Dossie Agroecologia
Dossie Agroecologia
Dossie Agroecologia
agroecologIa na
América Latina
Um futuro necessário
RIO DE JANEIRO
Brasil
EXPEDIENTE
O dossiê “Agroecologia na América Latina – Um futuro necessário” foi concebido pelo grupo de coordenadores das
áreas de justiça socioambiental da Fundação Heinrich Böll, em 2019, tendo passado por muitos debates, investigações,
redações e reescritas, além da análise e intervenção por acadêmicos, jornalistas, de diagramadores e muitas outras
pessoas que foram consultadas pelas equipes da Fundação Heinrich Böll nos escritórios da América Latina. Por isso, os
artigos são uma construção coletiva e não há assinatura de autoria nos textos.
Colaboração científica:
Rodica Weitzman, Marcus Vinicius Branco de Assis Vaz (tradução para o espanhol das informações sobre o Brasil),
Dulce Espinosa e Luis Bracamontes (informações sobre o México), Julián Ariza, Irene Mamani Velazco,
Henry Picado Cerdas (Costa Rica), Corporación Ecológica y Cultural Penca de Sábila
Autores convidados:
Giuseppe Bandeira, Julia Dolce, Nemo Augusto Moés Côrtes
Este material é licenciado por Creative Commons "Atrribution-Share Alike 4.0Unported" (CC BY-SA 4.0).
Para o contrato de licença veja: https://creativecommons.org/licenses/by-sa/legalcode.
Para um resumo (não um substituto), veja http://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.en
Dossiê Da
agroecologIa na
América Latina Um futuro necessário
PRIMEIRA EDIÇÃO
2023
CONTEÚDO
6 EDITORIAL 21 AGROECOLOGIA URBANA
AGROECOLOGIA NA AMÉRICA LATINA: DIÁLOGOS ENTRE O CAMPO E A CIDADE
UM FUTURO NECESSÁRIO O antagonismo entre rural e urbano impacta
na negação das relações dinâmicas entre
8 13 TESES esses territórios, criando barreiras para a
AGROECOLOGIA NA AMÉRICA LATINA agricultura familiar e gerando desigualdades
sociais e insegurança alimentar. Movimentos
10 MOVIMENTO AGROECOLÓGICO agroecológicos têm produzido experiências que
DA PROPRIEDADE AGRÍCOLA À REDE visam tecer relações dignas e justas entre essas
A soberania alimentar e a defesa dos bens comuns duas geografias.
são lutas coletivas. A agroecologia fortalece
os processos territoriais de base camponesa, a 24 COMERCIALIZAÇÃO E
organização comunitária e a criação de redes, que DISTRIBUIÇÃO AGROECOLÓGICA
expressam a grande diversidade ecossistêmica DO CAMPO À MESA
e sociocultural da agricultura. Assim são Um dos maiores desafios da agroecologia é
construídas as trocas materiais e simbólicas entre a dificuldade técnica e material para que os
os diferentes sujeitos sociais, com o propósito de se alimentos produzidos no campo cheguem a
alcançar condições dignas de vida. outros consumidores. Para resolver essa situação,
foram criadas redes alternativas de distribuição,
12 JUVENTUDES AGROECOLÓGICAS circuitos solidários, mercados, feiras e outras
UMA PONTE ENTRE GERAÇÕES soluções como as comunidades que sustentam a
Após décadas imigrando para as cidades por agricultura.
não encontrarem oportunidades de estudos e
estabilidade profissional no campo, os jovens 27 SISTEMAS PARTICIPATIVOS DE GARANTIA
rurais da América Latina agora protagonizam MAIS QUE UM SELO DE CERTIFICAÇÃO
uma retomada da relação com seus territórios Os processos de certificação orgânica
de origem. Esse movimento é relacionado ao convencional de alimentos funcionam como
crescimento do interesse da juventude sobre as formas de controle e padronização que nem
práticas sustentáveis de produção agrícola, a sempre favorecem a agricultura de pequena
agroecologia. escala. A agroecologia propõe a descentralização
desses processos, sob a lógica de que o próprio
15 FEMINISMO E AGROECOLOGIA grupo de agricultores, agricultoras e as redes
SEM FEMINISMOS NÃO HÁ AGROECOLOGIA aliadas de consumidores são os mais indicados
É impossível pensar em um projeto de futuro para garantir a origem agroecológica dos
justo, sustentável e diversificado que não inclua as alimentos.
mulheres do campo, das águas e da floresta, pois
são elas que lideram a transformação do sistema 30 POLÍTICAS PÚBLICAS
agroalimentar na América Latina. É por isso que, POLÍTICAS AGROECOLÓGICAS
a partir do feminismo camponês e suas alianças, “DESDE ABAIXO”
as mulheres rurais e agricultoras têm um lema de Graças à pressão de movimentos e organizações
luta: sem feminismo não há agroecologia. que se articulam em torno da agroecologia e da
soberania alimentar, alguns países da América
18 CONHECIMENTO ANCESTRAL Latina avançaram na construção de marcos
SABERES E DIVERSIDADE BIOCULTURAL jurídicos e políticos rumo à transição a sistemas
As raízes mais fortes da agroecologia estão nos agroalimentares alternativos. Além disso,
princípios e nas práticas ecológicas, a partir das as crises econômicas, ambientais e políticas
quais mulheres e homens camponeses, indígenas forçaram os Estados a buscar formas sustentáveis
e afrodescendentes cultivam a terra, cuidam de produção de alimentos e de desenvolvimento
da natureza e geram conhecimento. Assim, o rural. No entanto, muitas leis e instituições
movimento considera urgente a proteção dos permanecem no papel ou não alcançam
saberes dessas comunidades. O futuro do planeta mudanças estruturais, sendo facilmente
depende disso. desmontadas a depender do governo.
4 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
34 MUDANÇAS CLIMÁTICAS 48 ÁGUA
AGROECOLOGIA PARA FREAR A CRISE DIREITO HUMANO E GESTÃO COMUM
Entre as populações mais vulneráveis à mudança A água é um bem comum esgotável, e o acesso a
climática estão os agricultores familiares e de ela é cada vez mais desigual. Esse direito essencial
pequena escala do sul global. Entretanto, muitos deve ir além da concepção da água como um
desses camponeses mostraram maior capacidade serviço individual mercantilizado. Para garantir
de adaptação graças à implementação de práticas esse direito, os Estados devem reconhecer os
sustentáveis, tanto aquelas que herdaram de saberes acumulados e as capacidades adquiridas
seus antepassados quanto aquelas que foram das comunidades para a gestão coletiva, seja
sistematizando em diálogo com outras famílias, para o consumo direto ou para a produção de
técnicos e cientistas que trabalham com o alimentos.
enfoque agroecológico.
51 TERRA E TERRITÓRIO
37 SOBERANIA ALIMENTAR OUTRAS FORMAS DE SE PENSAR O ESPAÇO
A AGROECOLOGIA COMO PILAR A distribuição desigual da terra é um problema
DO DIREITO À ALIMENTAÇÃO histórico na América Latina. Organizações e
Os habitantes das áreas rurais, onde é produzida a movimentos sociais propõem uma defesa do
maior parte dos alimentos consumidos no mundo, território que vai além da luta pela terra, e
encontram-se, muitas vezes, em situação de inclui a proteção da água, das montanhas, da
insegurança alimentar. A fome e a má nutrição na biodiversidade, das sementes e dos patrimônios
América Latina, provocadas não pela carência de culturais e imateriais associados aos povos e aos
alimentos, mas pela ausência de direitos, refletem ecossistemas. A agroecologia é um elemento
a falta de garantias para a alimentação adequada articulador desta luta. Porém, essas organizações
e saudável de pessoas, famílias e comunidades. territoriais contra hegemônicas enfrentam uma
série de ameaças.
41 SAÚDE
AGROECOLOGIA E O CUIDADO COM A VIDA 55 REVOLUÇÃO VERDE
Desequilíbrios causados pelo sistema PROMESSAS DESCUMPRIDAS E
agroalimentar estão por trás de boa parte das IMPACTOS GRAVES
doenças. Para a agroecologia, a saúde das pessoas Pacote tecnológico e produtivo que transformou
depende do cuidado com o planeta, e por isso, completamente a agricultura mundial, a
são propostas formas saudáveis de interagir Revolução Verde trouxe consequências graves
como meio ambiente. A produção orgânica e para o meio ambiente, a saúde humana e a
a valorização das plantas medicinais, a partir autonomia de agricultores sobre seus territórios.
do resgate de conhecimentos ancestrais, estão
entre as estratégias promovidas por movimentos 59 BEM VIVER
agroecológicos para a garantia de mais saúde e VIDA DIGNA NO CAMPO
qualidade de vida. Propriedades rurais prósperas, organizações
comunitárias sólidas, cooperativas sustentáveis,
45 AGROBIODIVERSIDADE programas de alimentação saudável e formação
SEMENTES, PATRIMÔNIO DOS POVOS técnica e política. A agroecologia é um sopro
Guardiãs e redes de semente sustentam a luta pela de esperança para as famílias camponesas,
soberania alimentar e pela agrobiodiversidade. indígenas e afrodescendentes, pois permite
Resistem às ações de indústrias e governos que preservar sua cultura e entrelaçá-la com outras,
promovem o uso de sementes transgênicas ou para demonstrar que a dignidade camponesa
se apropriam de materiais genéticos que fazem não é apenas possível, mas também urgente
parte da interação histórica entre os povos da para responder à atual crise alimentar e
América Latina e as plantas que os nutriram e socioambiental.
curaram durante séculos.
5
Editorial
Agroecologia na
América Latina:
um futuro necessário
A
agroecologia tem crescido em todo o mundo, mas é na América Latina que suas expe-
riências estão mais fortes e consolidadas. Poucos fenômenos são tão fundamentalmen-
te latino-americanas quanto a agroecologia. Em reconhecimento à importância dessa
ciência, movimento social e acervo de práticas que condensa inúmeras experiências revolu-
cionárias e de resistência na América Latina, a Fundação Heinrich Boll decidiu produzir sua
primeira publicação própria unindo esforços de todos seus escritórios latino-americanos. Foi
uma longa trajetória de reuniões e levantamentos de experiências com parceiros que atuam
na cena agroecológica em diferentes países.
Essas experiências, que por séculos sobreviveram à investida dos processos coloniais, prece-
dem a consolidação do conceito de agroecologia, marcando lutas históricas pela defesa terri-
torial e cultural. No entanto, diversos movimentos transnacionais que surgiram a partir da dé-
cada de 80 se nutriram delas para promover a integração, em rede, dessa resistência. É o caso
do Movimento Agroecológico Latino-americano (MAELA), o Consórcio Latino-americano de
Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável (CLADES), a Coordenadoria Latino-ameri-
cana de Organizações do Campo (CLOC), e o movimento Via Campesina. Entre os principais
compromissos dessas organizações estavam, e seguem estando, a defesa da segurança e so-
berania alimentar, a reforma agrária integral e popular, a reivindicação dos bens comuns, a
equidade de gênero, os direitos dos povos indígenas e tradicionais e da própria natureza.
Nos últimos anos, a agroecologia tem expandido seu público e ganhado cada vez mais espa-
ço em meios onde, originalmente, era escamoteada. No campo acadêmico, por exemplo, ela
tem confrontado o pensamento positivista, construindo novos paradigmas que superam as
concepções hegemônicas que sustentam o sistema agroalimentar industrial. A juventude la-
tino-americana tem sido determinante no processo de expansão da agroecologia para outras
redes.
Mas nem tudo são flores, ou uma grande variedade de frutas e verduras. A realidade ainda
é dominada pela monocultura. Existem grandes desafios para que a agroecologia cresça o su-
ficiente para se tornar um oponente à altura dos modelos predatórios de extração. Promessas
6 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
não cumpridas de reformas agrárias, desmontes de políticas públicas que apoiam a agricultu-
ra camponesa, o açambarcamento de territórios indígenas e de povos tradicionais estão entre
eles, além dos esforços de cooptação e captura de uma retórica agroecológica por Estados e
empresas. Esses desafios também são diagnosticados ao longo desse dossiê.
Por ora, esperamos que esse material, um mosaico de fatos e experiências internacionais
(muitas das quais desconhecidas até mesmo no contexto agroecológico brasileiro), te alimente
de uma visão diferente de América Latina daquela apresentada pela lógica desenvolvimentis-
ta: a de um continente rico em biodiversidade, água doce e povos que dominam conhecimen-
tos milenares de como coexistir com essa abundância. Essa diversidade é a principal semente
da agroecologia.
Boa leitura,
Annette von Schönfeld, Marcelo Montenegro e Julia Dolce
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 7
13 TESES
4
A agroecologia gera relações de
apoio, CONFIANÇA E SOLIDARIEDADE 5
entre as lutas do campo e da CIDADE. A agroecologia defende o DIREITO À
Ao promover o consumo político ALIMENTAÇÃO, À ÁGUA, À TERRA, ÀS
e as economias locais através da SEMENTES, A UM AMBIENTE SAUDÁVEL,
comercialização em circuitos curtos, e outros direitos interdependentes,
fomenta uma ligação direta entre e luta pela SOBERANIA ALIMENTAR.
agricultores e consumidores finais. Com estes objetivos combate a fome
e a pobreza, democratizando os
sistemas alimentares e estimulando
a produção e comercialização de
alimentos frescos, nutritivos e LIVRES
DE AGROTOXICOS E TRANSGÊNICOS.
6
Na agroecologia entrelaçam-se as lutas pelo que é comum:
O acesso à água, à terra e ao território, a defesa das sementes
crioulas e nativas, o cuidado com a biodiversidade, as florestas e
os biomas, as planícies, rios e montanhas.
8 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
A agroecologia é uma VERDADEIRA SOLUÇÃO A agroecologia propõe novas economias
PARA A CRISE CLIMÁTICA e torna os territórios centradas no cuidado das pessoas e
mais resilientes, eliminando os combustíveis da natureza, nas quais o valor de uso é
fósseis presentes na forma de agrotóxicos priorizado em relação ao valor de troca,
e fertilizantes, reduzindo as distâncias do os trabalhos de cuidado são valorizados e
transporte de alimentos, evitando a destruição compartilhados, e a riqueza é redistribuída.
da biodiversidade, aumentando a ciclagem de
nutrientes e energia nos agroecossistemas e 8
promovendo o sequestro de carbono.
7
9
A agroecologia dignifica as famílias
agricultoras e os povos que a praticam.
Promove formas organizacionais
para garantir o exercício de direitos,
combatendo a concentração e a
espoliação, para que O TERRITORIO
e A TERRA SEJAM DAQUELES QUE A
HABITAM E NELA TRABALHAM.
10
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 9
MOVIMENTO AGROECOLÓGICO
A
resistência é a origem de muitas alianças. Em 2007, em torno de 300 organizações cam-
ponesas, indígenas, ambientalistas, científicas, feministas, de direitos humanos e de
agricultores urbanos do México promoveram a campanha pela soberania alimentar
“Sem milho não há país” (Sin maíz no hay país). Não se tratou de uma manobra espontânea:
desde 2003, o movimento “O Campo não aguenta mais” protestava contra a abertura das im-
portações de milho e feijão. Em 2011, as mobilizações conseguiram que o direito à alimentação
fosse incluído na Constituição Mexicana.
Essa experiência ilustra as relações e interações que ocorrem em muitas comunidades da
América Latina para resistir ao monopólio do sistema alimentar industrial. A agroecologia
se nutre da diversidade de atores locais e, ao mesmo tempo, estimula a articulação em redes:
sistemas dinâmicos, heterogêneos e autônomos, cujos âmbitos de interesse incluem desde a
defesa da água e sementes, a luta contra os transgênicos e a promoção de uma alimentação
saudável, passando pela priorização do abastecimento popular entre comunidades e o estabe-
lecimento de circuitos curtos de comercialização, entre outras demandas.
As redes de sementes, por exemplo, são estruturas abertas em que as famílias, comunidades
e cooperativas se organizam para selecionar, cultivar, intercambiar e distribuir sementes na-
tivas e crioulas em seus territórios. Para estas redes, o encontro que se habilita em mercados
camponeses, feiras e festas de sementes é fundamental. Nestes espaços, pratica-se o intercâm-
bio direto de saberes, memórias e culturas, com o compartilhamento de práticas de manejo,
receitas ou usos alimentares e medicinais.
Uma das maiores vantagens das redes é a promoção e o reforço dos vínculos entre as comu-
nidades rurais e urbanas, o que favorece a comercialização nos territórios e fortalece práticas
de consumo politizado. A Rede de Agroecologia Ecovida, do Brasil, trabalha pela certificação
de seus produtos orgânicos, pela formação e promoção de saberes populares e pela constru-
ção de rotas de comercialização, por exemplo. Desde 2019, em conjunto com as redes Povos
da Mata e Orgânicos Sul de Minas, a Ecovida consolidou várias estações centrais nas quais as
famílias e grupos de agricultores não somente reúnem e distribuem seus produtos, mas tam-
bém estabelecem relações mais duradouras com os consumidores através de feiras, visitas de
consumidores a propriedades agroecológicas ou da construção de Células de Consumidores
Responsáveis (CCR), grupos de compra e venda direta entre consumidores e agricultores fami-
liares certificados por estas redes. Do mesmo modo, no México, durante a pandemia, as Redes
Alimentares Alternativas (RAA) ganharam força como espaços de encontro entre produtores e
consumidores comprometidos com a transformação do sistema agroalimentar.
A lista de redes agroecológicas é imensa e muitas experiências são, em grande parte, desco-
nhecidas fora do seu âmbito local. Nos últimos anos, também no Brasil, a Associação Brasileira
de Agroecologia (ABA), a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e a Fundação Oswaldo
Cruz (Fiocruz) dedicaram esforços para sistematizar experiências e redes de agroecologia nos
territórios. Este trabalho coletivo de produção de conhecimentos tem sido garantido por meio
do desenvolvimento de uma base de cadastros, informações e dados sobre agroecologia no
Brasil, possibilitando identificar redes de agroecologia e seus elos de atuação nos estados. A
Agroecologia em Rede (AeR) é plataforma virtual que reúne este banco diverso de informa-
10 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
COMO EXPANDIR E SUSTENTAR O avanço TERRITORIAL DA AGROECOLOGIA?
Organização
Aprendizagem
social
construtivista
Reconhecer a
crise para buscar Práticas
alternativas agroecológicas
eficazes
Políticas
favoráveis
Discursos de
mobilização
Os pesquisadores Mateo Mier e Terán et al., identificaram esses oito fatores-chave para massificar e expandir a agroecologia em maior escala.
FONTES
Mateo Mier y Teran et al. (2018). “Bringing agroecology to scale: Key drivers and emblematic cases”.
Journal Agroecology and Sustainable Food Systems vol. 42, n.° 6 [pp. 637-665]
Miguel Angel Samano (2013). “La agroecologia como una alternativa de seguridade alimentaria para las
comunidades indigenas”. Revista Mexicana de Ciencias Agricolas vol. 4, n.° 8 [pp. 1251-1266]
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 11
JUVENTUDES AGROECOLÓGICAS
A
produção industrial de alimentos rompeu os laços familiares da agricultura tradicional
e há décadas vem provocando o êxodo dos jovens do campo. Segundo dados da CEPAL,
80% dos jovens da América Latina vivem em áreas urbanas e apenas 20% em áreas rurais.
No Uruguai, por exemplo, o número de jovens rurais não chega a 5%; e embora os jovens repre-
sentem metade da população na Guatemala e em Honduras, 90% das terras produtivas desses
países estão nas mãos de homens com mais de 50 anos. Entre 2007 e 2019, segundo o Censo
Agropecuário Mexicano, o percentual de produtores mexicanos com menos de 45 anos pas-
sou de 38% para 10,1%. Não é a apatia que leva os jovens do campo a emigrar ou a se dedicar a
outros empregos: no campo eles dispõem de poucas oportunidades acadêmicas, os empregos
não têm estabilidade, os salários são precários e há dificuldades no acesso à terra e aos meios
de produção.
A marginalização dessa população não afeta apenas seus direitos à terra e a uma vida digna,
mas também os modos de vida camponês e indígena que garantem a defesa dos territórios. Nos
Andes, por exemplo, a agro biodiversidade é resultado direto das relações familiares e comu-
nitárias, que ainda permitem a troca de sementes nativas e dos conhecimentos a elas relacio-
nados. Já no Peru, os jovens de origem quéchua-lama do Alto Amazonas aprenderam com seus
ancestrais a cultivar em três altitudes para diversificar suas colheitas. Eles também participam
em festivais e rituais, assembleias comunitárias e atividades de mutirão.
Nos últimos anos, porém, tornou-se cada vez mais comum a migração de famílias jovens
para o campo, com o objetivo de se dedicarem à produção agropecuária alternativa. Os jovens
recuperam, adotam e divulgam práticas sustentáveis. Desde 2017, por exemplo, os agriculto-
res mais jovens do assentamento Los Pescados, no México, preparam seus próprios insumos
para fertilizar as culturas de batata. Com o acompanhamento do Centro de Estudos para o De-
31,3%
21,8%
MIGRAM PARA A CIDADE POR MOTIVOS
DE TRABALHO OU EDUCACIONAIS
Procura educação
28%
PARDO 2017
O panorama das mulheres jovens rurais na Colômbia é um reflexo da realidade das mulheres do campo da América Latina.
12 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
SER MULHER, SER JOVEM, SER RURAL
DÍAZ 2017
As demandas das
Essa geração de jovens rurais exigem
mulheres é a que associatividade, participação
possui maior grau de política e espaços onde suas
escolarização que já vozes sejam reconhecidas
existiu na região e, em e identificadas como
alguns países, supera protagonistas.
os homens em anos de
educação formal.
As mulheres jovens
Quanto à inserção no rurais vivem suas
mercado de trabalho próprias realidades,
formal: os homens que exigem abordagens
ocupam o dobro de contextualizadas
postos que as mulheres, territoriais e
com 73% de inserção generacionais.
contra 36%.
senvolvimento Rural (Cesder) e da organização Sendas AC, os jovens promovem práticas que
integram tecnologias modernas e conhecimentos milenares de seus familiares e vizinhos; e
em 2020 iniciaram o piloto de uma biofábrica para envolver mais famílias na produção destes
insumos.
Por sua vez, na Guatemala, em 2019, 40 jovens rurais criaram a Cooperativa de Empreen-
dedores do Vale para cultivar e comercializar hortaliças. Já na Costa Rica, existe um grupo de
mais de 100 mulheres jovens chamado Yunta Agroecológica, que trabalha na formação de pes-
soas em todo o país. Por meio do trabalho de base dos movimentos sociais e das escolas cam-
ponesas, nas últimas duas décadas a juventude latino-americana encontrou na agroecologia
múltiplas formas de organização que inspiram manifestações a favor da soberania alimentar,
pelo acesso à terra, e pela igualdade de gênero. Em 2010 surgiu a Articulação Continental de
Jovens, que favorece a incidência juvenil na agenda política da Coordenadoria Latino-Ameri-
cana de Organizações do Campo (CLOC - Via Campesina), cujas assembleias reúnem entre 300
e 500 jovens de todo o continente. Além disso, os Institutos Agroecológicos Latino-America-
nos (IALA), consolidados graças ao esforço da CLOC, incentivam o retorno e a permanência da
juventude camponesa em seus territórios, e lhes oferece ferramentas para que desenvolvam
processos de autonomia.
A multiplicação dos IALA e outras experiências locais, como as Escolas Virtuais de Agroeco-
logia promovidas pelo Movimento de Juventudes pela Agroecologia e Soberania Alimentar do
Peru (Alsakuy), geram formas de aprendizagem contextualizadas e vivenciais que reafirmam
a identidade latino-americana do projeto agroecológico. No Brasil, o modelo da Pedagogia da
Alternância, pelo qual estudantes alternam entre períodos estudando in loco e períodos estu-
dando em casa, tem sido importante para garantir que gerações de jovens apliquem sua for-
mação dentro de suas comunidades rurais. No Uruguai, a Rede de Sementes Nativas e Crioulas
apoia a organização de instâncias coletivas de jovens para fortalecer sua participação ativa
na construção da Soberania Alimentar e no desenvolvimento da Agroecologia. Todos os anos,
desde 2016, grupos da rede organizam o Acampamento Nacional de Jovens pela Soberania Ali-
mentar. Nesses encontros, reivindica-se o acesso à terra, o retorno ao campo, a autogestão do
trabalho, a preservação das sementes crioulas e o aprender fazendo. Alguns desses grupos re-
alizam seus processos em terras públicas, pertencentes ao Instituto Nacional de Colonização.
No entanto, esta é uma exceção, pois os jovens latino-americanos não têm acesso à terra. Na
região dos morangos dos subtópicos mexicanos, por exemplo, os agricultores com menos de 35
anos precisam se organizar em equipes de cinco até quinze pessoas para arrendar parcelas de
terras. Cada membro contribui equitativamente com recursos e força de trabalho, e assim as
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 13
colheitas são distribuídas; em alguns casos, eles migram para outras regiões para vender sua
força de trabalho.
Mesmo nas cidades, os jovens não estão distantes das pautas agroecológicas. Em estágios,
agrupamentos e acampamentos, os jovens urbanos se aproximam da produção no campo e
exploram a agricultura urbana sustentável, em lutas e redes de consumo como os Grupos de
Consumo Responsável (GCR) ou as Comunidades que Sustentam a Agricultura (CSA). A mobili-
zação da juventude latino-americana também foi importante durante o auge da pandemia de
Covid-19. Em países como Colômbia, Chile, Peru e Brasil, eles lideraram projetos de refeições
comunitárias, hortas comunitárias, campanhas de solidariedade e doações de alimentos.
Assim, apesar de poucas garantias, os jovens latino-americanos estão reconstruindo suas
relações com a agricultura. O horizonte agroecológico está mobilizando processos por meio
do desenvolvimento de projetos que afirmam buscar o bem comum.
FONTES
Maia Guiskin (2019). Situacion de las juventudes rurales en America Latina y el Caribe. CEPAL
Andres Espejo (2017). Insercion laboral de los jovenes rurales en America Latina: Un breve analisis
descriptivo. RIMISP
Inegi y Secretaria de Agricultura y Desarrollo Rural de Mexico. Encuesta Nacional Agropecuaria 2019
Una nueva generacion de agricultores: la juventud campesina. Leisa vol. 27, n.° 1
Gerardo Suarez (2020). “Jovenes del ejido Los Pescados abandonan el uso de pesticidas y adoptan practicas
agroecologicas”. CCMSS
Jose Luis Espinoza et al. (2013). Fincas agroecologicas en el bosque seco de Honduras. ANAFAE
Renata Pardo (2017). Diagnostico de la juventude rural en Colombia. RIMISP
La Via Campesina (2019). “Juventud del campo: la apuesta por la formacion y la participacion”
CLOC - La Via Campesina (2021). “Los IALAs de America Latina y la formacion agroecologica para la
juventud”
Jose Isabel Juan Perez et al. (2011). “Grupos de ayuda mutua juvenil en la region fresera del subtropico
mexicano: una estrategia para la subsistência de las familias campesinas”. Leisa vol. 27, n.° 1
Vivian Diaz (2017). “Ser mujer, ser joven, ser rural”. El Desconcierto.
14 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
Feminismo e agroecologia
Sem FeminismoS
não há Agroecologia
É impossível pensar em um projeto de futuro justo, sustentável e diversificado que não inclua as
mulheres do campo, das águas e da floresta, pois são elas que lideram a transformação do sistema
agroalimentar na América Latina. É por isso que, a partir do feminismo camponês e suas alianças,
as mulheres rurais e agricultoras têm um lema de luta: sem feminismo não há agroecologia.
O
campo tende a ser um terreno hostil para as mulheres latino-americanas. Elas geralmen-
te cultivam em terras alheias, têm poucas oportunidades de educação ou acesso à saúde,
além de longas jornadas de trabalho, e menos da metade delas participa das decisões
de produção. No entanto, as mulheres mantêm uma alta agrobiodiversidade para o consumo
de suas comunidades por meio de quintais ou hortas onde cultivam hortaliças, grãos, frutas,
plantas medicinais e flores, além de criarem animais e intercambiarem suprimentos e conhe-
cimentos. Um projeto com 879 mulheres camponesas no nordeste do Brasil identificou que,
entre agosto de 2019 e fevereiro de 2020, foram produzidos 1.228 produtos agroecológicos de
origem animal e vegetal: quantidade capaz de garantir a sobrevivência das famílias da região.
No entanto, muitas dessas práticas não são reconhecidas como produtivas, mas sim consi-
deradas uma extensão de um trabalho doméstico, que não é propriamente reconhecido en-
quanto trabalho. Por isso, as mulheres do campo reafirmam que a agroecologia também deve
questionar o controle masculino dos recursos, a divisão do trabalho e a tomada de decisões nas
propriedades rurais e organizações. Para isso, movimentos de mulheres no campo demandam
que a agroecologia tenha raízes em outro movimento: o feminismo.
A Via Campesina e a Coordenadoria Latino-Americana de Organizações do Campo (CLOC)
falam de um feminismo rural e popular, capaz de responder às demandas das mulheres em
seus contextos, e que lhes permita ser chamadas de agricultoras e não de donas de casa. Essa últi-
ma demanda é palavra de ordem das mulheres do campo do norte da Nicarágua, por exemplo.
A incursão dessa perspectiva feminista nos permite falar de uma mudança de paradigma nas
comunidades, em que o trabalho de cuidado não cabe mais apenas às mulheres.
Estudos mostram que vincular as mulheres a organizações e feiras amplia sua liberdade de
ação, eleva sua autoestima e, em alguns casos, redistribui as relações de poder nas famílias.
Um exemplo é a Associação Nacional de Mulheres Camponesas, Negras e Indígenas da Colôm-
bia (ANMUCIC), cujas integrantes têm mirado na erradicação da violência e nas leis de acesso
e posse da terra.
A produção agrícola também dá às mulheres acesso ao mercado, à independência econômi-
ca e ao empoderamento político. No altiplano boliviano, a feminização do campo vem crescen-
do, visto que os homens costumam migrar para os centros urbanos. Essa ausência masculina
na comunidade, embora exija que as mulheres trabalhem mais para sustentar sua economia
familiar, facilita sua participação política. Elas participam de reuniões, assembleias comunitá-
rias, e de sessões de formação, além de assumirem o controle dos mercados locais.
Nas últimas duas décadas, as camponesas mexicanas avançaram na transformação e valo-
rização da milpa1. As integrantes da cooperativa indígena Tosepan Siuamej operam e adminis-
tram fábricas de tortilhas, lojas, padarias e estabelecimentos de fabricação de doces e bebidas.
Outro exemplo é a cooperativa Chiltoyac, grupo de mulheres Xalapeñas dedicadas a resgatar
a receita tradicional do mole2 mexicano e enfrentar a industrialização de alimentos por meio
de redes de comércio justo e solidário.
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 15
O combate ao uso de agrotóxicos também integra as lutas das mulheres no campo. Na Ar-
gentina e no Uruguai, as professoras das escolas rurais são as principais denunciantes das
consequências causadas pelo uso de agrotóxicos, como os impactos na saúde humana e na
biodiversidade, com a morte de peixes, aves e anfíbios. Entre 2009 e 2012, o grupo argentino
Madres de Ituzaingó gerenciou o primeiro processo da América Latina contra as fumigações, a
aplicação de agrotóxicos em estado gasoso. Na sentença, a contaminação ambiental foi reco-
nhecida como crime. Em 2016, essas mulheres, ambientalistas e moradores do bairro Malvinas
Argentinas, interromperam a construção da maior fábrica de processamento de sementes de
milho da Monsanto no continente.
As organizações camponesas também articulam seu trabalho com o das mulheres acadêmi-
cas. Em 2013, pesquisadoras latino-americanas fundaram a Aliança de Mulheres na Agroeco-
logia (AMA-AWA), com o duplo propósito de destacar o conhecimento agroecológico produzi-
do pelas mulheres e fortalecer alianças entre camponesas e a academia
Entre 2004 e 2015, os diálogos entre as organizações de mulheres rurais, ONGs e o Estado
brasileiro permitiram a criação do Programa de Promoção da Igualdade de Gênero, Raça e Et-
nia e do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar, além da incorporação
da abordagem de gênero no Plano de Políticas Públicas em Agricultura Familiar e Agroecolo-
gia. Graças a isso, em todas as chamadas públicas de assistência técnica e extensão rural deve
haver uma cota de 50% de mulheres como titulares de contratos e 30% de recursos para ativida-
des específicas indicadas por mulheres em seus projetos.
Nessa mesma linha estão os processos de formação do Instituto Latino-Americano de Agroe-
cologia Semeadoras de Esperança no Chile, promovido pela Associação Nacional de Mulheres
Rurais e Indígenas (ANAMURI).
No entanto, a relação entre agroecologia e mulheres ainda não é automática. Os movimen-
tos de mulheres alertam para o fato de que, por mais que se criem espaços de participação, se
as relações desiguais de gênero e a violência sexista na produção agroecológica não forem pro-
blematizadas, elas continuarão sendo obrigadas a cumprir os papéis de "boas mães" e "cuida-
doras do lar e do meio ambiente", funções que deveriam ser assumidas por todas as pessoas nas
As mulheres do
campo produzem até
Participação feminina na
população economicamente
Na América Latina,
50% Nos campos da
ativa na agricultura dos alimentos América Latina,
apenas
consumidos as mulheres
1 a 3%
18% diariamente no trabalham entre
12,1 a 14%
NOBRE e HORA, 2017 | ORELLANA 2020
14,1 a 20%
20,1 a 25%
25,1 a 30%
30,1 a 40%
40,1 a 50%
A diferença de gênero não se reflete apenas no escasso reconhecimento das tarefas ou na posse desigual da terra. Em El Salvador, por exemplo,
as mulheres recebem 16% menos remuneração fazendo o mesmo trabalho que os homens. E na Colômbia, apenas 19% das mulheres
produtoras tiveram acesso a maquinário e apenas 18,7% receberam assistência técnica
16 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
POUCA TERRA NAS MÃOS DAS MULHERES
27%
Embora as mulheres latino-americanas cultivem, trabalhem e cuidem, uma porcentagem muito pequena da terra cultivável pertence a elas.
1
Sistema de plantio dedicado ao cultivo do milho em consorciação com outras culturas.
2
Molho mexicano condimentado, preparado principalmente com pimentas e especiarias. O termo pode referir-se
também aos guisados à base de carne ou vegetais, frequentemente preparados com esse tipo de molho.
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d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 17
CONHECIMENTO ANCESTRAL
C
erca de 46% da população rural da América Latina é indígena ou afrodescendente. Essas
comunidades são as grandes responsáveis pela riqueza biológica que o continente con-
serva. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO),
a superfície dos territórios ocupados por elas chegaria a 380 milhões de hectares. Não é pos-
sível pensar a sustentabilidade do continente sem considerar o conhecimento de povos que
viveram por gerações com uma grande diversidade de ecossistemas e condições climáticas e
solos de todos os tipos. Povos que sofrem uma série de violências e cujo modo de vida foi des-
prezado por séculos por ser considerado arcaico, constituem um dos pilares fundamentais da
agroecologia.
A partir de uma abordagem agroecológica, entende-se que os sistemas agroalimentares não
podem ser estudados de forma abstrata ou fora de seu contexto histórico, pois eles são fruto de
práticas sociais e culturais que evoluíram com a natureza por milhares de anos. Esse diálogo
histórico cria um substrato comum que possibilita a troca de informações, conhecimentos,
criatividade, símbolos, matéria e energia entre a humanidade e os ecossistemas.
As paisagens naturais e domésticas são habitadas por muitas comunidades conforme esque-
mas éticos, espirituais e epistemológicos que estabelecem relações de interdependência entre
o humano e o não humano. Muitas delas concebem a natureza como sujeito de direitos. Um
exemplo disso é a noção maia de Kanan Ka'ax (bom cuidado da floresta), que alude à necessá-
ria reciprocidade entre o meio ambiente e as práticas humanas de transformação. Em todo o
continente latino-americano há muitos outros exemplos: Sumak Kawsay entre os quéchuas do
Equador, Suma Qamaña entre os aimarás da Bolívia, Ñandareko entre os guaranis da Argenti-
na, Brasil e Paraguai, Lekil Kuxlejal entre os tzeltal e os tzotzil maias do México. Em geral, todas
essas cosmovisões coincidem na noção de viver com o necessário e em harmonia com o que
chamam de “Mãe Terra”.
Na América Latina, essas formas ancestrais de pensar e viver permitiram o desenvolvimento
de sistemas de produção complexos. Na Colômbia, por exemplo, a Associação de Produtores
para o Desenvolvimento Comunitário da Ciénaga Grande del Bajo Sinú (ASPROCIG) reúne 6 mil
famílias indígenas, afrodescendentes, camponesas e de pescadores que projetaram seus agro-
ecossistemas de acordo com os recursos hidrobiológicos das áreas úmidas e da luz solar dos
trópicos, implementando técnicas de produção transmitidas de geração para geração, como
os Sistemas Agroecológicos em Diques Altos.
Na América Central, a base da soberania alimentar camponesa continua sendo a milpa, uma
antiga forma de cultivo que envolve o plantio em consórcio de culturas como milho, feião e
abóbora. Algo semelhante acontece na selva amazônica colombiana com as chagras, exten-
sões de terra de não mais de um hectare cultivadas por mulheres. Já no Brasil, indígenas e qui-
lombolas mantêm vivas suas memórias de resistência por meio da agricultura coivara, técnica
na qual o plantio é itinerante.
Embora sejam evidentes as conexões entre o desenvolvimento da agricultura e o conheci-
mento dos povos ancestrais, elas foram rejeitadas durante grande parte do século passado. Um
dos principais momentos desse embate aconteceu em 1943, quando a Fundação Rockefeller
enviou um grupo de especialistas para "modernizar" a agricultura camponesa mexicana, a
fim de aumentar a produção de grãos, instalando a ideia de que o conhecimento ancestral era
18 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
População indígena nos países latino-americanos OS PRINCIPAIS DEFENSORES DAS FLORESTAS
México 19%
Venezuela 2,8%
Países com o maior Colômbia 3,7%
número de povos
COLÔMBIA 35
BOLÍVIA 13
Com seus modos de vida, suas formas de organização e sua resistência em defesa da Mãe Terra, os povos indígenas do continente têm
contribuído para a sobrevivência das florestas e da diversidade agrícola latino-americana.
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 19
ALGUMAS PRÁTICAS ANCESTRAIS LATINO-AMERICANAS
Milpa mesoamericana
Combina milho, feijão, abóbora,
pimenta chile, ervas comestíveis,
cogumelos comestíveis,
plantas medicinais, tubérculos,
árvores frutíferas e até animais
domésticos.
Essas práticas exemplificam a forma como as comunidades camponesas, indígenas e afrodescendentes do continente defendem seus
saberes tradicionais para construir a soberania alimentar.
tro do seu trabalho o diálogo entre esses saberes e a prática científica, de forma a construir
conhecimentos em interação permanente com a natureza e os povos que a habitam.
1
Trabalho solidário realizado por um grupo de amigos e vizinhos, após o qual os beneficiários oferecem uma refeição
generosa em agradecimento pela colaboração nos serviços.
FONTES
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20 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
Agroecologia Urbana
N
a América Latina, a densidade demográfica das cidades aumentou rapidamente devido a
fatores como a concentração e a grilagem de terras, a pauperização da agricultura fami-
liar, campesina e indígena, a exacerbação de violências e conflitos no campo e a mudan-
ça climática. 80% da população latino-americana vive em vilas ou cidades, o que faz da região
a mais urbanizada do mundo. Esse processo de êxodo rural enfraqueceu os sistemas agroali-
mentares, pois há cada vez menos trabalhadoras e trabalhadores rurais dedicados à produção
de alimentos, além de ter gerado uma série de desafios para a agricultura familiar.
Um desses desafios é o escoamento da produção. Na Argentina, a alta concentração urbana
é agravada pelas longas distâncias que os alimentos devem percorrer do campo até a cidade:
40% da produção percorre entre 40 e 50 quilômetros até chegar aos centros de abastecimento,
mas outros 40% percorrem mais de 1,9 mil quilômetros, o que contribui para uma perda de
pelo menos 45% desses alimentos. A criação de uma cultura de consumo politizado tem sido
uma das iniciativas do movimento agroecológico latino-americano para fortalecer as relações
ecológicas e a interdependência campo e cidade. A partir dessa estratégia, consumidores de
alimentos que residem nas cidades estabeleçam laços de solidariedade com os atores rurais
que cultivam a maior parte do que se consome nas cidades. Na Argentina, a União das Traba-
lhadoras e Trabalhadores da Terra (UTT) criou Colônias Agroecológicas de Abastecimento Ur-
bano para estimular essa comercialização direta.
Embora as redes que conectam os atores urbanos e rurais precisem ser ampliadas, a imple-
mentação de práticas agroecológicas tem dado frutos. Há vários exemplos significativos no
continente. Existe o Comitê SALSA, na Colômbia, uma rede de organizações sociais, popula-
res, camponesas e urbanas que tornam visível o trabalho de produtores e mercados agroeco-
lógicos urbanos. No país há também o Distrito Rural Campesino de Medellín, que promove a
gestão pública e participativa das áreas produtivas dos cinco distritos da cidade. Segundo a
Corporação Ecológica e Cultural de Penca de Sábila, vivem nesta cidade aproximadamente
50 mil camponeses que produzem, anualmente, 29 toneladas de alimentos. No México, exis-
tem as Redes Alimentares Alternativas (RAA), que comercializam nas proximidades das cida-
des para promover a dignidade dos produtores, a variedade e a saúde das dietas alimentares.
Nas últimas duas décadas, as RAA se multiplicaram: somente na Zona Metropolitana do Vale
do México (área metropolitana da Cidade do México) foram criados 36 mercados alternati-
vos entre 2003 e 2019.
Outro processo defendido pelos movimentos agroecológicos é a ampliação da produção de
alimentos nas próprias zonas urbanas, uma consequência positiva do intercâmbio de saberes
proporcionado pelo êxodo rural. Segundo estimativas do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (PNUD), a produção agrícola urbana no mundo varia entre 15 e 20%, embora
esse número possa ser maior. Segundo a Agroecologia em Rede (AeR), plataforma que mapeou
mais de 3 mil experiências agroecológicas no Brasil e na América Latina, atualmente encon-
tram-se registradas 233 experiências, grupos e centros de estudos agrícolas urbanos e periur-
banos no continente.
A cidade de Rosário, na Argentina, é um exemplo do potencial transformador de hortas ur-
banas. Em 1987 foi proposto o primeiro modelo, em um bairro popular da zona sul. Esta foi a
origem de um movimento agroecológico urbano que se consolidou durante a crise econômi-
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 21
O MOMENTO DA AGRICULTURA URBANA
CLINTON 2018
SERVIÇOS ECOSSISTÊMICOS
∙∙ Economia de energia
∙∙ Polinização
∙∙ Controle biológico
∙∙ Regulação do clima RETORNO ECONÔMICO
∙∙ Formação do solo Potencial de uso no mundo
∙∙ Fixação de nitrogênio. ∙∙ Tetos e coberturas: 1,3 milhão de ha
A vegetação das cidades gera entre ∙∙ Terrenos baldios: 7 a 11 milhões de ha.
80 e 160 bilhões de dólares em Até o ano 2000, 36% das áreas
serviços ecossistêmicos. urbanas e periurbanas do planeta
estavam cultivando alimentos.
PRODUÇÃO DE ALIMENTOS
A agricultura urbana pode
se tornar crucial, pois pode
produzir até 180 milhões
de toneladas de alimentos
por ano (cerca de 10% da
produção mundial de legumes e
hortaliças).
Os terrenos urbanizados (área construída) representam menos de 1% da superfície terrestre. De acordo com algumas estimativas muito
conservadoras, a agricultura urbana sozinha pode produzir entre 1 e 5% dos alimentos do mundo.
22 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
deriam ser criadas hortas comunitárias. No entanto, algumas políticas de planejamento vêm
abrindo caminho, como a Lei 1.328 da Prefeitura Municipal de Palmas, no estado brasileiro do
Tocantins, que instituiu o Programa Municipal de Agricultura Urbana, destinando o uso de
áreas urbanas ociosas para o cultivo de plantas medicinais, hortaliças, leguminosas, frutas e
outros alimentos. Nesse caminho de consolidação da agroecologia urbana e periurbana, faz-
se necessário um mapeamento mais intenso dessas experiências nas cidades. Afinal, cidade e
campo se entrelaçam em relações históricas de exploração que trazem graves consequências
sociais e ecológicas para ambos os espaços.
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d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 23
Comercialização e distribuição agroecológica
DO CAMPO À MESA
Um dos maiores desafios da agroecologia é a dificuldade técnica e material para que os
alimentos produzidos no campo cheguem a outros consumidores. Para resolver essa
situação, foram criadas redes alternativas de distribuição, circuitos solidários, mercados,
feiras e outras soluções como as comunidades que sustentam a agricultura.
O
s acordos de livre comércio, as políticas que sustentam o sistema agroindustrial gera-
ram, entre outras coisas, a necessidade de excessiva intermediação para produzir, trans-
portar e comercializar alimentos. Antigamente, era comum os intercâmbios ocorrerem
em circuitos curtos e feiras agropecuárias inter-regionais, o que permitia que produtores e
consumidores tivessem um encontro que gerava vínculos, para além da transação em si. A
agroecologia busca recuperar essas relações comerciais mais estreitas, e criar canais para que
as comunidades possam comercializar seus excedentes a preços justos e com tratamento dig-
no, melhorando assim suas condições de vida.
No Brasil, existe desde 1998 a Rede Ecovida, uma organização descentralizada que ao longo
dos anos estendeu suas raízes para mais de 27 núcleos regionais em 352 municípios, associan-
do 340 grupos de agricultores (envolvendo cerca de 4,5 mil famílias) e 20 ONGs em mais de 120
feiras agroecológicas e outros espaços de comercialização.
Também no Brasil, crescem as experiências que aproximam agricultores familiares e con-
sumidores por meio de um mecanismo conhecido como Agricultura de Responsabilidade
Compartilhada ou “Comunidades que Sustentam a Agricultura”. Na cidade de Florianópolis,
por exemplo, existem as Células de Consumidores Responsáveis, um grupo de compra e venda
em que os consumidores pagam uma assinatura para financiar as safras do ano e, em troca,
recebem alimentos a cada semana. Dessa forma, o consumidor assume os riscos junto com o
produtor, para que este não precise se preocupar com o investimento, mas com a produção e a
colheita.
CIRCUITOS COMERCIAIS
Produtoras e DOMINADOS POR GRANDES
produtores EMPRESAS
MERCADOS LOCAIS
ALTERNATIVOS
Como explicam Craviotti e Palacios, com a liberalização dos mercados, as condições para que os pequenos produtores pudessem entrar
nos circuitos de comercialização mudaram. A chegada de produtos importados mais baratos favoreceu a venda nos supermercados,
e os padrões de qualidade impostos pela indústria tornaram-se marcos legais. Assim, as grandes empresas acabaram verticalizando
e controlando toda a cadeia agroalimentar – sementes, colheita, beneficiamento, transporte e comercialização –, excluindo
completamente os pequenos produtores.
24 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
MERCADOS LOCAIS ALTERNATIVOS
Relação direta entre produtores e Modelo de compras públicas Cozinhas tradicionais regionais
consumidores
∙∙ Programas de Alimentação Escolar (PAE): seu A alimentação está relacionada com a história
∙∙ Mercados de produtores rurais: datam
objetivo é promover e garantir o direito dos e a identidade dos povos. Na América Latina,
dos anos noventa. São mais constantes
estudantes à alimentação e à saúde. Procurou- a cozinha tradicional regional constitui um
e aproximam as famílias produtoras das
se que os pequenos produtores sejam os patrimônio que destaca as preparações à base
consumidoras.
provedores desses alimentos. de ingredientes e produtos locais. Cozinhas como
∙∙ Praças de Mercado
∙∙ Compras públicas por abastecimento: a mexicana e a peruana são os referentes mais
∙∙ Lojas solidárias
instituições públicas ou patrocinadas pelos comuns do turismo culinário, mas há cozinhas
∙∙ Comunidades que sustentam a agricultura governos, como lares, asilos, abrigos, orfanatos, emergentes com longa tradição histórica e
∙∙ Cestas (entrega em domicílio) prisões e sedes militares. grande potencial.
Esses circuitos ocorrem entre produtores do campo e consumidores da cidade, mas também
se realizam entre agricultores. É o caso da organização de cacaueiros Orgânicos de Chontalpa,
em Tabasco, México, formada por 642 produtores com propriedade média de 1,7 hectares de
terra, que há 15 anos preserva o consumo local de cacau e a riqueza biocultural. Um de seus
porta-vozes afirma: “Primeiro precisamos garantir que tenhamos o cacau para o consumo na
região: nós o consumimos todos os dias na forma de pozol1, que nos dá energia para trabalhar.
Os primeiros interessados em tê-lo somos nós, depois o compartilhamos com o mercado”.
O excedente, então, vai para as cidades. Nelas, as práticas de distribuição que deram os me-
lhores resultados são os mercados e as feiras de agricultores. Nesses espaços participam pro-
dutores urbanos, periurbanos e processadores de alimentos. Em Lima, Peru, existem 20 feiras
apoiadas pela RED-PRAUSA (formada por mulheres de áreas periurbanas), a associação CO-
SANACA (formada por agricultores urbanos) e a associação Monticelo. Os habitantes daquele
país têm uma forte ligação com a sua gastronomia, sendo comuns as alianças entre chefs e
agricultores. Um exemplo disso é a feira gastronômica MISTURA, que alimenta cerca de 30 mil
pessoas a cada ano e conscientiza sobre a qualidade dos produtos advindos do campo. Ali, tra-
balham 350 produtores de todas as regiões do Peru, e a cada ano participam mais de 50 restau-
rantes, 70 carrinhos de alimentos e cerca de 16 cozinhas rústicas, além de cozinhas regionais.
Outro bom exemplo dessas sinergias comerciais são os mercados locais no Uruguai. O de
Atlântida, em Canelones, surgiu de um projeto da Comissão Nacional de Fomento Rural, da
Rede Agroecologia, da associação Slow Food e da Comissão de Moradores da Estação Atlânti-
da, com o objetivo de vender e comprar produtos agroecológicos de forma direta. Na Argenti-
na, por sua vez, em uma pesquisa colaborativa organizada pela Rede Inter-regional de Nós de
Consumo Agroecológico, foram registrados cerca de 30 municípios agroecológicos, 21 nós de
consumo, 125 feiras, mais de 300 hortas com venda direta e 15 propriedades de compostagem
comunitária. Essas iniciativas se somam às realizadas por organizações camponesas e de pe-
quenos produtores como a Federação Rural pela Produção e Arraigo, a União de Trabalhadores
e Trabalhadoras da Terra ou o Movimento Nacional Camponês Indígena – Via Campesina, que
promovem diferentes estratégias de comercialização de sua produção agroecológica, como
canais curtos de comercialização, armazéns, mercados e feiras em todo o país.
Na América Central, as práticas de distribuição também são diversas. Em Honduras existem
organizações como a Rede Latino-Americana de Comercialização Comunitária (RELACC); na
Nicarágua existe a Rede Nicaraguense de Comércio; e na Costa Rica há uma extensa rede de
lojas e feiras de produtos orgânicos e agroecológicos, além de vendas porta a porta que foram
intensificadas pela quarentena, durante a pandemia.
Os circuitos de comercialização agroecológica também servem para que as mulheres ru-
rais possam gerar dinheiro com seus empreendimentos e encontrar horizontes diferentes do
trabalho não remunerado em casas ou quintais. Em Antioquia, Colômbia, na década de 1990,
surgiram organizações de mulheres camponesas que criaram mercados para oferecer seus
produtos. Entre elas encontra-se a Associação de Mulheres de Caramanta, a Associação de Mu-
lheres Organizadas de Yolombó e a Associação Sub-regional de Mulheres do Sudoeste (ASUB-
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 25
MATÉRIAS-PRIMAS PARA ENRIQUECER A TERCEIROS
$0,07 $0,16
$0,35
Cultivo
$2,80
Exportação
Preço final
WALLACH 2020
de uma xícara de café (473,17 ml) $0,04 Torrefação
nos Estados Unidos
Distribuição
$2,17
Venda no varejo
Esses valores (em dólares) correspondem à receita bruta de cada um dos setores da indústria cafeeira. A diferença entre o preço de
produção e o preço final de venda revela quem são os principais beneficiários do funcionamento atual da cadeia agroindustrial.
MUS). Esta última foi fundada em 2008 e integra cerca de 300 mulheres de organizações de
14 municípios desta região de Antioquia. A força dessas redes é a prova de que os mercados
não servem apenas para trocas comerciais, mas também para o compartilhamento de experi-
ências e o fortalecimento dos movimentos feministas camponeses, assim como para todos os
atores rurais.
Para facilitar a distribuição agroecológica, as organizações de agricultores da América Lati-
na promovem o fortalecimento das redes pelas quais os alimentos circulam.
Enquanto o agronegócio compra dos agricultores – em muitos casos - a preços irrisórios,
monopolizando a intermediação e reduzindo os alimentos à condição de mercadoria, a agro-
ecologia propõe a massificação de produtos agroecológicos a preços acessíveis em mercados
populares e justos para as agricultoras e agricultores, por meio de mecanismos diretos que ar-
ticulam setores populares do campo e da cidade.
1
Bebida espessa e nutritiva preparada à base de cacau e milho, consumida especialmente no sul do México, nos
estados de Tabasco e Chiapas, onde a bebida é tradicional e original.
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26 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
SISTEMAS PARTICIPATIVOS DE GARANTIA
O
s Sistemas Participativos de Garantia (SPG) nasceram nos anos 70, na Europa, para evitar
que os agricultores que não cultivavam de forma orgânica se apropriassem do selo para
vender os seus produtos. Nos anos 90 houve um ponto de inflexão: a exigência de uma
certificação emitida por parte de terceiros para que entidades alheias à rede de camponeses
dessem sua aprovação, o que tornou ilegais os SPGs, anulando sua natureza comunitária e par-
ticipativa e tirando a autonomia dos produtores e consumidores.
Entretanto, na América Latina os SPGs tornaram-se a principal forma de certificar a produ-
ção orgânica. Foi uma escolha óbvia, pois o componente participativo desses sistemas ressoa
com as bases da agroecologia. A certificação exige uma relação direta entre produtores, con-
sumidores e outros atores comunitários, que verificam a origem e a condição dos produtos
agroecológicos entre si, atuando como pares. Desta forma, eles garantem a produção, comer-
cialização e consumo de orgânicos nos mercados locais e regionais, além de dividirem os cus-
tos das certificações entre todos os nós do sistema.
A Rede Ecovida, no Brasil, é uma experiência que tem servido de exemplo de certificação
participativa. Entre as iniciativas que surgiram da Ecovida está a Rede Povos da Mata, creden-
ciada em 2016, e cenário de interação entre 135 unidades de produção certificadas. Destaca-se
por sua organização em rede, que envolve ONGs, movimentos sociais, comunidades tradicio-
nais, assentamentos e entidades governamentais que, quando articuladas, garantem a quali-
dade dos alimentos.
A Rede Agroecológica do Austro (RAA), no Equador, promoveu leis para o reconhecimento
da agroecologia e dos SPGs, e conquistou algo importante no que diz respeito à certificação
participativa: em 2006, através de um Acordo Ministerial, conseguiu que o agroecológico dei-
xasse de ser sinônimo de “orgânico”. O principal objetivo dessa rede é promover a transição
agroecológica, e sua certificação consiste em etapas pelas quais os agricultores passam à me-
dida que melhoram seus padrões, sob a premissa de que a certificação agroecológica, diferen-
temente da orgânica, não é um ponto de chegada, mas um caminho a percorrer.
No Peru, a Associação Nacional de Produtores Orgânicos (ANPE-PERU) une forças para ma-
terializar uma proposta de Agroecologia Nacional. Possui 32,6 mil associados em 20 bases re-
gionais e 172 organizações locais. Atualmente há neste país 70 mil produtores orgânicos certi-
ficados e quase 500 mil hectares de cultivos orgânicos.
O caso da Bolívia confirma a força dos SPGs nos países andinos. Em 2015, foram registradas
15.814 unidades produtivas agropecuárias certificadas mediante o selo, cuja superfície alcan-
çava 240 mil hectares, equivalentes a 6,44% da superfície cultivada do país; 162 mil toneladas
de alimentos foram produzidas ali, equivalentes a 0,94% da produção agrícola total. Estes nú-
meros se devem em parte aos marcos regulatórios, como a Lei 3.525, que promove a produção
agroecológica e permite que os agricultores orgânicos tenham um acesso diferenciado aos
mercados locais. Esta lei permitiu a capacitação de 7 mil produtores, a consolidação de 17 SPGs,
a classificação de 650 produtores agroecológicos e 2,7 mil em transição.
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 27
Sistema Participativo de Garantia na América Latina: Para além da confiança
assumidos graças a
confidencialidade uma taxa anual que é
é obrigatória paga à associação
A informação é pública.
Todos os membros da
associação conhecem
os resultados e os
mecanismos de controle
Como explica Cecilia Mendiola, consumir implica assumir uma posição política que pode contribuir para a consolidação de sistemas
sustentáveis de produção. Para isso, a implantação de Sistemas Participativos de Garantia é fundamental, pois promovem o consumo
consciente e solidário.
28 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
para cima. Além disso, os valores da certificação por auditoria, muitas vezes impedem que
agricultores familiares certifiquem seus produtos, além de transformarem os alimentos em
um produto de elite para os consumidores Como diz Joselo Trujillo, agricultor argentino, “a
certificação agroecológica [...] tem a ver com a vida das pessoas; o orgânico refere-se apenas ao
produto. A agroecologia também é convivência cordial com os nossos filhos e nossos irmãos,
moradias confortáveis [...]. É conhecer as pessoas que recebem as verduras, fazer alianças e re-
duzir os intermediários na comercialização para que o preço seja justo também para o consu-
midor”. Mas todas essas informações não cabem em um selo. Estas variáveis da produção agro-
ecológica são socializadas com a comunidade em reuniões, visitas de campo e capacitações. Os
SPGs costumam dar resultado em lugares onde a coesão social é forte e já existem plataformas
de diálogo comunitário; daí a estreita relação entre os movimentos sociais e os processos de
comercialização nos quais a agroecologia aposta.
FONTES
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d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 29
POLÍTICAS PÚBLICAS
POLÍTICAS AGROECOLÓGICAS
“DESDE ABAIXO”
Graças à pressão de movimentos e organizações que se articulam em torno da
agroecologia e da soberania alimentar, alguns países da América Latina avançaram na
construção de marcos jurídicos e políticos rumo à transição a sistemas agroalimentares
alternativos. Além disso, as crises econômicas, ambientais e políticas forçaram os Estados
a buscar formas sustentáveis de produção de alimentos e de desenvolvimento rural. No
entanto, muitas leis e instituições permanecem no papel ou não alcançam mudanças
estruturais, sendo facilmente desmontadas a depender do governo.
A
expansão agroecológica na América Latina mostrou que a transição para esse novo pa-
radigma não se dá por decreto; ao contrário, surge dos processos dinâmicos que ocorrem
nas comunidades. As leis para essa transição devem ser adaptadas aos territórios e enfa-
tizar não os aspectos técnicos da produção e distribuição de alimentos, mas sim os problemas
históricos do continente, como a necessidade de construir um modelo baseado na soberania
alimentar como direito dos povos, conforme consta na Declaração das Nações Unidas sobre os
Direitos dos Camponeses e Outras Pessoas que Trabalham em Áreas Rurais.
A agroecologia e a agricultura familiar, camponesa, indígena e comunitária estão lenta-
mente entrando nas legislações, algumas nacionais e outras de natureza mais local. Embora
haja um grande número de regulamentações, a maioria está relacionada à “agricultura orgâ-
nica”, “agricultura convencional”, “agricultura sustentável” e certificação para fins de agroex-
portação, ou seja, com tendências e abordagens voltadas para conglomerados agroindustriais;
além disso, muitas são meras declarações ou possuem natureza técnica, com pouco alcance
real.
Por esta e outras razões, o Coletivo Agroecológico do Equador, junto com outros agricultores
e organizações, travou uma longa batalha durante a primeira década dos anos 2000 para que a
agroecologia fosse separada daquelas outras classificações que ignoram os problemas sociais
subjacentes. Esse mesmo movimento conseguiu a aprovação, em 2010, da Lei Orgânica do Re-
gime de Soberania Alimentar, pela qual o Estado se compromete a fortalecer as redes de pro-
dutores, consumidores e comerciantes, para assim estimular a equidade entre territórios ur-
banos e rurais, o consumo de produtos agroecológicos e a conservação da agrobiodiversidade.
No Cone Sul, podem ser vistos outros exemplos de legislações que surgem de organizações
sociais e se articulam com um arcabouço institucional multissetorial. Em 2015, no Uruguai, a
Rede de Agroecologia, a Rede Nacional de Sementes Nativas e Crioulas e a Sociedade Científica
Latino-Americana de Agroecologia iniciaram a construção participativa das diretrizes gerais
do Plano Nacional de Agroecologia. Isso foi um precedente para a promulgação da Lei 19.717,
que declarou a agroecologia de interesse geral e criou uma comissão para elaborar o Plano
Nacional para o Fomento da Produção com Bases Agroecológicas. A comissão apresentou seu
progresso em fevereiro de 2020. No entanto, em 2022, com a mudança do governo nacional, da
presidência da comissão e das representações das instituições públicas, houve estancamentos
e retrocessos, devido a questionamentos relativos aos fundamentos do plano e a tentativas de
mudança nos conteúdos que haviam sido construídos do zero, de forma participativa.
Na Argentina, em 2020, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Pesca da Nação criou a Di-
reção Nacional de Agroecologia, com o objetivo de construir e implementar políticas públi-
cas voltadas para a transição agroecológica, somando-se a programas já existentes como o
ProHuerta, surgido no final dos anos oitenta para mitigar a crise alimentar causada pela hi-
30 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
CONDIÇÕES PARA A TRANSIÇÃO AGROECOLÓGICA
Construir um
modelo baseado
na soberania
alimentar
Adaptar-se às
características
dos territórios
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 31
POLÍTICAS PÚBLICAS PARA O avanço DA AGROECOLOGIA
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d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 33
MUDANÇAS CLIMÁTICAS
AGROECOLOGIA PARA
FREAR A CRISE
Entre as populações mais vulneráveis à mudança climática estão os agricultores familiares e de
pequena escala do sul global. Entretanto, muitos desses camponeses mostraram maior capacidade
de adaptação graças à implementação de práticas sustentáveis, tanto aquelas que herdaram de seus
antepassados quanto aquelas que foram sistematizando em diálogo com outras famílias, técnicos e
cientistas que trabalham com o enfoque agroecológico.
A
agricultura industrial traz grandes impactos para o meio ambiente. O sistema agroali-
mentar é responsável por 44 a 57% de todas as emissões na atmosfera de diferentes gases
de efeito estufa (GEE), como o dióxido de carbono (CO2) e o metano (cem vezes mais noci-
vo que o CO2). Somente a agricultura industrial contribui com 10 a 15% dessas emissões, e por
isso é considerada um dos motores do aquecimento global.
Os prejuízos causados pelo agronegócio devem-se principalmente ao desmatamento e às
mudanças no uso do solo para ampliar a fronteira agrícola, ao uso de hidrocarbonetos para
fazer fertilizantes e transportar alimentos, à demanda de energia para o processamento, re-
frigeração e empacotamento dos alimentos, assim como à poluição pelos agrotóxicos e pelos
resíduos de todos esses processos. Por outro lado, a pecuária industrial consome muita energia
de combustíveis fósseis (8%) e emite quantidades significativas de metano na atmosfera, contri-
buindo com cerca de 12% para as emissões globais de GEE.
Camponeses e agricultores que aprenderam a prever as chuvas e as secas graças ao saber de
seus antepassados denunciam hoje que os verões estão cada vez mais rigorosos e a terra mais
árida. O planeta não tinha visto um aumento tão rápido nos níveis de CO2 nos últimos três mi-
lhões de anos. As medições das estações meteorológicas do mundo, constantes e confiáveis há
pelo menos um século, mostram que a temperatura média global aumentou 1,2 graus centí-
grados desde a Revolução Industrial. Em 17 de novembro de 2023, após intensas ondas de calor
no Sul Global, a temperatura da Terra ultrapassou um limite considerado crucial por cientistas
que há décadas alertam para as mudanças climáticas: pela primeira vez, a temperatura média
global superou 2º C acima dos níveis pré-industriais. Os dados são do Serviço de Alterações Cli-
máticas Copernicus, sediado na Europa.
Algumas regiões estão mais expostas a estas mudanças. Por exemplo, os municípios do Cor-
redor Seco da América Central (CSC) que se estende do sul do México ao norte da Costa Rica,
onde o principal meio de subsistência é a agricultura. Segundo dados do Ministério do Meio
Ambiente de El Salvador, esse país passou de um evento extremo por década (nos anos 60 e 70)
para oito eventos (na década de 2000), o que resultou em erosão, secas, deslizamentos de terra
e inundações.
No CSC, como em outras regiões vulneráveis, os agricultores implementam práticas agroe-
cológicas como a diversificação de cultivos com espécies frutíferas e forrageiras e integração
animal; o uso de sementes nativas resistentes a certos fenômenos; a gestão adequada da água
e de mecanismos naturais para prevenir pragas; e a restauração dos solos através do aumento
de matéria orgânica.
Um estudo realizado em mais de 1.800 propriedades rurais na Nicarágua, Honduras e Gua-
temala constatou que os locais onde são implementadas práticas agroecológicas têm mais solo
arável, mais umidade e menos erosão, e sofrem menos perdas do que os sistemas convencio-
nais. Pesquisas realizadas após a passagem dos furacões Ike em Cuba e Stan no México mostra-
ram que as propriedades rurais mais diversificadas sofreram menos perdas do que aquelas com
34 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
O AGRONEGÓCIO É O MOTOR DA CRISE CLIMÁTICA – Como o sistema alimentar agroindustrial colabora com a crise climática
GRAIN 2016
Entre 44 e 57% das emissões de
Gases de Efeito Estufa
vêm desse sistema
2 a 4%
3 a 4%
5 a 6%
Refrigeração
8 a 10%
43 a 56% Desperdiço
Transporte
Processamento e embalagem
11 a 15%
Processos agrícolas
Desmatamento
A agricultura desempenha um papel importante na crise climática e pode desempenhar um papel importante também na solução.
monoculturas e se recuperaram dos danos mais rapidamente. E, de acordo com outro estudo,
algumas das regiões do México que guardam mais variedades de milho (algo que também está
associado à diversidade étnica e cultural) são menos vulneráveis à mudança climática.
Na região Andina também se reconhece cada vez mais o potencial dos conhecimentos tra-
dicionais para a adaptação ao aquecimento global, já que ali as comunidades tiveram que en-
frentar condições extremas e de alta variabilidade. Ainda existem comunidades como a dos
q'eros em Cusco, no Peru, que manejam os cultivos em diferentes altitudes ecológicas: de janei-
ro a junho cortam árvores e cultivam milho nas yungas amazônicas (floresta andina e selva de
montanha a 1.600 metros acima do nível do mar), e entre agosto e dezembro, plantam batatas
e tosquiam alpacas e ovelhas na puna (planalto de alta montanha a uns 4.200 metros acima do
nível do mar). Da mesma forma, no Brasil, um país que liberou 2,4 bilhões de toneladas de CO2
em 2021, são produzidas menos emissões de GEE em terras indígenas e unidades de conserva-
ção; isto se deve a práticas agroecológicas como a reciclagem de biomassa, que evita o uso de
fertilizantes e a emissão de bilhões de toneladas de CO2, e reduz a emissão de metano e óxido
nitroso dos aterros sanitários.
Outra experiência pioneira na reutilização da biomassa é a RedBioCol, na Colômbia, que ar-
ticula quase 100 organizações em torno do aproveitamento da matéria orgânica. Utilizando
tecnologias como a biodigestão, as organizações desta rede transformam os resíduos orgâni-
cos para produzir um fertilizante de alta qualidade e um biogás que substitui o propano em
muitas residências.
Entretanto, essas práticas estão sob ameaça de fatores como a expansão das monoculturas,
a migração do campo para as cidades (que impede a transmissão dos saberes tradicionais) e a
própria mudança climática (que modifica os ciclos naturais de plantio e colheita). Além disso,
grandes organizações como a Aliança Global para a Agricultura Climaticamente Inteligente,
e projetos público-privados como a Iniciativa de Agricultura Sustentável (SAI, por sua sigla em
inglês), a Nova Visão para a Agricultura (NVA) e a Coalizão para a Nova Economia da Alimenta-
ção e Uso do Solo disputam os princípios agroecológicos para difundir a ideia de que é possível
reduzir o aquecimento global sem mudanças profundas no agronegócio.
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 35
5 PASSOS PARA BAIXAR A TEMPERATURA DO PLANETA
Chega de falsas soluções: o
Restituição de terras:
Alimentos locais: a lógica agronegócio é conhecido por
Cuidar dos solos: a perda Cultivar sem agrotóxicos: 191 milhões de hectares ser um grande emissor de GEE.
o uso de produtos químicos corporativa, que transporta (uma área tão grande
de matéria orgânica é alimentos pelo mundo todo, Soluções tecnológicas como
esgota os solos e torna quanto o México) são usados
responsável por entre 25 e não faz sentido de nenhuma a agricultura climaticamente
resistentes as pragas e ervas para 5 culturas comerciais.
40% do atual excesso de perspectiva. inteligente e a intensificação
CO2 na atmosfera. daninhas.
sustentável apenas
renomeiam o problema.
FAO 2015
O sistema agroalimentar Os camponeses se
Esse excesso poderia As comunidades diversificam poderia reduzir as emissões espremem em menos de um
seus sistemas com reorientando-se para os quarto das terras agrícolas; É necessário passar do
ser devolvido ao solo por
policulturas, integram a mercados locais e para no entanto, produzem a agronegócio nas mãos das
meio de práticas que as
produção agrícola com os alimentos frescos, maior parte dos alimentos do corporações para sistemas
comunidades camponesas
a pecuária e incorporam distanciando-se da carne e mundo (80% nos países não locais administrados por
preservaram por gerações.
árvores e vegetação silvestre. dos alimentos processados. industrializados). comunidades camponesas.
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36 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
SOBERANIA ALIMENTAR
N
a América Latina, 47,7 milhões de pessoas sofreram com a fome em 2019. Este número
equivale a quase toda a população da Espanha, e se essa tendência for mantida, em 2030
poderá chegar a 67 milhões. Isso é especialmente preocupante pelo continente se tratar
de um território biodiverso com uma alta capacidade de produção diversificada de alimentos.
Apesar de o consumo geral de calorias por pessoa ter aumentado nas últimas décadas, a di-
versidade alimentar diminuiu. A FAO estima que o mundo perdeu nada menos do que 75% da
diversidade de cultivos no século passado.
Diante disso, a agroecologia aspira a construir e alcançar a soberania alimentar, um conceito
proposto pela Via Campesina em 1996, entendido como o direito dos povos e das comunidades
de definir suas próprias políticas agrárias, pecuárias, trabalhistas, pesqueiras e alimentares,
que sejam de base ecológica, social, laboral e culturalmente adequadas. Também impulsiona-
da por organizações e movimentos camponeses em todo o mundo, em seu artigo 15, a Decla-
ração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses inclui este conceito e diz: “Os Estados
devem zelar que os camponeses e outras pessoas que trabalham em áreas rurais possam aces-
sar a todo momento [...] uma alimentação adequada que seja produzida e seja consumida de
maneira sustentável e equitativa, respeite sua cultura, preserve o acesso das gerações futuras
à alimentação e às garantias de uma vida digna e satisfatória”.
Porcentagem das
importações de
alimentos em 2020
<9,46%
9,46 a 13,6%
BANCO MUNDIAL 2020
13,6 a 18,4%
18,4 a 25,65%
>25,65%
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 37
Na prática, a América Latina está experimentando uma homogeneização alimentar e o au-
mento do consumo de produtos ultraprocessados. Nas últimas décadas, alguns países como a
Argentina e o Brasil passaram a fazer parte dos principais produtores e exportadores de soja e
derivados, com impactos negativos para a produção de alimentos consumidos internamente.
Enquanto isso, vários países se tornaram importadores de alimentos que poderiam produzir,
principalmente milho, arroz, trigo e cevada. É o caso do Panamá, que importa três vezes mais
alimentos do que exporta, segundo os dados do Instituto de Pesquisa Agropecuária desse país.
Na América Central, de acordo com o Relatório do Estado da Região de 2016, a dependência do
milho na região “aumentou de 41,6% em 1990-2000 para 55,2% em 2001-2013, do arroz passou
de 21,9% para 38,7% e do feijão de 12,6% para 19,3%”.
Paradoxalmente, outro problema é que grande parte dos alimentos cultivados são consumi-
dos por outros países. Na Costa Rica, por exemplo, 69% da produção agrícola industrial é vol-
tada para a exportação, principalmente banana (55%), abacaxi (16%) e café (9%), monoculturas
que deslocaram a produção de alimentos básicos como o milho e o feijão, de acordo com a Pro-
motora de Comércio Exterior da Costa Rica.
Para defender o direito à alimentação, a agroecologia propõe a diversificação de culturas,
a produção para o abastecimento prioritário das comunidades locais e a comercialização nos
circuitos locais. Segundo o Relator Especial sobre o Direito à Alimentação da ONU, desde 2011
cresce o consenso global em torno da agroecologia como a principal forma de combater a
fome e a mudança climática. Além disso, argumenta-se que a principal causa da insegurança
alimentar é a falta de acesso ao conhecimento, a falta de recursos para a produção e de contro-
le sobre os agroecossistemas por parte dos povos.
De acordo com um estudo da Associação Nacional para a Promoção da Agricultura Ecoló-
gica (ANAFAE), em Honduras uma propriedade rural agroecológica supera em muito as co-
lheitas das propriedades rurais convencionais, tanto em quantidade quanto em variedade, e
pelo menos 80% dos alimentos para o consumo semanal de uma família rural ou semiurbana
é produzido nestes tipos de unidades produtivas. Também é notável o caso dos circuitos de cir-
culação e comercialização do Brasil, dos que fazem parte a Rede Ecovida, Povos da Mata, Orgâ-
nicos Sul de Minas e outras organizações. Nesses circuitos, são oferecidas a cada semana 166
toneladas de alimentos de mais de 380 espécies. A diversidade total é de 560 produtos que são
distribuídos em pelo menos 260 mercados.
A agroecologia também é uma solução realista para a padronização das dietas, ao defender
a biodiversidade e as culturas alimentares associadas. Na América Latina, os produtores rurais
conservam e cultivam mais de 1.100 espécies de hortaliças e pelo menos 1.250 espécies de fru-
tas, inter-relacionadas com seus parentes silvestres, polinizadores e outros organismos.
A luta pela Soberania Alimentar na América Latina ocorre principalmente a partir de pla-
taformas organizacionais comunitárias e locais. Entre as muitas organizações latino-ameri-
canas que perseguem este objetivo está o grupo Terra Livre, que nasceu em Fusagasugá, na
Colômbia, em 2005, composto por produtores rurais, líderes ambientais e profissionais das
ciências agrárias e de outras áreas do conhecimento. Sua missão é consolidar um movimen-
to camponês para a defesa do território, a proteção dos bens comuns e o fortalecimento das
7.794 milhões
654 milhões
267 milhões
2.368 milhões
População total
93 millones
928 milhões Insegurança moderada
América Latina
e Caribe Insegurança grave
Mundo
38 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
ALIMENTAÇÃO: NEGÓCIO OU DIREITO?
Sistema agroindustrial Agroecologia camponesa
Entende a natureza como um capital infinito e sem Entende como a natureza funciona e tenta replicá-la nas
externalidades, e seu objetivo principal é produzir dinheiro e propriedades rurais, para reduzir a dependência de insumos
não alimentos. externos.
Monoculturas: baseia-se na simplificação dos
Policulturas: a diversidade é a base de agroecossistemas
agroecossistemas e na dependência do petróleo, para obter
saudáveis e resilientes. São mais produtivas por unidade de
altos rendimentos no curto prazo por meio de uma alta
superfície de terra cultivada.
demanda energética.
Demanda: os alimentos respondem às leis da oferta e da Necessidade: a alimentação é uma necessidade humana
demanda e, portanto, permanecem nas mãos de quem tem maior básica que não pode ser regulada pelo mercado. Os países
poder aquisitivo. devem promover a soberania alimentar em seus territórios.
Dieta: a partir de poucas variedades de plantas e raças de Dieta: caracteriza-se por ser diversificada, baseada em
animais, impõe-se uma dieta globalizada e ultraprocessada alimentos e preparações locais com uma grande variedade de
que dá a impressão de ser muito diversa sem sê-lo. plantas e raças animais.
economias camponesas, em um país onde 2,7 milhões de pessoas sofrem de fome crônica e
9,76 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçadas anualmente (equivalentes a 34% da
produção total).
Soma-se ao desperdício de alimentos a redução gradual das terras agrícolas destinadas ao
consumo humano. Segundo cifras da CEPAL, entre 1990 e 2000, a Argentina e o Brasil triplica-
ram a área dedicada às monoculturas de soja, que são utilizadas principalmente para alimen-
tar o gado. No caso específico do Brasil, entre 1989 e 2020, o aumento da superfície cultivada
com soja foi de cerca de 221%, segundo dados da Companhia Nacional de Abastecimento (CO-
NAB); e o crescimento da produção nacional deste grão foi de 501,6% neste mesmo período.
No país, o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da
Covid-19, publicado em 2022, mostrou que a prevalência de insegurança alimentar grave en-
tre agricultores familiares e produtores rurais era de 22%. Essa era a segunda categoria de tra-
balho mais afetada pela fome, ficando atrás apenas dos desempregados. No Uruguai, por sua
vez, se a terra dedicada à monocultura da soja fosse recuperada, seria possível alimentar mais
8,4 milhões de pessoas.
O caminho para garantir o direito à alimentação não passa apenas pela sofisticação das téc-
nicas de produção, mas por deixar de conceber os alimentos como uma mercadoria, ou seja,
garantindo um sistema alimentar que garanta o direito da alimentação para além da lógica
monetária.
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d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 39
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40 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
Saúde
Agroecologia e o
cuidado com a vida
Desequilíbrios causados pelo sistema agroalimentar estão por trás de boa parte das doenças. Para
a agroecologia, a saúde das pessoas depende do cuidado com o planeta, e por isso, são propostas
formas saudáveis de interagir como meio ambiente. A produção orgânica e a valorização das
plantas medicinais, a partir do resgate de conhecimentos ancestrais, estão entre as estratégias
promovidas por movimentos agroecológicos para a garantia de mais saúde e qualidade de vida.
A
s recentes epidemias de origem animal costumam ser representadas como um contra-a-
taque da natureza. Mas é mais realista vê-las como males causados pelo modo de produ-
ção agroindustrial em sua interação desequilibrada com os ecossistemas. A agricultura e
a pecuária industriais prescindem da biodiversidade, tendo como regra a monocultura regada
a agrotóxicos, além de outras práticas que enfraquecem o sistema imunológico do planeta.
Os microrganismos potencialmente prejudiciais às pessoas não se reproduzem naturalmen-
te de forma descontrolada entre os animais que os carregam. Essa condição, e o consequente
contato entre esses microrganismos e os humanos, é comprovadamente reflexo da expansão
das fronteiras agrícolas. Entre 70 e 80% do desmatamento na América Latina relaciona-se com
a expansão dessa fronteira. Soma-se a isso a superpopulação de animais nos sistemas de pro-
dução de carne, que facilitam a disseminação de vírus, além de sua mutação em organismos
saturados de antibióticos e sua disseminação através de cadeias globais de comercialização.
Segundo a OMS, 72% das mortes por doenças são decorrentes daquelas não transmissíveis e,
por sua vez, 50% dessas estão relacionadas com os desequilíbrios no sistema alimentar. Neste
grupo estão as doenças cardiovasculares — a principal causa de morte —, a obesidade — asso-
ciada ao consumo de alimentos ultraprocessados — e as doenças respiratórias. De acordo com
a Aliança pela Saúde Alimentar, no México, a obesidade causa mais de 200 mil mortes por ano;
dessas, mais de 80 mil são por diabetes e mais de 100 mil por problemas cardiovasculares. Para
combater o sobrepeso esta organização promove a dieta tradicional mesoamericana e a pro-
dução agroecológica.
Outro dado sanitário preocupante relacionado com o modelo de produção agroindustrial
são as altas concentrações de micotoxinas e metais pesados em frutas e verduras produzidas
por esse sistema. Em comparação, cultivos em modelos agroecológicos possuem mais compos-
tos naturais e nutrientes como metabólitos secundários e antioxidantes. Formas agroecológi-
cas de produção contribuem também para a integridade do solo resultando em uma melhor
saúde do sistema, uma maior diversidade microbiológica e, em geral, no bem-estar de todos os
elementos envolvidos no cultivo, transformação e consumo de alimentos.
Uma das principais bandeiras da agroecologia é a produção orgânica, sem o uso de agrotó-
xicos. Estudos demonstraram que os produtos químicos mais utilizados no agronegócio são
cancerígenos. O Brasil é um dos maiores importadores de agrotóxicos e, de acordo com testes
realizados entre 2017 e 2018 pelo Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimen-
tos, 23% das frutas e verduras analisadas tinham agrotóxicos proibidos ou acima da concentra-
ção permitida. Estudos estimam que as intoxicações agudas por agrotóxicos, em crescente no
mundo todo, somam cerca de 385 milhões de casos a cada ano.
Como estratégia para evitar o uso de agrotóxicos, a agroecologia propõe controles biológi-
cos de pragas, juntamente com espécies que são suas inimigas naturais. Também é utilizado o
controle alelopático, potencializador das qualidades de algumas plantas que resistem a doen-
ças quando estão ao lado de outras. Igualmente, é comum o uso de biopreparados repelentes,
como o alho, a pimenta e a arruda.
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 41
EFEITOS DO AGRONEGÓCIO NA SAÚDE HUMANA
PRINCIPAL EMERGENTE
Um mundo malnutrido Novas pandemias
Cerca de 70%
Além de causar fome,
das doenças que
o modelo dominante
afetaram os seres
de produção
humanos nos últimos
agropecuária
40 anos têm origem
transforma
zoonótica e se devem
microrganismos
fundamentalmente à
inofensivos em perigo
destruição da natureza
para as pessoas
e à criação intensiva de
animais.
42 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
UM MODELO AGROTÓXICO EM PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO
BOMBARDI 2018
Com o surgimento das culturas transgênicas, o uso de agrotóxicos
no mundo aumentou 61% desde a década de 1990 água potável (µg/L)
5.000 vezes maior
FAOSTAT 2021
1.000 vezes maior
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44 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
AGROBIODIVERSIDADE
O
registro de plantas nos atlas botânicos das expedições do século XVIII não tinha somen-
te o objetivo de fazer um inventário descritivo das espécies da América Latina, mas bus-
cava também garantir os interesses exploradores da Coroa. Desde então, as sementes
tornaram-se símbolo de uma luta de longa data, que hoje se repete no combate à privatização
e controle do mercado de sementes pelas multinacionais, por meio de patentes que impedem
que os pequenos agricultores tenham livre acesso a elas. Além disso, o uso de sementes nativas
foi criminalizado em vários países. Isso é paradoxal, pois é sabido que somente a minoria das
sementes utilizadas no Sul global provêm do setor comercial (10 e 20%).
A custódia das sementes remonta à própria origem da agricultura. Elas sempre foram sele-
cionadas e conservadas pelos povos para futuras colheitas. Durante a época colonial, no século
XVII, as cimarronas de Cartagena de Índias, mulheres que haviam se libertado da escravidão,
esconderam-nas em suas tranças para vê-las germinar em San Basilio de Palenque, a primeira
cidade de africanos livres na América Latina. Herdeiras destes primeiros exercícios de conser-
vação, hoje existem numerosas redes nacionais e continentais de sementes na América Latina,
muitas das quais operam fora dos circuitos institucionalizados e, portanto, não são fáceis de
mapear. No Brasil, para mencionar apenas um caso, o Mapa de Sementes Nativas, elaborado
pela Associação Brasileira de Tecnologia de Sementes, relata a existência de dez redes de se-
mentes e 1.059 guardiães e produtores.
Nas casas de sementes, essas organizações protegem a diversidade agrícola e o acervo ge-
nético dos agroecossistemas tradicionais. Na região semiárida do Brasil, casas e bancos de
sementes existem há muito tempo, e a partir de 2015, com o Programa de Manejo da Agro-
biodiversidade e de Sementes da Região Semiárida, mil casas e bancos foram criadas ou po-
tencializadas. Em um dos relatórios do programa se documentou “a existência de mais de 700
variedades de feijão, 300 de milho, 400 de aipim ou mandioca, e mais de 100 de favas, pimenta,
cana, abóbora gigante e batata-doce”.
No entanto, estas ilhas de biodiversidade estão em constante risco de contaminação. Entre
2018 e 2019, este mesmo programa realizou 588 testes em casas de sementes comunitárias de
vários estados do Semiárido, e encontrou contaminação transgênica em 29% das amostras de
milho crioulo analisadas. Este número é preocupante porque foram encontrados traços de
contaminação em sementes que teoricamente estavam protegidas.
Outra experiência destacada do Brasil é a Bionatur, que há 21 anos começou com 12 famí-
lias vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) nos estados do Rio
Grande do Sul e Minas Gerais para produzir sementes em sistemas agroecológicos, e se tornou
a primeira organização camponesa a produzir, processar, embalar e vender sementes no siste-
ma formal. Hoje, a Bionatur envolve mais de 350 famílias e produz, por colheita, 12 toneladas
de sementes agroecológicas de mais de 80 variedades de plantas.
Vários estudos revelam os benefícios do uso de sementes autóctones e da diversificação das
culturas. Em El Pilar, na fronteira entre Belize e Guatemala, os agroecossistemas baseados no
cultivo de milho, feijão e abóbora, juntamente com outras 90 plantas de 60 espécies, formam
uma paisagem heterogênea e resiliente em uma notável sinergia entre seres humanos e flores-
tas. Além disso, as comunidades que habitam essa região possuem uma variedade tão grande
de alimentos que não precisam comprar nada para estar bem alimentadas. Em Campeche, Mé-
xico, foram registrados 185 tipos de plantas comestíveis pertencentes a 50 famílias botânicas.
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 45
Em Honduras, desde o ano 2000, as comunidades têm trabalhado com a Fundação de Inves-
tigação Participativa com Agricultores de Honduras (FIPAH) na criação de 16 bancos de semen-
tes em quatro departamentos para proteger 68 variedades de milho, 145 variedades de feijão
e 48 de outras espécies. Na Colômbia, organizações como a Rede de Guardiães de Sementes de
Vida e a Rede de Sementes Livres da Colômbia existem há cerca de 20 anos, reunindo 37 redes
e processos. Ali mesmo, a Associação Rede de Famílias Lorenceñas Las Gaviotas do município de
San Lorenzo conseguiu uma legislação para que seu território ficasse livre dos transgênicos.
No México, um movimento semelhante liderado por Leydy Pech, meliponicultora maia, en-
frentou a Monsanto para impedir o plantio de soja geneticamente modificada em sete estados.
Em 2016, diante da necessidade de articular diversos atores em torno dessas lutas, foi criada a
Rede Mexicana de Sementes. Já no Uruguai funciona, desde 2004, a Rede Nacional de Semen-
tes Nativas e Crioulas, da qual fazem parte mais de 250 propriedades familiares de diferentes
departamentos do país, onde se trabalha com reservatórios vivos de sementes que cada família
coloca à disposição de todos os integrantes da rede.
Embora os povos sejam conscientes da necessidade de conservar as sementes, as legislações
e os acordos nacionais e transnacionais tendem a favorecer as empresas, por meio de acordos
e normas como as da União Internacional para a Proteção de Novas Variedades de Plantas
(UPOV), que penalizam o uso e o intercâmbio de sementes nativas. No México, por exemplo,
houve pressões para limitar essas práticas depois da assinatura do Acordo de Livre Comércio
da América do Norte (NAFTA, por sua sigla em inglês) em 1994, e do Acordo México, Estados
Unidos e Canadá (T-MEC) em 2020. Neste contexto, a empresa transnacional de alimentos e
doces Mars Inc., valendo-se do Protocolo de Nagoya - acordo internacional que regulamenta
internacionalmente a utilização e repartição de benefícios econômicos de recursos genéticos
da biodiversidade - registrou o milho olotón de Oaxaca, depois de persuadir uma comunidade
mixe1 a ceder os direitos dessa variedade vegetal comum no México e na Guatemala. Para al-
CONABIO
Alimento balanceado Milho
Combinação perfeita
O milho carece de niacina comestível,
aminoácidos, lisina e triptofano e
contém cisteína e metionina. O feijão,
Tomate Pimenta chile
por outro lado, carece de cisteína Beldroega
Mostarda / pimenta
e metionina, mas possui lisina e Erva-moura
triptofano. Além disso, é rico em
proteínas, o que equilibra a falta de
aminoácidos do milho. Abóbora
Nabo
A semente é metade genética e metade cultura. Para conservar as sementes, o agronegócio utiliza câmaras frias.
As comunidades, por outro lado, as plantam em diversos ecossistemas como a milpa, onde ocorrem interações muito benéficas (controle
biológico, fertilização e polinização), não só para as espécies que habitam esses ecossistemas, mas também para as comunidades que se
alimentam do que é produzido neles.
46 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
AGROBIODIVERSIDADE EM PERIGO
191,1
Milhões de hectares no mundo abrigam apenas
5 culturas transgênicas
Aproximadamente o
tamanho do México
ha
ha
ha
ha
s/
s/
s/
a
s/
/h
õe
õe
õe
õe
ão
ilh
ilh
ilh
ilh
ilh
m
m
m
m
,9
,9
,9
,1
1,3
58
24
95
10
Soja Milho Algodão Canola Alfafa
A agrobiodiversidade está em perigo: segundo a FAO, cerca de 75% das variedades de culturas foram perdidas no último século,
principalmente devido à substituição de variedades nativas por variedades melhoradas. Esse processo, conhecido como erosão genética,
também é causado pela perda de florestas e culturas tradicionais devido à exploração intensiva.
guns agricultores indígenas isto constituiu um roubo, não apenas de suas sementes, mas tam-
bém de seus saberes ancestrais.
Em tensões locais ou lutas globais, as sementes são um símbolo de resistência. Além de serem
a base da produção de alimentos, são um bem comum e não uma propriedade corporativa; são
“patrimônio histórico dos povos”, como formulou a Via Campesina em 2001. As sementes, em
sua pequenez, guardam a memória dos territórios, ecossistemas e povos da América Latina.
1
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ÁGUA
DIREITO HUMANO E
GESTÃO COMUM
A água é um bem comum esgotável, e o acesso a ela é cada vez mais desigual. Esse direito essencial
deve ir além da concepção da água como um serviço individual mercantilizado. Para garantir
esse direito, os Estados devem reconhecer os saberes acumulados e as capacidades adquiridas das
comunidades para a gestão coletiva, seja para o consumo direto ou para a produção de alimentos.
O
direito humano à água e ao saneamento foi promulgado pela Assembleia Geral da ONU
em 2010. Mas esta declaração mostrou-se insuficiente para o reconhecimento dos di-
reitos coletivos e para as práticas comunitárias de gestão da água, e muitas iniciativas
ficaram na exigência de um mínimo vital, ou seja, uma quantidade mínima de água disponibi-
lizada com isenção de tarifa, ou na comercialização da água pré-paga ou engarrafada. Alguns
países da América Latina incorporaram esse direito em suas legislações, visando cumprir com
os compromissos internacionais. Entretanto, em diferentes regiões no continente, existem
conflitos por água, a partir da privatização e degradação de terras com nascentes por proprie-
dades agrícolas monocultoras ou mineradoras. Em Cochabamba, na Bolívia, houve a chama-
da “Guerra pela água”, conflito que atingiu um ponto crítico em 2000, quando a multinacio-
nal Bechtel assinou um contrato com o Estado que lhe permitiu privatizar o abastecimento de
água potável e aumentar as tarifas em até 300%.
O direito à água implica na defesa dos territórios comunitários de quem que alimenta o pla-
neta e protege suas fontes hídricas. Na Colômbia, em 2016, o Tribunal Constitucional reconhe-
ceu o rio Atrato como sujeito de direitos para garantir sua proteção; além disso, no país, mais
de 12 mil organizações da Rede de Aquedutos Comunitários vêm promovendo, desde 2006,
um referendo para a defesa da água como um direito fundamental. Já os movimentos sociais e
populares do Chile discutem há quase duas décadas uma Lei de Glaciares, visando à proteção
das geleiras chilenas, em oposição aos interesses mineradores e industriais. No México, está
em discussão a Lei de Águas Nacionais, em defesa dos povos camponeses e indígenas afetados
pela Lei Nacional de Águas de 1994, que privatizou o recurso e endossou sua contaminação sob
a premissa de que “quem contamina, paga”.
Europa
América do Norte
7.580 Km3
6.428 Km3
Ásia
América Central 15.720 Km3
802 Km3
Oceania
África
892 Km3
5.700 Km3
FAO-AQUASTAT
América do Sul
17.273 Km3
As reservas de água no mundo referem-se ao volume disponível de águas subterrâneas e superficiais. A América do Sul é a região com
mais recursos hídricos renováveis do planeta (cerca de 31,8%), seguida pela Ásia (28,9%) e Europa (13,9%)
48 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
O PAI DAS CISTERNAS NO SEMI-ÁRIDO BRASILEIRO
PETERSEN 2018
Sendo feita com
Volta para sua casa materiais baratos e
em Jeremoabo, na facilmente disponíveis,
Bahia, no Nordeste sua cisterna se
dissemina localmente
Nel migra para São
Paulo aos 17 anos,
fugindo da seca em
sua região
Experimenta o
ferrocimento na
construção de cisternas,
Ele trabalha como operário algumas de até
na construção de piscinas 65.000 litros
e aprende uma nova
tecnologia de construção: o
ferrocimento
Manoel Apolônio de Carvalho, conhecido como Nel, inventou uma tecnologia de captação de água da chuva no semiárido brasileiro, que
se tornou um programa nacional que instalou 1,2 milhão de cisternas. Infelizmente, o projeto não recebeu financiamento em 2020, e
mais de 350 mil famílias ficaram sem essa oportunidade de melhoria de vida.
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 49
(P1MC) e Uma Terra e Duas Águas (P1+2), que tiveram início em 2003 e 2007, respectivamente.
O P1MC tornou-se uma referência internacional para a democratização do acesso à água, pois
adota a agroecologia como base do desenvolvimento rural e utiliza tecnologias de captação
e armazenamento de água, sob a premissa de que é necessário conviver com a seca em vez de
combatê-la. Entretanto, durante o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), houve uma redução
sem precedentes dos investimentos no programa, e em 2020 foram instalados apenas 8.310
equipamentos de armazenamento de água, ao contrário dos 149 mil instalados em 2014.
A geração e a renovação da água não dependem apenas das fontes hídricas, mas, sobretudo,
das interações que ocorrem nos ecossistemas. Daí a importância da agroecologia, que promo-
ve a gestão eficiente e ecológica da água, base da boa alimentação e da boa saúde e, portanto, a
garantia de condições de vida dignas para as comunidades camponesas, indígenas e afrodes-
cendentes da América Latina.
1
Organizações formadas pelas comunidades rurais ou periurbanas com o objetivo de assegurar que a água chegue às
famílias de suas comunidades.
2
Associações Administradoras dos Sistemas de Aquedutos e Esgotos Comunitários (Asociaciones Administradoras de
los Sistemas de Acueductos y Alcantarillados Comunales).
FONTES
50 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
TERRA E TERRITÓRIO
OUTRAS FORMAS DE
SE PENSAR O ESPAÇO
A distribuição desigual da terra é um problema histórico na América Latina. Organizações e
movimentos sociais propõem uma defesa do território que vai além da luta pela terra, e inclui a
proteção da água, das montanhas, da biodiversidade, das sementes e dos patrimônios culturais e
imateriais associados aos povos e aos ecossistemas. A agroecologia é um elemento articulador desta
luta. Porém, essas organizações territoriais contra hegemônicas enfrentam uma série de ameaças.
E
m toda a América Latina as terras foram monopolizadas para a megamineração, as mono-
culturas e as hidrelétricas, além do cultivo e o tráfico de drogas. Segundo uma pesquisa
da Oxfam, mais da metade das terras produtivas da região são fazendas e propriedades de-
dicadas à monocultura, enquanto as propriedades familiares ocupam 13% do território e estão
em territórios marginais e pouco férteis. Isto se deve ao histórico colonial na região, baseado
no sistema de plantation, cuja manutenção ao longo dos séculos atingiu uma nova fase, neoco-
lonial, durante a primeira década do século XXI. Esse processo recente envolve a apropriação e
financeirização da terra por multinacionais, consolidando os grandes latifúndios na América
Latina. Na Bolívia, por exemplo, a estrutura agrária foi tão desigual que das 660 mil unidades
agrícolas que havia no país em 2007, 87% eram pequenas propriedades que ocupavam apenas
14% da terra arável disponível, segundo dados do Banco Mundial. Isso significa que, desse total,
85,8 mil unidades produtivas eram latifúndios que ocupavam a maior parte das terras férteis
do país.
Na Argentina, Uruguai e Brasil, a venda de terra para a monocultura de soja durante a pri-
meira década do século XXI foi tão frequente que a corporação Syngenta batizou esses territó-
rios como a “República Unida da Soja”. O Censo Agropecuário brasileiro de 2017 revelou que
das 5 milhões de propriedades agrícolas no país, apenas 51 mil detêm 47,6% das terras. Já os pe-
quenos proprietários, donos de terrenos de até 10 hectares, ocupam apenas 2,3% do total. Essa
grande concentração fundiária parte da privatização e mercantilização das terras e se opõe
diretamente às concepções dos povos indígenas, quilombolas e campesinos. Para eles, a terra
é mais do que commodity: é território, lar da complexa biodiversidade que sustenta a sobrevi-
vência, distintas culturas e modos de vida.
A reconquista do território hoje tem um caráter diferente ao das reformas agrárias do século
passado, concentradas principalmente na luta contra a concentração da terra. As comunida-
des e organizações reivindicam uma reforma agrária integral, popular, feminista e agroecoló-
gica que inclua o campo e a cidade, os trabalhadores rurais sem-terra, as camponesas e campo-
neses deslocados para os cinturões de miséria urbanos, e seus descendentes nascidos e criados
nas cidades e que reivindicam o direito de voltar ao campo. Como diz a Declaração das Nações
Unidas sobre os direitos dos camponeses e de outras pessoas que trabalham nas áreas rurais, cam-
ponês é toda pessoa “que se dedique ou pretenda dedicar-se à produção agrícola em pequena
escala e que tenha vínculo especial de dependência e apego à terra”.
Na América Latina há muitas organizações que defendem os rios, os páramos, os mares e o
ar. Diante das atividades extrativistas e da ameaça que essas representam para seus direitos
e formas de vida, as organizações promovem marchas, ocupações, denúncias e campanhas,
construindo redes de solidariedade regionais e globais. Uma dessas experiências é o Movimen-
to Rios Vivos da Colômbia, que começou como um protesto de três pessoas contra a destruição
do canyon do rio Cauca e foi se transformando em uma poderosa articulação de organizações
de mulheres, garimpeiros, pescadores, tropeiros e agricultores que enfrentaram a constru-
ção e as consequências do projeto hidrelétrico de Hidroituango. Já no Equador e na Bolívia, o
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 51
EXTRATIVISMO QUE MATA NA COLÔMBIA
178
eram
872 mulheres
durante o
governo de Iván
Duque
Na Colômbia, defender a terra dos interesses extrativistas significa risco de vida. E a mesma coisa acontece em outros países da América
Latina. Dos 10 países com maior número de ataques a líderes e defensores de direitos humanos no mundo, sete estão na América Latina.
Colômbia, Brasil e México encabeçam esta lista.
52 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
TERRA PARA QUEM?
Porcentagem de terra que está na mão de
apenas 1% das propriedades agrícolas
56% 81%
48% 29%
25%
40%
34%
Gua.
México 77%
Costa
Desigualdade na distribuição da terra ao longo do tempo (1910-2017) El Salvador Rica Venezuela
(Coeficiente de Gini) Nicarágua Colômbia 66%
23% 71% 44%
0,65
Equador
0,64
0,63
Peru
74% Brasil
0,62
UNEVEN GROUND (s. f.)
recidos. Em 2022, um total de 177 pessoas perderam a vida por defenderem seus territórios e
o meio ambiente. Mais de 70% desses casos aconteceram na Colômbia, no México ou no Brasil,
de acordo com levantamento da organização Global Witness. A América Latina foi palco de
88% dos assassinatos de ativistas ambientais do mundo em 2022, e 70% dos 1.335 assassinatos
cometidos na última década. As investidas contra esses movimentos se dão também nos cam-
pos institucionais. Em setembro de 2021, por exemplo, foi aprovada no Paraguai uma lei que
criminaliza a luta pela terra, o que gerou alertas para movimentos de todo o continente.
FONTES
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d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 53
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54 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
REVOLUÇÃO VERDE
Promessas descumpridas e
impactos graves
Pacote tecnológico e produtivo que transformou completamente a agricultura mundial, a
Revolução Verde trouxe consequências graves para o meio ambiente, a saúde humana e a
autonomia de agricultores sobre seus territórios.
E
ntre as décadas de 1960 e 1970, um conjunto de inovações tecnológicas para agricultura
foram difundidas em escala mundial com o propósito de aumentar a produtividade agrí-
cola, incentivar a exportação e acabar com o problema da fome no mundo. Este conjunto
caracterizou-se pela utilização das estratégias da Revolução Industrial no processo produtivo
agrícola, como a mecanização e a inserção de insumos químicos. Assim, surgiu um novo mo-
delo de produção agrícola tecnificado, que ficou conhecido como “Revolução Verde”.
Esse pacote tecnológico é amparado no uso de agrotóxicos e fertilizantes químicos, na ir-
rigação automatizada, no estímulo ao uso de sementes geneticamente modificadas ou trans-
gênicas, no aumento da mecanização e no uso de tecnologias na agricultura. Essas técnicas e
inovações possibilitaram a maximização dos rendimentos agrícolas por um lado, mas propor-
cionaram também uma maior dependência dos produtores desse novo modelo de produção,
além de impactos socioambientais que perduram até hoje.
O precursor da Revolução Verde foi o engenheiro agrônomo e biólogo estadunidense Nor-
man Ernest Borlaug. Suas pesquisas em inovação e agricultura, em especial no melhoramento
do trigo, e a organização da exploração dos resultados desta melhoria na agricultura, fizeram
com que ele ganhasse o prêmio Nobel da Paz, em 1970. Na época, Borlaug dirigia o Centro In-
ternacional para a Melhoria do Trigo e do Milho, da Fundação Rockefeller, e defendia o uso de
fertilizantes e sementes melhoradas para o aumento da produtividade agrícola e consequente
o combate à fome.
A difusão desse novo modelo de produção agrícola foi fomentada por fundações filantrópi-
cas como a Fundação Rockefeller e a Fundação Ford, além de ter tido apoio de diversos atores
governamentais e internacionais, com os Estados Unidos da América e a Organização das Na-
ções Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Essa convergência de interesses e incenti-
vos possibilitou o desenvolvimento tecnológico e um vasto alcance do projeto da Revolução
Verde, em especial na América Latina e na Ásia, respondendo aos anseios de diversos países
por novas tecnologias agrícolas, maior produtividade e fornecimento de alimentos. É impor-
tante observar que em tal período as condições socioambientais para que projetos como esse
fossem implementados ainda não tinham grande apelo da sociedade civil.
Se na América Latina e Ásia a revolução verde teve êxito em transformar o sistema produti-
vo, na África o resultado foi diferente. Devido às condições climáticas e relativas aos solos da
região, além da carência de infraestruturas que contribuíssem para o escoamento de grãos, os
impactos da revolução verde no continente africano foram moderados. A criação da Aliança
para uma Revolução Verde para a África (AGRA), em 2006, representou um novo esforço na
proposta de inserção dessas transformações em solo africano. Porém, um estudo apresentado
pela Tufts University demonstrou que em 15 anos de aliança (e gastos de aproximadamente
1 bilhão de dólares), resultados ambíguos foram observados no continente. Se a produção de
alimentos básicos aumentou 18% durante o período, houve também um crescimento na fome
na região desde então.
No Brasil, o desenvolvimento desses modernos sistemas de produção agrícola foi apoiado
pela Ditadura Militar (1964 - 1985). Nesse período, o país aumentou a importação de produtos
químicos e estimulou a instalação de indústrias produtoras de agrotóxicos. Houve o estabele-
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 55
Um país de monoculturas
(milhões de toneladas)
30 120 5
(milhões de hectares)
(toneladas/hectare)
4x
25 100 4
8x 2x
20 80 3
2º
Soja Milho
O aumento da produção dessas commodities ocorrem mais em virtude do aumento da área plantada do que do aumento da
produtividade em si.
56 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
Monocultura alimentar
60%
95%
A concentração em um número reduzido de espécies cultivadas não atende às necessidades de consumo diversificado de alimentos para
uma nutrição saudável.
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 57
O avanço da fronteira agrária sobre a Amazônia
2023
729.782km2
Estima-se que 80% do desmatamento na Amazônia deve-se à expansão de pastagens e à produção de grãos, especialmente soja,
geralmente associada com a extração prévia de madeira.
FONTES
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Fundação Rockefeller e da Fundação Ford.
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Universidade de Brasília
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Nacional de Defensivos Agrícolas e as mudanças na produção e no consumo de pesticidas no Brasil,
1975-1985
Mariana Albuquerque. Liberações de agrotóxicos batem recorde em 2022. Correio Braziliense, 2022.
Carolina Octaviano (2010). Muito além da tecnologia: os impactos da Revolução Verde.
Giovana Wachekowski et al (2021). Agrotóxicos, revolução verde e seus impactos na sociedade: revisão
narrativa de literatura. Salão do Conhecimento
Leonardo Almeida Fontenele et al (2021). Revolução Verde: História e impactos no desenvolvimento
agrícola. Agricultura e agroindústria no contexto do desenvolvimento rural sustentável.
Clayton Campagnolla; Manoel Moacir Costa Macêdo (2022). Revolução Verde: passado e desafios atuais.
Cadernos de Ciência & Tecnologia.
58 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
BEM VIVER
A
inda que os campos latino-americanos produzam alimentos para mais de 800 milhões
de pessoas, neles a pobreza aumentou notavelmente em 2020: segundo a CEPAL, no con-
tinente a incidência de pobreza e pobreza extrema nas áreas rurais é duas vezes maior
que a das áreas urbanas. A desterritorialização de comunidades tradicionais pelo avanço da
fronteira agrícola e o apagamento e substituição de conhecimentos tradicionais na agricul-
tura pelo pacote tecnológico da modernização conservadora estão por trás dessa pobreza no
campo. As famílias produtoras não são impactadas apenas pela falta de terra, mas também
pela ausência de acesso a oportunidades educacionais ou de emprego, ou a um sistema de saú-
de digno. Além disso, há poucos esforços institucionais no sentido de garantir sua permanên-
cia no campo. Segundo a CEPAL, 85,7% dos trabalhadores agrícolas são informais e, no caso das
mulheres, esse número chega a 91,6%.
Nesse contexto, a agricultura familiar e a produção sustentável de alimentos promovem e
potencializam outros direitos humanos: alimentação adequada, terra para cultivar, relações
justas com outras pessoas e ecologicamente equilibradas com o meio ambiente. Essa harmo-
nia na relação comunitária entre humanos e meio ambiente, presente nos modos de vida de
diferentes povos e comunidades tradicionais, mais recentemente, vem sendo chamada de
“Bem Viver”, conceito de berço andino, traduzido do quéchua sumak kawsay. No entanto, no-
meações distintas são encontradas em diferentes línguas indígenas no continente para desig-
nar relações semelhantes, como o “suma qamaña” do aymara, o “teko porã” do guarani, ou o
“nhanderekó” do guarani mbya. A prática agroecológica está diretamente relacionada com o
horizonte coletivo, igualitário e não predatório do Bem Viver.
Na Guatemala, uma pesquisa comparou dez famílias que praticavam a agroecologia com
outras dez que cultivavam de forma semiconvencional, e constatou que a produção agroeco-
lógica é mais diversificada, gera mais renda e possibilidades de inserção no mercado, além de
dignificar a vida rural a partir de aspectos como a organização comunitária, oportunidades de
escola e trabalho, as dinâmicas de gênero e o empoderamento das culturas locais.
Em Cuba, o apoio do Estado e algumas políticas que promovem o cooperativismo, a entre-
ga de terras às famílias camponesas e a formação de facilitadores devolveram aos pequenos
produtores o controle do sistema alimentar, e hoje a agricultura emprega 25% da população
economicamente ativa. Apesar das limitações no acesso à tecnologia, causadas pelo bloqueio
econômico, as propriedades agroecológicas cubanas relatam aumentos na autossuficiência
alimentar, diversificação genética e de espécies, independência de insumos externos e conser-
vação da água, solo e florestas. Da mesma forma, permitiram a construção de infraestrutura
para a habitação, transporte, produção, abastecimento e armazenamento.
No Brasil, por sua vez, as políticas em prol da agricultura familiar, como o Programa de
Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), assegu-
raram durante pelo menos duas décadas a comercialização da produção camponesa. Em seus
primeiros oito anos, o PAA atendeu mais de 700 mil famílias agricultoras, alimentou mais de
20 milhões de pessoas e atraiu investimentos institucionais para as hortas e chácaras onde as
mulheres praticam a agroecologia. Outra característica do movimento agroecológico brasi-
leiro, comum em todo o continente, é a ênfase no “intercâmbio” para estimular a transição
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 59
A REALIDADE DO CAMPO
CEPAL 2021
A pobreza no mundo
aumentou em
22 milhões
de pessoas em 2020
No campo, são
produzidos alimentos No campo
para mais de encontra-se
800 14%
milhões dos cultivos
de pessoas do mundo
Pobreza
URBANA
Pobreza extrema
Apesar da enorme capacidade de produção de uma grande variedade de alimentos, ainda há um longo caminho a percorrer para aqueles
que trabalham a terra possa ter uma vida digna.
60 d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023
território e dar autonomia às comunidades. Nos Espaços Territoriais de Capacitação e Reincor-
poração (ETCR), por exemplo, alguns ex-combatentes estão realizando projetos produtivos e
de turismo agroecológico, com o objetivo de resgatar a memória histórica de suas comunida-
des e territórios.
Como pode ser visto, a agroecologia gera oportunidades para a população rural da Améri-
ca Latina. Basta aproximar-se das mulheres da Cooperativa Calmañana, no Uruguai, das ini-
ciativas de transição dos pequenos cafeicultores de San Ramón, na Nicarágua e Veracruz no
México, dos agroecossistemas biodiversos apoiados pela Associação de Produtores da Ciénaga
Grande del Bajo Sinú (Asprocig) na Colômbia. O problema é que muitas dessas experiências con-
tinuam limitadas, devido à falta de políticas que, em vez de incentivar os esquemas industriais,
protejam as economias camponesas e as comunidades rurais.
FONTES
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d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 61
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Vários colaboradores.
ISBN 978-65-87665-18-4
23-180261 CDD-630
d o s s i ê da ag r o e c o l o g i a n a a m é r i c a l at i n a 2023 63