidos ao público infantil,
como: Tintim, Mickey, Tio Patinhas, Superman, evocam
discursos de supremacia europeia e norte-americana, bem
como buscam representar o sucesso capitalista (p. 99-
100).
Nos casos das obras Palestina (2011) e Uma
criança na Palestina (2011), a perspectiva foi subvertida.
Joe Sacco e Naji Al-Ali foram autores reconhecidos e
comprometidos com a causa palestina. Sendo assim, as
posições políticas apresentadas em seus trabalhos se
opuseram às interpretações hegemônicas presentes,
Diálogos Sobre História e Cultura 271

principalmente nos Estados Unidos e países da Europa,


de uma suposta supremacia ocidental que se alinharia ao
sionismo e ao Estado de Israel perante a questão.
Joe Sacco, nascido em 1960 na Ilha de Malta,
passou sua juventude e teve sua formação educacional
nos Estados Unidos. Em 1981, graduou-se em Jornalismo
pela Universidade de Oregon, no entanto, não atuou
consideravelmente na área do jornalismo convencional,
voltando a se dedicar às histórias em quadrinho, que de
fato despertavam seu interesse profissional. Após a
invasão israelense ao Líbano na década de 1980 e os
massacres aos campos de refugiados de Sabra e Chatila
em 1982 promovidos pela aliança entre o militarismo
israelense e as forças falangistas libanesas, Sacco
começou a questionar a cobertura midiática sobre Israel.
A partir desse incômodo, enquanto jornalista formado e
cidadão dos Estados Unidos, o cartunista realizou uma
viagem de dois meses à região da Palestina, entre 1991 e
1992, para se aproximar da questão e realizar um
trabalho de campo. A partir dessa viagem, o resultado
principal foi a sua reportagem em quadrinhos Palestina
(2011), que combinou seu trabalho de cartunista, com as
metodologias jornalísticas que estudou em sua graduação
e o compromisso com a questão palestina.
A reportagem em quadrinhos Palestina (2011) foi
elaborada por Joe Sacco nos anos iniciais da década de
1990 e publicada de forma fragmentada em nove
volumes entre os anos de 1993 e 1995 pela
Fantagraphics Books, nos Estados Unidos. A obra de Joe
Sacco ganhou notoriedade no Brasil ao ser lançada pela
Conrad Editora do Brasil nos anos 2000, em dois
volumes, contando com prefácios de figuras
Diálogos Sobre História e Cultura 272

proeminentes como Edward Said, José Arbex Jr. e de seu


próprio autor. Em 1996, recebeu as premiações do
American Book Award e do Harvey Awards na categoria
de Melhor Série em Quadrinhos e em 2000, conquistou
no Brasil o prêmio HQMix na categoria de Melhor
graphic novel estrangeira. A obra se destacou por uma
abordagem que combinou o formato de quadrinhos com a
metodologia do jornalismo e, portanto, foi
posteriormente denominada como jornalismo em
quadrinhos, gênero muito explorado pelo seu autor.

Desta forma, a relevância da reportagem em


quadrinhos Palestina foi a de difundir nos
Estados Unidos uma versão pró-Palestina frente
ao contexto de ocupação israelense. Esta obra
retratou por meio de uma linguagem
predominantemente visual, representações que
quebraram com as percepções estigmatizantes
dos palestinos, personificando-os e
compreendendo-os como vítimas do Estado de
Israel, que ocupou as terras palestinas a partir
de 1948, mas também não os retratando de
forma generalizada e somente como vítimas
passivas de um poder opressor (FRIAS, 2021,
p. 29).

Os temas abordados por Joe Sacco em Palestina


(2011) são diversos: militarismo presente no cotidiano da
ocupação israelense; violências sofridas pelos/as
palestinos/as; condições de vida e moradia;
encarceramento; limitações em relação a trabalho;
expulsões; datas marcantes, como 1948 e 1967; corte de
oliveiras; boicote aos produtores palestinos; dentre
outros. O eixo de análise que escolhemos para esse
Diálogos Sobre História e Cultura 273

capítulo foi o da infância, buscando compreender


brevemente como as crianças e jovens palestinos/as
tiveram – e têm - suas vidas afetadas e suas infâncias
roubadas por uma ocupação colonial promovida pelo
Estado de Israel.
No contexto da ocupação sionista e da limpeza
étnica, as crianças palestinas constituem um grupo sujeito
a violências específicas. A perspectiva de uma infância
roubada foi apresentada por Catherine Cook, Adam
Hanieh e Adah Kay em Stolen Youth (2004). Os autores
foram membros voluntários do Defence for Children
International/Palestine Section (DCI/PS) entre os anos
de 1999 e 2003, o que os aproximou da investigação de
estratégias e objetivos empregados pelo Estado de Israel
no encarceramento de crianças palestinas. O livro que
escreveram juntos foi um produto da contribuição desses
pesquisadores para a causa.

Como delineado no decorrer deste livro, o tipo


de tortura experienciado pelas crianças
palestinas deve ser concebido no âmbito da
tortura de Estado. É uma escolha consciente do
Estado israelense de empregar essas técnicas
como parte de uma estratégia geral visada para
enfraquecer qualquer resistência real ou
potencial à ocupação. Não é só visada no
individual, mas na completude da sociedade
palestina (COOK; HANIEH; KAY, 2004, p. 82,
apud FRIAS, 2021, p. 72).

No trecho selecionado e reproduzido a seguir da


reportagem em quadrinhos, podemos conhecer a história
de um garoto palestino de quinze anos chamado Firas.
Essa personagem representada em Palestina (2011), foi
Diálogos Sobre História e Cultura 274

entrevistada por Joe Sacco e em seu relato contou que se


engajou na luta pela libertação de sua terra desde seus
treze anos, momento em que se filiou à Frente Popular
para a Libertação da Palestina (FPLP). A passagem das
imagens representa o seu testemunho sobre ter sido
acertado por um tiro nas costas ao participar da Primeira
Intifada. Ao ser encaminhado para o hospital a fim de
receber atendimento, foi novamente vítima de agressão
por soldados que queriam interrogá-lo, cena representada
a seguir. Esse relato evidenciou um jovem que entrou
para um movimento de resistência à ocupação israelense
por não ver alternativas, senão a luta concreta e militante
contra a limpeza étnica da Palestina.
Posterior a esta entrevista, Sameh, colega de Joe
Sacco que o acompanhou e auxiliou durante parte das
entrevistas realizadas em sua visita à Palestina, indicou
que as lideranças políticas fecharam os clubes de jovens e
demais lazeres e locais para entretenimento da
juventude12. Dessa forma, a dedicação se voltaria
inteiramente para a luta, a Intifada. O próprio
entrevistado, Firas, momentos antes atestou que caso se
deparasse com soldados a caminho da escola, lutava
contra eles ao invés de prosseguir para a escola, tamanho
o seu comprometimento com a luta pela libertação
palestina. No entanto, ressaltamos aqui a continuação da
12
Vale ressaltar que este relato partiu da experiência de palestinos/as
do campo de refugiados de Jabalia, em Gaza, no início da década de
1990. Os Acordos de Oslo ainda não tinham sido assinados (1993-
1995), mas já se indicavam possibilidades de tratados do gênero, o
que pode ser confirmado pelos depoimentos dos entrevistados na
reportagem em quadrinhos. Ademais, as discordâncias políticas e
conflitos entre organizações, como OLP, FPLP, Hamas, Fatah
construíam o cenário da época. Ver: LÉO, 2017.
Diálogos Sobre História e Cultura 275

declaração de Sameh: “Além disso, os soldados não


deixam ninguém em paz. Sempre param você na rua,
fazem perguntas… E cada casa aqui tem alguém na
prisão, alguém que morreu, alguém que foi ferido.... Isso
é infância?” (SACCO, 2011, p. 201, destaque do autor).

Figura 3.
Cena de interrogatório e violência em hospital palestino 1.
Fonte: SACCO, 2011, p. 200.
Diálogos Sobre História e Cultura 276

Figura 4.
Cena de interrogatório e violência em hospital palestino 2.
Fonte: SACCO, 2011, p. 201.

Partindo para o outro livro escolhido para análise


neste capítulo, Naji Al-Ali (1936-1987) foi um renomado
cartunista palestino, que deixou um legado significativo
em relação a resistência palestina por meio de suas obras.
Sua vida foi marcada pelos eventos traumáticos da Al
Nakba em 1948, quando foi forçado a se deslocar de suas
terras, tornando-se refugiado no campo de Ain Al-
Hilweh, no Líbano. O início de sua carreira artística teve
apoio de Ghassan Kanafani, que visitou Ain Al-Hilweh,
conheceu seus trabalhos e publicou no periódico Al-
Huryya. Posteriormente, na década de 1960, trabalhou
para a revista Altaleea (Kuwait), Al-Huryya e Al-Youm
(Líbano) e para o Al-Seyassah (Kuwait), que contribuiu
Diálogos Sobre História e Cultura 277

até 1974. Na equipe deste último periódico, em 1969, Al-


Ali criou a personagem Handala, uma representação
simbólica e atemporal do sofrimento do povo palestino,
através da personificação de uma criança de dez anos de
frente ao enredo da charge e de costas ao espectador, que
testemunha os acontecimentos da ocupação israelense e
não envelheceria enquanto não voltasse para sua terra de
origem, a Palestina (OMAR, 2022, p. 6-7).
Devido seus trabalhos políticos de charges que
criticavam o Estado de Israel e o alinhamento de Estados
árabes com a ocupação israelense, mas principalmente, a
imagem de Handala, Naji Al-Ali se destacou como figura
importante na luta pela libertação da Palestina. No
entanto, em 22 de julho de 1987, em Londres, diante da
redação do jornal Al-Qabas, o chargista foi assassinado.
Os motivos especulados sobre a sua morte seriam,
justamente, relativos ao seu posicionamento político e às
suas obras, porém não houve identificação de quem o
assassinou.
O livro Uma Criança na Palestina (2011),
publicado no Brasil pela Editora Martins Fontes, reuniu
parte de suas charges publicadas nos periódicos As-Safir
(Líbano), Al-Watan (Kuwait), Al-Qabas (Kuwait,
Internacional e Reino Unido), Al-Seyassah (Kuwait) e Al-
Sheraa (Líbano). Suas obras foram reunidas a partir de
eixos temáticos aglutinadores selecionados pelos
organizadores do livro: 1. Palestina; 2. Direitos
Humanos; 3. Domínio dos Estados Unidos, petróleo e
conspiração árabe; 4. O processo de paz; 5. Resistência.
A introdução deste livro foi escrita por Joe Sacco – autor
de Palestina (2011), quando 2009 reafirmou a
importância que Naji Al-Ali continuava a ter para os/as
Diálogos Sobre História e Cultura 278

palestinos/as. Desta forma, podemos afirmar que o


trabalho do chargista inspirou reflexões sobre a
resistência, a justiça e a luta pela liberdade na Palestina.

Figura 5.
Charge de Naji Al-Ali.
Fonte: AL-ALI, 2011, p. 21.

Na charge acima podemos identificar um menino


calçando os sapatos de seu pai, trajado de roupas de
combate, com ambos os pés amputados e com lágrimas
escorrendo pelo seu rosto. A mãe da criança conforta o
seu companheiro com um abraço, com um semblante que
carrega tanto tristeza quanto orgulho das outras
personagens da charge estarem comprometidas com a
resistência palestina. Ao fundo, uma representação
Diálogos Sobre História e Cultura 279

cartográfica da Palestina, terra e propósito deles e, em


primeiro plano, a personagem Handala testemunha a cena
como espectador.

Considerações finais

Conforme mencionamos no título desse capítulo,


com Aimé Césaire “Da colonização à civilização, a
distância é infinita”, realizamos neste capítulo algumas
reflexões acerca das questões sobre racismo e
orientalismo que estiveram no coração do colonialismo
britânico e de seus aliados no século XX.
Frederick Lugard foi um clássico exemplo dos
homens brancos europeus colonialistas, possuidores de
um sentimento de superioridade racial, que acreditava
que seus serviços ao exército e à Coroa Britânica estavam
à mercê da construção de uma civilização nos trópicos,
carregando valores eugenistas oriundos do racismo
científico, sendo esse caminho possuidor de uma
distância infinita como mencionou Aimé Césaire, do que
poderia se entender como civilização. Por isso, nesse
capítulo, ao selecionar temáticas referentes aos estudos
contemporâneos sobre a Nigéria, foi frutífero relacioná-
los aos entendimentos da luta antirracista no Brasil, visto
que possuem pontos de convergências e similaridades
concernentes as tecnologias raciais na estruturação de
ambos. Tanto Chinua Achebe como Chimamanda
Adichie têm sido referências no Brasil e em diversos
países da África Global para compreender como as
questões raciais foram um elemento fulcral para a
manutenção dos poderes coloniais, se utilizando dos
Diálogos Sobre História e Cultura 280

mecanismos educacionais como fio condutor entre as


gerações. O conceito de meio-termo de Chinua Achebe
exerceu um papel para compreender as brechas em que as
vivências e narrativas anticoloniais se constituíram
dentro desses espaços, como verificou-se o caso da
narrativa da personagem Afamefuma de Chimamanda
Adichie.
Por outro lado, no caso da Palestina, utilizamos
do conceito de orientalismo, junto a outras análises
textuais sobre representações, a exemplo dos textos de
Patrícia Rangel e Nurit Peled-Elhanan para a
compreensão de como narrativas podem se construir a
partir de textos literários e visuais, como as reportagens
em quadrinhos e charges. Dessa forma, pudemos avaliar
que ao contrário dos discursos coloniais construídos, em
primeiro lugar, pelo Mandato Britânico (1920-1947) e
depois por um consenso entre a visão liberal ocidental
estadunidense e a visão sionista-israelense, essas
produções se opuseram ao status quo. De forma
contestatória, Palestina (2011) e Uma criança na
Palestina (2011) foram obras que evidenciaram um
grande caráter político e crítico, demonstrando como as
narrativas literárias, para além de serem produtos
culturais que carregam mensagens sociais, podem se
posicionar de forma subversiva. Joe Sacco, um cartunista
ocidental que fez a crítica ao Ocidente e a Israel ao se
aprofundar no assunto e se aliar à causa palestina; e Naji
Al-Ali, um chargista que foi pessoalmente afetado pela
ocupação israelense, apresentaram como forma de
protesto a limpeza étnica que ele próprio experienciou.
A distância infinita entre a colonização e a
civilização tem sido e foi marcada por perspectivas
Diálogos Sobre História e Cultura 281

racistas e orientalistas, as quais excluem com violência


ao invés de construir sociedades por meio de seus
próprios desenvolvimentos e autodeterminação. Dessa
forma, reafirmamos o posicionamento de Césaire de
1955, em Discurso sobre o colonialismo, que o projeto
civilizatório europeu pode ser considerado como
decadente, doente, moribundo e indefensável.
Diálogos Sobre História e Cultura 282

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Diálogos Sobre História e Cultura 288

A história nos filmes: a construção


de representações na mise en scène
de filmes históricos
History in films: the construction of
representations in the mise en scène of
historical films
Bruno José Yashinishi1

Resumo

O presente capítulo pretende elucidar a relação entre a


história e o cinema, compreendendo o processo de
construção de representações sociais e históricas nos
chamados filmes históricos. Em primeiro lugar, entende-
se por filmes históricos as obras cinematográficas que
buscam estetizar ou representar eventos, processos e
personagens históricos conhecidos, sendo baseados na
realidade ou puramente ficcionais. Em segundo lugar, as
representações históricas e sociais presentes nesses
filmes são compreendidas como construções através de
práticas culturais próprias da linguagem cinematográfica.
Nesse sentido, a proposta é entender as práticas culturais
envolvidas na construção da mise en scène (figurino,
cenário, iluminação, caracterização das personagens,

1
Doutorando em Educação pela Universidade Estadual de Londrina.
Bolsista da CAPES (Doutorado). E-mail:
yashinishibruno@outlook.com.
Diálogos Sobre História e Cultura 289

etc.), que por sua vez, conferem representações aos


filmes. Dessa forma, através de uma metodologia de
análise fílmica adequada a esse tipo de filme, serão
apresentados alguns exemplos de representações
históricas nos filmes O príncipe do Egito (1998), O nome
da rosa (1986), A Rainha Margot (1994) e Tempos
Modernos (1936).
Palavras-chave: História e cinema; Representações;
Análise fílmica; Mise en scène.

Abstract

This chapter aims to elucidate the relationship between


history and cinema, understanding the process of
constructing social and historical representations in so-
called historical films. Firstly, historical films are
understood as cinematographic works that seek to
aestheticize or represent well-known historical events,
processes and characters, whether based on reality or
purely fictional. Secondly, the historical and social
representations present in these films are understood as
constructions through cultural practices specific to
cinematographic language. In this sense, the proposal is
to understand the cultural practices involved in the
construction of mise en scène (costumes, scenery,
lighting, character characterization, etc.), which in turn,
give representations to the films. Thus, through a film
analysis methodology appropriate to this type of film,
some examples of historical representations will be
presented in the films The Prince of Egypt (1998), The
Diálogos Sobre História e Cultura 290

Name of the Rose (1986), Queen Margot (1994) and


Modern Times (1936).
Keywords: History and cinema; Representations; Film
analysis; Mise en scène.
Diálogos Sobre História e Cultura 291

A história nos filmes: a construção


de representações na mise en scène
de filmes históricos
Bruno José Yashinishi

Introdução

Com pouco mais de cem anos de existência, o


cinema se tornou um dos principais meios de
comunicação de massa da história contemporânea.
Devido à sua relevância social, as produções
cinematográficas foram adotadas como fontes e
documentos históricos a partir dos anos 1970, com uma
tendência historiográfica inaugurada na França por Marc
Ferro, que em seu livro “Cinema e História” (2010),
publicado pela primeira vez em 1977, incorporou o
cinema como um novo objeto dentro dos domínios da
chamada Nova História2.
Desde então, esse campo tornou-se cada vez mais
amplo e com diversas possibilidades teóricas e
metodológicas (YASHINISHI, 2020). José D’Assunção
Barros (2012) aponta seis relações entre o cinema e a
história: o cinema como fonte histórica; os filmes como

2
A “Nova História” é um movimento de renovação da historiografia
gerido no interior do grupo da revista Annales. Marc Ferro foi o
único membro desse grupo a abordar a relação Cinema-História com
seu artigo “O filme, uma contra-análise da sociedade?”, lançado em
1974 na coletânea organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora
intitulada “História: novos objetos”.
Diálogos Sobre História e Cultura 292

agentes históricos; o cinema como tecnologia de apoio


para as pesquisas históricas; filmes como instrumentos
para o ensino de História; o cinema como linguagem e
modo de imaginação aplicável à história; e o cinema
como representação da história.
O presente capítulo pretende elucidar a relação
entre a história e o cinema, compreendendo o processo de
construção de representações sociais e históricas nos
chamados filmes históricos. Dessa forma, tornam-se
necessárias algumas definições conceituais introdutórias.
Em primeiro lugar, filmes históricos podem ser
entendidos como obras cinematográficas baseadas em
fatos reais ou puramente ficcionais que buscam estetizar
ou representar eventos, processos e personagens
históricos conhecidos. Em segundo lugar, os filmes
históricos caracterizam-se, entre outros aspectos, por
conterem e apresentarem representações sociais e
históricas.
As representações são construções sociais,
resultantes de práticas culturais envolvidas no processo
de feitura de um filme, que se valem das técnicas e de
particularidades estéticas da linguagem cinematográfica.
Por fim, uma dessas práticas culturais é a mise en scène,
termo crucial para designar como os objetos são
organizados dentro de um plano ou quadro da câmera,
que inclui cenários, figurino, iluminação, entre outros
elementos fundamentais.
Nesse sentido, esse capítulo objetiva compreender
a construção das representações em filmes históricos
através do estudo da mise en scène. Para tanto, o texto
lança mão de uma metodologia adequada de análise para
esse tipo de filme e apresenta alguns exemplos de
Diálogos Sobre História e Cultura 293

representações históricas nos filmes O príncipe do Egito


(1998), O nome da rosa (1986), A Rainha Margot (1994)
e Tempos Modernos (1936).

1. A relação cinema-história

A Escola dos Annales (1929) promoveu uma


profunda renovação e diversificação na historiografia,
ampliando a própria noção de documentos históricos e
ampliando consideravelmente a tipologia e possibilidades
das fontes históricas. A respeito dessas inovações, José
Carlos Reis afirma que:

Para abordar essas realidades humanas, a


história teve de se renovar quanto às técnicas e
métodos. A renovação dos objetos exigirá a
mudança no conceito de fonte histórica. A
documentação será agora relativa ao campo
econômico-social-mental: é massiva, serial,
revelando o duradouro, a longa duração [...]
Todos os meios são tentados para se vencer as
lacunas e silêncio das fontes. Os Annales foram
engenhosos para inventar, reinventar ou reciclar
fontes históricas (2000, p. 23).

Sobre os Annales, José Murilo de Carvalho (1998,


p. 454) aponta que: “Nada do que é humano será agora
alheio ao historiador. Daí a multiplicação de estudos
sobre a cultura, os sentimentos, as ideias, as
mentalidades, o imaginário, o cotidiano”. Nesse sentido,
tudo aquilo que aponta atividade humana passa a servir
como fonte, e com isso, o historiador passa a valer-se da
Diálogos Sobre História e Cultura 294

interdisciplinaridade adentrando nas mais diversas áreas


da ciência e ação do homem para extraí-las.
Dentre as múltiplas áreas adentradas pelos
historiadores desde então, o cinema é uma das que
suscitaram mais interesse e sua relação com a história
vem superando a timidez ao longo do tempo,
apresentando diversas possibilidades de abordagens e
métodos de pesquisa. Isto porque para além de uma
estória reproduzida numa tela para o deleite ou não de
seus espectadores, o cinema constitui-se de um complexo
“ritual” envolvendo inúmeros elementos diferentes da
atividade humana (BERNADET, 2006).
A gênese do cinema continua sendo controversa
na historiografia. Ainda que a primeira exibição pública
de um filme seja atribuída a Thomas Edison através do
seu invento, o quinetoscópio, em 1894, nos Estados
Unidos, os irmãos franceses Auguste e Louis Lumière
são considerados por muitos como os “pais” do cinema.
Na noite de 28 de dezembro de 1895, os Lumière
alugaram uma sala no Grand Café, em Paris, onde
exibiram publicamente pequenas filmagens de
acontecimentos cotidianos através de seu invento, o
cinematógrafo.
Nessa primeira fase, chamada de “primeiro
cinema”, os filmes ainda não tinham o caráter comercial
e ficcional, mas retratavam lugares e hábitos do dia-a-dia
servindo como registros da sociedade e cultura da época.
Portanto, é possível afirmar que a preocupação da
história para com o cinema é posterior a do cinema para
com a história, pois “os primeiros registros dos quais se
tem notícia sobre o reconhecimento do filme como
Diálogos Sobre História e Cultura 295

documento histórico não partiram de historiadores”


(KORNIS, 2008, p. 17).
Ao decorrer do século XX, quando o
desenvolvimento da produção cinematográfica foi
percebido como forte instrumento para o entretenimento
e possível de ser adotado pelo setor industrial, o impacto
social do cinema tornou-se ainda mais evidente. Nomes
como o do francês George Mélies e o estadunidense D.W.
Griffith deram um significado à comercialização e a
linguagem fílmica inserindo a seleção de imagens na
filmagem e organizando-as em uma sequência temporal
na montagem (YASHINISHI, 2020).
Na década de 1970, com pouco mais de meio
século desde sua origem, o cinema rapidamente se tornou
um fenômeno midiático voltado para as grandes massas,
se firmou enquanto uma indústria solidificada e passou a
ter um significativo papel social como relata Ruth Inglis:

O Cinema está ingressando numa nova fase de


seu desenvolvimento como órgão maduro de
comunicação de massa [...] Em resultado disso,
dentro e fora da indústria cinematográfica se
observa um reconhecimento crescente do fato
que o cinema tem um papel essencial para
representar na vida social e que a liberdade do
Cinema é importante em razão de tudo aquilo
que o filme pode fazer (1970, p. 268).

Com a expansão da noção conceitual de


documento histórico, justamente no contexto dos anos
1960 e 1970, a relação entre cinema e história começou a
ganhar notoriedade por parte de historiadores
(YASHINISHI, 2020). Essa tendência historiográfica
teve origem na França como o historiador Marc Ferro,
Diálogos Sobre História e Cultura 296

que em seus escritos incorporou o cinema como um


“novo objeto” dentro dos domínios da chamada Nova
História.
No livro Cinema e História, publicado pela
primeira vez em 1977, Marc Ferro (2010) defende que as
interferências entre história e cinema são múltiplas e que
os filmes podem ser tomados como legítimos
documentos históricos. Ao analisar a história das
pesquisas históricas, Ferro argumenta que os
historiadores sempre selecionaram fontes conforme a
realidade de sua época, portanto, encoraja a pesquisas
históricas com os filmes, que são exemplos de fontes e
documentos históricos apropriados ao contexto do século
XX:

Os historiadores já recolocaram em seu lugar


legítimo as fontes de origem popular, primeiro
as já escritas, depois as não escritas [...] Resta
agora estudar o filme, associá-lo com a
sociedade que o produz. Qual é a hipótese? Que
o filme, imagem ou não da realidade,
documento ou ficção, intriga autêntica ou pura
invenção, é História (FERRO, 2010, p. 32).

Uma das maiores contribuições de Ferro (2010)


foi apontar duas possibilidades de leitura do cinema
acessíveis aos historiadores: a leitura histórica do filme,
que corresponde a uma leitura do momento presente em
que este foi produzido e uma leitura cinematográfica da
história que seria a utilização dos filmes para uma leitura
da história. O autor insiste que o cinema é um
testemunho de seu tempo, ao passo que está desvinculado
das instituições de poder e inclusive da censura. Para ele
Diálogos Sobre História e Cultura 297

o filme possui “lapsos” e através deles, o historiador


pode extrair o não visível, ou seja, aquilo que excede seu
próprio conteúdo.
Contemporâneo aos estudos de Ferro, o também
francês Pierre Sorlin (1985) foi outro pioneiro da relação
cinema-história. Em sua obra Sociologie du cinemá, de
1977, Sorlin argumenta que o cinema tornou-se um
documento de estudos em história social justamente por
meio da indagação de como os indivíduos e grupos
sociais compreendem seu próprio tempo. As abordagens
de Sorlin quanto à relação cinema-história voltam-se a
história do cinema e a sociologia histórica. De tal
maneira, o autor considera que todos os tipos de filmes,
ficções, documentários, cinejornais, etc. são documentos
históricos e devem ser objetos de análise para os
historiadores. Entretanto, para Sorlin:

La enorme mayoría de los filmes proyectados


en las salas se funda sobre una historia; sin
embargo, la historia no es más que un aspecto
del filme; sin descuidar la anécdota, que ofrece
un punto de partida, hemos de interesarnos ante
todo por la construcción, la puesta en acción del
material fílmico. En este material, la imagen
ocupa un lugar enorme (1985, p. 169).

Nesse sentido, o autor chama a atenção para o


fato de que os filmes trazem diversos elementos visuais e
sonoros específicos que vão além do conteúdo explícito
da obra. Ou seja, no caso de filmes com fundamentação e
ambientação histórica não é apenas o conteúdo da trama
ou a abordagem temática histórica que devem ser
analisadas pelo historiador, mas também a forma como os
Diálogos Sobre História e Cultura 298

filmes operacionalizam elementos artísticos e técnicos


para a construção das imagens. A imagem apresenta um
grande número de mensagens, muitas vezes não
intencionais, capazes de abordar indiretamente algum
fenômeno social ou contexto histórico e, portanto, devem
ser decodificadas pela análise dos historiadores
(SORLIN, 1985).
O historiador canadense Robert Rosenstone
(2010) também é outro nome relevante para as discussões
sobre a relação cinema-história. Em sua obra A história
nos filmes, os filmes na história, publicado pela primeira
vez em 2006, retoma a visão cinematográfica da história
e apresenta as dificuldades sentidas pelo historiador que
se dedica a lidar com o cinema. Ao se apresentar como
um historiador pós-moderno, Rosenstone se interessa em
demonstrar como diferentes discursos sobre o passado,
que vão além da historiografia tradicional, são capazes de
criar versões alternativas ao conhecimento histórico.
Essas versões podem ser encontradas nos filmes e,
segundo ele, o cinema oferece uma possibilidade de
reflexão histórica comparável à historiografia:

Filmes, minisséries, documentários e


docudramas históricos de grande bilheteria são
gêneros cada vez mais importantes em nossa
relação com o passado e para o nosso
entendimento da história. Deixá-los fora da
equação quando pensamos o sentido do passado
significa nos condenar a ignorar a maneira
como um segmento enorme da população
passou a entender os acontecimentos e as
pessoas que constituem a história
(ROSENSTONE, 2010, p. 17).
Diálogos Sobre História e Cultura 299

Sendo o cinema uma forma alternativa de se


articular o passado, Rosenstone defende a possibilidade
de um cineasta ser considerado um historiador. Por mais
que um filme não possua a fidelidade buscada pela
historiografia em relação ao passado, suas formas
plásticas conseguem condensar a história.
Esses três exemplos de historiadores preocupados
em elaborar os fundamentos teóricos e metodológicos da
relação cinema-história contribuíram de forma definitiva
para que houvesse posteriormente outros pesquisadores
na área, que se adentraram em seus pressupostos e, com o
passar do tempo, fomentaram ainda mais as discussões
realçando as possibilidades de se trabalhar com as fontes
fílmicas em História (YASHINISHI, 2020).

2. O filme histórico e as representações


históricas

Um filme histórico é aquele cuja temática se


relaciona diretamente a fatos, processos, personagens ou
contextos históricos específicos. Esse tipo de filme pode
ser de diferentes gêneros e estilos, sendo filmes baseados
em fatos da realidade ou com tramas puramente
ficcionais (BARROS, 2012).
Existem várias categorias de filmes históricos: os
documentários históricos (por exemplo: Guerras do
Brasil, de 2019), os filmes épicos (exemplo: Ben Hur, de
1959), obras de reconstrução histórica (exemplo: Danton,
o processo da revolução, de 1983), biografias (exemplo:
Cleópatra, de 1963), ficções históricas (exemplo:
Gladiador, de 2000), adaptações literárias com fundo
Diálogos Sobre História e Cultura 300

histórico (exemplo Satyricon, de 1969) e, mais


recentemente, as adaptações de histórias em quadrinhos
com fundo histórico (exemplo: X-Men: dias de um futuro
esquecido, de 2014).
Apesar das diferenças entre essas categorias e
filmes, essas obras cinematográficas têm em comum a
ambientação histórica e, para além de expressões
culturais, serem meios de representações da história:

Para o âmbito das relações entre cinema e


história, interessa particularmente a
possibilidade de a obra cinematográfica
funcionar como meio de representação ou como
veículo interpretante de realidades históricas
específicas, ou, ainda, como linguagem que se
abre livremente para a imaginação histórica
(BARROS, 2012, p. 57).

O conceito de representação é polissêmico e


bastante controverso nas ciências humanas. Entretanto, o
historiador Roger Chartier (1990) aponta que as
representações são classificações e divisões para a
apreensão do mundo social como categorias de percepção
do real, variando conforme os grupos e classes sociais
que as produzam:

As percepções do social não são de forma


alguma discursos neutros: produzem estratégias
e práticas (sociais, escolares, políticas) que
tendem a impor uma autoridade à custa de
outros, por elas menosprezados, a legitimar um
projeto reformador ou a justificar, para os
próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas
[...] As lutas de representações têm tanta
importância como as lutas econômicas para
Diálogos Sobre História e Cultura 301

compreender os mecanismos pelos quais um


grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção
do mundo social, os valores que são os seus, e o
seu domínio (CHARTIER, 1988, p.17).

Para o autor, as representações são construções


sociais geradas através de práticas culturais, assim como
elas mesmas vão gerar práticas culturais.
Tendo em vista essas considerações é possível
afirmar que as representações sociais e históricas nos
filmes históricos são produzidas através das práticas
culturais envolvidas no processo de suas produções, isto
é, um conjunto de técnicas e elementos da linguagem
cinematográfica que envolve a construção dos cenários,
figurinos, caracterização das personagens e roteiros,
somados aos artifícios de produção imagética
computadorizados, sonoplastia e uma pesquisa histórica
para fundamentação do enredo. Todos esses elementos
perfazem as práticas utilizadas para a criação do efeito de
realidade para as representações:

A mise en scène aí defendida é um pensamento


em ação, a encarnação de uma ideia, a
organização e a disposição de um mundo para o
espectador. Acima de tudo, trata-se de uma arte
de colocar os corpos em relação no espaço e de
evidenciar a presença do homem no mundo ao
registrá-lo em meio a ações, cenários e objetos
que dão consistência e sensação de realidade à
sua vida (OLIVEIRA JR, 2013, p. 8).

Nesse sentido, as técnicas e elementos presentes


na mise en scène são as práticas culturais da linguagem
Diálogos Sobre História e Cultura 302

cinematográfica, que por sua vez, conferem a


representação no cinema.

3. Elementos da mise en scène

A mise en scène é um conceito importante na


linguagem do cinema. Esse termo designa a organização
dos objetos dentro de um plano ou do quadro da câmera.
Para Edgar-Hunt, Marland e Rawle:

Mise en scène é um termo francês derivado do


teatro que significa literalmente “colocar no
quadro”. Tudo o que vemos dentro do quadro
da câmera vem com o apoio das mise en scène:
atores e suas performances, iluminação,
figurinos, cenários, efeitos de lentes coloridas,
objetos de cena e didascália (organização dos
atores no espaço). Tudo isso se combina para
dar ao espectador uma imagem do espaço
cinematográfico (2013, p. 129).

A mise en scène no cinema apresenta aspectos


semelhantes à arte teatral, pois enquanto alguns filmes a
utilizam para criar uma impressão de realismo, outros
buscam efeitos diversos, como exagero cômico, terror
sobrenatural, entre outras funções (BORDWELL;
THOMPSON, 2013). Os elementos fundamentais da
mise en scène são: cenário, personagem (figurino e
maquiagem), iluminação e composição.
O cenário ou cenografia “[...] será precisamente o
“lugar” do encontro do ser humano e seus desejos, o
“lugar” que valorizará revelação de outro mundo, um
Diálogos Sobre História e Cultura 303

mundo virtual, transumano” (GARCIA, 2009, p. 96).


Nesse sentido, o cenário não é simplesmente o plano de
fundo ou locação de uma cena, mas também faz parte da
ação dramática e possui significativa relevância para a
narrativa de um filme.
É por isso que alguns filmes são reconhecíveis
apenas por um frame de alguma cena que dê visibilidade
ao cenário, como é o caso de Três homens em conflito
(1966), de Sergio Leone, onde a cena final de confronto
entre os personagens principais possui uma cenografia
icônica ambientada no centro de um cemitério.

Figura 1. Cenário de Três homens em conflito.


Fonte: Disponível em: <https://cinemaedebate.com/2009/07/02/tres-
homens-em-conflito-1966/ >. Acesso. Out. 2023.

Os personagens de um filme também são


elementos fundamentais da mise en scène. A eles estão
associados os figurinos e as maquiagens. Assim como a
moda é capaz de expressar a realidade cotidiana, o
figurino diz muito sobre o personagem representado em
um filme. Para Costa:
Diálogos Sobre História e Cultura 304

A criação de um figurino é um mecanismo, uma


técnica de produção de sentimentos da narrativa
fílmica que se converte em elementos de
identificação do personagem com a história e
de separação do ator e seu personagem. Nesse
contexto, o figurino é transformado em um
espaço de significados, que pode revelar
contextos históricos de uma época ou, mais
precisamente, aspectos cotidianos, convenções
sociais e culturais, e o modo como cada
personagem ase posiciona no contexto fílmico
(2009, p. 105).

É muito importante ter em mente que cada parte


do figurino – roupas, maquiagem, penteado, adereços –
tem um sentido próprio e representa diversos aspectos
dos personagens e da narrativa fílmica. É possível que o
figurino aponte a classe social do personagem,
acompanhe seu desenvolvimento na trama, seja espacial
ou temporal, bem como pode acompanhar sua condição
psicológica e alterações de humor, entre outras coisas
(COSTA, 2019).
Por exemplo, no filme Coringa (2019), de Tod
Phillips, o personagem Arthur Fleck (Joaquin Phoenix)
vai se deteriorando física e mentalmente ao ponto de se
tornar o Coringa, um criminoso perigoso e doente. O
figurino que Arthur usa no final do filme é o que o
caracteriza como Coringa, mostrando as origens desse
vilão do Batman, da DC Comics.
Diálogos Sobre História e Cultura 305

Figura 2. Joaquin Phoenix no papel de Coringa.


Fonte: Disponível em:
<https://olhardigital.com.br/2022/08/04/cinema-e-streaming/coringa-
2-ganha-data-de-lancamento-saiba-mais/>. Acesso em. Out. 2023.

Nos primórdios do cinema, com filmes mudos e


em preto e branco, as maquiagens eram necessárias para
que os rostos dos atores e suas expressões faciais
ficassem bem registrados nas filmagens antigas. Ao
longo da história do cinema, as técnicas da maquiagem se
desenvolveram para alcançarem diferentes objetivos e
possibilidades dramáticas (BORDWELL; THOMPSON,
2013). Assim como o figurino, a maquiagem é um ponto
central na caracterização de um personagem. Os efeitos
causados pela maquiagem molduram o perfil do
personagem ao apresenta-lo aos espectadores.
Dentre os inúmeros exemplos que poderiam ser
expostos é pertinente lembrar o uso da maquiagem no
filme O exorcista (1973), de Willian Friedkin. Esse
grande clássico do cinema de horror deve grande parte de
seu prestígio à maquiagem usada pela personagem Regan
MacNeil (Linda Blair), que lhe confere a carga dramática
e de horror de uma menina possuída pelo demônio.
Diálogos Sobre História e Cultura 306

Figura 3. Reagan Mac Neil, de O exorcista.


Fonte: Disponível em:
<https://aminoapps.com/c/horror/page/blog/great-character-regan-
macneil-theexorcist/ > Acesso. Out.2023.

Outro elemento fundamental da mise en scène,


bem como de toda produção cinematográfica é a
iluminação. De nada adiantam o figurino, a maquiagem e
a própria encenação na construção das personagens de
um filme se o público não consegue vê-lo. Portanto, a
iluminação não só garante a visibilidade como também
provoca a produção de sentidos de uma cena e corrobora
com seus efeitos dramáticos:

Uma das funções mais básicas da iluminação é


permitir que vejamos ou não certa área durante
a ação. Uma composição com áreas mais claras
e mais escuras é capaz de guiar o olhar do
Diálogos Sobre História e Cultura 307

espectador no quadro, fazendo com que ele


esteja atento a um gesto ou objeto importante
para o desenvolvimento narrativo, ou fazendo
com que ele deixe de ver esse mesmo gesto ou
objeto para que o suspense da trama se sustente
(BORDWELL; THOMPSON, 2013, p. 221)

Em Cidadão Kane (1941), Orson Wells


desenvolveu inúmeras técnicas de uso da iluminação,
como por exemplo, na cena em que Charles Foster Kane
(Orson Wells) reencontra seu amigo Jedediah Leland
(Joseph Cotten) no escritório do jornal Inquirer. Após
desentendimentos, Kane e Leland ficaram tempos sem se
falar e o reencontro acontece quando Leland está
escrevendo uma crítica a apresentação de canto
catastrófica de Susan Alexander (Dorothy Comingore), a
segunda mulher de Kane, mas não termina seu escrito por
estar totalmente embriagado e dormir sob a máquina de
escrever. Kane então decide terminar ele mesmo o texto,
não poupando sua amada das críticas ásperas e
reprovadoras. A iluminação nesta cena permite
compreender a tensão na relação entre os dois
personagens que antes eram amigos e, agora, rompem
inclusive suas companhias profissionais, pois Kane
demite Leland após terminar seu texto.
Diálogos Sobre História e Cultura 308

Figura 4. Kane e Leland.


Fonte: Disponível em:
<https://dropsdefilmes.wordpress.com/2016/05/02/cidadao-kane/ >.
Acesso em. Out. 2023.

Por fim, após todos esses elementos estarem


dispostos em frente à câmera é necessária a composição,
ou seja, como eles vão aparecer na tela e no espaço
cênico. Portanto, a composição na mise en scène
potencializa a narrativa de um filme, objetivando trazer a
intencionalidade da imagem. Cor, luz, perspectiva,
formas, contraste, linhas, enquadramentos e tonalidades
são as unidades gramaticais, usadas para construir o
sentido do filme.
Em O Auto da Compadecida (2000), de Guel
Arraes, a cena do julgamento celestial pode ser um bom
exemplo da composição. No plano aparecem os
personagens Jesus Cristo (Maurício Gonçalves) ao
centro, à sua direita Nossa Senhora, a Compadecida
(Fernanda Montenegro) e, mais abaixo à esquerda e de
costas, o acusador, o diabo (Luís Melo). A disposição dos
personagens tem tudo a ver com suas funções dramáticas
e todos os elementos da mise en scène aparecem e são
fundamentais para a própria narrativa do filme.
Diálogos Sobre História e Cultura 309

Figura 5. Cena do julgamento.


Fonte: Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/2630272>.
Acesso. Out. 2023.

4. Filmes históricos e as representações


na mise en scène

Após compreender os elementos da mise en scène


pode-se percebê-la enquanto exemplo de práticas
culturais empregadas para construção das representações
em filmes históricos. Dessa forma, serão apresentados a
seguir quatro filmes que trazem representações sobre
períodos e contextos históricos diferentes.
O critério de seleção desses filmes foi que eles
trouxessem representações dos quatro períodos
convencionalmente usados para a divisão da história em
História Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea.
Se tratando de Antiguidade, O príncipe do Egito
(1998), filme de animação dirigido por Brenda Chapman,
Simon Wells e Steve Hickner permite uma análise de
Diálogos Sobre História e Cultura 310

representações de civilizações, como a dos egípcios e dos


hebreus.

Nos primeiros tempos havia dois reinos: o


Baixo e o Alto Egito. Entre 3200 a 2800 a. C.
houve a unificação sob uma única coroa. Após
a unificação, o Egito se constituiu como uma
teocracia em que o faraó era, ao mesmo tempo,
rei e divindade [...] Os hebreus são os
antepassados do povo judeu e têm algumas
características que os distinguem de outros
povos da Antiguidade. Acredita-se que por
volta de 1800 a. C., os hebreus tenham saído do
deserto da Arábia, migrando para a
Mesopotâmia e depois para a Palestina
(PETTA; OJEDA, 1999, p.10).

Baseado no livro bíblico do Êxodo, o filme narra


a epopeia de Moisés (dublado por Val Kilmer) desde seu
nascimento como hebreu, sob o julgo escravista dos
egípcios, passando por sua vida de glórias como príncipe
adotado pelo faraó do Egito, pelo seu encontro com Deus
e com suas origens, pela libertação do povo hebreu da
escravidão, chegando à terra prometida, onde recebe das
mãos divinas as tábuas da Lei.
Para além de sua conotação religiosa, o filme
permite uma riqueza de discussões históricas. A cena
selecionada para exemplificar a análise aqui proposta é
da abertura do filme, uma sequência acompanhada pela
música Liberte-nos, em referência a promessa divina de
libertação da escravidão através de um enviado, um líder
libertador, que nesse caso será Moisés.
Diálogos Sobre História e Cultura 311

Figura 6. Cena inicial de O príncipe do Egito.


Fonte: Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?-
qGdYROeM> Acesso. Out. 2023.

Esse frame permite analisar a mise en scène, a


começar pela investigação do plano. Ainda que seja um
desenho animado percebe-se que se trata de um plano
médio enquadrando o personagem da cintura para cima.
A câmera tem o movimento tilt-up, que é quando ela se
movimenta para cima num eixo vertical, demonstrando o
personagem de baixo para cima (SIJLL, 2017).
Existem pelo menos quatro elementos importantes
nesse quadro: 1º o figurino das personagens, que remete a
regiões quentes e desérticas, como no Egito, além da
insinuação estética dos trajes ao tipo de vestimentas
dessa região e nessa época; 2º a disposição das
personagens, sendo que o que está em maior evidência é
um dos guardas do faraó observando os outros ao fundo,
carregando sacos e puxando cordas, remetendo-lhes a
condição de escravizados hebreus. 3º as construções ao
fundo da cena representam os palácios do faraó, que
ostentavam grandes estátuas adoradas nas religiões
egípcias, politeístas e com deuses zoomórficos; 4º o
Diálogos Sobre História e Cultura 312

próprio ambiente natural como ambientação da cena, pois


apresenta o sol, a areia, o clima de calor intenso,
remetendo mais uma vez ao contexto geográfico e social
do Egito Antigo.
Algumas importantes representações do período
medieval estão presentes no conhecido filme O nome da
Rosa (1986), baseado no romance homônimo de
Umberto Eco. Dirigido por Jean-Jacques Annaud, a trama
se passa na Itália do século XIV, onde o frade William de
Baskerville (Sean Connery), acompanhado do noviço
Adson (Christian Slater), vai a um mosteiro isolado para
resolver conflitos entre ordens religiosas. No entanto, a
visita dos frades coincide com mortes misteriosas em
série, às quais os religiosos atribuem responsabilidade
diabólica. William descarta a possibilidade sobrenatural
das mortes e se dedica a investiga-las, criando conflitos
com os superiores das instituições religiosas, sobretudo
com o inquisidor Bernardo Gui (F. Murray Abraham).
Na cena selecionada William e Adson pedem
permissão para investigar a biblioteca do mosteiro em
busca de pistas sobre as mortes misteriosas. Ali, eles
transitam entre os monges que trabalhavam nos
scriptoria, escrevendo ou copiando livros, conhecidos
historicamente como amanuenses ou monges copistas. O
frame acima traz um plano geral aberto, através do qual
se mostram cenas localizadas em espaços interiores ou
exteriores amplos, apresentando de uma só vez o espaço
da ação e a interação dos personagens.
Diálogos Sobre História e Cultura 313

Figura 7. Cena dos copistas.


Fonte: Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=Ni_qguEOpTE. > Acesso. Out. 2023.

O movimento da câmera é o steadicam, que a tira


do tripé fixo dá autonomia de uma câmera de mão. “No
entanto, seu mecanismo de estabilização suaviza a
instabilidade da câmera de mão, fazendo com que as
tomadas com steadicam pareçam flutuar” (SIJLL, 2017,
p. 230).
Analisando a mise en scène, podem-se destacar
vários elementos importantes. Primeiramente, o cenário
interno do mosteiro com alguns detalhes na arquitetura
gótica medieval das paredes. A iluminação confere um ar
de silêncio e introspeção do lugar. Em primeiro plano são
apresentados os copistas sentados em suas escrivaninhas,
deixando à vista do espectador as obras escritas e
ilustradas à mão. Os figurinos também remetem aos
hábitos comumente usados pelos religiosos, assim como
as tonsuras das personagens como distintivos dos
membros das ordens clericais.
Esses elementos podem ser analisados como
representações históricas do período medieval, sobretudo,
no que se refere à vida monástica e religiosa da época. O
Diálogos Sobre História e Cultura 314

contexto histórico da trama é convencionalmente


denominado como “Baixa Idade Média” (século XI ao
século XV), em que ocorreram profundas transformações
na sociedade europeia, como as crises e saturação do
modo de produção feudal, o movimento comunal, o
desenrolar da Guerra dos Cem Anos (1337-1453), entre
outras.
A Rainha Margot é um filme teuto-ítalo-francês
dirigido por Patrice Chéreau e lançado em 1994.
Adaptado do romance homônimo de Alexandre Dumas, o
filme traz diversas representações sociais sobre o
contexto histórico europeu durante o período da
Modernidade. A trama se desenvolve no século XVI, na
França, mais precisamente em 1572. O reino de Carlos
IX (Jean-Hugues Anglade) é marcado por conflitos
internos entre católicos e protestantes.
O monarca católico reina sob forte influência de
sua mãe, Catarina de Médici (Virna Lisi), que planeja
apaziguar os conflitos religiosos casando sua filha,
Margaret de Valois, a Margot (Isabelle Adjani) com o rei
protestante de Navarra Henrique de Bourbon (Daniel
Auteiuil). O casamento arranjado não é bem visto por
boa parte da monarquia, mas é realizado em uma
cerimônia religiosa solene em 18 de agosto de 1572.
Para a cerimônia foram convidados milhares de
protestantes vindos de todas as partes da França. Muitos
deles não conseguiram vaga nas hospedarias e tiveram
que dormir nas ruas de Paris. Seis dias após o casamento,
ocorreu uma das maiores chacinas da história da França,
o Massacre da Noite de São Bartolomeu, onde muitos
dos protestantes que estavam na capital do país foram
brutalmente assassinados por ordens da coroa católica.
Diálogos Sobre História e Cultura 315

Esse episódio sangrento piorou ainda mais as relações


entre católicos e protestantes:

O massacre de huguenotes (calvinistas),


conhecido como Noite de São Bartolomeu,
promovido por Catarina de Médicis, em 1572,
provocou uma instabilidade política que
colocava em risco o trono francês. A fim de
garantir o poder, Henrique III, filho de Catarina
de Médicis, aliou-se a Henrique de Bourbon,
líder dos huguenotes, e o nomeou seu herdeiro
político. Com a morte de Henrique III em 1589,
Henrique de Bourbon assumiu o poder com
nome de Henrique IV, dando início à dinastia
dos Bourbons (PETTA; OJEDA, 1999, p. 83).

O casamento de fachada entre Margot e Henrique


também é repleto de tensões e infidelidade, muito por
conta de Margot ser apresentada como uma mulher
lascívia, inclusive mantendo relações sexuais incestuosas.
A cena selecionada para a análise é justamente a
do casamento entre Margot e Henrique de Navarra. Aqui
se percebem diversos elementos da mise en scène
capazes de gerar as representações e o efeito de
verossimilhança com o contexto político, religioso e
cultural da França no século XVI.
Diálogos Sobre História e Cultura 316

Figura 8. Cena do casamento de Margot.


Fonte: Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/02/rever-a-rainha-
margot-em-tela-pequena-revela-sua-dimensao-tragica.shtml. Acesso
Out. 2023.

A cenografia permite compreender a influência da


Igreja Católica no reino francês, já que o matrimônio é
celebrado dentro de uma suntuosa catedral. Esse aspecto
denota o contexto do absolutismo na França, sobretudo
na dinastia Valois. Os figurinos e maquiagens reforçam
essas representações, ao passo que o casal está
ornamentado com vestes luxuosas, típicas da realeza e
rodeado de bispos católicos paramentados com suas
vestes litúrgicas, como as mitras e casulas usadas em
ritos solenes. A iluminação centraliza os protagonistas e
simula um ambiente clareado pelas velas dos castiçais da
igreja.
A composição desses elementos na mise en scène
criam um ambiente de cena alusivo ao contexto
turbulento da Idade Moderna, onde não somente
ocorriam conflitos religiosos, mas também as
divergências entre a monarquia e a burguesia
comprometendo uma das principais bases do regime
Diálogos Sobre História e Cultura 317

monárquico. As encenações e a própria cenografia trazem


representações do desgaste político e moral da imagem
da realeza diante do povo em um período de
transformações sociais importantes para toda a Europa.
Se tratando da contemporaneidade, um filme
sempre referenciado em muitas pesquisas nas Ciências
Humanas é o clássico Tempos Modernos, de 1936,
dirigido por Charles Chaplin. Esse longa-metragem foi o
último trabalho mudo de Chaplin e também o derradeiro
de seu icônico personagem Carlitos, ou o Vagabundo.
No filme, Carlitos (Chaplin) trabalha no sistema
de linha de montagem de uma indústria num ritmo
frenético e compulsivo. Em determinado momento ele
sofre um surto psicológico e é levado a uma clínica
psiquiátrica para eventuais exames. Após ser liberado,
Carlitos acidentalmente se mete em meio a um
movimento grevista e, sendo considerado seu líder pela
repressão policial, é levado à cadeia. Na prisão, o
vagabundo comete um ato e heroísmo e consegue a
liberdade. Em sua tentativa de retomar uma vida normal,
Carlitos se encontra com uma jovem pobre e abandonada
chamada Ellen (Paulette Godard), se apaixona por ela e
começam a se aventurar em meio às situações de pobreza
e crise na tentativa de melhores condições de
sobrevivência.
A temática que o filme Tempos Modernos aborda
é bastante ampla, percorrendo desde as condições de vida
e trabalho dos operários da época até a hipocrisia e a
repressão das classes dominantes da sociedade. Chaplin,
porém, focou-se em duas questões pertinentes resultadas
da ascensão do nacionalismo e da grande Depressão de
1929: o desemprego e a automação.
Diálogos Sobre História e Cultura 318

Figura 9. Cena de Carlitos na linha de montagem.


Fonte: Disponível em:
<https://static.todamateria.com.br/upload/te/mp/temposmodernos-
cke.jpg>. Acesso Out. 2023.

O cenário representa o interior de uma fábrica,


com diversos equipamentos, entre eles a esteira rolante
que remete ao modelo produtivo do fordismo, tão
presente na sociedade industrial estadunidense no início
do século XX. Os personagens, inclusive Carlitos, estão
trajados com macacões e roupas sujas de graxa
remetendo à condição dos trabalhadores operários
urbanos. Ainda que seja em preto e branco, o filme
permite através da iluminação da cena compreender a
relação entre o ser humano e as máquinas, muitas vezes
com estas tornado o trabalho exaustivo e alienado.
Tempos Modernos não é um filme sobre a
Revolução Industrial propriamente dita, mas sim sobre
suas consequências, principalmente em sociedades em
grande desenvolvimento nos primeiros anos do século
passado, como a dos Estados Unidos. A grande crise
econômica de 1929 agravou os sintomas já presentes na
população urbana estadunidense, como o excesso de
Diálogos Sobre História e Cultura 319

produção, desemprego, a falta de opções para aplicação


de capitais, paralisação do comércio, queda dos lucros e,
consequentemente, o aumento da pobreza e das
desigualdades sociais entre a burguesia e o proletariado.
Nesse sentido, o filme de Chaplin permite
compreender as representações sociais desse contexto de
crise através de suas cenas com teor cômico e, ao mesmo
tempo, crítico das condições sociais e econômicas da
realidade urbana estadunidense na década de 1930.

Considerações finais

A proposta desse capítulo foi apresentar uma


metodologia de análise da mise en scène, entendendo a
sua confecção como resultado de práticas culturais
específicas da linguagem cinematográfica, que podem ser
tratadas como representações históricas. Para Luiz Carlos
Oliveira Jr:

O conceito de mise en scène no cinema leva em


conta uma complexa dinâmica, em que todos os
elementos intervêm: uma concepção global do
filme, ancorada em dados tão técnicos e
pragmáticos quanto abstratos e, não raro,
líricos. Colocar em cena no cinema não se
resume, no mais das vezes, a nenhuma
operação isolável (2013, p. 28).

Como se viu, a cenografia dos filmes


selecionados permite uma espécie de “ambientação
histórica” através da construção dos cenários que
remetem aos contextos históricos retratados nos filmes: o
Diálogos Sobre História e Cultura 320

antigo Egito em O príncipe do Egito, os mosteiros


medievais em O nome da Rosa, as catedrais do reinado
francês na Modernidade em A Rainha Margot e a fábrica
estadunidense em Tempos Modernos.
Os figurinos e maquiagens dos personagens das
cenas também corroboram com a construção das
representações históricas, ao passo que permitem ao
espectador visualizar os atores e as encenações com
elementos alusivos aos períodos históricos representados.
Os efeitos da iluminação e da composição das cenas dão
o sentido da dramaticidade e consolidam o contexto geral
dos filmes.
Em suma, a mise en scène de filmes históricos
não é a reprodução fiel da realidade, mas a construção de
representações históricas. No processo de criação de um
filme histórico, seus realizadores organizam todos os
elementos constituintes das cenas tendo em vista efeitos
de verossimilhança, portanto, há por trás desses filmes
toda uma pesquisa histórica a respeito do contexto social
a ser abordado pela obra cinematográfica.
Diálogos Sobre História e Cultura 321

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Diálogos Sobre História e Cultura 324

A história do ator no cinema: da


desteatralização à possibilidade
emancipatória
The history of actor at cinema:
dispropriation of theatricality to
emancipatory possibility
Ricardo Di Carlo Ferreira1

Resumo

A aparição da atorialidade no cinema, historicamente, foi


condicionada ante a desteatralização da linguagem
atorial, em termos de rosticidade e corporeidade, devendo
os intérpretes perfilarem cinesias operativas de abandono
da tradicional e ancestral teatralização da interpretação
rumo à sua cinematografização. Tal condição aventada
praxiologicamente por Vsevolod Pudovkin abrangia todo
o léxico atoral. Isto posto, esclareço que este estudo é
uma tentativa de provisionar um revisionamento
historiográfico calcado nas teorias do cinema, detido nos
processos de criação em adaptação da seara atuacional –
via o procedimento de cinematografização da cinemática
dos intérpretes, espraiada para a calibração vocal, quando
da insurgência do cinema pós som sincrônico. Nessa

1
Ricardo Di Carlo Ferreira: Doutorando em História, na linha de
Arte, Memória e Narrativa, com bolsa da Capes, na Universidade
Federal do Paraná, UFPR. E-mail: ricodicarlo@gmail.com
Diálogos Sobre História e Cultura 325

tessitura, os resultados da pesquisa apontam o constructo


de imagens de cinematografização constituída por um
processo de adaptação da atuação para o cinema, residido
de forma exponencial sobre a fisionomia do ator, com
rosticidade minorada, sutil, em verossimilhança, bem
como o tônus postural via a construção de corporeidades
dos atuantes em dilatação crível e na maioria das vezes
diminuta, não expandida, no intento de materializar o
senso de estesia no espectador, evitando, de modo
contumaz a disrupção da ilusão estética e do efeito de
imersão espectatorial, sob o viés realista de
representação. Logo, o ator teve cinesias (movimentos
sociais e históricos de um ente ou grupo, que podem ser
da ordem ascendente ou descendente, em termos de
poder antropológico) que o colocavam
preponderantemente em posição de ator-operário.
Todavia, mais recentemente, tornou-se possível
identificar obragens/contextos criacionais em que
historiograficamente o ator angariou a possibilidade de
emancipar-se.
Palavras-chave: História do ator no cinema;
Desteatralização; Ator-operário; Ator-emancipado.

Abstract

The emergence of the actor in cinema was historically


conditioned by the dispossession of the theatricalization
of the actor's language, in terms of face and body work,
and the performers had to assume a cinematographic tone
in their interpretation. This condition was praxeologically
promulgated by Vsevolod Pudovkin. Furthermore, I
Diálogos Sobre História e Cultura 326

would like to clarify that this study provides a


historiographical review based on theories of cinema,
focusing on the processes of creation of the actor in
adaptation, from theater to cinema - via the
cinematographic acting procedure, in the creation of
images, spreading to vocal expression, when post-
synchronous sound cinema emerged. In this way, the
results of the research point to the construction of
cinematographic images constituted by a process of
adapting acting to cinema, residing exponentially on the
actor's physiognomy, with diminished, subtle rosticity, in
verisimilitude, as well as the postural tone via the
construction of the actors' corporealities in believable
dilation and most of the time diminutive, not expanded,
in an attempt to materialize the sense of aesthesia in the
spectator, avoiding, in a contumacious way, the
disruption of the aesthetic illusion and the effect of
immersion of the spectator, under the realistic bias of
representation.Therefore, the actor has had kinesics
(social and historical movements of an entity or group,
which can be of the ascending or descending order, in
terms of anthropological power) that placed him
predominantly in the position of actor-worker. However,
more recently, it has become possible to identify creative
works/contexts in which the actor has historiographically
gained the possibility of emancipation.
Keywords: The history of actor at cinema;
Dispropriation of theatricality; Actor-worker; Actor
emancipated.
Diálogos Sobre História e Cultura 327

A história do ator no cinema: da


desteatralização à possibilidade
emancipatória
Ricardo Di Carlo Ferreira

Introdução

Sabe-se que na história do ator no cinema, já nos


idos de 1908, as vedetes participavam do cinema.
Notoriamente, houveram sucessivas mudanças históricas
impostas aos intérpretes em sua operatividade, no Brasil
e Estados Unidos, sob a condição de que a não aderência
delas, imputaria no degredo da atorialidade.
Desse modo, o presente estudo tentará abordar
algumas das mudanças históricas, da ordem das
sociabilidades e do ponto de vista operativo (de trabalho,
mas especificamente, no modo de se trabalhar do
ator/atriz). Para tanto, serão tratados temas de
fundamental relevância historiográfica acerca da história
do ator no cinema, como a destrealização e
cinematografização.
Ponderar-se-á também, diferentes conformações
atorais, situando-as no tempo: a servitude atoral, o ator-
operário, o ator-autor e, a mais recentemente conhecida
(epistemologicamente falando) possibilidade de
emancipação do ator.
Diálogos Sobre História e Cultura 328

1. Preâmbulo diagnóstico das


historiografias atoriais: do teatro ao
estilo cinema

Preliminarmente ao início dessa discussão faz-se


necessária uma distinção de ordem filológica, que venho
aventando já há algum tempo em meus escritos teórico-
científicos. De modo específico estou distinguindo a
linguagem atorial da linguagem do teatro. Dado que a
primeira refere-se à linguagem de ator, que nada mais é
do que a atuação. Torna-se importante ter em mente que
ator e teatro não são a mesma coisa, e,
consequentemente, que a arte da atuação e a arte teatral
não são sinônimos, como muitas vezes costumou-se,
inclusive, a historiografar. Recobro, ligeiramente, um
trecho de uma publicação recente de minha autoria para
sanar este aporte de linguagens, para na sequência
retomar o foco detido da discussão aqui apresentada
acerca das historiografias atoriais preponderantes no
cinema. De todo, reforço e reitero que:

Urge a implementação desta distinção da


linguagem do ator daquelas em que ele atua na
seara da arte pelo fato de terem ocorrido
transformações taxativas ao longo da história
acerca de qual seria o seu lugar fundamental. Se
no passado a arte teatral era entendida como a
arte de ator como apregoava o mestre francês
Étienne Decroux (1963), na medida em que o
teatro imputou historicamente diversos outros
agentes a sua realização, a noção de
pertencimento do teatro foi alterada. As
transformações a respeito do entendimento
Diálogos Sobre História e Cultura 329

estético sobre o trabalho do ator vinculam-se,


evidentemente, ao contexto cultural de
produção da arte compreendida a partir da
formação dos seus realizadores, da insurgência
de novas linguagens artísticas e do interesse
social do período histórico (FERREIRA, 2020,
p. 298).

Dito de outra forma, ainda que essas linguagens


possam ter andado juntas durante longos anos da história,
os movimentos historiográficos perfilados pelo ator, em
termos antropológicos, diferem dos do teatro, posto que a
arte teatral para além do seu traço comunicacional
artístico configura-se, também, como sendo um lugar
habitado por inúmeros outros artistas, com histórias
próprias. De qualquer maneira, reitero que a história do
ator como foi escrita confunde-se com a história do
teatro, muitas das coisas que se atribuem ao teatro são
atorais (atorais ou atoriais, são sinônimos e designam
aquilo é concernente à atorialidade – aos atores e atrizes).
Nessa tessitura, as convergências estéticas entre o
trabalho do ator e os movimentos históricos do teatro por
muitos anos eram da ordem da cominação por parte
daqueles que estavam em posições de superioridade no
organograma teatral, que cronologicamente designam as
figuras dos autores e diretores (nessa ordem), por serem
eles que sucessivamente articulavam a égide de
compleição dos espetáculos, engendrando, desse modo, o
estado de servitude atoral (os atores como operários,
servindo ao drama, ao espetáculo, na busca pela catarse).
É importante ponderar, esse fato de que a história do
teatro enquanto arte, era conformada por operadores, que
exerciam influência coercitiva e poder antropológico em
Diálogos Sobre História e Cultura 330

relação aos entes atores, algo que não poderia deixar de


ser abalizado, conquanto esse mesmo modus operandi
será replicado na história, em restauração, obviamente,
mas ainda assim com similitudes, quando da insurgência
da arte cinematográfica, no que tange ao
condicionamento insistente da posição do ator enquanto
operário, em estado de servitude.
Cabendo ao ator/atriz, servir o desejo estético dos
cineastas: o provimento de imagens por meio de seus
corpos e rostos para e no cinema. Sendo, por vezes,
incitados ao hiperrealismo, quando das vezes que
houveram o requerimento à atorialidade para o
provimento dos corpos nus e até a performance de cenas
de sexo explícito; a exata medida de emoção; a fotogenia;
e, importante ressaltar, que para as realidades do star
system, e suas réplicas ao redor do mundo, também a
construção das personas estelares no plano extrafílmico.
Nada obstante, na seara cinematográfica, a própria
espectatorialidade vem a chancelar o estado de servitude
atoral, em fatores como: o voyeurismo, a pulsão escópica
e o gozo da imagem (AUMONT, 2002). Não se pode
isentar os espectadores da realidade antropológica
enfrentada pelos intérpretes, posto que uma forma de arte
se insere na realidade que a circunda. Nesse sentido, essa
relação entre atores e espectadores, vem sendo
problematizada historicamente. Jerzy Grostowski (1968),
notório teatrólogo, tido por muitos teóricos, como um dos
maiores expoentes da atorialidade desde Stanislavski, já
asseverava: “quero dizer a vocês que não conseguirão
grandes alturas se se orientarem para o público. Não
estou falando de um contato direto, mas de um tipo de
servidão, do desejo de ser aclamado, de ganhar aplausos
Diálogos Sobre História e Cultura 331

e palavras de louvor” (GROTOWSKI, 1968, p. 183).


Nessa mesma perspectiva, um pouco antes no tempo,
Stanislavski (1956) afiançava que:

(...) quanto mais o ator se preocupa com o


espectador, mais exigente este se torna, e
refestelado na sua poltrona, exige que o
divirtam sem tratar de auxiliar sua criação em
coisa alguma. Mas, quando o ator se
despreocupa do auditório, este vai lhe ao
encontro, sobretudo durante as cenas mais
importantes, e que só num palco poderão ser
vistas (STANISLAVSKI, 1956, p. 166).

Esse breve panorama histórico da atorialidade: da


praxeologia teatral e a subsequente espécie de
transposição antropológica dessa realidade para o
contexto cinematográfico fornece indícios de que a
atorialidade tem sido calibrada e capitaneada para a
manutenção da sua posição de ator-operário. Antes, no
teatro, pelo sistema das grandes companhias teatrais,
adiante, no cinema, pelo sistema de estúdios. E,
contemporaneamente, isso se tornou mais complexo,
tendo em conta a multiplicidade de zonas intervalares
que a atorialidade tem buscado, continuamente, para
permanecer no fazer atuacional, sobretudo, para que se
possam viver (financeiramente falando) do próprio
ofício: a atuação.
Diálogos Sobre História e Cultura 332

2. O alinhavamento entre a linguagem


atorial e a linguagem audiovisual

Factualmente, a arte de ator, a atuação, pode ser


operacionalizada, sim, no teatro, e, por isso mesmo,
situou-se neste solo operativo por longo período da
história, mas, sobretudo desde o surgimento do cinema,
espraiou-se para a linguagem do audiovisual como um
todo, sob a prática calibrada da dilatação atuacional2 -
processo de adaptação do tônus teatralizado da atuação
para o contexto cinemático que a linguagem
cinematográfica veio a requerer da atorialidade, em
verossimilhança, em ações diminutas de corpo, rosto,
voz. Nessa conjuntura, o nomeado realismo
cinematográfico estatuiu, desde muito cedo, que a
legibilidade da imagem atoral seria possível mediante a
desteatralização da linguagem atorial. Dessa maneira, os
processos de criação das imagens dos atores, em termos
de rosticidade e corporeidade deveriam perfilar as
cinesias operativas de abandono da tradicional e ancestral
teatralização da interpretação rumo à sua
cinematografização.
2
Sobre a dilatação atuacional: “Técnica de atuação pela qual o ator
dilata a sua presença e a percepção de seu espectador, buscando
modos de representar o cotidiano de forma extracotidiana, e,
portanto, artística, na cena. (...)No plano teatral, a dilatação é
comumente abordada pelo viés de criação de partituras cênicas
expandidas e amplas, na tentativa de se buscar uma atuação mais
teatralizada, apartada da estética realista. Contudo, a técnica da
dilatação não deixa de explorar o gesto minorizado, intimista – caro
ao audiovisual e, também, trabalhado na técnica teatral, em questão.
A dilatação é retroalimentada pela variação codificada de expandir e
de fragmentar os meandros da atuação” (FERREIRA, 2020, p. 304).
Diálogos Sobre História e Cultura 333

Tal condição desdobrada por Vsevolod Pudovkin


abrangia todo o léxico do ator, detido nos processos de
criação de imagens em adaptação da seara atuacional –
procedimento de cinematografização da imagem-
movimento dos intérpretes. Entretanto, essa imagem-
movimento do cinema e do ator caminhou - e grande
parte (a maior, possivelmente) do cinema e seus atores;
ainda perseguem essas vias, denominadas por “instantes
privelegiados” (DELEUZE, 1983, p. 9). Sendo esses
instantes que se desejam capturados pela fotografia de
imagem-movimento do cinema. Para tanto, para
reconstituir o movimento numa ordem plástica
(cinemática), atores e cineastas engendram esforços para
reconstruir no cinema essas formas (símiles à realidade)
o mais próximo possível de sua atualização numa matéria
fluente de feitura de imagem-movimento. Esse fora um
procedimento requerido ao ator, quando da sua inserção
no cinema, e o mesmo continua sendo instado pelos
realizadores à atorialidade sob a égide da
verossimilhança.
Dito de outra maneira, as aptidões de cineastas e
atores, no que tange ao processo criacional de imagem-
movimento de corpos cênicos no cinema:

São potencialidades que só se realizam ao se


encarnarem na matéria. Mas, inversamente, o
movimento limita-se a exprimir uma "dialética"
das formas, uma síntese ideal que lhe confere
ordem e medida. O movimento assim
concebido será, portanto, a passagem regulada
de uma forma a uma outra, isto é, uma ordem
de poses ou de instantes privilegiados, como
uma dança (DELEUZE, 1983, p. 9).
Diálogos Sobre História e Cultura 334

Nesse contexto, o ator precisaria regular o seu


trabalho, o seu tônus corpóreo. Em outras palavras,
adianto que os resultados da pesquisa apontam o
constructo de imagens, de cinematografização constituída
por um processo de adaptação da atuação para o cinema,
residido de forma exponencial sobre a fisionomia do ator,
com rosticidade minorada, sutil, em verossimilhança,
bem como o tônus postural via a construção de
corporeidades dos atuantes em dilatação crível e na
maioria das vezes diminuta, não expandida, no intento de
materializar o senso de estesia3 no espectador – a
promulgação da fotogenia4 e suas discursividades -,
evitando, de modo contumaz a disrupção da ilusão
estética e do efeito de imersão espectatorial, sob o viés
realista de representação. Algo importante a se sublinhar
refere-se ao que Balazs (1970) nos diz:

Hollywood inventou uma arte que desconsidera


o princípio da composição contida em si mesma
e que, não apenas elimina a distância entre o
espectador e a obra de arte, mas
deliberadamente cria a ilusão, no espectador, de
que ele está no meio da ação reproduzida no

3
Nas palavras de Oliveira (2010, p. 2) trata-se da “elaboração do
sentido e sua trajetória do inteligível ao sensível com preocupações
de dar conta dos processamentos” de intelecção, e significação dos
objetos. Aqui o(s) filme (s), e suas atuações. Ainda sobre a estesia:
refere-se a ”uma dimensão inerente à presença dos objetos, coisas,
seres no mundo, a estesia é a condição de sentir as qualidades
sensíveis emanadas do que existe e que exala a sua configuração
para essa ser capturada,sentida e processada fazendo sentido para o
outro” (ibidem).
4
Acerca da fotogenia, sabe-se que “o rosto do ator no cinema, requer
qualidades que não são exatamente as que pedem o teatro. Podemos
Diálogos Sobre História e Cultura 335

espaço ficcional do filme (BALAZS, citado por


XAVIER, 1970, p. 50).

O estilo cinematográfico veio a ser delineado por


essa tônica, do efeito de ilusão e de imersão promulgados
pelo cinema hollywoodiano, e notavelmente a imagem do
ator em verossimilhança veio a corroborar esse estilo de
cinema tão assimilado em outros cinemas, de outras
conjunturas artísticas e de outros espaços geográficos,
antropológicos, artísticos. Ainda sobre a forma
desdobrada pelo cinema de Hollywood, importa destacar,
que:

Tudo neste cinema caminha em direção ao


controle total da realidade criada pelas imagens
– tudo composto, cronometrado e previsto. Ao
mesmo tempo tudo aponta para a invisibilidade
dos meios de produção desta realidade. Em
todos os níveis a palavra de ordem é “parecer
verdadeiro” (XAVIER, 2005, p. 41).

Resta, questionar, portanto: qual o mecanismo do


cinema no uso da imagem atoral, ulterior, tendo em
revista que o revisionamento histórico, aponta que o ator
reunir estas qualidades sob o termo geral de fotogenia” de acordo
com Roubine (1987, p. 67-68). No entanto, o referido autor enfatiza
“que não se queira dizer com isso que o ator precisa fornecer sempre
uma imagem sedutora de si mesmo” (ibid). Dito de outra maneira:
“Certos rostos "absorvem" especialmente a luz, "falam" à câmera, de
tal maneira que revelam capacidades de expressão e de emoção sem
relação com a beleza ou o sex appeal e sem emprego no palco. Ao
contrário, poderá acontecer que a presença cênica de um ator não
consiga transferir-se para a imagem. A que atribuir esta fotogenia? A
resposta é certamente complexa: existe primeiramente uma natureza
fotogênica, privilégio de uns e não de outros. Há, em seguida, um
Diálogos Sobre História e Cultura 336

opera preeminentemente via cinemática verossímil?


Falando de outro modo, se o ator opera em
cinematografização verossímil, como o cinema processa
essas imagens capturadas dos atores no universo dos
filmes? Sobre isso nos fala Margrit Tröhler e Henry M.
Taylor (1997), a respeito de como, afinal, se utiliza a
forma atoral na linguagem cinematográfica, em outras
palavras, como o processamento disso se dá no cinema
ficcional, especialmente:

Como auxílio mnemônico, a personagem-


anáfora garante a coesão cinematográfica e a
coerência ficcional entre os planos, sequências
e blocos narrativos da história. Facilita ao
espectador a distribuição da informação no
universo espaço-temporal da diegese por meio
dos canais da fala e sua presença visual
reiterada. O personagem do cinema torna-se
assim uma construção cada vez mais densa,
oscilante e dinâmica: através da combinação
sempre única de várias facetas e funções, é
imediatamente apanhada num conjunto de
referências como uma composição ficcional
integrada. No contexto diegético e narrativo de
um determinado filme (TRÖHLER; TAYLOR,
1997, p. 36-37 - tradução minha)5.

instinto, uma espécie de saber pessoal do ator sobre o seu próprio


rosto e as relações que ele pode estabelecer com os recursos técnicos
do cinema” (ROUBINE, 1987, p. 67-68).
5
En tant qu’aide mnémotechnique, le personnage-anaphore garantit
au cinéma la cohésion et la cohérence fictionnelle entre les plans, les
séquences et les blocs narratifs du récit. Il facilite pour le spectateur
la distribution de l’information dans l’univers spatio-temporel de la
diégèse par les voies de la parole et de sa présence visuelle réitérée.
Le personnage au cinéma devient ainsi une construction de plus en
plus dense, oscillante et dynamique : à travers la combinaison,
Diálogos Sobre História e Cultura 337

Essa conjuntura, historicamente, erigiu-se de


fatores condicionantes que a atorialidade do cinema
ficcional fora condicionada a ter de lidar como atores-
operários (em estado de servitude aos desígnios
estabelecidos pelos realizadores e detentores dos recursos
cinematográficos): a desteatralização, a
cinematografização da imagem-movimento via o
provimento de instantes privilegiados (de emoção,
fotogenia) em dialogismo com os planos da linguagem
cinematográfica, pelo prisma da verossimilhança (algo
que funciona pelo premente reprocessamento daquilo que
pode ser tido como verossímil ao longo do tempo).
Sucintamente, sobre o verossímil atuacional,
pode-se dizer em termos de dilatação, que para fazer-se
verossímil em atuação é importante que, antes de tudo, o
ator/atriz tenha em mente que: “a maneira de se
expressar, realçada e reforçada, aprendida no teatro deve
ser, na grande maioria dos casos, adaptada a uma nova
forma de atuar pelo artista que pretende exercer a
profissão nesta linguagem” (ASSUMPÇÃO, 2015, p. 8).
Em outras palavras, para ser verossímil no cinema
ficcional há que perfazer uma atuação desteatralizada, em
cinematografização – este seria um primeiro marcador do
ator verossímil nesta seara criacional.
Em termos pragmáticos, importa ainda destacar,
que o modo de fazer-se verossímil, muda de acordo com
o tempo e a região. Assim sendo, a verossimilhança
atorial, é processada entre a atorialidade, é este corpus de
artistas, que ao serem vistos em um ou mais filmes, que
toujours singulière, des facettes et des fonctions diverses, il est
d’emblée pris dans un jeu de références en tant que composition
fictionnelle intégrée dans le contexte diégétique et narratif d’un film
particulier.
Diálogos Sobre História e Cultura 338

ao fazerem-se reconhecidos (conjuntamente ou


individualmente no campo do cinema) como bom
atuantes, críveis; que eles/elas atualizam ou corroboram o
processamento da verossimilhança, sempre remetendo-se
à atuações passadas.
Entretanto, há um modo mais arriscado e
incomum para galgar a verossimilhança em interpretação
cinematográfica, de quando o ator atriz opera com
originalidade, arriscando, pouco se remetendo à ordem
costumeira de representação. Sempre ressalto um
exemplo bem conhecido, que é o caso de Antony Perkins
como Norman Bates em Psicose (Psycho, Hitchcock,
1960). Naquele contexto sócio-tempório, não era comum
que a corporeidade empregada por um ator de um
personagem masculino fizesse referências àquilo que é
tido pelo senso comum como sendo próprio da
representação de feminilidade. Como pouco haviam
exemplos contextuais na cinematografia do cinematismo
que ele empregou, possivelmente, Perkins recorreu à um
processo antiquíssimo da pedagogia atorial: a mímesis da
realidade (processo de observação, imitação e encarnação
daquilo ou daqueles que se observam na vida real.Pode-
se fazer a mímesis de um tio, de um avô, de um rapaz que
você observa na rua. O ator, quando é um bom imitador é
capaz de imitar e internalizar esses trejeitos de modo a
interiorizá-los e mostrá-los na encarnação da sua
personagem).
Obviamente, ainda que a história da representação
cinematográfica tenha por longos anos perpetrado um
dualismo entre o masculino e o feminino, ainda assim, já
há algum tempo, sabemos que os modos de ser homem
no mundo são multíplices. Destarte, possivelmente,
Diálogos Sobre História e Cultura 339

Perkins, engendrou maneiras de diluir a feminilidade,


talvez dele próprio e/ou de outros entes que ele observou
ao longo da vida, que não eram hipermasculinizados. E,
assim, por meio de trabalho e estudo de expressão
corporal em mímesis, ele conferiu isso a sua personagem,
remetendo-se ao verossímil, por meio de uma
interpretação em dilatação crível e diminuta, em
cinematografização (primeiro dado verossímil neste
solo)6. Logo, quando Perkins mostra naquele filme uma
atuação fidedigna, isto é, tida como atuação
cinematográfica, ele atualiza o verossímil atuacional,
abrindo espaço para outros modos compositivos, posto
que outros atores poderão tê-lo como referencial no
processamento da verossimilhança atorial no cinema.
Analisando, assim, esses procedimentos atoriais,
torna possível depreender que a servitude do ator no
campo do cinema vem sendo mantida, em grande
medida, pois precisamente, conseguir atender aos
desígnios do cinema profissionalmente é uma tarefa
muito difícil de cumprir.
Dito de outro modo, ser ator-operário é uma tarefa
dificílima de se conquistar e de se manter. Vide os
marcadores já citados: desteatralização e
cinematografização dos elementos atuacionais do ator:
corpo, rosto e voz, em atuação. Em que se ressalta, que o
ator, que no teatro era detentor de uma hiperdilatação
6
Para aqueles que, por ventura, tenham interesse em visualizar a
diferença entre os processos atuacionais de dilatação em
teatralização, e dilatação em cinematografização via a
verossimilhança. Indico assistir esse vídeo modélico de minha
autoria, nele eu faço a demonstração prática desses diferentes
procedimentos atoriais. Disponível em:
<https://vimeo.com/447613529>. Acesso em: 4 dez. 2021.
Diálogos Sobre História e Cultura 340

expressiva corporal, passa a ter por condição a


necessidade de expressar praticamente tudo pelo rosto (o
trabalho de rosticidade atoral), conferindo fisionomias de
tom sutil, em verossimilhança, bem como o tônus
postural via a construção de corporeidades em dilatação
crível e na maioria das vezes diminuta.
Simplificadamente, isso significa dizer que para o
ator atribuir significação, construir sentido por meio do
trabalho de rosto, será preciso que ele tenha em mente,
que o pouco do restante do corpo que aparece na tela não
venha a parecer esdrúxulo, isto é, o ator precisa ter em
mente que ele será mostrado, na grande maioria das
vezes em plano americano e primeiríssimo plano, de
modo que um ombro severamente retesado buscando
demonstrar medo, o que funcionaria muito bem no teatro
dramático, pode soar jocoso no cinema. Logo, indica-se
que o ator aplique um tônus postural diminuto, e, via as
sutilezas da rosticidade busque imprimir o estado interior
da personagem com menores riscos de incidir em
pleonasmo.
De novo, servir a um filme, a uma arte, não é
fácil, principalmente, se tantas e tantas coisas são
condicionadas. Historicamente, já mencionei algumas
vezes, aqui, a participação atoral no cinema foi
condicionada à desteatralização rumo à
cinematografização. E dessa maneira, aqueles atores e
atrizes que não se adaptaram tiveram uma espécie de
aposentadoria compulsória (não participaram mais de
filmes). O mesmo aconteceu no período de transição do
cinema pré som sincrônico para o cinema pós som
sincrônico, em que algumas estrelas não conseguiram
permanecer trabalhando nos filmes falados. Esses
Diálogos Sobre História e Cultura 341

intérpretes haviam passado pela prova de fogo que fora o


processo de cinematografização, tinham fotogenia, mas
com o advento do som síncrono no cinema, muitos
desses atores e atrizes não tinham um trabalho vocal que
atendesse às novas demandas dos realizadores, tais como
o sotaque, a dicção, por exemplo. Haviam atores e
atrizes, que tinham conseguido desteatralizar o rosto e o
corpo, contudo a voz, não. De acordo com Aslan (1994,
p. 209) “com frequência o ator do cinema falado não era
mais sóbrio que o do cinema mudo”. E, o cinema, já
trilhava os caminhos de indústria, àqueles que não
conseguiam atender as expectativas, iam sendo
defenestrados. Cada vez mais o cinema ia persistindo que
para operar no cinema era necessário ser um bom ator-
operário; intérprete capaz de exercer com excelência
todos os desejos de filmagem.
No entanto, alguns intérpretes, fugiram a regra do
procedimento de ator-operário, angariando o lugar-
antropológico de atores-autores, contudo, uma ressalva:
neste contexto, de um cinema ficcional hegemônico, os
atores que vieram a estabelecerem-se como atores-
autores, eram aqueles capazes de procedimentar com
excelência aquilo que os operários já realizavam. Este
fator corrobora as historiografias dos atores e atrizes,
posto que historicamente, este corpus de artistas (a
atorialidade cinematográfica) esteve condicionado, em
inúmeros contextos, à servidão. Antes dela, era
necessária a angariação do espaço, isto é, ser aceiro para
servir, na sequência ao estado de servitude em si, para
posteriormente, talvez, mediante muitos esforços angariar
ascensão social entre a atorialidade do cinema.
Diálogos Sobre História e Cultura 342

Esse percurso antropológico verificado no


cinema, não é de todo novo. Já no Teatro Grego da
Antiguidade, os atores eram contratados pelos
tragediógrafos, e, portanto, dependiam deles para
exercerem seu ofício, o que se repetiu ao longo dos
séculos quando das organizações teatrais para angariação
de notoriedade artística e mesmo para se viver do próprio
trabalho. Alguns, entretanto, conseguiram ascender na
profissão conquistando a posição principal na concepção
das tragédias, a de autor. Neste sentido, um dado curioso,
acerca da nomenclatura que veio a se estabelecer muito
recentemente de ator-autor no campo do cinema, é o de
que os tragediógrafos (autores e realizadores) clássicos
da Grécia Antiga perfilaram a função atoral. Conta-se que
Sófocles “como Ésquilo, também foi ator, era comum, na
ocasião os autores serem atores” (ROSENFELD, 1968, p.
79). Diz-se ainda que: “Inicialmente, o poeta era o seu
próprio córrego, diretor do coro e ator principal. Tanto
Ésquilo quanto Eurípedes apareceram frequentemente no
palco” (BERTHOLD, 2003, p. 113).
Nada obstante, a realidade cinematográfica, pelas
suas próprias especificidades de recursos (o aparato
cinematográfico) vem operacionalizando um modo de
realização similar do teatral, de operários em servitude,
que por vezes podem angariar autoria (contudo de
maneiras específicas), quando da hiperespecialização das
funções de operário. Neste cenário, reforço, atores e
atrizes precisam aderir às demandas que lhes são postas,
para inserção neste campo de atuação, e adiante se
desejarem permanecer no fazer atuacional, precisarão, na
grande maioria das vezes, continuar a obrar em estado de
servitude para não serem defenestrados da atuação
Diálogos Sobre História e Cultura 343

cinematográfica. Essa aderência da arte cinematográfica


de adoção da postura de capitaneamento da classe atoral,
símile ao que dantes era feito no teatro, é vivaz para
ampliar a nossa percepção histórica das condições que
atorialidade enfrenta ainda nos dias de hoje. Lembrando,
que a função do revisionamento histórico é entre outras
coisas, o de “indicar mudanças e permanências e
relacionar eventos, instituições e processos do passado a
seus respectivos contextos históricos” (VASCONCELOS,
2012, p. 32). Haja vista, que há “uma diferença entre o
que lembramos e o que realmente aconteceu. Dessa
maneira, é tarefa da História investigar a realidade dos
fatos do passado” (ibidem). Para, assim deste modo,
talvez, “ampliar a nossa compreensão do presente e as
nossas expectativas para o futuro” (ibid).
Dito de outra maneira, repensar, revisionar
historiografias atorais, e assim de artistas, que ainda que
venham a tangenciar espaços hegemônicos da feitura da
arte, como o teatro dramático, e adiante no tempo o
cinema industrial, situam-se nas bordas, ou entremeios.
Nos espaços do meio, na fissura, no entre-lugar 7, dado
que o ator como ente de trânsito, ao ser destituído da
posição de senhor do teatro – como um dia chegou
apregoar artistas célebres como Constantin Stanislavski
(1863 – 1938) e Etienne Decroux (1898 – 1991) -, ao ser
posto na ambiência de deslocamento entre as artes por
questões de sobrevivência artística, sobretudo de
empregabilidade, adquire uma identidade de liminar8 -
aquele que está no meio, na instabilidade, e que caminha
7
Entre-lugar é um conceito desdobrado pragmaticamente por
Bhabha (1998).
8
Liminar e/ou liminaridade, é uma condição arrolada teoricamente
por Victor Turner (1974).
Diálogos Sobre História e Cultura 344

em passagens oscilantes, muitas das vezes por estar num


lugar antropológico9 de deslugar10, entre artes.

3. Sobre o constructo da posição atoral


nas artes: ator operário, ator-autor,
ator-emancipado

Importa considerar, que a feitura das artes


relaciona-se intimamente com o contexto historiográfico
de formação e operatividade dos períodos sócio-
tempórios de seus desenvolvimentos. E, os livros, os
escritos, aquilo que vem sendo historiografado nas
histórias das artes denota o que tem sido encarado como
importante, admirável e estabelecido dentro dos estatutos
contextuais da crítica da arte. Estamos habituados a
pensar a arte como forma cultural, sob o prisma da
representação, isto é, do ponto de vista da comunicação,
em que a “representação do espaço e do tempo dada pela
arte é transmissível somente em função de uma atenção
para com o objeto de arte, guiada por um saber e uma
atitude intencional por parte do receptor” (CAUNE,
9
Teoria de Augé (1994), aventa que se trata de um lugar “identitário,
relacional e histórico” (AUGÉ, 1994, p. 73). E, ainda: “construção
concreta e simbólica do espaço (...) à qual se referem todos aqueles a
quem ela designa um lugar (...) o lugar antropológico, é
simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e
princípio de inteligibilidade para quem o observa” (AUGÉ, 1994, p.
51-52).
10
Teoria de Fischer (2011), diz respeito à uma situação, uma posição
ocupada por um ente ou mais que “não pertence pertencendo e que
pertence sem pertencer” (FISCHER, 2011, p. 3-4).. É o caso do ator
nos dias de hoje, o teatro não lhe pertence mais, mas ele atua no
Diálogos Sobre História e Cultura 345

2012, p. 109). Entretanto, a arte, as artes, para além de


serem linguagens artísticas de representação, conformam,
também, lugares antropológicos de socialização,
aprendizagem, realização, trabalho, comércio, consumo,
perfazendo-se estruturas múltiplas da ordem geográfica e
epistemológica, que por sua vez, ainda que tenham sido
transmitidas por meio de manuais escritos em um país
(como costumeiramente foi feito, historicamente, em
termos de transmissibilidade epistemológica dos saberes
em artes que preconizavam as linguagens do corpo e da
voz) serão ressignificadas em outras nacionalidades.
Um exemplo acerca disso é o método ou sistema
de atuação decodificado por Constantin Stanislavski
(1863 – 1938) na Rússia, que foi ressignificado nos
Estados Unidos por Lee Strasberg (1901 – 1982). Assim,
as ressignificações11 de ensino-aprendizagem acerca da
atuação estadunidense que busca a confluência realista
não se tratam do método erigido por Stanislasvki, são
outra coisa, mas que possuem reminiscências
praxeológicas do original, sobretudo do ponto de vista do
que se pretende aderir, uma interpretação realista – que
de novo: o que pode dar a impressão de realidade numa
sociedade pode parecer histriônico em outra. Todavia,
não é raro encontrar até mesmo entre as celebridades

teatro, o cinema, nunca lhe pertenceu, mas atua na arte


cinematográfica.
11
Strasberg, não é o único que se dedicou ao esmero da teoria de
Stanislavski no país, mas está entre os mais famosos. No Brasil, em
função similar é notória a figura Eugênio Kusnet (1898-1975),
conhecido por desdobrar os ensinamentos do mestre russo,
responsável pela formação de grandes nomes da atorialidade
brasileira, tal como Strasberg.
Diálogos Sobre História e Cultura 346

hollywoodianas o entendimento de que elas estão


estudando/trabalhando o método stanislavskiano.
Dito isso, saliento, outra perspectiva,
nomeadamente, a sociologia das artes. Uma boa parte
daquilo que é escrito nas e das artes, é, também, o que se
deseja perpetrar nas sociedades artísticas, entendendo que
os espaços de realização das artes, configuram-se como
lugares habitados por entes da classe artística que travam
internamente disputas de poder. Nessa conformação
coletiva, certamente, relacionam-se todas as pessoas
atreladas com a cadeia de desenvolvimento das artes,
bem como os seus apreciadores (espectadores e/ou
público consumidor), tanto em termos de definição de
linguagem estética, mormente da parametrização da
ordem social e política, sobretudo controladas pelos
fatores da égide do poder financeiro e antropológico nas
ambiências artísticas.
Neste sentido, por exemplo, é histórica a querela
entre o teatro dramático e o teatro pós-dramático, duas
vertentes teatrais, cuja rusga não apenas reside na ordem
estética entre haver ou não haver a literatura dramática no
espetáculo, mas, sim, essencialmente, na definição
teórica, estética, discursiva a respeito de: 1. Qual a arte
mais relevante dentro da síntese teatral?; e, portanto, 2. A
que artista pertence o teatro?. Esse antagonismo
engendrou esforços de duas castas teatrais, não apenas no
feitio dos espetáculos, outrossim, nos escritos teóricos.
Houve, então, escrituras, apregoando definições, tais
como: “o texto continua a ser a força motriz, a origem de
todo o teatro” (CRUZ 1969, p. 14), e ainda, “Texto
realizado dinamicamente. Teatro é um texto” (ibid).
Ainda, neste sentido: “no teatro dramático ou declamado
Diálogos Sobre História e Cultura 347

(...) são essenciais três elementos: o ator, o texto e o


público. O fenômeno teatral não se processa, sem a
conjugação dessa tríade” (MAGALDI, 1965, p. 8). Essas
escritas são reações textocêntricas que reforçam a
soberania do autor e sua presença no solo teatral e a
servitude atoral, e vão de encontro à insurgência do
Teatro Pós-dramático, que preconiza justamente a
independência do teatro em relação ao texto literário, mas
que também reinvindica uma não soberania do ator, mas
sim do coletivo teatral (logo de outros artistas, dos
artistas do teatro como um todo, assim, o ator não é
detentor do teatro).
É interessante pensar, conquanto que
precedentemente do ideário de um possível afastamento
do autor e do drama, e também de agremiações teatrais
em que a função intérprete, nem sequer fazia mais
sentido alastrarem-se na história do teatro. Um artista
como Stanislavski, que montava peças eminentemente
dramáticas, considerava abertamente, ainda que fosse um
diretor afamado, que o ator era o senhor da cena.

Pesquisando os mais diversos recursos e


correntes do realismo, do naturalismo, do
futurismo, da estatuária, da arquitetura, da
estilização por meio de cortinas, paraventos,
telas transparentes e efeitos de luz, chego a
conclusão de que nenhum desses meios fornece
ao ator o fundo que sua arte reclama. Depois de
experimentar toda espécie de cenários,
acabando por verificar quanto são mesquinhas
as suas possibilidades, posso repetir que tais
possibilidades estão, hoje em dia,
completamente esgotadas. Quem manda no
palco é o ator (STANISLAVSKI, 1956, p.201).
Diálogos Sobre História e Cultura 348

Obviamente, Stanislavski, tinha uma crença de


que o trabalho do ator era de relevância fulcral ao
erigimento da arte teatral, poder-se-ia problematizar isso,
mencionando que Stasnislavski era também um
pedagogo atoral, e, também, ator. Contudo, se tratava de
um diretor de renome internacional, que teve o seu
interesse estabelecido pelo ator, justamente por observar
que entre todas as inovações teatrais contextuais, o que
saltava mais os olhos do mesmo era justamente a
possibilidade de se erigir um espetáculo pelas vias
realistas da atuação. De todo, é indicial que a figura que
se ocupa no lugar de socialização, notavelmente, parece
influenciar nos modos de se ver e pensar o seu próprio
lugar antropológico, bem como os daqueles que te
circundam. Ademais, ressalto um ponto importante,
Stanislavski chegou a dizer o seguinte:

Imaginem um artista ideal que tenha decidido


dedicar-se a um único e vasto propósito em sua
vida: elevar e entreter o público através de uma
elevada forma de arte, e revelar as belezas
espirituais que se ocultam nos textos dos gênios
poéticos. (...) Toda a sua vida será consagrada a
esta grandiosa missão cultural
(STANISLAVSKI, 1989, p. 17).

Notemos que ele atribui ao ator uma estreita


relação com o texto na condição de operário, mas, ao
mesmo tempo atribuindo uma capacidade ideal de se
revelar as verdades escondidas no plano textológico,
porquanto em sua visão o ator ao servir ao texto ele
tornava-se senhor da sua própria arte: a interpretação.
Esse dado é importante para o momento de se pensar
Diálogos Sobre História e Cultura 349

duas distinções, que já venho presentemente falando


nessas minhas tessituras, de ator-operário e de ator-autor.
Contudo, utilizo-me, antes e ligeiramente, de uma
abordagem cronológica e histórica, para evidenciar
indícios de que a atorialidade tem sido manifestada, e ao
mesmo tempo, condicionada, sobretudo ante a posição de
operário em múltiplos espaços de aprendizagem e
trabalho, e que isso possuiu participação do registro
historiográfico. Nessa esteira, de acordo com Carvalho
(1989, p. 7), reputado até os dias de hoje como um dos
principais pesquisadores acerca da história do ator, no
Brasil, constata-se que há “relativamente pouca
preocupação com o trabalho do ator, seu significado
histórico, estético e social, que se verifica tanto no nível
internacional quanto no nacional”. Paralelamente,
segundo Roubine (1987):

Da arte do ator, sabe-se muito e pouco. Muito,


na medida em que, por motivos de ordem
psicológica e sociológica que fogem ao alcance
deste estudo, o ator foi durante muito tempo
objeto de fascinação e até mesmo de idolatria
social. O ator parece pertencer a um universo
mágico. O seu lugar é o "outro lado do
espelho". No sonho coletivo, o monstro
sagrado, a diva e depois a star vieram
naturalmente substituir os deuses e as
feiticeiras, as figuras e os mitos que não
poderiam se adaptar aos tempos modernos.
Falou-se muito, escreveu-se muito sobre os
atores, mas raramente sobre a sua arte
propriamente dita. O que se sabe a respeito é,
portanto pouca coisa, considerando o caráter
quase sempre anedótico ou hagiográfico da
literatura que se ocupa do ator. Pouca coisa
Diálogos Sobre História e Cultura 350

também porque, até recentemente, pelo menos,


ele pouco escreveu sobre si mesmo. Falta de
interesse ou de aptidão? Inibição? Afinal de
contas, há pouco mais de trinta anos, Jouvet
externava o mais negro pessimismo: "O que ele
[o ator] diz então sobre a sua profissão, sobre
os autores que ele interpreta, sobre os seus
papéis, sobre ele mesmo, é marcado por uma
espantosa estupidez, por uma espécie de
baixeza ou de vulgaridade, ou pelo menos de
ignorância. O que ele pode é contar a sua
própria vida. É sórdido” (ROUBINE, 1987, p.
11).

Do mesmo modo, Jacqueline Nacache (2012, p.


15) assevera que “mesmo no domínio do teatro, onde o
ator suscitou um interesse infinitamente maior do que no
cinema, a análise da sua contribuição para o espetáculo
continua a ser pouco conhecida” (NACACHE, 2012, p.
15). Para não alongar muito esse assunto, cito também o
panorama mais contemporâneo, aventado por Guimarães
(2019, p. 1): “se, no mundo anglo-saxão e francófono, os
estudos atorais estão um pouco mais avançados na
discussão a respeito das matrizes conceituais de análise,
no Brasil ainda estamos balbuciando em tal abordagem”
(idem, 2019, p. 1). Como se pode ver, o diagnóstico de
Carvalho (1989), permanece atualizado, e reitero que
esse retrato não é uma exclusividade brasileira, sobretudo
na ordem discursiva e teórica, quando do trato e esmero
da função da interpretação cinematográfica. Quando
Guimarães (2019) nos informa que no exterior há um
avanço um pouco maior acerca dos estudos atorais
(pequena seara das teorias do cinema dedicada ao ator),
ele faz menção as especulações teóricas que começam a
Diálogos Sobre História e Cultura 351

serem erigidas a respeito do trabalho do ator na


linguagem cinematográfica. Todavia, é preciso ter em
mente, que a ampla maioria dessas asserções que vem
sendo escritas não são de autoria de sujeitos que sejam
atores/atrizes. Algo complicado, pois como vimos já no
início existe a linguagem atorial, linguagem do ator.
Assim sendo, falar da linguagem do ator,
desconsiderando-a, implica em equívocos de múltiplas
ordens epistemológicas e históricas. O ator que opera no
cinema nos dias hoje, por exemplo, possui uma formação
atoral, que até os dias de hoje se dá acerca do solo teatral,
e isso possui heranças históricas. O próprio nome do
trabalho do ator no cinema, por exemplo, a interpretação
cinematográfica, advém de tradições ancestrais das
modalidades atuacionais do ator,

interpretar quer dizer traduzir, e representar


significa “estar no lugar de” (o chefe de
gabinete que representa o prefeito), mas
também pode significar o encontro de um
equivalente. Assim, quando um ator interpreta
um personagem, ele está realizando a tradução
de uma linguagem literária para a cênica;
quando ele representa, está encontrando um
equivalente (BURNIER, 2001, p. 21).

O cinema vai requerer prevalentemente a tarefa


interpretativa do ator/atriz, na medida em que os
intérpretes na grande maioria das vezes, como atores-
operários precisarão encarnar ideias já pré-concebidas a
respeito da personagem, nesta seara criacional.
Logo, ainda que se entenda contemporaneamente,
que a atuação é uma tarefa retroalimentada por múltiplas
modalidades conceptivas e canais de manifestação, e que
Diálogos Sobre História e Cultura 352

por isso mesmo poderá haver traços de representação na


interpretação, ainda assim, no cinema ficcional
hegemônico e seus similares, a primeira instância
definidora da angariação de um lugar operativo para os
atores para exercer o ofício atuacional é a capacidade de
ser um bom intérprete. Dito de outro modo, nos marcos
do presente, sobretudo:

No espaço intersticial do intérprete que advém


do teatro e transita pela fissura: palco e sets de
filmagem; há a predominância de se requerer a
técnica interpretativa de atuação, dado que essa
é uma necessidade produtiva da encenação
neste entre-lugar; ser um bom intérprete seria
talvez o primeiro marcador a definir a
empregabilidade atoral (FERREIRA, 2020, p.
304).

É preciso que tenhamos em mente, que “toda obra


artística apresenta uma sintomatologia de seu tempo,
perceptível para uns, opaca para outros, mas pode ser
resgatada por meio da análise” (MAZZOLA, 2015, p.
33). E, por quê? De maneira, muito mais recente, temos
a transmissão de conhecimento espraiada por múltiplos
canais de registro e acessibilidade, tais como o vídeo e a
internet, por exemplo. Antes disso, a comunicação oral
através das lembranças da memória individual ou
coletiva, e, ainda, por meio da memória histórica,
sobrevindas das nomeadas fontes históricas, que são os
relatos escritos, os livros de história, os registros de foto
ou vídeo, os quadros, os monumentos, e dou destaque
para um, especialmente, no caso do ator: os manuais
escritos de atuação.
Diálogos Sobre História e Cultura 353

Antes, um apontamento, veja, esses manuais eram


orientados à atuação do ator no teatro, mas não eram
manuais para se fazer teatro, mas, sim de atuação teatral,
e ensinavam como operacionalizar, como ser um bom
operário da atuação. Todavia, por longos anos a atuação
esteve quase que estrita ao teatro, quase! Afinal, não se
pode esquecer, dos atores-palhaços, por exemplo, que
operam via o estado atuacional, conquanto não atrelados
ao gênero dramático, algo que o consenso da crítica
teatral não atribuía à significação daquilo que seria
entendido como atuação naqueles períodos se esta
estivesse não atrelada ao drama literário. Essa é uma
herança antiga, que advém das tragédias gregas, período
em que se estatuiu aquela ideia que citei há pouco, de que
o teatro seria um texto, como dizia Cruz (1969). Mas,
esses mesmos manuais de atuação demonstram, também,
rupturas históricas no fazer atuacional em relação ao
texto falado, que por muitos anos tinha sua importância
na voz, e adiante na emoção:

já, no século XVIII, houve uma ruptura no


modelo tradicional de interpretação. Alguns
teóricos perceberam que a técnica vocal era
necessária, porém insuficiente, pois apesar do
ator precisar da técnica, precisava também
aprender a derramar lágrimas naturalmente e
assim, os papéis ternos, em oposição aos
furiosos, são os que suscitam a compaixão. Aí
então, é solicitado o magnetismo do ator, sua
presença constante para mobilizar a afetividade,
este então, precisará mostrar toda a sua
capacidade num e noutro papel, ou seja, nos
papeis afetuosos, ternos ou furiosos e também
nos cheios de raiva e rancor (SILVA, 2016, p.
85).
Diálogos Sobre História e Cultura 354

Veja que o jogo atoral, parece ter sido capitaneado


por outros sujeitos que definem aquilo que é ser ator,
como ser ator, e onde, quais espaços estes sujeitos
deveriam habitar para serem considerados como atores
profissionais. E, assinala-se que ser um bom ator, quase
sempre esteve envolto da ideia de se operar bem
determinados fatores, em suma: ““falar bem” e “colocar-
se bem” na cena” (ASLAN, 1994, p. 3). Algo histórico.
Nesse sentido, essa dimensão de associação à
determinados lugares é verificada nos dias hoje, e vem
sendo reprocessada continuamente, quando há, por
exemplo o surgimento do cinema, e a sua sequente
popularidade, a linguagem cinematográfica veio a tornar-
se um lugar muito almejado por grande parte dos atores e
atrizes. E, de novo, isso pode se processar de maneiras
diferentes em outras regiões. No Brasil, por exemplo:

A avassaladora popularidade do veículo, e


sobretudo das novelas da Rede Globo,
desencadeou profundas modificações na
posição do artista teatral e na sua mentalidade.
Ser contratado da Globo e fazer um bom papel
na novela das oito passou a ser para a grande
maioria dos atores o sonho supremo. A
realização do sonho traz ao profissional
gratificações que o teatro só em casos
excepcionais lhe pode proporcionar: alguma
estabilidade no trabalho, salários
compensadores, possibilidade de ascensão do
status da classe média ao da alta burguesia,
prestígio social, a inebriadora possibilidade de
ser visto diariamente por dezenas de milhões de
pessoas, popularidade, capas de revistas, notas
nas colunas sociais. (...) Diante do irresistível
apelo da televisão, ela se tornou para a maioria
Diálogos Sobre História e Cultura 355

dos artistas de primeira linha o verdadeiro


emprego, enquanto o teatro ficou relegado ao
plano de um bico, a ser exercido no intervalo
entre duas novelas, ou nas horas deixadas livres
pelos compromissos contratuais na TV. Esta
circunstância contribui também para a queda
qualitativa do teatro: está sendo cada vez mais
difícil escalar elenco para peças que necessitem
de intérpretes de muita experiência e talento,
pois a maioria deles está empregada na
televisão e não se sente motivada (...),
sobretudo considerando que a remuneração
oferecida no teatro geralmente é modesta em
comparação com o que se ganha na TV
(MICHALSKI, 1985, p. 91-95).

Tendo dito até aqui a respeito do trânsito entre


múltiplos lugares que o ator/atriz perfilou historicamente.
Assinalo, mais uma vez a posição de servidão, de ator
operário, mormente pela indexação e/ou aderência aos
preceitos das linguagens que deseja se inserir. Sobre as
teorias, Gilles Deleuze, no livro Sobre Teatro: Um
Manifesto de Menos - O Esgotado”, publicado
originalmente em 1978, apresenta a abordagem do artista
italiano Carmelo Bene, que em sua praxeologia não faz
aderência a um procedimento intitulado pelo mesmo
como ator-operário. Em suma, o ator-operário vem a ser
aquele que não assina a concepção do espetáculo ou do
filme que atua, mas é aquele que opera e serve à peça
fílmica ou teatral, como um artista funcionário, que serve
entre outras coisas à linguagem de representação
hegemônica, que vai se valer, por exemplo, da
representação via a linguagem falada de forma exímia, e
via a linguagem de interpretação ao modo como lhe é
requerido (DELEUZE, 2010). Esse modo de fazer é
Diálogos Sobre História e Cultura 356

histórico, como já expus se consagrou no teatro, no


cinema, e no audiovisual vem se processando via o
nomeado estilo cinema. Existe na seara da arte uma longa
tradição de discursos sobre a arte, em um processamento
de constante diálogo – ato de referenciar, confluir formas
consagradas de outras artes, em uma nova forma de
manifestação/objeto artística emergente). Esse
processamento se realiza em relação à determinadas
formas de arte já postas no cânone das linguagens
artísticas, as quais já receberam a chancela de arte para
que assim, desse modo, passem a ser compreendidas,
entendidas e aceitas como formas de arte também. No
caso da seara do audiovisual, desenvolveu-se e alastrou-
se o nomeado estilo cinema, verificado nas variadas
linguagens do audiovisual. Acerca do processamento
dessa lógica, nos explica Bentes (2003) que:

Se o vídeo traz uma atualidade ao cinema, a


estética cinematográfica é uma forma de
legitimação do vídeo. Os filmes publicitários
iriam se alimentar da linguagem do cinema,
filmando em película, buscando a qualidade da
imagem analógica e o “estilo cinema”: o filme
em preto e branco, a referência aos gêneros
consagrados, a temas e a dramaturgia
cinematográfica (Bentes, 2003, p. 35-36).

Esse estilo cinema é importante para que se tenha


em mente, que ainda que hajam especificidades
requeridas aos atores em relação à determinadas
linguagens audiovisuais. Exemplificadamente, o
videoclipe tende a prescindir do uso da voz do ator, os
vídeos documentários, não se valem de um roteiro
escrito, mas, sim, de um roteiro atorial de improvisação.
Diálogos Sobre História e Cultura 357

Contudo, tanto nessas duas linguagens audiovisuais


citadas, quanto no cinema propriamente dito, e nas
telenovelas, vai requerer-se do ator o nomeado estilo
cinema, porquanto estas linguagens audiovisuais operam
por meio desse modo de processamento. Com as suas
especificidades, é claro, mas ainda assim com
denominadores em comum para a a operação atorial: a
desteatralização, a cinematografização, a predominância
da importância do trabalho de rosticidade, a contenção de
emoções, o provimento de imagens do corpo. De novo,
servir, operar. Saber fazer.
Nasceu no cinema, entretanto, e é possível
identificar similares praxeológicos no audiovisual como
um todo, um relativamente novo modo de operação,
restrito para poucos atores e atrizes. Trata-se da teoria do
ator-autor:

A teoria do autor pode ser revisada e


desdobrada com atores em mente: sob certas
circunstâncias, um ator pode influenciar um
filme tanto quanto um roteirista, um diretor e
um produtor; alguns atores são mais influentes
que outros; e existem alguns poucos raros
intérpretes cuja capacidade atuacional e
personas cinematográficas são tão poderosas
que eles corporificam e definem a própria
essência de seus filmes (McGILLIGAN, 1975,
p. 199 - tradução minha)12.

12
The auteur theory can be revised and reproposed with actors in
mind: under certain circumstances, an actor may influence a film as
much as a writer, director and producer; some actors are more
influential than others; and there are certain rare few performers
whose acting capabilities and screen personas are so powerful that
they embody and define the very essence of their films.
Diálogos Sobre História e Cultura 358

A grande questão é como? Como perfazer-se ator-


autor? De acordo com Guimarães (2013) ator-autor vem
a ser aquele que consegue definir a essência dos filmes:
“impondo decisões estéticas às escolhas de mise en
scène – escolha de certos tipos de planos, de um tipo
determinado de personagem – e determinando, de
maneira geral, a plástica de um plano, de uma
sequência ou até de um filme inteiro”
(GUIMARÃES, 2012, p. 114).
Abordo, brevemente, dois casos de
estabelecimento de autoria de ator/atriz, muito
conhecidos da história:
Greta Garbo13 (1905 – 1990, nasceu na Suécia,
mas sua carreira foi exercida em Hollywood – Estados
Unidos): Surge como atriz-operária no cinema em seu
primeiro filme, e devido ao enorme sucesso, faz-se atriz-
autora, ditando os rumos do estúdio em que trabalhava.
Amalgamou pragmaticamente todas as discursividades
contextuais de inserção no cânone atoral vigentes em seu
período atuacional: encarnação do papel, fascinação,
contenção de emoção, fotogenia, transposição em
corporificação de forma exímia, perfazendo-se, assim,
atriz-autora nos filmes que atuava, muitas vezes sob a
forma de personagem título, star system – pelo viés da
persona mister, recusando a dar entrevistas. Devido ao
sucesso de público e crítica, e a incontestável
interpretação escolhia qual filme seria filmado, quais
13
Para quem possa interessar, eu escrutinei os modos de
estabelecimento de autoria de Greta Garbo, no artigo Greta Garbo, a
corporificação fílmica de A Dama das Camélias, publicado na
Revista Desenredos, em 2021. Disponível em: <
http://desenredos.dominiotemporario.com/doc/35_artigo_-
_Greta_Garbo.pdf >. Acesso em: 07/12/2021.
Diálogos Sobre História e Cultura 359

atores contracenariam com ela, bem como definia


aspectos da filmagem.
Paulo Gustavo (1978 – 2021, nasceu e teve sua
carreira desenvolvida no Brasil, sobretudo no eixo das
cidades de Rio de Janeiro e São Paulo): Como Greta,
operou muito pouco como ator-operário performando
pequenas participações na TV, antes de tornar-se
conhecido do público. O ator criou um personagem,
Dona Hermínia, representado no espetáculo monólogo
intitulado Minha Mãe É Uma Peça, a peça escrita,
dirigida, e atuada por ele foi um enorme sucesso. Essa
peça foi adaptada para a linguagem do cinema, com
roteiro do ator, e atuada por ele. Paulo tornou-se
conhecido do público, participando de diversos outros
filmes, faz-se ator-autor, principalmente, por outro
prisma operativo desses intérpretes: a presença, ele toma
a forma atoral do filme por meio de sua persona
cinematográfica, não promovendo a encarnação de novas
personagens, ele replasma a sua persona ficcional em
todas as suas personagens, por meio da sua corporeidade
e vocalidade já conhecida do público. O público deseja
ver um Paulo Gustavo já apresentado, num tempo-ritmo
atuacional muito característico e próprio do ator: numa
partitura cênica criada, em esmero, muitíssimo calibrada
e estudada, Paulo Gustavo, conseguia transitar pelo
audiovisual, pela dissolução da sua própria persona
fictícia máxima, a personagem Dona Hermínia, e sua
corporeidade via a grande linguagem audiovisual
brasileira (especiais de TV, e publicidade), atuando em
várias linguagens artísticas, e em vários personagens,
contudo se autorreferenciando o tempo todo, acerca da
Diálogos Sobre História e Cultura 360

personagem que o consagrou, via corpo-rosto-voz,


daquela composição que lhe fez um notório ator-autor.
Outra possibilidade de perfazer-se ator no cinema
é a via emancipatória, prescindindo da aceitação,
aprovação e investimento de um contratante. Dito de
outra maneira, é a via/maneira de que o ator, pode criar
seu próprio filme, criando um espaço para mostrar sua
capacidade profissional, via o assumimento do ato de
realização fílmica, tornando-se um ator-emancipado. Isto,
por meio da aglutinação das tarefas definidoras da
concepção fílmica portadoras do tônus autorístico no
cerne das sociabilidades cinematográficas. Tarefas como:
a de roteirista, diretor/cineasta, sem deixar é claro de
realizar a obragem de atuação, no papel de maior peso do
filme realizado. Atores-emancipados, interessam-se em
primeiro plano, pela manutenção de suas carreiras
atuacionais, de ator, de atuação. E/ou pela automostração
de si, como ator, em destaque; algo que seria negado ou
demoraria sob a condição de ser aprovado/contratado por
terceiros.
Um ponto importante a assinalar é o de que
atores-emancipados/atrizes-emancipadas, operam,
primordialmente, no contexto do cinema
indie/independente, na medida em que historicamente, o
cinema e seus sucessores audiovisuais concentram os
poderes políticos, financeiros e estéticos nas figuras do
diretor/cineasta, interessando-se em sua primazia nos
atores/atrizes apenas como intérpretes.
Ainda que há contragosto de alguns realizadores,
o elã emancipatório da atorialidade tem se delineado ao
longo da história. Somente no cinema indie, podemos
constatar inúmeros movimentos de atores-emancipados.
Diálogos Sobre História e Cultura 361

Os exordiais, por certo, insurgem, com suas realizações


cinematográficas nestes moldes, em meados da década de
1960, quando o cinema indie começa ganhar amplitude
produtiva. Cito alguns nomes importantes: Ed Wood
(Estados Unidos, 1948-1976), Sérgio Ricardo (Brasil,
1961 -1964) e Carmelo Bene (Itália, 1968-1975).

Considerações finais

Tendo considerado tudo isso, é indicial que as


historiografias atoriais são pouco escritas, e quando
ocorrem, são feitas de modo a reiterar concepções que
colocam a atorialidade numa posição de ator-operário, de
sujeição aos desejos de realização artística de outros
artistas.
Assim, é inegável, que pouco da tarefa
historiográfica é realizada por mãos de atores. Urge, que
se considere as histórias construídas por atores e atrizes,
que como a ampla maioria dos artistas e trabalhadores
busca o saber fazer para buscar o próprio sustento, e que
aliado a essa tarefa de (sobre) vivência vem erigindo
estratégias e saberes praxiológicos, que muito podem
contribuir para o nosso entendimento de mundo, e,
também certamente, ao ensino-aprendizagem entre
docentes de atores/atrizes, e sobretudo à própria
atorialidade, que permanece.
Por certo, o revisionamento historiográfico acerca
da história do ator, no cinema e em outras linguagens, a
partir das égides epistemológicas que se encontram
disponíveis no presente, nos permite ampliar e atualizar o
entendimento acerca das sucessivas mudanças históricas
Diálogos Sobre História e Cultura 362

sociais e operativas com relação ao exercício e


profissionalização do ator.
Espero, até aqui, ter contribuído, ao menos em
parte, com a visibilização acerca da história do ator no
cinema, ainda latente, sobretudo no que concerne a sua
operatividade no cinema; conquanto ainda mais olvidado,
no tange aos aspectos de sua realidade de servitude nas
indústrias do cinema e audiovisual, bem como a
possibilidade emancipatória, de como tem se tornado
possível ser ator-emancipado/atriz-emancipado, dado que
parte da atorialidade tem ensejado esse esforço operativo.
Diálogos Sobre História e Cultura 363

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Diálogos Sobre História e Cultura 366

Alan Moore: entre as “marés da


história” e o futuro distópico ao fim
da guerra fria na obra V de
vingança
Alan Moore: between the “tides of
history” and the dystopian future at the
end of the cold war in V for Vendetta
Gustavo Henrique Soares Silva1

Resumo

O seguinte estudo tem como objetivo analisar as visões


de mundo do autor inglês de quadrinhos Alan Moore na
Graphic Novel V for vendetta (1982-1988) traduzida para
o Brasil como V de vingança, a partir de uma perspectiva
histórica. Seguindo o contexto da guerra fria e a ascensão
de líderes conservadores como Ronald Reagan pelos
Estados Unidos e Margaret Thatcher pelo Reino Unido,
Alan Moore vai se destacar como uma das vozes mais
ativas nos quadrinhos, tendo uma forte oposição as
políticas de governo exercidas por esses dois líderes, mas
principalmente contra a primeira-ministra inglesa, o que
acaba sendo refletido em algumas das suas produções no
período. V de vingança é uma delas, ao apresentar uma
1
Mestrando em História do programa de pós-graduação da
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). E-mail:
gustavohist27@gmail.com.
Diálogos Sobre História e Cultura 367

realidade imaginada, com traumas não superados e visões


de mundo conflitantes, ressaltando a importância do
passado e a falta de otimismo sobre o futuro, em uma
realidade que naquele momento, ainda era extremamente
imprevisível.
Palavras-chave: História; Quadrinhos; Alan Moore.

ABSTRACT

The following study aims to analyze the worldviews of


the English comic book author Alan Moore in the
Graphic Novel V for vendetta (1982-1988), translated
into Brazil as V for Vendetta, from a historical
perspective. Following the context of the Cold War and
the rise of conservative leaders such as Ronald Reagan in
the United States and Margaret Thatcher in the United
Kingdom, Alan Moore will stand out as one of the most
active voices in comics, having a strong opposition to the
government policies exercised by these two leaders, but
mainly against the English Prime Minister, which ended
up being reflected in some of his productions during the
period. V for Vendetta is one of them, as it presents an
imagined reality, with unresolved traumas and conflicting
worldviews, highlighting the importance of the past and
the lack of optimism about the future, in a reality that at
that time was still extremely unpredictable.
Keywords: History; Comics; Alan Moore.
Diálogos Sobre História e Cultura 368

Alan Moore: entre as “marés da


história” e o futuro distópico ao fim
da guerra fria na obra V de
vingança
Gustavo Henrique Soares Silva

Introdução

Desde o ano de 1942 quando o físico italiano


Enrico Fermi, já ganhador do prestigiado Prêmio Nobel
de Física, conseguiu produzir a primeira reação nuclear
em cadeia, esse evento deu início a um mundo
completamente novo (AHMAD, 2003). Enrico Fermi e
outras mentes brilhantes da física mundial daquele
período participaram do chamado Projeto Manhattan, um
programa de pesquisa desenvolvido pelos Estados
Unidos da América no contexto da Segunda Guerra
Mundial (1939-1945) com a finalidade de construir as
primeiras bombas atômicas (MUNHOZ, 2020).
O projeto tinha como sede principal de trabalho
para a produção das bombas o Laboratório Nacional de
Los Alamos, localizado no Novo México. O diretor do
laboratório era Julius Robert Oppenheimer, um renomado
físico americano. Ao testemunhar o primeiro teste de uma
bomba nuclear chamada Trinity em 1945, Oppenheimer
presenciou o teste que foi bem-sucedido juntamente com
outros nomes que trabalharam no projeto e se convenceu:
a partir daquele momento, um novo capítulo na história
Diálogos Sobre História e Cultura 369

surgia, ele detalhou isso em um trecho de um


documentário que relembra o processo de produção das
primeiras bombas nucleares duas décadas depois.

Sabíamos que o mundo não seria o mesmo.


Algumas pessoas riram, algumas pessoas
choraram, a maioria das pessoas ficou em
silêncio. Lembrei-me da frase do texto sagrado
hindu, o Bhagavad Gita. Vishnu está tentando
convencer o príncipe que ele deveria fazer o seu
dever, e para impressioná-lo, assume sua forma
com múltiplos braços, e diz: “Agora eu me
tornei a Morte, o destruidor de mundos." Acho
que todos nós pensamos isso, de uma maneira
ou de outra. (GIOVANNITTI; FREEDED,
1965, 1:04:17/1:05:10).2

A utilização de bombas atômicas em guerra


ocorreu ainda em 1945, com o bombardeio por parte dos
americanos as cidades Japonesas de Hiroshima e
Nagasaki. Após o fim da Segunda Guerra Mundial e o
bem-sucedido primeiro teste nuclear da União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em 1949, o
mundo caminhava para uma era de bipolaridade, iniciou-
se uma disputa entre Estados Unidos e União Soviética
por influência geopolítica, bélica e tecnológica, iniciava-
se aquilo que se denominaria de guerra fria.

2
Tradução livre de "We knew the world would not be the same. A
few people laughed; a few people cried. Most people were silent. I
remembered the line from the Hindu scripture, the Bhagavad-Gita;
Vishnu is trying to persuade the prince that he should do his duty,
and to impress him, takes on his multi-armed form and says, “Now I
am become Death, the destroyer of worlds.” I suppose we all thought
that, one way or another".
Diálogos Sobre História e Cultura 370

A guerra fria está situada no ponto de


convergência de duas séries históricas: uma,
que mostra o progresso das bombas
termonucleares e dos engenhos balísticos, a
renovação incessante de armas cada vez mais
destrutivas e de veículos cada vez mais rápidos
para transportá-las; a outra, que acentua o
elemento psicológico dos conflitos às expensas
da violência física. (ARON, 2002, p. 225).

O conflito se tornava cada vez maior com cada


avanço científico, cada demonstração de evolução no
poderio militar dessas duas superpotências. Outros
episódios também ajudaram a aumentar a tensão desse
período, como a sucessão de guerras asiáticas com a
participação indireta de Estados Unidos ou União
Soviética, com os exemplos da Guerra da Coreia (1950-
1954) ou a Guerra do Vietnã (1955-1975), esta última
inclusive, se tornou uma “síndrome política e cultural nos
Estados Unidos” devido a reprodução de imagens
chocantes do conflito entre soldados americanos e
vietnamitas (MAGNOLI, 2006, p. 421).
Um outro evento que também ficou conhecido
como “Crise dos mísseis cubanos” em 1962 e os seus
“treze dias que abalaram o mundo” (KENNEDY, 2022),
essa crise foi iniciada após a instalação de ogivas
nucleares americanas perto do território soviético, como
resposta, os russos procuraram instalar ogivas similares
em Cuba, país próximo ao território americano e com
relações extremamente distantes dos americanos, o que
resultou em dias de apreensão e ameaças vinda de ambos
os países, do que poderia ter sido uma guerra nuclear de
proporção global. Isso foi algo que esteve presente na
imaginação das pessoas que viveram esse período
Diálogos Sobre História e Cultura 371

durante um bom tempo, questionando-se sobre o que


seria do mundo se viesse à tona uma possível guerra
nuclear entre Estados Unidos e URSS (HOBSBAWN,
1995; NACHTIGALL, 2017).
Este era o cenário que se apresentou para o
mundo durante boa parte da guerra fria, com repercussão
em diversas mídias, desde as mais tradicionais como
jornais e revistas, rádio e tv. Até as produções culturais
como a literatura, cinema e quadrinhos, no caso do
último exemplo, por ser um produto de consumo para
uma parte considerável dos jovens de um dos eixos da
disputa, no caso, os Estados Unidos da América, os
quadrinhos que traziam super-heróis conhecidos ou que
passariam a ser conhecidos durante esse período, seriam
importantes para consolidar a visão americana sobre os
eventos da guerra fria. Sendo um “componente
significativo da cultura de massa dos EUA exportada
para países alinhados com o bloco capitalista” (GOMES,
2016, p. 529).
No entanto, a própria indústria de quadrinhos
também passou por mudanças significativas com o
decorrer do tempo, principalmente com a complexidade e
imprevisibilidade que se apresentava naquela conjuntura
histórica, com novos rumos políticos em países do bloco
capitalista, novos confrontos indiretos entre os
protagonistas do conflito e principalmente, novas
demandas de produção para os quadrinhos e
principalmente, novos autores de quadrinhos que
procurariam inserir em suas obras todas as camadas que o
período da guerra fria ocasionava para o meio social,
político e cultural.
Diálogos Sobre História e Cultura 372

1. Alan Moore e a invasão britânica:


novas perspectivas para os
quadrinhos mainstream

A guerra fria foi um período que se perdurou até o


final da década de 1980, sendo parte da infância e vida
adulta de diversos grupos e indivíduos que em suas
gerações cresceram com o medo e tensão desse período,
em que seria possível iniciar uma guerra global. As
Histórias em Quadrinhos (ou, HQs), se utilizaram
bastante desse período, pois é muito comum nessas
histórias “sejam elas de cunho fantástico ou não, a
inclusão de várias referências às conjunturas políticas e
sociais do seu tempo” (CUNHA, 2012, p. 7).
Esse mesmo contexto dos anos 1980, também
apresentaria algumas novidades para a indústria de
Histórias em quadrinhos, principalmente para a indústria
mainstream de quadrinhos.3 Além do surgimento das
chamadas Graphic Novels (em uma tradução literal para
o português, “Romance gráficos”), termo utilizado pelo
quadrinista americano Will Eisner, para caracterizar
histórias com enredos mais fechados, destacando
problematizações sociais, culturais e políticas, com isso,
“dando aos gibis um aspecto mais sério, com acabamento
parecido ao dos livros” (KRAKHECKE, 2009, p. 67).
Ao mesmo tempo, acrescentou-se paralelamente a
isso um movimento importante que ficou conhecido

3
Quando se fala de quadrinhos mainstream, geralmente se lembra
das histórias e dos personagens de quadrinhos que tinham vinculação
com as duas grandes editoras desse período nos Estados Unidos, a
Marvel Comics e a DC Comics.
Diálogos Sobre História e Cultura 373

como British Invasion (ou “invasão britânica”, em uma


tradução literal), quando escritores britânicos de
quadrinhos foram contratados por editoras americanas,
com o objetivo de adicionar um novo padrão artístico nas
produções de quadrinhos dos anos 1980.

Diferentemente dos quadrinistas norte-


americanos, os da chamada “da chamada
“Invasão britânica” tinham influências, em
grande parte, literárias e filosóficas [...] A
“invasão britânica” contribuiu
significativamente para imprimir nos
quadrinhos norte-americanos características
como uma maior preocupação com técnicas
narrativas, enredos mais elaborados – menos
preocupados com linearidade, menos
maniqueístas –, e a negação e/ou revisionismo
do gênero super-herói. (RODRIGUES, 2011, p.
53-54).

Entre os nomes envolvidos, vão se destacar Neil


Gaiman, Jamie Delano, Grant Morrison entre outros,
esses autores por terem trabalhado em algumas revistas
de quadrinhos britânicas que ofereciam maior liberdade
criativa para os escritores, acabaram requerendo certa
autonomia para implementação de suas ideias no
mercado americano de quadrinhos.
Inicialmente, eles acabaram trabalhando com
personagens secundários e até desconhecidos do grande
público de quadrinhos, o que colaborou para as suas
solicitações iniciais, com a introdução de percepções
pessoais que cada autor tinha consigo sobre a realidade
social, cultural e política do período, algo que estava por
muitas vezes representado no enredo dessas histórias.
Diálogos Sobre História e Cultura 374

Além do mais, essa aproximação entre autores de


quadrinhos britânicos e as editoras de quadrinhos
americanas, também pode ser explicada por um ponto de
vista político, já que da parte de ambos, existia uma
contestação a respeito dos caminhos políticos de ambos
os países, no início da década de 1980.

Essa proximidade foi motivada pelos estreitos


laços ideológicos entre a primeira-ministra
conservadora Margaret Thatcher (1979-1991) e
o presidente republicano Ronald Reagan (1981-
1989). Ambos os líderes defenderam um
retorno aos valores “morais” ou “vitorianos”,
em total contraste com a tendência liberal que
varreu o Ocidente nas décadas de 1960 e 1970.
(LICARI-GUILLAUME, 2018, p. 195, grifos
da autora).4

Em meio a contextualização sobre o termo


“invasão britânica”, vale lembrar que durante um
período, se creditou essa procura por autores britânicos
por parte das editoras americanas, se deu pelo sucesso
que um autor inglês chamado Alan Moore tinha atingido
com seu trabalho em Swamp Thing entre 1984-1987
(traduzido para o Brasil como, Monstro do Pântano),
tornando o autor, para alguns estudiosos dos quadrinhos,
um precursor desse movimento (QUIRINO, 2018, p.
204).
4
Tradução livre de This closeness was prompted by the tight
ideological links between Conservative Prime Minister Margaret
Thatcher (1979-1991) and Republican President Ronald Reagan
(1981-1989). Both of these leaders championed a return to “moral”
or “Victorian” values, in stark contrast with the liberal tendency
that had swept through the West in the 1960s and 1970s.
Diálogos Sobre História e Cultura 375

Karen Berger, editora da DC Comics, estava


atenta ao cenário dos quadrinhos ingleses e fez
a proposta a Lein Wein, também editor da DC
Comics, de chamar o escritor britânico Alan
Moore para escrever os roteiros do quadrinho
Monstro do Pântano que estava com uma baixa
vendagem [...] o Monstro do Pântano, de Alan
Moore, trabalhava com temas sociais,
ecológicos, a questão racial no sul dos Estados
Unidos e com a questão da mulher na
sociedade. Alan Moore consegue alavancar as
vendas da revista do Monstro Pântano e isso fez
com que a DC desse “sinal verde” para que a
editora Karen Berger fosse a Inglaterra procurar
mais roteiristas e artistas britânicos. (VIEIRA,
2017, p. 2).

As histórias do Monstro do Pântano chamavam a


atenção por destacar entre os diversos aspectos morais, a
atenção que Alan Moore tinha para a questão ecológica,
mas principalmente, pela busca do autor em promover a
consciência ambiental, a partir da afirmação sobre a
responsabilidade dos seres humanos com a transformação
da natureza (LICARI-GUILLAUME, Ibid. p. 196).
O sucesso que Alan Moore alcançou roteirizando
a revista do Monstro do Pântano não iria passar
despercebido pelos produtores da DC Comics, entre os
anos 1986-1987, a editora americana encarregou Moore
de escrever juntamente com o artista Dave Gibbons uma
obra chamada Watchmen, obra que futuramente seria
aclamada por desconstruir o gênero de super-heróis de
quadrinhos em um mundo idealizado em que os heróis
existem e estão presentes na sociedade, Watchmen seria
Diálogos Sobre História e Cultura 376

considerada posteriormente um marco na indústria de


quadrinhos.5
Em 1989, Moore rompe com a DC Comics devido
as divergências criativas sobre os planos que a editora
possuía para o uso e adaptação das suas obras, fazendo
com que o autor se afastasse das editoras de quadrinhos
americanas (TZKOFF, 2006). Com isso, dando fim as
suas publicações em editoras conhecidas do grande
público, algo que só iria voltar a acontecer no ano de
1993, quando Moore retorna ao mercado escrevendo para
uma editora recém-criada, a Image Comics.

2. V de vingança e a Inglaterra de Moore

Alan Moore é um autor que possui uma série de


trabalhos notáveis na década de 1980 para a DC comics,
além das já citadas Watchmen (1986-1987) e Swap Thing
(1984-1987), o autor também trabalhou em outras
histórias clássicas, como o caso de Batman: the killing
joke (1988) e a finalização de uma história que
caminhava para quase uma década e que viria a elevar
ainda mais o seu prestígio como escritor de quadrinhos, V
for vendetta (1982-1988) (DOS SANTOS, 1995).
Começando em sua profissão como roteirista de
quadrinhos em 1979. Inicialmente, Alan Moore era um
autor autônomo, encarregado de roteirizar algumas obras
curtas e sem contrato fixo com nenhuma editora. Em
5
Watchmen foi a primeira obra de quadrinhos a receber o prêmio
Hugo, premiação concedida pela World Science Fiction Society para
o melhor trabalho em ficção científica e fantasia em 1988. Para mais
informações ver: https://www.thehugoawards.org/hugo-history/1988-
hugo-awards/. Acesso em: 23 out. 2023.
Diálogos Sobre História e Cultura 377

1982, ele foi contratado por uma editora britânica de


quadrinhos chamada Warrior, que possuía uma revista de
mesmo nome, onde trazia diversas histórias de
quadrinhos diversificadas em uma mesma edição
(MIGUEL, 2018). Moore posteriormente acabou
conhecendo um ilustrador inglês de quadrinhos muito
promissor, esse ilustrador se chamava David Lloyd,
também recém-contratado pela revista Warrior, juntos
ambos ficariam responsáveis por desenvolver um projeto
chamado V for vendetta (traduzido para o Brasil como, V
de vingança).
A história de V de vingança ganhou uma série
limitada, em preto e branco, mas acabou sendo cancelada
ainda em 1985 pela Warrior. Moore e Lloyd iriam
retornar e finalizar à história apenas em 1988, agora já
pela DC comics, com 267 páginas e 10 edições com três
tomos: o primeiro, intitulado “A Europa depois do
Reino”, o segundo “Esse Vil Cabaré” e o terceiro “A
Terra do Faça-o-que-quiser” (KRÜGER, 2012, p. 1079).
No ano de 2005, V de vingança ganhou uma adaptação
cinematográfica pela distribuidora americana Warner
Bros, dirigido por James Mcteigue e estrelada pelos
atores Hugo Weaving e Natalie Portman.6

6
Alan Moore não costuma gostar das adaptações de suas obras,
devido as constantes alterações de significados das suas obras. Em
uma entrevista concedida no ano de 2006, para falar sobre o seu
sentimento diante da adaptação de uma obra de sua autoria, Alan
Moore revelou que leu o roteiro do filme e achou “um lixo”. Para
mais informações, ver: ITZKOFF, Dave. The Vendetta Behind 'V for
Vendetta'. The New York Times, 2006. Disponível em:
<https://www.nytimes.com/2006/03/12/movies/the-vendetta-behind-
v-for-vendetta.html>. Acesso em: 17 ago. 2023.
Diálogos Sobre História e Cultura 378

Figura 1 – Capa da revista Warrior#1 em 1982, onde trouxe a


primeira aparição do mascarado V, ainda sem o destaque que
posteriormente viria a ter. Fonte: imagem disponível em
https://www.ebay.com/itm/373601966006. Acesso. 18 de out. 2023.
Diálogos Sobre História e Cultura 379

Figura 2 - Capa da edição V for vendetta#1, agora já com o selo da


DC comics, publicada em 1988. Fonte: imagem disponível em
http://www.guiadosquadrinhos.com/edicao-estrangeira/v-for-
vendetta-%281988%29-n- 1/266/6599. Acesso em: 20 de out. 2023.
Diálogos Sobre História e Cultura 380

Figura 3 - Capa de Hellblazer#3, em 1988. Observa-se que os


autores britânicos Jamie Delano e John Ridgway, destacam a
representação da primeira-ministra com o aspecto demoníaco na
capa da história. Fonte: disponível em:
https://dc.fandom.com/wiki/Hellblazer_Vol_1_3. Acesso em: 22 de
out. 2023.

Durante o período de produção de V de vingança,


a Inglaterra tinha na sua liderança política Margaret
Thatcher, com o cargo de primeira-ministra do Reino
Unido, cargo que ocupou entre 1979-1989, Moore e
Lloyd, assim como, outros autores de quadrinhos,
evidenciavam a oposição existente contra o governo da
primeira-ministra britânica (FIGURA 3), conhecida pelo
seu caráter conservador e adepta de políticas econômicas
neoliberais, os autores então se utilizavam dos
Diálogos Sobre História e Cultura 381

quadrinhos e de seus personagens apresentados, para


fazer “abertamente uma crítica ao Thatcherismo”
(CZIZEWESKI, 2014, p. 6) e tudo aquilo que ele
representava.
Não por acaso, a narrativa de V de vingança
apresenta uma sociedade pessimista, pautada pela
vigilância e com um governo que restringia a liberdade
de expressão, exaltava o fascismo e perseguia todos
aqueles considerados “inaptos” para viverem em
sociedade. Esse intervalo de tempo entre as publicações
(1982-1989), pode ter influenciado a visão dos autores,
nesse caso, a obra poderia estar apresentando um futuro
que era possível ser alcançado, com a hegemonia política
de líderes como Thatcher, já que inicialmente, a história
começou de maneira “despretensiosa”, como lembra
Felipe Krüger (2017, p. 16) ao destacar que inicialmente
“sua divulgação era pequena, e seu público se restringia
ao Reino Unido”.
Outra evidência que reforça a mudança de
percepção por parte dos autores, foi em uma entrevista
publicada ainda em 1983 na revista Warrior 17, onde
Alan Moore destaca que inicialmente trabalhou com a
ideia de que “os conservadores obviamente perderiam
eleições de 1983”, com a vitória de Michael Foot —
candidato do partido trabalhista e sendo uma oposição as
políticas de Thatcher — um passo importante seria dado
para remover os misseis nucleares que a Grã-Bretanha
possuía, impedindo-a de se tornar um alvo em uma
possível guerra nuclear (MOORE; LLOYD, 2012, p.
276).
Entretanto, para a surpresa de Moore, o partido
conservador liderado por Thatcher vence em 1983 e
Diálogos Sobre História e Cultura 382

novamente 1987, algo que eleva o pessimismo do autor


há um nível considerável, o que posteriormente, seria
lembrado como uma “inexperiência política” pelo
próprio Alan Moore em uma entrevista já em 1988.

Estamos em 1988 agora. Margaret Thatcher


está entrando em seu terceiro mandato e fala
confiante de uma liderança ininterrupta dos
Conservadores no próximo século. Minha filha
caçula tem sete anos, e um jornal tabloide
acalente a ideia de campos de contração para
pessoas com AIDS. Os soldados da tropa de
choque usam visores negros, bem como seus
cavalos; e suas unidades móveis têm câmeras
de vídeo rotativas instaladas no teto. O governo
expressou o desejo de erradicar a
homossexualidade até mesmo como conceito
abstrato. Só posso especular sobre minoria será
alvo dos próximos ataque. Estou pensando em
deixar o país com minha família em breve, esta
terra está cada vez mais fria e hostil, e eu não
gosto mais daqui. (IBID., p. 8).

Há evidentemente, uma mudança de percepção


nesse intervalo de tempo entre o início e a finalização de
V de vingança (1982-1988), algo que como já foi dito,
pode ser explicado pelas sucessivas reeleições da
primeira-ministra Margaret Thatcher. Todavia, há
também um certo desencantamento do mundo por parte
de Alan Moore, tal sentimento é consonante com aquilo
que o filósofo francês Jean-François Lyotard (2009, p.
16) aponta como “crise das metanarrativas ou dos
metarrelatos”, um sentimento advindo da sociedade pós-
industrial que se formou durante o período pós-guerra,
onde as grandes narrativas atreladas ao progresso da
Diálogos Sobre História e Cultura 383

ciência e da tecnologia como o iluminismo ou da


emancipação humana para a eliminação da sociedade de
classe como o marxismo, se mostraram insuficientes para
gerar uma estabilidade total na sociedade.
O que em seguida, formou aquilo que o autor
chamou de uma “condição pós-moderna”, um período de
total incerteza e incredulidade com o que poderia de fato
ser o futuro. Algo que com V de vingança, Alan Moore
procura explorar de maneira aprofundada.

3. V de vingança: a maré da história ou o


futuro depois do fim?

Em V de vingança, somos apresentados a história


de um homem que com uma máscara semelhante a um
personagem histórico chamado Guy Fawkes,7 procura
concretizar uma nova “conspiração da pólvora”. Com a
ajuda de uma órfã chamada Evey, a quem o homem
mascarado salva a vida logo no início da história. De
início, os dois trabalham juntos com o objetivo de
destruir o governo fascista inglês, representado pela
ascensão ao poder do partido político “Norsefire” em
uma Inglaterra distópica no ano de 1997, ou seja, uma

7
Guy Fawkes (1570-1606) foi um ativista católico, conhecido por
fazer parte de um evento chamado Gunpowder Plot (Conspiração da
pólvora), esse evento tinha como objetivo assassinar o rei Jaime I
que era protestante, assim como, todos os membros do parlamento
inglês em uma sessão que iria ocorrer em 1605. Fonte: Dicionário de
Oxford. Disponível em:
<http://www.oxforddnb.com/view/article/9230>. Acesso em: 22 Jul.
2023.
Diálogos Sobre História e Cultura 384

década à frente do período em que a Graphic Novel


encerrou as suas publicações.

Figura 4 - Primeira aparição de Figura 5 - Primeira aparição do


Evey na história de V de mascarado e enigmático V na
vingança. Fonte: (MOORE; história de V de vingança. Fonte:
LLOYD, 2012, p. 11). (MOORE; LLOYD, 2012, p.11).

Há uma grande variedade de temas que a Graphic


Novel procura abordar, desde a inspiração e ambientação
do enredo utilizando referências de livros literários que
reproduzem um mundo fictício-distópico, como o caso de
1984 de George Orwell e Admirável mundo novo de
Aldous Huxley, até a centralidade da história, que
passava pela adaptação dos conceitos de “Anarquia e
Fascismo” dentro da Graphic Novel, algo que foi
confirmado pelo próprio Alan Moore em uma entrevista
posterior ao lançamento da adaptação cinematográfica de
V de vingança (VINEYARD, 2006).
Diálogos Sobre História e Cultura 385

O antagonismo existente entre os conceitos de


fascismo e anarquia, remete a uma situação específica
que objetivou trabalhar as visões de mundo que seriam
possíveis dentro daquela conjuntura específica de guerra
fria. Mas ao mesmo tempo, também revela que em toda a
obra de Moore, durante os seus mais de 40 anos como
escritor de quadrinhos, um outro conceito tem tamanha
importância em toda a estrutura de pensamento do autor,
a história. Algo que foi conduzido pelo ponto de vista
histórico do autor ou como o próprio diz, as “marés da
história”.

Como acontece com a maioria das coisas na


cultura, você vai ter essa onda de progresso que
será atendida por pessoas cavando seus
calcanhares. Será confrontado com objecções
fundamentalistas, que têm a sua base para tentar
fazer as coisas voltarem a ser como eram. Eu
diria que, historicamente, isso não vai
acontecer. Isso não funciona. Nossos líderes
não controlam as marés da história – eles
estão apenas surfando nelas. Eles estão fazendo
o possível para se manter em cima delas. Eles
não fazem as marés – as marés da história vêm
de um milhão de vetores diferentes: nossa
tecnologia avançada, nossa visão de mundo
avançada. Essas são as coisas que realmente
fazem a diferença no fluxo da história, e nossos
líderes tentam sentar-se em cima dela, e talvez
tentam dar a impressão de que estão
controlando-a, mas a história da história.
Tempo e maré – elas não prestam muita
atenção a nenhum líder humano. (MOORE,
2004 apud CARNEY, 2006, grifos meus).8
8
Tradução livre de As with most things in culture, you are going to
get this surge of progress which will be met by people digging their
Diálogos Sobre História e Cultura 386

O trecho citado acima foi retirado de uma


entrevista em que Alan Moore fala sobre o relançamento
de Mirror of love (Espelho do amor), trabalho publicado
inicialmente como um grande poema em 1988, com o
objetivo de protesto contra a homofobia, decorrente do
governo de Margaret Thatcher, que em 1988 havia
conseguido promulgar uma lei que proibia as autoridades
locais de incentivar ou promover a homossexualidade
fundamentada pela relação afetiva e familiar 9. Já em
2004, em cooperação com o ilustrador José Villarrubia, a
história passou por um relançamento com a utilização de
imagens (CORNEY, 2006).
A percepção do conceito histórico para Moore,
em uma primeira análise, aparenta ser uma visão otimista
da história. O progresso seria uma força motriz que
impulsiona a história e as suas marés em um avanço
natural, ainda que existam as “contracorrentes” que
retardam esse progresso. Alan Moore atribui isso à
heels in. It will be met by fundamentalist objections, which have their
basis in trying to turn things back to how they were. I’d suggest that
historically, that’s not going to happen. That doesn’t work. Our
leaders do not control the tides of history — they are just surfing
them. They are doing their best to keep on top of them. They do not
make the tides — the tides of history come from a million different
vectors: our advancing technology, our advancing worldview. These
are the things that actually make a difference to the flow of history,
and our leaders try to sit on top of it, and perhaps try to give the
impression that they are controlling it, but history’s history. Time and
tide — they don’t pay much attention to any human leader.
9
Essa lei abordava essa questão em seu 4° parágrafo, 28° artigo.
Sendo revogada apenas em 2000. Para mais informações, ver:
UNITED KINGDON. Local Government Act 1988. UK Public
General Acts, London: 1988. Disponível em:
https://www.legislation.gov.uk/ukpga/1988/9/contents. Acesso em 28
de nov. 2023.
Diálogos Sobre História e Cultura 387

política e seus representantes, deixando evidente que a


conjuntura em que “O espelho do amor” (1988) foi
lançada, clamava por um enfrentamento que colocava em
oposição uma luta pelo progresso e o retrocesso que
existia naquele momento da era Thatcher.
Todavia, quando se utiliza essa percepção em V
de vingança, uma obra que acompanha esse mesmo
recorte temporal, as questões tendem a ter uma
complexidade maior. Ainda que também exista uma
questão antagônica de conceitos — isto é, a anarquia e o
fascismo — a maneira como ambos os conceitos são
evidenciados remetem uma percepção do autor muito
mais crítica entre o futuro e o passado. Algo que se
assemelha ao conceito de história atribuído ao alemão
Walter Benjamin.

Há um quadro de Klee que se chama Angelus


Novus. Representa um anjo que parece querer
afastar-se de algo que ele encara fixamente.
Seus olhos estão escancarados, sua boca
dilatada, suas asas abertas. O anjo da história
deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido
para o passado. Onde nós vemos uma cadeia
de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única,
que acumula incansavelmente ruína sobre ruína
e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de
deter-se para acordar os mortos e juntar os
fragmentos. Mas uma tempestade sopra do
paraíso e prende-se em suas asas com tanta
força que ele não pode mais fechá-las. Essa
tempestade o impele irresistivelmente para o
futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o
amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa
tempestade é o que chamamos progresso.
(BENJAMIN, 1987, p. 296, grifos meus).
Diálogos Sobre História e Cultura 388

Quando Walter Benjamin destaca em suas teses o


conceito de história, ele estava fazendo uma crítica ao
“historicismo burguês”, proeminente de uma pretensão
que buscava a completude e a erudição sobre a totalidade
do fluxo da vida, ou seja, uma história concretizada e
linear. Ao mesmo tempo que também criticava o
“determinismo do marxismo materialista vulgar”,
advinda de uma percepção que se “entrega de forma
condicional a uma fé no progresso”, um determinismo
semelhante ao hegeliano,10 entretanto, de viés e
objetivação econômica, que em seu fim seria conduzido a
uma sociedade sem classes. Para Walter Benjamin, essas
duas percepções históricas que se antagonizavam em um
primeiro momento, em sua finalidade, se
complementavam. (GOIS FILHO, 2020, p. 79-80).
Em um trecho V de vingança, o mascarado V
improvisa um diálogo de “encenação” amorosa com a
estátua que estava acima de Old Bayley (o Tribunal
Central Criminal, localizado na Inglaterra), a estátua é a
representação de uma mulher segurando dois pesos em
um braço e uma espada no outro, assim, simbolizando a
justiça. V termina a encenação do seu diálogo com a
estátua, explodindo a estátua e confirmando que agora
existia uma nova “amante” chamada anarquia.

10
A percepção de determinismo histórico faz referência a
compreensão histórica do filosofo alemão Georg Friederich Hegel,
para Hegel (2001, p. 53-54) existe um determinismo universal, “na
história do mundo as coisas aconteceram racionalmente”. A história
representaria o espírito do mundo, cuja natureza é sempre a mesma,
onde cada indivíduo cumpre um destino que o engloba no fluxo da
vida. Para mais informações, ver: HEGEL, G. A razão na história:
uma introdução geral à filosofia da história. 2. ed. Tradução de
Beatriz Sidon. São Paulo: Centauro, 2001.
Diálogos Sobre História e Cultura 389

Figura 6 – V antes de causar a explosão da estátua da justiça. Fonte:


(MOORE, LLOYD, 2012, p. 43).

V só se torna capaz de suprir a sua crença de


justiça com base na anarquia, devido a compreensão do
que de fato significa a liberdade para ele. A liberdade
referenciada aqui, vem advinda da experiência do trágico,
pois “a relação entre a tragédia e a vida é a razão pela
qual o vocabulário contemporâneo, saturado da e na
experiência humana, está povoado pelo jargão trágico”
(OLIVEIRA, 2015, p. 179). uma tragédia evitável,
concebida no contexto da década de 1980, pela real
ascensão de líderes políticos que vão contra as “marés da
história” para Alan Moore.
Líderes políticos que não são ilegítimos, já que
foram eleitos democraticamente, tanto Reagan nos
Diálogos Sobre História e Cultura 390

Estados Unidos, quanto Thatcher na Grã-Bretanha,


passaram pelo processo de eleição e reeleição. Não por
acaso, a referência a uma figura do passado como Guy
Fawkes e o seu objetivo de explosão do parlamento, algo
que simbolicamente representa um assunto que ainda não
havia sido terminado, a preocupação com o passado para
V é a preocupação de Moore com os fragmentos, com
uma história que ainda não havia sido descoberta,
explorada e por fim concretizada e é isso que faz com
que ele procure “acordar os mortos” como Angelus
Novus de Walter Benjamin, os mortos que podem ser
entendidos como todos aqueles que estavam sobre uma
hipnose que causava aceitação com o fim da sua
liberdade
Por um outro lado, semelhante a visão crítica de
Benjamin sobre o que significaria o progresso histórico,
Moore vai valer-se do conceito de distopia futurista da
sua maneira mais simplória, “um aviso de incêndio” que
buscava alertar sobre a tragédia e o perigo que
representava os avanços sem controle de líderes políticos,
avanços que mesmo em andamento poderiam ainda ser
controlados (HILÁRIO, 2013, p. 202). Isso também se
torna manifesto, na utilização do termo “líder” durante a
história. Em V de vingança, o partido totalitário Norsefire
possui uma estrutura que se organiza com: O Dedo
(polícia secreta), O Nariz (detetives e censura), O Olho
(Divisão de vigilância visual), A Orelha (Divisão de
vigilância de áudio), A Boca (Divisão de propaganda),
Destino (máquina central que controla as informações) e
O Líder (topo da hierarquia).
O líder na história, é um homem chamado Adam
Susan, que se auto intitula fascista e apresenta as
Diálogos Sobre História e Cultura 391

características comuns de líderes totalitários, inclusive


“soluções para todos os problemas, mesmo que essas
sejam, muitas vezes, uma distopia (SOUZA, 2020, p. 14).
Se para V, a justiça não pode ser compreendida sem a
liberdade. Para Susan, a liberdade está na centralização e
uniformidade de todos os indivíduos. Da mesma maneira,
em que a originalidade do conceito de fascismo
idealizado por ele, estava perdido em um passado
glorioso e seria resgatado em um futuro determinado e
linear.

Figura 7 - Apresentação de Adam Susan. Fonte: (MOORE; LLOYD,


2012, p. 39).

Surge então, uma apresentação antagônica de


conceitos e na representação dos seus personagens. De
uma perspectiva histórica, é possível compreender que o
Diálogos Sobre História e Cultura 392

autor faz uma crítica diante da possibilidade de uma


natureza catastrófica e destrutiva com o avanço do
tempo. Contudo, diferentemente do Angelus Novus de
Benjamin, que não pode intervir ou voltar atrás para
consertar as coisas no passado, para Alan Moore, a
anarquia exaltada pelo personagem V ostentava as duas
faces, a criadora e a destruidora (MOORE; LLOYD,
2012, p. 224). Em outras palavras, para construir um
mundo melhor, era preciso primeiro destruir o que estava
posto, voltando ao passado, compreendendo as tensões e
contradições que os fizeram chegar ao estágio do trágico.
Não à toa, em um dos diálogos marcantes de V de
vingança, quando V diz que por trás da máscara existe
uma ideia e “ideias são à prova de balas” (IBID. p. 238).
Pode destacar-se novamente a fala de Alan Moore, sobre
o tempo e a maré não estarem alinhadas a nenhum líder
humano. Ainda que exista o indivíduo, como um símbolo
de esperança rumo há novos tempos, como V é pra Evey
(personagem que possui a sua própria jornada de
autodescoberta individual) e consequentemente, também
se torna para toda a Inglaterra ao final da Graphic Novel.
O corpo físico ainda é perene e limitado. Portanto, a
contraposição a distopia apresentada ao decorrer de V de
vingança, pode ser superada pela “utopia” que Alan
Moore creditava ao anarquismo.
Diálogos Sobre História e Cultura 393

Figura 8 - Evey preparando o velório de V. Fonte: (MOORE;


LLOYD, 2012, p. 262).

Apesar de tudo, Moore também demonstra que


ainda deveria existir a liberdade de escolha para a
sociedade, para seguir esse caminho utópico-anarquista
ou novamente recorrer a distopia-trágica novamente
(FIGURA 8). Quando Evey assume o manto de V como
uma continuação de seu legado, constata-se que o
processo para o alcance de uma sociedade imaginada não
é severamente imediato, o imediato ainda seria abstrato,
enquanto o verdadeiro processo é histórico. Histórico,
porque exige uma reflexão crítica sobre as injustiças e os
usos e desusos do passado, ao mesmo tempo, em que não
se utiliza o determinismo de progresso absoluto com o
futuro.
Diálogos Sobre História e Cultura 394

Consideração Finais

Este estudo buscou abordar algumas questões que


fizeram parte do processo de construção da Graphic
Novel V de vingança, obra de autoria dos escritores Alan
Moore e David Lloyd. A partir de uma perspectiva
histórica, procurou-se aprofundar as mudanças de
perceptivas que rondaram todo aquele contexto do autor
Alan Moore, marcado por diversas mudanças no mundo e
na sociedade, por fim, nos quadrinhos como um todo.
Analisar obras tão enigmáticas, como as de
autoria de Alan Moore é algo extremamente difícil. V de
vingança traz acima de tudo um posicionamento, diante
da realidade apresentada para os autores. Para além da
implementação das visões políticas-ideológicas, V de
vingança é uma história que apresenta história, as
referências em algum momento são bastante peculiares e
bem centradas na Inglaterra.
Muito por isso, procurei não destacar a figura do
presidente americano Ronald Reagan que estava eleito na
época e a realidade americana, algo que Moore procura
fazer com certa criticidade em outras obras (Watchmen,
por exemplo). A partir da utilização da percepção de
Walter Benjamin sobre a história, se entende que o
processo histórico é complexo e cheio de lacunas, não
voltado a uma predestinação do passado e suas respostas,
mas também não crente no futuro e a sua utopia de
progresso absoluto.
De certa forma, Alan Moore também acaba
incorporando isso em sua obra, fazendo de V de vingança
uma obra ímpar, capaz de ser analisada de diversos
pontos de vista. Sendo uma representação de uma
Diálogos Sobre História e Cultura 395

possível realidade, que mesmo com a imaginação aborda


a história e as questões no mundo real.
Diálogos Sobre História e Cultura 396

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Diálogos Sobre História e Cultura 402

Da corrupção uma nova concepção:


vermes, parasitas e conceituações
sobre a vida na História da Saúde
From Corruption, a new Conception:
Worms, Parasites and conceptions of life
in the History of health.
Eduardo Mangolim Brandani da Silva1
Rodrigo Perles Dantas2

Resumo

De fato, a humanidade adoece de causas naturais ou


psicológicas. O que se altera, ao longo do tempo, é a
significação que faz acerca do processo de adoecimento,
das suas causas e possíveis soluções (tratamentos ou
curas) para as enfermidades, sejam elas de origem
psíquicas, autoimunes ou infectocontagiosas e
parasitárias. É sobre este último caso que se debruça
nosso trabalho. Já é fato conhecido na área da saúde que
os animais convivem com diversos organismos, muitos
benéficos para o bom funcionamento corporal, outros
nem tanto. Nesse caso, apresentam-se os vermes e
diversos outros tipos de parasitas que, se aproveitando de

1
Doutorando em História pela Universidade Estadual de Maringá,
edu.magnusdomini@gmail.com.
2
Doutorando em História pela Universidade Estadual de Maringá,
rodrigodantas789@gmail.com.
Diálogos Sobre História e Cultura 403

um outro organismo, parasitam o indivíduo para sua


própria sobrevivência (como os helmintos) ou então para
sua descendência (como os bernes e as miíases, por
exemplo). Nesse texto, vamos explorar a forma como
esses parasitos foram compreendidos ao longo do tempo,
com ênfase na concepção sobre eles na América
portuguesa, entre os séculos XVI e XVIII, a maioria
delas fortemente calcada na abiogênese desses seres, que
nasceriam da corrupção dos elementos, além da forma
como ciências a exemplo da paleopatologia e
paleoparasitologia podem contribuir sobremaneira para o
estudo das doenças que afetavam a humanidade no
passado, especialmente em sociedades sem escrita, como
povos indígenas do atual território brasileiro. As
pesquisas nesse campo, também ajudam a provar teorias
migratórias de ocupação do continente americano, seja
pelo Estreito de Bering ou então pelas migrações
transpacíficas prezando pela interdisciplinaridade como
grande auxiliar para o estudo do passado da humanidade.
Palavras-chave: Concepções sobre a vida; História da
Ciência; Interdisciplinaridade.

Abstract

In fact, humanity falls ill from natural or psychological


causes. What changes over time is the meaning it gives to
the process of becoming ill, its causes and possible
solutions (treatments or cures) for illnesses, whether they
are psychological, autoimmune or infectious and
parasitic. It is this last case that our work focuses on. It is
a well-known fact in the health sector that animals live
Diálogos Sobre História e Cultura 404

with various organisms, many of which are beneficial to


the proper functioning of the body, others not so much. In
this case, there are worms and various other types of
parasites which, taking advantage of another organism,
parasitize the individual for their own survival (like
helminths) or for their offspring (like roundworms and
myiasis, for example). In this text, we will explore how
these parasites have been understood over time, with an
emphasis on the conception of them in Portuguese
America, between the 16th and 18th centuries, most of
them strongly based on the abiogenesis of these beings,
which were born from the corruption of the elements, as
well as how sciences such as paleopathology and
paleoparasitology can contribute greatly to the study of
diseases that affected humanity in the past, especially in
societies without writing, such as the indigenous peoples
of present-day Brazil. Research in this field also helps to
prove migratory theories of the occupation of the
American continent, whether through the Bering Strait or
through transpacific migrations, emphasizing
interdisciplinarity as a great aid to the study of
humanity's past.
Keywords: Conceptions of Life; History of Science;
Interdisciplinarity.
Diálogos Sobre História e Cultura 405

Da corrupção uma nova concepção:


vermes, parasitas e conceituações
sobre a vida na História da Saúde
Eduardo Mangolim Brandani da Silva
Rodrigo Perles Dantas

Introdução

O debate acerca de como surgiu a vida e como ela


se manifesta é antigo e diverso. Diferentes culturas e
civilizações interpretaram elementos da natureza que os
cercavam como forma de composição de seus mitos
cosmogônicos. Dentre as demandas que existiam no
interior desses grupos, um aspecto que é recorrente que
pode ser notado foram as tentativas de delimitar como a
vida se proliferava (MONTGOMERY; KUMAR, 2016,
p. 6).
Entre os primeiros grupos fica aparente a
dimensão de que a vida em si teria surgido, em um
primeiro momento, através de eventos cosmológicos,
onde processos amplos, geralmente associados a causas
sobrenaturais, teriam desencadeado a vida e sua
diversidade. Essa diversidade de entes que possuíam vida
está associada a critérios geobiológicos. As culturas
delimitavam essas questões a partir dos elementos que
seus sentidos podiam alcançar e sentir (LE BRETON,
2009, p .19-21). É nesse sentido que o espaço habitado
tinha um papel fundamental na designação dos saberes e
elaborações sobre a vida dos diferentes grupos culturais.
Diálogos Sobre História e Cultura 406

É difícil estipular de forma detalhada como a


diversidade de grupos que já habitaram o globo
compreendiam as maneiras pelo qual a vida se reproduzia
e se proliferava. No entanto, ao que tudo aparenta, desde
a antiguidade é possível notar a presença de três formas
de compreensão, que não se anulavam e coexistiam no
imaginário, sobre como a vida poderia vir a existir. As
maneiras que aqui chamaremos elas não necessariamente
eram os termos utilizados no interior dessas culturas, no
entanto, essas formas contemporâneas sintetizam bem
essas ideias: Proliferação sexual; Proliferação por
partenogênese; Proliferação por geração espontânea.
As observações sexuais tem grande longevidade,
havendo registros dessas noções desde o paleolítico. O
interessante é notar a presença do pensamento sobre a
geração espontânea entre esses primeiros grupos
humanos. Na concretização das artes rupestres, os
diferentes indivíduos da espécie Homo sapiens
imaginavam que ao registrarem animais, que seriam suas
presas, continuamente nas paredes de seus espaços de
vivência, haveria a possibilidade de que estes se
manifestassem na natureza no momento em que eles
praticassem suas caçadas (JANSON; JANSON, 1996, p.
14-15).
Esse cenário evidencia a presença da noção de
geração espontânea, sendo nesse caso um modelo mágico
e sobrenatural. Nem todas as conceituações sobre a
geração espontânea se principiaram pela dimensão do
mágico. Houve grupos que privilegiaram a dimensão da
própria natureza, enquanto outros se centraram na
questão de suas próprias crenças, elencando assim a
Diálogos Sobre História e Cultura 407

dimensão religiosa como causa do surgimento de novos


entes com vida.
É difícil pensar sobre a presença de noções sobre
a partenogênese entre os grupos do paleolítico. Esse tipo
de concepção esteve marcado na antiga Grécia entre
algumas obras de Aristóteles, onde ele pensou e traçou
aspectos sobre a proliferação e perpetuação da vida.
Se a reprodução foi capaz de explicar o
surgimento de uma série de seres, inclusive dos próprios
humanos, entre diferentes grupos, ela não tinha
capacidade de amalgamar a totalidade dos entes que eram
entendidos como possuintes de vida. Uma série de
animais considerados inferiores não eram entendidos
como praticantes desse tipo de ação. O surgimento deles
estava relacionado com a questão da proliferação por via
da geração espontânea.
A questão da geração espontânea é relevante de
ser debatida, na medida em que ela foi o alicerce de
explicação para a existência de um grande número de
seres. Seus impactos estiveram presentes na Europa, e no
mundo colonizado pelas metrópoles europeias até o
século XIX.
Esse tipo de evidência fica bem aparente em
evidências encontradas nas fontes de colonizadores que
estiveram presentes na América portuguesa entre os
séculos XVI e XVIII. Muitos dos vermes e parasitas que
esses indivíduos acabaram se deparando em suas
experiências, eram entendidos como tendo surgido de
geração espontânea.
Com a intenção de se debater a presença e os usos
teóricos da geração espontânea na América portuguesa,
esse pequeno material visa traçar um breve histórico
Diálogos Sobre História e Cultura 408

sobre as origens greco-romanas dessa teoria que teve a


possibilidade de atravessar a Idade Média e chegar até a
Era Moderna europeia. Após a exposição da trajetória
desse saber, o trabalho seguirá em sentido de explicitar
sua presença no mundo português de forma que isso
ficará evidente por meio da exposição de evidências
contidas em fontes elaboradas entre os séculos XVI e
XVIII.

1. Após o Podre, a Vida: A trajetória da


Corrupção e da Geração entre a
Antiguidade e a Era Moderna.

Ao levantar a dimensão da geração espontânea,


como um fator de explicação para a proliferação de
espécies, que esteve presente no imaginário explicativo,
sob a forma de saberes, até o final da Era Moderna
europeia, é necessário que uma ressalva fique
consolidada. A ideia nesse material não é de trabalhar
todas as explicações relacionadas à geração espontânea
que existiram. A proposta se dá em sentido, nesse
primeiro momento, de realizar uma espécie de
arqueologia desse pensamento.
A retrospectiva investigativa sobre esse aspecto
nos leva de volta no tempo até Aristóteles. No entanto, o
debate sobre perpetuação da vida e suas causas não
sexuais são anteriores ao próprio Aristóteles. Inclusive
esse debate pré-socrático influenciou propriamente o
pensamento aristotélico.
Desde o século VI A.C. alguns pensadores gregos
pré-socráticos buscaram trazer explicações para
Diálogos Sobre História e Cultura 409

fenômenos da natureza que tivessem fundamentação


física em contrariedade ao pensamento usual que
determinava que os deuses eram a causa dessas questões
(GUTHRIE, 1965, p. 13). Anaximandro, pensador de
Mileto do século VI A.C., entendia que a origem das
coisas que compunham a natureza estava associada à
natureza dos elementos. A vida estaria relacionada às
interações dos elementos existentes, portanto seria
originária de dinâmicas físicas e não de vontades
metafísicas (CURD, 1998, p.77).
Quando observamos o pensamento de
Anaxímenes, Anaxágoras e Xenófanes, o que se observa
são diferentes teorias de como os elementos se
combinaram inicialmente para dar origem à vida. O que
interessa aqui não é situar as teorias dos movimentos
elementais, ou da combinação entre opostos, que cada
um desses pensadores desenvolveu para tentar explicar
surgimento e perpetuação da vida. O que importa é
observar aspectos em comum entre eles, que inclusive
deixou traços que vieram a influenciar o debate
aristotélico.
Esses três autores entendiam primeiramente, à sua
maneira, que a combinação entre elementos da natureza
dava luz à vida. Nota-se aí uma forma de pensamento de
geração espontânea, mesmo que esses autores não
aplicassem esses termos para esse processo. Interessa
também destacar uma segunda semelhança de raciocínio.
A ideia de que a vida surgia de uma espécie de limo,
lama ou lodo marcava o debate desses indivíduos. Os
tipos de combinação elementais e as causas que levavam
a isso se diferem no pensamento desses indivíduos. Mas
é interessante notar a ideia de que a vida surgia e se
Diálogos Sobre História e Cultura 410

perpetuava através de fenômenos no interior da física


natural (OSBORN, 1894).
Antes que possamos entrar no pensamento
aristotélico é interessante situar um autor que não
necessariamente abordou a geração espontânea, mas que
levantou aspectos relacionados à corrupção que esteve
presente no trabalho de Aristóteles. As possíveis
influências que Hipócrates teve sobre Aristóteles ainda
são muito debatidas, pois o pensamento aristotélico e o
hipocrático se diferem amplamente.
Não é possível afirmar se a figura de Hipócrates
de Cós de fato existiu. Sua possível atuação é datada do
século V A.C. Seus trabalhos estão presentes em um
compilado produzido no século III A.C. em Alexandria
(MARGOTTA, 1968, p.64). Esse material é hoje
conhecido como Corpus Hippocraticum, sendo uma
coletânea de cerca de 60 tratados. Os mais relevantes
para esse debate são o Sobre as Águas, Ares e Lugares e
também o Epidemias.
O material relacionado aos lugares, águas e ares
aparenta ser destinado aos viajantes do tempo de
Hipócrates. Esse material traz elementos relacionados a
teorias embrionárias do contágio. Isso porque o
pensamento hipocrático entendia que a água e os ares
poderiam sair de seus estados naturais, podendo assim
causar enfermidades. As causas disso estavam
relacionadas a questões naturais cosmológicas e
astrológicas. Os viajantes estando em espaços que não
conheciam, deveriam estar atentos aos sinais nessas
fontes que poderiam estar associados a enfermidades
(CRAIK, 2014).
Diálogos Sobre História e Cultura 411

Os tratados sobre epidemias de Hipócrates se


associam diretamente com o anterior que foi levantado.
Os trabalhos pertinentes ao Corpus Hippocraticum que
levantam essa questão, revelam a dimensão de como as
águas e ares são os grandes propagadores de
enfermidades. Quando essas fontes saíam do seu estado
natural, elas poderiam gerar uma série de desequilíbrios
de saúde no interior do organismo humano. Isso levaria
ao estado de enfermidade em diferentes comunidades
(CRAIK, 2014). O que se nota é uma linha de raciocínio
similar à que Aristóteles desenvolveu sobre o processo de
corrupção. Isso é relevante porque o pensamento sobre a
Corrupção de Aristóteles, está diretamente relacionado
àquilo que ele propôs sobre a Geração.
A atuação de Aristóteles, outra figura debatida em
termos de sua existência, teria atuado no século IV A.C.
O filósofo teria se interessado por uma diversidade de
áreas enquanto esteve vivo, levantando debates sobre
ética e leis, questões de biologia e também questões
sobre matemática. Isso fez com que ele fosse
considerado, no tempo presente, um polímata. O que nos
interessa aqui são seus trabalhos relacionados ao do
mundo natural e da física dos elementos.
Há alguns tratados que foram estipulados como de
autoria de Aristóteles, como o Histórias dos Animais e o
Geração dos Animais. Esses trabalhos de Aristóteles,
com enfoque no segundo, levantavam já a dimensão de
que a dispersão e propagação da vida animal estava
associada à reprodução em um grande número de
espécies. No entanto, em outros casos é interessante notar
que a geração espontânea seria a causadora dessas
origens, seja a partir de matéria orgânica, animada ou
Diálogos Sobre História e Cultura 412

inanimada, ou em casos de matéria inorgânica


(FALCON; LEFEBVRE, 2018, p. 16).
É interessante notar que o raciocínio aristotélico
também levanta a dimensão da lama e do limo como
fontes de vida. Essa matéria orgânica que era fruto da
putrefação, seria terreno fértil de surgimento da vida, por
meio da combinação e agrupamentos de elementos.
Aristóteles julgava que pássaros e abelhas surgiam nesses
emaranhados (LEHOUX, 2017, p. 14-16).
O que é interessante do pensamento aristotélico é
a dimensão de compreender como essa amálgama
putrefata fértil surgia. É nesse momento que a questão da
corrupção entra para que Aristóteles pudesse assim
explicar o ciclo existente entre morte-vida, sendo
expressado no binômio geração corrupção.
É nesse sentido que a obra Da Geração e da
Corrupção de Aristóteles surge como um importante
tratado para se compreender o pensamento de Aristóteles
sobre os elementos da natureza, sobre enfermidades e na
mesma medida sobre o surgimento e fim da vida
(ARISTÓTELES, 2001, p. 27).
Ao que tudo aparenta, Aristóteles compreendia
que todos os elementos que compunham a natureza
seriam fruto da presença dos quatro elementos
primordiais: Terra, Água, Fogo e Ar. Havia também um
quinto elemento distante nos céus, que teria movimento
perfeito e não estaria presente no espaço terrestre, o éter.
Cada um desses elementos tinha movimentos próprios
relacionados à sua natureza. A existência das coisas
dependia da combinação desses elementos, portanto a
maneira pelo qual eles eram combinados e rearranjados
era o que garantia a diversidade (ARISTÓTELES, 2001).
Diálogos Sobre História e Cultura 413

Os tipos de movimentos relacionados à interação


dos elementos surtiam em diferentes tipos de fenômenos
que acompanhavam os seres animados ou inanimados.
Esses processos eram a geração, o aumento, a alteração, a
diminuição e por fim a corrupção. O aumento, a alteração
e a diminuição estariam associadas com os rearranjos dos
elementos no interior se um ser já formado, assim como
diziam respeito à quantidade de matéria que esses seres
possuíam (ARISTÓTELES, 2001, p. 52-59).
A geração e a corrupção seriam processos mais
complexos. Isso porque essas questões diziam respeito à
causalidade das coisas e suas devidas potencialidades. A
causalidade final para Aristóteles seria algo inerente às
coisas e dizia respeito ao surgimento e fim delas. As
potencialidades diziam respeito àquilo que elas poderiam
vir a ser, as questões relacionadas às suas durabilidades e
transformações (GOTTHELF, 1976, p. 228). Os dois
processos, geração e corrupção, dependiam dessas
dinâmicas de natureza que se relacionavam a questões
metafísicas.
A geração e a corrupção dizem respeito à
possibilidade de existência e garantia de fim das coisas.
Para compreender bem o raciocínio sobre geração, é
mais simples iniciar o raciocínio por meio da corrupção.
Esse processo diz respeito à desagregação do ser. A
causalidade final garantia que haveria um momento no
qual o ser deixaria de ter sua forma unida. Esse processo
de desagregação era sinalizado pela evidência da morte.
Após a morte o acúmulo de elementos ia se perdendo sob
a forma de líquidos, vapores e outros elementos de
matéria que iam sendo perdidos. A putrefação seria então
Diálogos Sobre História e Cultura 414

a grande marca da corrupção no caso dos seres animados


(ARISTÓTELES, 2001, p. 46).
Com a cristalização da corrupção e da perda de
elementos que esse ser original tinha, essa matéria que se
derivava poderia ser considerada danosa, como no caso
dos ares corruptos, mas na mesma medida era uma massa
fértil, que propiciava o surgimento de uma série de seres
através da geração. É nesse momento que entra em cena
a dimensão da geração espontânea no pensamento
aristotélico (ARISTÓTELES, 2001, p. 62).
A questão da causalidade e potencialidade entram
em cena novamente. Isso porque os elementos dispostos
no ambiente após a corrupção poderiam se unir, sendo
essa uma potencialidade, que seria regida pela dimensão
da causalidade que propiciava a vida. Isso significa dizer
que os elementos se uniriam, por meio de uma série de
combinações, de forma a dar luz a novos seres. É nesse
sentido que a matéria lodosa ou lamacenta seria pensada
como propícia à geração de seres. O odor fétido seria a
sinalização da corrupção. Após a matéria ser corrompida,
havia o espaço possível para o surgimento da vida ou de
seres inanimados através da geração (Lehoux, 2017,
p.20-22). A lama e o lodo eram sinalizadas como esse
espaço fértil justamente por terem surgido da corrupção,
o que lhes sinalizavam como matéria de geração. É nesse
sentido que há o ciclo entre geração e corrupção para
Aristóteles, onde um processo depende do outro para
ocorrer. Sem geração não há corrupção, sendo também
verdadeiro o inverso (ARISTÓTELES, 2001, p. 83).
O pensamento grego foi amplamente incorporado
em meio às noções da civilização romana. Quando
pensamos nos trabalhos de Cláudio Galeno que foram
Diálogos Sobre História e Cultura 415

produzidos entre os séculos II e III D.C., fica evidente


marcas do pensamento hipocrático e aristotélico. Os
aspectos teóricos produzidos pelo mundo greco-romano
foram muito influentes na teologia cristã dos séculos V e
VI D.C. Esses aspectos foram recebidos na Idade Média,
como uma espécie de herança fragmentada. Seja por via
oral, por fragmentos de tratados ou em alguns casos mais
raros a totalidade dos tratados, o que se nota é que as
informações do mundo greco-romano foram incorporadas
à tradição teológica do cristianismo.
Tendo em mente essa colocação é interessante
notar a marca da geração espontânea no pensamento de
um dos mais antigos pensadores do cristianismo, que foi
Agostinho de Hipona. Na sua obra A Cidade de Deus, o
autor traz a passagem do Gênesis da Bíblia, que situa que
a água com seu contínuo movimento seria uma fonte
abundante de vida. É preciso enfatizar aqui que o
pensamento de Agostinho não determinava que as coisas
teriam um causa fora do plano e interesse divino. Ao
dizer que das águas haveria o surgimento da vida,
Agostinho trazia uma conotação bíblica para situar que
no plano divino, Deus teria dado luz a uma série de entes
com vida a partir das próprias águas (FRY, 2000, p. 42-
44).
Ao que tudo aparenta, as ideias de geração
espontânea continuaram marcando a Europa durante a
Alta Idade Média. Com a continuidade de existência da
matéria e sendo a natureza fruto do plano divino, o
surgimento de seres através da geração espontânea na
natureza continuava sendo uma marca do imaginário dos
indivíduos que povoaram o espaço europeu entre os anos
500 e 1000 D.C.
Diálogos Sobre História e Cultura 416

Esse aspecto teve continuidade de pensamento e


apresentou marcas na Baixa Idade Média, sendo isso bem
visualizado no pensamento de Geraldo de Gales. Esse
eclesiástico do século XII entendia que alguns animais
poderiam surgir de outros. Em seu raciocínio o Ganso-
de-faces-brancas (Branta leucopsis) teria origem nas
penduculatas (Thoracica sp.). Esse raciocínio vinha do
fato que esses animais ocupavam biomas similares e
haveria semelhança entre as cores (LANKESTER, 1915,
p. 117-128).
A ideia da geração espontânea ganhou novos
contornos na Idade Média a partir de uma série de
traduções que se deram nos séculos XII e XIII a partir de
fontes árabes para o latim. A tradução no século XII da já
citada obra Da geração e da Corrupção de Aristóteles
por Gerard de Cremona influenciou o raciocínio de
autores bem relevantes do século XIII como Alberto, o
Grande e Tomás Aquino.
A geração espontânea enquanto forma de se
compreender a perpetuação de espécies atravessou o
renascimento e se entranhou na Era Moderna. Isso fica
bem aparente nos vestígios que serão expostos na
segunda metade desse material, no entanto é interessante
trazer alguns exemplos que estão além do mundo
português. Um desses exemplos está contido na obra
Cosmografia de Sebastian Munster. É interessante notar
que no interior dessa obra ele também levantou a questão
das cracas se transformarem em gansos através de
processos de geração (MUNSTER, 1544).
Um último exemplo da marca e relevância que a
geração espontânea deixou no imaginário natural europeu
está no interior da obra História admirável de plantas e
Diálogos Sobre História e Cultura 417

ervas maravilhosas e milagrosas na natureza, escrita


pelo botânico setecentista Claude Duret. Essa obra possui
uma passagem e imagens relevantes que situam que a
matéria orgânica decaída levaria à geração de animais. As
folhas de uma mesma árvore caso caíssem na água ou na
terra viriam a gerar diferentes seres. Na água pelo contato
com a umidade, haveria de surgir peixes. No caso das
folhas que caíam na terra, o que viria por surgir seriam
pássaros (BODESON, 2018, p. 211-215).
A obra de Duret também traz gravuras sobre
cordeiros brotando da terra como se fosse um melão,
surgindo a partir da espécie de uma germinação de
sementes. A obra de Duret traz uma multiplicidade de
fenômenos e processos pelo qual seres podiam surgir a
partir da geração espontânea.
Esses diferentes casos expostos situam a
vivacidade da teoria da geração espontânea da
antiguidade greco-romana até a Era Moderna. Esses
saberes consolidados estiveram dispersos e tiveram
manifestações díspares entre os autores. O que é
interessante é notar que diante da fauna e flora do novo
mundo, a América, esses conteúdos também foram
aplicados sobre essa realidade. Isso significa dizer que
existem evidências da presença da corrupção e da
geração entre obras, tratados e cartas que foram
produzidos no mundo colonial, como na América
portuguesa. Nosso interesse seguinte diz respeito
justamente em explorar esses aspectos.
Diálogos Sobre História e Cultura 418

2. Os “vermes do paraíso”: a dialética


colonial, entre a idealização e a corrupção

Em termos médicos, a colônia lusitana na


América sempre foi alvo de férteis debates. Devido ao
fato dos povos originários do território serem ágrafos
quando da chegada dos primeiros europeus, ou seja, não
possuíam um sistema de escrita organizada, os relatos
que possuímos para estudar o impacto do encontro foram
todos redigidos pelas penas dos Europeus.
No entanto, embora dificulte, isso não se
apresenta como um impedimento para o estudo e análise
do modo de vida e das condições de saúde dos primeiros
habitantes da América. Ciências diversas se apresentam
como aliadas dos historiadores que buscam estudar as
condições sanitárias e médicas, em seus intercâmbios
com a cultura, antes da presença europeia, a exemplo da
arqueologia, paleopatologia e paleoparasitologia.
Partindo do estudo dos primeiros documentos
escritos sobre a América, fica claro que, à primeira vista,
o continente americano se apresentou como um mundo
novo aos portugueses e outros europeus. O que
encontraram em nosso continente era radicalmente
diferente do que estavam acostumados a ver ou que
possuíam em seu arcabouço de estudos sobre a natureza
que, na época, era regido pelos princípios da Filosofia
Natural3 (GRANT, 2009).

3
Podemos considerar que o uso atual do conceito de “ciência” se
desenvolveu a partir de meados do século XIX. Entre os séculos XVI
e XVIII, aqui analisados, o estudo, interpretação, classificação e
reflexões sobre a natureza eram feitos pela filosofia natural.
Diálogos Sobre História e Cultura 419

No lugar de formações florestais com árvores


mais espaçadas, surgia, diante dos colonizadores, a Mata
Atlântica. Mata fechada e floresta densa, em que os
galhos formam verdadeiras abóbadas desenhadas pela
natureza, chamaram a atenção daqueles que primeiro
escreveram sobre a biota do “novo” continente.
Justamente devido a esse impacto inicial, as
descrições sobre o mundo natural da América se fizeram
presentes sobremaneira nos primeiros escritos 4. Os
autores que primeiro trabalharam com a natureza do
“Novo Mundo” não eram cientistas nem lentes das
principais universidades europeias do período, mas se
constituíam em uma série de viajantes, exploradores,
colonizadores e religiosos que registraram seus relatos
em cartas, crônicas ou tratados sobre o que encontravam
em terras distantes da mãe-pátria. Dentre eles, podemos
destacar: Gabriel Soares de Sousa, Fernão Cardim, Hans
Staden, André Thevet, dentre outros.
O que fica claro nestes primeiros relatos, portanto,
é a necessidade de se registrar o que se via. Seja pela
simples curiosidade, pela necessidade de informar à
metrópole sobre as “descobertas” ou então para a
comunicação entre membros de uma ordem religiosa, o
fato é que, pese as diferenças nas escritas destes textos,
muitos elementos em comum podem ser destacados: a
descrição da terra, dos animais, dos ares, das águas e de
seus habitantes. Ou seja, das “terras e gentes” como se
falava no século XVI (CARDIM, 2015).

4
Utilizar essas fontes de pesquisa não significa fazer história
européia nem admitir uma passividade indígena. Mas apenas
entender esses primeiros relatos sobre a terra e o que muda ao longo
do tempo.
Diálogos Sobre História e Cultura 420

O mais curioso em todos esses relatos e neste


arcabouço documental a ser analisado pelos
pesquisadores interessados no assunto é notar a forma
como a terra e seus habitantes são vistos pela ótica
colonizadora ao longo do tempo. Alterações profundas na
maneira de compreender o lugar e seus moradores são
constatadas.
Para compreender melhor a concepção de
natureza e dos habitantes americanos na visão dos
primeiros europeus - e suas transformações ao longo do
tempo - nada mais justo do que recorrer às próprias
fontes que escreveram. Assim, em 1500, antes da
colonização efetiva do território, como membro-escrivão
da frota de Pedro Álvares Cabral, um atento Pero Vaz de
Caminha descreveu a condição da terra como sendo
fértil, regada por rios, em que se plantando, tudo dá; e
seus habitantes como sendo rijos, “afeiçoados” e gozando
de boa saúde (CAMINHA, 1963, p. 2 e 8).
É importante que nos lembremos sempre que a
visão presente nestas fontes é unilateral, já que não foi
dada aos indígenas a possibilidade de que narrassem sua
própria versão (GURGEL, 2009, p. 20). De qualquer
modo, conforme os colonizadores foram se estabelecendo
e a colonização foi se efetivando, notamos uma mudança
no discurso.
Ao longo de todo o período aqui em análise - dos
séculos XVI ao XVIII - no entanto, esta maneira de
abordar a colônia portuguesa na América, torna-se uma
verdadeira dialética. Ora destaca-se os aspectos positivos,
ora negativos. E é possível imaginarmos os motivos que
levavam a essa maior depreciação da colônia após a
idealização inicial (SOUZA, 2005, p. 21 e 157).
Diálogos Sobre História e Cultura 421

Com a colonização efetiva do território, em que


os processos de divisão política (com o fracassado
sistema de Capitanias Hereditárias e sua parcial
substituição pelo Governo Geral) e implantação de um
modelo macroeconômico5 (o plantio da cana-de-açúcar)
na colônia, levaram à fixação populacional europeia em
terras americanas. Com a estadia no local, os problemas
começam a aparecer. Dos muitos que podemos citar, dois
deles estão intimamente ligados ao nosso tema: os
parasitas e as nuvens sem fim de mosquitos,
característica de uma região de clima tropical.
Devido a esses fatores, a visão inicial de um
“paraíso terreal” começa a ser ressignificada frente aos
percalços encontrados pelos colonizadores no “Novo
Mundo”. Os relatos, a partir de meados do século XVI,
começam a dar maiores holofotes aos animais
peçonhentos, com um atento jesuíta português, de nome
Fernão Cardim, dizendo que “parece que este clima influi
peçonha, assim pelas infinitas cobras que há, como pelos
muitos alcarás, aranhas e outros animais imundos”
(CARDIM, 2015, p. 8).
Fato é que, como um homem do século XVI,
Cardim considerava o ar como um elemento importante
na formação dos indivíduos. Assim, ao mesmo tempo que
explicava a proliferação de animais peçonhentos, outros
autores se aproveitaram para explicar a aparição de
verminoses que atrapalhavam o ritmo normal de
funcionamento dos organismos humanos.

5
Utilizamos este termo para deixar claro que, embora a cana-de-
açúcar foi o modelo econômico privilegiado pela metrópole
portuguesa, outras atividades econômicas também se expressaram na
América portuguesa, muitas ligadas, inclusive, ao mercado interno.
Diálogos Sobre História e Cultura 422

Desde as primeiras fontes do século XVI, os


“vermes” estão, nelas, presentes. O que chama a atenção
em nosso estudo, porém, é que a concepção de verme era
diferente do que, hoje, entendemos a partir deste
conceito. No entanto, geralmente se apresentam como
elementos advindos da podridão (CALAFATE, 1994, p.
59). Gabriel Soares de Sousa, por exemplo, senhor de
engenho português no Brasil, em várias passagens de sua
obra alude a gangrenas a partir de ferimentos expostos,
em que “bichos” nelas se formavam (SOUSA, 1971, p.
177, 201, 206 e 210).
Ou seja, o que hoje consideramos uma infecção,
já era notado no século XVI como o processo de
evolução do quadro clínico de uma ferida não tratada. No
entanto, os elementos visíveis desta infecção eram vistos
como “bichos” incômodos, que nasceriam da podridão do
tecido machucado em ferimentos abertos.
No século XVIII, porém, assistimos a um grande
debate no que concerne às representações feitas sobre
esses seres, em geral, nascidos da abiogênese e dos
vermes, em particular. Enquanto alguns autores
continuavam insistindo em compreendê-los como seres
da podridão e inferiores na escala hierárquica dos seres6,
outros estudiosos decidiram analisá-los filosoficamente
(e religiosamente) sob outra perspectiva.
Os setecentos, contexto aqui em análise, se torna
importante para esse debate em torno dos vermes por
6
Da filosofia natural grega ao século XIX, predominou, em algumas
culturas - e não apenas as ocidentais - a ideia da “grande cadeia do
ser”, em que eram dispostos, de maneira hierarquizada, todos os
seres e criações do universo. No século XVIII, esta escala ia de Deus
(mais perfeito, no topo) até os minerais (na base) (SANTOS;
CAMPOS, 2014).
Diálogos Sobre História e Cultura 423

alguns motivos. Dentre eles, o fato de que, neste


momento, conhecemos o desenvolvimento de uma série
de novas tecnologias, como microscópios mais
avançados. Isso tudo permitiu o ser humano “enxergar o
invisível”, como a microbiologia em toda a sua extensão,
passando por vírus, bactérias, protozoários e vermes
(ALMEIDA; MAGALHÃES, 2010, p. 371).
No caso destes últimos, muitos vermes são vistos
a olho nu. Por mais que o microscópio tenha sido
elemento fundamental para a formulação da Teoria
Microbiana das Doenças no século seguinte (XIX), ainda
assim é preciso que tenhamos em mente um aspecto
fundamental do ser humano: que nós, muitas vezes,
vemos “o que queremos ver” ou então o que estamos
preparados para ver. Mesmo com o novo mundo que se
abriu aos olhos dos eruditos do período, com o aumento
da utilização das pesquisas microscópicas, isso não
representou uma guinada imediata para a formulação de
hipóteses (ao menos não entre a maioria dos profissionais
da cura do século XVIII) que ligavam esses seres
“micro” às enfermidades que causavam.
No entanto, chama a atenção o fato de que esses
pequenos seres, dentre os quais se destacam as
verminoses, passam a ser cada vez mais estudados no
XVIII. É neste período que surgem uma série de tratados
na incessante busca de compreender o que eram esses
seres. Alguns, inclusive, buscando “defendê-los” dos
ataques diversos que recebiam. (CALAFATE, 1994)
Um dos maiores tratados sobre os vermes do
setecentos, com influência nos estudos sobre Portugal e
Brasil, já que abrangem todo o Império Português, foi
escrito por Jacques Barbut, que faz uma classificação dos
Diálogos Sobre História e Cultura 424

vermes no século XVIII baseado nos apontamentos de


Lineu. Esta obra foi traduzida e adaptada aos casos do
Império português pelo Frei José Mariano da Conceição
Veloso (BARBUT, 1792). Ao folhear seus escritos, já fica
claro a diferença do conceito de verme da época para o
atual. Para o autor (e outros, que, como Lineu)
compartilham da mesma opinião, os vermes não
possuíam as descrições detalhadas das Ciências
Biológicas de nossos tempos. Como verme, era entendido
todo animal de “corpo mole”, entrando, nesta categoria,
os próprios vermes em si e alguns animais da ordem dos
crustáceos e moluscos, como as ostras, caracóis e animais
bivalves, a exemplo daqueles que vivem em conchas
encontradas nas praias.
De tudo isso, com os propósitos que
estabelecemos neste texto, o foco recai na discussão
sobre a vida. Alguns autores, desde a Antiguidade
Clássica, como Aristóteles, por exemplo, os
consideravam seres da podridão, admitindo, portanto, a
abiogênese (ALMEIDA; MAGALHÃES, 2010, p. 371).
Isso se reflete no campo médico. Luís Gomes Ferreira,
por exemplo, cirurgião português que veio para a colônia
no século XVIII acabou por propagar essas ideias. Na
visão deste prático português, as verminoses encontradas
em intestinos de falecidos, em suas autópsias, eram
geradas espontaneamente nos “humores” frios presentes
nesses órgãos, das quais “as lombrigas dos humores
corruptos que procedem dos maus cozimentos, e deles, se
gera grandes cópias delas” (FERREIRA, 2002, p. 240),
para, em outro momento, complementar que ervas como
aquela chamada de “fedegoso”, que era um purgante,
Diálogos Sobre História e Cultura 425

ajudava a lançar fora os humores frios e corruptos que


geravam as lombrigas (FERREIRA, 2002, p. 269-270).
No entanto, ainda nos setecentos, uma série de
pensadores passou a enxergar essa discussão sobre a
origem dos vermes de uma outra forma, como frutos da
criação divina e que refletia a inteligência e
magnificência da Criação, denotando o poder do Criador.
Isso se dava por conta do fato de que apenas um Ser
maravilhoso e poderoso poderia criar seres como esses.
Imagine, na época, com o apoio das lentes de aumento
propiciadas pelo avanço dos microscópios, que um
pesquisador enxerga, nessas pequenas criaturas, todo um
organismo, com seus vários sistemas, minúsculos como
era. Era a vida em miniatura! E, dentro desta concepção,
para criar uma vida nesta escala de tamanho com todas as
suas funções vitais e orgânicas, isso tudo só refletia as
maravilhas de Deus e tudo o que criou. Ou seja, não mais
eram vistos, necessariamente, como seres da podridão,
mas como elaborados detalhadamente pelas mãos do
Criador (CALAFATE, 1994, p. 63).
Encontramos muitas referências sobre essa
discussão entre os autores do Iluminismo português7,
grandemente ligados à religião, sendo Portugal muito
influenciado pela religião católica. Mas outros, como o
Inglês Jacques Barbut, também deram aval a esta tese,
elencando o século XVIII como um período de união
7
Sim, houve um Iluminismo português, que se materializou, em
grande medida, na busca pelo estudo da natureza, inclusive - e
principalmente - da América, já que, no século XVIII, Portugal
estava interessado em aumentar a exploração colonial em busca de
maiores lucros, o que motivou os estudos sobre a natureza da
América portuguesa e suas potencialidades lucrativas (MIRANDA,
2017, p. 99).
Diálogos Sobre História e Cultura 426

ciência-religião que via os estudos como uma forma de


descobrir as maravilhas da Criação e alcançar um
conhecimento mais profundo do Criador, por meio de
suas obras, do “Livro da Natureza” para além do livro
sagrado, a Bíblia (BARBUT, 1799).

Considerações finais

Todo esse debate sobre os verminoses no período


colonial (e, conforme vimos, com muitas concepções que
nasceram ainda entre os gregos antigos) nos leva a uma
série de reflexões. A primeira delas é que o conceito de
“verme”, assim como muitos outros, é histórico e passou
por transformações significativas ao longo do tempo.
Em termos biológicos, os vermes são, atualmente,
considerados animais que, por sua vez, dependem de
outros animais para parasitar e completar seus ciclos de
vida, além de obterem, a partir do corpo parasitado,
meios necessários à sua sobrevivência. Eles fazem parte,
portanto, de um grupo específico dentro da classificação
dos seres vivos, geralmente divididos em dois grupos:
platelmintos e nematelmintos (OLIVEIRA, 2013, p. 19).
No entanto, esta classificação atual nem sempre
vigorou nos estudos da natureza, nem mesmo na época
de Lineu, sendo posterior. No período aqui estudado, a
compreensão sobre os vermes englobava uma amplitude
maior, abarcando seres diversos, desde os bivalves até os
gastrópodes. Muitos deles possuíam aplicações e usos
diversos para os seres humanos, para além de serem
causas de doenças. Vários deles eram (e são) utilizados
na alimentação pelo mundo ou então serviam
Diálogos Sobre História e Cultura 427

simplesmente como objeto de curiosidade, contemplação


e estudo (BARBUT, 1792, p. II-IX8).
Ao longo dos séculos XVI e XVIII, período aqui
estudado, a visão sobre os vermes conheceu grandes
mudanças. Da abiogênese que procurava entender esses
seres como nascidos da podridão, sobrepôs-se uma visão
religiosa e até romântica a respeito destes pequenos seres.
Eram criações divinas, que refletiam a magnificência do
Criador, como se Ele tivesse criado estruturas
musculares, sistema circulatório e tudo aquilo necessário
à vida animal em uma espécie de “miniaturas”. Com isso,
o estudo científico e natural-filosófico se torna uma
forma de conhecer melhor a Deus e suas obras
(CALAFATE, 1994, p. 63).
Para além de tudo isso, a própria maneira como o
continente americano foi povoado pode ter, nos vermes,
grandes fontes de explicação. Por séculos, a única teoria
digna de validade para os estudiosos do povoamento da
América era a que povos asiáticos-mongóis teriam aqui
chegado pela via do Estreito de Bering. No entanto,
análises paleoparasitológicas encontraram, em múmias
que datam de milênios antes da presença europeia no
Brasil, verminoses que não suportariam atravessar a fria
região da Sibéria. Com isso, novas teorias, combinado
com estudos multidisciplinares, passaram a admitir a
migração de seres humanos via pacífico entre 10 e 15 mil
anos atrás, introduzindo certas parasitoses no continente
americano (SANTOS; COIMBRA JR, 1994, p. 31-33).

8
Escolheu-se esta numeração para melhor localizar a passagem na
obra do autor, que é um antigo manuscrito, escrito em 1788 e
publicado em 1792. No prefácio da obra, Jacques Barbut enumera as
páginas com algarismos romanos.
Diálogos Sobre História e Cultura 428

Ou seja, o estudo das verminoses no Brasil


permite-nos analisar doenças presentes na América antes
e depois do processo colonial europeu. Além disso, ajuda
a comprovar novas possibilidades sobre as rotas
migratórias que trouxeram o ser humano para o
continente que, hoje, conhecemos como América.
Diálogos Sobre História e Cultura 429

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Diálogos Sobre História e Cultura 432

Introdução sobre a história do


medicamento do século XIX
Introduction to the history of drug in the
19th century
Amanda Peruchi1

Resumo

Há milhares de anos, o ser humano tem utilizado plantas,


minerais e animais com propósitos terapêuticos,
entrelaçando a história do medicamento com a própria
história do homem. O medicamento é definido como o
agente responsável por tratar um corpo enfermo, mas isso
não significa que o medicamento de antes seja o mesmo
utilizado hoje. Nesse sentido, a proposta desse texto é
investigar o medicamento do século XIX, observando as
suas principais características, sobretudo em relação ao
envolvimento da química e da botânica na ciência
farmacêutica e no alargamento do arsenal terapêutico.
Em outras palavras, o objetivo é oferecer ao leitor uma
pequena introdução à história do medicamento do século
XIX.
Palavras-chave: História; Farmácia; Medicamento;
Século XIX.
1
Pós-doutoranda em História, Universidade de São Paulo, Bolsista
FAPESP (2022/06767-0), amandaperuchi@outlook.com.
Diálogos Sobre História e Cultura 433

Abstract

For thousands of years, human being have used plants,


minerals and animals for therapeutic purposes,
interweave the history of drug with the history of man.
The drug is defined as the agent responsible for treating a
sick body, but this does not mean that the drug from
before is the same as the one used today. In this sense, the
purpose of this text is to investigate the drug in the 19th
century, observing its main characteristics, especially in
relation to the involvement of chemistry and botany in
pharmaceutical science and the expansion of the
therapeutic arsenal. In other words, the objective is to
offer a short introduction to the history of drug in the
19th century.
Keywords: History; Pharmacy; Drugs; 19th century.
Diálogos Sobre História e Cultura 434

Introdução sobre a história do


medicamento do século XIX
Amanda Peruchi

Introdução

O século XIX pode ser considerado o século do


nascimento da historiografia farmacêutica. Embora textos
de épocas anteriores tragam pequenas narrativas sobre a
descoberta e o uso dos fármacos, a exemplo das
farmacopeias e dos manuais terapêuticos, a farmácia
somente começou a ser encarada como uma matéria de
investigação a partir de 1800, com o surgimento de várias
introduções históricas em livros alemães. Essas primeiras
histórias da farmácia têm como objeto de análise o
responsável pela manipulação e pelo comércio dos
medicamentos. Com recortes temporais e espaciais
longos ou pequenos, esses estudos buscavam
compreender como a prática da atividade de farmacêutica
se organizava. Esse tipo de abordagem, porém, não
investigava o medicamento em si, ou seja, deixava de
lado uma análise sobre as suas composições, e
desconsiderava inúmeros aspectos da farmácia advindos
de outras áreas da ciência como, por exemplo, a química,
a medicina, a botânica, a física e a biologia. (DIAS, 2005,
p. 2).
No século XX, devido principalmente à influência
da Escola dos Annales com o alargamento dos tipos de
documentação e a defesa da interdisciplinaridade para a
Diálogos Sobre História e Cultura 435

análise histórica, a historiografia farmacêutica alargou o


seu objeto de investigação. Do mesmo modo, o próprio
termo farmácia também passou a se referir tanto a uma
profissão quanto a uma área científica. Como profissão,
farmácia é definida pelas diversas atividades relacionadas
à preparação e ao comércio de medicamentos. Já como
área científica ela surge da convergência de várias
disciplinas, e tem como matéria principal a relação entre
os medicamentos e os organismos vivos. Em qualquer
perspectiva adotada em relação ao termo farmácia, o
medicamento tornou-se o ponto central de seu
significado. Atualmente, a historiografia considera que o
objeto da história da farmácia deve ser tanto o
farmacêutico quanto o medicamento, conforme indicam
estudos mais recentes (DIAS, 2005, p. 3).2
Diante disso, a proposta desse pequeno texto é
apresentar breves reflexões sobre o medicamento
justamente da época em que surgiram as primeiras
histórias da farmácia. Trata-se de observar as diferentes
transformações ocorridas com a matéria médica,
sobretudo em relação ao abandono da farmácia galênica e
ao envolvimento da química e da botânica no
alargamento do arsenal terapêutico e na composição dos
medicamentos. A ideia, portanto, é tentar compreender
como o medicamento se utilizou dos avanços técnicos e
científicos do século XIX e alterou o modo como o ser
humano passou a cuidar das doenças. Afinal, há milhares
de anos o ser humano tem utilizado plantas, minerais e
2
Conferir, na historiografia farmacêutica brasileira, o livro
recentemente publicado de minha autoria “A Institucionalização da
farmácia brasileira: Rio de Janeiro e Bahia, 1808-1891” (Editora
Fiocruz). Disponível em: https://books.scielo.org/id/zzvdf. Acessado
em 17/12/2023.
Diálogos Sobre História e Cultura 436

animais com propósitos terapêuticos, entrelaçando a


história do medicamento com a própria história do
homem.

1. A farmácia entre o século XVIII e o


século XIX

Na historiografia farmacêutica é praticamente um


consenso que a transição entre o século XVIII e o século
XIX foi um marco para a farmácia e o medicamento. A
partir desse recorte temporal, a farmácia começou a
deixar de se identificar somente como uma arte prática –
como há séculos vinha sendo caracterizada – 3 e ficou
cada vez mais próxima de se apresentar como uma
ciência experimental. Uma ciência, a propósito,
interdisciplinar e estreitamente relacionada com os
aspectos inovadores de outras áreas científicas, tais como
a química, a biologia, a física e a medicina (PITA, 1996,
p. 13).
Como veremos a seguir, graças especialmente à
química lavoisieriana e à biologia lineana, a farmácia
teve condições de se reestruturar de acordo com os
moldes do experimentalismo moderno e o medicamento
passou a contar com um diverso e ampliado número de
substâncias medicinais. Além disso, depois que passou a
empregar apenas a parte ativa das plantas em sua

3
José Pedro Sousa Dias, em seu estudo sobre a farmácia portuguesa
no Setecentos, destaca que “a inclusão dos boticários no Livro dos
Regimentos dos Oficiais Mecânicos da cidade de Lisboa (1572) não
deixa margens para dúvidas” acerca do caráter desta profissão
(DIAS, 2007, p. 179).
Diálogos Sobre História e Cultura 437

composição, o medicamento se tornou bem mais


eficiente (PITA, 1996, p. 14). Também foi a partir do
século XIX que se passou a requerer diferentes
conhecimentos, técnicas e habilidades dos manipuladores
de remédios, que até então eram ensinados apenas por
meio de um aprendizado prático da arte de formular
(DIAS, 1994, p. 55).
Passou-se a demandar, por exemplo, que eles
fossem instruídos em relação às características teóricas
da matéria médica e ao funcionamento do medicamento
no organismo, algo que até então era considerado apenas
de interesse dos médicos. Foi justamente no âmbito dessa
mudança que se estabeleceu um novo profissional da
farmácia, o farmacêutico diplomado em cursos
superiores, abandonando de vez o boticário e suas
costumeiras cartas de licença (PERUCHI, 2023, p. 14-
15).4 Portanto, alguns eventos ocorridos entre o século
XVIII e o XIX influenciaram diretamente o modo como
os medicamentos passaram a ser produzidos e
impulsionaram o surgimento do farmacêutico.
Mas, no que diz respeito especificamente ao
medicamento, quais são as grandes mudanças verificadas
entre a passagem do século XVIII para o XIX? Em
primeiro lugar, após ser abalada por Paracelso, pelas
doutrinas médicas da iatroquímica e da iatromecânica e,
ainda, pela escola médica de Boerhaave (predominante
no século XVIII), a farmácia galênica foi deixada de lado
e efetivamente substituída mil e quinhentos anos depois.
Na sequência aparecem a química lavoisieriana e
a botânica lineana. A primeira lançou as bases para uma
4
No Brasil, os primeiros cursos de farmácia foram criados em 3 de
outubro de 1832 após as Academias Médico-Cirúrgicas serem
renomadas Faculdades de Medicina (BRASIL, 1874, p. 89).
Diálogos Sobre História e Cultura 438

inédita compreensão dos fenômenos químicos,


influenciando a investigação química e de outras ciências
aplicadas, nomeadamente a farmacêutica, e
estabelecendo uma nova nomenclatura química. Já a
segunda, a partir de seu sistema binominal de
classificação das espécies vegetais, levou a história
natural e a botânica ao grau de consistência científica e
ordenou as plantas medicinais conforme esse sistema.
Além disso, a química e a botânica impulsionaram de tal
modo os estudos da matéria médica que cada vez mais
tornou-se possível observar todas as partes pelas quais
cada uma das substâncias era formada. Daí,
compreendeu-se melhor que o princípio terapêutico se
encontrava somente em uma das pequenas partes da
planta, a qual passou a ser extraída e empregada nas
composições medicamentosas.
Fecham a lista das mudanças mais importantes
verificadas nesse tempo a medicina preventiva e as
farmacopeias nacionais oficiais. A medicina preventiva
começou a se organizar quando a medicina deixou de ser
uma disciplina relacionada às ciências filosóficas e
naturais e passou a defrontar problemáticas relacionadas
à organização social, à economia e à sanitarização das
cidades. As farmacopeias, por sua vez, aparecem ao lado
dessa medicina preventiva, e podem ser consideradas
como um instrumento do Estado para a regularização da
saúde pública.
Como será abordado a seguir, todas essas
mudanças verificadas entre a passagem do século XVIII
Diálogos Sobre História e Cultura 439

e o XIX contribuíram para o surgimento do medicamento


da farmácia dita científica do século XIX.5

O fim do galenismo

Desde que Paracelso (1493-1541) desenvolveu no


século XVI a primeira corrente médica europeia oposta à
teoria dos humores de Hipócrates, o sistema médico-
farmacêutico galênico começou a ser colocado cada vez
mais de lado (MEZ-MANGOLD, 1971, p. 112). No
entanto, ele só perdeu o seu lugar de destaque no decorrer
do século XVIII com o fortalecimento de outras duas
doutrinas médicas: a iatroquímica e a iatromecânica.
Enquanto a primeira propunha uma interpretação química
dos processos fisiológicos, patológicos e terapêuticos, a
segunda doutrina defendia uma interpretação através de
leis físicas e mecânicas (DIAS, 2015, p. 50-53).
A farmácia galênica foi organizada no século II
pelo médico grego Cláudio Galeno (129-217 d.C.).
Galeno, posteriormente denominado “pai da farmácia”,
era partidário da doutrina médica dos humores de
Hipócrates6 e seu conhecimento das drogas simples vinha
principalmente de Pedânio Dioscórides (40-90 d.C.), um
médico do exército romano que escreveu aquele que é

5
É importante destacar que esse texto partiu das mesmas mudanças
observadas por João Rui Pita em seu livro “História da farmácia
(Minerva, 2000)”.
6
Hipócrates (460-377 a.C.) preconizou que o corpo humano era
composto por quatro humores, que correspondiam a quatro
categorias de matéria (bile negra, sangue, bile amarela e fleuma).
Para ele, a saúde significava que esses humores estavam em perfeito
equilíbrio.
Diálogos Sobre História e Cultura 440

considerado o maior guia farmacêutico da Antiguidade:


Materia Medica (PITA, 2000, p. 57).

Figura 1.
Retrato de Galeno, médico grego. Gravura do século XVIII.
Fonte: Lithograph by Pierre Roche Vigneron, 1865.

Dividida em cinco volumes, essa obra foi


considerada a maior autoridade em medicamentos e
modelo para as farmacopeias durante dezessete séculos.
Nela, encontram-se descritas o habitat e as
correspondentes botânicas, as propriedades terapêuticas,
uso médico, quantidades e dosagens, instruções sobre a
colheita, preparação e armazenagem de
aproximadamente seiscentas plantas, trinta e cinco
produtos animais e noventa minerais. Com essa obra,
Dioscórides foi o pioneiro da farmacologia, a ciência que
estuda as ações de substâncias químicas sobre os seres
vivos, mas que só foi assim denominada em meados do
século XIX (PITA, 2000, p. 58).
Galeno, um século mais tarde e baseando-se na
obra de Dioscórides, dedicou-se às propriedades e à
composição dos medicamentos simples e compostos, e
Diálogos Sobre História e Cultura 441

apresentou a sua ideia em De methodo Medendi, uma


obra composta por 14 livros e provavelmente escrita ao
longo de trinta anos. Foi Galeno também quem
introduziu um sentido estritamente terapêutico ao
fármaco. Até então, entre os antigos, havia grande
confusão entre a definição de fármaco e de alimento,
mas, a partir dele, estabeleceu-se que fármaco é aquele
que produz uma alteração no organismo, enquanto o
alimento é aquele que atua originando um incremento no
corpo (GUILLÉN, D. G.; ALBARRACÍN, A;
ENTRALGO, P. L.; ARQUIOLA, E.; MONTIEL, L.;
PESET, J. L., 1993, p. 59).
A despeito disso, a maior contribuição de Galeno
foi a classificação dos medicamentos segundo seus
efeitos farmacológicos, baseando-se nas qualidades da
patologia humoral. Ele organizou a farmacoterapia da
patologia humoral num sistema de procedimentos e
regras rígidas e dogmáticas. Nesse sistema, os
medicamentos foram organizados em três grupos: os
simples, que tinham apenas uma qualidade (frio, calor,
umidade ou secura), os compostos, que apresentavam
mais de uma qualidade, e os que possuíam uma ação
específica (laxativos, eméticos, diuréticos etc.) (BASSO,
2004, p. 54-55).
Quanto à explicação para o surgimento das
doenças e ao emprego dos medicamentos, Galeno, um
seguidor de Hipócrates, acreditava que a restauração dos
humores corporais deveria ocorrer pela administração de
polifármacos, que, em sua grande maioria, eram
purgativos, ou seja, remédios cujo princípio terapêutico
era limpar o organismo. No decorrer dos anos, a farmácia
galênica, que promovia a utilização de drogas clássicas,
Diálogos Sobre História e Cultura 442

sobremaneira as de origem vegetal e que já tinham sido


estudadas por Galeno ou outros autores clássicos, foi
adaptada e perdendo as suas características originais.
Duas mudanças foram mais significativas: o abandono
dos polifármacos e a ampliação do arsenal terapêutico
disponível (PITA, 1996, p. 16). Portanto, diante da
emergência de novas doutrinas médicas e do surgimento
de novas formas terapêuticas, a farmácia galênica acabou
substituída.
Depois de Paracelso buscar uma explicação para
as doenças em torno de especulações filosóficas e
promover os medicamentos químicos, onde predominava
a inclusão de sais metálicos introduzidos via interna
(PITA, 1996, p. 17), as doutrinas médicas da iatroquímica
e da iatromecânica igualmente abriram o caminho para o
fim do galenismo. Na iatroquímica, durante o século
XVII, Jan Baptista van Helmont (1579-1644) defendeu,
contra a teoria do desequilíbrio humoral, a existência de
agentes químicos específicos das doenças. Franciscus
Sylvius (1614-1672), também conhecido por Franz de le
Boe, elaborou uma fisiologia baseada em processos de
fermentação e de reações de ácidos e bases. Para ele, a
enfermidade era resultado do excesso de acidez ou
alcalinidade. E, ainda, o britânico Thomas Willis (1621-
1675) expôs teorias parecidas com as de Sylvius na sua
obra Pharmaceutice rationalis (1674-1675), ao explicar a
ação dos medicamentos desconsiderando as justificativas
de Galeno (DIAS, 2015, p. 50-51).
A iatromecânica teve os seus princípios definidos
por Santorio Santorio (1561-1636) René Descartes
(1598-1650) e Giovanni Borelli (1608-1679). O primeiro
deles inventou instrumentos para o diagnóstico clínico,
Diálogos Sobre História e Cultura 443

como o termômetro graduado, e estabeleceu


quantitativamente as bases do metabolismo basal. Já
Descartes apresentou o homem como uma máquina física
com alma imaterial em seu livro Traité de l’homme
(1662), considerado o primeiro texto de fisiologia da
história. E Borelli defendeu a aplicação do modelo físico-
matemático de Galileu à medicina (DIAS, 2015, p. 52-
53). Para a iatromecânica, ao considerar o organismo
humano como uma máquina, as noções de saúde e de
doença dependiam de uma interpretação fisicista.
Embora tenha sido bastante influenciado pela
iatromecânica, o médico holandês Hermann Boerhaave
merece aqui um lugar de destaque porque ele manteve
uma posição empirista e estabeleceu uma escola médica.
Para ele, as teorias médicas sobre patologia deviam ser
elaboradas de forma indutiva mediante a observação
clínica das doenças, em vez de serem produzidas a partir
dos pressupostos teóricos de qualquer sistema (DIAS,
2015, p. 53). A doutrina estabelecida por Boerhaave, na
qual o hospital era considerado a melhor cadeira da
medicina, foi a mais proeminente em todo o século
XVIII, atraindo muitos estudiosos para o seu seio e
enterrando definitivamente o galenismo (PITA, 1996, p.
19).

A química lavoisieriana e a botânica lineana

A despeito de possuírem características contrárias


ao galenismo, tais doutrinas médicas ainda mantinham
alguns traços das antigas teorias humorais e não se
referiam à química científica, que ganhou fôlego quando
os trabalhos de Antoine-Laurent Lavoisier (1743-1794) e
Diálogos Sobre História e Cultura 444

de outros químicos no final do século XVIII lançaram as


bases das novas doutrinas que influenciaram
decisivamente a farmácia e originaram uma nova maneira
de trabalhar com os medicamentos no século posterior
(PERUCHI, 2023, p. 15). Desse modo, uma terceira
mudança verificada no panorama científico médico-
farmacêutico entre os séculos XVIII e XIX deveu-se à
denominada revolução química, a qual elevou a química
à categoria científica.
Em torno do nascimento dessa química científica,
ou química moderna, estiveram cinco questões
principais: a) o novo conceito de elemento químico; b) o
problema da combustão; c) a nomenclatura química; d) a
conservação da matéria; e) as leis ponderais. Os estudos
em gases, iniciados em meados do século XVIII, foram o
ponto de partida para esses questionamentos. O escocês
Joseph Black (1728-1799), em 1754, descobriu o dióxido
de carbônico, o qual denominou “ar fixo”. Em 1765,
Henry Cavendish (1731-1810) caracterizou o “ar
inflamável” (hidrogênio), determinou o seu peso
específico e obteve água pela sua combinação com o ar.
Pouco tempo depois, Joseph Priestly (1733-1804) isolou
o “ar ácido marinho” (o ácido clorídrico), o “ar alcalino”
(amoníaco), entre outros, e descobriu o oxigênio, ao qual
denominou “ar flogisticado” (PITA, 1996, p. 22).
Todas essas descobertas significavam um grande
avanço para a química, mas os seus descobridores eram
partidários da doutrina química do flogisto de Georg
Ernst Stahl (1659-1734), cuja raiz ainda estava na
alquimia. Em linhas gerais, eles acreditavam que a
química estava sujeita à especulação filosófica em torno
da natureza dos fenômenos químicos e entendiam que
Diálogos Sobre História e Cultura 445

algo se desprendia da matéria durante a combustão, o


denominado flogisto. É justamente aí que entra a
inovação de Lavoisier. Esse, ao trabalhar com a
calcinação de metais, teria descoberto que o oxigênio era
fundamental para as reações de combustão, e que em
qualquer reação química a quantidade de matéria era
igual antes e depois da reação, afastando as últimas
concepções alquímicas de que a teoria do flogisto
derivava (PITA, 1996, p. 22; PERUCHI, 2023, p. 16).
Lavoisier, assim, baseando-se na quantificação da
matéria e usando uma balança na prática laboratorial,
propôs que em qualquer reação química a quantidade de
matéria é igual antes e depois da reação. Essa ideia se
tornou uma lei da química, e foi fundamental no
estabelecimento das chamadas leis ponderais (PITA,
1996, p. 24). As leis ponderais são generalizações sobre
as massas de todos os participantes (reagentes e
produtos) de uma reação química. Entre essas leis estão a
da conservação das massas de Lavoisier, a das
proporções definidas de Joseph Louis Proust (1754-1826)
e a das proporções múltiplas de John Dalton (1766-
1844).
Todo esse rigor quantitativo lavoisieriano
permitiu que outros problemas da química também
fossem resolvidos, nomeadamente a questão da definição
de elemento químico e a da nomenclatura química. Sobre
o elemento químico, Lavoisier especificou que as
substâncias elementares eram aquelas que não podiam
mais se decompor, isto é, aquelas que já haviam chegado
à sua unidade mínima, como o hidrogênio, por exemplo.
Já quanto à nomenclatura química, Lavoisier, em parceria
com Guyton de Morveau (1737-1816), Antoine-François
Diálogos Sobre História e Cultura 446

Fourcroy (1755-1809) e Claude-Louis Bertholet (1748-


1822), lançou as bases da nova linguagem no livro
Méthode de Nomenclature Chimique, publicado em 1787.
Após essa reestruturação da linguagem química, passou a
haver um esforço para que se igualmente alterassem os
próprios nomes dos medicamentos, pois não fazia mais
sentido denominá-los por termos que nada tinham a ver
com as suas composições (PITA, 1996, p. 25; PERUCHI,
2023, p. 16).

Figura 2.
Méthode de nomenclature chimique. Paris: Chez Cuchet, 1787.
Fonte: Bibliothèque Nationale de France.

A constituição da química como disciplina


científica ocorreu no final do século XVIII e princípio do
XIX. Entre as contribuições da chamada revolução
química foi mostrar como uma série de elementos
constantes são componentes básicos de toda a matéria e
como esses elementos se combinam e se comportam
Diálogos Sobre História e Cultura 447

segundo leis científicas que podem ser conhecidas. Além


disso, percebeu-se que os fatos e as leis da química
poderiam ser observados a nível orgânico e inorgânico e,
por isso, a nova ciência se tornou imprescindível para os
aspectos terapêuticos e farmacológicos da medicina
(GUILLÉN, D. G.; ALBARRACÍN, A; ENTRALGO, P.
L.; ARQUIOLA, E.; MONTIEL, L.; PESET, J. L., 1993,
p. 180).
As investigações na área da botânica e de história
natural, assim como no campo da química, foram
fundamentais para a farmácia e o medicamento do século
XIX. Devido ao seu sistema classificativo binominal das
espécies vegetais, apoiado nos órgãos reprodutores, o
médico sueco Carl von Linné (1707-1778) foi o grande
nome da botânica do século XVIII. Com esse sistema, os
vegetais passaram a ser divididos em classes, ordens,
famílias, gêneros e espécies, instituindo-se uma
classificação rigorosa de um modo simples, prático e
acessível, bem diferente das usuais descrições botânicas
vigentes até então. Depois de Linné, tornou-se
igualmente possível incluir espécies novas e
desconhecidas sem qualquer prejuízo para a
classificação. O seu trabalho de maior divulgação foi
Philosophia Botanica impresso em 1751 (PITA, 1996, p.
26; PERUCHI, 2023, p. 17).
Diálogos Sobre História e Cultura 448

Figura 3.
Philosophia Botanica. Viennae: Joannis Thomae Trattner, 1755.
Fonte: New York Botanical Garden Library.

O sistema taxonômico de Linné também


beneficiou a medicina e a farmácia, especialmente na
área da matéria médica, pois permitiu classificar as
plantas de interesse terapêutico. Com isso, os
profissionais da farmácia puderam ter mais confiança no
uso das plantas medicinais, porque consultariam mais
rapidamente as suas respectivas propriedades e
aplicações. Portanto, o rigoroso sistema de classificação
dos elementos e a interpretação das reações químicas,
impulsionado pela química em finais do século XVIII,
também foram sentidos na classificação dos vegetais. Tal
sistema, a propósito, mostrou-se fundamental para o
domínio farmacêutico porque contribuiu para o
fortalecimento da farmácia como uma área científica e
experimental. A química e a botânica, assim, foram as
ciências mais utilizadas na renovação da ciência
Diálogos Sobre História e Cultura 449

farmacêutica a partir do final do século XVIII (PITA,


1996, p. 27).

O isolamento dos princípios ativos

Após a revolução química iniciada por Lavoisier e


seus seguidores, especialmente o estabelecimento da
nova nomenclatura, a teoria da combustão e a
demonstração efetiva da lei da conservação da massa, as
bases da ciência química moderna estavam lançadas
(BASSO, 2004, p. 150). Os consecutivos estudos
analíticos de diferentes produtos medicinais conseguiram
isolar o princípio ativo de cada substância, em particular
as substâncias vegetais, constituintes de grande número
de produtos inativos – e inclusive nocivos –, para que
somente a parte eficiente fosse empregada na formulação
medicamentosa (GUILLÉN, D. G.; ALBARRACÍN, A;
ENTRALGO, P. L.; ARQUIOLA, E.; MONTIEL, L.;
PESET, J. L., 1993, p. 180).
O isolamento das substâncias ativas foi iniciado
em 1803 pelo farmacêutico e químico francês Jean-
François Derosne (1774-1855). Na ocasião, ele isolou do
ópio um produto, primeiramente conhecido como “sal de
Derosne”, e mais tarde como narcotina. Dois anos depois,
em parceria com Friedrich Sertürner (1783-1841), a
morfina também foi extraída do ópio. No início da
década seguinte, depois de vários experimentos com
cascas de cinchona e baseando-se nas recentes
descobertas da época – como a do doutor Andrew
Duncan Jr. que saiu no Journal of Natural Philosophy,
Chemistry, and the Arts em 1803 –, o médico e químico
Diálogos Sobre História e Cultura 450

português Bernardino António Gomes (1768-1823)


extraiu a cinchonina em 1810.
A emetina foi identificada na ipecacuanha, uma
árvore natural do Brasil, pelos farmacêuticos franceses
Pierre Joseph Pelletier (1788-1842) e François Magendie
(1783-1855), em 1817. Pelletier e o também
farmacêutico francês Joseph Bienaimé Caventou (1795-
1877) encontraram a veratrina, em 1819, em plantas da
família dos lírios, nomeadamente nos gêneros Veratrum e
Schoenocaulon. Em 1820, a cafeína foi retirada de
plantas como o café, o chá-preto e a erva-mate pelo
químico alemão Friedlieb Ferdinand Runge (1794-1867),
e a quinina, o segundo princípio ativo da casca da
cinchona, também foi isolada pelos referidos Pelletier e
Caventou. Por apresentarem um caráter básico, essas
substâncias foram denominadas alcaloides e a elas
seguiram-se muitas outras em todo o século XIX
(CARRARA JR., E. & MEIRELLES, H. 1996, p. 51-
52).7
Extraídas do ópio, a narcotina e a morfina
possuem uma atividade narcótica e analgésica muito
potente, e são frequentemente administradas por via
subcutânea ou sob a forma de xarope. A cinchonina foi o
primeiro princípio ativo obtido da casca de quina ou
cinchona, pertencente ao gênero Cinchona da família
Rubiaceae, que abrange cerca de 40 espécies. Trata-se de
um alcaloide de gosto amargo que tem propriedades
antitérmicas, antimaláricas e analgésicas. Depois da
7
No Brasil, o boticário Ezequiel Corrêa dos Santos isolou e extraiu o
primeiro princípio ativo de uma planta nativa. Em 1838, ele isolou a
pereirina das cascas de pau-pereira, uma droga vegetal que vinha
sendo experimentada nos sintomas de febres intermitentes
(PERUCHI, 2023, p. 201).
Diálogos Sobre História e Cultura 451

cinchonina, igualmente extraiu-se da referida casca, a


quinina, a quinoidina, o quinino e outros. Já a emetina,
como indica o seu nome, é um emético, ou seja, um
medicamento que provoca vômitos, mas também pode
ser empregada como expectorante. Sob forma de tintura,
a veratrina é normalmente utilizada como antiparasitário
e, sob a forma de pomada, no tratamento de dores
reumatismais e nevrálgicas. A cafeína é uma substância
estimulante do sistema nervoso e pode ser utilizada para
inibição do sono, diminuição da sensação de fadiga e
analgésico.
As imagens abaixo mostram duas dessas plantas
que tiveram os princípios ativos extraídos, acompanhadas
das ilustrações das fórmulas estruturais de suas
substâncias ativas:

Figura 4.
Ilustração antiga da Cinchona Officialis de sua casca.
Fonte: Museu Universo da Farmácia.
Diálogos Sobre História e Cultura 452

Figura 5.
Fórmula estrutural da quinina.
Fonte: Museu Universo da Farmácia.

Figura 6.
Ilustração antiga da Ipecacuanha (Cephaelis Ipecacuanha).
Fonte: Museu Universo da Farmácia.
Diálogos Sobre História e Cultura 453

Figura 7.
Fórmula estrutural da emetina.
Fonte: Museu Universo da Farmácia.

Então dispersos nas composições das drogas


vegetais, os princípios ativos das plantas passaram a ser
extraídos e se tornaram o principal substrato da
formulação medicamentosa. Daí, a pureza, a potência, a
padronização e a dosagem das drogas passaram a ser
controladas como nunca se havia imaginado (BASSO,
2004, p. 152). Assim, se até finais do século XVIII as
matérias-primas dos medicamentos eram provenientes
dos três reinos da natureza (vegetal, mineral e animal),
com a química orgânica e seus alcaloides, o arsenal
terapêutico disponível para a formulação dos remédios se
expandiu enormemente e chegou a um outro patamar.
Dito de outro modo, por milhares de anos, a
matéria médica utilizada era constituída pelas drogas
referidas pelos autores clássicos e pelas drogas que
paulatinamente eram descobertas pelas navegações
ultramarinas e incorporadas à farmácia. Porém, em
aproximadamente vinte anos, com o isolamento dos
Diálogos Sobre História e Cultura 454

princípios ativos, a farmacologia se viu diante de uma


desconhecida e frutífera matéria médica.

Figura 8.
Formulaire pour la Préparation et l’Emploi de Plusieurs Nouveaux
Médicaments. Paris: Chez Méquignon-Marvis, 1821.
Fonte: Bibliothèque Nationale de France.

O primeiro livro que expôs de maneira sistemática


as substâncias vegetais, sempre presentes e manuseadas
em pó ou em extrato, na forma de suas frações ativas, foi
Formulaire pour la Préparation et l’Emploi de Plusieurs
Nouveaux Médicaments (1821), de François Magendie.
A síntese laboratorial de compostos orgânicos
abriu o caminho para que produtos que somente a
natureza parecia poder produzir também fossem
fabricados. Em 1825, ao sintetizar a ureia em laboratório
a partir de substâncias minerais, o médico alemão
Diálogos Sobre História e Cultura 455

Friedrich Wöhler (1800-1882) comprovou que as


substâncias orgânicas não eram exclusivamente de
origem vegetal ou animal, mas também poderiam ser
artificiais. Assim, o laboratório se tornou de vez o palco
para a química imitar a natureza. Diante disso, impôs-se
firmemente a necessidade de os envolvidos com as
preparações medicamentosas adquirirem novas
habilidades e novos conhecimentos químicos, botânicos e
terapêuticos (PITA, 1996, p. 29). Não bastava mais saber
apenas misturar e combinar pós e extratos, agora era
necessário saber realizar os inéditos procedimentos
laboratoriais.

Medicina preventiva e as farmacopeias

Os dois últimos eventos significativos para a


farmácia ocorridos entre o final do século XVIII e início
do XIX referem-se a como os Estados nacionais
passaram a encarar as ciências médicas, a saber: o
desenvolvimento da medicina preventiva e as legislações
sanitárias; e publicação de farmacopeias que pretendiam
ser oficiais e incontornáveis para a atividade
farmacêutica de cada país.
No final do século XVIII, as alterações políticas,
sociais e econômicas suscitaram o aparecimento das
denominadas disciplinas médicas socialmente
condicionadas, tais como a higiene, a medicina legal e a
medicina militar. A partir desse momento, as
preocupações médicas que eram restritas às questões
terapêuticas, passaram a incluir a prevenção. É claro que
as preocupações preventivas não surgiram somente em
finais do século XVIII. Agora, no entanto, a higiene
Diálogos Sobre História e Cultura 456

passou a integrar o seio das disciplinas médicas e a ser


vista como uma disciplina fundamental dentro das
ciências sanitárias (PITA, 1996, p. 30).
Considerado o fundador do sanitarismo moderno,
Johan Peter Frank (1745-1821), médico vienense, foi o
primeiro a falar de medicina preventiva e a defender que
as doenças poderiam não ser transtornos humorais.
Segundo ele, as patologias poderiam ter como causa a
alteração do equilíbrio social. Impregnado do ideal
iluminista, Frank argumentava que para a manutenção do
equilíbrio era necessário policiar e vigiar a população, e o
Estado, por seu turno, tinha um papel fundamental nesse
processo. Toda essa característica higienista pautou as
discussões médicas ao longo do século XIX, inclusive no
Brasil. Por aqui, os médicos sanitaristas participaram
efetivamente da elaboração de diversas leis que
buscavam normatizar e sanitarizar a sociedade brasileira
daquele tempo (GONDRA, 2004).
No início do século XIX, um dos aspectos
clínicos mais visíveis dessa prevenção pública contra as
doenças foi a vacinação antivariólica. No século XVIII,
período em que a varíola teria atingido o ápice da sua
contaminação, explicado pelo aumento da população
mundial e pelas rotas comerciais, estima-se que 40
milhões de vidas foram levadas no mundo todo; em
alguns anos, aliás, ela teria sido responsável pela morte
de mais de 10% dos habitantes do mundo (SIMMONS,
2004, p. 191; PERUCHI, 2021, p. 108).
Em 1798, o médico escocês Edward Jenner
(1749-1823) publicou An Inquiry into the Causes and
Effects of the Variolae Vaccinae, onde registrou a
descoberta de um método preventivo contra as epidemias
Diálogos Sobre História e Cultura 457

de varíola. A sua proposta não se baseava na tentativa de


implantação da doença benigna, como ocorria com a
variolização e nem sempre tinha resultados positivos. Sua
ideia era evitar a varíola do homem pelo contato com
uma outra doença, conhecida como cow-pox.

Figura 9.
An inquiry into the causes and effects of the variolae vaccinae. By
Edward Jenner. Springfield: Samuel Coolley, 1802.
Fonte: National Library of Medicine.

Durante a década de 1770, Jenner observou que,


ao terem contato com os bicos das tetas das vacas, os
ordenhadores de gado desenvolviam “certas empolas ou
bexiguinhas cheias de humor” semelhante ao cow-pox
original, porém não faziam mal a eles. Na verdade, ele
notou que essas mesmas pessoas, ao terem contato com
Diálogos Sobre História e Cultura 458

pessoas doentes, não contraíam a varíola (PERUCHI,


2021, p. 114).
A descoberta da vacinação antivariólica de Jenner
foi o ponto de partida para a medicina preventiva em
diversas localidades, como o Brasil, e para a
experimentação fisiológica que largamente se
desenvolveram ao longo do século XIX, e os governos
tiveram um papel fundamental. Muitos livros ou mesmo
artigos de jornais foram publicados pelos médicos a
pedido dos Estados nacionais. A ideia era que as mais
recentes descobertas médicas fossem divulgadas à
população e que essa se adequasse às novas realidades
como, por exemplo, a vacinação.

Figura 10.
Imagem do livro de Henriques de Paiva indicando os tamanhos das
pústulas e os modos de aplicação da doença.
Fonte: Fundação Biblioteca Nacional.
Diálogos Sobre História e Cultura 459

Em língua portuguesa, o médico e boticário


Manoel Joaquim Henriques de Paiva (1752-1829) foi o
responsável por escrever uma obra sobre a vacina a fim
de torná-la conhecida e convencer portugueses e
brasileiros, os quais inclusive sofriam mais com a
doença. Saiu em 1801, por ordem do Príncipe Regente, o
Preservativo das bexigas e dos seus terriveis estragos.
De fato, a vacinação foi a base da explosão
científica que a higiene passou naquele tempo (PITA,
1996, p. 34). A vacinação também contribuiu para a
propagação da noção de que medicamentos mais
específicos e exclusivamente preparados para uma
determinada doença eram melhores do que aqueles que
possuíam uma diversidade terapêutica, deixando cada vez
mais de lado os usuais polifármacos.
Uma outra forma de tutelar ao Estado a solução
de problemas sanitários foi por meio das farmacopeias
nacionais e oficiais nos finais do século XVIII. Por
definição, “as farmacopeias são livros oficiais com valor
legal que acompanham a evolução científica e
tecnológica dos conhecimentos ligados aos
medicamentos, garantindo a atualização da qualidade dos
mesmos e salvaguardando assim, a saúde pública”
(CONCEIÇÃO J.; PITA, J. R.; LOBO, J. S.;
ESTANQUEIRO, M., 2014). Em séculos anteriores, a
literatura farmacêutica já contava com farmacopeias, mas
a publicação mais intensa desse tipo de livro ocorreu no
decurso do século XVIII, num momento em que a
administração pública assumiu os propósitos sanitários e
encontrou nas farmacopeias uma grande aliada (PITA,
1996, p. 35).
Diálogos Sobre História e Cultura 460

Além de reforçarem a tutela do Estado, as


farmacopeias publicadas entre a virada do século XVIII
para o XIX indicam, devido ao seu conteúdo, o grau de
adesão dos profissionais da farmácia às mais modernas
teorias científicas da época como, por exemplo, as
normas classificativas lineanas, a química lavoisieriana, o
uso de substâncias ativas na manipulação dos
medicamentos, entre outros.
Enfim, os eventos aqui narrados indicam tanto
rupturas de doutrinas médicas e farmacêuticas, como o
galenismo, mas igualmente observam o estabelecimento
da química científica e como ela fundamentou a farmácia
do século XIX, possibilitando a ampliação do arsenal
terapêutico disponível e tornando os medicamentos bem
mais eficientes – e por vezes mais perigosos. Do mesmo
modo, os eventos também evidenciam como o Estado
paulatinamente se utilizou da farmácia para vigiar e
sanitarizar a sociedade oitocentista. Em linhas gerais,
portanto, essa breve revisão do panorama científico
médico-farmacêutico de finais do século XVIII e início
do XIX contribui para uma melhor compreensão do
medicamento em período imediatamente posterior.

2. A farmácia e a terapêutica no século


XIX

Os avanços no domínio da química verificados na


primeira metade do século XIX, nomeadamente os
estudos da problemática dos radicais, a noção da série
homóloga, a isomeria, a descoberta de elementos pela
química orgânica (hidrogênio, azoto e oxigênio), entre
Diálogos Sobre História e Cultura 461

outros, foram decisivos para as modificações operadas na


farmácia, em particular, na área da terapêutica e da
farmacologia (PITA, 2000, p. 197-199).
O isolamento dos alcaloides, iniciado por Derosne
ao retirar a narcotina (1803) do ópio, o qual é obtido
realizando-se incisões na cápsula de uma planta quando
ainda verde, denominada Papaver somniferum, foi o
ponto de partida para uma nova etapa da farmácia: a
farmacologia. Depois dos princípios ativos, desenvolveu-
se rapidamente o conhecimento da composição química
dos seres vivos e abriu-se a necessidade de estudar o
efeito desses novos fármacos no organismo.
A farmacologia surgiu da necessidade de análise e
comprovação experimental da eficácia dos medicamentos
(VALLE, 1978, p. 19). Portanto, ela é a ciência que
estuda os efeitos dos medicamentos no organismo, desde
a absorção do fármaco pelo corpo até os seus efeitos
bioquímicos e fisiológicos. Ela engloba diversos
aspectos, incluindo a origem, composição, propriedades
físicas e químicas, mecanismos de ação, absorção,
metabolismo, excreção, efeitos terapêuticos e efeitos
adversos dos medicamentos. A química, assim, mais uma
vez se apresentou como um saber profícuo para a
aumentar o campo de estudo e conhecimento da
farmácia.
Entre as áreas de estudo da farmacologia estão a
farmacodinâmica, a toxicologia, a farmácia clínica e a
farmacologia experimental. As bases da farmacodinâmica
moderna, que estuda os efeitos bioquímicos e fisiológicos
dos medicamentos e suas relações com os mecanismos de
ação, por exemplo, foram dadas pelo químico alemão
Justus von Liebig (1803-1873), professor da
Diálogos Sobre História e Cultura 462

Universidade de Giessen. Em 1842, esse especialista em


química orgânica publicou o tratado Die organische
Chemie in ihrer Anwendung auf Physiologie und
Pathologie, no qual ele estudou a fisiologia e a patologia
dos seres vivos e assentou as bases do método
experimental em biologia. Ele também se dedicou ao
estudo dos alcaloides e definiu o conceito de radical
orgânico, após demonstrar a presença de um concreto
grupo químico presente com igual atividade em um
amplo número de combinações orgânicas (GUILLÉN, D.
G.; ALBARRACÍN, A; ENTRALGO, P. L.;
ARQUIOLA, E.; MONTIEL, L.; PESET, J. L., 1993, p.
181).

Figura 11.
Imagem de Justus von Liebig, de autoria de Franz Hanfstaengl
(século XIX).
Fonte: Wikipedia (domínio público).

A partir desse trabalho de síntese orgânica e


inorgânica Liebig fez a sua maior colaboração para o
campo da fisiologia. Ele cunhou o conceito de
Diálogos Sobre História e Cultura 463

“metabolismo” para denominar as diversas ações


farmacológicas e químicas do organismo, criando as
bases da moderna farmacodinâmica (GUILLÉN, D. G.;
ALBARRACÍN, A; ENTRALGO, P. L.; ARQUIOLA,
E.; MONTIEL, L.; PESET, J. L., 1993, p. 181). A divisão
clássica dos alimentos em lipídios, protídeos e glucídios
também se deve a Liebig (PITA, 2000, p. 199).
Um outro contributo de Liebig foram as suas
doutrinas sobre os ciclos do nitrogênio e do carbono, que
permitiram uma nova e totalmente moderna aproximação
para o estudo das diferentes ações farmacológicas. A
técnica de experimentação animal também foi
desenvolvida para esses estudos, e a fisiologia e a
toxicologia desempenharam um papel de grande
importância. O desenvolvimento dessa técnica contribuiu
para o conhecimento da ação dos produtos químicos nos
seres vivos, dando origem a outra área de investigação: a
toxicologia.
O médico francês François Magendie foi pioneiro
na experimentação fisiológica. Em busca de dados
empíricos, ele iniciou o estudo da ação de diversas
substâncias sobre os seres vivos. Investigou, por
exemplo, a ação da estricnina, da morfina e da emetina.
Ele foi o primeiro a demonstrar a ação central da
estricnina nas rãs e procurar comprovar os efeitos dos
medicamentos ficando à cabeceira dos doentes, servindo-
se inclusive do que chamamos atualmente de efeito
placebo, isto é, de produtos inócuos, a fim de determinar
efetivamente a ação do medicamento (VALLE, 1978, p.
30).
As técnicas desenvolvidas por Magendie serviram
de base para outros estudiosos da época, tornando-o no
Diálogos Sobre História e Cultura 464

criador da farmacologia experimental. O químico


espanhol Mateo José Buenaventura Orfila (1787-1853)
foi enormemente influenciado por Magendie para
desenvolver o campo da toxicologia moderna (PITA,
2000, p. 1999). Do mesmo modo, Claude Bernard (1813-
1878), aluno de Magendie, inspirou-se em seu professor
para criar a medicina experimental e iniciar a análise das
funções fisiológicas através da utilização de fármacos.
Bernard defendia que nas mesmas condições os fatos se
repetem tanto nas ciências dos corpos inertes quanto na
dos seres vivos (VALLE, 1978, p. 30; GUILLÉN, D. G.;
ALBARRACÍN, A; ENTRALGO, P. L.; ARQUIOLA,
E.; MONTIEL, L.; PESET, J. L., 1993, p. 182).
O estudo experimental dos medicamentos
alargou-se cada vez mais no decorrer do século XIX,
sobretudo pela sucessiva criação de departamentos
universitários dedicados a tais análises, e consagrou a
vinculação entre a farmacologia e a ciência natural. Karl
Gustav Mitscherlich (1805-1871), professor de
farmacologia em Berlim, aliou a química com a
experimentação animal de Magendie e estudou a ação
biológica de muitos fármacos e substâncias tóxicas, tais
como: acetato de chumbo; sulfato de cobre; preparados
de ferro; diuréticos; nitrato de prata; óleos etéreos; ácidos
acético, oxálico, tartárico, cítrico e bórico; e outros. É de
sua autoria o Lehrbuch der Arzneimittellehre publicado
entre os anos de 1837 e 1846 e reeditado em três volumes
entre 1847 e 1861.
Em 1847, o farmacêutico alemão Rudolf
Buccheim (1820-1879) fundou o primeiro instituto de
farmacologia na Universidade de Dorpat, na Estônia.
Desde as suas primeiras publicações, Jonathan Pereira's
Diálogos Sobre História e Cultura 465

Handbuch der Arzneimittellehre (1846-1848), Elements


of Materia medica, Ueber die Aufgabe der
Arzneimittellehre (1849) e Ueber pharmakologisches
Untersuchungen (1857), ele propôs a emancipação da
farmacologia em relação à terapêutica experimental.
Buchheim se dedicou à análise da ação
farmacodinâmica e do destino de vários fármacos no
organismo, incluindo purgantes, iodeto de potássio e
outros sais de potássio, anti-helmínticos, substâncias com
atividade sobre o sistema nervoso e muscular, o esporão
do centeio, óleo de fígado de bacalhau, alcaloides
midriáticos das solanáceas, assim como a eliminação dos
ácidos pela urina, a influência de certos agentes nos
processos fermentativos e a ação do ácido fênico e da
cânfora sobre o sistema nervoso. Em 1856, Buchheim
escreveu o primeiro ensaio apresentando a matéria
médica com base em analogias químicas e
farmacodinâmicas entre os medicamentos (ENTRALGO,
1993, 187).

Figura 12.
Rudolf Buchheim (1911).
Fonte: Wikipedia (domínio público).
Diálogos Sobre História e Cultura 466

O alemão também organizou, e colocou em


prática em diversos departamentos universitários, um
programa de estudos da farmacologia, o qual englobava
três recursos metódicos: 1) métodos químicos que
permitissem identificar a composição dos fármacos,
analisar suas transformações interorgânicas e monitorar a
eliminação de seus produtos residuais; 2) técnicas de
registro que viabilizassem a conversão da ação motora de
um fármaco sobre o organismo ou sistema principal em
um traçado passível de estudo científico; 3) métodos
experimentais, tanto macroscópicos quanto
microscópicos, que possibilitassem a localização precisa
do agente farmacológico ou tóxico em estudo
(ENTRALGO, 1993, 189).
Todas essas técnicas só foram possíveis de serem
aplicadas graças ao rápido desenvolvimento da química
depois de Dalton e Jacob Berzelius (1779-1848) e da
química fisiológica após Liebig, à invenção do
quimógrafo por Carl Ludwig (1816-1895), que permitiu
registrar os gráficos de pressão arterial e dos movimentos
respiratórios, assim como de outros aparelhos
registradores, e às investigações de Bernard que
sugestionaram o uso de métodos de fisiologia
experimental para a farmacologia (ENTRALGO, 1993,
189).
A farmacologia e suas respectivas áreas de
conhecimento desempenharam um papel crucial no
desenvolvimento de novos medicamentos, na
compreensão dos mecanismos de doenças e na
otimização do uso de medicamentos existentes para o
tratamento das doenças.
Diálogos Sobre História e Cultura 467

A partir da primeira metade do século XIX, a


técnica farmacêutica também passou por grandes
inovações, nomeadamente os primeiros sinais de
industrialização medicamentosa e o consequente
surgimento das especialidades farmacêuticas. O moinho
de Menier e o tambor de Petit começam a ser utilizados
para se atingir um melhor processo de pulverização. O
químico e farmacêutico alemão Johann Bartholomew
Trommsdorff (1770-1837) introduziu o vapor na
preparação de extratos, Ferdinand Wurzer (1765-1844)
lançou o banho-maria a temperatura constante e Karl
Friedrich Mohr (1806-1879) introduziu a balança para
determinar as densidades. Também nesse período a
técnica da percolação foi incorporada na obtenção de
preparações farmacêuticas. A percolação é especialmente
utilizada quando se deseja extrair compostos solúveis em
solventes a partir de materiais vegetais, como ervas,
raízes, cascas, ou outras partes de plantas (PITA, 2000, p.
200).
Importantes aprimoramentos foram igualmente
realizados nas pílulas e nos piluladores. Em 1838, o
farmacêutico francês François Achille Garrot (1794-
1876) introduziu o uso de gelatina para revestir pílulas
(PITA, 2000, p. 200).
Naquela época, as pílulas eram frequentemente
desagradáveis ao paladar e difíceis de engolir. O
revestimento com gelatina trouxe diversas melhorias ao
processo de administração de medicamentos. A camada
de gelatina tornava as pílulas mais suaves, facilitava a
deglutição e contribuía para mascarar o sabor
desagradável de muitos medicamentos. Depois da
gelatina, apareceram muitos outros revestimentos para
Diálogos Sobre História e Cultura 468

pílulas como, por exemplo, o revestimento com bálsamo-


de-tolu ou com queratina.

Figura 13.
Estojo com equipamento para fabrico de hóstias (comprimidos),
1873.
Fonte: Museu da Farmácia.

A introdução dessa nova dinâmica de rigor


quantitativo teve impactos imediatos na organização
interna das farmácias de manipulação. Por exemplo, os
almofarizes de grandes dimensões foram substituídos por
versões menores, e os almofarizes metálicos foram
gradualmente trocados pelos de vidro e porcelana. A
farmácia abandonou as marcas, mesmo aquelas de caráter
ornamental associadas ao empirismo da botica ou da
farmácia, passando a adotar uma estética intimamente
ligada ao rigor quantitativo das ciências laboratoriais
(PITA, 2000, p. 200).
No que diz respeito à produção medicamentosa a
principal inovação do século XIX, sobretudo em suas
últimas décadas, foi o desenvolvimento da indústria
farmacêutica. Datam dessa época o surgimento de
Diálogos Sobre História e Cultura 469

grandes laboratórios como Merck, Bayer, Parke-Davis e


outros. As raízes da Merck remontam ao século XVII
quando o boticário Friedrich Jacob Merck (1621-1678)
assumiu a propriedade Engel-Apotheke em Darmstadt,
em 1668.
Já no século XIX, Heinrich Emanuel Merck
(1794-1855), que havia estudado farmácia em Berlim e
Viena, assumiu os negócios da família. Merck, a partir de
1816, tornou-se diretor da Engel-Apotheke e passou a
isolar diversos alcaloides e a inventar uma série de
drogas. Em 1827, começou a fabricação das substâncias
ativas em grande quantidade, anunciando-as como um
“Gabinete de Inovações Farmacêuticas e Químicas”. Ele
e seus sucessores construíram gradualmente uma fábrica
químico-farmacêutica que produzia, além de matérias-
primas para preparações farmacêuticas, uma infinidade
de outros produtos químicos e medicamentos após 1890.

Figura 14.
Gravura da The Angel Pharmacy em Darmstadt (1668).
Fonte: Merck Group.
Diálogos Sobre História e Cultura 470

A Bayer teve seu início em 1863, em Barmen,


através de uma parceria entre Friedrich Bayer (1825-
1880), um vendedor de corantes, e Friedrich Weskott
(1821-1876), um tintureiro. Inicialmente, a empresa foi
estabelecida como uma produtora de corantes, refletindo
a prática comum da época. No entanto, a notável
versatilidade da química da anilina levou a Bayer a
diversificar seus negócios. Em 1899, a empresa
introduziu no mercado o composto ácido acetilsalicílico,
comercializado sob o nome de marca registrada Aspirina,
e entrou de vez no mercado farmacêutico.

Figura 15.
Folheto de divulgação da Aspirina.
Fonte: Museu Universo da Farmácia.

Juntamente com o avanço industrial, novas


formas farmacêuticas, como comprimidos, drágeas e
injetáveis, foram introduzidas, e as cápsulas foram
aprimoradas. Novos excipientes, como derivados do
petróleo (vaselina, parafina etc.), também surgem e
Diálogos Sobre História e Cultura 471

passam a ser utilizados. O desenvolvimento tecnológico


se refletiu na criação de novos equipamentos para a
produção tanto artesanal quanto industrial de
medicamentos. O modo de produção e as descobertas de
princípios ativos influenciaram as formas e os formatos
dos medicamentos.
Em grande parte, as tradicionais formas
farmacêuticas, que perduraram por milênios, deixaram de
ser utilizadas. Algumas foram extintas, como ceratos,
cerotos, espécies, eletuários, ripos, confeições, bolos,
chocolates, cigarros, vinhos, vinagres etc. Outras
passaram por renovações, como pomadas, elixires,
emulsões, linimentos, colírios, xaropes, enemas etc.
Algumas formas, como pílulas e poções, passaram a ter
pouca representatividade. As especialidades
farmacêuticas também começam a ganhar o lugar dos
medicamentos manipulados. Impulsionadas por
inovações científicas e tecnológicas, novas formas
farmacêuticas surgiram ao longo do século XIX e se
consolidaram no século XX, incluindo comprimidos,
cápsulas, injetáveis e suas diversas variantes.
No século XIX, a interseção entre a farmacologia
e as indústrias farmacêuticas desempenhou um papel
transformador na evolução da medicina e no panorama
da saúde pública. Este período testemunhou avanços
significativos no entendimento dos mecanismos de ação
de medicamentos e no desenvolvimento de compostos
terapêuticos inovadores. O surgimento das indústrias
farmacêuticas trouxe consigo não apenas uma mudança
na produção de medicamentos, mas também catalisou a
transição de métodos tradicionais para formulações mais
padronizadas e controladas.
Diálogos Sobre História e Cultura 472

Assim, a industrialização farmacêutica no século


XIX facilitou a produção em larga escala, tornando os
medicamentos mais acessíveis, e impulsionou a pesquisa
científica, consolidando a farmacologia como uma
disciplina fundamental. Essa simbiose entre a
farmacologia e as indústrias farmacêuticas estabeleceu as
bases para o progresso contínuo na descoberta e
produção de medicamentos, buscando, assim, o bem-
estar da sociedade.

Figura 16.
Especialidade Farmacêutica. Perolas Medicinaes, 1890.
Fonte: Museu da Farmácia.

Figura 17.
Especialidade Farmacêutica. Pipérazine Efervescente Midy, 1895.
Fonte: Museu da Farmácia.
Diálogos Sobre História e Cultura 473

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