Flecha de parto
A flecha de parto[1][2] também dita seta de parto[3] ou ainda disparo parto[4], é uma táctica militar de cavalaria ligeira, que foi empregue pelos Partos, povo nómada indo-europeu, do Norte do Irão e dalgumas partes do Sul da Arménia.[5][6]
Esta manobra militar passava por envidar uma fuga, fosse ela verdadeira ou fingida, por molde a que os hippotoxótai (lit. «cavaleiros flecheiros», era o nome dado aos arqueiros partos, que iam a cavalo)[7] se voltassem em cima das montadas, para arrostar com os inimigos, que iam no seu encalço, desfrechando sobre eles uma saraivada de setas.[8][2]
Esta manigância, naturalmente, exigia exímios dotes de equitação, por parte do arqueiro, posto que ficava com as mãos ocupadas com o arco compósito, deixando as rédeas da montada à solta.[6] A isto acresce que, à época, os estribos ainda não tinham sido inventados, pelo que o cavaleiro estava inteiramente à mercê da sua capacidade de se apernar ao dorso do cavalo, correndo o risco de resvalar e cair.[8]
Utilidade militar
[editar | editar código-fonte]Esta táctica oferecia a vantagem de apanhar o adversário de surpresa, porquanto aquele, à partida, se julgaria a braços com uma retirada convencional do inimigo, o que lhe inspiraria um sentimento de falsa confiança, em sede do qual se propiciariam erros e o desmanchar das formações, a fim de ir de embute aos inimigos em fuga. Assim que a formação se desmanchasse, os arqueiros partos aproveitavam para desfrechar sobre os inimigos, que se encontrariam, nesse comenos, desprotegidos. [6][9]
Além do mais, a grande mobilidade dos arqueiros montados permitia-lhes repetir esta manobra da «flecha de parto» várias vezes, num jogo de toca-e-foge, possibilitado pelo facto de não ser possível à cavalaria adversária, adaptar o galope necessário para os alcançar, quando tinha de ora partir no seu encalço, ora destroçar a formação, para se tentar esquivar às esfuziadas das setas.[10][11]
História
[editar | editar código-fonte]Além dos partos e dos seus sucessores, os sassânidas, esta táctica foi amiúde empregue pelos nómadas das estepes eurasiáticas, o que abarca: os citas[12], os hunos, os turcos, os magiares, os mongóis, as amazonas, os coreanos e o urárticos.[13]
Precursores
[editar | editar código-fonte]O historiador russo Askold Ivantchik, na sua obra «Le "Parthian Shot", Cinquant Ans Après Rostovizeff»[14], refere que há numerosas representações egípcias da deusa Astarte, montada a cavalo e a sagitar setas à retaguarda, datadas da época do Reino Novo.[15]
Com efeito, este o autor faz menção de um relevo de Ramessés II, onde figura um cavaleiro armado com arco e a despedir uma seta à retaguarda, numa representação da Batalha de Cades em 1286 a.C.[14]
Pelo que este historiador constata que as «flechas de parto» não seriam completamente desconhecidas no próximo Oriente, antes das invasões dos cimérios e dos citas. Sendo certo que tal prática seria, em todo o caso, marginal, daí que tenha ficado atestada em representações para a posterioridade, dada a sua raridade, para os padrões egípcios da época.[15] Com a ressalva adicional que as representações egípcias, destas flechadas à retaguarda, figuram mais amiúde em representações de caça do que de guerra. [14]
Uso contra os Romanos
[editar | editar código-fonte]Os partos serviram-se desta manobra, obtendo notável sucesso, em combate contra os romanos.[16] Mais concretamente, Marzaban Surena obteve uma estrondosa vitória contra o general romano Crassus, na Batalha de Carras, no início de Julho de 53 a.C.[17][18]
Nesta batalha, Crasso contava com 1.300 cavaleiros, 5 mil arqueiros e 8 coortes de infantaria, totalizando 4 mil homens, ao seu dispor. Por contraparte, Surenas dispunha de 9 mil hippotoxótai (cavaleiros arqueiros) e mil catafractários, perfazendo cerca de 10 mil homens. [10][19]Nesta batalha, em que se sagrou a célebre expressão «erro crasso», crismada pelo homólogo general romano, as tropas romanas foram dispostas em fileira oblíqua, à cautela das investidas dos catafractários. Porém, ao fazer isso, vulnerabilizaram-se às investidas da cavalaria ligeira dos hippotoxótai.[11][20]
Dessarte, os romanos avançaram reiteradamente contra as hostes da cavalaria pártica, a fim de conseguir encetar combate à queima-roupa, mas os arqueiros montados conseguiram sempre esgueirar-se aos intentos das tropas legionárias, resguardados pelos catafractários.[9] Sempre que se escamoteavam aos ataques romanos, os arqueiros montados voltavam-se e asseteavam flechas de parto sobre os legionários, que os acossavam.[17]
Decidiu-se, ao depois, que os legionários deviam reforçar a defesa e assumir a formação de tartaruga, imbricando dos escudos uns nos outros, por forma a resguardarem-se da saraivada de setas que sobre si chovia[16]. Sem embargo, esta formação tinha sérias limitações, no cômputo dos combates à queima-roupa, as quais foram aproveitadas lautamente pelos catafractários da cavalaria pártica, que debandaram sobre os legionários, que, espavoridos, desmancharam a formação e desarvoraram pelo campo de batalha, ficando à mercê das frechadas párticas e do achoar desnorteado dos próprios camaradas. [16][21]
Uso pelos Fenícios
[editar | editar código-fonte]Silius Italicus atribuía aos fenícios de Sídon uma táctica militar semelhante à flecha de parto.[22]
Uso pelos Muçulmanos
[editar | editar código-fonte]A táctica da flecha de parto foi amiúde usada pelo conquistador muçulmano Muizadim Maomé na segunda batalha de Taraori em 1192, contra as hostes elefânticas, cavalaria e infantaria pesadas indianas. Foi também usada por Alparslano, na Batalha de Manziquerta, em 1071, contra os bizantinos e por Subedei na batalha de Legnica em 1241, contra a cavalaria polaca.[6]
Locução metafórica
[editar | editar código-fonte]A locução «flecha-de-parto» significa, em língua portuguesa, uma frase mordaz e caustica, proferida por alguém que está prestes a retirar-se.[4][1]
O linguista e autor português, Manuel Monteiro, propôs, na sua obra «Por amor à língua», o uso da expressão "flecha de parto"[23] como alternativa ao anglicismo "one liner"[24].
Abonações literárias
[editar | editar código-fonte]Ele então dispara a flecha de parto que deve excluir em definitivo Ricoeur do debate intelectual e sobretudo científico: é um crente, um cristão, e a esse título, em nome da separação da Igreja e do Estado, a sua palavra não deve ser recebida.— François Dosse, Paul Ricoeur: um filósofo do seu século (2012)[25]
Já não corro o risco de cair nas fronteiras, atingido por um machado helénico ou trespassado por uma flecha de parto;— Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano (1951)[26]
E saiu sorrateiramente, fechando a porta. Foi uma flecha de parto. O nome do mr. Parfitt feria-me o âmago, trazia o rubor da vergonha às minhas faces.— Aldous Huxley , Those Barren Leaves (1925)
Referências
- ↑ a b «Dicionário Online - Dicionário Caldas Aulete - Significado de flecha de parto». www.aulete.com.br. Consultado em 16 de janeiro de 2021
- ↑ a b Rodrigues Peixoto, Raul Vítor (2011). As obras de Polieno e Frontino: Proposta de uma Tipologia dos Manuais Militares Romanos no Principado. Goiânia: Universidade Federal de Goiás. p. 91. 206 páginas«Exímios cavaleiros eram capazes de atacar circulando o inimigo e executavam uma técnica mortal que ficou conhecida como "Flecha de Parto", que consiste em um tiro certeiro nas costas enquanto o inimigo estava em fuga»
- ↑ «Dicionário Online - Dicionário Caldas Aulete - Significado de seta-de-parto». www.aulete.com.br. Consultado em 16 de janeiro de 2021
- ↑ a b «Flecha». Michaelis On-Line. Consultado em 16 de janeiro de 2021
- ↑ Bakker, Hans T. (12 de março de 2020). The Alkhan: A Hunnic People in South Asia (em inglês). [S.l.]: Barkhuis
- ↑ a b c d Rostovtzeff, M. «The Parthian Shot». Archaeological Institute of America. American Journal of Archaeology vol. 47 n.º 2, 1943: 174-187. doi:10.2307/499806. Consultado em 16 Jan 2021
- ↑ Rodrigues Peixoto, Raul Vítor (2011). As obras de Polieno e Frontino: Proposta de uma Tipologia dos Manuais Militares Romanos no Principado. Goiânia: Universidade Federal de Goiás. p. 91. 206 páginas«Esta operação era quase sempre executada pelos hippotóxai montados e em movimento.» «Nota 29, Literalmente 'cavaleiros frecheiros'»
- ↑ a b «58 - 50». www.uv.es. Consultado em 16 de janeiro de 2021
- ↑ a b Bivar, A. D. (1983). THE POLITICAL HISTORY OF IRAN UNDER THE ARSACIDS. Cambridge, UK: Cambridge University Press. pp. 45–55
- ↑ a b «Polyaenus: Stratagems - Book 7». attalus.org. Consultado em 17 de janeiro de 2021
- ↑ a b Rodrigues Peixoto, Raul Vítor (2011). As obras de Polieno e Frontino: Proposta de uma Tipologia dos Manuais Militares Romanos no Principado. Goiânia: Universidade Federal de Goiás. p. 92. 206 páginas «Nota 30»
- ↑ Adrienne Mayor: "The Amazons" | Talks at Google
- ↑ Belis, Alexis M.; Colburn, Henry P. (Janeiro de 2020). «An Urartian Belt in the J. Paul Getty Museum and the Origins of the Parthian Shot». Getty Research Journal. 12: 195–204. doi:10.1086/708319
- ↑ a b c Ivantchik, Askold. «Le «Parthian Shot», cinquante ans après Rostovtzeff». Edipuglia. MICHEL IVANOVITCH ROSTOVTZEFF - TROISIÈME PARTIE - ROSTOVTZEFF AUJOURD’HUI: 177-189
- ↑ a b Sulimirski, T. “Scythian Antiquities in Western Asia.” Artibus Asiae, vol. 17, no. 3/4, 1954, pp. 282–318. JSTOR, www.jstor.org/stable/3249059. Accessed 16 Jan. 2021.
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- ↑ Rodrigues Peixoto, Raul Vítor (2011). As obras de Polieno e Frontino: Proposta de uma Tipologia dos Manuais Militares Romanos no Principado. Goiânia: Universidade Federal de Goiás. p. 91. 206 páginas «Das vitórias que o exército pártico obteve sobre o romano talvez a mais emblemática tenha sido a Batalha de Carras, combatida no início de julho de 53 a.C., na qual Marzaban Surrena derrotou as legiões comandadas por Crasso»
- ↑ Rodrigues Peixoto, Raul Vítor (2011). As obras de Polieno e Frontino: Proposta de uma Tipologia dos Manuais Militares Romanos no Principado. Goiânia: Universidade Federal de Goiás. p. 92. 206 páginas «Nota 30»
- ↑ Polieno. Stratagemata (em latim). [S.l.]: Jo. Oporini
- ↑ «58 - 50». www.uv.es. Consultado em 16 de janeiro de 2021
- ↑ Silius Italicus, Tiberius Catius; Duff, J. D. (James Duff) (1927). Punica. Kelly - University of Toronto. [S.l.]: Cambridge, Mass., Harvard university press
- ↑ Monteiro, Manuel (2018). Por amor à Língua - Contra a linguagem que por aí circula. Lisboa: Objectiva. p. 72. 232 páginas. ISBN 9789896656591
- ↑ «Definition of ONE-LINER». www.merriam-webster.com (em inglês). Consultado em 16 de janeiro de 2021
- ↑ Dosse, François (3 de maio de 2018). Paul Ricoeur: um filósofo em seu século. [S.l.]: Editora FGV
- ↑ «A Idade da Derrota Aceite - Marguerite Yourcenar - Citador». www.citador.pt. Consultado em 17 de janeiro de 2021