A escusa
Vimos ontem que os dois mandados eram um e outro incompletos, mancos, viciosos, ilegais.
De mais não se havia mister, para justificar a desobediência do citado, levasse-a ele até onde a levasse, defendendo a sua liberdade contra o ato bruto de força, a que a autoridade se reduzira.
Mas não é tudo.
Ancião e valetudinário, declarara-se enfermo o citado. Na certidão de intimação fizera consignar pelo oficial de justiça (lá está na petição de habeas-corpus) que, “se a polícia carecia do seu depoimento como testemunha, o que aliás se não continha no mandado, restava-lhe o recurso de mandá-lo tomar na casa de sua residência, visto que, por motivo de enfermidade, que jurava, e podia ser atestado por qualquer médico, não podia sair”.
Quando um cidadão dos costumes severos e irrepreensíveis daquele jura moléstia num documento solene, ninguém tem o direito de lhe suspeitar da sinceridade. No próprio país da mentira, a mentira oficial, que o governa, se vive na desconfiança de todos, por haver perdido o sentimento da veracidade, não tem remédio senão respeitá-la, ao menos nas fórmulas legais que lhe abrigam a hipótese rara e desusada. Toda a gente sabe que nas arestas daquela personalidade granítica não cabem os meandros e tangentes da dissimulação. Quando ele quis sustentar a propriedade servil, começou por alforriar os seus escravos. Despojava-se do seu direito legal, para o defender nos outros. E aqui está por que o autor destas linhas admira mais a virtude nesse escravista que o liberalismo em muitos emancipadores. Almas dessa austereza não faltam à verdade. Noutra terra, onde o crédito dos mais venerandos nomes não estivesse à mercê dos apreciadores mais desprezíveis, não haveria juiz, que hesitasse em aceitar aquela escusa. Depois a escusação não reclamava o privilégio de ser criada inverificadamente. Ela se oferecia ao exame de “qualquer médico”. E mais de um tinha a polícia, para averiguar a exação do alegado.
Não a averiguando, nem a aceitando, a própria honra daquele, cuja fidedignidade se negava, lhe impunha o dever de se acastelar na sua escusa. E com ele, nestoutra face da resistência, estava igualmente a lei.
Senão vejamos.
Era como réu que o citavam? Mas, nesse caso, a escusa legítima o desobrigava de comparecer, exonerando-o até da pena de revelia; porque só é revel o ausente não escusado. Di-lo o Código do Processo, no art. 221:
“A falta de comparecimento do réu, sem escusa legítima, o sujeitará à pena de revelia.”
Paula Pessoa, comentando, ensina (p. 225, nº 1280): “Sendo legítima a escusa, deve ser esperada a parte na forma deste artigo.” E já era essa a doutrina das Ordenações, 1. III, t. 7, § 3º, t. 9, § 10, e t. 5 princ. De sorte que, até sob o despotismo dos antigos reis, nunca se desconheceu o valor obrigativo da legítima escusa. O réu, que, alegada ela, deixava de comparecer não incorria em desobediência, não sofria as conseqüências da revelia.
Citavam-no como testemunha? Mas a testemunha, semelhantemente, se escusa, articulando motivo justificado. É ainda o Código do Processo que o estatui. Leiam o art. 95:
“As testemunhas que não comparecerem sem motivo justificado, tendo sido citadas, serão conduzidas debaixo de vara.”
Apenas resta saber se a moléstia constitui motivo justificado, legítima escusa para a ausência do intimado. Não devia sofrer dúvida o ponto. Mas, como perante julgadores sem boa-fé não há evidência indubitável, transcrevamos a velha regra processual das Ordenações, 1. III, t. 9, § 1º, condensada em Pereira e Sousa, § 97, e reproduzida em Ribas, art. 229:
“Não podem, sob pena de nulidade, ser citados:
“§ 5º Os doentes de enfermidade grave, para comparecerem em juízo dentro dos nove dias da citação; sendo este prazo ampliável por igual tempo se o juiz se convencer da sua necessidade”.
De sorte que, dada a moléstia do citado, tem nove dias de espera. Se o juiz entende alargá-la, pode, a seu arbítrio, conceder-lhe prorrogação de outro tanto. Mas, além desta ensancha, que fica à discrição do magistrado, a dilação pode ser ainda, para o esperado, matéria de direito, em se certificando profissionalmente a persistência da enfermidade. É o que já estava no senso comum. E, para os a quem ele não satisfaz, temos a lição dos mestres. Pereira e Sousa e Teixeira de Freitas expressamente advertem (nº 216) que
“com certidão de médico se prorroga este prazo de nove dias”.
Prorroga-se até quando? Evidentemente até cessar o impedimento. O impedimento está na moléstia. Logo, se neste obstáculo é que reside o motivo determinante da prorrogação, esta durará com o obstáculo, e só terminará, quando ele cesse.
Por isso esses mesmos praxistas (Prim. Lin. sobre o Proc. Civ., nº 515 ao § 250) firmam em absoluto o princípio de que
“não podem ser obrigadas a vir a juízo as pessoas legitimamente impedidas (Or. 1. I, t. 78, § 3º e t. 84, § 10), que são, contudo, obrigadas a depor em suas casas (Ord. 1. I, t. 84, § 10), como enfermos, velhos, etc.”.
Isso na praxe civil.
Na penal a letra dos textos legislativos fundamenta ainda mais solidamente a mesma teoria; porquanto nem o art. 95, nem o art. 221, ambos supratranscritos, designam espaço de tempo certo à força exculpatória da escusa. Enquanto ela perdure, enquanto perdurar o motivo justificado, nem o réu ausente se faz revel, nem a testemunha, que falta, se constitui desobediente. Com efeito, o art. 221 só considera revelia “a falta de comparecimento do réu sem escusa legítima”, e o art. 95 só autoriza a conduzir debaixo da vara “as testemunhas que não comparecerem, sem motivo justificado”. Ora, se, num caso, como no outro, o motivo justificado exclui a obrigação de comparecer, não principiará a correr essa obrigação, enquanto o motivo justificado não se extinga. E, se a doença é motivo justificado, enquanto o réu, ou a testemunha for doente, nenhuma autoridade lhe poderá forçar a presença.
Mas a doença não é matéria de presunções, nem de arbítrio judicial, ou administrativo. É matéria de fato, de verificação científica, de certeza profissional.
Como verificou o chefe de Polícia que o citado era são? que a sua escusa mentia?
Pelos seus aguazis?
Pelos seus delegados?
Pela sobrevivência do paciente à brutalidade do rapto?
Aí têm, pois, outra justificativa cabal da resistência, outro terreno, onde ela era juridicamente inexpugnável. Estando enfermo, era direito do citado alegar a enfermidade. Tendo-a alegado, era seu direito reclamar a verificação da escusa. Não lha tendo verificado, era seu direito exigir que lha respeitassem. Não lha respeitando, era seu direito reagir.
Ontem firmávamos a resistência na irregularidade dos mandados. Tinha ela por base assim uma causa intrínseca a eles. Suponhamos, porém, que eram regulares. A legitimidade da reação estriba agora num motivo pessoal ao réu. O segundo não é menos válido, menos poderoso, menos terminante que o primeiro.
Iremos adiante.