Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Dossie Agroecologia

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 63

dossiê Da

agroecologIa na
América Latina
Um futuro necessário

RIO DE JANEIRO
Brasil
EXPEDIENTE

O dossiê “Agroecologia na América Latina – Um futuro necessário” foi concebido pelo grupo de coordenadores das
áreas de justiça socioambiental da Fundação Heinrich Böll, em 2019, tendo passado por muitos debates, investigações,
redações e reescritas, além da análise e intervenção por acadêmicos, jornalistas, de diagramadores e muitas outras
pessoas que foram consultadas pelas equipes da Fundação Heinrich Böll nos escritórios da América Latina. Por isso, os
artigos são uma construção coletiva e não há assinatura de autoria nos textos.

Colaboradores nesta publicação


Funcionários da Fundação Heinrich Böll:
Ingrid Hausinger (escritório de San Salvador, América Central);
Emilia Jomalinis, Marcelo Montenegro, Joana Simoni, Maureen Santos (escritório do Rio de Janeiro);
Dolores Rojas e Jenny Zapata (escritório do México);
Natalia Orduz Salinas (escritório da Colômbia);
Gloria Lilo (escritório do Chile);
Pablo Arístide (escritório da Argentina)

Colaboração científica:
Rodica Weitzman, Marcus Vinicius Branco de Assis Vaz (tradução para o espanhol das informações sobre o Brasil),
Dulce Espinosa e Luis Bracamontes (informações sobre o México), Julián Ariza, Irene Mamani Velazco,
Henry Picado Cerdas (Costa Rica), Corporación Ecológica y Cultural Penca de Sábila

Design gráfico e diagramação:


Corporación Proyecto NN (Colômbia), Domingos Sávio (Brasil)

Edição e correção de testes:


Corporación Proyecto NN, Poliana Dallabrida (Brasil), Red de coordinación en biodiversidad (Costa Rica),
Pablo Arístide, Joana Simoni, Emília Jomalinis

Autores convidados:
Giuseppe Bandeira, Julia Dolce, Nemo Augusto Moés Côrtes

Tradução e revisão em português:


Rosita Ueno

Edição finalizada em 2023 em português:


Julia Dolce, Marcelo Montenegro, Annette von Schönfeld
Fundação Heinrich Böll – escritório do Rio de Janeiro.

Este material é licenciado por Creative Commons "Atrribution-Share Alike 4.0Unported" (CC BY-SA 4.0).
Para o contrato de licença veja: https://creativecommons.org/licenses/by-sa/legalcode.
Para um resumo (não um substituto), veja http://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.en
Dossiê Da
agroecologIa na
América Latina Um futuro necessário

PRIMEIRA EDIÇÃO
2023
CONTEÚDO
6 EDITORIAL 21 AGROECOLOGIA URBANA
AGROECOLOGIA NA AMÉRICA LATINA: DIÁLOGOS ENTRE O CAMPO E A CIDADE
UM FUTURO NECESSÁRIO O antagonismo entre rural e urbano impacta
na negação das relações dinâmicas entre
8 13 TESES esses territórios, criando barreiras para a
AGROECOLOGIA NA AMÉRICA LATINA agricultura familiar e gerando desigualdades
sociais e insegurança alimentar. Movimentos
10 MOVIMENTO AGROECOLÓGICO agroecológicos têm produzido experiências que
DA PROPRIEDADE AGRÍCOLA À REDE visam tecer relações dignas e justas entre essas
A soberania alimentar e a defesa dos bens comuns duas geografias.
são lutas coletivas. A agroecologia fortalece
os processos territoriais de base camponesa, a 24 COMERCIALIZAÇÃO E
organização comunitária e a criação de redes, que DISTRIBUIÇÃO AGROECOLÓGICA
expressam a grande diversidade ecossistêmica DO CAMPO À MESA
e sociocultural da agricultura. Assim são Um dos maiores desafios da agroecologia é
construídas as trocas materiais e simbólicas entre a dificuldade técnica e material para que os
os diferentes sujeitos sociais, com o propósito de se alimentos produzidos no campo cheguem a
alcançar condições dignas de vida. outros consumidores. Para resolver essa situação,
foram criadas redes alternativas de distribuição,
12 JUVENTUDES AGROECOLÓGICAS circuitos solidários, mercados, feiras e outras
UMA PONTE ENTRE GERAÇÕES soluções como as comunidades que sustentam a
Após décadas imigrando para as cidades por agricultura.
não encontrarem oportunidades de estudos e
estabilidade profissional no campo, os jovens 27 SISTEMAS PARTICIPATIVOS DE GARANTIA
rurais da América Latina agora protagonizam MAIS QUE UM SELO DE CERTIFICAÇÃO
uma retomada da relação com seus territórios Os processos de certificação orgânica
de origem. Esse movimento é relacionado ao convencional de alimentos funcionam como
crescimento do interesse da juventude sobre as formas de controle e padronização que nem
práticas sustentáveis de produção agrícola, a sempre favorecem a agricultura de pequena
agroecologia. escala. A agroecologia propõe a descentralização
desses processos, sob a lógica de que o próprio
15 FEMINISMO E AGROECOLOGIA grupo de agricultores, agricultoras e as redes
SEM FEMINISMOS NÃO HÁ AGROECOLOGIA aliadas de consumidores são os mais indicados
É impossível pensar em um projeto de futuro para garantir a origem agroecológica dos
justo, sustentável e diversificado que não inclua as alimentos.
mulheres do campo, das águas e da floresta, pois
são elas que lideram a transformação do sistema 30 POLÍTICAS PÚBLICAS
agroalimentar na América Latina. É por isso que, POLÍTICAS AGROECOLÓGICAS
a partir do feminismo camponês e suas alianças, “DESDE ABAIXO”
as mulheres rurais e agricultoras têm um lema de Graças à pressão de movimentos e organizações
luta: sem feminismo não há agroecologia. que se articulam em torno da agroecologia e da
soberania alimentar, alguns países da América
18 CONHECIMENTO ANCESTRAL Latina avançaram na construção de marcos
SABERES E DIVERSIDADE BIOCULTURAL jurídicos e políticos rumo à transição a sistemas
As raízes mais fortes da agroecologia estão nos agroalimentares alternativos. Além disso,
princípios e nas práticas ecológicas, a partir das as crises econômicas, ambientais e políticas
quais mulheres e homens camponeses, indígenas forçaram os Estados a buscar formas sustentáveis
e afrodescendentes cultivam a terra, cuidam de produção de alimentos e de desenvolvimento
da natureza e geram conhecimento. Assim, o rural. No entanto, muitas leis e instituições
movimento considera urgente a proteção dos permanecem no papel ou não alcançam
saberes dessas comunidades. O futuro do planeta mudanças estruturais, sendo facilmente
depende disso. desmontadas a depender do governo.

4 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
34 MUDANÇAS CLIMÁTICAS 48 ÁGUA
AGROECOLOGIA PARA FREAR A CRISE DIREITO HUMANO E GESTÃO COMUM
Entre as populações mais vulneráveis à mudança A água é um bem comum esgotável, e o acesso a
climática estão os agricultores familiares e de ela é cada vez mais desigual. Esse direito essencial
pequena escala do sul global. Entretanto, muitos deve ir além da concepção da água como um
desses camponeses mostraram maior capacidade serviço individual mercantilizado. Para garantir
de adaptação graças à implementação de práticas esse direito, os Estados devem reconhecer os
sustentáveis, tanto aquelas que herdaram de saberes acumulados e as capacidades adquiridas
seus antepassados quanto aquelas que foram das comunidades para a gestão coletiva, seja
sistematizando em diálogo com outras famílias, para o consumo direto ou para a produção de
técnicos e cientistas que trabalham com o alimentos.
enfoque agroecológico.
51 TERRA E TERRITÓRIO
37 SOBERANIA ALIMENTAR OUTRAS FORMAS DE SE PENSAR O ESPAÇO
A AGROECOLOGIA COMO PILAR A distribuição desigual da terra é um problema
DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO histórico na América Latina. Organizações e
Os habitantes das áreas rurais, onde é produzida a movimentos sociais propõem uma defesa do
maior parte dos alimentos consumidos no mundo, território que vai além da luta pela terra, e
encontram-se, muitas vezes, em situação de inclui a proteção da água, das montanhas, da
insegurança alimentar. A fome e a má nutrição na biodiversidade, das sementes e dos patrimônios
América Latina, provocadas não pela carência de culturais e imateriais associados aos povos e aos
alimentos, mas pela ausência de direitos, refletem ecossistemas. A agroecologia é um elemento
a falta de garantias para a alimentação adequada articulador desta luta. Porém, essas organizações
e saudável de pessoas, famílias e comunidades. territoriais contra hegemônicas enfrentam uma
série de ameaças.
41 SAÚDE
AGROECOLOGIA E O CUIDADO COM A VIDA 55 REVOLUÇÃO VERDE
Desequilíbrios causados pelo sistema PROMESSAS DESCUMPRIDAS E
agroalimentar estão por trás de boa parte das IMPACTOS GRAVES
doenças. Para a agroecologia, a saúde das pessoas Pacote tecnológico e produtivo que transformou
depende do cuidado com o planeta, e por isso, completamente a agricultura mundial, a
são propostas formas saudáveis de interagir Revolução Verde trouxe consequências graves
como meio ambiente. A produção orgânica e para o meio ambiente, a saúde humana e a
a valorização das plantas medicinais, a partir autonomia de agricultores sobre seus territórios.
do resgate de conhecimentos ancestrais, estão
entre as estratégias promovidas por movimentos 59 BEM VIVER
agroecológicos para a garantia de mais saúde e VIDA DIGNA NO CAMPO
qualidade de vida. Propriedades rurais prósperas, organizações
comunitárias sólidas, cooperativas sustentáveis,
45 AGROBIODIVERSIDADE programas de alimentação saudável e formação
SEMENTES, PATRIMÔNIO DOS POVOS técnica e política. A agroecologia é um sopro
Guardiãs e redes de semente sustentam a luta pela de esperança para as famílias camponesas,
soberania alimentar e pela agrobiodiversidade. indígenas e afrodescendentes, pois permite
Resistem às ações de indústrias e governos que preservar sua cultura e entrelaçá-la com outras,
promovem o uso de sementes transgênicas ou para demonstrar que a dignidade camponesa
se apropriam de materiais genéticos que fazem não é apenas possível, mas também urgente
parte da interação histórica entre os povos da para responder à atual crise alimentar e
América Latina e as plantas que os nutriram e socioambiental.
curaram durante séculos.

5
Editorial

Agroecologia na
América Latina:
um futuro necessário
A
agroecologia tem crescido em todo o mundo, mas é na América Latina que suas expe-
riências estão mais fortes e consolidadas. Poucos fenômenos são tão fundamentalmen-
te latino-americanas quanto a agroecologia. Em reconhecimento à importância dessa
ciência, movimento social e acervo de práticas que condensa inúmeras experiências revolu-
cionárias e de resistência na América Latina, a Fundação Heinrich Boll decidiu produzir sua
primeira publicação própria unindo esforços de todos seus escritórios latino-americanos. Foi
uma longa trajetória de reuniões e levantamentos de experiências com parceiros que atuam
na cena agroecológica em diferentes países.

O resultado é o dossiê “Agroecologia na América Latina”, cujos artigos exploram as dife-


rentes dimensões que, como um sistema agroflorestal, se consorciam na formação da prática
agroecológica. A maioria dos artigos foi escrita por múltiplas mãos, que juntas extrapolaram
as fronteiras nacionais para sistematizar exemplos que provam a força da agroecologia no
combate ao avanço de outras fronteiras: agrárias, minerárias, energéticas, madeireiras. No re-
sultado, fica evidente o protagonismo das comunidades camponesas, indígenas e quilombolas
em um processo de manutenção e resgate de séculos de saberes científicos, tradicionais e iden-
titários em torno do plantio, da transformação de alimentos, da preservação das sementes e de
outras formas, não predatórias, de se relacionar e habitar os territórios.

Essas experiências, que por séculos sobreviveram à investida dos processos coloniais, prece-
dem a consolidação do conceito de agroecologia, marcando lutas históricas pela defesa terri-
torial e cultural. No entanto, diversos movimentos transnacionais que surgiram a partir da dé-
cada de 80 se nutriram delas para promover a integração, em rede, dessa resistência. É o caso
do Movimento Agroecológico Latino-americano (MAELA), o Consórcio Latino-americano de
Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável (CLADES), a Coordenadoria Latino-ameri-
cana de Organizações do Campo (CLOC), e o movimento Via Campesina. Entre os principais
compromissos dessas organizações estavam, e seguem estando, a defesa da segurança e so-
berania alimentar, a reforma agrária integral e popular, a reivindicação dos bens comuns, a
equidade de gênero, os direitos dos povos indígenas e tradicionais e da própria natureza.

Nos últimos anos, a agroecologia tem expandido seu público e ganhado cada vez mais espa-
ço em meios onde, originalmente, era escamoteada. No campo acadêmico, por exemplo, ela
tem confrontado o pensamento positivista, construindo novos paradigmas que superam as
concepções hegemônicas que sustentam o sistema agroalimentar industrial. A juventude la-
tino-americana tem sido determinante no processo de expansão da agroecologia para outras
redes.

Mas nem tudo são flores, ou uma grande variedade de frutas e verduras. A realidade ainda
é dominada pela monocultura. Existem grandes desafios para que a agroecologia cresça o su-
ficiente para se tornar um oponente à altura dos modelos predatórios de extração. Promessas

6 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
não cumpridas de reformas agrárias, desmontes de políticas públicas que apoiam a agricultu-
ra camponesa, o açambarcamento de territórios indígenas e de povos tradicionais estão entre
eles, além dos esforços de cooptação e captura de uma retórica agroecológica por Estados e
empresas. Esses desafios também são diagnosticados ao longo desse dossiê.

Por ora, esperamos que esse material, um mosaico de fatos e experiências internacionais
(muitas das quais desconhecidas até mesmo no contexto agroecológico brasileiro), te alimente
de uma visão diferente de América Latina daquela apresentada pela lógica desenvolvimentis-
ta: a de um continente rico em biodiversidade, água doce e povos que dominam conhecimen-
tos milenares de como coexistir com essa abundância. Essa diversidade é a principal semente
da agroecologia.

Boa leitura,
Annette von Schönfeld, Marcelo Montenegro e Julia Dolce

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 7
13 TESES

Agroecologia na América Latina


A agroecologia é, ao mesmo tempo a agroecologia é uma resposta ao modelo
um movimento social, uma prática e uma hegemônico de produção na terra, e propõe
ciência, assim como uma forma de vida. formas alternativas de pensar e realizar o
Ela não se preocupa somente por minimizar desenvolvimento, o bem-estar e as relações com a
os impactos ecológicos, mas também pela natureza. Ao promover a PRODUÇÃO CAMPONESA,
construção da Soberania Alimentar e INDÍGENA, FAMILIAR E COMUNITÁRIA, em oposição
autonomia nos territórios, a REDISTRIBUIÇÃO ao modelo do agronegócio, busca a completa
da terra e a JUSTIÇA SOCIAL E AMBIENTAL. transformação política, técnica, econômica e
social do sistema alimentar.

1 2 Sem feminismo não há agroecologia.


A agroecologia reconhece a
contribuição das mulheres e as
dissidências de gênero na agricultura,
em oposição ao domínio histórico dos
3 homens e da lógica patriarcal.

4
A agroecologia gera relações de
apoio, CONFIANÇA E SOLIDARIEDADE 5
entre as lutas do campo e da CIDADE. A agroecologia defende o DIREITO À
Ao promover o consumo político ALIMENTAÇÃO, À ÁGUA, À TERRA, ÀS
e as economias locais através da SEMENTES, A UM AMBIENTE SAUDÁVEL,
comercialização em circuitos curtos, e outros direitos interdependentes,
fomenta uma ligação direta entre e luta pela SOBERANIA ALIMENTAR.
agricultores e consumidores finais. Com estes objetivos combate a fome
e a pobreza, democratizando os
sistemas alimentares e estimulando
a produção e comercialização de
alimentos frescos, nutritivos e LIVRES
DE AGROTOXICOS E TRANSGÊNICOS.

6
Na agroecologia entrelaçam-se as lutas pelo que é comum:
O acesso à água, à terra e ao território, a defesa das sementes
crioulas e nativas, o cuidado com a biodiversidade, as florestas e
os biomas, as planícies, rios e montanhas.

8 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
A agroecologia é uma VERDADEIRA SOLUÇÃO A agroecologia propõe novas economias
PARA A CRISE CLIMÁTICA e torna os territórios centradas no cuidado das pessoas e
mais resilientes, eliminando os combustíveis da natureza, nas quais o valor de uso é
fósseis presentes na forma de agrotóxicos priorizado em relação ao valor de troca,
e fertilizantes, reduzindo as distâncias do os trabalhos de cuidado são valorizados e
transporte de alimentos, evitando a destruição compartilhados, e a riqueza é redistribuída.
da biodiversidade, aumentando a ciclagem de
nutrientes e energia nos agroecossistemas e 8
promovendo o sequestro de carbono.
7
9
A agroecologia dignifica as famílias
agricultoras e os povos que a praticam.
Promove formas organizacionais
para garantir o exercício de direitos,
combatendo a concentração e a
espoliação, para que O TERRITORIO
e A TERRA SEJAM DAQUELES QUE A
HABITAM E NELA TRABALHAM.

10

A agroecologia propõe a diversidade da vida como


um ponto forte, em contraste com os interesses de
padronização e homogeneização do agronegócio.
11
A agroecologia se baseia nos conhecimentos
ancestrais dos povos camponeses, indígenas
e afrodescendentes da América Latina, que há
séculos estabelecem relações de coexistência com
os territórios.

12 A agroecologia entende que o conhecimento


científico não é neutro. A partir da diversidade
de saberes tradicionais, procura compreender
as inter-relações dos agroecossistemas e os
processos históricos de espoliação, para construir
conhecimentos em defesa DA vida.

A agroecologia é uma forma de resistência coletiva que propõe


13 formas de vida alternativas em contraponto ao agronegócio,
da mineração, da pecuária industrial, das hidroelétricas e da
especulação imobiliária, para devolver à terra sua função primordial:
o cuidado e a reprodução da vida.

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 9
MOVIMENTO AGROECOLÓGICO

DA PROPRIEDADE AGRÍCOLA À REDE


A soberania alimentar e a defesa dos bens comuns são lutas coletivas. A agroecologia fortalece
os processos territoriais de base camponesa, a organização comunitária e a criação de redes,
que expressam a grande diversidade ecossistêmica e sociocultural da agricultura. Assim são
construídas as trocas materiais e simbólicas entre os diferentes sujeitos sociais, com o propósito
de se alcançar condições dignas de vida.

A
resistência é a origem de muitas alianças. Em 2007, em torno de 300 organizações cam-
ponesas, indígenas, ambientalistas, científicas, feministas, de direitos humanos e de
agricultores urbanos do México promoveram a campanha pela soberania alimentar
“Sem milho não há país” (Sin maíz no hay país). Não se tratou de uma manobra espontânea:
desde 2003, o movimento “O Campo não aguenta mais” protestava contra a abertura das im-
portações de milho e feijão. Em 2011, as mobilizações conseguiram que o direito à alimentação
fosse incluído na Constituição Mexicana.
Essa experiência ilustra as relações e interações que ocorrem em muitas comunidades da
América Latina para resistir ao monopólio do sistema alimentar industrial. A agroecologia
se nutre da diversidade de atores locais e, ao mesmo tempo, estimula a articulação em redes:
sistemas dinâmicos, heterogêneos e autônomos, cujos âmbitos de interesse incluem desde a
defesa da água e sementes, a luta contra os transgênicos e a promoção de uma alimentação
saudável, passando pela priorização do abastecimento popular entre comunidades e o estabe-
lecimento de circuitos curtos de comercialização, entre outras demandas.
As redes de sementes, por exemplo, são estruturas abertas em que as famílias, comunidades
e cooperativas se organizam para selecionar, cultivar, intercambiar e distribuir sementes na-
tivas e crioulas em seus territórios. Para estas redes, o encontro que se habilita em mercados
camponeses, feiras e festas de sementes é fundamental. Nestes espaços, pratica-se o intercâm-
bio direto de saberes, memórias e culturas, com o compartilhamento de práticas de manejo,
receitas ou usos alimentares e medicinais.
Uma das maiores vantagens das redes é a promoção e o reforço dos vínculos entre as comu-
nidades rurais e urbanas, o que favorece a comercialização nos territórios e fortalece práticas
de consumo politizado. A Rede de Agroecologia Ecovida, do Brasil, trabalha pela certificação
de seus produtos orgânicos, pela formação e promoção de saberes populares e pela constru-
ção de rotas de comercialização, por exemplo. Desde 2019, em conjunto com as redes Povos
da Mata e Orgânicos Sul de Minas, a Ecovida consolidou várias estações centrais nas quais as
famílias e grupos de agricultores não somente reúnem e distribuem seus produtos, mas tam-
bém estabelecem relações mais duradouras com os consumidores através de feiras, visitas de
consumidores a propriedades agroecológicas ou da construção de Células de Consumidores
Responsáveis (CCR), grupos de compra e venda direta entre consumidores e agricultores fami-
liares certificados por estas redes. Do mesmo modo, no México, durante a pandemia, as Redes
Alimentares Alternativas (RAA) ganharam força como espaços de encontro entre produtores e
consumidores comprometidos com a transformação do sistema agroalimentar.
A lista de redes agroecológicas é imensa e muitas experiências são, em grande parte, desco-
nhecidas fora do seu âmbito local. Nos últimos anos, também no Brasil, a Associação Brasileira
de Agroecologia (ABA), a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e a Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz) dedicaram esforços para sistematizar experiências e redes de agroecologia nos
territórios. Este trabalho coletivo de produção de conhecimentos tem sido garantido por meio
do desenvolvimento de uma base de cadastros, informações e dados sobre agroecologia no
Brasil, possibilitando identificar redes de agroecologia e seus elos de atuação nos estados. A
Agroecologia em Rede (AeR) é plataforma virtual que reúne este banco diverso de informa-

10 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
COMO EXPANDIR E SUSTENTAR O avanço TERRITORIAL DA AGROECOLOGIA?

Organização
Aprendizagem
social
construtivista

Reconhecer a
crise para buscar Práticas
alternativas agroecológicas
eficazes

Políticas
favoráveis
Discursos de
mobilização

MIER Y TERÁN ET AL. 2018


Mercados Parcerias
favoráveis externas

Os pesquisadores Mateo Mier e Terán et al., identificaram esses oito fatores-chave para massificar e expandir a agroecologia em maior escala.

ções e permite a realização de pesquisas e a visualização de dados em diversos formatos, como


mapa e fichas de cadastro, possibilitando entender as muitas iniciativas que promovem a agro-
ecologia nos territórios.
O movimento agroecológico latino-americano tem se fortalecido por meio dessas redes.
Elas protegem a agroecologia de tentativas de cooptação por parte de instituições internacio-
nais e programas governamentais e de discursos acadêmicos convencionais que entendem a
agroecologia apenas como uma caixa de ferramentas para mitigar o impacto da agricultura
industrial, e não como um modo de vida em favor da soberania alimentar e a gestão coletiva
dos bens comuns. A construção do conhecimento agroecológico continua sendo desenvolvida
por e para as comunidades.

FONTES

Mateo Mier y Teran et al. (2018). “Bringing agroecology to scale: Key drivers and emblematic cases”.
Journal Agroecology and Sustainable Food Systems vol. 42, n.° 6 [pp. 637-665]
Miguel Angel Samano (2013). “La agroecologia como una alternativa de seguridade alimentaria para las
comunidades indigenas”. Revista Mexicana de Ciencias Agricolas vol. 4, n.° 8 [pp. 1251-1266]

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 11
JUVENTUDES AGROECOLÓGICAS

Uma ponte entre gerações


Após décadas imigrando para as cidades por não encontrarem oportunidades de estudos e
estabilidade profissional no campo, os jovens rurais da América Latina agora protagonizam uma
retomada da relação com seus territórios de origem. Esse movimento é relacionado ao crescimento
do interesse da juventude sobre as práticas sustentáveis de produção agrícola, a agroecologia.

A
produção industrial de alimentos rompeu os laços familiares da agricultura tradicional
e há décadas vem provocando o êxodo dos jovens do campo. Segundo dados da CEPAL,
80% dos jovens da América Latina vivem em áreas urbanas e apenas 20% em áreas rurais.
No Uruguai, por exemplo, o número de jovens rurais não chega a 5%; e embora os jovens repre-
sentem metade da população na Guatemala e em Honduras, 90% das terras produtivas desses
países estão nas mãos de homens com mais de 50 anos. Entre 2007 e 2019, segundo o Censo
Agropecuário Mexicano, o percentual de produtores mexicanos com menos de 45 anos pas-
sou de 38% para 10,1%. Não é a apatia que leva os jovens do campo a emigrar ou a se dedicar a
outros empregos: no campo eles dispõem de poucas oportunidades acadêmicas, os empregos
não têm estabilidade, os salários são precários e há dificuldades no acesso à terra e aos meios
de produção.
A marginalização dessa população não afeta apenas seus direitos à terra e a uma vida digna,
mas também os modos de vida camponês e indígena que garantem a defesa dos territórios. Nos
Andes, por exemplo, a agro biodiversidade é resultado direto das relações familiares e comu-
nitárias, que ainda permitem a troca de sementes nativas e dos conhecimentos a elas relacio-
nados. Já no Peru, os jovens de origem quéchua-lama do Alto Amazonas aprenderam com seus
ancestrais a cultivar em três altitudes para diversificar suas colheitas. Eles também participam
em festivais e rituais, assembleias comunitárias e atividades de mutirão.
Nos últimos anos, porém, tornou-se cada vez mais comum a migração de famílias jovens
para o campo, com o objetivo de se dedicarem à produção agropecuária alternativa. Os jovens
recuperam, adotam e divulgam práticas sustentáveis. Desde 2017, por exemplo, os agriculto-
res mais jovens do assentamento Los Pescados, no México, preparam seus próprios insumos
para fertilizar as culturas de batata. Com o acompanhamento do Centro de Estudos para o De-

AS MULHERES JOVENS RURAIS NA COLÔMBIA

31,3%

53% Procura oportunidades


de trabalho

21,8%
MIGRAM PARA A CIDADE POR MOTIVOS
DE TRABALHO OU EDUCACIONAIS
Procura educação

28%
PARDO 2017

Por ameaça e risco à


sua vida

O panorama das mulheres jovens rurais na Colômbia é um reflexo da realidade das mulheres do campo da América Latina.

12 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
SER MULHER, SER JOVEM, SER RURAL

DÍAZ 2017
As demandas das
Essa geração de jovens rurais exigem
mulheres é a que associatividade, participação
possui maior grau de política e espaços onde suas
escolarização que já vozes sejam reconhecidas
existiu na região e, em e identificadas como
alguns países, supera protagonistas.
os homens em anos de
educação formal.

As mulheres jovens
Quanto à inserção no rurais vivem suas
mercado de trabalho próprias realidades,
formal: os homens que exigem abordagens
ocupam o dobro de contextualizadas
postos que as mulheres, territoriais e
com 73% de inserção generacionais.
contra 36%.

senvolvimento Rural (Cesder) e da organização Sendas AC, os jovens promovem práticas que
integram tecnologias modernas e conhecimentos milenares de seus familiares e vizinhos; e
em 2020 iniciaram o piloto de uma biofábrica para envolver mais famílias na produção destes
insumos.
Por sua vez, na Guatemala, em 2019, 40 jovens rurais criaram a Cooperativa de Empreen-
dedores do Vale para cultivar e comercializar hortaliças. Já na Costa Rica, existe um grupo de
mais de 100 mulheres jovens chamado Yunta Agroecológica, que trabalha na formação de pes-
soas em todo o país. Por meio do trabalho de base dos movimentos sociais e das escolas cam-
ponesas, nas últimas duas décadas a juventude latino-americana encontrou na agroecologia
múltiplas formas de organização que inspiram manifestações a favor da soberania alimentar,
pelo acesso à terra, e pela igualdade de gênero. Em 2010 surgiu a Articulação Continental de
Jovens, que favorece a incidência juvenil na agenda política da Coordenadoria Latino-Ameri-
cana de Organizações do Campo (CLOC - Via Campesina), cujas assembleias reúnem entre 300
e 500 jovens de todo o continente. Além disso, os Institutos Agroecológicos Latino-America-
nos (IALA), consolidados graças ao esforço da CLOC, incentivam o retorno e a permanência da
juventude camponesa em seus territórios, e lhes oferece ferramentas para que desenvolvam
processos de autonomia.
A multiplicação dos IALA e outras experiências locais, como as Escolas Virtuais de Agroeco-
logia promovidas pelo Movimento de Juventudes pela Agroecologia e Soberania Alimentar do
Peru (Alsakuy), geram formas de aprendizagem contextualizadas e vivenciais que reafirmam
a identidade latino-americana do projeto agroecológico. No Brasil, o modelo da Pedagogia da
Alternância, pelo qual estudantes alternam entre períodos estudando in loco e períodos estu-
dando em casa, tem sido importante para garantir que gerações de jovens apliquem sua for-
mação dentro de suas comunidades rurais. No Uruguai, a Rede de Sementes Nativas e Crioulas
apoia a organização de instâncias coletivas de jovens para fortalecer sua participação ativa
na construção da Soberania Alimentar e no desenvolvimento da Agroecologia. Todos os anos,
desde 2016, grupos da rede organizam o Acampamento Nacional de Jovens pela Soberania Ali-
mentar. Nesses encontros, reivindica-se o acesso à terra, o retorno ao campo, a autogestão do
trabalho, a preservação das sementes crioulas e o aprender fazendo. Alguns desses grupos re-
alizam seus processos em terras públicas, pertencentes ao Instituto Nacional de Colonização.
No entanto, esta é uma exceção, pois os jovens latino-americanos não têm acesso à terra. Na
região dos morangos dos subtópicos mexicanos, por exemplo, os agricultores com menos de 35
anos precisam se organizar em equipes de cinco até quinze pessoas para arrendar parcelas de
terras. Cada membro contribui equitativamente com recursos e força de trabalho, e assim as

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 13
colheitas são distribuídas; em alguns casos, eles migram para outras regiões para vender sua
força de trabalho.
Mesmo nas cidades, os jovens não estão distantes das pautas agroecológicas. Em estágios,
agrupamentos e acampamentos, os jovens urbanos se aproximam da produção no campo e
exploram a agricultura urbana sustentável, em lutas e redes de consumo como os Grupos de
Consumo Responsável (GCR) ou as Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSA). A mobili-
zação da juventude latino-americana também foi importante durante o auge da pandemia de
Covid-19. Em países como Colômbia, Chile, Peru e Brasil, eles lideraram projetos de refeições
comunitárias, hortas comunitárias, campanhas de solidariedade e doações de alimentos.
Assim, apesar de poucas garantias, os jovens latino-americanos estão reconstruindo suas
relações com a agricultura. O horizonte agroecológico está mobilizando processos por meio
do desenvolvimento de projetos que afirmam buscar o bem comum.

FONTES

Maia Guiskin (2019). Situacion de las juventudes rurales en America Latina y el Caribe. CEPAL
Andres Espejo (2017). Insercion laboral de los jovenes rurales en America Latina: Un breve analisis
descriptivo. RIMISP
Inegi y Secretaria de Agricultura y Desarrollo Rural de Mexico. Encuesta Nacional Agropecuaria 2019
Una nueva generacion de agricultores: la juventud campesina. Leisa vol. 27, n.° 1
Gerardo Suarez (2020). “Jovenes del ejido Los Pescados abandonan el uso de pesticidas y adoptan practicas
agroecologicas”. CCMSS
Jose Luis Espinoza et al. (2013). Fincas agroecologicas en el bosque seco de Honduras. ANAFAE
Renata Pardo (2017). Diagnostico de la juventude rural en Colombia. RIMISP
La Via Campesina (2019). “Juventud del campo: la apuesta por la formacion y la participacion”
CLOC - La Via Campesina (2021). “Los IALAs de America Latina y la formacion agroecologica para la
juventud”
Jose Isabel Juan Perez et al. (2011). “Grupos de ayuda mutua juvenil en la region fresera del subtropico
mexicano: una estrategia para la subsistência de las familias campesinas”. Leisa vol. 27, n.° 1
Vivian Diaz (2017). “Ser mujer, ser joven, ser rural”. El Desconcierto.

14 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
Feminismo e agroecologia

Sem FeminismoS
não há Agroecologia
É impossível pensar em um projeto de futuro justo, sustentável e diversificado que não inclua as
mulheres do campo, das águas e da floresta, pois são elas que lideram a transformação do sistema
agroalimentar na América Latina. É por isso que, a partir do feminismo camponês e suas alianças,
as mulheres rurais e agricultoras têm um lema de luta: sem feminismo não há agroecologia.

O
campo tende a ser um terreno hostil para as mulheres latino-americanas. Elas geralmen-
te cultivam em terras alheias, têm poucas oportunidades de educação ou acesso à saúde,
além de longas jornadas de trabalho, e menos da metade delas participa das decisões
de produção. No entanto, as mulheres mantêm uma alta agrobiodiversidade para o consumo
de suas comunidades por meio de quintais ou hortas onde cultivam hortaliças, grãos, frutas,
plantas medicinais e flores, além de criarem animais e intercambiarem suprimentos e conhe-
cimentos. Um projeto com 879 mulheres camponesas no nordeste do Brasil identificou que,
entre agosto de 2019 e fevereiro de 2020, foram produzidos 1.228 produtos agroecológicos de
origem animal e vegetal: quantidade capaz de garantir a sobrevivência das famílias da região.
No entanto, muitas dessas práticas não são reconhecidas como produtivas, mas sim consi-
deradas uma extensão de um trabalho doméstico, que não é propriamente reconhecido en-
quanto trabalho. Por isso, as mulheres do campo reafirmam que a agroecologia também deve
questionar o controle masculino dos recursos, a divisão do trabalho e a tomada de decisões nas
propriedades rurais e organizações. Para isso, movimentos de mulheres no campo demandam
que a agroecologia tenha raízes em outro movimento: o feminismo.
A Via Campesina e a Coordenadoria Latino-Americana de Organizações do Campo (CLOC)
falam de um feminismo rural e popular, capaz de responder às demandas das mulheres em
seus contextos, e que lhes permita ser chamadas de agricultoras e não de donas de casa. Essa últi-
ma demanda é palavra de ordem das mulheres do campo do norte da Nicarágua, por exemplo.
A incursão dessa perspectiva feminista nos permite falar de uma mudança de paradigma nas
comunidades, em que o trabalho de cuidado não cabe mais apenas às mulheres.
Estudos mostram que vincular as mulheres a organizações e feiras amplia sua liberdade de
ação, eleva sua autoestima e, em alguns casos, redistribui as relações de poder nas famílias.
Um exemplo é a Associação Nacional de Mulheres Camponesas, Negras e Indígenas da Colôm-
bia (ANMUCIC), cujas integrantes têm mirado na erradicação da violência e nas leis de acesso
e posse da terra.
A produção agrícola também dá às mulheres acesso ao mercado, à independência econômi-
ca e ao empoderamento político. No altiplano boliviano, a feminização do campo vem crescen-
do, visto que os homens costumam migrar para os centros urbanos. Essa ausência masculina
na comunidade, embora exija que as mulheres trabalhem mais para sustentar sua economia
familiar, facilita sua participação política. Elas participam de reuniões, assembleias comunitá-
rias, e de sessões de formação, além de assumirem o controle dos mercados locais.
Nas últimas duas décadas, as camponesas mexicanas avançaram na transformação e valo-
rização da milpa1. As integrantes da cooperativa indígena Tosepan Siuamej operam e adminis-
tram fábricas de tortilhas, lojas, padarias e estabelecimentos de fabricação de doces e bebidas.
Outro exemplo é a cooperativa Chiltoyac, grupo de mulheres Xalapeñas dedicadas a resgatar
a receita tradicional do mole2 mexicano e enfrentar a industrialização de alimentos por meio
de redes de comércio justo e solidário.

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 15
O combate ao uso de agrotóxicos também integra as lutas das mulheres no campo. Na Ar-
gentina e no Uruguai, as professoras das escolas rurais são as principais denunciantes das
consequências causadas pelo uso de agrotóxicos, como os impactos na saúde humana e na
biodiversidade, com a morte de peixes, aves e anfíbios. Entre 2009 e 2012, o grupo argentino
Madres de Ituzaingó gerenciou o primeiro processo da América Latina contra as fumigações, a
aplicação de agrotóxicos em estado gasoso. Na sentença, a contaminação ambiental foi reco-
nhecida como crime. Em 2016, essas mulheres, ambientalistas e moradores do bairro Malvinas
Argentinas, interromperam a construção da maior fábrica de processamento de sementes de
milho da Monsanto no continente.
As organizações camponesas também articulam seu trabalho com o das mulheres acadêmi-
cas. Em 2013, pesquisadoras latino-americanas fundaram a Aliança de Mulheres na Agroeco-
logia (AMA-AWA), com o duplo propósito de destacar o conhecimento agroecológico produzi-
do pelas mulheres e fortalecer alianças entre camponesas e a academia
Entre 2004 e 2015, os diálogos entre as organizações de mulheres rurais, ONGs e o Estado
brasileiro permitiram a criação do Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Et-
nia e do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, além da incorporação
da abordagem de gênero no Plano de Políticas Públicas em Agricultura Familiar e Agroecolo-
gia. Graças a isso, em todas as chamadas públicas de assistência técnica e extensão rural deve
haver uma cota de 50% de mulheres como titulares de contratos e 30% de recursos para ativida-
des específicas indicadas por mulheres em seus projetos.
Nessa mesma linha estão os processos de formação do Instituto Latino-Americano de Agroe-
cologia Semeadoras de Esperança no Chile, promovido pela Associação Nacional de Mulheres
Rurais e Indígenas (ANAMURI).
No entanto, a relação entre agroecologia e mulheres ainda não é automática. Os movimen-
tos de mulheres alertam para o fato de que, por mais que se criem espaços de participação, se
as relações desiguais de gênero e a violência sexista na produção agroecológica não forem pro-
blematizadas, elas continuarão sendo obrigadas a cumprir os papéis de "boas mães" e "cuida-
doras do lar e do meio ambiente", funções que deveriam ser assumidas por todas as pessoas nas

AS MULHERES NO CAMPO LATINO-AMERICANO

As mulheres do
campo produzem até
Participação feminina na
população economicamente
Na América Latina,
50% Nos campos da
ativa na agricultura dos alimentos América Latina,
apenas
consumidos as mulheres
1 a 3%
18% diariamente no trabalham entre

3,1 a 8% da terra cultivável


pertence às
mundo
15 e 18
horas por dia
8,1 a 12% mulheres

12,1 a 14%
NOBRE e HORA, 2017 | ORELLANA 2020

14,1 a 20%

20,1 a 25%

25,1 a 30%

30,1 a 40%

40,1 a 50%

A diferença de gênero não se reflete apenas no escasso reconhecimento das tarefas ou na posse desigual da terra. Em El Salvador, por exemplo,
as mulheres recebem 16% menos remuneração fazendo o mesmo trabalho que os homens. E na Colômbia, apenas 19% das mulheres
produtoras tiveram acesso a maquinário e apenas 18,7% receberam assistência técnica

16 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
POUCA TERRA NAS MÃOS DAS MULHERES

27%

ORELLANA 2020 | DANE 2014 | STEPHEN 2020


24%

| INIDE e MAGFOR 2011 | Raça, Gênero e


Classe – Fundação Heinrich Boll
18,7%
12%
8%

Colômbia Nicarágua Brasil El Salvador Costa Rica

Embora as mulheres latino-americanas cultivem, trabalhem e cuidem, uma porcentagem muito pequena da terra cultivável pertence a elas.

comunidades. Para transformar essa realidade, as agricultoras feministas da América Latina


defendem um maior acesso a terras de qualidade, assim como mais assistência técnica e redes
de comércio junto, bem como o reconhecimento social e econômico das tarefas diárias femi-
ninas. As mulheres rurais e agroecológicas não são apenas “ajudantes”, mas as protagonistas
da luta pela vida.

1
Sistema de plantio dedicado ao cultivo do milho em consorciação com outras culturas.

2
Molho mexicano condimentado, preparado principalmente com pimentas e especiarias. O termo pode referir-se
também aos guisados à base de carne ou vegetais, frequentemente preparados com esse tipo de molho.

FONTES

P. 18. Wesley Lima (2017). “Sin feminismo no hay agroecologia”. La Via Campesina
Rodica Weitzman et al. Cadernetas agroecológicas e as mulheres do semiárido de mãos dadas fortalecendo
a agroecologia. FIDA
Diana Trevilla et al. (2020). “Agroecologia y cuidados: reflexiones desde los feminismos de Abya Yala”.
Millcayac vol. 7, n.°13
Rachel Vincent (2020) “Feminismo juvenil en Nicaragua: De campesinas a sonadoras”. La Agroecologa n.° 4
Iridiane Graciele Seibert (2018). “Feminismo campesino y popular- Una propuesta de las campesinas para
el mundo”. La Via Campesina
Miriam Nobre y Karla Hora (2017). Atlas de las mujeres rurales de America Latina y el Caribe: “Al tiempo
de la vida y los hechos”. FAO
Zuiri Mendez (2017). “Mujeres, territórios y feminismos comunitarios”. La Agroecologa n.° 1
Gloria Silvia Orellana (2020). “Mujeres rurales, claves en la soberania alimentaria del pais”. Diario Co
Latino
Maria Laura Stephen (2020). “Feminismo mas ala del Valle Central costarricense”. La Agroecologa n.° 4
Ayuda en Accion (2020). “Mujeres rurales en El Salvador: el trabajo invisible de las agricultoras”
INIDE y MAGFOR. IV Censo Nacional Agropecuario 2011
Censo Nacional Agropecuario 2014
Magdalena Leon y Carmen Diana Deere (1997). “La mujer rural y la reforma agraria en Colombia”.
Cuadernos de Desarrollo Rural n.° 38-39 [pp. 7-23]
“Union de Cooperativas Tosepan” (2018). Coalicion Internacional para el Habitat
“Cooperativa de mujeres productoras de Chiltoyac” (s. f.). Atlas de Transiciones Agroecologicas en Mexico.
Universidad Veracruzana, Region Xalapa
Alberto Gomez Perazzoli (2019). “Uruguay: pais productor de alimentos para un sistema alimentario
disfuncional”. Agrociencia Uruguay vol. 23, n.° 1 [pp. 92-100]
Mujeres, biodiversidad y alimentacion: la valorizacion de la vida a traves de experiencias agroecologicas.
Leisa vol. 36, n.°1
Pamela Caro (2010). “Soberania Alimentaria: aproximaciones a un debate sobre alternativas de desarrollo
y derechos de las mujeres”. Prensa Rural

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 17
CONHECIMENTO ANCESTRAL

Saberes e diversidade biocultural


As raízes mais fortes da agroecologia estão nos princípios e nas práticas ecológicas, a partir das
quais mulheres e homens camponeses, indígenas e afrodescendentes cultivam a terra, cuidam da
natureza e geram conhecimento. Assim, o movimento considera urgente a proteção dos saberes
dessas comunidades. O futuro do planeta depende disso.

C
erca de 46% da população rural da América Latina é indígena ou afrodescendente. Essas
comunidades são as grandes responsáveis pela riqueza biológica que o continente con-
serva. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO),
a superfície dos territórios ocupados por elas chegaria a 380 milhões de hectares. Não é pos-
sível pensar a sustentabilidade do continente sem considerar o conhecimento de povos que
viveram por gerações com uma grande diversidade de ecossistemas e condições climáticas e
solos de todos os tipos. Povos que sofrem uma série de violências e cujo modo de vida foi des-
prezado por séculos por ser considerado arcaico, constituem um dos pilares fundamentais da
agroecologia.
A partir de uma abordagem agroecológica, entende-se que os sistemas agroalimentares não
podem ser estudados de forma abstrata ou fora de seu contexto histórico, pois eles são fruto de
práticas sociais e culturais que evoluíram com a natureza por milhares de anos. Esse diálogo
histórico cria um substrato comum que possibilita a troca de informações, conhecimentos,
criatividade, símbolos, matéria e energia entre a humanidade e os ecossistemas.
As paisagens naturais e domésticas são habitadas por muitas comunidades conforme esque-
mas éticos, espirituais e epistemológicos que estabelecem relações de interdependência entre
o humano e o não humano. Muitas delas concebem a natureza como sujeito de direitos. Um
exemplo disso é a noção maia de Kanan Ka'ax (bom cuidado da floresta), que alude à necessá-
ria reciprocidade entre o meio ambiente e as práticas humanas de transformação. Em todo o
continente latino-americano há muitos outros exemplos: Sumak Kawsay entre os quéchuas do
Equador, Suma Qamaña entre os aimarás da Bolívia, Ñandareko entre os guaranis da Argenti-
na, Brasil e Paraguai, Lekil Kuxlejal entre os tzeltal e os tzotzil maias do México. Em geral, todas
essas cosmovisões coincidem na noção de viver com o necessário e em harmonia com o que
chamam de “Mãe Terra”.
Na América Latina, essas formas ancestrais de pensar e viver permitiram o desenvolvimento
de sistemas de produção complexos. Na Colômbia, por exemplo, a Associação de Produtores
para o Desenvolvimento Comunitário da Ciénaga Grande del Bajo Sinú (ASPROCIG) reúne 6 mil
famílias indígenas, afrodescendentes, camponesas e de pescadores que projetaram seus agro-
ecossistemas de acordo com os recursos hidrobiológicos das áreas úmidas e da luz solar dos
trópicos, implementando técnicas de produção transmitidas de geração para geração, como
os Sistemas Agroecológicos em Diques Altos.
Na América Central, a base da soberania alimentar camponesa continua sendo a milpa, uma
antiga forma de cultivo que envolve o plantio em consórcio de culturas como milho, feião e
abóbora. Algo semelhante acontece na selva amazônica colombiana com as chagras, exten-
sões de terra de não mais de um hectare cultivadas por mulheres. Já no Brasil, indígenas e qui-
lombolas mantêm vivas suas memórias de resistência por meio da agricultura coivara, técnica
na qual o plantio é itinerante.
Embora sejam evidentes as conexões entre o desenvolvimento da agricultura e o conheci-
mento dos povos ancestrais, elas foram rejeitadas durante grande parte do século passado. Um
dos principais momentos desse embate aconteceu em 1943, quando a Fundação Rockefeller
enviou um grupo de especialistas para "modernizar" a agricultura camponesa mexicana, a
fim de aumentar a produção de grãos, instalando a ideia de que o conhecimento ancestral era

18 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
População indígena nos países latino-americanos OS PRINCIPAIS DEFENSORES DAS FLORESTAS

México 19%

Venezuela 2,8%
Países com o maior Colômbia 3,7%
número de povos

TOLEDO e BARRERA-BASSOL 2018 | CHEVALIER 2021 | CEPAL 2014


Equador 6,3%
indígenas
BRASIL 305
COLÔMBIA 102 Brasil 0,4% Protegem Protegem
Peru 12,1%
PERU 85
Bolívia 48%
45% 35%
MÉXICO 78 das florestas das florestas da
intactas
80%
Chile 12,8% América Latina
BOLÍVIA 39
localizadas na
Argentina 2,4% bacia amazônica
Uruguai 2,4% da superfície
Povos indígenas em ocupada pelos
perigo de desaparecimento povos indígenas
físico ou cultural é coberta por

FAO e FILAC 2021


BRASIL 70 florestas

COLÔMBIA 35
BOLÍVIA 13

Com seus modos de vida, suas formas de organização e sua resistência em defesa da Mãe Terra, os povos indígenas do continente têm
contribuído para a sobrevivência das florestas e da diversidade agrícola latino-americana.

insuficiente para resolver o problema da fome. No entanto, as consequências desse processo


foram mais fome, desapropriação de terras, políticas de exclusão e adoção de práticas prejudi-
ciais ao meio ambiente.
De acordo com o Mapeamento de Povos Indígenas, Áreas Protegidas e Ecossistemas naturais da
América Central, apesar de as nações indígenas continuarem excluídas das decisões de conser-
vação, as áreas naturais mais importantes da região encontram-se em seus territórios: 51% das
florestas ainda são habitadas por povos originários. O mesmo relatório alerta que os ecossiste-
mas terrestres e marinhos mais bem preservados estão na costa caribenha da América Central,
onde os povos indígenas se refugiaram durante o período colonial. Por outro lado, de acordo
com a base de dados Terras Indígenas no Brasil, enquanto 20% da floresta Amazônia, maior bio-
ma brasileiro, foi desmatada nos últimos 40 anos, juntas, as Terras Indígenas no país perderam
apenas 2,4% de sua cobertura florestal original no mesmo período.
O fato de muitas práticas milenares no continente terem resistido à passagem do tempo e
ao apagamento cultural, e serem hoje mais produtivas que outros sistemas modernos, tem a
ver com o conhecimento contextualizado e plural dos ciclos naturais e das características do
solo. O reconhecimento desse conhecimento por ambientalistas e movimentos agroecológi-
cos tem gerado resultados positivos pela América Latina. Nos últimos anos, por exemplo, a
minga1 indígena andina deixou de ser uma forma de trabalho para se converter em um espa-
ço de discussão entre lideranças socioambientais, professores e alunos, produtores e consu-
midores; todos compartilham alimentos, saberes, práticas e histórias de vida. No Brasil, em
2019, foi criado o grupo Povos e Comunidades Tradicionais, Etnias e Ancestralidades dentro
da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), um convite para que as comunidades, pes-
quisadores, agricultores e guardiões de sementes, participem da construção do conhecimen-
to agroecológico.
Os povos tradicionais reivindicam ainda o reconhecimento e reaprendizado de outros prin-
cípios e práticas ancestrais: a alimentação como tarefa sagrada e familiar; as sementes nativas
como patrimônio; a água, a terra e o ar como bens comuns; as comunidades como escolas e a
organização coletiva como única forma de habitar as florestas. A agroecologia coloca no cen-

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 19
ALGUMAS PRÁTICAS ANCESTRAIS LATINO-AMERICANAS

Milpa mesoamericana
Combina milho, feijão, abóbora,
pimenta chile, ervas comestíveis,
cogumelos comestíveis,
plantas medicinais, tubérculos,
árvores frutíferas e até animais
domésticos.

Chagra amazônica colombiana


As mulheres cultivam mandioca,
banana, milho, feijão e plantas
medicinais, guiadas e protegidas
pela Lua e suas fases.

Essas práticas exemplificam a forma como as comunidades camponesas, indígenas e afrodescendentes do continente defendem seus
saberes tradicionais para construir a soberania alimentar.

tro do seu trabalho o diálogo entre esses saberes e a prática científica, de forma a construir
conhecimentos em interação permanente com a natureza e os povos que a habitam.

1
Trabalho solidário realizado por um grupo de amigos e vizinhos, após o qual os beneficiários oferecem uma refeição
generosa em agradecimento pela colaboração nos serviços.

FONTES

FAO (2021). Roberto Angulo et al. (2018). La pobreza rural en America Latina: Que dicen los indicadores
sobre la poblacion indigena y afrodescendiente de la region? Lima: IEP y FAO
Pueblos indigenas, afrodescendientes y etnias: fundamentales en la recuperacion y transformacion del
mundo rural post COVID
CEPAL (2020). Los pueblos indigenas de America Latina – Abya Yala y la agenda 2030 para el desarrollo
sostenible
Gerardo Suarez (2017). “Datos fundamentales de la propiedad social en Mexico”. CCMSS
Stephanie Chevalier Naranjo (2021). “Mexico, el pais americano con mas poblacion indigena”. Statista
CEPAL (2014). “Los pueblos indigenas en America Latina”
FAO y FILAC (2021). Los pueblos indigenas y tribales y la gobernanza de los bosques. Una oportunidad para
la accion climatica en America Latina y el Caribe.
FAO
ASPROCIG (2012). “La propuesta de desarrollo rural territorial: Una apuesta para la adaptacion al cambio
climatico”. Semillas
Astrid Alvarez (2009). “Los faros agroecologicos: una propuesta integradora de la cultura afrocolombiana”.
Semillas n.°38/39 [pp. 97-103]
Jane Simoni Eidt y Consolacion Udry (eds.) (2019). Sistemas agrícolas tradicionais no Brasil. Brasilia D. F.:
Embrapa [p. 65]
IUCN (2016). Mapeo de pueblos indigenas, areas protegidas y ecosistemas naturales de Centroamerica
Terras Indígenas No Brasil. “Situacao atual das Terras Indigenas”
MMA (2017). Estrategia e Plano de Acao Nacionais para a Biodiversidade – EPANB: 2016-2020.

20 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
Agroecologia Urbana

DIÁLOGOS ENTRE O CAMPO E A CIDADE


O antagonismo entre rural e urbano impacta na negação das relações dinâmicas entre esses
territórios, criando barreiras para a agricultura familiar e gerando desigualdades sociais e
insegurança alimentar. Movimentos agroecológicos têm produzido experiências que visam tecer
relações dignas e justas entre essas duas geografias.

N
a América Latina, a densidade demográfica das cidades aumentou rapidamente devido a
fatores como a concentração e a grilagem de terras, a pauperização da agricultura fami-
liar, campesina e indígena, a exacerbação de violências e conflitos no campo e a mudan-
ça climática. 80% da população latino-americana vive em vilas ou cidades, o que faz da região
a mais urbanizada do mundo. Esse processo de êxodo rural enfraqueceu os sistemas agroali-
mentares, pois há cada vez menos trabalhadoras e trabalhadores rurais dedicados à produção
de alimentos, além de ter gerado uma série de desafios para a agricultura familiar.
Um desses desafios é o escoamento da produção. Na Argentina, a alta concentração urbana
é agravada pelas longas distâncias que os alimentos devem percorrer do campo até a cidade:
40% da produção percorre entre 40 e 50 quilômetros até chegar aos centros de abastecimento,
mas outros 40% percorrem mais de 1,9 mil quilômetros, o que contribui para uma perda de
pelo menos 45% desses alimentos. A criação de uma cultura de consumo politizado tem sido
uma das iniciativas do movimento agroecológico latino-americano para fortalecer as relações
ecológicas e a interdependência campo e cidade. A partir dessa estratégia, consumidores de
alimentos que residem nas cidades estabeleçam laços de solidariedade com os atores rurais
que cultivam a maior parte do que se consome nas cidades. Na Argentina, a União das Traba-
lhadoras e Trabalhadores da Terra (UTT) criou Colônias Agroecológicas de Abastecimento Ur-
bano para estimular essa comercialização direta.
Embora as redes que conectam os atores urbanos e rurais precisem ser ampliadas, a imple-
mentação de práticas agroecológicas tem dado frutos. Há vários exemplos significativos no
continente. Existe o Comitê SALSA, na Colômbia, uma rede de organizações sociais, popula-
res, camponesas e urbanas que tornam visível o trabalho de produtores e mercados agroeco-
lógicos urbanos. No país há também o Distrito Rural Campesino de Medellín, que promove a
gestão pública e participativa das áreas produtivas dos cinco distritos da cidade. Segundo a
Corporação Ecológica e Cultural de Penca de Sábila, vivem nesta cidade aproximadamente
50 mil camponeses que produzem, anualmente, 29 toneladas de alimentos. No México, exis-
tem as Redes Alimentares Alternativas (RAA), que comercializam nas proximidades das cida-
des para promover a dignidade dos produtores, a variedade e a saúde das dietas alimentares.
Nas últimas duas décadas, as RAA se multiplicaram: somente na Zona Metropolitana do Vale
do México (área metropolitana da Cidade do México) foram criados 36 mercados alternati-
vos entre 2003 e 2019.
Outro processo defendido pelos movimentos agroecológicos é a ampliação da produção de
alimentos nas próprias zonas urbanas, uma consequência positiva do intercâmbio de saberes
proporcionado pelo êxodo rural. Segundo estimativas do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), a produção agrícola urbana no mundo varia entre 15 e 20%, embora
esse número possa ser maior. Segundo a Agroecologia em Rede (AeR), plataforma que mapeou
mais de 3 mil experiências agroecológicas no Brasil e na América Latina, atualmente encon-
tram-se registradas 233 experiências, grupos e centros de estudos agrícolas urbanos e periur-
banos no continente.
A cidade de Rosário, na Argentina, é um exemplo do potencial transformador de hortas ur-
banas. Em 1987 foi proposto o primeiro modelo, em um bairro popular da zona sul. Esta foi a
origem de um movimento agroecológico urbano que se consolidou durante a crise econômi-

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 21
O MOMENTO DA AGRICULTURA URBANA

CLINTON 2018
SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS
∙∙ Economia de energia
∙∙ Polinização
∙∙ Controle biológico
∙∙ Regulação do clima RETORNO ECONÔMICO
∙∙ Formação do solo Potencial de uso no mundo
∙∙ Fixação de nitrogênio. ∙∙ Tetos e coberturas: 1,3 milhão de ha
A vegetação das cidades gera entre ∙∙ Terrenos baldios: 7 a 11 milhões de ha.
80 e 160 bilhões de dólares em Até o ano 2000, 36% das áreas
serviços ecossistêmicos. urbanas e periurbanas do planeta
estavam cultivando alimentos.
PRODUÇÃO DE ALIMENTOS
A agricultura urbana pode
se tornar crucial, pois pode
produzir até 180 milhões
de toneladas de alimentos
por ano (cerca de 10% da
produção mundial de legumes e
hortaliças).

Os terrenos urbanizados (área construída) representam menos de 1% da superfície terrestre. De acordo com algumas estimativas muito
conservadoras, a agricultura urbana sozinha pode produzir entre 1 e 5% dos alimentos do mundo.

ca de 2001 e 2002 e favoreceu a criação do Programa de Agricultura Urbana de Rosário. As


mulheres lideram a rede de hortas e participam em 65% das atividades. Hoje existem 1.500
agricultoras em Rosário que produzem alimentos para consumo próprio e 250 que também
vendem o excedente.
Cuba também tem uma experiência notável com a agricultura urbana. Na década de 1990,
durante a crise econômica que se seguiu à queda da União Soviética, a ilha teve que repensar
seus sistemas de produção. Uma aposta foi o cultivo sustentável nas cidades. Em 2009, havia
383 mil fazendas urbanas cobrindo 50 mil hectares de terra e produzindo 1,5 milhão de to-
neladas de hortaliças, ou seja, entre 40 e 60% do consumo nas cidades. Já na Bolívia, onde 22%
da população passa fome, existe o Programa Nacional de Agricultura Urbana e Periurbana
(PNAUP). Embora na prática careça de orçamento público e de um marco regulatório adequa-
do, esse programa aproveita os espaços domésticos e comunitários para o cultivo e tem promo-
vido o consumo de alimentos saudáveis entre as famílias de baixa renda. Além disso, o Progra-
ma Hortas Escolares complementa a alimentação dos alunos para melhorar a aprendizagem.
Em um estudo sobre hortas escolares realizado em 30 municípios desse país, verificou-se que
27 destinam o que é colhido à Alimentação Complementar Escolar (ACE).
No entanto, apesar do imenso potencial produtivo das áreas periurbanas, esses processos
de resistência costumam ocorrer em contextos de desigualdade e violência, que por sua vez
provocam insegurança alimentar ou fome nas periferias desses imensos cones urbanos. Com
a pandemia de Covid-19, essa realidade ganhou maior visibilidade. No Uruguai, durante a
pandemia, foi criado o grupo de trabalho interassociações “Agronomia te convida a produzir
alimentos”, que entregou sementes de mais de 20 espécies em cerca de 300 hortas familiares
e 40 hortas coletivas, entre outras ações que visavam mitigar o impacto da pandemia, benefi-
ciando indiretamente cerca de 150 empreendimentos familiares e coletivos. Ações semelhan-
tes foram realizadas em outras cidades da América Latina, o que demonstra a necessidade de
incentivar a criação de sistemas agroalimentares adaptados às áreas urbanas e periurbanas,
para que sejam mais resilientes diante de crises.
Porém, um dos maiores entraves para a agroecologia urbana e periurbana reside nas polí-
ticas de uso do solo, que priorizam a especulação imobiliária e encarecem as terras onde po-

22 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
deriam ser criadas hortas comunitárias. No entanto, algumas políticas de planejamento vêm
abrindo caminho, como a Lei 1.328 da Prefeitura Municipal de Palmas, no estado brasileiro do
Tocantins, que instituiu o Programa Municipal de Agricultura Urbana, destinando o uso de
áreas urbanas ociosas para o cultivo de plantas medicinais, hortaliças, leguminosas, frutas e
outros alimentos. Nesse caminho de consolidação da agroecologia urbana e periurbana, faz-
se necessário um mapeamento mais intenso dessas experiências nas cidades. Afinal, cidade e
campo se entrelaçam em relações históricas de exploração que trazem graves consequências
sociais e ecológicas para ambos os espaços.

FONTES

Luis M. Jimenez (2000). Desarrollo sostenible. Transicion hacia la coevolucion global. Madrid: Piramide.
“Escudos verdes agroecologicos: para mejorar la relacion campo-ciudad”. LA Network, julio de 2018.
CEPAL (2012). Poblacion, território y desarrollo sostenible.
Barbara Degenhart (2016). “La agricultura urbana: um fenomeno global”. Nuso n.° 262
FAO (2014). Agricultura urbana y periurbana
FAO (2014). Growing Greener Cities in Latin America and the Caribbean. An FAO report on urban and peri-
urban agriculture in the region.
Juliana Mercon et al. (2012). “Cultivando la educacion agroecologica. El huerto colectivo urbano como
espacio educativo”. Revista Mexicana de Investigacion Educativa vol. 17 n.° 55 [pp. 1201-1224]
“Ecuador: En Quito hay mas de 3.700 huertos urbanos”. El Productor, noviembre de 2019.
Mariana Barbosa de Souza y Ana Claudia Guske (2017). “Agricultura urbana: um olhar a partir da
agroecologia e da agricultura organica”. Revista do Desenvolvimento Regional vol. 14, n.° 1 [pp. 163,
165 y 166].
Graciela Ottmann (2009). “Reflexiones desde la agroecologia sobre la experiência de agricultura urbana.
Rosario, Argentina”. XXVII Congreso de la Asociacion Latinoamericana de Sociologia, Buenos Aires.
“Agroecologia urbana: una herramienta para la transformacion social. Entrevista a Antonio Lattuca”
(2015). Leisa vol. 32, n.° 2 [pp. 33-34]
Nicolas Clinton et al. (2018). “A global geospatial ecosystem services estimate of urban agriculture”.
Earth’s Future vol. 6, n.° 1 [pp. 40- 60]
Fernando Funes-Monzote (2009). Agricultura con futuro: la alternativa agroecologica para Cuba.
Matanzas: Estacion Experimental Indio Hatuey
Paula Restrepo et al. Practicas comunicativas en la agricultura urbana de Medellin. Tejido social, territorio
y saberes. Red de Huerteros Medellin
Ministerio de Educacion de Bolivia y FAO (2013). Sistematizacion de experiencias exitosas de huertos
escolares pedagogicos
Miguel A. Escalona (2018). “Los protocolos para producir semillas de calidad”. La Jornada del campo n.° 127
Beatriz Bellenda et al. (2018). “Agricultura urbana agroecologica: mas de una decada de trabajo de
Facultad de Agronomia (Udelar) junto a diversos colectivos sociales”. Agrociencia Uruguay vol. 22, n.°
1 [pp. 140-151]
Alain Santandreu e Ivana Cristina Lovo (2007). Panorama da agricultura urbana e periurbana noBrasil e
diretrizes politicas para sua promocao. Belo Horizonte: FAO, MDS, SESAN y DPSD
ONU (2006): “La inversion agricola contribuye a contener exodo rural, dice la FAO”.
Fernando Funes-Monzote (2019). “Ciudad-campo, campo-ciudad. Hacia una agricultura urbana y rural
interdependiente, multifuncional y socialmenteconectada”. Leisa, vol. 35, n.° 3 [pp. 9-10]
International Network of Community Supported Agriculture (CSA). Mapeo de Latinoamerica en Urgenci
UTT (2020). “Las Colonias Agroecologicas: una propuesta que crece en todo el pais”
Federico Paterno (2020). “Como pensar la vuelta al campo?”. La Tinta.
Acao Coletiva Comida de Verdade (2021). “Mapeamento de experiências em comida de verdade destaca
aprendizados essenciais sobre o abastecimento alimentar no Brasil”.
Comite Salsa
Rita Schwentesius de Rindermann (2015). “La Red Mexicana de Tianguis y Mercados Organicos –
Renovando sistemas de abasto de bienes de primera necesidad para pequenos productores y muchos
consumidores”. Revista Ciencias de la Salud vol. 24, n.° 4 [pp. 100-114].
Corporacion Ecologica y Cultural Penca de Sabila (2020). “Distrito Rural Campesino de Medellin cuenta
com respaldo administrativo”.
Corporacion Ecologica y Cultural Penca de Sabila (s. f.). “Distrito Rural Campesino de Medellin”.

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 23
Comercialização e distribuição agroecológica

DO CAMPO À MESA
Um dos maiores desafios da agroecologia é a dificuldade técnica e material para que os
alimentos produzidos no campo cheguem a outros consumidores. Para resolver essa
situação, foram criadas redes alternativas de distribuição, circuitos solidários, mercados,
feiras e outras soluções como as comunidades que sustentam a agricultura.

O
s acordos de livre comércio, as políticas que sustentam o sistema agroindustrial gera-
ram, entre outras coisas, a necessidade de excessiva intermediação para produzir, trans-
portar e comercializar alimentos. Antigamente, era comum os intercâmbios ocorrerem
em circuitos curtos e feiras agropecuárias inter-regionais, o que permitia que produtores e
consumidores tivessem um encontro que gerava vínculos, para além da transação em si. A
agroecologia busca recuperar essas relações comerciais mais estreitas, e criar canais para que
as comunidades possam comercializar seus excedentes a preços justos e com tratamento dig-
no, melhorando assim suas condições de vida.
No Brasil, existe desde 1998 a Rede Ecovida, uma organização descentralizada que ao longo
dos anos estendeu suas raízes para mais de 27 núcleos regionais em 352 municípios, associan-
do 340 grupos de agricultores (envolvendo cerca de 4,5 mil famílias) e 20 ONGs em mais de 120
feiras agroecológicas e outros espaços de comercialização.
Também no Brasil, crescem as experiências que aproximam agricultores familiares e con-
sumidores por meio de um mecanismo conhecido como Agricultura de Responsabilidade
Compartilhada ou “Comunidades que Sustentam a Agricultura”. Na cidade de Florianópolis,
por exemplo, existem as Células de Consumidores Responsáveis, um grupo de compra e venda
em que os consumidores pagam uma assinatura para financiar as safras do ano e, em troca,
recebem alimentos a cada semana. Dessa forma, o consumidor assume os riscos junto com o
produtor, para que este não precise se preocupar com o investimento, mas com a produção e a
colheita.

MERCADOS DIVERSIFICADOS COMO ESTRATÉGIA PARA O CAMPO

∙∙ Produtoras e produtores têm dificuldades em


produzir as quantidades exigidas nos tempos
estabelecidos pelas grandes cadeias de
comercialização.
∙∙ Grandes cadeias de comercialização demandam
maiores custos operacionais com classificação,
embalagem e transporte de produtos.
CRAVIOTTI e PALACIOS 2013

CIRCUITOS COMERCIAIS
Produtoras e DOMINADOS POR GRANDES
produtores EMPRESAS

MERCADOS LOCAIS
ALTERNATIVOS

Antes, eram uma fonte complementar de


renda, mas se tornaram, para muitos pequenos
agricultores, o principal canal de vendas.

Como explicam Craviotti e Palacios, com a liberalização dos mercados, as condições para que os pequenos produtores pudessem entrar
nos circuitos de comercialização mudaram. A chegada de produtos importados mais baratos favoreceu a venda nos supermercados,
e os padrões de qualidade impostos pela indústria tornaram-se marcos legais. Assim, as grandes empresas acabaram verticalizando
e controlando toda a cadeia agroalimentar – sementes, colheita, beneficiamento, transporte e comercialização –, excluindo
completamente os pequenos produtores.

24 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
MERCADOS LOCAIS ALTERNATIVOS

Relação direta entre produtores e Modelo de compras públicas Cozinhas tradicionais regionais
consumidores
∙∙ Programas de Alimentação Escolar (PAE): seu A alimentação está relacionada com a história
∙∙ Mercados de produtores rurais: datam
objetivo é promover e garantir o direito dos e a identidade dos povos. Na América Latina,
dos anos noventa. São mais constantes
estudantes à alimentação e à saúde. Procurou- a cozinha tradicional regional constitui um
e aproximam as famílias produtoras das
se que os pequenos produtores sejam os patrimônio que destaca as preparações à base
consumidoras.
provedores desses alimentos. de ingredientes e produtos locais. Cozinhas como
∙∙ Praças de Mercado
∙∙ Compras públicas por abastecimento: a mexicana e a peruana são os referentes mais
∙∙ Lojas solidárias
instituições públicas ou patrocinadas pelos comuns do turismo culinário, mas há cozinhas
∙∙ Comunidades que sustentam a agricultura governos, como lares, asilos, abrigos, orfanatos, emergentes com longa tradição histórica e
∙∙ Cestas (entrega em domicílio) prisões e sedes militares. grande potencial.

Esses circuitos ocorrem entre produtores do campo e consumidores da cidade, mas também
se realizam entre agricultores. É o caso da organização de cacaueiros Orgânicos de Chontalpa,
em Tabasco, México, formada por 642 produtores com propriedade média de 1,7 hectares de
terra, que há 15 anos preserva o consumo local de cacau e a riqueza biocultural. Um de seus
porta-vozes afirma: “Primeiro precisamos garantir que tenhamos o cacau para o consumo na
região: nós o consumimos todos os dias na forma de pozol1, que nos dá energia para trabalhar.
Os primeiros interessados em tê-lo somos nós, depois o compartilhamos com o mercado”.
O excedente, então, vai para as cidades. Nelas, as práticas de distribuição que deram os me-
lhores resultados são os mercados e as feiras de agricultores. Nesses espaços participam pro-
dutores urbanos, periurbanos e processadores de alimentos. Em Lima, Peru, existem 20 feiras
apoiadas pela RED-PRAUSA (formada por mulheres de áreas periurbanas), a associação CO-
SANACA (formada por agricultores urbanos) e a associação Monticelo. Os habitantes daquele
país têm uma forte ligação com a sua gastronomia, sendo comuns as alianças entre chefs e
agricultores. Um exemplo disso é a feira gastronômica MISTURA, que alimenta cerca de 30 mil
pessoas a cada ano e conscientiza sobre a qualidade dos produtos advindos do campo. Ali, tra-
balham 350 produtores de todas as regiões do Peru, e a cada ano participam mais de 50 restau-
rantes, 70 carrinhos de alimentos e cerca de 16 cozinhas rústicas, além de cozinhas regionais.
Outro bom exemplo dessas sinergias comerciais são os mercados locais no Uruguai. O de
Atlântida, em Canelones, surgiu de um projeto da Comissão Nacional de Fomento Rural, da
Rede Agroecologia, da associação Slow Food e da Comissão de Moradores da Estação Atlânti-
da, com o objetivo de vender e comprar produtos agroecológicos de forma direta. Na Argenti-
na, por sua vez, em uma pesquisa colaborativa organizada pela Rede Inter-regional de Nós de
Consumo Agroecológico, foram registrados cerca de 30 municípios agroecológicos, 21 nós de
consumo, 125 feiras, mais de 300 hortas com venda direta e 15 propriedades de compostagem
comunitária. Essas iniciativas se somam às realizadas por organizações camponesas e de pe-
quenos produtores como a Federação Rural pela Produção e Arraigo, a União de Trabalhadores
e Trabalhadoras da Terra ou o Movimento Nacional Camponês Indígena – Via Campesina, que
promovem diferentes estratégias de comercialização de sua produção agroecológica, como
canais curtos de comercialização, armazéns, mercados e feiras em todo o país.
Na América Central, as práticas de distribuição também são diversas. Em Honduras existem
organizações como a Rede Latino-Americana de Comercialização Comunitária (RELACC); na
Nicarágua existe a Rede Nicaraguense de Comércio; e na Costa Rica há uma extensa rede de
lojas e feiras de produtos orgânicos e agroecológicos, além de vendas porta a porta que foram
intensificadas pela quarentena, durante a pandemia.
Os circuitos de comercialização agroecológica também servem para que as mulheres ru-
rais possam gerar dinheiro com seus empreendimentos e encontrar horizontes diferentes do
trabalho não remunerado em casas ou quintais. Em Antioquia, Colômbia, na década de 1990,
surgiram organizações de mulheres camponesas que criaram mercados para oferecer seus
produtos. Entre elas encontra-se a Associação de Mulheres de Caramanta, a Associação de Mu-
lheres Organizadas de Yolombó e a Associação Sub-regional de Mulheres do Sudoeste (ASUB-

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 25
MATÉRIAS-PRIMAS PARA ENRIQUECER A TERCEIROS

$0,07 $0,16

$0,35
Cultivo
$2,80
Exportação
Preço final

WALLACH 2020
de uma xícara de café (473,17 ml) $0,04 Torrefação
nos Estados Unidos
Distribuição
$2,17
Venda no varejo

Esses valores (em dólares) correspondem à receita bruta de cada um dos setores da indústria cafeeira. A diferença entre o preço de
produção e o preço final de venda revela quem são os principais beneficiários do funcionamento atual da cadeia agroindustrial.

MUS). Esta última foi fundada em 2008 e integra cerca de 300 mulheres de organizações de
14 municípios desta região de Antioquia. A força dessas redes é a prova de que os mercados
não servem apenas para trocas comerciais, mas também para o compartilhamento de experi-
ências e o fortalecimento dos movimentos feministas camponeses, assim como para todos os
atores rurais.
Para facilitar a distribuição agroecológica, as organizações de agricultores da América Lati-
na promovem o fortalecimento das redes pelas quais os alimentos circulam.
Enquanto o agronegócio compra dos agricultores – em muitos casos - a preços irrisórios,
monopolizando a intermediação e reduzindo os alimentos à condição de mercadoria, a agro-
ecologia propõe a massificação de produtos agroecológicos a preços acessíveis em mercados
populares e justos para as agricultoras e agricultores, por meio de mecanismos diretos que ar-
ticulam setores populares do campo e da cidade.

1
Bebida espessa e nutritiva preparada à base de cacau e milho, consumida especialmente no sul do México, nos
estados de Tabasco e Chiapas, onde a bebida é tradicional e original.

FONTES

Érika Ramírez (2020). “Campo mexicano, atrapado entre el coyotaje agrícola y el transportista”.
Contralínea.
Evelia Oble Vergara (2015). “Proceso de corte y comercialización de la naranja en el norte de Veracruz,
México”. Ecodigma año 11.
Células de Consumidores Responsáveis (CCR)
Alberto Gómez Perazzoli et al (2018). Abastecimento alimentar redes alternativas e mercados
institucionais. (orgs.). Chapecó: UFFS; Cabo Verde: UNICV [p. 288].
Mariana Castillo (2019). “Producción de cacao en la Chontalpa”. El Universal.
Clara Craviotti y Paula Palacios (2013). “La diversificación de los mercados como estrategia de la agricultura
familiar”. Revista de Econo- mia e Sociologia Rural vol. 51 [pp. s063–s078].
P. 31. Fernando Alvarado et al. (2015). “Perú: Historia del movimiento agroecológico 1980-2015”.
Agroecología vol. 10, n.° 2 [pp. 77-84].
Gobierno de Canelones (2020). Soberanía, ciudadanía e identidad. Relato de la gestión de la Agencia de
Desarrollo Rural de la Intendencia de Canelones 2015-2020 [p. 101].
“Las rutas sanas del alimento”. Red Interregional de Nodos de Consumo Agroecológico.
Delphine Prunier et al. (eds.) (2020). Justicia y soberanía alimentaria en las Américas: desigualdades,
alimentación y agricultura. Ciudad de México: Universidad Nacional Autónoma de México, École
Urbaine de Lyon y Fundación Heinrich Böll.
Red de Mercados Agroecológicos Campesi- nos del Valle del Cauca – REDMAC.

26 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
SISTEMAS PARTICIPATIVOS DE GARANTIA

MAIS QUE UM SELO


DE CERTIFICAÇÃO
Os processos de certificação orgânica convencional de alimentos funcionam como formas de
controle e padronização que nem sempre favorecem a agricultura de pequena escala. A agroecologia
propõe a descentralização desses processos, sob a lógica de que o próprio grupo de agricultores,
agricultoras e as redes aliadas de consumidores são os mais indicados para garantir a origem
agroecológica dos alimentos.

O
s Sistemas Participativos de Garantia (SPG) nasceram nos anos 70, na Europa, para evitar
que os agricultores que não cultivavam de forma orgânica se apropriassem do selo para
vender os seus produtos. Nos anos 90 houve um ponto de inflexão: a exigência de uma
certificação emitida por parte de terceiros para que entidades alheias à rede de camponeses
dessem sua aprovação, o que tornou ilegais os SPGs, anulando sua natureza comunitária e par-
ticipativa e tirando a autonomia dos produtores e consumidores.
Entretanto, na América Latina os SPGs tornaram-se a principal forma de certificar a produ-
ção orgânica. Foi uma escolha óbvia, pois o componente participativo desses sistemas ressoa
com as bases da agroecologia. A certificação exige uma relação direta entre produtores, con-
sumidores e outros atores comunitários, que verificam a origem e a condição dos produtos
agroecológicos entre si, atuando como pares. Desta forma, eles garantem a produção, comer-
cialização e consumo de orgânicos nos mercados locais e regionais, além de dividirem os cus-
tos das certificações entre todos os nós do sistema.
A Rede Ecovida, no Brasil, é uma experiência que tem servido de exemplo de certificação
participativa. Entre as iniciativas que surgiram da Ecovida está a Rede Povos da Mata, creden-
ciada em 2016, e cenário de interação entre 135 unidades de produção certificadas. Destaca-se
por sua organização em rede, que envolve ONGs, movimentos sociais, comunidades tradicio-
nais, assentamentos e entidades governamentais que, quando articuladas, garantem a quali-
dade dos alimentos.
A Rede Agroecológica do Austro (RAA), no Equador, promoveu leis para o reconhecimento
da agroecologia e dos SPGs, e conquistou algo importante no que diz respeito à certificação
participativa: em 2006, através de um Acordo Ministerial, conseguiu que o agroecológico dei-
xasse de ser sinônimo de “orgânico”. O principal objetivo dessa rede é promover a transição
agroecológica, e sua certificação consiste em etapas pelas quais os agricultores passam à me-
dida que melhoram seus padrões, sob a premissa de que a certificação agroecológica, diferen-
temente da orgânica, não é um ponto de chegada, mas um caminho a percorrer.
No Peru, a Associação Nacional de Produtores Orgânicos (ANPE-PERU) une forças para ma-
terializar uma proposta de Agroecologia Nacional. Possui 32,6 mil associados em 20 bases re-
gionais e 172 organizações locais. Atualmente há neste país 70 mil produtores orgânicos certi-
ficados e quase 500 mil hectares de cultivos orgânicos.
O caso da Bolívia confirma a força dos SPGs nos países andinos. Em 2015, foram registradas
15.814 unidades produtivas agropecuárias certificadas mediante o selo, cuja superfície alcan-
çava 240 mil hectares, equivalentes a 6,44% da superfície cultivada do país; 162 mil toneladas
de alimentos foram produzidas ali, equivalentes a 0,94% da produção agrícola total. Estes nú-
meros se devem em parte aos marcos regulatórios, como a Lei 3.525, que promove a produção
agroecológica e permite que os agricultores orgânicos tenham um acesso diferenciado aos
mercados locais. Esta lei permitiu a capacitação de 7 mil produtores, a consolidação de 17 SPGs,
a classificação de 650 produtores agroecológicos e 2,7 mil em transição.

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 27
Sistema Participativo de Garantia na América Latina: Para além da confiança

Certificação de Terceiros Sistema Participativo de Garantias

Mecanismo Mecanismo Certifica


de geração de de geração de a pessoa
Certifica confiança confiança produtora e
um produto seu manejo
específico das culturas
A garantia
como um fim A garantia
em si como meio
para outros fins
A verificação é sociais, políticos,
feita através da econômicos e
auditoria anual de culturais
um técnico
A verificação é feita por meio
de visitas de grupos de controle
social formados por produtores,
Uma entidade consumidores e técnicos
certifica
autorizando
o uso de um O grupo
selo visitante
certifica por
Os custos são assumidos meio de uma
pela pessoa que pretende aprovação ao
ser certificada uso do selo

A informação Os custos são


não é pública. A
CUÉLLAR (s. d.) | MENDIOLA 2017

assumidos graças a
confidencialidade uma taxa anual que é
é obrigatória paga à associação

A informação é pública.
Todos os membros da
associação conhecem
os resultados e os
mecanismos de controle

Como explica Cecilia Mendiola, consumir implica assumir uma posição política que pode contribuir para a consolidação de sistemas
sustentáveis de produção. Para isso, a implantação de Sistemas Participativos de Garantia é fundamental, pois promovem o consumo
consciente e solidário.

Na Colômbia, a Rede de Mercados Agroecológicos Camponeses do Vale do Cauca (REDMAC)


desenhou um SPG que hoje certifica os alimentos de 154 famílias produtoras em nove municí-
pios dessa região. Um de seus mecanismos é o contato direto entre produtores e consumidores
durante os dias de mercado, além das visitas às propriedades rurais para endossar os sistemas
produtivos e fortalecer a solidariedade entre os diversos atores.
Na Argentina, a primeira experiência deste tipo foi a criação do Conselho de Garantia Par-
ticipativa de Produtos Agroecológicos de Bella Vista, Corrientes, constituído em 2007 por fa-
mílias agricultoras, consumidoras e instituições públicas locais e nacionais. Ao contrário de
outras iniciativas que certificam seus produtos como orgânicos, o Conselho optou pelo sistema
participativo para poder vender seus alimentos como produção agroecológica; até 2015 havia
certificado 15 agricultores familiares, cujos alimentos chegaram à mesa de pelo menos 100
consumidores diretos. A partir daí, as experiências se multiplicaram por todo o país e em 2022
foi realizado o I Encontro Nacional de Sistemas Participativos de Garantia com a participação
de representantes de 40 SPGs.
Cabe esclarecer que os selos orgânicos certificados via auditorias geralmente não fornecem
informações sobre dimensões como trabalho digno, renda justa, diversificação de cultivos e
equidade social, diferentemente do que acontece com os SPGs, que são construídos de baixo

28 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
para cima. Além disso, os valores da certificação por auditoria, muitas vezes impedem que
agricultores familiares certifiquem seus produtos, além de transformarem os alimentos em
um produto de elite para os consumidores Como diz Joselo Trujillo, agricultor argentino, “a
certificação agroecológica [...] tem a ver com a vida das pessoas; o orgânico refere-se apenas ao
produto. A agroecologia também é convivência cordial com os nossos filhos e nossos irmãos,
moradias confortáveis [...]. É conhecer as pessoas que recebem as verduras, fazer alianças e re-
duzir os intermediários na comercialização para que o preço seja justo também para o consu-
midor”. Mas todas essas informações não cabem em um selo. Estas variáveis da produção agro-
ecológica são socializadas com a comunidade em reuniões, visitas de campo e capacitações. Os
SPGs costumam dar resultado em lugares onde a coesão social é forte e já existem plataformas
de diálogo comunitário; daí a estreita relação entre os movimentos sociais e os processos de
comercialização nos quais a agroecologia aposta.

FONTES

“La certificación de productos orgánicos, caminos y descaminos”. Laércio Meirelles. Semillas n.° 21, julio
de 2004.
Sistemas Participativos de Garantía. Una herramienta clave para la soberanía alimentaria. Eva Torremocha.
Mundubat [s. f.].
Aloísia Rodrigues Hirata y Luiz Carlos Dias Rocha (orgs.) (2020). Sistemas participativos de garantia do
Brasil: Histórias e experiências. Pouso Alegre: Ifsul de minas.
Mauricio Pino Andrade (2017). “Los Sistemas Participativos de Garantía en el Ecuador. Aproximaciones a
su desarrollo”. Letras Verdes, Revista Latinoamericana de Estudios Socioambientales, n.° 22 [pp. 120-
145].
Rede Ecovida de Agroecologia de Brasil.
“Certificación de productos”. Asociación Nacional de Productores Ecológicos del Perú ANPE-PERU.
Fernando Alvarado et al. (2015). “Perú: Historia del movimiento agroecológico 1980- 2015”. Agroecología
vol. 10, n.° 2 [pp. 77-84].
Eduardo López Rosse (2016). “¿Cómo puede medirse la agroecología? Grupo de Evaluación Agroecológica
para pequeños productores organizados en Bolivia”. Leisa, vol. 32, n.° 3 [pp. 20-22].
Fundación Agrecol Andes y FAO (2018). Diagnóstico de producción ecológica en Bolivia e identificación
de necesidades de capacitación.
Red de Mercados Agroecológicos Campesinos del Valle del Cauca – REDMAC.
María Mercedes Pereda et al (2015). “Los SPG como promotores de la agroecología y soberanía alimentaria
la experiencia de Bella Vista - Corrientes - Argentina”. Memorias del V Congreso Latinoamericano de
Agroecología. La Plata, Argentina.
UTT (2020) “Certificaciones agroecológicas: sin veneno y con justicia social”.
Cecilia Mendiola (2017). “Consumidores y productores: relaciones basadas en la confianza”. Leisa vol. 33,
n.° 4 [pp. 5-7].
Mamen Cuéllar Padilla (s. f.). Los Sistemas Participativos de Garantía ecológica vs. la certificación
ecológica por tercera parte: analizando el sinsentido de su no aceptación oficial. Córdoba: Universidad
de Córdoba.

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 29
POLÍTICAS PÚBLICAS

POLÍTICAS AGROECOLÓGICAS
“DESDE ABAIXO”
Graças à pressão de movimentos e organizações que se articulam em torno da
agroecologia e da soberania alimentar, alguns países da América Latina avançaram na
construção de marcos jurídicos e políticos rumo à transição a sistemas agroalimentares
alternativos. Além disso, as crises econômicas, ambientais e políticas forçaram os Estados
a buscar formas sustentáveis de produção de alimentos e de desenvolvimento rural. No
entanto, muitas leis e instituições permanecem no papel ou não alcançam mudanças
estruturais, sendo facilmente desmontadas a depender do governo.

A
expansão agroecológica na América Latina mostrou que a transição para esse novo pa-
radigma não se dá por decreto; ao contrário, surge dos processos dinâmicos que ocorrem
nas comunidades. As leis para essa transição devem ser adaptadas aos territórios e enfa-
tizar não os aspectos técnicos da produção e distribuição de alimentos, mas sim os problemas
históricos do continente, como a necessidade de construir um modelo baseado na soberania
alimentar como direito dos povos, conforme consta na Declaração das Nações Unidas sobre os
Direitos dos Camponeses e Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais.
A agroecologia e a agricultura familiar, camponesa, indígena e comunitária estão lenta-
mente entrando nas legislações, algumas nacionais e outras de natureza mais local. Embora
haja um grande número de regulamentações, a maioria está relacionada à “agricultura orgâ-
nica”, “agricultura convencional”, “agricultura sustentável” e certificação para fins de agroex-
portação, ou seja, com tendências e abordagens voltadas para conglomerados agroindustriais;
além disso, muitas são meras declarações ou possuem natureza técnica, com pouco alcance
real.
Por esta e outras razões, o Coletivo Agroecológico do Equador, junto com outros agricultores
e organizações, travou uma longa batalha durante a primeira década dos anos 2000 para que a
agroecologia fosse separada daquelas outras classificações que ignoram os problemas sociais
subjacentes. Esse mesmo movimento conseguiu a aprovação, em 2010, da Lei Orgânica do Re-
gime de Soberania Alimentar, pela qual o Estado se compromete a fortalecer as redes de pro-
dutores, consumidores e comerciantes, para assim estimular a equidade entre territórios ur-
banos e rurais, o consumo de produtos agroecológicos e a conservação da agrobiodiversidade.
No Cone Sul, podem ser vistos outros exemplos de legislações que surgem de organizações
sociais e se articulam com um arcabouço institucional multissetorial. Em 2015, no Uruguai, a
Rede de Agroecologia, a Rede Nacional de Sementes Nativas e Crioulas e a Sociedade Científica
Latino-Americana de Agroecologia iniciaram a construção participativa das diretrizes gerais
do Plano Nacional de Agroecologia. Isso foi um precedente para a promulgação da Lei 19.717,
que declarou a agroecologia de interesse geral e criou uma comissão para elaborar o Plano
Nacional para o Fomento da Produção com Bases Agroecológicas. A comissão apresentou seu
progresso em fevereiro de 2020. No entanto, em 2022, com a mudança do governo nacional, da
presidência da comissão e das representações das instituições públicas, houve estancamentos
e retrocessos, devido a questionamentos relativos aos fundamentos do plano e a tentativas de
mudança nos conteúdos que haviam sido construídos do zero, de forma participativa.
Na Argentina, em 2020, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Pesca da Nação criou a Di-
reção Nacional de Agroecologia, com o objetivo de construir e implementar políticas públi-
cas voltadas para a transição agroecológica, somando-se a programas já existentes como o
ProHuerta, surgido no final dos anos oitenta para mitigar a crise alimentar causada pela hi-

30 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
CONDIÇÕES PARA A TRANSIÇÃO AGROECOLÓGICA

Cuidar dos Garantir o


problemas acesso e
históricos não redistribuição
resolvidos da terra

Construir um
modelo baseado
na soberania
alimentar
Adaptar-se às
características
dos territórios

ROSSET e ALTIERI 2018


Os movimentos sociais devem defender uma agroecologia política e de base, que desafie e transforme as estruturas de poder, por
exemplo, colocando o controle das sementes, os territórios, a água e outros bens comuns nas mãos das comunidades.

perinflação, promovendo a autoprodução nas hortas familiares. Na Bolívia, o Conselho Nacio-


nal de Produção Ecológica (CNAPE) foi criado em 2010, no âmbito da Lei de Regulamentação e
Promoção da Produção Agropecuária e Florestal não-Madeirável Ecológica de 2006 (Lei n.º 3.525),
que declara a produção ecológica como uma questão de interesse nacional, e a Lei de Revolução
Produtiva Comunitária Agropecuária de 2011 (n.º 144), que promove a produção orgânica e eco-
lógica e sua inclusão nos serviços agropecuários e na educação técnica.
No Brasil, a agricultura familiar é reconhecida como uma categoria importante desde mea-
dos da década de 1990, e desde 2003, durante a primeira presidência de Luiz Inácio Lula da Sil-
va, algumas legislações foram implementadas para fortalecer essa forma de produção, entre
elas, a ampliação de recursos investidos no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricul-
tura Familiar (PRONAF), institucionalizado em meados dos anos 1990. O programa consolidou
uma estrutura de financiamento para esse público, com condições e taxas diferenciadas.
Um aspecto interessante do caso brasileiro é que a circulação de ideias agroecológicas na
política institucional também se deu por meio da criação de instâncias participativas para mo-
nitorar a implementação de políticas públicas e legislações. Destaca-se os conselhos de segu-
rança alimentar e nutricional e os conselhos de desenvolvimento rural sustentável (em nível
nacional, estadual e municipal).
Outra frente importante das políticas voltadas para a agricultura familiar foram os progra-
mas de aquisição e distribuição da produção desse grupo, como o Programa de Aquisição de
Alimentos (PAA), instituído em 2003, e a reconfiguração do Programa Nacional de Alimenta-
ção Escolar (PNAE), programa de 1979 que a partir de 2009 passou a destinar 30% de seus recur-
sos à aquisição de alimentos produzidos pela agricultura familiar.
A construção dessas diferentes políticas culminou na pioneira Política Nacional de Agroeco-
logia e Produção Orgânica (PNAPO), criada em 2012 e instrumentalizada pelos Planos Nacio-
nais de Agroecologia e Produção Orgânica (PLANAPO), cuja primeira fase ocorreu em 2013, e a
segunda em 2016. A PNAPO articula diferentes ministérios e órgãos federais em torno de ações
voltadas para a promoção da agroecologia e da agricultura orgânica. Um dos programas que
surgiram no bojo da PNAPO foi o Programa Ecoforte, que promoveu o apoio a redes territoriais
de agroecologia, a partir de projetos formulados e propostos pelas próprias redes, articulando
uma grande diversidade de temas e ações. Os projetos combinaram recursos para fomento e
para formação e organização social e política. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 31
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O avanço DA AGROECOLOGIA

ROSSET e ALTIERI 2018


∙∙ Mais Estado no mercado de alimentos e menos mercado no Estado.
Promover o manejo conjunto entre o setor público e as organizações de
produtores e consumidores.

∙∙ Impedir a grilagem de terras e implementar uma reforma agrária


abrangente e popular.

∙∙ Direcionar a aquisição pública de alimentos para produtos do campo, de


origem familiar, orgânica e agroecológica.

∙∙ Apoiar as comunidades através de subsídios de preços e créditos que


elas próprias possam administrar.

∙∙ Reorientar o apoio à pesquisa e educação para processos


liderados por agricultores, em temas como sementes e
tecnologias agroecológicas.

∙∙ Proibir os transgênicos e os agrotóxicos.

∙∙ Realizar campanhas educativas junto aos consumidores sobre as vantagens


de uma sociedade com agricultores e agricultura familiar orgânica e
agroecológica e proibir os alimentos ultraprocessados nas escolas.

acompanhou e sistematizou 25 dessas redes envolvendo 488 organizações, evidenciando os


resultados do programa e fortalecendo as raízes do movimento.
A partir de 2016, entretanto, o Brasil passou a enfrentar medidas austeras que levaram ao
desmonte de uma série de políticas públicas. Em 2019, no início do governo de Jair Bolsona-
ro, as instâncias participativas sofreram um duro ataque, e a PNAPO não ficou de fora. Seus
colegiados de gestão, a Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica e a Câmara
Interministerial de Agroecologia e Produção Orgânica, foram extintos. Diversas outras políti-
cas públicas voltadas para o setor também sofreram desmontes durante essa gestão: os progra-
mas de escoamento de produção familiar tiveram grandes cortes orçamentários, o Ministério
do Desenvolvimento Agrário foi extinto e a reforma agrária foi praticamente paralisada. Em
junho de 2023, o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva reestabeleceu os ór-
gãos de gestão da PNAPO, retomando a política.
O caso brasileiro prova que, muitas vezes, o que se constrói com dificuldade, desde a base,
pode ser facilmente prejudicado, a partir de cima; daí a necessidade de que as redes agroecoló-
gicas sejam fortes e resilientes. As experiências indicam que os estados avançam nas políticas
públicas agroecológicas quando os cidadãos se organizam e pressionam os governos defen-
dendo a coerência da proposta agroecológica, que clama por uma reforma agrária integral e
popular, com terra para aqueles que a habitam e nela trabalham.

FONTES

Eric Sabourin et al. (org.) (2017). Politicas publicas a favor de la agroecologia en America Latina y El Caribe.
Porto Alegre: Evangraf / Criacao Humana, Red PP-AL y FAO.
Jean Le Coq et al. (2018). “Politicas publicas que promueven la agroecologia y produccion organica en

32 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
America Latina”. III Conferencia Internacional de Agricultura e Alimentacao em uma Sociedade
Urbanizada, Porto Alegre.
Redes de agroecologia para o desenvolvimento dos territórios: aprendizados do Programa Ecoforte.
Claudia Job Schmitt et al. Rio de Janeiro: ANA, 2020.
Regina Helena Rosa Sambuichi et al. (orgs.) (2017). A política nacional de agroecologia e produção
orgânica no Brasil: uma trajetória de luta pelo desenvolvimento rural sustentável. Brasilia: Ipea.
Mateo Mier y Teran et al. (2018). “Bringing agroecology to scale: Key drivers and emblematic cases”,
Journal Agroecology and Sustainable Food Systems vol. 42, n.° 6 [pp. 637-665].
Rodrigo Curto et al. (2021). “Politicas publicas de agroecologia en el Cono Sur de America Latina”. Apuntes
Agroeconomicos, Facultad de Agronomia de la Universidad de Buenos Aires, ano 15, n.° 21.
REDES - Amigos de la Tierra (2020). “Plan Nacional de Agroecologia: una hoja de ruta para producir y
consumir”.
Raquel Torres (2023). Especialistas apontam caminhos para retomar a política nacional de agroecologia.
O Joio e o Trigo; De Olho Nos Ruralistas.
Paulo André Niederle et al. (2019). A trajetória brasileira de construção de políticas públicas para a
agroecologia. Revista do Desenvolvimento Regional.

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 33
MUDANÇAS CLIMÁTICAS

AGROECOLOGIA PARA
FREAR A CRISE
Entre as populações mais vulneráveis à mudança climática estão os agricultores familiares e de
pequena escala do sul global. Entretanto, muitos desses camponeses mostraram maior capacidade
de adaptação graças à implementação de práticas sustentáveis, tanto aquelas que herdaram de seus
antepassados quanto aquelas que foram sistematizando em diálogo com outras famílias, técnicos e
cientistas que trabalham com o enfoque agroecológico.

A
agricultura industrial traz grandes impactos para o meio ambiente. O sistema agroali-
mentar é responsável por 44 a 57% de todas as emissões na atmosfera de diferentes gases
de efeito estufa (GEE), como o dióxido de carbono (CO2) e o metano (cem vezes mais noci-
vo que o CO2). Somente a agricultura industrial contribui com 10 a 15% dessas emissões, e por
isso é considerada um dos motores do aquecimento global.
Os prejuízos causados pelo agronegócio devem-se principalmente ao desmatamento e às
mudanças no uso do solo para ampliar a fronteira agrícola, ao uso de hidrocarbonetos para
fazer fertilizantes e transportar alimentos, à demanda de energia para o processamento, re-
frigeração e empacotamento dos alimentos, assim como à poluição pelos agrotóxicos e pelos
resíduos de todos esses processos. Por outro lado, a pecuária industrial consome muita energia
de combustíveis fósseis (8%) e emite quantidades significativas de metano na atmosfera, contri-
buindo com cerca de 12% para as emissões globais de GEE.
Camponeses e agricultores que aprenderam a prever as chuvas e as secas graças ao saber de
seus antepassados denunciam hoje que os verões estão cada vez mais rigorosos e a terra mais
árida. O planeta não tinha visto um aumento tão rápido nos níveis de CO2 nos últimos três mi-
lhões de anos. As medições das estações meteorológicas do mundo, constantes e confiáveis há
pelo menos um século, mostram que a temperatura média global aumentou 1,2 graus centí-
grados desde a Revolução Industrial. Em 17 de novembro de 2023, após intensas ondas de calor
no Sul Global, a temperatura da Terra ultrapassou um limite considerado crucial por cientistas
que há décadas alertam para as mudanças climáticas: pela primeira vez, a temperatura média
global superou 2º C acima dos níveis pré-industriais. Os dados são do Serviço de Alterações Cli-
máticas Copernicus, sediado na Europa.
Algumas regiões estão mais expostas a estas mudanças. Por exemplo, os municípios do Cor-
redor Seco da América Central (CSC) que se estende do sul do México ao norte da Costa Rica,
onde o principal meio de subsistência é a agricultura. Segundo dados do Ministério do Meio
Ambiente de El Salvador, esse país passou de um evento extremo por década (nos anos 60 e 70)
para oito eventos (na década de 2000), o que resultou em erosão, secas, deslizamentos de terra
e inundações.
No CSC, como em outras regiões vulneráveis, os agricultores implementam práticas agroe-
cológicas como a diversificação de cultivos com espécies frutíferas e forrageiras e integração
animal; o uso de sementes nativas resistentes a certos fenômenos; a gestão adequada da água
e de mecanismos naturais para prevenir pragas; e a restauração dos solos através do aumento
de matéria orgânica.
Um estudo realizado em mais de 1.800 propriedades rurais na Nicarágua, Honduras e Gua-
temala constatou que os locais onde são implementadas práticas agroecológicas têm mais solo
arável, mais umidade e menos erosão, e sofrem menos perdas do que os sistemas convencio-
nais. Pesquisas realizadas após a passagem dos furacões Ike em Cuba e Stan no México mostra-
ram que as propriedades rurais mais diversificadas sofreram menos perdas do que aquelas com

34 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
O AGRONEGÓCIO É O MOTOR DA CRISE CLIMÁTICA – Como o sistema alimentar agroindustrial colabora com a crise climática

GRAIN 2016
Entre 44 e 57% das emissões de
Gases de Efeito Estufa
vêm desse sistema
2 a 4%
3 a 4%
5 a 6%
Refrigeração
8 a 10%
43 a 56% Desperdiço

Transporte

Processamento e embalagem
11 a 15%
Processos agrícolas

Desmatamento

Outras emissões não relacionadas


15 a 18% ao sistema alimentar agroindustrial

A agricultura desempenha um papel importante na crise climática e pode desempenhar um papel importante também na solução.

monoculturas e se recuperaram dos danos mais rapidamente. E, de acordo com outro estudo,
algumas das regiões do México que guardam mais variedades de milho (algo que também está
associado à diversidade étnica e cultural) são menos vulneráveis à mudança climática.
Na região Andina também se reconhece cada vez mais o potencial dos conhecimentos tra-
dicionais para a adaptação ao aquecimento global, já que ali as comunidades tiveram que en-
frentar condições extremas e de alta variabilidade. Ainda existem comunidades como a dos
q'eros em Cusco, no Peru, que manejam os cultivos em diferentes altitudes ecológicas: de janei-
ro a junho cortam árvores e cultivam milho nas yungas amazônicas (floresta andina e selva de
montanha a 1.600 metros acima do nível do mar), e entre agosto e dezembro, plantam batatas
e tosquiam alpacas e ovelhas na puna (planalto de alta montanha a uns 4.200 metros acima do
nível do mar). Da mesma forma, no Brasil, um país que liberou 2,4 bilhões de toneladas de CO2
em 2021, são produzidas menos emissões de GEE em terras indígenas e unidades de conserva-
ção; isto se deve a práticas agroecológicas como a reciclagem de biomassa, que evita o uso de
fertilizantes e a emissão de bilhões de toneladas de CO2, e reduz a emissão de metano e óxido
nitroso dos aterros sanitários.
Outra experiência pioneira na reutilização da biomassa é a RedBioCol, na Colômbia, que ar-
ticula quase 100 organizações em torno do aproveitamento da matéria orgânica. Utilizando
tecnologias como a biodigestão, as organizações desta rede transformam os resíduos orgâni-
cos para produzir um fertilizante de alta qualidade e um biogás que substitui o propano em
muitas residências.
Entretanto, essas práticas estão sob ameaça de fatores como a expansão das monoculturas,
a migração do campo para as cidades (que impede a transmissão dos saberes tradicionais) e a
própria mudança climática (que modifica os ciclos naturais de plantio e colheita). Além disso,
grandes organizações como a Aliança Global para a Agricultura Climaticamente Inteligente,
e projetos público-privados como a Iniciativa de Agricultura Sustentável (SAI, por sua sigla em
inglês), a Nova Visão para a Agricultura (NVA) e a Coalizão para a Nova Economia da Alimenta-
ção e Uso do Solo disputam os princípios agroecológicos para difundir a ideia de que é possível
reduzir o aquecimento global sem mudanças profundas no agronegócio.

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 35
5 PASSOS PARA BAIXAR A TEMPERATURA DO PLANETA
Chega de falsas soluções: o
Restituição de terras:
Alimentos locais: a lógica agronegócio é conhecido por
Cuidar dos solos: a perda Cultivar sem agrotóxicos: 191 milhões de hectares ser um grande emissor de GEE.
o uso de produtos químicos corporativa, que transporta (uma área tão grande
de matéria orgânica é alimentos pelo mundo todo, Soluções tecnológicas como
esgota os solos e torna quanto o México) são usados
responsável por entre 25 e não faz sentido de nenhuma a agricultura climaticamente
resistentes as pragas e ervas para 5 culturas comerciais.
40% do atual excesso de perspectiva. inteligente e a intensificação
CO2 na atmosfera. daninhas.
sustentável apenas
renomeiam o problema.

FAO 2015
O sistema agroalimentar Os camponeses se
Esse excesso poderia As comunidades diversificam poderia reduzir as emissões espremem em menos de um
seus sistemas com reorientando-se para os quarto das terras agrícolas; É necessário passar do
ser devolvido ao solo por
policulturas, integram a mercados locais e para no entanto, produzem a agronegócio nas mãos das
meio de práticas que as
produção agrícola com os alimentos frescos, maior parte dos alimentos do corporações para sistemas
comunidades camponesas
a pecuária e incorporam distanciando-se da carne e mundo (80% nos países não locais administrados por
preservaram por gerações.
árvores e vegetação silvestre. dos alimentos processados. industrializados). comunidades camponesas.

Com os alertas vermelhos, as tentativas de resolver as drásticas mudanças do planeta apenas


mediante a redução das emissões de veículos, fábricas e usinas elétricas estão condenadas ao
fracasso, adverte um relatório do Grupo Intergovernamental de Especialistas sobre a Mudança
Climática (IPCC, por sua sigla em inglês). Uma de suas conclusões é que é impossível manter
temperaturas 2°C abaixo da média global, a menos que também seja modificada a forma como
o mundo produz alimentos e administra os solos.

FONTES

Nadia El-Hage Scialabba y Caroline Hattam (eds.) (2003). “Agricultura organica y cambios climaticos”.
Agricultura organica, ambiente y seguridad alimentaria. FAO.
Miguel A. Altieri y Clara I. Nicholls (2017). “Estrategias agroecologicas para enfrentar el cambio climatico”.
Leisa, vol. 33, n.° 2 [pp. 5-9].
Miguel A. Altieri y Clara I. Nicholls (2018). “Agroecologia y cambio climatico: adaptacion o
transformacion?”. Revista de Ciencias Ambientales vol. 52, n.° 2 [pp. 235-243].
Walter Gomez (2018). “La agroecologia en el Corredor Seco Mesoamericano”. La Agroecologa.
GRAIN (2016). El gran robo del clima. Por que el sistema agroalimentario es uno de los motores de la crisis
climática y que podemos hacer al respecto. Mexico: Itaca.
La Via Campesina (2007). Los pequenos produtores y la agricultura sostenible estan enfriando el planeta.
Punto de vista de La Via Campesina, documento 3.
Miguel A. Altieri y Clara I. Nicholls (2009). “Cambio climatico y agricultura campesina: impactos y
respuestas adaptativas”. Leisa, vol. 24, n.° 4 [pp. 5-7].
Eric Holt-Gimenez (2001). “Midiendo la resistencia agroecologica de los agricultores contra el huracan
Mitch”. Leisa, vol. 17, n.° 1 [pp. 7-11].
Primo Sanchez Morales (2014). El cambio climatico y la agricultura campesina y indigena sostenible en el
centro y sur de Mexico. PIDAASSA.
Carolina Ureta et al. (2011). “Projecting the effects of climate change on the distribution of maize races
and their wild relatives in Mexico”. Global Change Biology vol. 18, n. 3.
David G. McGrath. (1987). “The Role of Biomass in Shifting Cultivation”. Human Ecology vol. 15, No. 2
Lylian Rodriguez Jimenez (2021). “La energia de la biomasa y la transicion energetica justa en Colombia:
La experiencia de la Red Colombiana de Energia de la Biomasa, RedBioCol”. Energias para la transicion.
Reflexiones y relatos. Bogota: CENSAT y Fundacion Heinrich Boll [pp. 259-267].
Alberto Alonso-Fradejas et al. (2020). “Agroecologia chatarra”: La captura corporativa de la agroecologia
para una transicion ecologica parcial y sin justicia social. Amigos de la Tierra Internacional,
Transnational Institute y Crocevia.
Juliette Michel/AFP (2023). “Pecuária representa 12% das emissões de gases de efeito estufa, diz FAO”.
Letycia Bond/Agência Brasil (2023). “Brasil registra alta nas emissões de gases de efeito estufa”.

36 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
SOBERANIA ALIMENTAR

A AGROECOLOGIA COMO PILAR DO


DIREITO À ALIMENTAÇÃO
Os habitantes das áreas rurais, onde é produzida a maior parte dos alimentos consumidos no mundo,
encontram-se, muitas vezes, em situação de insegurança alimentar. A fome e a má nutrição na América
Latina, provocadas não pela carência de alimentos, mas pela ausência de direitos, refletem a falta de
garantias para a alimentação adequada e saudável de pessoas, famílias e comunidades.

N
a América Latina, 47,7 milhões de pessoas sofreram com a fome em 2019. Este número
equivale a quase toda a população da Espanha, e se essa tendência for mantida, em 2030
poderá chegar a 67 milhões. Isso é especialmente preocupante pelo continente se tratar
de um território biodiverso com uma alta capacidade de produção diversificada de alimentos.
Apesar de o consumo geral de calorias por pessoa ter aumentado nas últimas décadas, a di-
versidade alimentar diminuiu. A FAO estima que o mundo perdeu nada menos do que 75% da
diversidade de cultivos no século passado.
Diante disso, a agroecologia aspira a construir e alcançar a soberania alimentar, um conceito
proposto pela Via Campesina em 1996, entendido como o direito dos povos e das comunidades
de definir suas próprias políticas agrárias, pecuárias, trabalhistas, pesqueiras e alimentares,
que sejam de base ecológica, social, laboral e culturalmente adequadas. Também impulsiona-
da por organizações e movimentos camponeses em todo o mundo, em seu artigo 15, a Decla-
ração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses inclui este conceito e diz: “Os Estados
devem zelar que os camponeses e outras pessoas que trabalham em áreas rurais possam aces-
sar a todo momento [...] uma alimentação adequada que seja produzida e seja consumida de
maneira sustentável e equitativa, respeite sua cultura, preserve o acesso das gerações futuras
à alimentação e às garantias de uma vida digna e satisfatória”.

DEPENDÊNCIA DE IMPORTAÇÃO GERA FOME

Porcentagem das
importações de
alimentos em 2020
<9,46%

9,46 a 13,6%
BANCO MUNDIAL 2020

13,6 a 18,4%

18,4 a 25,65%

>25,65%

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 37
Na prática, a América Latina está experimentando uma homogeneização alimentar e o au-
mento do consumo de produtos ultraprocessados. Nas últimas décadas, alguns países como a
Argentina e o Brasil passaram a fazer parte dos principais produtores e exportadores de soja e
derivados, com impactos negativos para a produção de alimentos consumidos internamente.
Enquanto isso, vários países se tornaram importadores de alimentos que poderiam produzir,
principalmente milho, arroz, trigo e cevada. É o caso do Panamá, que importa três vezes mais
alimentos do que exporta, segundo os dados do Instituto de Pesquisa Agropecuária desse país.
Na América Central, de acordo com o Relatório do Estado da Região de 2016, a dependência do
milho na região “aumentou de 41,6% em 1990-2000 para 55,2% em 2001-2013, do arroz passou
de 21,9% para 38,7% e do feijão de 12,6% para 19,3%”.
Paradoxalmente, outro problema é que grande parte dos alimentos cultivados são consumi-
dos por outros países. Na Costa Rica, por exemplo, 69% da produção agrícola industrial é vol-
tada para a exportação, principalmente banana (55%), abacaxi (16%) e café (9%), monoculturas
que deslocaram a produção de alimentos básicos como o milho e o feijão, de acordo com a Pro-
motora de Comércio Exterior da Costa Rica.
Para defender o direito à alimentação, a agroecologia propõe a diversificação de culturas,
a produção para o abastecimento prioritário das comunidades locais e a comercialização nos
circuitos locais. Segundo o Relator Especial sobre o Direito à Alimentação da ONU, desde 2011
cresce o consenso global em torno da agroecologia como a principal forma de combater a
fome e a mudança climática. Além disso, argumenta-se que a principal causa da insegurança
alimentar é a falta de acesso ao conhecimento, a falta de recursos para a produção e de contro-
le sobre os agroecossistemas por parte dos povos.
De acordo com um estudo da Associação Nacional para a Promoção da Agricultura Ecoló-
gica (ANAFAE), em Honduras uma propriedade rural agroecológica supera em muito as co-
lheitas das propriedades rurais convencionais, tanto em quantidade quanto em variedade, e
pelo menos 80% dos alimentos para o consumo semanal de uma família rural ou semiurbana
é produzido nestes tipos de unidades produtivas. Também é notável o caso dos circuitos de cir-
culação e comercialização do Brasil, dos que fazem parte a Rede Ecovida, Povos da Mata, Orgâ-
nicos Sul de Minas e outras organizações. Nesses circuitos, são oferecidas a cada semana 166
toneladas de alimentos de mais de 380 espécies. A diversidade total é de 560 produtos que são
distribuídos em pelo menos 260 mercados.
A agroecologia também é uma solução realista para a padronização das dietas, ao defender
a biodiversidade e as culturas alimentares associadas. Na América Latina, os produtores rurais
conservam e cultivam mais de 1.100 espécies de hortaliças e pelo menos 1.250 espécies de fru-
tas, inter-relacionadas com seus parentes silvestres, polinizadores e outros organismos.
A luta pela Soberania Alimentar na América Latina ocorre principalmente a partir de pla-
taformas organizacionais comunitárias e locais. Entre as muitas organizações latino-ameri-
canas que perseguem este objetivo está o grupo Terra Livre, que nasceu em Fusagasugá, na
Colômbia, em 2005, composto por produtores rurais, líderes ambientais e profissionais das
ciências agrárias e de outras áreas do conhecimento. Sua missão é consolidar um movimen-
to camponês para a defesa do território, a proteção dos bens comuns e o fortalecimento das

Concentração e distribuição da insegurança alimentar por gravidade


FAO, FIDA, OMS, PMA e UNICEF 2021

7.794 milhões
654 milhões
267 milhões
2.368 milhões
População total
93 millones
928 milhões Insegurança moderada
América Latina
e Caribe Insegurança grave
Mundo

38 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
ALIMENTAÇÃO: NEGÓCIO OU DIREITO?
Sistema agroindustrial Agroecologia camponesa
Entende a natureza como um capital infinito e sem Entende como a natureza funciona e tenta replicá-la nas
externalidades, e seu objetivo principal é produzir dinheiro e propriedades rurais, para reduzir a dependência de insumos
não alimentos. externos.
Monoculturas: baseia-se na simplificação dos
Policulturas: a diversidade é a base de agroecossistemas
agroecossistemas e na dependência do petróleo, para obter
saudáveis e resilientes. São mais produtivas por unidade de
altos rendimentos no curto prazo por meio de uma alta
superfície de terra cultivada.
demanda energética.
Demanda: os alimentos respondem às leis da oferta e da Necessidade: a alimentação é uma necessidade humana
demanda e, portanto, permanecem nas mãos de quem tem maior básica que não pode ser regulada pelo mercado. Os países
poder aquisitivo. devem promover a soberania alimentar em seus territórios.
Dieta: a partir de poucas variedades de plantas e raças de Dieta: caracteriza-se por ser diversificada, baseada em
animais, impõe-se uma dieta globalizada e ultraprocessada alimentos e preparações locais com uma grande variedade de
que dá a impressão de ser muito diversa sem sê-lo. plantas e raças animais.

economias camponesas, em um país onde 2,7 milhões de pessoas sofrem de fome crônica e
9,76 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçadas anualmente (equivalentes a 34% da
produção total).
Soma-se ao desperdício de alimentos a redução gradual das terras agrícolas destinadas ao
consumo humano. Segundo cifras da CEPAL, entre 1990 e 2000, a Argentina e o Brasil triplica-
ram a área dedicada às monoculturas de soja, que são utilizadas principalmente para alimen-
tar o gado. No caso específico do Brasil, entre 1989 e 2020, o aumento da superfície cultivada
com soja foi de cerca de 221%, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (CO-
NAB); e o crescimento da produção nacional deste grão foi de 501,6% neste mesmo período.
No país, o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da
Covid-19, publicado em 2022, mostrou que a prevalência de insegurança alimentar grave en-
tre agricultores familiares e produtores rurais era de 22%. Essa era a segunda categoria de tra-
balho mais afetada pela fome, ficando atrás apenas dos desempregados. No Uruguai, por sua
vez, se a terra dedicada à monocultura da soja fosse recuperada, seria possível alimentar mais
8,4 milhões de pessoas.
O caminho para garantir o direito à alimentação não passa apenas pela sofisticação das téc-
nicas de produção, mas por deixar de conceber os alimentos como uma mercadoria, ou seja,
garantindo um sistema alimentar que garanta o direito da alimentação para além da lógica
monetária.

FONTES

FAO, FIDA, OMS, PMA y UNICEF (2021). El estado de la seguridad alimentaria y la nutricion en el mundo
2021. Transformacion de los sistemas alimentarios em aras de la seguridad alimentaria, una nutricion
mejorada y dietas asequibles y saludables para todos.
ONU (2013). Declaracion sobre los derechos de los campesinos y de otras personas que trabajan en las
zonas rurales.
ETC Group (2017). Quien nos alimentara?. La red campesina alimentaria o la cadena agroindustrial?.
PEN y ERCA (s. f.). Quinto informe estado de la region.
IBS Soluciones Verdes (2013). Estudio sobre el entorno nacional de la agricultura organica em Costa Rica
[p. 24].
Banco Mundial (2020). Importaciones de alimentos (% de importaciones de mercaderias) - Latin America &
Caribbean. Estimaciones de personal del Banco Mundial a partir de la base de datos Comtrade generada
por la Division de Estadisticas de las Naciones Unidas.
Michael Fakhri (2021). El derecho a la alimentacion. Informe del Relator Especial sobre el derecho a la
alimentacion. ONU.
Jose Luis Espinoza et al. (2013). Fincas agroecologicas en el bosque seco de Honduras. ANAFAE.
Naya Morelli de Souza et al. (2020). “Circuitos de Circulacao e Comercializacao entre Redes de
Agroecologia”. VII Congreso Latinoamericano de Agroecologia.

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 39
CELIA (2021). Documentando la evidencia en Agroecologia: Una perspectiva Latinoamericana. Boletin
Cientifico n.° 5.
Pamela Caro (2010). “Soberania Alimentaria: aproximaciones a un debate sobre alternativas de desarrollo
y derechos de las mujeres”. Prensa Rural.
DNP (2016). Perdida y desperdício de alimentos en Colombia.
DANE (2021). Encuesta Pulso Social.
Embrapa (2020). Soja em números.
CONAB (2021). Serie Historica dos Graos. Portal de Informacoes Agropecuarias.
Mais Soja (2020). “Producao de soja brasileira aumentou mais de 500% em 30 anos”.
Alberto Gomez Perazzoli (2019). “Uruguay: pais productor de alimentos para un sistema alimentario
disfuncional”. Agrociencia Uruguay vol. 23, n.° 1 [pp. 1-9].
Carta politica del IV Encuentro Nacional de Agroecologia
Raquel Torres (2023). A Agroecologia pode alimentar o mundo?. O joio e o trigo; De Olho Nos Ruralistas.
2023.
Marcos Hermanson (2023). Fome atinge 22% dos produtores rurais e agricultores familiares. O joio e o
trigo.

40 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
Saúde

Agroecologia e o
cuidado com a vida
Desequilíbrios causados pelo sistema agroalimentar estão por trás de boa parte das doenças. Para
a agroecologia, a saúde das pessoas depende do cuidado com o planeta, e por isso, são propostas
formas saudáveis de interagir como meio ambiente. A produção orgânica e a valorização das
plantas medicinais, a partir do resgate de conhecimentos ancestrais, estão entre as estratégias
promovidas por movimentos agroecológicos para a garantia de mais saúde e qualidade de vida.

A
s recentes epidemias de origem animal costumam ser representadas como um contra-a-
taque da natureza. Mas é mais realista vê-las como males causados pelo modo de produ-
ção agroindustrial em sua interação desequilibrada com os ecossistemas. A agricultura e
a pecuária industriais prescindem da biodiversidade, tendo como regra a monocultura regada
a agrotóxicos, além de outras práticas que enfraquecem o sistema imunológico do planeta.
Os microrganismos potencialmente prejudiciais às pessoas não se reproduzem naturalmen-
te de forma descontrolada entre os animais que os carregam. Essa condição, e o consequente
contato entre esses microrganismos e os humanos, é comprovadamente reflexo da expansão
das fronteiras agrícolas. Entre 70 e 80% do desmatamento na América Latina relaciona-se com
a expansão dessa fronteira. Soma-se a isso a superpopulação de animais nos sistemas de pro-
dução de carne, que facilitam a disseminação de vírus, além de sua mutação em organismos
saturados de antibióticos e sua disseminação através de cadeias globais de comercialização.
Segundo a OMS, 72% das mortes por doenças são decorrentes daquelas não transmissíveis e,
por sua vez, 50% dessas estão relacionadas com os desequilíbrios no sistema alimentar. Neste
grupo estão as doenças cardiovasculares — a principal causa de morte —, a obesidade — asso-
ciada ao consumo de alimentos ultraprocessados — e as doenças respiratórias. De acordo com
a Aliança pela Saúde Alimentar, no México, a obesidade causa mais de 200 mil mortes por ano;
dessas, mais de 80 mil são por diabetes e mais de 100 mil por problemas cardiovasculares. Para
combater o sobrepeso esta organização promove a dieta tradicional mesoamericana e a pro-
dução agroecológica.
Outro dado sanitário preocupante relacionado com o modelo de produção agroindustrial
são as altas concentrações de micotoxinas e metais pesados em frutas e verduras produzidas
por esse sistema. Em comparação, cultivos em modelos agroecológicos possuem mais compos-
tos naturais e nutrientes como metabólitos secundários e antioxidantes. Formas agroecológi-
cas de produção contribuem também para a integridade do solo resultando em uma melhor
saúde do sistema, uma maior diversidade microbiológica e, em geral, no bem-estar de todos os
elementos envolvidos no cultivo, transformação e consumo de alimentos.
Uma das principais bandeiras da agroecologia é a produção orgânica, sem o uso de agrotó-
xicos. Estudos demonstraram que os produtos químicos mais utilizados no agronegócio são
cancerígenos. O Brasil é um dos maiores importadores de agrotóxicos e, de acordo com testes
realizados entre 2017 e 2018 pelo Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimen-
tos, 23% das frutas e verduras analisadas tinham agrotóxicos proibidos ou acima da concentra-
ção permitida. Estudos estimam que as intoxicações agudas por agrotóxicos, em crescente no
mundo todo, somam cerca de 385 milhões de casos a cada ano.
Como estratégia para evitar o uso de agrotóxicos, a agroecologia propõe controles biológi-
cos de pragas, juntamente com espécies que são suas inimigas naturais. Também é utilizado o
controle alelopático, potencializador das qualidades de algumas plantas que resistem a doen-
ças quando estão ao lado de outras. Igualmente, é comum o uso de biopreparados repelentes,
como o alho, a pimenta e a arruda.

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 41
EFEITOS DO AGRONEGÓCIO NA SAÚDE HUMANA

PRINCIPAL EMERGENTE
Um mundo malnutrido Novas pandemias

Cerca de 70%
Além de causar fome,
das doenças que
o modelo dominante
afetaram os seres
de produção
humanos nos últimos
agropecuária
40 anos têm origem
transforma
zoonótica e se devem
microrganismos
fundamentalmente à
inofensivos em perigo
destruição da natureza
para as pessoas
e à criação intensiva de
animais.

SUÁREZ ET AL. 2020


Outra linha de atuação da agroecologia é a medicina à base de plantas medicinais, a partir
do conhecimento dos povos originários sobre preparações de ervas. No México, existem cer-
ca de 4,5 mil espécies de plantas medicinais; 90% dos mexicanos já utilizaram algumas dessas
pelo menos uma vez na vida, e 250 espécies são comercializadas diariamente; quase todas são
cultivadas em hortas administradas por mulheres.
No Brasil, em 2006, começou-se a fomentar a saúde preventiva com fitoterapia e plantas tra-
dicionais, por meio da aprovação da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementa-
res no Sistema Único de Saúde (PNPIC) e da criação da Política Nacional de Plantas Medicinais
e Fitoterápicas (PNPMF). Dez anos depois, conseguiu-se que mais de 3 mil unidades do Sistema
Único de Saúde ofereçam produtos à base de ervas medicinais para beneficiar mais de 12 mil
pessoas. Um exemplo dessas medidas é o programa Farmácia Viva, que desde 2010 vem pro-
movendo o cultivo e a preparação de produtos com plantas medicinais, e oferece oficinas sobre
remédios à base de ervas. Na Farmácia Viva de Betim, no estado de Minas Gerais, são forneci-
dos mensalmente cerca de 6,5 mil medicamentos feitos a partir de 25 plantas medicinais.
Mas a gestão comunitária da saúde através de práticas agroecológicas enfrenta, entre ou-
tras coisas, o avanço das patentes de plantas medicinais pela indústria farmacêutica. As mes-
mas multinacionais do setor também estão no mercado das sementes transgênicas e dos agro-
tóxicos, que são justamente alguns dos causadores do que elas buscariam resolver com seus
medicamentos e vacinas.
No caso da Colômbia, os desafios são ainda mais complexos. O crime organizado apropriou-
se da coca, planta de uso ancestral, e seu cultivo ilícito serviu de pretexto para violar os direitos
das comunidades camponesas e indígenas. No país, em 2015, havia sido erradicada no cultivo
de coca a pulverização aérea com glifosato. No entanto a partir de 2020, a prática voltou a ser
autorizada, com algumas limitações.
Além de destruir os cultivos de autoconsumo familiar, o glifosato causa doenças respirató-
rias e prejudica a saúde daqueles que cultivam a planta por tradição cultural ou para o sustento
da família. Devido à situação agrária do país, ao narcotráfico e ao abandono do Estado, os cam-
poneses e os indígenas não podem se dedicar a outras culturas porque não são lucrativas. Em

42 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
UM MODELO AGROTÓXICO EM PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO

Glifosato: Limite máximo permitido em

BOMBARDI 2018
Com o surgimento das culturas transgênicas, o uso de agrotóxicos
no mundo aumentou 61% desde a década de 1990 água potável (µg/L)
5.000 vezes maior

FAOSTAT 2021
1.000 vezes maior

União Colômbia Brasil


1990
1992
1994
1996
1998
2000
2002
2004
2006
2008
2010
2012
2014
2016
2018
Europeia (100 µg/L) (500 µg/L)
(0,1 µg/L)

99% dessas mortes


ocorrem em países em Embora apenas 25% dos pesticidas
desenvolvimento utilizados no mundo sejam produzidos
nessas nações
Os agrotóxicos são
responsáveis por 200.000
mortes por intoxicação aguda
Nos países em desenvolvimento,
todos os anos no mundo
as regulamentações em matéria de
saúde e meio ambiente são menos
severas e aplicadas com menos rigor

SVENSSON ET AL. 2013 | GOLDMAN 2004

contrapartida, no México, graças às lutas sociais, o governo decretou a proibição gradual do


glifosato até sua eliminação total em 2024.
Uma das maiores dificuldades na gestão da saúde e da alimentação, de acordo com os prin-
cípios agroecológicos, é o acesso a alimentos saudáveis. Por isso é necessário fortalecer as redes
para o intercâmbio, não somente de alimentos saudáveis, mas também do conhecimento so-
bre como utilizar as plantas medicinais que durante milênios curaram os povos do continente.

FONTES

Santiago Liaudat (2020). “La pandemia esta diretamente relacionada al sistema alimentario
agroindustrial”. Ciencia, Tecnologia y Politica vol. 3, n.° 5
FAO (2016). “Agricultura comercial genero casi el 70 % de la deforestacion en America Latina”
Luis Suarez et al. (2020). Perdida de naturaleza y pandemias. Un planeta sano por la salud de la humanidad.
WWF Espana
OMS (2020). “La OMS revela las principales causas de muerte y discapacidad en el mundo: 2000-2019”
Alianza por la Salud Alimentaria (2020). “Las principales causas de muerte en Mexico derivan de una mala
alimentacion”
David Otero Prevost et al. (2017). “La incorporacion y el aumento de oferta de alimentos industrializados
en las dietas de las unidades domesticas y su relacion con el abandono del sistema de subsistencia
propio em las comunidades rurales mayas de Yucatan, Mexico”. Cuadernos de Desarrollo Rural vol. 14,
n.° 80
Secretaria de Medio Ambiente y RecursosNaturales [s. f.]. “Plantas medicinales de Mexico”
Alexander Naranjo Marquez et al. (eds.) (2020). De quienes nos alimentan. La pandemia y los derechos
campesinos en Ecuador. Quito: FIAN, Instituto de Estudios Ecuatorianos, Observatorio del Cambio
Rural y Union Tierra y Vida
Gisele Antonio Gouveia y Cesar Simionato (2019). Plantas medicinais e fitoterapia na atencao basica.
Florianopolis: UFSC [p. 11]
Mans Svensson et al. (2013). “Migrant agricultural workers and their socio‐economic, occupational and
health conditions – A literature review”. SSRN

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 43
Lyn Goldman (2004). Intoxicacion por plaguicidas en ninos: Informacion para la gestion y la accion.
Ginebra: FAO, PNUMA y OMS [p. 7]
FAOSTAT (2021). Uso de plaguicidas 1990 - 2019
Larissa Mies Bombardi (2018). Geografia do uso de agrotoxicos no brasil e conexoes com a Union Europeia.
Sao Paulo: FFLCH - USP
Jose Belisario Leyva et al. (2014). “Uso de plaguicidas en un valle agricola tecnificado em el noroeste de
Mexico”. Revista Internacional de Contaminacion Ambiental vol. 30, n.° 3 [pp. 247-261]
Michael Eddleston (2002). “Pesticide poisoning in the developing world – A minimum pesticides list”. The
Lancet vol. 360, n.° 9340 [pp. 1163-1167]
Tiziano Gomiero (2018). “Food quality assessment in organic vs. conventional agricultural produce:
Findings and issues”. Applied Soil Ecology vol. 123 [pp. 714-728]
Conacyt [s. f.]. Expediente cientifico sobre el glifosato y los cultivos GM
Pedro Grigori y Bruno Fonseca (2020). “Laranja, pimentao e goiaba: alimentos campeões de agrotoxicos
acima do limite. Agência Pública

44 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
AGROBIODIVERSIDADE

SEMENTES, PATRIMÔNIO DOS POVOS


Guardiãs e redes de semente sustentam a luta pela soberania alimentar e pela agrobiodiversidade.
Resistem às ações de indústrias e governos que promovem o uso de sementes transgênicas ou se
apropriam de materiais genéticos que fazem parte da interação histórica entre os povos da América
Latina e as plantas que os nutriram e curaram durante séculos.

O
registro de plantas nos atlas botânicos das expedições do século XVIII não tinha somen-
te o objetivo de fazer um inventário descritivo das espécies da América Latina, mas bus-
cava também garantir os interesses exploradores da Coroa. Desde então, as sementes
tornaram-se símbolo de uma luta de longa data, que hoje se repete no combate à privatização
e controle do mercado de sementes pelas multinacionais, por meio de patentes que impedem
que os pequenos agricultores tenham livre acesso a elas. Além disso, o uso de sementes nativas
foi criminalizado em vários países. Isso é paradoxal, pois é sabido que somente a minoria das
sementes utilizadas no Sul global provêm do setor comercial (10 e 20%).
A custódia das sementes remonta à própria origem da agricultura. Elas sempre foram sele-
cionadas e conservadas pelos povos para futuras colheitas. Durante a época colonial, no século
XVII, as cimarronas de Cartagena de Índias, mulheres que haviam se libertado da escravidão,
esconderam-nas em suas tranças para vê-las germinar em San Basilio de Palenque, a primeira
cidade de africanos livres na América Latina. Herdeiras destes primeiros exercícios de conser-
vação, hoje existem numerosas redes nacionais e continentais de sementes na América Latina,
muitas das quais operam fora dos circuitos institucionalizados e, portanto, não são fáceis de
mapear. No Brasil, para mencionar apenas um caso, o Mapa de Sementes Nativas, elaborado
pela Associação Brasileira de Tecnologia de Sementes, relata a existência de dez redes de se-
mentes e 1.059 guardiães e produtores.
Nas casas de sementes, essas organizações protegem a diversidade agrícola e o acervo ge-
nético dos agroecossistemas tradicionais. Na região semiárida do Brasil, casas e bancos de
sementes existem há muito tempo, e a partir de 2015, com o Programa de Manejo da Agro-
biodiversidade e de Sementes da Região Semiárida, mil casas e bancos foram criadas ou po-
tencializadas. Em um dos relatórios do programa se documentou “a existência de mais de 700
variedades de feijão, 300 de milho, 400 de aipim ou mandioca, e mais de 100 de favas, pimenta,
cana, abóbora gigante e batata-doce”.
No entanto, estas ilhas de biodiversidade estão em constante risco de contaminação. Entre
2018 e 2019, este mesmo programa realizou 588 testes em casas de sementes comunitárias de
vários estados do Semiárido, e encontrou contaminação transgênica em 29% das amostras de
milho crioulo analisadas. Este número é preocupante porque foram encontrados traços de
contaminação em sementes que teoricamente estavam protegidas.
Outra experiência destacada do Brasil é a Bionatur, que há 21 anos começou com 12 famí-
lias vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) nos estados do Rio
Grande do Sul e Minas Gerais para produzir sementes em sistemas agroecológicos, e se tornou
a primeira organização camponesa a produzir, processar, embalar e vender sementes no siste-
ma formal. Hoje, a Bionatur envolve mais de 350 famílias e produz, por colheita, 12 toneladas
de sementes agroecológicas de mais de 80 variedades de plantas.
Vários estudos revelam os benefícios do uso de sementes autóctones e da diversificação das
culturas. Em El Pilar, na fronteira entre Belize e Guatemala, os agroecossistemas baseados no
cultivo de milho, feijão e abóbora, juntamente com outras 90 plantas de 60 espécies, formam
uma paisagem heterogênea e resiliente em uma notável sinergia entre seres humanos e flores-
tas. Além disso, as comunidades que habitam essa região possuem uma variedade tão grande
de alimentos que não precisam comprar nada para estar bem alimentadas. Em Campeche, Mé-
xico, foram registrados 185 tipos de plantas comestíveis pertencentes a 50 famílias botânicas.

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 45
Em Honduras, desde o ano 2000, as comunidades têm trabalhado com a Fundação de Inves-
tigação Participativa com Agricultores de Honduras (FIPAH) na criação de 16 bancos de semen-
tes em quatro departamentos para proteger 68 variedades de milho, 145 variedades de feijão
e 48 de outras espécies. Na Colômbia, organizações como a Rede de Guardiães de Sementes de
Vida e a Rede de Sementes Livres da Colômbia existem há cerca de 20 anos, reunindo 37 redes
e processos. Ali mesmo, a Associação Rede de Famílias Lorenceñas Las Gaviotas do município de
San Lorenzo conseguiu uma legislação para que seu território ficasse livre dos transgênicos.
No México, um movimento semelhante liderado por Leydy Pech, meliponicultora maia, en-
frentou a Monsanto para impedir o plantio de soja geneticamente modificada em sete estados.
Em 2016, diante da necessidade de articular diversos atores em torno dessas lutas, foi criada a
Rede Mexicana de Sementes. Já no Uruguai funciona, desde 2004, a Rede Nacional de Semen-
tes Nativas e Crioulas, da qual fazem parte mais de 250 propriedades familiares de diferentes
departamentos do país, onde se trabalha com reservatórios vivos de sementes que cada família
coloca à disposição de todos os integrantes da rede.
Embora os povos sejam conscientes da necessidade de conservar as sementes, as legislações
e os acordos nacionais e transnacionais tendem a favorecer as empresas, por meio de acordos
e normas como as da União Internacional para a Proteção de Novas Variedades de Plantas
(UPOV), que penalizam o uso e o intercâmbio de sementes nativas. No México, por exemplo,
houve pressões para limitar essas práticas depois da assinatura do Acordo de Livre Comércio
da América do Norte (NAFTA, por sua sigla em inglês) em 1994, e do Acordo México, Estados
Unidos e Canadá (T-MEC) em 2020. Neste contexto, a empresa transnacional de alimentos e
doces Mars Inc., valendo-se do Protocolo de Nagoya - acordo internacional que regulamenta
internacionalmente a utilização e repartição de benefícios econômicos de recursos genéticos
da biodiversidade - registrou o milho olotón de Oaxaca, depois de persuadir uma comunidade
mixe1 a ceder os direitos dessa variedade vegetal comum no México e na Guatemala. Para al-

Consórcios: a agroecologia se nutre da diversidade do plantio

CONABIO
Alimento balanceado Milho

Combinação perfeita
O milho carece de niacina comestível,
aminoácidos, lisina e triptofano e
contém cisteína e metionina. O feijão,
Tomate Pimenta chile
por outro lado, carece de cisteína Beldroega
Mostarda / pimenta
e metionina, mas possui lisina e Erva-moura
triptofano. Além disso, é rico em
proteínas, o que equilibra a falta de
aminoácidos do milho. Abóbora
Nabo

A semente é metade genética e metade cultura. Para conservar as sementes, o agronegócio utiliza câmaras frias.
As comunidades, por outro lado, as plantam em diversos ecossistemas como a milpa, onde ocorrem interações muito benéficas (controle
biológico, fertilização e polinização), não só para as espécies que habitam esses ecossistemas, mas também para as comunidades que se
alimentam do que é produzido neles.

46 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
AGROBIODIVERSIDADE EM PERIGO

191,1
Milhões de hectares no mundo abrigam apenas
5 culturas transgênicas

Aproximadamente o
tamanho do México

ha

ha
ha

ha
s/

s/
s/

a
s/

/h
õe

õe
õe

õe

ão
ilh

ilh
ilh

ilh

ilh
m

m
m

m
,9

,9
,9

,1

1,3
58

24
95

10
Soja Milho Algodão Canola Alfafa

AGRICULTURA INDUSTRIAL = MONOCULTURAS

BÉLANGER e PILLING 2019 | ISAAA 2020


Existem mais de 6.000
espécies de plantas
cultiváveis destinadas à
alimentação

A agrobiodiversidade está em perigo: segundo a FAO, cerca de 75% das variedades de culturas foram perdidas no último século,
principalmente devido à substituição de variedades nativas por variedades melhoradas. Esse processo, conhecido como erosão genética,
também é causado pela perda de florestas e culturas tradicionais devido à exploração intensiva.

guns agricultores indígenas isto constituiu um roubo, não apenas de suas sementes, mas tam-
bém de seus saberes ancestrais.
Em tensões locais ou lutas globais, as sementes são um símbolo de resistência. Além de serem
a base da produção de alimentos, são um bem comum e não uma propriedade corporativa; são
“patrimônio histórico dos povos”, como formulou a Via Campesina em 2001. As sementes, em
sua pequenez, guardam a memória dos territórios, ecossistemas e povos da América Latina.
1
Povo indígena mexicano que habita o noroeste de Oaxaca.

FONTES
Anabel Pomar (2020). “La otra Monsanto: radiografia de Syngenta”. Alianza Biodiversidad.
ASA (2017). “Programa de Manejo da Agrobiodiversidade Sementes do Semiarido” [p. 22]
Conabio (s. f.). “La milpa”.
Associacao Brasileira de Tecnologia de Sementes. Mapa de Sementes do Brasil. Sementes Florestais.
FIPAH (s. f.). “De la semilla a la fruta: Investigacion agroecologica dirigida por agricultores - Soluciones a la
seguridad alimentaria de Honduras”.
Alba Portillo (2018). “El município de San Lorenzo - Narino, se declara como un Territorio Libre de
Transgenicos”. Semillas n.° 69/70 [pp. 93-95].
Ronald Nigh y Anabel Ford (2019). El jardin forestal maya. Ocho milenios de cultivo sostenible de los
bosques tropicales. Mexico: Fray Bartolome de las Casas.
Karla A. Pena-Sanabria et al. (2021). Semillas para el bien comun. Compendio de experiencias
latinoamericanas y herramientas legales vigentes en Mexico. Ciudad de Mexico: UNAM.
ISAAA (2020). Accomplishment. Report.
Grupo ETC; GRAIN (2014). Quem vai nos alimentar. A cadeia industrial de produção de alimentos ou as
redes camponesas de subsistência.

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 47
ÁGUA

DIREITO HUMANO E
GESTÃO COMUM
A água é um bem comum esgotável, e o acesso a ela é cada vez mais desigual. Esse direito essencial
deve ir além da concepção da água como um serviço individual mercantilizado. Para garantir
esse direito, os Estados devem reconhecer os saberes acumulados e as capacidades adquiridas das
comunidades para a gestão coletiva, seja para o consumo direto ou para a produção de alimentos.

O
direito humano à água e ao saneamento foi promulgado pela Assembleia Geral da ONU
em 2010. Mas esta declaração mostrou-se insuficiente para o reconhecimento dos di-
reitos coletivos e para as práticas comunitárias de gestão da água, e muitas iniciativas
ficaram na exigência de um mínimo vital, ou seja, uma quantidade mínima de água disponibi-
lizada com isenção de tarifa, ou na comercialização da água pré-paga ou engarrafada. Alguns
países da América Latina incorporaram esse direito em suas legislações, visando cumprir com
os compromissos internacionais. Entretanto, em diferentes regiões no continente, existem
conflitos por água, a partir da privatização e degradação de terras com nascentes por proprie-
dades agrícolas monocultoras ou mineradoras. Em Cochabamba, na Bolívia, houve a chama-
da “Guerra pela água”, conflito que atingiu um ponto crítico em 2000, quando a multinacio-
nal Bechtel assinou um contrato com o Estado que lhe permitiu privatizar o abastecimento de
água potável e aumentar as tarifas em até 300%.
O direito à água implica na defesa dos territórios comunitários de quem que alimenta o pla-
neta e protege suas fontes hídricas. Na Colômbia, em 2016, o Tribunal Constitucional reconhe-
ceu o rio Atrato como sujeito de direitos para garantir sua proteção; além disso, no país, mais
de 12 mil organizações da Rede de Aquedutos Comunitários vêm promovendo, desde 2006,
um referendo para a defesa da água como um direito fundamental. Já os movimentos sociais e
populares do Chile discutem há quase duas décadas uma Lei de Glaciares, visando à proteção
das geleiras chilenas, em oposição aos interesses mineradores e industriais. No México, está
em discussão a Lei de Águas Nacionais, em defesa dos povos camponeses e indígenas afetados
pela Lei Nacional de Águas de 1994, que privatizou o recurso e endossou sua contaminação sob
a premissa de que “quem contamina, paga”.

RESERVAS DE ÁGUA DOCE NO MUNDO - POR REGIÃO

Europa
América do Norte
7.580 Km3
6.428 Km3
Ásia
América Central 15.720 Km3
802 Km3
Oceania
África
892 Km3
5.700 Km3
FAO-AQUASTAT

América do Sul
17.273 Km3

As reservas de água no mundo referem-se ao volume disponível de águas subterrâneas e superficiais. A América do Sul é a região com
mais recursos hídricos renováveis do planeta (cerca de 31,8%), seguida pela Ásia (28,9%) e Europa (13,9%)

48 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
O PAI DAS CISTERNAS NO SEMI-ÁRIDO BRASILEIRO

PETERSEN 2018
Sendo feita com
Volta para sua casa materiais baratos e
em Jeremoabo, na facilmente disponíveis,
Bahia, no Nordeste sua cisterna se
dissemina localmente
Nel migra para São
Paulo aos 17 anos,
fugindo da seca em
sua região

Experimenta o
ferrocimento na
construção de cisternas,
Ele trabalha como operário algumas de até
na construção de piscinas 65.000 litros
e aprende uma nova
tecnologia de construção: o
ferrocimento

Manoel Apolônio de Carvalho, conhecido como Nel, inventou uma tecnologia de captação de água da chuva no semiárido brasileiro, que
se tornou um programa nacional que instalou 1,2 milhão de cisternas. Infelizmente, o projeto não recebeu financiamento em 2020, e
mais de 350 mil famílias ficaram sem essa oportunidade de melhoria de vida.

Apesar dessas iniciativas, as políticas continuam sendo insuficientes e carecem de um enfo-


que agroecológico. Um exemplo disso é a incapacidade do programa estatal Minha Irrigação,
na Bolívia, de aliviar a seca extrema em algumas regiões, especialmente na Chiquitania, uma
das mais afetadas pela falta de água e pelas pressões do agronegócio. Já o Uruguai, embora
tenha sido pioneiro no reconhecimento da água potável e do saneamento como direitos fun-
damentais, o avanço das monoculturas de soja e do desmatamento persiste, impactando di-
retamente o acesso à água. Segundo a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e
Agricultura (FAO), a atividade agropecuária é a principal responsável pelo consumo de água:
70% de toda a água consumida no mundo é utilizada para a irrigação das lavouras. No Brasil,
esse número se eleva para 72%, de acordo com dados da Agência Nacional de Águas (ANA).
Diante da importância do agronegócio no consumo de água e da incapacidade dos Estados
de garantir o direito a esse bem, movimentos e organizações propõem a defesa da água em
conjunto com a promoção da agroecologia, por meio de práticas de irrigação que respeitem os
ecossistemas, o manejo integrado das bacias hidrográficas e dos solos, e a implementação de
cisternas e esgotos ecológicos. Os povos do planalto boliviano, por exemplo, utilizam a tecno-
logia ancestral do suka kollus, um sistema recuperado por pesquisadores e agricultores do can-
tão Lacaya, que consiste em aterros elevados e intercalados com canais para drenar o excesso
de água e fazer a irrigação dos cultivos.
A autogestão da água no continente é realizada através de associações rurais, aquedutos ru-
rais e patronatos1. Na Colômbia, Peru e Equador existem aquedutos comunitários com mais
de cinquenta anos. Na Costa Rica existem centenas de pequenas organizações comunitárias
chamadas ASADAS2 que fornecem água para 28% da população nacional. No México existem
mais de 8 mil organizações comunitárias que garantem o acesso de 24 milhões de habitantes
— cerca de 19% da população nacional —; em Veracruz, por exemplo, mais de 76% dos municí-
pios têm patronatos, e existe um comitê de água fundado na década de 1930 que em 1970 foi
constituído como associação civil e em 2003 possuía 1.425 patronatos.
No Brasil, destaca-se a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), uma rede com mais de 3 mil
organizações, que tem respondido à crise da água com os programas Um Milhão de Cisternas

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 49
(P1MC) e Uma Terra e Duas Águas (P1+2), que tiveram início em 2003 e 2007, respectivamente.
O P1MC tornou-se uma referência internacional para a democratização do acesso à água, pois
adota a agroecologia como base do desenvolvimento rural e utiliza tecnologias de captação
e armazenamento de água, sob a premissa de que é necessário conviver com a seca em vez de
combatê-la. Entretanto, durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), houve uma redução
sem precedentes dos investimentos no programa, e em 2020 foram instalados apenas 8.310
equipamentos de armazenamento de água, ao contrário dos 149 mil instalados em 2014.
A geração e a renovação da água não dependem apenas das fontes hídricas, mas, sobretudo,
das interações que ocorrem nos ecossistemas. Daí a importância da agroecologia, que promo-
ve a gestão eficiente e ecológica da água, base da boa alimentação e da boa saúde e, portanto, a
garantia de condições de vida dignas para as comunidades camponesas, indígenas e afrodes-
cendentes da América Latina.

1
Organizações formadas pelas comunidades rurais ou periurbanas com o objetivo de assegurar que a água chegue às
famílias de suas comunidades.
2
Associações Administradoras dos Sistemas de Aquedutos e Esgotos Comunitários (Asociaciones Administradoras de
los Sistemas de Acueductos y Alcantarillados Comunales).

FONTES

ATALC (2016). Informe: Estado del agua en América Latina y el Caribe.


Javier Sauras et al. (2015). “La guerra interminable: 15 años de lucha por el agua en Bolivia”. El País.
Red Nacional de Acueductos Comunitarios de Colombia (2017). El derecho a la autogestión comunitaria
del agua.
AQUASTAT - Sistema mundial de información de la FAO sobre el agua en la agricultura. FAO.
Hugo Maguey (2018). “Más de 80% del agua se va en uso agrícola y de la industria”. Gaceta UNAM.
Gestión comunitaria del agua. Impluvium Publicación digital de la Red del Agua UNAM, n.° 12, julio-
septiembre de 2020.
Suka kollus. Una comunidad conviviendo con las inundaciones y sequías. PNUD, 2005.
Judith Domínguez Serrano y Erandi Castillo Pérez (2018). “Las organizaciones comunitarias del agua en
el estado de Veracruz. Análisis a la luz de la experiencia latinoamericana”. Estudios Demográficos y
Urbanos vol. 33, n.° 2.
Paulo Petersen (2018). Redes territoriales e innovación agroecológica. Una idea institucionalizada en la
política nacional de agroecología y producción orgánica en Brasil. Santiago de Cali: ASPTA y ABA.
Rafael Rodrigues (2016). “O Caminho das águas: Tecnologias de convivência com o Semiárido e
transições sociotécnicas no Sertão brasileiro”. UFRRJ.
Lucila Bezerra (2021). “Sob Bolsonaro, programa de construção de cisternas sofre maior
redução da história”. Brasil de Fato.
ATALC [s. f.]. Política pública y derecho fundamental al agua en América Latina y el Caribe.
Vandana Shiva (2002). Water wars: privatization, pollution and profit. Cambridge: South End Press.
Agência Nacional de Águas (2012). Conjuntura dos Recursos Hídricos no Brasil: informe 2012.

50 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
TERRA E TERRITÓRIO

OUTRAS FORMAS DE
SE PENSAR O ESPAÇO
A distribuição desigual da terra é um problema histórico na América Latina. Organizações e
movimentos sociais propõem uma defesa do território que vai além da luta pela terra, e inclui a
proteção da água, das montanhas, da biodiversidade, das sementes e dos patrimônios culturais e
imateriais associados aos povos e aos ecossistemas. A agroecologia é um elemento articulador desta
luta. Porém, essas organizações territoriais contra hegemônicas enfrentam uma série de ameaças.

E
m toda a América Latina as terras foram monopolizadas para a megamineração, as mono-
culturas e as hidrelétricas, além do cultivo e o tráfico de drogas. Segundo uma pesquisa
da Oxfam, mais da metade das terras produtivas da região são fazendas e propriedades de-
dicadas à monocultura, enquanto as propriedades familiares ocupam 13% do território e estão
em territórios marginais e pouco férteis. Isto se deve ao histórico colonial na região, baseado
no sistema de plantation, cuja manutenção ao longo dos séculos atingiu uma nova fase, neoco-
lonial, durante a primeira década do século XXI. Esse processo recente envolve a apropriação e
financeirização da terra por multinacionais, consolidando os grandes latifúndios na América
Latina. Na Bolívia, por exemplo, a estrutura agrária foi tão desigual que das 660 mil unidades
agrícolas que havia no país em 2007, 87% eram pequenas propriedades que ocupavam apenas
14% da terra arável disponível, segundo dados do Banco Mundial. Isso significa que, desse total,
85,8 mil unidades produtivas eram latifúndios que ocupavam a maior parte das terras férteis
do país.
Na Argentina, Uruguai e Brasil, a venda de terra para a monocultura de soja durante a pri-
meira década do século XXI foi tão frequente que a corporação Syngenta batizou esses territó-
rios como a “República Unida da Soja”. O Censo Agropecuário brasileiro de 2017 revelou que
das 5 milhões de propriedades agrícolas no país, apenas 51 mil detêm 47,6% das terras. Já os pe-
quenos proprietários, donos de terrenos de até 10 hectares, ocupam apenas 2,3% do total. Essa
grande concentração fundiária parte da privatização e mercantilização das terras e se opõe
diretamente às concepções dos povos indígenas, quilombolas e campesinos. Para eles, a terra
é mais do que commodity: é território, lar da complexa biodiversidade que sustenta a sobrevi-
vência, distintas culturas e modos de vida.
A reconquista do território hoje tem um caráter diferente ao das reformas agrárias do século
passado, concentradas principalmente na luta contra a concentração da terra. As comunida-
des e organizações reivindicam uma reforma agrária integral, popular, feminista e agroecoló-
gica que inclua o campo e a cidade, os trabalhadores rurais sem-terra, as camponesas e campo-
neses deslocados para os cinturões de miséria urbanos, e seus descendentes nascidos e criados
nas cidades e que reivindicam o direito de voltar ao campo. Como diz a Declaração das Nações
Unidas sobre os direitos dos camponeses e de outras pessoas que trabalham nas áreas rurais, cam-
ponês é toda pessoa “que se dedique ou pretenda dedicar-se à produção agrícola em pequena
escala e que tenha vínculo especial de dependência e apego à terra”.
Na América Latina há muitas organizações que defendem os rios, os páramos, os mares e o
ar. Diante das atividades extrativistas e da ameaça que essas representam para seus direitos
e formas de vida, as organizações promovem marchas, ocupações, denúncias e campanhas,
construindo redes de solidariedade regionais e globais. Uma dessas experiências é o Movimen-
to Rios Vivos da Colômbia, que começou como um protesto de três pessoas contra a destruição
do canyon do rio Cauca e foi se transformando em uma poderosa articulação de organizações
de mulheres, garimpeiros, pescadores, tropeiros e agricultores que enfrentaram a constru-
ção e as consequências do projeto hidrelétrico de Hidroituango. Já no Equador e na Bolívia, o

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 51
EXTRATIVISMO QUE MATA NA COLÔMBIA

178
eram
872 mulheres
durante o
governo de Iván
Duque

INDEPAZ 2021 | GLOBAL WITNESS 2021


1270
Líderes, mulheres e
homens, assassinados
desde a assinatura do
Acordo de Paz 416 357 89
(2016-2021)*
Agricultores Indígenas Afrodescendentes
* Entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC).

Na Colômbia, defender a terra dos interesses extrativistas significa risco de vida. E a mesma coisa acontece em outros países da América
Latina. Dos 10 países com maior número de ataques a líderes e defensores de direitos humanos no mundo, sete estão na América Latina.
Colômbia, Brasil e México encabeçam esta lista.

reconhecimento das múltiplas nações indígenas permitiu a autonomia de diferentes povos,


por meio das figuras do Território Indígena Originário Campesino (TIOC) e das Circunscrições
Territoriais Indígenas (CTIs), respectivamente, o que garante a preservação dos territórios e os
saberes ancestrais. No México, por sua vez, destaca-se a experiência dos Municípios Autôno-
mos Rebeldes Zapatistas, que inspirou múltiplas lutas e formas de organização pelo direito à
autodeterminação indígena neste país.
Resistências como essa fazem parte da história da América Latina e têm encontrado resso-
nância nas práticas agroecológicas, além de nutrirem a agroecologia, como movimento, com
formas de governança territorial indígena, camponesa e afrodescendente. No continente é
possível falar de territórios agroecológicos e outras formas de organização que se voltam para
a agroecologia enquanto desenvolvem novas formas de resistir ao avanço da acumulação de
terras pelos setores extrativos predatórios. Ainda na Colômbia, por exemplo, as Zonas de Reser-
vas Camponesas ocupam 287.269 hectares. Nestas áreas existem inúmeras pequenas proprie-
dades e terras montanhosas, algumas com sistemas de produção agroecológica.
No Brasil, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que reúne cerca de 350
mil famílias, reivindica o fim dos latifúndios e sua transformação em propriedades familiares
e camponesas de produção agroecológica. O movimento é reconhecido como o maior produ-
tor de arroz agroecológico de toda a América Latina. Já no México, destaca-se o exemplo notá-
vel do município agroecológico El Limón, em Jalisco, que foi fundado em 2019 por produtores
do assentamento La Ciénega. No município, a produção livre de agrotóxicos se soma às ban-
deiras da autonomia alimentar e da conservação dos ecossistemas, objetivo refletido em uma
taxa positiva de desmatamento do município: lá, as florestas crescem ao invés de desaparecer.
Se os territórios agroecológicos nascem dessas estruturas geradas após anos de luta, tam-
bém enfrentam ameaças que dificultam a consolidação dessas organizações territoriais. Um
exemplo disso são as investidas do Estado colombiano e dos exércitos irregulares de paramili-
tares que o Movimento Camponês de Cajibio, no departamento de Cauca, Colômbia, enfrenta,
fechando as principais vias do país para lembrar aos cidadãos de onde vem os alimentos que
são consumidos diariamente nas cidades.
Em todo o continente, estes tipos de resistências provocaram ataques, assassinatos e desa-
parecimentos de defensores da terra e do meio ambiente, casos que poucas vezes foram escla-

52 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
TERRA PARA QUEM?
Porcentagem de terra que está na mão de
apenas 1% das propriedades agrícolas
56% 81%
48% 29%
25%
40%
34%
Gua.
México 77%
Costa
Desigualdade na distribuição da terra ao longo do tempo (1910-2017) El Salvador Rica Venezuela
(Coeficiente de Gini) Nicarágua Colômbia 66%
23% 71% 44%
0,65
Equador
0,64
0,63
Peru
74% Brasil
0,62
UNEVEN GROUND (s. f.)

0,61 Bolívia Paraguai


0,60
19%
1920 1930 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010 2017 Uruguai
Chile 36%
Coeficiente de Gini para Tendência global
distribuição de terras Argentina

OXFAM (s. f.)


Esq. A desigualdade sobre a terra diminuiu de forma constante desde o início do século 20 até a década de 1980, década em que a
tendência se inverteu; desde então, vem aumentando a um ritmo permanente.
Dir. A América Latina é a região do planeta onde a distribuição da terra é mais desigual. O coeficiente de Gini para a terra – indicador
entre 0 e 1, em que 1 representa a desigualdade máxima – é de 0,79 para toda a região (0,85 na América do Sul e 0,75 na América
Central). São níveis de concentração muito superiores aos observados na Europa (0,57), África (0,56) ou Ásia (0,55).

recidos. Em 2022, um total de 177 pessoas perderam a vida por defenderem seus territórios e
o meio ambiente. Mais de 70% desses casos aconteceram na Colômbia, no México ou no Brasil,
de acordo com levantamento da organização Global Witness. A América Latina foi palco de
88% dos assassinatos de ativistas ambientais do mundo em 2022, e 70% dos 1.335 assassinatos
cometidos na última década. As investidas contra esses movimentos se dão também nos cam-
pos institucionais. Em setembro de 2021, por exemplo, foi aprovada no Paraguai uma lei que
criminaliza a luta pela terra, o que gerou alertas para movimentos de todo o continente.

FONTES

Lucia Linsalata (2017). “De la defensa del território maseual a la reinvencion comunitario-popular de la
politica: cronica de una lucha”. Estudios Latinoamericanos, Nueva Epoca, UNAM, n.° 40
Arantxa Guerena (2016). Desterrados: tierra, poder y desigualdad en America Latina. Oxfam
Grain (2013). “La Republica Unida de la Soja recargada”
Indepaz (2021). “5 anos del Acuerdo de Paz – Balance en cifras de la violência en los territorios”
Global Witness (2021). Ultima linea de defensa. Las industrias que causan la crisis climatica y los ataques
contra personas defensoras de la tierra y el medioambiente
Uneven Ground (s. f.). “La desigualdad de la tierra vuelve a aumentar”. Descubrimientos de la iniciativa
sobre la desigualdad de la tierra
Arantxa Guerena (s. f.). Radiografia de la desigualdad. Lo que nos dice el ultimo censo agropecuario sobre
la distribucion de la tierra en Colombia. Oxfam
Flavia Echanove Huacuja (2011). Politica agricola en Mexico: el esquema de agricultura por contrato
en maiz. Woodrow Wilson International Center for Scholars. Mexican Rural Development Research
Reports. Reporte 19
Federico Guzman Lopez (2015). “El despojo territorial por megaproyectos de mineria y agricultura por
contrato en Zacatecas, Mexico”. Revista de Geografia Agricola n.° 55

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 53
La Via Campesina (2017). Las luchas de La Via Campesina por la reforma agraria, la defensa de la vida, la
tierra y los territorios
Movimiento Rios Vivos de Colombia
Indepaz (2021). “Lideres ambientales asesinados”
Luiz Zarref (2018). “Agroecologia e o MST”. Movimento Sem Terra
Victor M. Toledo y Benjamin Ortiz-Espejel (2014). Mexico, regiones que caminan hacia la sustentabilidad.
Una geopolitica de las resistencias bioculturales. Puebla: Universidad Iberoamericana Puebla
Oscar Gutierrez (2019). “Crea el EZLN 11 nuevos Caracoles y 16 Municipios Autonomos Rebeldes”. El
Universal
BASE Investigaciones Sociales (2021). “El Senado aprueba ley de criminalizacion de la lucha por la tierra”
Atlas de Transiciones Agroecologicas en Mexico (s. f.). “El Limon: municipio agroecologico, desde las
bases”. Universidad Veracruzana, Region Xalapa
UTT (2020). “Las Colonias Agroecologicas: una propuesta que crece en todo el pais”
Maria Villarreal y Enara Echart Munoz (2020). “Luchas, resistencias y alternativas al extractivismo en
America Latina y Caribe”. Open Democracy
Asociacion Minga (2015). “Movimiento Campesino de Cajibio, MCC”

54 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
REVOLUÇÃO VERDE

Promessas descumpridas e
impactos graves
Pacote tecnológico e produtivo que transformou completamente a agricultura mundial, a
Revolução Verde trouxe consequências graves para o meio ambiente, a saúde humana e a
autonomia de agricultores sobre seus territórios.

E
ntre as décadas de 1960 e 1970, um conjunto de inovações tecnológicas para agricultura
foram difundidas em escala mundial com o propósito de aumentar a produtividade agrí-
cola, incentivar a exportação e acabar com o problema da fome no mundo. Este conjunto
caracterizou-se pela utilização das estratégias da Revolução Industrial no processo produtivo
agrícola, como a mecanização e a inserção de insumos químicos. Assim, surgiu um novo mo-
delo de produção agrícola tecnificado, que ficou conhecido como “Revolução Verde”.
Esse pacote tecnológico é amparado no uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos, na ir-
rigação automatizada, no estímulo ao uso de sementes geneticamente modificadas ou trans-
gênicas, no aumento da mecanização e no uso de tecnologias na agricultura. Essas técnicas e
inovações possibilitaram a maximização dos rendimentos agrícolas por um lado, mas propor-
cionaram também uma maior dependência dos produtores desse novo modelo de produção,
além de impactos socioambientais que perduram até hoje.
O precursor da Revolução Verde foi o engenheiro agrônomo e biólogo estadunidense Nor-
man Ernest Borlaug. Suas pesquisas em inovação e agricultura, em especial no melhoramento
do trigo, e a organização da exploração dos resultados desta melhoria na agricultura, fizeram
com que ele ganhasse o prêmio Nobel da Paz, em 1970. Na época, Borlaug dirigia o Centro In-
ternacional para a Melhoria do Trigo e do Milho, da Fundação Rockefeller, e defendia o uso de
fertilizantes e sementes melhoradas para o aumento da produtividade agrícola e consequente
o combate à fome.
A difusão desse novo modelo de produção agrícola foi fomentada por fundações filantrópi-
cas como a Fundação Rockefeller e a Fundação Ford, além de ter tido apoio de diversos atores
governamentais e internacionais, com os Estados Unidos da América e a Organização das Na-
ções Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Essa convergência de interesses e incenti-
vos possibilitou o desenvolvimento tecnológico e um vasto alcance do projeto da Revolução
Verde, em especial na América Latina e na Ásia, respondendo aos anseios de diversos países
por novas tecnologias agrícolas, maior produtividade e fornecimento de alimentos. É impor-
tante observar que em tal período as condições socioambientais para que projetos como esse
fossem implementados ainda não tinham grande apelo da sociedade civil.
Se na América Latina e Ásia a revolução verde teve êxito em transformar o sistema produti-
vo, na África o resultado foi diferente. Devido às condições climáticas e relativas aos solos da
região, além da carência de infraestruturas que contribuíssem para o escoamento de grãos, os
impactos da revolução verde no continente africano foram moderados. A criação da Aliança
para uma Revolução Verde para a África (AGRA), em 2006, representou um novo esforço na
proposta de inserção dessas transformações em solo africano. Porém, um estudo apresentado
pela Tufts University demonstrou que em 15 anos de aliança (e gastos de aproximadamente
1 bilhão de dólares), resultados ambíguos foram observados no continente. Se a produção de
alimentos básicos aumentou 18% durante o período, houve também um crescimento na fome
na região desde então.
No Brasil, o desenvolvimento desses modernos sistemas de produção agrícola foi apoiado
pela Ditadura Militar (1964 - 1985). Nesse período, o país aumentou a importação de produtos
químicos e estimulou a instalação de indústrias produtoras de agrotóxicos. Houve o estabele-

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 55
Um país de monoculturas

Monopólio da soja e do milho


ÁREA PLANTADA PRODUÇÃO TOTAL produtividade
40 160 7
35 140 6

(milhões de toneladas)
30 120 5
(milhões de hectares)

(toneladas/hectare)
4x
25 100 4
8x 2x
20 80 3

Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB), 2021;


15 60 2
+62% 3,81x 1,47x
10 40 2

Sociedade Nacional de Agricultura (SNA), 2020


5 20 1

1980 2021 1980 2021 1980 2021


Soja Milho

Brasil, campeão em transgênicos


52,8 milhões de hectares*
Brasil é o segundo país com maior área plantada com transgênicos no mundo.

Soja geneticamente modificada – 35,1 milhões de hectares


* Em 2019 Milho geneticamente modificado – 16,3 milhões de hectares

O aumento da produção dessas commodities ocorrem mais em virtude do aumento da área plantada do que do aumento da
produtividade em si.

cimento de um conjunto de políticas públicas e incentivos que estimularam a produção e uso


do pacote tecnológico, em especial dos agrotóxicos. Foi criado o Programa Nacional de Defen-
sivos Agrícolas (PNDA), em 1970, e o Sistema Nacional do Crédito Rural (SNCR), em 1965, que
contribuíram com a inserção de forma massiva dos agrotóxicos no dia a dia dos produtores
rurais. Para se ter acesso ao crédito rural, era obrigatório destinar parte do recurso solicitado
para a compra de agrotóxicos, e assim foi criada uma dependência desse setor. Além disso, fo-
ram criados órgãos de pesquisa na área, o serviço de extensão rural, com o objetivo de ampliar
o alcance dessas transformações entre pequenos agricultores, além do fomento a treinamen-
tos internacionais para professores de agronomia.
Apesar de a Revolução Verde ter se estruturado a partir do apoio de governos e de institui-
ções filantrópicas, houve um interesse de participação cada vez maior de empresas e corpora-
ções transnacionais, com o intuito de ampliarem suas fronteiras produtivas e criarem novos
mercados. Nêgo Bispo, intelectual quilombola, afirma que o desenvolvimento da Revolução
Verde no Brasil foi uma obra colonial, baseada na imposição de um pacote agroquímico de-
senvolvido a partir de estratégias bélicas, visto que a Segunda Guerra Mundial impulsionou as
pesquisas tecnológicas que foram absorvidas pelo sistema agroindustrial, como o amplo uso
de agrotóxicos e de fertilizantes químicos.
Os entusiastas da Revolução Verde afirmavam que seu principal objetivo seria aumentar a
produtividade de alimentos para combater a fome mundial. De fato, a produção de alimentos
aumentou, mas com o foco nas commodities. Atualmente, o setor do agronegócio brasileiro é
responsável pelo crescimento da produtividade agrícola, colocando o Brasil como um dos lí-
deres mundiais na produção e exportação de vários produtos agropecuários, dentre eles: soja,
milho, arroz, trigo, feijão e algodão.
No entanto, a soberania e segurança alimentar dos povos não acompanhou esse crescimen-
to. Atualmente, cresce a situação da insegurança alimentar e da fome no Brasil e no mundo,
especialmente após a pandemia da Covid-19. Segundo o Relatório do Estado da Segurança Ali-
mentar e da Nutrição no Mundo em 2021 (SOFI), publicado pela FAO em 2021, a fome mundial
aumentou nos últimos anos. Aproximadamente 23,5% da população brasileira, ou seja 49,6 mi-

56 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
Monocultura alimentar

60%
95%

Vos & Fan, 2019; IBGE, 2020


Atualmente no mundo cerca de Apenas quatro (arroz, trigo,
30 cultivos respondem por 95% milho e batata) são as No Brasil, o café é o alimento
das necessidades alimentares fontes de mais de 60% do mais consumido, seguido
humanas de energia total de energia ingerida pelo feijão, arroz, sucos,
refrigerantes e carne bovina

A concentração em um número reduzido de espécies cultivadas não atende às necessidades de consumo diversificado de alimentos para
uma nutrição saudável.

lhões de pessoas, estavam em situação de insegurança alimentar severa ou moderada durante


o período analisado, entre 2018 e 2020.
Cabe destacar que o Brasil se consolidou como um dos maiores consumidores de agrotóxi-
cos no mundo. Dados de 2013 colocam o país como o maior consumidor mundial em valores
absolutos e o sétimo se for considerada a utilização de agrotóxicos por área cultivada. Em 2021,
o país se tornou o maior importador dessas substâncias. Entre 2019 e 2022, 2.182 novos agrotó-
xicos passaram a ser comercializados no país. A utilização intensa de agrotóxicos não apenas
levou a uma maior produtividade nas lavouras, mas também resultou em sérios impactos na
saúde humana e para o solo.
A Revolução Verde trouxe uma série de desdobramentos preocupantes para o meio ambien-
te e para o modo de vida e trabalho de agricultores familiares. Pesquisas destacam a relação
entre seus processos e a priorização da produção em larga escala para exportação, em detri-
mento da diversificação da produção agrícola. Isso levou à perda de autonomia dos pequenos
agricultores e contribuiu para um êxodo rural em massa, resultando em um inchaço das ci-
dades e um crescimento desordenado. Além do desmatamento em biomas brasileiros vitais,
como a Amazônia e o Cerrado, a concentração da posse da terra nas mãos de poucos agravou
a desigualdade social e econômica, levando a uma transferência desigual de lucro da ativi-
dade agrícola para a agroindústria. Ademais, a produção agropecuária tem desempenhado
um papel significativo na emissão de gases do efeito estufa, contribuindo para o aquecimento
global. Além disso, o desmatamento aumentou consideravelmente para abrir espaço para as
monoculturas e a pecuária, levando à redução da agrobiodiversidade e à degradação do solo,
relacionada diretamente à baixa diversidade de cultivos, à erosão e à contaminação da terra e
das águas.
Nas últimas décadas, o sistema agroalimentar vem passando por outras fases de moderniza-
ção tecnológica, incorporando a digitalização em seus processos produtivos com a introdução
de tecnologias de automação, o uso de sensores, de drones e de análise de dados. Mesmo com o
aprimoramento das técnicas, no entanto, as desigualdades sociais e os impactos socioambien-
tais seguem em crescente. Estas consequências revelam a necessidade premente de reavaliar
as práticas agrícolas e buscar abordagens mais sustentáveis, capazes de equilibrar a produti-
vidade agrícola com a preservação ambiental e o bem-estar social. Nessa perspectiva, a agro-
ecologia vem ganhando destaque ao propor uma mudança no atual sistema de produção de
alimentos.

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 57
O avanço da fronteira agrária sobre a Amazônia

Área total desmatada na Amazônia

CAMPAGNOLLA, Clayton; MACÊDO, Manoel Moacir Costa. Revolução Verde: passado


e desafios atuais. Cadernos de Ciência & Tecnologia, v. 39, n. 1, p. 26952, 2022.
1980
377.600km2

2023
729.782km2

Estima-se que 80% do desmatamento na Amazônia deve-se à expansão de pastagens e à produção de grãos, especialmente soja,
geralmente associada com a extração prévia de madeira.

A agroecologia representa a convergência de várias lutas e resistências que trabalham pela


retomada de práticas ancestrais, indígenas, quilombolas e de muitas outras comunidades tra-
dicionais. Aa práticas agroecológicas envolvem relações para muito além dos modos de plan-
tar, colher e comer, promovendo também trocas justas e solidárias, através de feiras, do abas-
tecimento local e regional de alimentos e diversas outras estratégias que levam comida para
a mesa das famílias brasileiras. Para a agricultura familiar de base agroecológica, não basta
apenas produzir alimentos livres de veneno: é preciso agir refletindo sobre todas as dimensões
(econômicas/culturais/ambientais/sociais) e garantir autonomia para que territórios e sujeitos
também sejam saudáveis, em plenitude.

FONTES

Lina Faria; Maria Conceição da Costa (2006). Cooperação científica internacional: estilos de atuação da
Fundação Rockefeller e da Fundação Ford.
Tina Rosenberg (2014). A Green Revolution, This Time for Africa. The New York Times
Mariana Nascimento (2022). A revolução verde na África Subsaariana: a falha na busca pelo fim da fome.
Universidade de Brasília
Leonardo de Bem Lignani; Júlia Lima Gorges Brandão (2022). A ditadura dos agrotóxicos: o Programa
Nacional de Defensivos Agrícolas e as mudanças na produção e no consumo de pesticidas no Brasil,
1975-1985
Mariana Albuquerque. Liberações de agrotóxicos batem recorde em 2022. Correio Braziliense, 2022.
Carolina Octaviano (2010). Muito além da tecnologia: os impactos da Revolução Verde.
Giovana Wachekowski et al (2021). Agrotóxicos, revolução verde e seus impactos na sociedade: revisão
narrativa de literatura. Salão do Conhecimento
Leonardo Almeida Fontenele et al (2021). Revolução Verde: História e impactos no desenvolvimento
agrícola. Agricultura e agroindústria no contexto do desenvolvimento rural sustentável.
Clayton Campagnolla; Manoel Moacir Costa Macêdo (2022). Revolução Verde: passado e desafios atuais.
Cadernos de Ciência & Tecnologia.

58 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
BEM VIVER

VIDA DIGNA NO CAMPO


Propriedades rurais prósperas, organizações comunitárias sólidas, cooperativas sustentáveis,
programas de alimentação saudável e formação técnica e política. A agroecologia é um sopro de
esperança para as famílias camponesas, indígenas e afrodescendentes, pois permite preservar
sua cultura e entrelaçá-la com outras, para demonstrar que a dignidade camponesa não é apenas
possível, mas também urgente para responder à atual crise alimentar e socioambiental.

A
inda que os campos latino-americanos produzam alimentos para mais de 800 milhões
de pessoas, neles a pobreza aumentou notavelmente em 2020: segundo a CEPAL, no con-
tinente a incidência de pobreza e pobreza extrema nas áreas rurais é duas vezes maior
que a das áreas urbanas. A desterritorialização de comunidades tradicionais pelo avanço da
fronteira agrícola e o apagamento e substituição de conhecimentos tradicionais na agricul-
tura pelo pacote tecnológico da modernização conservadora estão por trás dessa pobreza no
campo. As famílias produtoras não são impactadas apenas pela falta de terra, mas também
pela ausência de acesso a oportunidades educacionais ou de emprego, ou a um sistema de saú-
de digno. Além disso, há poucos esforços institucionais no sentido de garantir sua permanên-
cia no campo. Segundo a CEPAL, 85,7% dos trabalhadores agrícolas são informais e, no caso das
mulheres, esse número chega a 91,6%.
Nesse contexto, a agricultura familiar e a produção sustentável de alimentos promovem e
potencializam outros direitos humanos: alimentação adequada, terra para cultivar, relações
justas com outras pessoas e ecologicamente equilibradas com o meio ambiente. Essa harmo-
nia na relação comunitária entre humanos e meio ambiente, presente nos modos de vida de
diferentes povos e comunidades tradicionais, mais recentemente, vem sendo chamada de
“Bem Viver”, conceito de berço andino, traduzido do quéchua sumak kawsay. No entanto, no-
meações distintas são encontradas em diferentes línguas indígenas no continente para desig-
nar relações semelhantes, como o “suma qamaña” do aymara, o “teko porã” do guarani, ou o
“nhanderekó” do guarani mbya. A prática agroecológica está diretamente relacionada com o
horizonte coletivo, igualitário e não predatório do Bem Viver.
Na Guatemala, uma pesquisa comparou dez famílias que praticavam a agroecologia com
outras dez que cultivavam de forma semiconvencional, e constatou que a produção agroeco-
lógica é mais diversificada, gera mais renda e possibilidades de inserção no mercado, além de
dignificar a vida rural a partir de aspectos como a organização comunitária, oportunidades de
escola e trabalho, as dinâmicas de gênero e o empoderamento das culturas locais.
Em Cuba, o apoio do Estado e algumas políticas que promovem o cooperativismo, a entre-
ga de terras às famílias camponesas e a formação de facilitadores devolveram aos pequenos
produtores o controle do sistema alimentar, e hoje a agricultura emprega 25% da população
economicamente ativa. Apesar das limitações no acesso à tecnologia, causadas pelo bloqueio
econômico, as propriedades agroecológicas cubanas relatam aumentos na autossuficiência
alimentar, diversificação genética e de espécies, independência de insumos externos e conser-
vação da água, solo e florestas. Da mesma forma, permitiram a construção de infraestrutura
para a habitação, transporte, produção, abastecimento e armazenamento.
No Brasil, por sua vez, as políticas em prol da agricultura familiar, como o Programa de
Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), assegu-
raram durante pelo menos duas décadas a comercialização da produção camponesa. Em seus
primeiros oito anos, o PAA atendeu mais de 700 mil famílias agricultoras, alimentou mais de
20 milhões de pessoas e atraiu investimentos institucionais para as hortas e chácaras onde as
mulheres praticam a agroecologia. Outra característica do movimento agroecológico brasi-
leiro, comum em todo o continente, é a ênfase no “intercâmbio” para estimular a transição

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 59
A REALIDADE DO CAMPO

CEPAL 2021
A pobreza no mundo
aumentou em
22 milhões
de pessoas em 2020

No campo, são
produzidos alimentos No campo
para mais de encontra-se
800 14%
milhões dos cultivos
de pessoas do mundo

INCIDÊNCIA DA POBREZA E EXTREMA POBREZA


RURAL

Pobreza
URBANA

Pobreza extrema

Apesar da enorme capacidade de produção de uma grande variedade de alimentos, ainda há um longo caminho a percorrer para aqueles
que trabalham a terra possa ter uma vida digna.

agroecológica. Durante esses intercâmbios, as famílias camponesas contam histórias de seus


ancestrais, discutem suas necessidades e mostram a outras famílias, estudantes e pesquisado-
res suas terras, suas formas de trabalho, os tipos de plantação, a vegetação, a fauna e as carac-
terísticas do solo.
No caso do México, as hortas agroecológicas promovidas pelo Centro de Estudos para o De-
senvolvimento Rural (Cesder) em 14 comunidades do norte de Puebla garantem quase 900 qui-
los de alimentos por ano. Além de melhorar a disponibilidade de alimentos e a economia fami-
liar, essas hortas deram independência econômica às mulheres. Por outro lado, a organização
Ponte para a Saúde Comunitária acompanha a produção agroecológica, a comercialização e
a promoção do consumo de amaranto entre as famílias camponesas de Oaxaca. O valor nutri-
cional deste cereal ancestral contribui para a soberania alimentar e melhora a saúde de uma
comunidade onde se estima que 61% da população esteja vulnerável.
Na Colômbia, as práticas agroecológicas permitem que as comunidades indígenas do sul de
Tolima e as afro-colombianas do norte do Cauca resistam ao abandono do Estado. No caso de
Tolima, mais de 2 mil mulheres da Associação para o Futuro com Mãos de Mulher (Asfumujer)
produzem alimentos e plantas medicinais em suas hortas, criam animais e lideram questões
como a conservação de sementes nativas, a água e o solo. Nesse país, a agroecologia é uma fer-
ramenta fundamental para a construção da paz, dada a sua capacidade de se adaptar a cada

60 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
território e dar autonomia às comunidades. Nos Espaços Territoriais de Capacitação e Reincor-
poração (ETCR), por exemplo, alguns ex-combatentes estão realizando projetos produtivos e
de turismo agroecológico, com o objetivo de resgatar a memória histórica de suas comunida-
des e territórios.
Como pode ser visto, a agroecologia gera oportunidades para a população rural da Améri-
ca Latina. Basta aproximar-se das mulheres da Cooperativa Calmañana, no Uruguai, das ini-
ciativas de transição dos pequenos cafeicultores de San Ramón, na Nicarágua e Veracruz no
México, dos agroecossistemas biodiversos apoiados pela Associação de Produtores da Ciénaga
Grande del Bajo Sinú (Asprocig) na Colômbia. O problema é que muitas dessas experiências con-
tinuam limitadas, devido à falta de políticas que, em vez de incentivar os esquemas industriais,
protejam as economias camponesas e as comunidades rurais.

FONTES

BBC Mundo (2021). “Covid-19 en América Latina: los países donde más aumentó la pobreza extrema
durante la pandemia (y los dos donde insolitamente bajó)”.
CEPAL, FAO e IICA (2021). Perspectivas de la agricultura y del desarrollo rural en las Américas. Una mirada
hacia América Latina y el Caribe 2021-2022.
Alexandra Praun et al. (2017). “Algunas evidencias de la perspectiva agroecológica como base para
unos medios de vida resilientes en la sociedad campesina del occidente de Guatemala”. Coloquio
Internacional Elikadura 21: El futuro de la alimentación y retos de la agricultura para el siglo XXI. País
Vasco, abril 24 al 26.
Jesús M. Rey-Novoa y Fernando R. Funes-Monzote (2014). “La familia campesina Rey-Novoa: una transición
agroecológica. Leisa vol. 29, n.° 4 [pp. 12-14].
Ángel Calle Collado et al. (2013). “Agroecología política: La transición social hacia sistemas
agroalimentarios sustentables”. Revista de Economía Crítica n.° 16.
Regina Helena Rosa Sambuichi et al. (2020). Nota Técnica n.° 17. O Programa de Aquisição de Alimentos
(PAA): instrumento de dinamismo econômico, combate à pobreza e promoção da Segurança Alimentar
e Nutricional (SAN) em tempos de Covid-19. IPEA.
Juan Martínez Lobato (2017). Manual para la construcción de una unidad de producción orgánica
biointensa. Puebla: Cesder y Merendero de Papel.
Puente a la Salud Comunitaria (2021). “Construyendo sistemas alimentarios saludables, equitativos y
sostenibles para la soberanía alimentaria”.
Puente a la Salud Comunitaria.
Álvaro Acevedo y Nathaly Jiménez (comps.) (2019). La agroecología. Experiencias comunitarias para la
agricultura familiar en Colombia. Bogotá D. C.: Uniminuto y Universidad del Rosario.
Laura Mateus Moreno (2016). “La agroecología como opción política para la paz en Colombia”. Ciencia
Política, UNAL, vol. 11, n.° 21 [p. 57-91].
Defensoría del Pueblo de Colombia [s. f.]. Informe Espacios Territoriales de Capacitación y Reincorporación.
CEPAL (2021). Panorama Social de América Latina 2020.

d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 61
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Agroecologia na América Latina [livro eletrônico]: um futuro necessário /


organização: Marcelo Montenegro, Julia Dolce.
Rio de Janeiro: Fundação Heirich Böll, 2023. PDF

Vários colaboradores.
ISBN 978-65-87665-18-4

1. Agricultura 2. Agroecologia 3. América Latina - Aspectos ambientais


4. Desenvolvimento rural 5. Sustentabilidade I. Montenegro, Marcelo.
II. Dolce, Julia.

23-180261 CDD-630
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 63

Você também pode gostar