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Politica social

P OL Í T I C A S P Ú BLIC A S E D E S I G U A L DA DE S POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES VOLUME 1. ACESSO À JUSTIÇA, DIREITOS HUMA VOLUME 2. CO OS E CIDADA IA SUMOS, LAZERES, MODOS E ESTILOS DE VIDA VOLUME 3. DESE VOLVIME TOS E SUSTE TABILIDADE VOLUME 4. EDUCAÇÃO, SABERES E CULTURAS VOLUME 5. GOVER VOLUME 6. I A ÇA DE TERRITÓRIOS E DE CIDADES I TERMEDIÁRIAS SEGURA ÇA, VIOLÊ CIA E CRIME VOLUME 7. MERCADOS DE TRABALHO E ESTRATIFICAÇÃO SOCIAL: MOBILIDADES E FLUXOS VOLUME 8. MORFOLOGIA SOCIAL E DI VOLUME 9. MOVIME VOLUME 10. ÂMICAS DAS CIDADES I TERMEDIÁRIAS TOS SOCIAIS E PARTICIPAÇÃO ! "! #$ VOLUME 11. RELAÇÕES SOCIAIS DE GÉ " "! ERO E RAÇA VOLUME 12. SAÚDE, SISTEMAS DE SAÚDE E CORPO Página de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS FICHA TÉCNICA TÍTULO: Ação Pública e Problemas Sociais em Cidades Intermediárias AUTORES: Vários COORDENADORES: Balsa, Casimiro Rodrigues, Luciene Cardoso, Antônio Dimas Soulet, Marc6Henry COMISSÃO DE LEITURA: Albuquerque, Cristina Balsa, Casimiro Boneti, Lindomar Cardoso, Antônio Dimas Diogo, Fernando França, Iara Soares de José, São José Macedo, Luiz António Maia, Rosemere Martins, Luci Helena Nofre, Jordi Olímpio, Marcos Paula, Andréa Rocha de Pires, Iva Rodrigues, Luciene Vaz, Domingos APOIO À EDIÇÃO: Vital, Clara Sampaio, Leonor ISBN: 97869896206408668 Lisboa, 2013 Página % de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Í DICE Í DICE ........................................................................................................................................................ 4 EOLIBERALISMO E EDUCAÇÃO: o ensino superior brasileiro nos anos 90 ........................................ 5 Christine Veloso Barbosa Araújo Maria Helena de Souza Ide POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À POBREZA OS ESPAÇOS URBA OS: da razão técnico= funcional à insurgência de processos e agentes sociais novos .................................................................. 18 Lindomar Wessler Boneti O CRESCIME TO DA POBREZA. Limites das fontes estatísticas em Portugal e resultados possíveis .. 34 Fernando Diogo DA I TER=RELAÇÃO CE TRAL / LOCAL A AÇÃO PÚBLICA. Serviços sociais e atendimento integrado: modelos e perspetivas .............................................................................................................. 53 Cecília Dionísio DESE VOLVIME TO ECO ÔMICO, DESIGUALDADES E I JUSTIÇAS SOCIOESPACIAIS EM CAMPOS DOS GOYTACAZES. O papel das políticas públicas urbanas. ................................................ 67 Teresa de Jesus Peixoto Faria Raquel Callegario Zacchi atália Guimarães Mothé DIFUSÃO I TER ACIO AL E MODELAGEM DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA REDUÇÃO DA POBREZA: reflexões sobre políticas sociais brasileiras ........................................................................... 87 Samira Kauchakje EM OME DA ORDEM: política urbana e criminalização da pobreza na Cidade do Rio de Janeiro no limiar do século XXI ................................................................................................................................ 108 Rosemere Maia MAPEAME TO DE I DICADORES HABITACIO AIS SOCIAIS: uma contribuição para planejamento de políticas públicas ................................................................................................................................ 127 Deborah Marques Pereira Anete Marília Pereira Marcos Esdras Leite Aline Crystiane Carvalho Mendes AS POLÍTICAS PÚBLICAS EDUCATIVAS E OS CURSOS PROFISSIO AIS. Um caso de parceria entre uma Escola Secundária e uma Empresa do ramo da Indústria numa Cidade Intermediária.................. 147 Zulmira de J. C. da Silva Rodrigues Página & de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS EOLIBERALISMO E EDUCAÇÃO: o ensino superior brasileiro nos anos 90 Christine Veloso Barbosa Araújo UNIMONTES Universidade Estadual de Montes Claros christinevba@gmail.com Maria Helena de Souza Ide UNIMONTES Universidade Estadual de Montes Claros mhelenaide@hotmail.com Resumo Este artigo analisa as transformações ocorridas no contexto da educação superior no Brasil nos anos 1990. Sob o aval de organismos internacionais, interessados na reestruturação do capital produtivo nos países periféricos, o governo Fernando Henrique Cardoso (FHC) implementou políticas neoliberais que levaram à expansão desse nível de ensino no Brasil, em especial das Instituições de Ensino Superior (IES) privadas. O texto apresenta uma análise e uma reflexão crítica sobre as transformações por que passaram o ensino superior no país nesse período, e como essas mudanças impactaram a função social da universidade1. Palavras?chave: Organismos internacionais, Educação superior, Expansão do ensino superior 1 Agradecemos o apoio da Fapemig. Página de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Introdução A expansão da educação superior nos países da América Latina e mais especificamente no Brasil, ocorrida na década de 90, contemplou a implementação de políticas neoliberais aliadas aos interesses da burguesia financeira mundial. Esse processo ocorreu por intervenção dos organismos internacionais como o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e até mesmo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) que, interessados em garantir a segurança do capitalismo, impuseram condicionalidades aos países periféricos em troca de sua estabilidade econômica. Esses organismos defendiam o financiamento da educação superior pelos setores privados, favorecendo o empresariamento da educação, através da criação de empresas educacionais mais preocupadas em vender produtos acadêmicos, que produzir conhecimento científico e tecnológico. No Brasil, o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) foi marcado pelo célere crescimento do número de instituições de ensino superior privadas. As alianças estabelecidas nesse período permitiram a implementação de uma nova política educacional ajustada aos ideais da agenda neoliberal. Assim, seu governo permitiu o crescimento de instituições voltadas para, basicamente, atividades de ensino em detrimento das instituições vinculadas à pesquisa, ciência e tecnologia. Nessa perspectiva, a educação sofreu transformações e tensões até hoje não solucionadas. Este artigo apresenta de forma sucinta as principais políticas e reformas estabelecidas pelos organismos internacionais para os países periféricos nos anos 1990. A abordagem inclui a era FHC e as transformações ocorridas no ensino superior no Brasil durante esse período, sugerindo uma análise crítica dos fatos transcorridos. Organismos Internacionais e as reformas educacionais nos países periféricos Desde a década de 1940, quando foram criados, os organismos internacionais comprometidos com o capital, como o Banco Mundial (BM), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), interferem nas políticas sociais, econômicas e culturais dos países periféricos. Isso porque seus objetivos passam pela garantia da estabilidade e segurança do sistema capitalista e a consequente necessidade de inserir esses países na dinâmica da globalização do capital. A fim de assegurar uma situação econômica estável, os Página ' de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS países periféricos recorrem à concessão de empréstimos e, endividados, se vêem comprometidos com os organismos internacionais através de condicionalidades que se concretizam por meio de interferências desses organismos, nas políticas macroeconômicas e setoriais. Neste contexto, o controle das políticas educacionais apresenta6se de forma destacada, visto que existe um consenso entre esses organismos sobre o papel da educação como “mola propulsora do desenvolvimento/crescimento econômico” (Lima, 2002: 44). A partir dos anos 80, com o endividamento dos países periféricos junto ao Banco Mundial (BM) e ao Fundo Monetário Internacional (FMI), começam a ganhar contorno diversas políticas voltadas de forma impositiva para a garantia da estabilidade econômica e de ajuste estrutural aos países da América Latina, mais especificamente ao Brasil. Esse processo deu início à Reforma do Estado e, inserida nesta, à Reforma Educacional. (Lima, 2002) No início da década de 1990, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), o Banco Mundial (BM), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), organizaram a “Conferência Mundial de Educação para Todos” em Jomtien, na Tailândia. O Brasil foi apontado como um dos países com problemas na universalização da educação básica e analfabetismo. De acordo com Katia Regina de Souza Lima (2002), as diretrizes de Jomtien para o país constam no Plano Decenal de Educação para Todos (199462003), que foi elaborado a partir da Conferência Nacional de Educação para Todos em 1994 e, posteriormente, no “Programa Educação para Todos” implementado no governo FHC. Em 1992, o discurso sobre a qualidade na educação começou a ser apontado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), através de um documento que defendia a necessidade de adequar os países periféricos à realidade mundial e às exigências do mercado de trabalho, abrindo, assim, espaço para parcerias de financiamento e gestão das escolas, conferindo6lhes “autonomia” para isso. Os documentos produzidos pelos organismos internacionais nessa época sugeriam a educação como “alívio para a pobreza” e garantia de desenvolvimento, e defendiam a formação e qualificação de recursos humanos como essencial para o aumento da competitividade dos países da América Latina e do Caribe. No entanto, o “alívio” e o desenvolvimento estavam atrelados a reformas políticas e flexibilização da Página ( de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES economia com abertura de mercado, entre outras ações, obviamente com subordinação dos países periféricos. No contexto da educação superior, o Banco Mundial (1995), através do documento intitulado “La enseñanza superior: las lecciones derivadas de la esperiencia” aponta o que julga ser o cerne da crise nesse grau de ensino. O Banco diagnostica a crise como assumindo proporções mais graves nos países em desenvolvimento e preconiza algumas medidas a serem adotadas no âmbito das reformas, dentre elas: maior diferenciação das instituições; diversificação das fontes de financiamento das instituições estatais; redefinição do papel do Estado; questões relativas à autonomia e à responsabilidade institucional. De acordo com José Dias Sobrinho, naquele período, sob a orientação e até mesmo sob imposição de organismos multilaterais como, por exemplo, o Fundo Monetário Internacional (FMI) [...] vários países da América Latina empreenderam reformas para adequar o Estado e a sociedade a uma nova ordem, passando a economia a constituir6se o centro de todos os valores. A educação superior teve de se adequar aos novos imperativos e submeter6se à centralidade econômica. A imposição de reformas visando a ajustar a educação às novas exigências da crescente onda de acumulação do capital produziu agudas tensões, ainda não resolvidas. (Sobrinho, 2003:101) Luiz Fernandes Dourado et al (2003:17) afirma que a reforma do sistema educativo no Brasil resultou na ampliação da esfera privada em contraposição ao alargamento dos direitos sociais. Ainda segundo o autor, várias mudanças se efetivaram com relação ao papel social das instituições educativas, inclusive o financiamento das mesmas e seu campo de atuação. Isso leva ao questionamento do papel da universidade na sociedade contemporânea ao se colocar a serviço do capital, minando assim o seu espaço privilegiado de produção do conhecimento. A compreensão das tensões e transformações ocorridas na educação superior no Brasil em função das políticas e mecanismos implementados pelos países latino6 americanos a partir da reforma educacional na década de 90, em consonância com os organismos internacionais, passa, portanto, pela análise da reestruturação da educação superior ocorrida no governo FHC. Página ) de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS A Era FHC e as Políticas de Educação Superior O governo de Fernando Collor de Melo foi o primeiro a adotar plenamente as políticas neoliberais, inclusive com ações voltadas para a implementação, no seu governo, das políticas preconizadas pelo Banco Mundial para a universidade. Porém, a fragilidade de suas alianças e sua inaptidão para gerir os processos políticos levaram6no ao impeachment (Leher, 2003). O governo de FHC, no entanto, criou fortes alianças comprometidas com o Consenso de Washington, cujo objetivo se voltava para a defesa dos interesses da burguesia financeira internacional, empenhada em implementar as políticas de ajuste estrutural na América Latina. Os integrantes dessa coalizão pertenciam ao Partido da Frente Liberal (PFL) e ao Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). A gestão de FHC implementou uma política educacional bem ajustada com a agenda neoliberal. A equipe do seu governo foi integrada por membros do Núcleo de Pesquisa e Ensino Superior (NUPES/USP), por técnicos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Banco Mundial (BM) com a finalidade de implementar a nova política de educação brasileira que, de acordo com Roberto Leher (2003: 86), seria adequada à “nova estrutura produtiva do país”. Essa nova estrutura produtiva não previa elevação na formação cultural e científica dos trabalhadores. Ao contrário, os investimentos em Ciência e Tecnologia foram reduzidos, enquanto a importação de produtos intensivos em tecnologia elevou6 se. Cresceram setores como serviços e os baseados em recursos naturais, e diminuíram setores como a indústria de informática e comunicação, numa clara evidência da subordinação aos interesses da burguesia internacional financeira. A reestruturação na educação superior no governo de FHC contemplou a diversificação de cursos e de instituições de ensino superior, principalmente privadas, levando6as a uma transformação com o objetivo de adaptá6las às demandas mercantilistas, que incluía os serviços educacionais. Justificada pela bandeira da “democratização”, a ideologia neoliberal favoreceu a expansão e criou um sistema de competição ao permitir a flexibilização em detrimento da indissociabilidade ensino, pesquisa e extensão. Novas modalidades de ensino superior foram criadas, como, por exemplo, pós6médios e a Educação à Distância (EAD), promovendo a formação profissional rápida, ou a conhecida “certificação em larga escala” como meio de proporcionar igualdade de oportunidades. Página * de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Centenas de novas instituições de ensino superior privadas foram criadas nas mais diversas regiões do país, sem a necessidade de grandes investimentos. Cresceram os cursos sequenciais, e, na segunda metade dos anos 90, o percentual de matrículas nas instituições privadas do país chegou a 77%, contra 30% nas públicas. (Leher, 2003) No que diz respeito às universidades públicas, estas sofreram cortes de verbas, achatamento salarial dos docentes e redução de investimentos em pesquisa. Tudo sob a custódia do BM. Segundo Leher, as verbas eram “insuficientes até mesmo para o custeio de rubricas como energia, água, telefonia etc.” (Leher, 2003: 82). De acordo com Dourado, as universidades públicas tiveram que se ajustar “a uma perspectiva gerencialista, produtivista e mercantilizadora” (Dourado, 2003: 20). Nesse processo, receberam autonomia para buscar parcerias com empresas privadas e captar recursos. Ao abordar a questão da autonomia das universidades públicas, Marilena Chaui nos apresenta a seguinte reflexão: [...] autonomia possuía sentido sócio6político e era vista como a marca própria de uma instituição social que possuía na sociedade seu princípio de ação e de regulação. Ao ser, porém, transformada numa organização administrada, a universidade pública perde a idéia e a prática da autonomia, pois esta, agora, se reduz à gestão de receitas e despesas, de acordo com o contrato de gestão pelo qual o Estado estabelece metas e indicadores de desempenho, que determinam a renovação ou não renovação do contrato. A autonomia significa, portanto, gerenciamento empresarial da instituição e prevê que, para cumprir as metas e alcançar os indicadores impostos pelo contrato de gestão, a universidade tem “autonomia” para “captar recursos” de outras fontes, fazendo parcerias com empresas privadas. (Chaui, 1999: 216) Lima lembra que os organismos internacionais defendem “o financiamento da educação superior a partir da concepção de que o Estado e a sociedade civil devem se responsabilizar, conjuntamente pela sua efetivação” (Lima, 2002: 50), numa tentativa de inferir que flexibilizar e diversificar são formas de “democratizar” o acesso. Ainda na “era” FHC, outra análise que se impõe é sobre o sistema de avaliação, o qual, segundo J. Dias Sobrinho, “tem função central nas reformas do Estado, da sociedade e da educação superior” (Dias Sobrinho, 2003: 98). Dourado empreende uma crítica ao modelo de avaliação adotado, argumentando que da forma como foi estruturado “deu maior importância aos produtos acadêmicos do que aos processos históricos de desenvolvimento institucional ou às áreas de produção do trabalho Página + de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS acadêmico” (Dourado, 2003:24). Isso intensificou o processo de mercantilização, o acirramento da concorrência, e instituiu uma lógica produtivista na qual a avaliação passa a ser um instrumento de regulação e controle. Segundo Dias Sobrinho: Se qualidade é representada pelos resultados objetivos, a avaliação é tomada por controle desses produtos, associado à flexibilização de formas, tempos, contratos, fontes de financiamento e outros itens relativos à noção de eficiência como noção economicista. (Dias Sobrinho, 2003: 108) Como exemplo dos instrumentos utilizados para avaliar e medir a qualidade do ensino destacam6se o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e o Exame Nacional de Curso (ENC), ou Provão, substituído desde 2004 pelo Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (ENADE). Ainda sobre a avaliação, Dourado et al afirma que: A avaliação é utilizada como instrumento de regulação e controle, ao mesmo tempo em que garante a implementação efetiva da reforma da educação superior, com a aquiescência da opinião pública, que passa a ser alimentada com informações sobre a qualidade das instituições e dos cursos ofertados. (Dourado et al., 2003: 25) Assim, Dourado infere que é o “consumidor” dos produtos acadêmicos que decide a qualidade da instituição, baseado nas informações dos instrumentos de avaliação. Nesse contexto, sugere que o sistema de avaliação deve produzir informações suficientes para a tomada de decisão na implementação de políticas educacionais, que inclui a utilização de recursos financeiros públicos, e enfatiza a necessidade de se “criar uma cultura de avaliação acadêmica que ajude as IES [...] a vincularem a produção acadêmica ao bem6estar coletivo” (Dourado, 2003: 25), posto ser esta uma função social da universidade. As políticas de FHC marcaram seu governo como um período de expansão e de reconfiguração da universidade brasileira, intensificadas, segundo Dourado “após a aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB), Lei nº 9.394/96, tendo como eixos articuladores a flexibilidade e a avaliação estandartizada” (Dourado, 2003: 27). É inegável que a expansão há tempos é uma demanda da sociedade brasileira, no entanto, seu aspecto deliberadamente privado trouxe transformações e tensões no campo Página de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES universitário, além de apresentar uma feição excludente que se contrapõe à educação como um direito social. A Função Social da Universidade As transformações por que passou o ensino superior no Brasil na década de 90 refletiram6se na função da universidade enquanto instituição social. Impactadas pela agenda neoliberal, as universidades públicas tiveram que adaptar6se para atender às demandas do capital como questão de sobrevivência. Ao analisar as alterações e tensões ocorridas no interior das instituições de ensino superior, vale recorrer a Marilena Chaui para retomar suas idéias sobre a verdadeira função da universidade. Desde seu surgimento (no século XIII europeu), a universidade sempre foi uma instituição social, isto é, uma ação social, uma prática social fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e de suas atribuições, num princípio de diferenciação, que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais, e estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores de reconhecimento e legitimidade internos a ela. A legitimidade da universidade moderna fundou6se na conquista da idéia de autonomia do saber em face da religião e do Estado, portanto, na idéia de um conhecimento guiado por sua própria lógica, por necessidades imanentes a ele, tanto do ponto de vista de sua invenção ou descoberta como de sua transmissão. (Chaui, 1999: 217) Chaui apresenta uma reflexão sobre a condição a que se impôs a universidade enquanto “organização social” em detrimento de sua origem como “instituição social”. O capital, ao propor uma política de gestão da educação superior inserida no processo de mundialização e reestruturação exige, implicitamente, das instâncias educativas a adaptação a novos modelos que venham garantir o seu financiamento e seu campo de atuação. Não por acaso, ao se transformar numa organização administrada, a universidade pública perde sua autonomia e aceita a “flexibilização”, que vai da mudança em seu regime de trabalho à adaptação de seus currículos às necessidades do mercado onde está inserida, dependendo, inclusive, de parcerias com empresas privadas, para conseguir fontes de financiamento. Página de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Ao buscar recursos externos para financiar sua pesquisa, a universidade se distancia de sua formação crítica para servir aos interesses do mercado. Por vocação, a universidade é: [...] campo de reflexão, crítica, descoberta e invenção do conhecimento novo, comprometido com a construção e consolidação de uma sociedade democrática [...] ao abrir mão dessa identidade histórica, corre o risco de servir a propósitos de reprodução do poder e das estruturas existentes e não à sua transformação. (Catani et al., 1999: 186) Dourado também indaga sobre a vocação e o papel social da universidade, especialmente a pública, e a define como universidade administrada, pois inserida no processo de reestruturação capitalista, compete6lhe “contribuir significativamente com a produção da mais6valia relativa, ou seja, ela deve formar profissionais e gerar tecnologias e inovações que sejam colocadas a serviço do capital produtivo” (Dourado, 2003: 19). Nessa ótica, Dourado conclui que a universidade “vincula sua produção às necessidades do mercado, das empresas e do mundo do trabalho” (Dourado, 2003:19). Marilena Chaui distingue três etapas para a passagem da condição de instituição à de organização. Ela afirma que, numa primeira etapa, a universidade dos anos 1970, denominada como universidade funcional, privilegiou a formação rápida de mão6de6 obra para o mercado de trabalho conferindo à classe média o diploma universitário através da mudança nos “currículos, programas e atividades”. Nos anos 1980, uma segunda etapa ocorreu dando prosseguimento à etapa anterior, em meio ao crescimento das escolas privadas e às parcerias com as empresas. Foi a chamada universidade de resultados, em que as empresas asseguravam emprego e estágios remunerados aos futuros profissionais. Já nos anos 1990, a terceira etapa é, segundo Chaui, a da universidade operacional, voltada para si mesma: Regida por contratos de gestão, avaliada por índices de produtividade, calculada para ser flexível, a universidade operacional está estruturada por estratégias e programas de eficácia organizacional e, portanto, pela particularidade e instabilidade dos meios e dos objetivos. Definida e estruturada por normas e padrões inteiramente alheios ao conhecimento e à formação intelectual, está pulverizada em microorganizações que ocupam seus docentes e curvam seus estudantes a exigências exteriores ao trabalho intelectual. (Chaui, 1999: 2206221) Página % de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Assim, frente às demandas do capital, as universidades tiveram que se adaptar à concorrência que se estabeleceu, por consequência da expansão da educação superior. Ao desvincular o ensino da pesquisa, as políticas neoliberais para a educação permitiram o empresariamento da educação. Isso trouxe consequências como, por exemplo, a desvalorização docente com contratos “flexíveis” de trabalho e achatamento salarial. Muitos deixaram a dedicação exclusiva para buscar complementação dos seus vencimentos através da prestação de serviços e consultorias. Chaui afirma que a docência passou a ser “transmissão e adestramento”, ao ser pensada como: habilitação rápida para graduados, que precisavam entrar rapidamente num mercado de trabalho do qual serão expulsos em poucos anos, pois tornam6se, em pouco tempo, jovens obsoletos e descartáveis; ou como correia de transmissão entre pesquisadores e treino para novos pesquisadores. (Chaui, 1999: 221) Outra consequência foi o comprometimento da pesquisa com a ideia de produtividade em detrimento da descoberta, da criação e da investigação crítica e reflexiva. Ao se transformar em organização, a universidade vincula sua pesquisa à relação custo6benefício. Muitos docentes sem perfil de pesquisador, por vezes, foram contratados para produzirem estrategicamente resultados em prazo e custos bem definidos, para atenderem às empresas parceiras. Essa condição mina a reflexão, a historicidade dos fatos, e limita o pensamento criativo e a curiosidade pelo novo, enfim, pela pesquisa descomprometida. Embora as políticas neoliberais defendam a “democratização” do ensino através de sua expansão, as formas de acesso revelam um caráter excludente e elitizado considerando, por exemplo, o número de instituições que se instalaram em shoppings ou em locais próximos a “grandes centros de compras” (Leher, 2003). A respeito dessa temática, que altera a função social da universidade, Leher coloca que muitas famílias se sacrificavam para manter seus filhos na faculdade: Mas o limite do humano obriga um imenso contingente a se desfazer dos sonhos. Entre a sobrevivência biológica e o prosseguimento dos estudos, a realidade é cruel: sem moradia, abrigo, alimento, vestuário mínimo e transporte, o sonho não tem espaço. Por isso, grosso modo, somente chegam ao final dos cursos pagos os segmentos de médios para cima. (Leher, 2003: 85) Página & de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Dourado et al entende que a expansão do ensino superior é necessária, assim como são necessárias mudanças na educação superior. No entanto, o governo federal e o Conselho Nacional de Educação (CNE) devem estabelecer: [...] políticas e mecanismos de reestruturação desse nível de ensino, tendo por critério a busca da qualidade social, como horizonte político6pedagógico para a efetiva expansão e interiorização da educação superior pautada pela indissociabilidade entre ensino e pesquisa e pelo compromisso social da universidade. (Dourado et al., 2003: 28) Esse formato inspira o que deveria ser a verdadeira expansão da educação: uma educação abrangente, inclusiva e comprometida com o verdadeiro desenvolvimento social. Considerações finais As políticas de reestruturação do capital na década de 90 favoreceram, sem dúvida, a expansão da educação superior através do crescimento do número de instituições educacionais privadas no Brasil. Os mecanismos utilizados são passíveis de críticas e considerações as mais diversas, no sentido de atentar para as questões sociais e políticas que os envolvem. Faz6se necessário discutir políticas que promovam condições para o acesso democrático à educação superior de qualidade. Ao se tratar de qualidade é preciso avaliar o que de fato a define, quando os critérios para estabelecê6la foram, e continuam, baseados em modelos quantificáveis, como relação entre números de docentes, publicações, pesquisas concluídas e outros. Outra questão que se evidencia nessa reflexão, refere6se à necessidade de se estabelecer critérios equânimes para os investimentos destinados à pesquisa científica no país, descomprometida com os interesses de empresas privadas ou multinacionais, do governo e dos organismos internacionais, garantindo a indissociabilidade ensino e pesquisa. Por fim, e não menos importante, é necessário estabelecer políticas que promovam a igualdade de oportunidades para formação do conhecimento autêntico, num cenário onde as qualificações e especializações estão diretamente relacionadas à demanda do mercado de trabalho. Ainda que para atender aos objetivos do capital, é inegável que a Reforma da Educação proporcionou um crescimento da oferta de educação superior. Esse processo Página de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES é, portanto, bastante complexo e não se esgota nesta reflexão. A expansão continuou no Governo Lula e suas políticas passaram pela proposta de ampliação de vagas e garantia de acesso à educação superior a pelo menos 30% da população jovem, com direcionamento de recursos públicos para financiar a educação. Vista aos olhos capitalistas como um extraordinário mercado educacional, a expansão tende a ampliar6 se. Para que se cumpra uma efetiva reconfiguração da educação superior não se pode consentir o estabelecimento de políticas e mecanismos de múltiplos interesses, sem a participação da sociedade. A universidade não tem que ser eficiente, produtiva ou competitiva para atender às demandas do capital. Ela deve atender à sua função pública, independente de quem a financia, formando cidadãos críticos e propositivos de uma sociedade melhor e menos desigual. Primar pela produção científica descomprometida e pela formação intelectual crítica e reflexiva é um desafio que ora se impõe à sociedade civil em suas mais diversas instâncias representativas. Bibliografia BANCO MUNDIAL (1995). La enseñanza superior – las lecciones derivadas de la experiência. Washington. [Disponível em outubro de 2012] URL: www1worldbank.org/educa/> CATANI, A. M. et al (1999). A Universidade pública no Brasil: identidade e projeto institucional em questão. In TRINDADE, H. (org) Universidade em ruínas na república dos professores. Petrópolis, RJ: Vozes / Porto Alegre, RS: CIPEDES, pp. 1796189. CHAUI, M. (1999). A Universidade em ruínas. In TRINDADE, H. (org) Universidade em ruínas na república dos professores. Petrópolis, RJ: Vozes / Porto Alegre, RS: CIPEDES, pp. 2116222. DIAS Sobrinho, José (2003). Educação Superior: Flexibilização e Regulação ou Avaliação e Sentido Público. In: DOURADO, et al. (Orgs). Políticas e gestão da educação superior: transformações recentes e debates atuais. São Paulo: Xamã, pp. 976116. DOURADO, L.F. et al (2003). Transformações recentes e debates atuais no campo da educação superior no Brasil. In: DOURADO et al. Políticas e gestão da Página ' de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS educação superior: transformações recentes e debates atuais. São Paulo: Xamã, pp. 17630. LEHER, R. (2003). Expansão privada do ensino superior e heteronomia cultural: um difícil início de século. In: DOURADO et al. Políticas e gestão da educação superior: transformações recentes e debates atuais. São Paulo: Xamã, pp. 816 93. LIMA, K. R. S. (2002). Organismos internacionais: o capital em busca de novos campos de exploração. In: NEVES, L.M.W. (org) O empresariamento da educação: novos contornos do ensino superior no Brasil nos anos 1990. São Paulo: Xamã, pp. 41663. Página ( de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À POBREZA OS ESPAÇOS URBA OS: da razão técnico?funcional à insurgência de processos e agentes sociais novos Lindomar Wessler Boneti Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR Lindomar@boneti.com Resumo Trata6se de uma reflexão teórica sobre os fundamentos epistemológicos das políticas públicas de combate à pobreza. Com o advento do Estado Moderno, no combate à pobreza utilizava6se como parâmetro a epistemologia da razão moderna, acentuada na técnica e no saber profissional. Mas nos dias atuais, com o advento de agentes e problemas sociais novos, esta estratégia não é mais eficaz, necessitando também se considerar questões da identidade e do Ser Social. No que diz respeito ao método, estabelece6se um diálogo entre a dimensão teórica e dados empíricos coletados em ambientes de extrema pobreza, desconsidera6se o entendimento de associar políticas públicas a ações de governo, pressupondo que o estudo das políticas públicas implica associá6las à teoria de Estado. Argumenta6se que o fundamento epistemológico clássico das políticas públicas de combate à pobreza esteve historicamente assentado sobre a razão técnico funcional com enfoque no indivíduo produtivo, quando o meio produtivo e Estado apresentavam6se como agentes definidores. Mas, na contemporaneidade ao lado do Estado e do meio produtivo apresentam6se ações e agentes insurgentes novos na definição de políticas públicas, destituindo6se o absolutismo da técnica como parâmetro de verdade, enfocando problemáticas como o resgate da identidade, da singularidade, da diferença e da igualdade social. Palavras?chave: Políticas Públicas, Pobreza, Espaços Urbanos Página ) de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Introdução Neste texto dedica6se a analisar as complexidades teóricas e conceituais relacionados ao processo de elaboração e implementação das políticas públicas de combate à pobreza, considerando os diferentes momentos históricos, em especial o da contemporaneidade. Na análise realizada neste texto, busca6se superar o entendimento que associa políticas públicas a ações de governo centralizadas em avaliações de resultados e do gerenciamento dos recursos públicos. Parte6se do pressuposto de que o estudo das políticas públicas implica no entendimento da existência de uma complexidades teóricas, metodológicas, políticas e ideológicas e que se faz necessário, antes de tudo, associar políticas públicas à teoria de Estado e às dimensões políticas e de classes sociais. Do ponto de vista metodológico, analisa6se as implicações teóricas, metodológicas e políticas do processo de elaboração e implementação das políticas públicas de combate à pobreza numa dimensão temporal, histórica, diferenciando6se dois principais períodos: as políticas públicas tendo como fundamento epistemológico a Razão Moderna, especialmente a técnica como parâmetro de referência de verdade, quando apresentavam6se como agentes definidores basicamente o meio produtivo e Estado. Nesse período as políticas públicas de combate à pobreza tinham como foco primeiro a implementação de ações de recuperação da vida produtiva/material; Na contemporaneidade, quando destitui6se o absolutismo da verdade técnica como parâmetro, apresentando6se ao lado do Estado e do meio produtivo novos agentes definidores de políticas públicas, trazendo ao debate novas lutas sociais como é o caso do resgate do sujeito, das identidades, da diferença e das desigualdades sociais. Considerações epistemológicas sobre Políticas Públicas de combate à pobreza A busca das raízes epistemológicas de políticas públicas implica, antes de tudo, considerações de qual Estado se refere. Trata6se de explicitar o entendimento que se tem sobre a relação entre o Estado, as classes sociais e a sociedade civil, pressupondo que é nesta relação que se origina os agentes definidores das políticas públicas. Entende6se que cada momento histórico produz, no contexto da inter6relação entre a produção econômica, cultura e interesses dos grupos dominantes, ideologias a partir das quais Página * de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES verdades relativas tornam6se absolutas. Estas verdades absolutas, construídas ideologicamente em cada momento histórico, produzem e referenciam as ações institucionais e, em particular, a elaboração e a operacionalização das políticas públicas. Isto significa dizer que além dos princípios analisados acima, que interferem na elaboração e implementação das Políticas Públicas como verdades absolutas, é preciso considerar também o tipo de organização social de cada formação histórica, ou seja, o Estado hoje, no Capitalismo, e sua relação com as classes sociais. No estudo das Políticas Públicas, não se pode deixar de se considerar a relação entre classe social e Estado, no capitalismo. Assim, torna6se simplista o pensamento positivo de entender o Estado como uma instituição regida pela lei, a serviço de todos os segmentos sociais. Portanto, na análise que aqui se faz supera6se o pensamento que associa a formulação das políticas públicas unicamente à determinação jurídica, fundamentada em lei, como se o Estado fosse uma instituição neutra. Neste caso, as políticas públicas seriam definidas tendo como parâmetro unicamente o bem comum e este bem comum seria entendido como de interesse de todos os segmentos sociais. Mas também se torna simplista entender o Estado como simples instituição de dominação a serviço da classe dominante, como defende a tradição marxista. Este entendimento nega a possibilidade do aparecimento de uma dinâmica conflitante, envolvendo uma correlação de forças entre interesses de diferentes segmentos sociais ou classes. Não se pode pensar que as políticas públicas são formuladas unicamente a partir dos interesses específicos de uma classe, como se fosse o Estado uma instituição a serviço unicamente da classe dominante. Esta posição também é reducionista pelo fato de não considerar o poder de força política que têm os outros segmentos sociais não pertencentes à classe dominante. Esta posição desconhece também a possibilidade de uma classe dominante se fracionar e com isto romper com a tradicional existente entre o Estado e a classe economicamente dominante. Desconhece ainda esta posição a atuação dos Movimentos Sociais, das organizações da sociedade civil etc. Isto não significa dizer porém que a classe economicamente dominante não tenha predileção em termos da elaboração e implantação das políticas públicas, mas não se pode dizer que esta predileção se constitua na única força. Considerando esta complexidade, adota6se, neste texto, o entendimento, inspirando na leitura de Poulantzas (1990), que não é possível se construir uma análise da complexidade que envolve a elaboração e a operacionalização das políticas públicas sem se levar em consideração a existência da relação intrínseca entre o Estado e as classes sociais, em particular entre o Estado e a classe dominante. Página + de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Por outro lado, considera6se também que nos dias de hoje, no atual contexto da sociedade, no âmbito da nova configuração social, econômica e política, introduz6se elementos novos na estrutura social os quais ofuscam os limites e os interesses de classes, pela própria feição nova do espaço da atuação econômica. Nas últimas décadas, com o avanço das relações econômicas globalizadas, as manifestações de interesses de classes e os seus limites, não são convenientemente visíveis. Normalmente tais interesses são até mesmo camuflados pelos interesses específicos (expressos pelos grupos econômicos, grandes corporações do setor produtivo ou por diferentes grupos sociais) e pelas próprias problemáticas sociais (reforma agrária, aposentadoria, fome, habitação urbana, violência, a questão feminina, a questão gay, etc.) envolvendo diferentes grupos sociais, cujas manifestações podem representar interesse de classe, mas este interesse não é necessariamente explicitado na dinâmica da luta do movimento. Nos dois casos, do movimento social ou das corporações econômicas, a questão se coloca numa dimensão global. Mesmo assim entende6se que existe uma estreita afinidade entre os projetos do Estado (as políticas públicas) com os interesses das elites econômicas. Mesmo que no nível local (nacional e Estadual) exista uma correlação de força política na definição das políticas públicas, e no caso as políticas e combate á pobreza, envolvendo os movimentos sociais e demais organizações da sociedade civil, mesmo que no nível nacional um partido de esquerda assumir o governo, a definição das políticas públicas é condicionada aos interesses das elites globais por força da determinação das amarras econômicas próprias do modo de produção capitalista. Isto significa dizer que ao se falar da relação entre o Estado e as classes sociais, entra6se obrigatoriamente na questão dos agentes definidores das políticas públicas, os quais não são apenas nacionais. Razão Moderna e os fundamentos epistemológicos clássicos das Políticas Públicas de combate à pobreza A palavra gênese não significa apenas origem, no sentido simples como parece, mas trás uma conotação que vai além da origem, à raiz. Isto é, trata6se de analisar o processo que dá origem à origem dos princípios e dos determinantes inerentes à elaboração e implementação das políticas públicas. Isto é, pressupõe6se existir enfoques referenciais que fundamentam o exercício da elaboração e operacionalização das políticas públicas, como é o caso das concepções epistemológicas, das amarras Página de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES ideológicas, das questões culturais, etc. Isto é, toda Política Pública é originada de uma idéia e esta de um princípio, de uma pressuposição ou de uma vontade. Portanto, a palavra princípio não carrega consigo apenas o significado literal do termo, mas algo mais, o contexto dos fatores determinantes que dão origem a uma idéia de Política Pública, como o caso da conjugação de interesses, as inserções ideológicas, as concepções científicas, as correlações de forças sociais etc. Portanto, necessário se faz distinguir o Ser das Políticas Públicas do ideal de Ser. Não se trata aqui de fazer uma apologia a um certo ideal de Ser das políticas públicas, mas retratar simplesmente o seu Ser. Considerando o momento histórico em que se vive, com grandes reflexos ainda do racionalismo iluminista, analisa6se a seguir alguns princípios (os principais) que oferecem às políticas públicas de combate à pobreza um sentido racionalista, capitalista e, portanto, contemporâneo. Os séculos XV, XVI e XVII testemunharam um expressivo movimento de construção da base da ciência e do Estado moderno, o que se constituiu fundamento clássico epistemológico das políticas públicas. Este movimento, apresentando a construção da “razão” como meta, dedicou6se em torno de dois principais enfoques, o método científico e a organização social (o Estado). “Razão” designava a busca de uma sociedade nova, comparativamente à sociedade medieval, a busca de uma sociedade racional com base na cientificidade e a busca da superação do teologismo como método de explicação do real e da organização social. Assim, de um lado, Francis Bacon (1561) e Descartes (1596) contribuíram com a construção das bases epistemológicas do que se convencionou chamar de ciência moderna, enfocando prioritariamente o método científico. Mas “razão”, como sinônimo de cientificidade, de verdade, estava presente também na busca da superação do Estado medieval. Hobbes (1588), Locke (1632) e Rousseau (1712), com perspectivas diferentes em relação ao “Contrato Social” sedimentaram as bases epistemológicas da organização social, o Estado, na modernidade. Este movimento envolvendo as bases epistemológicas da ciência moderna e do Estado moderno construiu uma característica importante muito presente em noções de verdade, de cientificidade e mesmo na elaboração e operacionalização das políticas públicas na modernidade: o da universalidade dos parâmetros de cientificidade e de verdade. Em outras palavras, o movimento que busca a construção de uma sociedade com base na “razão” científica, inicialmente pela construção de um método científico, Página de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS estipula, na verdade, parâmetros universais de ciência e de verdade, nos quais encontramos a origem da concepção etnocêntrica de sociedade. Isto significa dizer que junto ao fundamento epistemológico da ciência moderna e do Estado moderno a partir de parâmetros universais de verdade e da organização social, criou6se parâmetros para se pensar e realizar um “modelo civilizatório” tendo como base a razão científica, sendo que concepção etnocêntrica é o primeiro ingrediente a se constituir como parâmetro para se medir o grau de racionalidade de uma organização social. Hoje, existe uma tendência de alguns povos, sobretudo os considerados desenvolvidos, adotarem o entendimento segundo o qual as suas sociedades centralizam a verdade em termos de costumes culturais, desenvolvimento social e econômico etc. Estas sociedades têm dificuldade de compreender como verdade as diferenças em termos culturais e de organização política se não as suas. Segundo a concepção etnocêntrica, portanto, existe uma verdade única e universal, entendida como o centro, e é a partir dela que se institui as atribuições do certo e do errado. O etnocentrismo tem origem justamente da razão científica, do entendimento que a ciência é única e universal, que a verdade científica guarda requisitos universais que a distingue como ciência. É deste pensamento que nascem as atribuições do centro e da periferia, como atribuição de valor de verdade, que o centro retém mais e melhor tecnologia, mais riqueza, e mais verdade. Com isto, nasce a tendência de se atribuir modelos sociais, culturais e de desenvolvimento social. A partir desta concepção, as necessidades dos grupos dominantes são absorvidas pelos setores pobres como seus, assim como a superaração das carências da população pobre é feita utilizando6se das estratégias dos grupos dominantes, criando6se até mesmo uma noção peculiar de pobreza, utilizando6se parâmetros culturais e sociais das pessoas das classes dominantes. Este pressuposto da universalidade da verdade e da existência de um “modelo civilizatório” é algo muito presente na elaboração e implementação de políticas públicas, especialmente as de combate à pobreza. Outros elementos, advindos das ciências da natureza, também se constituem bases epistemológicas das políticas públicas na modernidade. Com o avanço da ciência do domínio da natureza, a partir do método experimental, a física parece ser o primeiro ingrediente a se integrar no processo da formação das ciências humanas. A economia política foi constituída na Inglaterra no decorrer da Revolução Industrial e da glória de Newton, quando se tinha uma influência considerável da epistemologia positivista. A partir de então, grandes teóricos das ciências do desenvolvimento econômico, como Página % de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Adam Smith, Walras, Pareto e Saint6Simon desejavam ser o Newton da mecânica social da produção e do consumo de riquezas (Grinevald, 1975: 40). A construção das ideias das ciências humanas a partir das ciências da natureza fez com que esta, as ciências humanas, fosse assumindo ingredientes típicos das ciências naturais. O primeiro ingrediente que vem da física e que aparece claramente nos fundamentos das políticas públicas de combate à pobreza de hoje diz respeito à ideia que associa o progresso da humanidade à força e à energia. Em síntese, o pensamento de Newton cruzou as fronteiras do mundo natural para o social. Assim, os teóricos precursores da chamada “ciência do desenvolvimento humano”, como foi o caso de Saint Simon, Augusto Comte etc. passaram a associar o “progresso humano” à ideia do movimento, da força e da energia. Este pressuposto teórico tem fortes influências sobre a própria noção clássica de pobreza, como é o caso de associar esta condição às capacidades individuais, do Ser pobre e não da do Estar pobre (Boneti, 2001 e 2005), de pobreza como sinônimo de “atraso”, incapacidade de evolução. Esta interpretação deu origem não apenas à ideia segundo a qual o desenvolvimento social está condicionado ao desenvolvimento industrial, mas a que não existe singularidade no que se refere ao desenvolvimento social, ele é único e universal. Outro aspecto importante a ser considerado diz respeito à capacidade individual e/ou coletiva (da comunidade) de reação à condição de pobreza. A partir desta interpretação teórica o indivíduo ou mesmo uma comunidade por si só não se habilita a reagir contra a condição de pobreza. Como o da indústria, a força que impulsiona o desenvolvimento não nasce do mesmo corpo mas de uma força externa. É mesmo que dizer que existe um centro no qual as ideias dito científicas se encontram e dele nascem e impõem um padrão homogêneo a partir do qual devem se adaptar as singularidades. Isto é mesmo que dizer que comunidades ou pessoas que utilizam modelos singulares de produção da vida material e/ou social jamais podem se desenvolver socialmente a partir das suas próprias experiências, mas dependem do impulso da força de ideias e de tecnologias de comunidades externas. Esta é a razão pela qual o modelo clássico de políticas públicas de combate à pobreza se caracteriza como antidiferencialista. Isto faz com que nas ações de combate à pobreza se utilize pressupostos da existência de comportamentos, condições sociais, culturais, etc. com mais verdade que outros, e que os “outros” carecem de ajuda, que por si só não saem da estagnação. Isto é, adota6se o Página & de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS princípio que todo corpo imóvel precisa de um corpo em movimento para ser impulsionado. No âmbito deste processo de construção das ciências do domínio da natureza, especialmente no século XVIII, a ideia do movimento, sem ser na perspectiva de se ver o real como essencialmente contraditório, a partir do pensamento dialético, mas na perspectiva da evolução, originado especialmente da física e da biologia, faz com que se estipula como “normalidade” o comportamento individual e social associado ao movimento linear e progressivo. O próprio Marquês de Condorcet (1794), no século XVIII, no seu Esboço de um Quadro Histórico de Evolução do Espírito Humano, uma das principais obras teóricas de referência utilizada por Augusto Comte, além de sugerir o método das ciências naturais, como o caso da matemática, no estudo de problemas sociais, elabora os princípios da evolução humana como leis naturais e evolutivas. Assim, pode6se dizer que o grande avanço dos estudos no domínio da natureza teve uma influência muito grande no estabelecimento de parâmetros de “normalidade” do comportamento social e individual, o que se constituiu em importante parâmetro de elaboração e implementação de políticas públicas, especialmente as de combate à pobreza. Como exemplo, pode6se tomar a concepção darwinista (Charles Darwin), criando o preceito que como na natureza os organismos vivos tendem a se adaptar às dificuldades e criar estratégias para competir, na sociedade existe uma competição natural entre os indivíduos, se constituindo em seleção natural, permanecendo os mais aptos e os mais capazes e que no caso social estes devem se constituir em “modelos” para os “menos capazes”. Isto leva ao preceito da meritocracia como instrumento de seleção dos “mais capazes” no processo da ascensão social e o respeito às normas da hierarquia social, preceito este muito presente nas políticas públicas, especialmente as de combate à pobreza. Mas, considerando6se a noção clássica de políticas públicas de combate à pobreza, a ideia da técnica é um elemento que se apresenta preponderante. A técnica se apresenta em dois aspectos: no que se refere à avaliação do Ser pobre, pelo julgamento de não apropriação de conhecimentos técnicos e/ou de sua operacionalização, e como meta de implementação de ações de combate à pobreza. Até o século XVIII o apelo à construção de uma sociedade racional, com base na Razão, da ciência e da organização do Estado, tinha como fim a busca de mudança referindo6se ao teologismo e a organização social feudal. Mas muito especialmente no século XVIII o ingrediente Técnica se fortalece, Ciência e Técnica como sinônimo de mudança e redenção humana. Página de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES No século XIX porém, a perspectiva de mudança através da construção da ciência moderna e da organização do Estado Moderno associada à Razão, com a consolidação do Modo de Produção Capitalista e da burguesia como classe dominante, o apelo à Razão é alterado da busca da mudança para a busca da ordem. Como bem salienta Pierre Ansart (1970) o francês Saint6Simon, de quem Augusto Comte se tornou secretário, propôs que a busca da mudança histórica na construção da Razão estaria concluída e que o momento estaria para a busca da ordem como Razão e que esta seria representada por: Ciência – Técnica – Indústria – Ordem. Em outras palavras, a racionalidade estaria representada pela sociedade industrial, com base na ciência e na técnica. Esta formulação de Saint6Simon associa verdade (ciência) à utilidade, a técnica, operacionalizada pela indústria. Assim, consolida6se o preceito de verdade (ciência) representado pela Técnica. Ou melhor dizendo, ciência que é ciência, resulta em Técnica, e Técnica que é Técnica resulta em Indústria. Ainda no mesmo século, Augusto Comte se apropria da fórmula elaborada pelo seu mestre acrescentando ingredientes novos no conceito de Razão: Ciência – Técnica – Indústria – Ordem – Progresso (COMTE, 1954). Assim, neste contexto histórico, une6se o Estado Moderno e o modo de produção capitalista, representado pela indústria, através da Ciência Moderna e da Técnica. Com tais fundamentos epistemológicos originados da unificação entre a indústria moderna e o Estado Moderno, as políticas públicas de combate à pobreza, no formato clássico, guardaram ingredientes muito típicos da razão moderna. Em primeiro lugar, as Políticas Públicas sempre se apresentam imbuídas de uma racionalidade. Nos dias atuais ainda se utiliza a tradição iluminista de associar uma decisão política a uma verdade comprovadamente científica, como é o caso do processo da elaboração de uma política pública. Isto significa dizer que uma decisão política deve ser tomada com base em dados comprovadamente científicos ou técnicos da realidade na qual busca6se intervir com uma política pública. Neste caso, os dados técnicos têm caráter determinante mais que a vontade e o desejo da pessoa ou do grupo social envolvido. Em segundo lugar, além do caráter etnocêntrico e da influência da termodinâmica é preciso se considerar a ideia de universalidade e a infalibilidade da ciência como fundamento das Políticas Públicas de combate à pobreza. O caráter de cientificidade pressupõe universalidade. Isto é, as características do pensamento científico não se alteram dependendo do contexto histórico e da realidade local. De Página ' de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS igual forma não existe alteração da concepção de infalibilidade da ciência dependendo do momento histórico e da realidade local. Assim, concepção de infalibilidade que se tem em relação à técnica é outro aspecto que é desenvolvido e que passa a ter grande presença nas políticas públicas. Pela sua associação com a ciência, nascida desta, a técnica recebe um caráter de infalibilidade, da não possibilidade do erro. Ou seja, tudo o que é científico, que tem origem na ciência, não se questiona. Esta concepção acarreta implicações na elaboração e a implementação das políticas públicas em muitos aspectos. Um destes aspectos, que se pode citar como exemplo, é o caso da adoção de modelos de condições sociais, como é o caso da condição de pobreza, a partir de realidades ditas desenvolvidas, o que, em geral, pode6se praticar equívocos. Outro aspecto muito presente nos pressupostos das políticas públicas de combate à pobreza é o significado da industrialização. Esta, enquanto representante da técnica, originada da ciência, se constitui sinônimo de desenvolvimento social e de verdade, o que pode também se constituir em equívoco. Por último, necessário se faz considerar o caráter de utilidade do conhecimento científico. A conjugação da ciência (e da técnica) ao desenvolvimento econômico determina o aparecimento de outra característica do conhecimento científico, o da utilidade, ou seja, o de se considerar conhecimento científico aquele que é útil. Este pensamento também faz parte do processo histórico do desenvolvimento da ciência. Portanto se conclui que as políticas públicas de combate à pobreza na essência da Razão Moderna, apresentam6se com apenas dois agentes definidores, o meio produtivo e o próprio Estado, interligados pelo argumento de verdade e cientificidade através da técnica (Meio produtivo – Técnica – Estado). Assim, a técnica se apresenta na essência da epistemologia moderna como a representação da verdade, da justiça e da redenção humana. A Crise da Razão Moderna, as Políticas Públicas e a insurgência de processos e agentes sociais novos A Razão Moderna tendo como base a técnica começa ser questionada justamente com o advento de problemas sociais típicos da contemporaneidade como foi o caso das duas guerras mundiais, a destruição em massa graças a técnica, a crise ambiental, o abalo das identidades suprimidas pelo pressuposto da homogeneidade advindo com o procedimento técnico, a indiferença com as singularidades. Página ( de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES A crise da Razão Moderna se expressa através de uma dinâmica social insurgente a qual extrapola o âmbito institucional dos movimentos sociais transnacionais e debates acadêmicos para o mundo do Ser e da busca pela construção das identidades individuais e coletivas. No mundo acadêmico faz6se importante lembrar o debate originado desde o início do Século XX o qual ficou conhecido como a Teoria Crítica, da Escola de Frankfurt. Intelectuais como Max Horkhaimer, Theodor Adorno e Hebert Marcuse, Jürgen Habermas, etc., construíram notoriedade ao questionarem o pressuposto associando Razão à Técnica. Dentre muitas obras produzidas por este grupo de intelectuais sobre a temática citada, indispensável citar Técnica e Ciência como “ideologia” de Habermas (1970). Mas a dinâmica social contemporânea, ala própria extrapola os muros da institucionalização acadêmica onde o debate em torno da elaboração e da implementação de uma política públicas é feito entre os “agentes do poder” (como diz Lindblon 1981), quer seja nacional ou global, constituindo6se de um processo contraditório entre disputa de interesses pela apropriação de recursos públicos, viabilização do projeto do capitalismo global ou a luta pelo reconhecimento das singularidades, diferenças e identidades. Entende6se que os agentes do poder, os participantes da correlação de força, são constituídos não necessariamente, ao menos num primeiro momento, por representação de classe, mas sobretudo pela ordem do interesse específico, pela representação de empresas ou pela representação de organizações populares, por exemplo. Evidentemente que no cômputo geral as afinidades entre os interesses específicos acabam caracterizando uma conjugação de forças afinadas aos interesses específicos de classe social. Isso significa dizer que a relação direta e dicotômica entre diferentes classes sociais ou entre o Estado e a sociedade civil, deve ser relativizada. A afinidade de interesses específicos pode configurar um projeto de uma determinada classe social. A luta de classe se configura numa dinâmica geral quando as especificidades se congregam numa afinidade de classe. O que existe de novo nos dias atuais fazendo que a presença dos movimentos insurgentes assuma um novo caráter? O primeiro aspecto que fortalece a insurgência de movimentos novos são as especificidades que constituem o caráter das relações econômicas e sociais globais dos dias atuais. Enquanto uma sociedade globalizada, vive6se um momento quando múltiplas dinâmicas sociais em andamento são marcadas Página ) de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS por fortes tensões entre vetores que concorrem a homogeneizar as sociedades, e os que, ao contrário, tendem a valorizar a diferenciação social, ou seja, acentuar as diversas ordens de singularidades. Neste contexto, os movimentos insurgentes hoje se apresentam como resultado de um processo de mundialização no contexto de suas múltiplas formas e dentro de uma trama histórica complexa, derivados tanto do inédito quanto do insurgente. Neste caso, os movimentos insurgentes hoje não se apresentam unicamente de uma forma institucionalizada, como um movimento social organizado, mas também através de vontades, desejos e lutas pela reconstrução de identidades sociais. Neste contexto, o fim da guerra fria, a globalização da economia, e especialmente o aparecimento de movimentos insurgentes, leva6se a construir outro entendimento de Estado e Nação. Os tradicionais limites nacionais estão seriamente atingidos pela invasão da universalização das relações sociais e econômicas. Assim, os ditames de uma economia global é um importante condicionante das políticas públicas nacionais. Como bem lembra Manoel Castells (1999: 111), uma economia global é uma economia com capacidade de funcionar como uma unidade em tempo real, em escala planetária. Assim, um importante agente definidor de políticas públicas, com fortes influências sobre a noção clássica de pobreza e de ações do Estado sobre esta condição é o Projeto do Capitalismo Globalizado. Este se constitui de um agente definidor de políticas públicas nacionais, pois este projeto envolve uma correlação de forças de nível internacional, na qual figuram interesses econômicos e políticos. O projeto do capitalismo internacional se apresenta definido, discutido, avaliado e reavaliado anualmente pelos países considerados industrializados, no sentido de garantir sucesso às metas de expansão das relações econômicas globais. Este projeto em si se constitui de um agente definidor de Políticas Públicas nos Estados nacionais cuja atuação se materializa através de duas principais atuações que se apresentam interligadas: através das relações econômicas e através das relações políticas. As questões econômicas normalmente aparecem na dinâmica da correlação de forças do mercado global impondo regras e procedimentos que favoreçam os países presentes neste mercado com maior poder de barganha. Em relação à política, esta se configura no nível da organização Estatal, exteriorizada através da esfera diplomática, mas amarrada aos determinantes econômicos. Em outras palavras, existe uma ordem comandada por um projeto mundial de produção econômica e organização política que se apresenta ao Página * de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES mundo como um vetor hegemônico buscando homogeneizar as relações econômicas, tecnologias de produção, hábitos culturais e demais habilidades. Esta força política exerce poder sobre o caráter das políticas públicas de combate à pobreza dos países nacionais. O projeto do capitalismo global se apresenta como agente definidor de políticas públicas a partir do modelo clássico, utilizando6se do discurso racional e da capacidade técnica como parâmetros na elaboração e implementação de políticas públicas de combate à pobreza. Neste caso, o Estado e o meio produtivo se apresentam como agentes definidores preponderantes. Mas os movimentos insurgentes normalmente se apresentam como uma espécie de contra6hegemonia (conforme a denominação de Boaventura de Souza Santos, 2001: 45663), não mais a partir de uma luta direta e específica de classe, mas a partir de uma problemática específica. Busca6se o resgate da individualidade, da diferença e da singularidade, especialmente através dos movimentos insurgentes de caráter transnacionais, podendo se constituir institucionalmente em Movimentos Sociais ou simplesmente em ações insurgentes não institucionalizada mas de busca do resgate das identidades sociais. Assim considera6se que os movimentos insurgentes hoje se apresentam, em geral, contra6hegemônico, porque, diferente dos do passado que buscavam o atendimento de necessidades básicas como a sobrevivência física, a conquista da propriedade da terra, ou a defesa de interesses de classe, tendem ressaltar o que é singular, diferente, contrariando uma lógica hegemônica mundial, buscando alternativas novas de produção, de relações com a propriedade, de uma nova ordem na relação entre produção e meio ambiente, de busca de superação do convencionalismo da relação afetiva e sexual, etc. Trata6se do resgate da individualidade, da singularidade, da diferença, enfim, do sujeito. Conclui6se, portanto que ao mesmo tempo em que o projeto do capitalismo mundial se fortalece e torna agressivo em suas estratégias de expansão dos ganhos econômicos, com abertura de novos mercados consumidores e de trabalho qualificado (para quem a homogeneidade cultural e de habilidades técnica é de extrema valia), fortalece6se a busca da singularidade, a valorização da diferença e da individualidade com a redescoberta da socialização da produção e da vida em comunidade, de formas alternativas de sobrevivência, de diferentes organizações da sociedade civil. Estas Página %+ de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS ações, tanto de um lado quanto do outro, direta ou indiretamente, devem ser consideradas como agentes definidores das políticas públicas de combate à pobreza. Entende6se que esta nova configuração, que a princípio se apresenta como sendo das relações econômicas, mas que leva consigo a produção da cultura, os hábitos culturais e a simbologia social, é determinante no aparecimento de um novo perfil sobre a estrutura social. Neste novo perfil apresentam6se agentes outros participando da elaboração e implementação das políticas públicas. A participação destes novos agentes traz uma nova interpretação da organização de classes, das representações profissionais e sindicais, do papel do Estado, do papel das ONGs e dos Movimentos Sociais e, com isto, o aparecimento de um novo entendimento sobre a elaboração, gestão e caráter das políticas públicas de combate à pobreza. Estes outros agentes participantes desta correlação de forças, certamente não com tanto poder de barganha como as representações das elites econômicas, têm peso considerável na elaboração e implementação das políticas públicas de combate à pobreza. Conclusão: Como definir uma Política Pública de combate à pobreza e qual a dinâmica da sua elaboração e operacionalização na contemporaneidade Conclui6se portanto que apesar de que o fundamento epistemológico clássico das políticas públicas de combate à pobreza se deu em torno da Razão Moderna, tendo a técnica como parâmetro de referência de verdade, quando apresentavam6se como agentes definidores basicamente o meio produtivo e Estado, na contemporaneidade destitui6se o absolutismo da verdade técnica como parâmetro, apresentando6se ao lado do Estado e do meio produtivo novos agentes definidores de políticas públicas, trazendo ao debate novas lutas sociais como é o caso do resgate do sujeito e das identidades. Cria6se assim a necessidade de rever o modelo clássico de adotar a razão técnica como parâmetro de combate à pobreza e dar atenção ao resgate das identidades sociais. Portanto, a partir da organização social, política e econômica das últimas décadas, é possível entender como políticas públicas de combate à pobreza a ação que nasce no próprio contexto social, mas que passa pela esfera estatal como uma decisão de intervenção pública na realidade, quer seja para fazer investimentos ou uma mera regulamentação administrativa. Entende6se por políticas públicas de combate à pobreza o resultado da dinâmica do jogo de forças que se estabelecem no âmbito das relações de Página % de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES poder, relações essas constituídas pelos grupos econômicos e políticos, classes sociais e demais organizações da sociedade civil. Tais relações determinam um conjunto de ações atribuídas à instituição estatal, que provocam o direcionamento (e/ou o redirecionamento) dos rumos de ações de intervenção administrativa do Estado na realidade social e/ou de investimentos. Nesse caso, pode6se dizer que o Estado se apresenta apenas como um agente repassador à sociedade civil das decisões saídas do âmbito da correlação de força travada entre os diversos segmentos sociais, ganhando força, na contemporaneidade, agentes e ações insurgentes de reconstrução da identidade social. Bibliografia ANSART, Pierre (1970). Sociologie de Saint6Simon. Paris: Presses Universitaires de France. BONETI, Lindomar W (2010). Políticas Públicas por Dentro, 3. ed. Ijuí: Editora da Unijuí. BONETI, Lindomar W (2005). Ser ou Estar pobre? A Construção social da noção da desigualdade. Revista Contexto & Educação, v. 1, Série 62, p. 1156132. Ijuí: Editora Unijuí. BONETI, Lindomar W (2005). L´exclusion sociale en tant que trajectoire de perte d´accès à bien et des services. Revista Recherches Sociologiques, v. 20, p. 1496168. Louvain6la6Neuve. CASTELLS, Manuel (1999). O Poder da Identidade. (Coleção A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura, V. 2). 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A partir da recente publicação dos dados do IDEF 2010/2011, explora6se as limitações das fontes estatísticas para medir a pobreza em Portugal. Para realizar este trabalho, mobilizam6se dados estatísticos do IDEF 2005/2006 e 2010/2011, do ICOR (200362010), assim como outras estatísticas. As conclusões vão no sentido da manutenção do essencial das principais categorias sociais afetadas pela pobreza, embora com um aumento do seu volume e da sua intensidade. Discute6se as condições para a emergência, pela primeira vez em Portugal, de uma nova categoria social de indivíduos em situação de pobreza, os novos pobres. Palavras?chave: Pobreza, Medição, Evolução, Crise Página %& de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Introdução A análise da pobreza em Portugal chegou a um impasse, provocado por dois processos concomitantes, cujo efeito combinado é o de ocultação da evolução e características da pobreza. Referimo6nos, em primeiro lugar, às grandes transformações societais, com amplas repercussões entre os mais despossuídos, que têm perpassado o país e, em segundo, às evidentes debilidades estatísticas e concetuais dos principais indicadores usados pelo estado português e pela UE para medir a pobreza. De ambos estes processos daremos conta detalhada neste texto. Desde as primeiras análises sobre o assunto, desenvolvidas a partir dos anos 80, através dos estudos da Cáritas Portuguesa coordenados por Bruto da Costa e Manuela Silva (1985, 1989), passando pelo recrudescimento do interesse pelo problema com a introdução do Rendimento Social de Inserção em 1997, as estatísticas oficiais disponíveis para lidar com a pobreza caracterizaram6se sempre pela sua escassez. De destacar, a introdução, em 2003, do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento/Statistics on Income and Living Conditions (ICOR EU6SILC) que substitui o Painel dos Agregados Domésticos Privados da União Europeia (Batista e Perista, 2010: 41), instrumento que, desde 1995, fornecia resultados sobre a pobreza (Capucha, 2005: 106). Complementarmente, a análise da pobreza tem6se feito a partir dos dados do Inquérito às Despesas das Famílias (IDEF) e seus antecessores (Inquérito aos Orçamentos Familiares, IOF e Inquérito às Receitas e Despesas das Famílias, IRDF, Capucha, 2005: 110 e Rodrigues, 2007: 122), tendo este inquérito a desvantagem de ser quinquenal e a vantagem de ser estatisticamente significativo para as diferentes regiões do país (NUTS II). Este texto focaliza6se nestes instrumentos, nos seus resultados e na exploração das suas limitações, em ordem a abrir a porta à sua utilização crítica e ao uso de outras formas de aferir o problema da pobreza em Portugal, tendo em conta as transformações societais (ou mudanças sociais) que referimos. Página % de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Constatação de partida: a taxa de pobreza em Portugal quase não mudou desde 2008 Se analisarmos as principais fontes estatísticas oficiais sobre a pobreza em Portugal podemos realizar duas constatações, relativamente à sua evolução recente (200562011): os dados do IDEF mostram6nos uma descida da taxa de pobreza e os do ICOR uma descida, seguida de subida e de estagnação, verificando6se esta última tendência nos anos mais recentes. Gráfico 1. Taxa de risco de pobreza IDEF (2005/2006 e 2010/2011) 25 21 20 19 19 17 16 15 16 13 12 10 15,3 14,6 14,2 Centro Lisboa 2005/2006 5 17,9 16,1 14,8 Alentejo Algarve R.A. Açores R.A. Madeira Total 2010/2011 diferença 16,1 11,3 0 Norte -5 Fonte: IDEF 2005/2006 e 2010/2011 De forma aprofundada, podemos verificar através dos dados IDEF que de 2005 (ano de recolha dos dados da edição 2005/2006) para 2009 (ano de recolha dos dados da edição 2010/2011) a pobreza desceu no país, de um valor de 16% para 14,8%. Esta é uma descida que, de forma mais ou menos acentuada, se verifica em todas as regiões, com a exceção de Lisboa e Vale do Tejo. De notar que, nesta última, a subida da taxa de risco de pobreza de 12% para 14,2% não lhe retira o estatuto de uma das regiões com a menor taxa do país, só superada, em 2010/2011, pelo Algarve. Contudo, é precisamente a partir de 2009 que os efeitos mais agudos do agravamento da crise financeira, económica e social se começam a sentir. Assim, para termos informações sobre os efeitos desta crise no aumento da pobreza devemos recorrer aos dados do ICOR. Página %' de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Gráfico 2. Evolução da taxa de risco de pobreza em Portugal, em % da população residente (2003? 2011) 21 20,5 20,4 20 19,5 19,4 19 18,5 18,5 18,5 18,1 18 17,9 17,9 18,0 18,0 17,5 17 16,5 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 Fonte: INE, dados do ICOR Os dados do ICOR apresentam uma redução da pobreza no país, de um valor de 20,4% em 2003 para 18,0% em 2011. Mais detalhadamente, pode observar6se que, na segunda metade do período em análise, se verifica um aumento significativo entre 2006 e 2007, e uma estabilização (ou estagnação) nos anos mais recentes, entre 2008 e 2011. Pode alegar6se que as diferentes tendências que as duas fontes apresentam respeitam ao facto de se reportarem a períodos temporais que não são totalmente coincidentes. Nesse sentido, apresentamos abaixo os valores das duas taxas para os anos em que coincidem, 2005 e 2009 (correspondendo aos anos em que os dados IDEF foram recolhidos): Quadro 1. Comparação taxas de risco de pobreza ICOR e IDEF, 2005 e 2009, Portugal Fonte 2005 2009 Tendência ICOR 18,5% 17,9 Descida 60,6 IDEF 16% 14,8% Descida 61,2 Diferença entre as fontes 2,5% 3,1% 6 Fontes: ICOR 2005 e 2009 e IDEF 2005/2006 e 2010/2011 Quer dizer, os dados das duas fontes apresentam a mesma tendência de descida entre os dois anos em análise. Contudo, ficamos em presença de um prolema adicional, verifica6se uma taxa de risco de pobreza maior nos dados do ICOR do que nos do IDEF. Consideramos que isso se deve ao facto da metodologia seguida na recolha de dados no Página %( de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES IDEF ser mais robusta, pois lida melhor com o rendimento não monetário, algo a que corresponde sensivelmente um quinto, 20%, do total dos rendimentos das famílias no IDEF (Rodrigues, 2010: 123) 2 . Estamos, portanto, no campo das diferenças nas metodologias de recolha de dados entre estes dois inquéritos (mas não na fórmula de cálculo da pobreza). Voltando à questão da tendência da taxa de risco de pobreza. Se não possuímos dados para o IDEF posteriores a 2009, os dados do ICOR mostram uma estabilizam da taxa entre 2008 e 2011, como vimos. Contudo, poder6se6ia pensar (e colocar como hipótese) que o aumento da taxa de risco de pobreza se acentuou em Portugal com o agravamento da crise económica, algo que se deu em 2008. E poder6se6ia acrescentar que a implementação de medidas políticas tendo em vista a redução do deficit, algo que se intensificou a partir de 2009, tornaria esse crescimento mais intenso. Contudo, manifestamente, não é isso que nos é dado pela taxa de risco de pobreza ICOR6 EUSILC. A primeira questão que se coloca é: até que ponto os efeitos da crise no aumento da pobreza não têm sido sobrevalorizados, por via da sua exacerbação através da luta política e da necessidade jornalística de notícias com impacto? Por outras palavras, se o aumento da pobreza parece estar presente nas agendas jornalísticas e política, corresponderá esse efeito de agendamento ao aumento do número de pessoas em situação de pobreza? Para percebermos a dissonância entre a inamovibilidade da taxa de risco de pobreza oficial e a perceção pública de que a pobreza está a crescer, devemos consultar indicadores que nos permitam perceber a questão para além dos termos que produziram esta dissonância. MAS, os indicadores indiretos de pobreza não param de se degradar A tendência observada de manutenção da taxa de risco de pobreza contrasta flagrantemente com alguns importantes indicadores indiretos de pobreza que podemos observar. Desde logo, os indicadores de cariz subjetivo. Referimo6nos à perceção dos responsáveis das instituições de combate à pobreza e à exclusão social. As declarações públicas destes responsáveis têm sido, ao longo dos últimos anos, no sentido de reportar 2 O que está em causa no rendimento não monetário é, essencialmente, a autolocação, isto é, autoavaliação do valor hipotético de renda de casa pelos agregados proprietários ou usufrutuários de alojamento gratuito INE (2012: 43). Página %) de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS um aumento dos pedidos de ajuda, um esgotamento dos serviços e apoios que disponibilizam e o crescimento da pobreza, mormente, afetando indivíduos que, em muitos casos, pertenceriam, na sua avaliação subjetiva, às classes médias. Este tipo de afirmações é comum a todas as declarações deste género, sejam produzidas por responsáveis de instituições de âmbito mais geral, como a EAPN, a AMI ou a Cáritas Portuguesa, sejam das instituições cujo âmbito geográfico é mais circunscrito, como os centros sociais e paroquiais ou as associações locais. Pode alegar6se que, apesar de tudo, esta perceção dos responsáveis das instituições não é um bom indicador do aumento da pobreza, dado que não há nelas qualquer preocupação ou fundamentação estatística, isto é, pode considerar6se que declarações deste tipo não são representativas da situação social do país, não passando de um efeito de agendamento dos media, ou de um efeito de pack jornalism (jornalismo de rebanho). Portanto, pode6se alegar que, em si, esta fonte mais não faz do que fundar a dissonância acima mencionada, entre as agendas políticas e jornalísticas e as fontes estatísticas. Um segundo indicador respeita ao grande conjunto de mudanças legislativas que, desde 2008, se têm traduzido em cortes nas prestações sociais, precisamente dirigidas aos indivíduos mais vulneráveis à situação de pobreza ou àqueles que estão em situação de pobreza. Referimo6nos ao abono de família, subsídio de desemprego, baixas médicas, complemento solidário para idosos (CSI) e rendimento social de inserção (RSI), assim como às pensões. Vejamos o exemplo do RSI. As grandes transformações legislativas que tem vindo a sofrer ao longo do tempo foram sempre no sentido da redução do volume financeiro transferido para os indivíduos e da redução do número de beneficiários (e, logo, do volume financeiro global consignado). Como alterações mais significativas assinale6se i) a passagem de RMG (Rendimento Mínimo Garantido) para RSI em 2004, algo que levou a uma maior complexidade burocrática no requerimento e processamento da prestação; ii) a mudança legislativa de Junho de 2010 (D.L. 70/2010), tendo implicado a redução das prestações por via da eliminação dos apoios complementares; iii) a mudança legislativa que teve lugar em 27 de Junho de 2012 (D.L. 133), onde se reduziu os montantes máximos a atribuir por família e se instituiu a obrigatoriedade prévia do acordo de inserção, assim como o fim da renovação automática, medidas que vêm complexificar a prestação e adiar o seu recebimento, levando a menos beneficiários (e, logo, a menos custos). No mesmo sentido se pode Página %* de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES interpretar, ainda na mudança legislativa de 2012, a inclusão de todos os habitantes da mesma casa no cálculo da prestação, algo que leva à redução do número de beneficiários e do valor das prestações; e, finalmente, iv) a redução do valor das prestações consignada no orçamento de 2013, via diminuição em 6% da percentagem do Indexante de Apoios Sociais (419,22 euros), passando para 42,495% deste valor. Contudo, pode alegar6se que boa parte destas prestações sociais, como o RSI, são dirigidas a quem já está em situação de pobreza, pelo que o efeito que têm é o de aumentar a intensidade da pobreza (agravando as condições de vida dos indivíduos pobres, afastando6os, para baixo, do limiar de pobreza) mas não têm impacto no volume de indivíduos em situação de pobreza e, logo, na respetiva taxa. Contudo, nem todos os indivíduos abrangidos por estas prestações sociais são, à partida, pobres e a redução dos seus montantes ou perca do direito a usufruir delas pode atirar os indivíduos para os braços da pobreza em números suficientemente grandes para que isso se reflita nas estatísticas. Note6se que estamos a falar de uma fonte de rendimento dos portugueses que é responsável por 23,9% do total (INE, 2012), a segunda maior fonte, logo a seguir aos rendimentos do trabalho. Mais, as transferências sociais (incluindo pensões), ainda segundo o INE (2012b: 263), reduziram a pobreza em 17,2% em 2010, valor que mostra a importância deste tipo de rendimento na redução da pobreza e o impacto potencial da diminuição dos valores a atribuir por pessoa no seu aumento. Não obstante as controvérsias à volta da perceção dos dirigentes das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) e dos efeitos dos cortes nas prestações sociais no aumento da pobreza, existem outras fontes que vão no mesmo sentido e que são inequivocamente representativas da situação portuguesa. Em primeiro lugar, o caso do desemprego. O valor do 4º trimestre de 2012 foi de 16,9% (INE, 2013), o maior valor desde que há registo em Portugal e muito longe do valor de 7,6% de 2008 (Pordata, 2013). Todavia, pode6se alegar que, nos últimos anos em Portugal, não tem existido ligação entre aumento do desemprego e aumento da pobreza, pelo contrário, como podemos ver no gráfico abaixo. Página &+ de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Gráfico 3. Evolução da taxa de risco de pobreza em Portugal, em % da população residente (2003? 2011) comparada com a taxa de desemprego (2003?2012) 25,0 20,0 20,4 19,4 18,5 18,1 18,5 17,9 17,9 18,0 18,0 15,7 15,0 12,7 10,8 10,0 t. pobreza t. desempego 9,5 6,3 6,7 7,6 7,7 8,0 7,6 5,0 0,0 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 Fontes: Fonte: INE, dados do ICOR e Pordata, dados do INE, inquérito ao emprego A independência entre a taxa de desemprego e a taxa de risco de pobreza é muito evidente. Contudo, este não deixa de ser um resultado estranho: se o rendimento dos portugueses depende, em grande parte do trabalho com 54,5% do total dos rendimentos das famílias a provirem desta fonte (sendo que isso é especialmente verdade para os que se encontram no primeiro quintil de rendimento, os mais pobres, INE, 2012: 52 e 56), não se percebe como é que o crescimento exponencial da taxa de desemprego, pelo menos desde 2009, não tem qualquer efeito no crescimento da taxa de risco de pobreza, tanto mais que é concomitante com a redução das prestações sociais, a outra grande fonte de rendimento dos portugueses. Uma segunda fonte de cariz objetivo que contradiz a tendência de estabilização da taxa de risco da pobreza respeita aos dados do Produto Interno Bruto. O valor relativo a 2012 representa uma quebra anual de 3,2% na estimativa rápida do INE (2013b) e os dados referentes aos últimos anos mostram um processo de quase estagnação ou de quebra do produto, como se vê no gráfico seguinte (o mesmo acontecendo com o PIB per capita, cf. Pordata, 2013c): Página & de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Gráfico 4. Evolução da taxa de risco de pobreza em Portugal, em % da população residente (2003? 2011) comparada com a variação do PIB (2003?2012) 25 20 20,4 19,4 18,5 18,1 18,5 1,56 0,78 1,45 2,37 17,9 17,9 18,0 18,0 15 10 5 0 -5 -0,91 2003 2004 2005 2006 2007 1,94 -0,01 2008 2009-2,912010 2011-1,552012-3,2 Taxa de crescimento do PIB a preços constantes t. pobreza Fontes: Pordata, INE–BP 6 Contas Nacionais Anuais (Base 2006) e INE, ICOR Acrescente6se que os dados referentes ao PIB per capita em paridades do poder de compra para 2011 mostram uma redução de 2,9% do valor português face à média comunitária (INE, 2012c), trata6se de mais um indicador de degradação da condição económica dos portugueses, primeira condição para o aumento da pobreza. No mesmo sentido, os dados do INE sobre os custos do trabalho (INE, 2013c) mostram que estes se reduziram em 14,9%, no 4º trimestre de 2012, em relação ao mesmo período de 2011. Sendo que no 3º trimestre, esta variação tinha sido de 614,2%, também face ao trimestre homólogo de 2011. Ora, se os custos de trabalho se estão a reduzir, e em valores significativos, isso quer dizer que os portugueses têm menos rendimentos do trabalho, algo que, como vimos, representa mais de metade dos rendimentos totais das famílias portuguesas. O mesmo se tinha já verificado em 2011, por relação com 2010, em que no 4º trimestre os custos com o trabalho tinham6se reduzido em 6,5%. Mais ainda, um estudo recente da Comissão Europeia refere que, de entre os países com maiores problemas orçamentais, foi Portugal quem aplicou mais medidas com impacto nos mais vulneráveis à pobreza (CE, 2011: 18, 20, 23), levando a um agravamento (estimado) da pobreza em 2009 e afetando proporcionalmente os mais idosos e as crianças (e jovens). Os recentes aumentos de impostos associados ao congelamento de salários (e até à sua redução) e ao aumento dos bens e serviços essenciais vêm, também retirar rendimentos aos portugueses e, como tal, aumentar a probabilidade de os indivíduos se tornarem pobres. Página & de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS O conjunto de indicadores que acabámos de revisitar permite verificar que as principais fontes de rendimento dos portugueses, as transferências sociais e os salários estão em quebra, e com menos rendimento a probabilidade de pobreza aumenta, especialmente no caso do desemprego (dado que este significa um corte radical nos rendimentos, especialmente quando se acaba o subsídio de desemprego). A estes indicadores devemos, ainda, juntar o grande aumento da carga fiscal que se verificou em Portugal nos últimos anos, quer em sede de IVA, quer de IRS. Como explicar esta contradição? A questão que se coloca é, portanto, a de que não é crível que a pobreza não se tenha agravado em Portugal nos últimos anos, mau grado a tendência de estagnação exibida pela taxa de risco de pobreza ICOR6EUSILC. O que justifica o comportamento desta taxa? Podem ser invocadas dois tipos de explicações, as que se desenvolvem no quadro concetual que fundamenta a taxa em causa e as que assumem uma posição crítica em relação a este quadro. a) Explicações dentro do quadro concetual da definição da pobreza I. Redução do limiar oficial da pobreza Relativamente às explicações dentro do quadro concetual da definição da pobreza, centremo6nos no período de 2008 a 2011, os anos em que a taxa estagna. Podemos encontrar o início da atual crise financeira, económica e social europeia em 2008 (sendo que Portugal já estava em crise antes disso, a crise europeia veio agravar, em muito, a nacional), contudo, o crescimento da taxa de desemprego e as medidas de corte na despesa com forte impacto no agravamento das condições de vida dos portugueses pertencentes às categorias sociais mais baixas não foram imediatamente tomadas e os seus efeitos não foram imediatamente sentidos, vimos, no estudo da Comissão Europeia (CE, 2011), que os primeiros impactos se verificaram em 2009, ano em que também a taxa de desemprego mostra uma aceleração do seu agravamento. A primeira explicação para a dissonância entre os indicadores indiretos e os resultados da taxa ICOR tem a ver com as limitações da definição oficial de pobreza: de 2009 para 2010, o limiar da pobreza, por via da redução do PIB (e, portanto, do Página &% de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES rendimento dos indivíduos em cuja mediana se baseia o cálculo da linha de pobreza), diminuiu, passando de 434 para 421 euros mensais (OD, 2012). É de esperar que o mesmo se tenha verificado noutros anos deste período. Por outras palavras, a definição oficial de pobreza é relativa ao rendimento mediano do país, se este baixa, como vem a acontecer em Portugal, também baixa o limiar de pobreza contido na definição oficial de pobreza. Desta forma, minimiza6se o número de pobres em função do empobrecimento geral do país. Existem duas consequências a retirar deste raciocínio: Em primeiro lugar, indivíduos com rendimentos ligeiramente abaixo do limiar de 2009 deixam de ser pobres em 2010, sem que o seu rendimento mude, mudando apenas o limiar de pobreza, para baixo, na escala dos rendimentos. Em segundo, indivíduos que viram os seus rendimentos reduzidos em 2010 e que, pelos critérios de 2009, entrariam em situação de pobreza, ficam acima desta linha em 2010. Estes dois raciocínios podem ser aplicados a vários dos restantes anos do período em que se verifica a estagnação da taxa 200862011. II. Degradação das condições de vida das classes médias que, apesar de tudo, não atira as pessoas das classes médias para baixo do limiar de pobreza Todavia, estas explicações para a manutenção da taxa de pobreza nos últimos anos não parecem ser suficientes para justificar a estagnação face a um agravamento significativo da situação social, como foi acima explicado, tanto mais que estamos perante uma descida relativamente pequena do limiar de pobreza, no caso em apreço, 13 euros3. Assim, coloca6se a hipótese de que parte da manutenção da taxa de pobreza é explicado pelo facto do agravamento da situação social e económica atingir os indivíduos das classes médias, levando ao seu empobrecimento e degradação, mas conservando6os acima do limiar de pobreza. Aliás, a hipótese da vulnerabilidade e da fragilização da classe média portuguesa foi recentemente colocada, também a propósito da atual crise (Estanque, 2012: 101). 3 Sem esquecer que, para os indivíduos com rendimentos muitos baixos, uma quantia percebida como pequena para outras categorias sociais assume, para eles, um outro valor, quer subjetivamente, quer no contexto do seu rendimento. Nesse sentido, recorde6se que 13 euros representam 3% do limiar de pobreza em 2009 e uma taxa de variação negativa 200962010 de 62,9%. Página && de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Não obstante, a força do aumento do desemprego (associada aos cortes nas prestações sociais, à queda do PIB, a outros fatores como o aumento dos impostos e à perceção dos dirigentes das IPSS), implica que a hipótese de fragilização das classes médias conservando rendimentos que lhes permitam manterem6se à tona de água, não nos parece suficiente para explicar a imobilidade da taxa de risco de pobreza. b) Explicações críticas do quadro conceptual da definição oficial de pobreza I. Crítica da definição oficial de pobreza É, portanto, necessário outro tipo de explicações para justificar a estagnação da taxa de risco de pobreza ICOR, a partir da crítica aos conceitos usados. A problematização do conceito de pobreza (e de exclusão social), assim como a sua medição têm sido alvo de um elevado número de reflexões4, contudo, as transformações recentes do problema em Portugal, das quais pretendemos dar conta neste texto, condicionam o alcance dessas discussões, dado que modificam substancialmente o substrato empírico que as enquadra. Neste sentido, pretendemos, na sequência de outros textos (Diogo, 2006), adicionar outras explicações ao debate. A primeira dessas explicações tem a ver com a própria definição oficial de pobreza. II. Crítica do próprio conceito de pobreza A questão central respeita às limitações do conceito de pobreza presente no IDEF e no ICOR. Qualquer que seja a definição escolhida recorta6se uma categoria social que é, em larga medida, arbitrária e engloba um conjunto muito variado de pessoas (Glewwe e Van der Gaag, 1989: 2, Pereira, 2010a: 5 e Townsend, 1993: 86). O número e as características dos indivíduos em situação de pobreza variam consideravelmente em função da definição escolhida, pelo que as políticas sociais de mitigação e combate adotadas dependem, então, de fatores arbitrários, característica que não ajuda à sua boa execução. Na definição oficial de pobreza, proveniente da União Europeia, em particular do Eurostat (que é a presente no IDEF e no ICOR), considera6se pobre quem tem um 4 Para uma revisão crítica dessas referências veja6se Capucha (2005: 65 e ss) e Pereira (2010b: 23 e ss). Página & de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES rendimento abaixo de 60% da mediana do rendimento nacional por adulto equivalente. De notar que para o Eurostat está em causa o limiar de risco de pobreza e não o limiar de pobreza, embora, na prática, seja a mesma coisa. Esta definição é perfeitamente arbitrária, não havendo um fundamento científico claro para a sua adoção (D’Agostino & Duvert, 2008: 15). E, além disso, fornece apenas algumas informações sobre a pobreza, de caracter mais descritivo (Capucha, 2005: 71), não dando conta da sua multidimensionalidade e da sua relação com as desigualdades mais amplas que estruturam as sociedades. Neste sentido, têm sido apresentadas propostas para a sua substituição por conceitos com maior fundamentação teórica e social (vide, por exemplo, Pereira, 2010a e 2010b). Elvira Pereira (2010a: 9) estabelece, aliás, o limiar da pobreza em 75% do rendimento mediano por adulto equivalente (para Portugal), a partir dos recursos necessários para satisfazer as necessidades básicas, como alternativa à definição adotada pelo Eurostat. Acresce que será muito difícil, em qualquer circunstância, medir, dar conta e expressar um problema social tão complexo como a pobreza num único número síntese. É, em parte, tendo em conta esta dificuldade que nas estatísticas proporcionadas pelo ICOR se juntou as ideias de privação material e de pessoas entre 0 e 50 anos vivendo em agregados familiares com baixa intensidade de trabalho (cf. por exemplo, Eurostat, 2012). III. Competição com os conceitos de senso comum As consequências da fragilidade desta definição estão relacionadas com a ideia de que a pobreza é muito mais do que uma categoria analítica. Com efeito, em primeiro lugar, a simples substituição das noções de senso comum relativas à pobreza, através do processo de rutura epistemológica, não produz os resultados esperados. No caso vertente, as noções de senso comum são parte da realidade social e contribuem para a sua construção, dada a forma como fundamentam as decisões e ações do atores, quer numa perspetiva individual, quer enquadrados em instituições. As categorizações do senso comum, pelo menos no que respeita às ciências sociais, são parte importante da realidade social que se procura compreender (Ogien, 1983: 18 e ss e Thomas, 1928, cit. Bühler6Niederberger, 2010a:156), pelo que não faz sentido produzir um processo de rutura que as ignore. Quer dizer, se o senso comum não é o motor das ciências sociais é boa parte da realidade que se pretende estudar, portanto, a rutura é Página &' de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS com uso do senso comum como instrumento de compreensão da realidade, mas ele existe no trabalho das ciências sociais como objeto. Isto significa que as medições de pobreza que não contam com a perceção dos indivíduos estão, à partida, fragilizadas. Em segundo lugar, a substituição de uma noção de senso comum por uma noção construída no seio da ciência, sobretudo com fracas bases teóricas, implica que esta definição “científica” alternativa vá concorrer com as definições do senso comum na construção da realidade social. No limite, as noções de cariz científico são apropriadas pelo senso comum e tornam6 se, elas próprias, parte da realidade que se pretende explicar (Capucha, 2005: 66 e Diogo, 2006). Neste sentido, assumem relevo dois exemplos de grande interesse, por um lado, a apropriação dos termos da psicanálise, pelos indivíduos, incorporando6os na sua linguagem do dia6a6dia e nas suas representações sociais, algo que foi estudado por Moscovici (1976 [1961]), por outro, o processo de produção e reprodução das classes sociais nas sociedades ocidentais, dado que este processo contou com um amplo contributo teórico da sociologia, apropriado pelos indivíduos e responsável por boa parte da configuração concreta das classes sociais e pelo seu devir histórico (Accardo, 1991). Portanto, pode6se colocar como hipótese que um dos efeitos desta definição oficial de pobreza é o de contribuir poderosamente, através do mecanismo da categoria oficial (Diogo, 2007), para rotular como pobres os indivíduos por ela abrangidos contribuindo para a sua menorização social e esquecendo outros que, por algum motivo, não são abrangidos mas que passam pelo mesmo tipo de dificuldades. Sobre esta última possibilidade note6se que, como Eduardo Vitor Rodrigues tem afirmado nas suas intervenções, os membros das classes médias que viram os seus rendimentos diminuírem e o seu nível de compromissos manter6se (designadamente créditos vários) ficam com um rendimento disponível que os pode colocar abaixo do limiar de pobreza, nas dificuldades do dia6a6dia que sentem, embora, formalmente, estejam acima. IV. Centramento nos pobres versus centramento nas desigualdades sociais Finalmente, a opção metodológica pela análise das problemáticas sociológicas da estratificação social e das desigualdades sociais a partir da ideia de pobreza encerra uma opção política e limita cientificamente a análise. Este problema não está relacionado Página &( de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES especificamente com a definição de pobreza do Eurostat mas com todas as definições que se possam encontrar deste conceito. Em relação à limitação científica, a pobreza é uma questão que tende a ser abordada na perspetiva dos indivíduos: da relação dos indivíduos com as instituições, dos problemas dos indivíduos, dos efeitos da pobreza nos indivíduos, das características dos indivíduos… enfim, implica o risco de se aceitar uma visão do mundo em que o funcionamento da sociedade está focado nos indivíduos que estão abaixo de um certo patamar num conjunto de escalas sociais relevantes (Paugam, 1991), com destaque para a questão dos rendimentos e do consumo. Ora, os indivíduos que sofrem da situação de pobreza são apenas uma parte dos processos societais que os levaram aí e para compreender a pobreza (e poder atuar sobre ela) não basta cingir6nos aos indivíduos nessa situação, sendo necessário trabalhar as questões das desigualdades sociais e das formas extremas de estratificação social. Por outras palavras, uma teoria sobre a origem, características e efeitos sociais da pobreza não é possível sem o seu enquadramento numa teoria mais geral de compreensão e explicação da estratificação e das desigualdades sociais. Centrar a pobreza nos pobres e esquecer ou minorar o papel da sociedade é algo que é induzido pela própria ideia de pobreza. Só a consciência crítica dessa limitação pode levar a abordagens que tenham em conta as dimensões societais desta problemática e, dessa forma, construir um conhecimento sociológico pertinente sobre a realidade social. A definição oficial de pobreza não contem qualquer reporte a este enquadramento societal da pobreza, sendo, por isso, limitativa da sua caracterização e explicação. V. Opção política O estudo da pobreza sem ter em conta as dimensões societais acaba, em consequência, por ser uma opção política, dado que se encerra o problema nos indivíduos em situação de pobreza não problematizando o papel na produção e reprodução da pobreza destas dimensões societais, e dos indivíduos e instituições que lhes dão corpo, desde logo as elites, as classes dominantes e as corporações (conceitos que se intercetam mas que não se confundem). Assim, corre6se o risco de poupar a sociedade a uma análise crítica do seu funcionamento, construindo um objeto de investigação que, muito provavelmente, não dará boa conta da realidade social. Não se trata de uma fatalidade, mas estamos perante Página &) de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS uma inclinação a agir (mobilizando a expressão que Bourdieu criou com outros propósitos) que se encontra corporizada na definição oficial de pobreza. Conclusão: O lugar dos novos pobres O que fazer, portanto com os dados atuais? Podemos confiar neles? A queda do PIB e o crescimento exponencial do desemprego, concomitantemente com a quebra dos rendimentos dos portugueses, seja com origem em transferências sociais, seja com origem nos salários, assim como os aumentos dos impostos, a redução das transferências sociais e a perceção dos responsáveis de instituições de apoio social, são os grandes indicadores que nos permitem inferir a existência de grandes transformações sociais em curso na sociedade portuguesa. Estas transformações vão, inequivocamente, no sentido do empobrecimento geral e a taxa oficial de risco de pobreza não dá conta disso. Neste sentido, a resposta à questão de se podemos confiar nos dados atuais é negativa. Infelizmente, estes números são os que temos sobre a pobreza em Portugal e o que nos dizem é que esta continua a ser o que se pode designar como um problema estrutural (Batista e Perista, 2010), afetando em maior proporção os mais velhos, os mais novos, os agregados mais numerosos e os mais pequenos, os que estão menos relacionados com o emprego e os menos escolarizados (Batista e Perista, 2010: 5 e ss, Capucha, 2005: 113, Diogo, 2012, Rodrigues, 2007: 195 e ss). Esta estruturalidade da pobreza portuguesa significa que ela é, em boa parte, intergeracional e afeta de forma persistente no tempo os indivíduos pobres (pobreza tradicional). O que estes valores não nos permitem perceber é se existem novos pobres. As transformações societais que temos vindo a atravessar de forma acelerada nos últimos anos, e os seus efeitos na estrutura de classes, ainda estão por estudar. Contudo, parece inegável que a crise, nos seus vários componentes, está a levar à pobreza numerosos indivíduos (e famílias), mesmo os que, pertencendo às classes médias, estavam mais ao abrigo deste fenómeno. Enfim, o diagnóstico sobre as debilidades dos dados que nos são fornecidos pela definição e taxa oficiais de pobreza (IDEF e, sobretudo, ICOR) parece sólido mas as explicações para as falhas encontradas nesta taxa precisam, claramente, de serem aprofundadas com estudos mais detalhados sobre o problema, quer intensivos, quer extensivos. Estes estudos permitiriam perceber mais claramente o que está mal com a Página &* de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES taxa de pobreza e, mais relevante, perceber como se caracteriza e como tem evoluído a pobreza em Portugal. Quer dizer, sem estes estudos não podem ser produzidas políticas eficientes e eficazes de mitigação dos efeitos da pobreza e de redução do número de pobres. E sem estes estudos, todas as discussões teóricas sobre a definição da taxa de pobreza são muito limitadas, porque não estão ancoradas numa realidade em mutação. Bibliografia Accardo, Alain (1991). Initiation à la sociologie: L'illusionnisme social – Une lecture de Bourdieu. Bordeau:, Le Mascaret, (ed. reformulada, 1ª ed, 1983). Batista, Isabel e Perista, Pedro (2010). “A estruturalidade da pobreza e da exclusão social na sociedade portuguesa: conceitos, dinâmicas e desafios para a acção”. In: Fórum Sociológico, nº 20, pp. 39/46. Bühler6Niederberger, Doris (2010a). “Childhood Sociology: Defining State of the Art and Ensuring Reflection”. In: Current Sociology, vol. 58, nº 2, March, pp. 155/164. Capucha, Luís (2005). Desafios da Pobreza. Oeiras, Celta. Comissão Europeia, CE (2011). The Distributional Effects of Austerity Measures: a Comparison of Six EU Countries. Comissão Europeia. Costa, Alfredo Bruto da, Silva, Manuela, Pereirinha, José e Matos, Madalena (1985). 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Serviços sociais e atendimento integrado: modelos e perspetivas Cecília Dionísio CesNova Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa cec.dionisio@gmail.com Resumo Face a um contexto de mudança social com a tendencial complexificação dos problemas sociais, aliado por sua vez ao imperativo de racionalização de recursos, as novas politicas públicas enfrentam desafios de Governação que ultrapassam as teses de pluralismo assistencial, verificando6se uma re6definição das dinâmicas e dos modelos de intervenção social que implicam responsabilidades partilhadas. Visando contribuir para uma reflexão alargada sobre de que forma os agentes produtores de ação pública se rearticulam, nomeadamente na dinamização de respostas inovadoras orientadas para realidades contemporâneas, apresentamos uma síntese teórica ao nível da conceptualização das políticas públicas com enfoque nas lógicas de ação dos atores e, a partir de uma sistematização exploratória de diferentes práticas e modelos de atendimento e acompanhamento social integrado em Portugal, perspetivamos as linhas gerais de análise dos dispositivos de planeamento, incorporação e aplicação de medidas de políticas públicas na área da solidariedade e ação social com enfoque na colaboração ativa entre prestadores de serviços públicos e não públicos. Palavras?chave: Atendimento Social Integrado, Governação, Parcerias Página % de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Esferas de Responsabilidade Pública – Os atores / produtores / agentes da ação pública no domínio social As atuais perspetivas de política social salientam que a responsabilidade pública nela implicada, intrincada na sua finalidade e contexto de espaço público, não se caduca mas antes se enriquece com a tendência englobadora de interação entre vários agentes, incluindo de origem privada, na sua formulação e no seu planeamento, na sua execução, na sua avaliação e, tendencialmente, no seu financiamento. A pespetiva de Interação (Kay, 2006) salienta a política pública como processo dinâmico, com participantes diversos no ‘jogo’ ao invés da existência de um único decisor, sendo aqueles muitas das vezes não formais ou reconhecidos como tal, e, por sua vez, respetivos entendimentos diversos quanto ao problema/situação em presença. Se em 1956 um dos primeiros sistematizadores no campo da Política Social – Marshall – descreve a política social como a política desenvolvida pelos governos direcionada para o bem6estar dos cidadãos, atualmente a ênfase coloca6se ao nível dos resultados e dos seus domínios de intervenção, salientando6se o cariz holístico que a mesma deve expressar e reconhecendo6se a sua interpenetração nos contextos económicos globais e dos sistemas políticos alargados, abrangendo uma ampla diversidade de agentes, sendo necessário ter em conta os contextos nacionais e locais e as diversas modalidades da intervenção do Estado, que implicam um número cada vez maior de dispositivos e de agentes especializados (Balsa, 2006a) Para Coutinho (2006), a Política Social é uma matriz da qual fazem parte orientações políticas e económicas, assentes em sistemas sociais e cuja base social de suporte refere organizações públicas (o sistema público6administrativo) e /ou privadas (empresas privadas lucrativas e empresas não lucrativas e não privadas), integrando objectivos e medidas de carácter social, económico, institucional e político que em cada momento têm impacto sobre o consumo, o investimento, a segurança, a participação, a liberdade e a dignidade dos povos. As interdependências com as políticas económicas e fiscais são reconhecidas nas diferentes conceções de política social, sendo que implicam um jogo de forças e diferentes performances entre a produção e o consumo individualizado e a equidade. Estas perspetivas salientam, precisamente, que a diversidade de campos de intervenção torna não só necessária como premente a responsabilização de todos os atores sociais, de diferentes setores e enquadramentos societais, no espaço público. Página & de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Nesta senda, pode assim considerar6se que as políticas públicas são políticas que abrangem todos os domínios da vida, interligadas com as funções do Estado. Para Peter Townsend (1975) todas as sociedades têm políticas sociais, mesmo que não estejam formuladas numa forma integrada, e têm serviços sociais, numa concepção mais alargada, partindo da perceção das necessidades e dos problemas sociais, numa lógica de destaque para a intervenção social associada a “problema”, numa escala mais prática, tendência por sua vez assumida nos paradigmas da gestão pública associada ao conceito de ‘problema público’. Fernanda Rodrigues (1999) refere6se a uma orientação de análise da política social com base numa perspectiva empírica, nomeadamente pelos problemas a que se dirige, pelos grupos sociais6alvo, pelo tipo de bens e serviços proporcionados, mas também pelos setores, tipo de administração e instituições em que se organiza, pelas finalidades específicas que financia, pelos direitos e garantias que assegura. Já Marshall também referia que a política social, concretizada através de serviços ou rendimentos, incluía a segurança social, a assistência, entre outras áreas como a habitação, educação, combate ao crime, saúde, etc., inovando neste âmbito a questão da diversidade do seu campo de atuação societário. Podemos então considerar que a amplitude do campo de intervenção da política social pública torna necessária a responsabilização dos agentes sociais num todo e torna pertinente a sua interação, numa lógica de acessibilidade cívica, de plasticidade na adaptação à realidade contemporânea e de eficiência e eficácia estratégica num contexto de limitação de recursos no bem6estar público, por um lado, e de uma sociedade em rede, por outro. O processo indutor de inovação social assente na parceria dos diferentes atores tem assim um efeito contagiante nas práticas de intervenção e ação social pública em serviços sociais tendencialmente integrados, tornando pertinente analisar em que medida os mesmos se inserem nos modelos de Governação Pública estratégica. ovos paradigmas de Governação na intervenção multi?escala – a inovação pela integração territorial multisetorial Assente na premissa da multidimensionalidade dos problemas sociais, subsiste a defesa das políticas sociais públicas tendencialmente globais e multisectoriais, por sua Página de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES vez pressupondo uma intervenção holística traduzida em abordagens de integração e partilha, nas quais a metodologia do Atendimento Social integrado se insere. Com efeito, numa Sociedade em Rede, caraterizada por economias mistas na proteção social/”mixed economies of social care”, por definição do Conselho da Europa, a integração das políticas e práticas implicam parcerias de partilha de responsabilidades por multi6agentes territorializadas mas igualmente de forma multinível/multiescala, a um plano nacional e local. Surgem aqui os desafios no âmbito da Nova Gestão Pública (New Public Management) e da Governação, nomeadamente na articulação dos agentes produtores e executores das políticas, de diferentes enquadramentos institucionais e de diferentes níveis da Administração Pública, nomeadamente Central e Local. Estes desafios, por sua vez, tendem a originar em termos de macroestrutura a proliferação de parcerias e formas de prestação de serviços públicos baseadas em sistemas de rede que superam a hierarquização de estruturas (Rocha, 2011), acompanhando uma tendencial alteração estrutural das formas de poder as quais se baseiam mais em formas complexas, horizontais e negociadas que em formas meramente verticais, hierárquicas e autoritárias (Ramonet, 1998). É neste âmbito que se pode associar em termos de Analise de Políticas Públicas o Modelo de Governação assente no governo como etwork (Mintzberg, 1995) e a Teoria da Governação Multinível, referente ao plano Europeu, onde se inserem as redes de Política (“Policy Networks “) enquanto estruturas híbridas integradas de governação política com capacidade para misturar diferentes combinações de burocracia, mercado, comunidade ou associação corporativa, resultando de lógicas interpretativas da interação entre os setores públicos e privados (Falkner, 2000). Esta abordagem surge com o objectivo de analisar as dinâmicas sectoriais que têm surgido em resposta à dispersão de recursos e capacidades para a ação política entre atores públicos e privados, contudo não está isenta de se constituir também como uma tentativa de conciliação dos valores de serviço público tradicionais com os valores provenientes das novas abordagens de organização e gestão das organizações públicas (Pitschas, 2007). Em Portugal a reforma da Administração Pública e os novos métodos de gestão estratégica e operacional que introduzem, entre outros itens, o benchmarking na avaliação dos impatos das políticas e nele incluindo o desempenho dos recursos humanos, têm vindo a contribuir para a adoção de linguagens comuns que por sua vez podem vir a constituir6se como elementos fundamentais que concorrem para uma Página ' de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS verdadeira integração e transversalidade dos vários níveis de governação, os quais não se podem impor aos agentes de sociedade civil mas que preconizam um esforço comum para a superação da dispersão, de fragmentação e da sobreposição de serviços, de respostas e de recursos. Estes são desafios que podem influenciar a mudança na própria identidade das organizações e, nestas, dos seus colaboradores, tendo em conta os fins a prosseguir e assim a própria produção do serviço e, concomitantemente, o resultado da política. Por sua vez, também os cidadãos têm um papel a desempenhar para que o espaço público não seja esvaziado de verdadeiras questões publicas /public issues, na senda de Bauman, assumindo6se a partilha de responsabilidades um requisito para a autonomia, numa lógica de emancipação, das sociedades e para a autonomia individual ‘de facto’, precedida pelo exercício de cidadania: “There are no autonomous individuals without an autonomous society, and the autonomy of society requires deliberate and perpetually deliberated self6constitution, something that may be only a shared accomplishment of its members.” (Bauman, 2000: 40). Torna6se assim necessário equacionar vários níveis de análise no que concerne a formulação e operacionalização de um serviço enquanto medida de política pública, que possam abranger a natureza normativa, estatutária e técnica englobando nesta as próprias identidades profissionais e o papel dos cidadãos. Daí aprofundarmos a pesquisa nos seguintes: político6normativo; sócio6organizacional; técnico6interventivo e cívico6 participativo.5 Na verdade, a perspetiva de Integração de serviços (conforme preconizada pela Integrated Care etwork, 2004) pressupõe, mais que a convergência, a coincidência na missão, na cultura, na gestão, nomeadamente de objetivos de estrutura decisória, nos orçamentos e mesmo nas estruturas físicas e nos modelos de registos. No plano Europeu, o conceito de serviços sociais integrados articula6se com o conceito de Serviços Sociais de Interesse Geral na União Europeia (COM (2006) 1777), nos quais inserem os serviços de apoio pessoal e de cuidados na área social/Proteção, de Saúde e Emprego. Visam melhorar o acesso aos direitos, atenuar a exclusão dos grupos mais vulneráveis e contribuir para o fortalecimento da coesão social. 5 Níveis de investigação operacionalizados em quatro eixos de análise: definição da política; produção do serviço; relação dos técnicos com o serviço; relação dos técnicos com o público. Página ( de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Segundo Brian Munday (2007), a integração supera a noção de parceria, mesmo que entendida enquanto trabalho conjunto e de rede, propondo quatro níveis cumulativos de intervenção integrada: Figura 1. íveis de intervenção integrada Integração Coordenação Cooperação Colaboração Fonte: Adaptado de Munday, 2007 A partir de uma análise comparativa sobre as práticas de serviços integrados na Europa, Munday constata situações de integração num plano vertical e horizontal, elencando6as ao nível dos territórios, ao nível dos decisores e das estruturas de coordenação e ao nível dos profissionais (multidisciplinariedade – interdisciplinariedade), podendo verificar6se em processos macro ou micro. Também Antunes e Moreira, a partir de um levantamento com base em 24 estudos sobre experiências de serviços integrados (em especial de proteção social e saúde) em 16 países, identificam vários níveis de integração: Figura 2. íveis de integração de Serviços Integração de serviços ao nível ministerial ou de governo / administração pública Integração setorial de serviços Agencias multiserviços com estruturas físicas comuns INTEGRAÇÃO Parceria de serviços Cooperação de serviços Multidisciplinariedade dos profissionais Cooperação reativa, ad-hoc, limitada Separação /Fragmentação Fonte: Adaptado de Antunes e Moreira, 2011 Página ) de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS A metodologia de serviço do Atendimento Integrado, encarada enquanto Intervenção de serviços de forma planeada e sustentada com base em redes formais, implica um conjunto de abordagens e de métodos de coordenação com o objetivo de melhorar os resultados produzidos face ao público e traduz um esforço de adaptação das instituições à mudança social, valorizando as parcerias, a acessibilidade cívica e a rentabilização de recursos. Práticas e modelos de atendimento e acompanhamento social integrado em Portugal Compreender, num sentido extensivo, as lógicas de definição e de articulação das diferentes orientações e estratégias das políticas sociais, pressupõe, como vimos, a caracterização dos próprios mecanismos de comunicação, de apropriação técnica e de consolidação das várias medidas de política, incluindo uma caraterização aprofundada quanto à heterogeneidade organizacional e ao respetivo enquadramento dos profissionais dos diferentes setores de intervenção, abrangendo a forma de operacionalização e o circuito organizacional do percurso aplicativo dessas medidas por parte dos diversos agentes com ação pública territorializada, nomeadamente organismos do Poder Central, do Poder Local e da Sociedade Civil6. Propomo6nos a desenvolver vários níveis analíticos tendo como base empírica os serviços de atendimento de ação social local organizados de acordo com a metodologia de “Atendimento Integrado”. As experiências em curso nalguns territórios de Portugal consubstanciam6se em serviços de Atendimento de Ação Social tendencialmente uniformes, desenvolvidos por técnicos de intervenção social com diferentes enquadramentos organizacionais (Administração Pública Central – APC; Administração Pública Local – APL e Organizações do Terceiro Setor – OTS), preconizam diferentes modelos de intervenção e, por sua vez, corporizando instrumentos e modalidades próprias de ação pública, nas formas e nos lugares das práticas e suscitando novos desafios de governação das políticas públicas de transformação de paradigmas. As práticas de Atendimento Integrado em Portugal tiveram o seu início a partir de dinâmicas Europeias com enfoque territorial, nomeadamente no âmbito dos Programas de Luta Contra a Pobreza. Em termos sistemáticos, a base geral do modelo 6 Análise desenvolvida na Tese de Doutoramento “Esferas de Responsabilidade Pública”, sob orientação do Professor Doutor Casimiro Marques Balsa, FCSH/UNL, presentemente em curso. Página * de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES foi implementada como resultado de uma experiência6piloto desenvolvida no âmbito do Programa Comunitário (EQUAL), resultante de uma parceria alargada entre organismos da Administração Pública Central, Local, Instituições de Solidariedade e um Centro de Estudo (CESIS), naquela que foi considerada uma experiência6piloto formal cujos resultados seriam passíveis de disseminação e que foi, inclusivamente, considerada como ‘boa6prática’ de desenvolvimento social local na avaliação da implementação do 3.º Plano Nacional de Ação para a Inclusão Português. Presentemente, estão a ser aplicadas em dinâmicas territoriais de base concelhia, com diferentes modelos quer técnicos quer de coordenação. Em termos globais, os seus princípios assentam numa abordagem holística que supere a fragmentação das políticas, das respostas, das necessidades do indivíduo. A metodologia preconiza, pois, um modelo sistémico de intervenção plurisetorial (Ação Social/Proteção; Emprego; Saúde (Serviço Social de Saúde 6 Centros de Saúde)); pluriorganizacional (Organizações da Administração Pública Central, Local, Instituições de Solidariedade e Centro de Estudos/Academia); multidisciplinar (Técnicos de Serviço Social / Psicólogos /Educadores, outros profissionais); e, em termos operativos, a utilização de instrumentos de registo comuns, construídos em parceria; a formalização através de Protocolo /Reconhecimento Público; a intervenção através de um Gestor de Caso/’Case manager’ identificado por problema dominante, com partilha de escalas e espaços de atendimento. Não obstante, as práticas revelam diferentes formas e entendimentos de atuação integrada. Assim, neste âmbito, tomamos como objeto de análise as experiências de serviço social integrado em alguns territórios de Portugal. A partir da sistematização de 18 experiências7, e com base em 10 dimensões de análise 8 , foi possível delinear de forma exploratória diferentes modelos de implementação de serviços de atendimento integrado em Portugal. Considerando que a estabilização dos mesmos depende de um conjunto de técnicas de aprofundamento de pesquisa que abrangem entrevistas semi6estruturadas a decisores políticos, gestores e técnicos envolvidos, de entre outras em curso, apresentamos as principais linhas diferenciadoras que vão sendo identificadas e que 7 Parcerias de Atendimento e Acompanhamento Social Integrado em Portugal entre 2005 e 2012. A análise teve por base a recolha de evidências documentais, complementada por observação direta. 8 Sendo estas: Tipologia territorial; Tipologia de agentes; Estrutura; Enquadramento comunitário; Serviço Prestado e Apoios; Suportes de Registo; Espaço físico; Formalização da parceria; Formalização de procedimentos; Imagem e Comunicação. Página '+ de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS permitem iniciar a construção, a validar, de cada um. Trata6se, assim, de primeiramente identificar contrastes, induzidos num processo operatório de polarização (Gurvitch), que se vão complexificando e intrincando e dos quais optamos por selecionar os seguintes: Quadro 1. Modelos de Atendimento Integrado em Portugal – pólos diferenciados Integração (?) Integração ( +) Parceria não reconhecida Parceria formalizada Iniciativa de organismos/instituições Iniciativa enquadrada em parcerias amplas (Conselho Local de Ação Social, outras) Unidade territorial limitada Várias unidades territoriais Agentes semelhantes Diversos Agentes (APC; APL, OTS) Estrutura decisória de nível técnico Estrutura decisória ao nível de Conselho de Parceiros Sem planeamento Planeamento conjunto Recursos Humanos: isolados e a tempo Recursos Humanos: a tempo inteiro, em equipas parcial multidisciplinares Serviço de Ação Social Serviços e Apoios de Ação Social e Rendimento Social de Inserção Social, apoios pecuniários de vários agentes e programas Vários espaços de atendimento Partilha de espaços de atendimento Sem manual de procedimentos e/ou Com manual de procedimentos e/ou regulamento regulamento próprio próprio Vários suportes de registo de informação Sistema de informação partilhado Verifica6se que a metodologia inerente ao Atendimento Integrado, através de parcerias de intervenção no âmbito do Atendimento e Acompanhamento Social (AAS), tem vindo a ser implementada de acordo com dinâmicas diferenciadas mas demonstrando no global a valorização, nomeadamente em grande parte por iniciativa dos Municípios, ao trabalho em parceria com vista a uma resposta mais eficaz e eficiente às solicitações da população em situação de vulnerabilidade social através do AAS. Por outro lado, em alguns destes territórios, mesmo sendo consensuais as vantagens do trabalho em parceria no AAS, alguns agentes revelam resistências em realizar Atendimentos de acordo com procedimentos e suportes de registo comuns e/ou ainda sem que sejam definidos os contributos em termos de recursos e apoios que cada agente pode efetivamente disponibilizar, nomeadamente tendo em conta competências definidas ou orçamentos afetos. Página ' de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Relativamente ao produto da análise per si dos Serviços de Atendimento Integrado, podemos concluir a tendencial existência de um esforço na articulação inter6 6setorial para um serviço integrado, mas com lacunas numa efetiva integração multisetorial e multidisciplinar. Por outro lado, a tendência de uniformização de procedimentos e critérios, importantes para uma global gestão de fluxos de informação e principalmente de criação de fontes de dados intensivas e verdadeiramente indicativas da realidade social, passíveis de contribuir para o aprofundamento dos diagnósticos e para a formulação de novas políticas públicas, tem6se afigurado como elemento de resistência. Todavia, esta poderá também incorrer de algum modo numa limitação em termos de adaptação, inovação e proximidade face à realidade de intervenção, constrangimentos estes que importa também identificar. Subsistem, ainda, os velhos problemas de desfasamento entre serviços públicos, respostas sociais, programas públicos/estatais, iniciativas comunitárias e respetivas profissionalidades, travadas pelas competências e atribuições formais que se assumem e nas responsabilidades e desafios de mudança que se pretendem ou não assumir, complexidade esta que por sua vez emerge transversalmente na sistematização de modelos e a qual deve ser tida em consideração. Por fim, denote6se que esta análise servirá de base de enquadramento à questão da interação dos atores, interessando6nos todavia mais o processo de implementação da política que a avaliação dos seus resultados, pelo que os modelos servem de suporte a uma compreensão que se pretende dinâmica e alargada e que neles não se esgotam. otas Conclusivas: O Atendimento Integrado enquanto objeto de análise dos dispositivos de planeamento, incorporação e aplicação de medidas de políticas públicas em parceria na área da solidariedade e ação social Na análise de políticas públicas é reconhecido que sistemas sociais complexos implicam a consideração da interação entre os atores e a questão da distribuição de poderes, tratando6se de perspetivar aquelas enquanto reveladoras da essência da ação pública (Knoepfel et al, 2006). O enfoque na multiplicidade de atores que influenciam as políticas públicas é destacado nas teorias procedimentais de implementação e agenda/agenda setting (Howlett and Ramesh, 2003; Cefait, 2001), ou mesmo face ao modelo clássico de política pública desenhado por Easton em 1965. Página ' de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Os processos inerentes às políticas públicas serão, pois, resultado de um conjunto de gramáticas de ação e interação, contextualizadas em práticas e expetativas, com modalidades próprias de interpretação e legitimação, ancoradas em desafios e incertezas mas por sua vez também influentes na mudança. Policy is not about the promulgation of formal statements but the processes of negotiation and influence; indeed, much policy work is only distantly connected to authorized statements about goals: it is concerned with relating the activities of different bodies to one another, with stabilizing practice and expectations across organizations, and with responding to challenge, contest and uncertainty (Kay, 2006: 102). Se a importância dos atores na análise das políticas públicas é refletida por um largo espetro de abordagens, podendo ir desde uma dimensão normativa, de teoria de escolha racional, a uma abordagem de caráter mais cognitivo que abrange as políticas públicas com construção de uma relação com o mundo, produto de crenças coletivas dos atores envolvidos (públicos e privados) face à forma como são colocados os problemas públicos e são concebidas as respostas adaptadas a essa perceção dos problemas (Bongrand e Laborier, 2005), impõe6se uma decisão metodológica compreensiva, que não só construtivista ainda que incrustada na teoria e na prática. Conforme referido, a análise dos circuitos de implementação, bem como das profissionalidades, dos circuitos de produção, incorporação e apropriação técnica e da aplicação e reprodução da política implica um plano de investigação exaustivo, com recurso a várias técnicas e fontes de dados. Por sua vez, pressupõe a construção de um modelo de análise extensivo e integrado, tal como o objeto de estudo, nomeadamente um sistema de análise transacional que abranja os valores culturais, as crenças sociais, as atitudes pessoais, os sistemas ecológicos, as instituições sociais e a tecnologia 6 implicados na teoria, na ideologia e nos contextos das políticas, estratégias e práticas das políticas (Hayden, 2006). Ainda, na senda de Dubois (1999) e da sua proposta de utilização da política no guichet enquanto objeto de estudo da identidade e dos papéis sociais, da regulação de tensões e da produção de consentimento de uso e transformação das instituições, nomeadamente pelos profissionais e utilizadores do serviço no guichet, importa sistematizar quadros de análise com trajetórias, posições sociais e lógicas de dominação a partir de interpretações empíricas e teóricas a enquadrar nos processos de interação social (Goffman) e da sociologia dos regimes de ação (Thévenot e Boltansky, Página '% de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES 2006). Por sua vez, pode operacionalizar6se numa análise de ‘framing’/’analyse des cadres, através da qual não se procuram propriamente representações mentais mas antes procedimentos de organização, de experiência e de atividade indexadas sobre gramáticas da vida pública e da ação coletiva (Cefait, 2001), mas também passível de ser superada pela comunicação entre lógicas de ação distintas (Balsa, 2010). Crê6se corroborar assim, ainda, a pertinência do objeto de análise numa reflexão dinâmica de investigação6ação que possa contribuir para uma mudança de paradigma de intervenção de social, em especial permitindo incidir na forma como os vários níveis se articulam bem como aferir o impacto do papel das organizações e dos profissionais de diferentes sectores, enquadramentos e níveis territoriais face aos diversos posicionamentos dos públicos6alvo dos serviços. Bibliografia ADAM, Silke e KRIESI, Hanspeter (2007). “The network approach”. In Paul A. Sabatier (org.), Theories of the Policy Process. 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Teresa de Jesus Peixoto Faria Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro teresapf@uenf.br Raquel Callegario Zacchi Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense raquelcallegario@yahoo.com.br Natália Guimarães Mothé Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro nataliamothe@gmail.com Resumo Campos dos Goytacazes, cidade média no norte do Estado do Rio de Janeiro, apresenta os mesmos problemas sociais e urbanos das grandes metrópoles – segregação, fragmentação e desigualdades e injustiças socioespaciais, cujo exemplo mais eloquente é a presença de favelas e de condomínios residenciais fechados. Desde a perspectiva de instalação, no vizinho município de São João da Barra, do Complexo Industrial e Portuário do Açu, trazendo uma nova promessa de desenvolvimento para a região, a cidade vivencia um processo de expansão que se caracteriza pela ocupação de espaços periurbanos, como a área da Estrada do Contorno. Desde os anos 1990, esta área vem recebendo a instalação de novos empreendimentos públicos e privados, transformando seus usos e representações e reforçando o processo de fragmentação espacial e social. Porém, a favela Margem da Linha permanece literalmente à margem dos investimentos públicos e não usufrui dos benefícios aportados pelos empreendimentos privados. Neste artigo, analisamos o desenvolvimento da cidade e a política urbana municipal, com relação ao quadro descrito, observando as ações do poder público e sua vontade política, ou não, de dirimir ou de, ao menos, reduzir as desigualdades e injustiças socioespaciais já existentes e as geradas por esses novos investimentos. Palavras?chave: Política Urbana, Complexo Portuário do Açu, Campos dos Goytacazes Página '( de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Introdução O Município de Campos dos Goytacazes 9 e região 10 tiveram como principal atividade econômica, desde o período colonial, a criação de gado e mais tarde a monocultura da cana de açúcar e a transformação industrial desse produto (açúcar e álcool). Atualmente, a economia da região está mais diversificada e além da indústria sucro6alcooleira, existe a criação de gado, cultura do café, de frutas, pequenas indústrias. Porém, a mais importante atividade é a produção de petróleo e gás, aportando aos municípios que integram a ‘Bacia de Campos’ a qual produz mais de 80% do petróleo do Brasil, altas rendas em royalties e participação especial. Os municípios de Campos dos Goytacazes, São João da Barra, Quissamã, Carapebús e Macaé, concentram a maior parte destas rendas petrolíferas. O perfil econômico da região está mudando, mais uma vez, com os grandes investimentos que começaram a ser projetados e implantados, desde 2007, na região, os (GPIs) Grandes Projetos de Investimento: i) plantio de eucaliptos da Aracruz celulose, ii) produção de etanol, iii) o Complexo Logístico e Industrial do Porto do Açu, e iv) complexo Barra do Furado (Cruz, 2009). Esses grandes investimentos provocam intervenções, cujos impactos econômicos, sociais, territoriais e ambientais, já começaram a se apresentar, porém a amplitude e alcance de seus efeitos, sejam eles positivos ou negativos, são incontroláveis e imprevisíveis. Dos GPIs citados, vamos nos ater ao Complexo Logístico Industrial e Portuário do Açu (CLIPA), ou Superporto do Açu ou apenas Porto do Açu, um empreendimento logístico da empresa LLX Logística S.A., através de suas subsidiárias, LLX Porto do Açu Ltda. (LLX Açu) e LLX Minas6Rio Logística Ltda. (LLX Minas Rio). Faz parte de um projeto maior do grupo EBX, controlado pelo empresário Eike Batista. Desde a perspectiva, anunciada em 2006, de sua instalação, no visinho município de São João da Barra, o Porto do Açu transformou6se em uma promessa de 9 Situado no norte do Estado do Rio de Janeiro, possui, segundo os dados do Censo6IBGE de 2010, população total de 448.995 habitantes, sendo que 45.008 na zona rural e 418.725 habitantes na zona urbana. 10 Chamamos região de Campos dos Goytacazes, os atuais municípios vizinhos que, no período colonial, faziam parte da antiga Capitania de São Tomé, e que após um processo de desmembramento e de autonomia municipal, iniciado ainda no século XIX, hoje integram as regiões Norte e Noroeste fluminense, que até 1987, constituíam uma única região, a Região Norte Fluminense. Neste artigo tratamos particularmente dos Municípios de Campos dos Goytacazes, São João da Barra e Macaé situados na atual região Norte Fluminense que segundo Ribeiro (2010) possui em torno de 700.000 habitantes. Página ') de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS desenvolvimento para a região, envolvendo grandes investimentos públicos e privados. Ademais, as cidades estudadas recebem altas rendas petrolíferas (royalties e participação especial), já que são grandes produtoras de petróleo, o qual, à época de sua descoberta, igualmente representou e ainda representa um fator de desenvolvimento para a região, cuja atividade sucroalcooleira estava em pleno declínio. Neste artigo discutimos os primeiros impactos socioespaciais advindos das intervenções e investimentos que vem sendo realizados na região, desde que esta passou a receber altas receitas petrolíferas e o projeto para implantação do Complexo Portuário do Açu. Também analisamos a política urbana da cidade de Campos dos Goytacazes, observando as ações do poder público municipal, e sua vontade política, ou não, de dirimir ou de, ao menos, reduzir as desigualdades e injustiças socioespaciais. O estudo é o resultado de nossas observações e questionamentos a propósito da expansão da cidade e dos processos socioespaciais que dela decorrem. Cujo exemplo mais eloquente são as transformações recentes e rápidas que vem ocorrendo nas adjacências da Estrada do Contorno (Avenida doutor Silvio Bastos Tavares). Esta área situava6se em zona rural e “abandonada” por longo tempo, considerada periférica e desvalorizada principalmente pela presença da favela Margem da Linha que ali se encontra desde a década de 1960 (Póvoa, 2002; Pohlmann, 2008). Além disso, grande parte da região é definida no Plano Diretor de 200811, como Zona de Expansão Urbana. A pesquisa, que ainda está em curso, se desenvolve a partir da observação direta no terreno de estudo, aplicação de questionários, entrevistas e também de pesquisa histórico documental (planos e leis urbanísticas, os projetos das políticas públicas urbanas e programas sócias), de leitura de trabalhos científicos, matérias de jornais, sites na internet, referentes à problemática estudada. Desde os anos 1990, essas áreas adjacentes à Estrada do Contorno vem assistindo a instalação de novos empreendimentos públicos e privados que tem mudado radicalmente seus usos, morfologia urbana e social, e representações. São concessionárias de automóveis, hipermercado, hotel, shopping center, além de condomínios residenciais fechados (verticais e horizontais) que reforçam o processo de segregação e fragmentação espacial e social. 11 Plano Diretor democrático e participativo, conforme definido no estado da cidade... Página '* de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Paralelamente, observam6se medidas por parte do poder público através de dotação de infraestrutura urbana e mudança de legislação, para atrair novos investimentos. Partimos do pressuposto que esses investimentos e intervenções foram embalados pela promessa de desenvolvimento trazida primeiramente pela indústria petrolífera e atualmente pela instalação do porto do Açu e que estão sendo alimentados pelo mercado imobiliário com impulso e apoio do poder público.12 Porém, a favela Margem da Linha permanece literalmente à margem dos investimentos públicos e não usufrui dos benefícios aportados pelos empreendimentos privados. Essa iniquidade na distribuição dos recursos urbanos, onde só os grupos privilegiados se beneficiam, reforçando as desigualdades socioespaciais pode ser considerada como injusta. Por outro lado, o governo municipal vem desenvolvendo ações passíveis de resolver os problemas sociais e urbanos: os programas Morar Feliz (habitação popular) e Bairro Legal (infraestrutura para bairros carentes). Pensamos que a noção de justiça espacial pode ser um marco conceitual crítico para pensar a cidade, e analisar a desigualdade entre os territórios, assim como o papel Estado, seu discurso e ação, na redução ou amplificação das desigualdades socioespaciais, contribuindo para a compreensão da problemática que motiva o presente estudo. Os estudos de Entrena (2003), Vale e Gerardi (2005), Souza (2007) e Spósito (2010) embasaram as nossas reflexões e contribuíram para a nossa compreensão de como se configura o processo de expansão urbana de Campos que como observamos, ocorre sobre a zona rural adjacente à cidade. As noções de empreendedorismo urbano (Harvey, 2005) e de cidade6mercadoria (Vainer, 2009) serviram referência teórica orientando as nossas reflexões e respostas à indagação se os investimentos tanto do poder público como da iniciativa privada são motivados pela lógica da produtividade e da competitividade urbana. Se seguirmos as reflexões de Vale e Gerardi (2005), podemos considerar que o crescimento urbano de Campos dos Goytacazes se apresenta como difuso. Considerando que o entorno da cidade é ainda ocupado por várias propriedades rurais, 12 A expansão urbana recente de Campos dos Goytacazes, a partir do processo de conversão de terras rurais em urbanas e mudanças de uso do solo promovida pelos proprietários fundiários com o apoio do Estado foi analisada por Zacchi (2012), através do estudo das terras da antiga Usina do Queimado e do PDUC de 1979. Página (+ de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS essa urbanização que se espraia avançando sobre as áreas que num passado recente foram de uso agrícola, sem que haja vínculo dos novos habitantes com esse tipo de atividade, pode tornar tênue a separação entre a cidade e o campo. A faixa de transição entre cidade e campo, nas quais se misturam atividades urbanas e agrícolas, que competem pelo uso do mesmo solo, é concebida pela maioria dos autores que estudam os espaços periurbanos, como espaços plurifuncionais, que estão submetidos a grandes e rápidas transformações, cujo dinamismo está, em grande medida, marcado pela cidade (Estrena, 2003; Vale e Gerardi, 2005; Souza; 2007). As terminologias para esses espaços de transição variam entre os pesquisadores. Espaço periurbano é um termo mais utilizado pelos franceses e será a denominação adotada neste trabalho. Todavia, existem outras denominações como: franja rural6 urbana ou “rurbana” (Freyre, 1968), sombra urbana, subúrbio, ex6urbano, região urbana e semi6urbano (Vale e Gerardi, 2005). Periurbano será a designação adotada no presente artigo. Caldeira (2000) observa que concomitantemente à expansão e consolidação da ocupação de áreas periféricas por populações pobres, a partir da década de 1980, ocorre a intensificação de outros processos socioespaciais urbanos. De um lado, a consolidação da ocupação do solo urbano das periferias pelos “enclaves fortificados”, os quais têm como versão residencial os condomínios fechados e, de outro, a verticalização das áreas centrais. Concluímos que essa é a atual configuração territorial predominante, nas mais importantes cidades brasileiras cujos espaços se apresentam fragmentados, segregados e marcados por profundas desigualdades socioespaciais. Soja (2010) afirma que a diferenciação espacial gera uma discriminação territorial, explicitando a oposição entre espaços privilegiados e espaços estigmatizados, cujos efeitos, não podem ser explicados ou reduzidos apenas ao conceito de segregação. A partir dessa constatação, Soja (2010) alerta que é crucial, tanto na teoria quanto na prática, dar ênfase à espacialidade da justiça e das injustiças, não apenas na cidade, mas em todas as escalas geográficas, da local a global. Para isso, propõe a adoção do termo específico justiça espacial. Justiça espacial se tornaria, então, um conceito e um princípio de ordenamento que permite entender as situações reais (expressas no território) caracterizadas pela injustiça social. O filósofo John Rawls apesar das críticas que sofreu é uma das principais referências para os estudos teóricos sobre justiça social. Sobretudo no sentido de justiça como equidade. Assim, concordamos com Gervais6Lambony, Dufaux e Musset (2010) Página ( de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES que propõem tratar o problema da justiça como conceito adaptado aos estudos que analisam as desigualdades sociais no meio urbano. Processo de urbanização de Campos: a construção do “centro” como o lugar simbólica e materialmente privilegiado O espaço urbano da cidade de Campos dos Goytacazes, embora se verifique a existência do processo de fragmentação espacial, caracterizado pela presença nas áreas periféricas de shopping centers, condomínios residenciais horizontais fechados, ainda é fortemente marcado pelo modelo dual centro6periferia, onde as áreas centrais, caracterizadas por um processo desenfreado de verticalização (concentração de condomínios residenciais e comerciais verticais fechados), são dotadas de todos os recursos e serviços urbanos, habitadas por uma classe privilegiada e qualificadas como “nobres”. Mesmo com a presença de condomínios horizontais de luxo, as áreas periféricas são preponderantemente caracterizadas pela presença de favelas, loteamentos irregulares, são carentes de recursos urbanos e habitadas, majoritariamente, pelas classes pobres e, portanto estigmatizadas. Essa configuração é o resultado de uma construção social e política ao longo da história. Desde a fundação da cidade, em fins do século XVII, o seu núcleo original, ou seja, o lugar onde se localiza a Igreja Matriz, a Casa de Câmara e Cadeia e o Pelourinho e a Praça Principal13 . As sucessivas intervenções no espaço urbano, por parte do poder público, sempre priorizando a área central e adjacências, construíram a sua posição e representações de área privilegiada e hierarquizada com relação às outras áreas da cidade (Faria, 1998). A partir do século XIX, com a chegada do capitalismo urbano industrial e com a implantação do projeto republicano de integração e de modernização do país, a partir de reformas urbanas e sanitárias e de dotação de infraestrutura para operacionalizar o funcionamento do complexo agro6exportador, Campos dos Goytacazes vai ser palco de inúmeras intervenções urbanas. Assiste6se a instalação de meio de transporte (companhias de navegação, canais de drenagem e navegação, estradas de ferro, em 1872, construção de pontes), instalação de luz elétrica (1883), de esgoto e água corrente 13 Como era chamada a atual Praça São Salvador até meados do século XIX. Página ( de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS (1887), reformas do espaço urbano e renovação/modernização das construções (demolições de prédios considerados “velhos” ou insalubres), alargamento e pavimentação de ruas sugeridos no Plano de Brito “O saneamento de Campos”, (1902) e realizadas, em parte, em 1916, na administração do médico Luiz Sobral, além das inúmeras e sucessivas reformas na Praça São Salvador, chamada nos primórdios da cidade de Praça Principal. Paralelamente, inicia6se o processo de exclusão dos pobres das áreas centrais da cidade, pois as práticas sanitaristas, ao caracterizar a população pobre e seu lugar de moradia como responsáveis pela transmissão das doenças e pela insalubridade dos centros urbanos, justificou6se a expulsão desta população perigosa das áreas centrais das cidades. Estas deveriam, doravante, serem ocupadas pelas elites urbanas (políticos, industriais, comerciantes, profissionais liberais e intelectuais) em ascensão. O único caminho deixado para a população pobre foi o das periferias, sem infraestrutura. O Plano Urbanístico concebido pela empresa Coimbra Bueno, em 1944, no governo municipal de Salo Brand, que projetou e orientou a expansão da cidade, consolidou a importância da área central e adjacências, e suas representações de área privilegiada e hierarquizada definindo6a como o “centro histórico”. Todas essas ações acabam por configurar e ratificar definitivamente essa área central, ou seja o núcleo original, como o “centro da cidade”, ou seja, o espaço urbano por excelência que concentra os serviços urbanos, os negócios, os equipamentos culturais, gerando a criação das primeiras contradições no espaço urbano e a oposição centro6periferia. Nas primeiras décadas do século XX, as principais áreas privilegiadas eram o centro e as ruas adjacentes, como rua do Ouvidor, rua Aquidaban, Alberto Torres, rua Treze de Maio, rua Formosa, rua do Barão da Lagoa Dourada, Barão de Miracema. Nos arrabaldes situavam6se as antigas chácaras – moradias privilegiadas, misto de habitação rural e urbana. Os primeiros bairros periféricos começam a surgir, após 1930, tais como Turfe Clube, Saco e Matadouro, caracterizados por uma ocupação de classes pobres ou menos abastadas. A área do antigo 6º Distrito de Guarús é um exemplo emblemático de área periférica e estigmatizada. Separada da cidade pelo rio Paraíba do Sul, apesar da primeira ponte buscando integrá6la à margem direita ter sido construída, em 1873, esta só foi incluída no perímetro urbano em 1946. Página (% de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Concomitantemente, as áreas contíguas ao centro vão se consolidando como bairro das camadas mais alta renda, Alzira Vargas e seu entorno, Beneficência Portuguesa e arredores e Alto do Liceu. A partir da separação dos usos do solo urbano, também definida pelo Plano Urbanístico de 1944, dotando algumas áreas da cidade com infra6estrutura e serviços, aumenta ainda mais o processo de diferenciação dos espaços. As áreas beneficiadas passam a ter mais valor, passando a serem ocupadas por indivíduos de mais alta renda. O processo de expansão urbana em direção às áreas periféricas e periurbanas Importa lembrar que a principal atividade econômica do Município de Campos dos Goytacazes, fora, desde meados do século XVIII, a agroindústria canavieira. Essa atividade teve seu auge entre a segunda metade do século XIX e meados do século XX. Porém na década de 1980 deu6se início a sua decadência. O município que contava com mais de 20 usinas, hoje só possui duas em funcionamento, a Canabrava (2011) produzindo etanol e a Coagro (Cooperativa de produtores de cana, criada em 2000). Essa atividade econômica eminentemente agrícola configurou os espaços do município da seguinte maneira: uma zona urbana, onde se instalaram a cidade (distrito sede) as funções urbanas, circundada de uma zona rural dedicada, em sua maior parte, à monocultura da cana de açúcar e instalação dos engenhos e usinas para a transformação industrial desse produto. Assim, sua expansão urbana ocorreu e ocorre sobre antigas chácaras localizadas nos interstícios da zona urbana e a partir da ocupação de antigas propriedades rurais. Essas áreas são expropriadas (por falta de pagamento de impostos, por exemplo) ou liberadas e colocadas à disposição do mercado imobiliário aos poucos, segundo os interesses dos proprietários fundiários (Zacchi, 2012). Com a inserção de leis trabalhistas no campo (fim do regime de colonato) e erradicação das plantações de café (municípios da região noroeste fluminense), houve um grande movimento de migrantes destas áreas (principalmente em direção à Campos) que passaram a ocupar as áreas periféricas ainda não urbanizadas ou de fato rejeitadas para expansão da cidade por serem inundáveis (margens de rios, brejos e lagoas) ou por se localizarem à beira de rodovias e ferrovias, constituindo as primeiras favelas e loteamentos “ilegais” (Póvoa, 2002). Página (& de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS A partir da década de 1980, com o declínio do setor agrícola na região, terras de cultivo de cana6de6açúcar tornam6se “ociosas” favorecendo a expansão urbana em direção às antigas propriedades rurais localizadas mais próximas ao perímetro urbano através do parcelamento do solo, na forma de loteamentos originando novos “bairros”14 ou de grandes empreendimentos imobiliários, entre eles os condomínios residenciais horizontais fechados. Desta forma, o sentido de periurbano adotado para analisar a estruturação da expansão urbana de Campos dos Goytacazes sobre áreas rurais, refere6se a grandes áreas não parceladas para fins urbanos, localizadas muito próximas à centralidade urbana em termos de fluxos, equipamentos e serviços, com a presença de importantes vias de acesso a elas. Estas áreas são classificadas, juridicamente, como rurais, ou seja, nelas incide o tributo ITR (Imposto Territorial Rural), porém as mesmas têm servido como espaço periurbano de “reserva” para o mercado fundiário e imobiliário local, na qual tem se configurado um eixo valorizado de crescimento urbano de Campos (Zacchi, 2012). Após 1960, a aceleração do processo de urbanização e industrialização, atraindo para a cidade a população do campo, além de outros fatores econômicos e sociais que precisam ser mais bem estudados, contribui com o surgimento das primeiras favelas. Estas foram alternativas para a moradia para os indivíduos pobres. O descaso do poder público com esse fenômeno fez crescer o número de ocupação irregular na cidade, às margens das vias férreas e lagoas. Por outro lado, este mesmo processo de urbanização favoreceu a expansão da cidade em direção a novas áreas, antes menos privilegiadas, porém valorizadas pela proximidade ao centro, pela dotação de infra6estrutura ou pela presença de algum elemento de centralidade: Praça da Bandeira, Parque Tamandaré. Note6se que a cidade dos ricos está bem delimitada/apartada pela Estrada de Ferro Leopoldina, Passeio Público, e rua do Ouvidor e rio Paraíba do Sul. Tendo, na Lapa, seu bairro Operário. Para além destes limites estão os bairros das camadas menos abastadas que vão se consolidando na década de 1970. Além, disso, este é o período de maior investimento na habitação nas áreas periféricas: Damas Hortis, Condomínio Guadalajara (“Pombal”), Parque Nova Brasília. 14 É interessante notar que o processo ocorre através de loteamentos legais e ilegais, cujos nomes passam a ser identificados como bairros. Exemplo Parque Alphaville, Parque da Palmeiras, Jardim Flamboyant, Novo Joquei. Página ( de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES A partir de 1980, assiste6se a consolidação do modelo de expansão urbana orientada do centro em direção à periferia com tendência à fragmentação coadunando6se com o modelo discutido por Caldeira (2000), o qual nós observamos ser ocorrente na maioria das cidades brasileiras. Porém, em Campos, este processo foi incentivado e abalizado pelo poder público com a aprovação do PDUC (Plano de Desenvolvimento Físico6Territorial Urbano de Campos)15, em 1979, na gestão do arquiteto e então prefeito de Campos, Raul David Linhares Correa. O PDUC definiu, baseado no Plano de 1944, uma proposta de racionalização da expansão urbana de Campos, normatizando e direcionando o crescimento urbano de Campos dos Goytacazes (RJ). O PDUC faz parte do Programa de Cidades de Porte Médio do Estado do Rio de Janeiro, financiado pelo FNDU (Fundo Nacional de Desenvolvimento Urbano). Esses programas se inserem no processo de “modernização tecnocrática” difundida pelos diversos setores do regime militar, após o Golpe de 1964, baseada na elaboração de planos urbanísticos e diretrizes técnicas para regular as condutas na ocupação do espaço das cidades brasileiras. Campos começa a passar, assim, por um processo de verticalização das áreas centrais, mais valorizadas (Pirovani e Faria, 2011), e a construção de condomínios horizontais em áreas periféricas (Carvalho, 2003; Zacchi 2012) próximas aos bairros comumente habitados por camadas populares, dando um outro caráter à segregação existente e iniciando a fragmentação socioespacial – com a proximidade espacial entre ricos e pobres e aprofundamento, entretanto, a distância social (Carvalho, 2003). Paralelamente, vemos que a lógica do mercado imobiliário e das intervenções urbanas favorece a manutenção de grandes vazios urbanos a favor da especulação, como galpões, glebas, áreas industriais desativadas nas áreas mais periféricas. Na área central, estes vazios têm aumentado em consequência de um processo contínuo de demolição de antigos casarios, afetando prédios de interesse histórico. Após o ano 2000, esse processo de verticalização das áreas centrais e de construção de condomínios horizontais fechados nas áreas periféricas se acentuou. Ao mesmo tempo, o processo de favelização se intensifica demonstrado pelo aumento do número de habitantes em favelas (Pessanha, 2004) 15 O PDUC se materializou em quatro principais anteprojetos de leis: Lei dos Perímetros Urbanos, Lei de Zoneamento e Uso do Solo, Lei de Parcelamento do Solo e o Código de Obras, além da própria Lei que institui o PDUC. Estas, ao serem aprovadas, conferem ao Executivo Municipal orientação técnica e respaldo legal ao exercício do poder de “polícia urbanística” (PDUC, 1979: 02). Página (' de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS O Plano Diretor de 2008, Democrático e Participativo, cujo objetivo era de construir uma cidade para todos, se por um lado definiu algumas áreas de interesse de preservação ambiental, Cultural e Áreas de Especial Interesse Social (AEIS), ampliou o perímetro urbano, definindo áreas prioritárias de expansão urbana e flexibilizou as leis de zoneamento e uso do solo, favorecendo determinadas áreas para receber altos investimentos, em detrimento de outras. O que pode provocar o aprofundamento do processo de segregação no modelo centro periferia e de fragmentação, ampliando as desigualdades e injustiças socioespaciais. A promessa de desenvolvimento e a ocupação das áreas adjacentes a estrada do Contorno (Avenida Dr. Silvio Bastos Tavares) A descoberta e exploração de petróleo na região – o ouro negro – trouxeram promessa de desenvolvimento e emprego, atraindo um grande número de migrantes, principalmente em Macaé, onde todo o parque industrial e administrativo foi instalado, certamente pela sua condição histórica de ter sido o porto natural da região (a enseada de Imbitiba). Macaé se transforma no novo “el dourado”, deixando Campos à margem do processo de industrialização, porém se apresenta como importante fornecedora e de mão de obra especializada e adquire posição fundamental por abrigar funções comerciais e de serviços. Em Macaé, o que se observa é que a maioria dos funcionários da Petrobras e das outras empresas ligadas às atividades petrolíferas, vem de exterior e de outras regiões, já que os serviços exigem, preferencialmente, mão de obra qualificada, não beneficiando os macaenses ou aqueles que se instalaram na cidade atraídos pela promessa de emprego e desenvolvimento Isso agrava a situação urbana e social: um processo acelerado de urbanização acompanhado de degradação do meio ambiente e conflitos sociais (Tougeiro e Faria 2011). Com a construção do Porto do Açu, na cidade de São da Barra, anunciada em 2006, vemos repetir o mesmo discurso de desenvolvimento e processo ocorrido em Macaé. A maioria dos funcionários do porto vem do exterior ou de outras regiões do Brasil (mesmo para as atividades menos qualificadas). Ademais, as obras para a Página (( de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES instalação do porto tem provocado degradação do meio ambiente e sérios problemas e conflitos socioespaciais que ainda não foram completamente estudados16. Porém, desta vez, a cidade de Campos, por diversos fatores favoráveis, tem se beneficiado mais diretamente: pela proximidade com São João da Barra, por ser, até o momento, o único acesso para o referido porto, por possuir, ao contrário da pequena cidade de São João da Barra, toda infraestrutura urbana e de serviços de educação básica e superior, de cultura, lazer, de habitação, de comércio. Com os altos valores de royalties e participação especial recebidos do petróleo17, esperava6se uma melhor e justa distribuição dos recursos urbanos. Porém os estudos de Terra (2007) demonstraram que os grupos favorecidos são os de alto status econômico e as áreas beneficiadas pelos investimentos continuam sendo as áreas centrais, que historicamente sempre foram o principal alvo das reformas urbanas realizadas em Campos. Por outro lado, com a instalação do porto do Açu, há um processo de expansão em direção às áreas periféricas e periurbanas, ainda desprovidas de recursos urbanos, portanto baratas e “propícias” à implantação de novos tipos de empreendimentos imobiliários residenciais e comerciais. Os empreendimentos residenciais são os condomínios horizontais fechados, que após serem dotados de todos os serviços urbanos exclusivos pelo setor privado, além de segurança, lazer, tornam6se caros apenas acessíveis às camadas de alta renda. Os empreendimentos comerciais são os hiper6mercados, concessionárias de grandes marcas de veículos, sobretudo importados, hotéis pertencentes a grandes redes internacionais, shopping center, que também já são construídos com toda infraestrutura de que necessitam. O acesso e infraestrura básica são garantidos pelos investimentos públicos. 16 Essas questões são sempre abordadas pelos jornais da cidade como por exemplo Folha da Manhã de (23/02/2013, p. 09), além de Blogs de jornalistas e pesquisadores reconhecidos. Os problemas ambientais foram detectados através de pesquisas do Laboratório de Ciências Ambientais da Universidade Estadual do Norte Fluminense e divulgadas também pela imprensa local (Folha da Manhã 23/02/2013, p. 09) 17 O jornal Folha da Manhã (14/02/2013, p. 09) informa que Campos recebeu R$ 188 milhões em participação especial da Agência Nacional do Petróleo (ANP), referente ao quarto semestre de 2012; informa também que em janeiro de 2013 recebeu R$ 53.978.175,38 de royalties, somando 242.700.269,20 de recursos do petróleo em 2013. Segundo informou o secretário de Governo, Suledil Bernardino de Freitas em entrevista em 13/03/2013, sobre a discussão a redistribuição dos royalties, Campos recebe, entre participação especial e royalties, uma média de R$ 100 milhões/mês. http://www.ururau.com.br/cidades28766_Secret%C3%A1rio6de6Governo6lista6perdas6de6Campos6sem6 os6royalties consulta em 15/03/2013. Página () de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Caracterização da Área de Estudo: áreas adjacentes à Estrada do Contorno (Avenida Sílvio Bastos Tavares) Até recentemente, a área adjacente à Estrada do Contorno (Avenida Sílvio Bastos Tavares), antiga área rural, era caracterizada como espacialmente distante do centro da cidade, periférica, tendo ausência de instalações urbanas básicas. A qual, segundo as discussões aqui apresentadas, pode ser identificada como periurbana. Na década de 1960, ocorreu a instalação de pessoas nas margens da linha ferroviária da RFFSA Campos6Rio de Janeiro, devido à proximidade com os locais de trabalho: a Usina do Queimado e Usina Cupim (Pohlmann, 2008) 18. Atualmente, a área em tela vem recebendo a instalação de empreendimentos e serviços voltados para diferentes grupos sociais nos quais não incluem a população da favela Margem da Linha. Os novos empreendimentos recentemente construídos são apontados por Mothé (2011): Terminal Rodoviário Shopping Estrada (1995), Condomínio Vertical Recanto das Palmeiras (1995), Condomínio Horizontal Sonho Dourado (2000), Concessionárias Honda (2005), Condomínio horizontal Nashville (2007), Hipermercado Super Bom (2007), Condomínio horizontal Athenas Residence Park (2008), Walmart (2008), Loja de venda ao atacado Atacadão Saara (2008), Makro (2008); Condomínio Horizontal Fechado da Torre (2009), INTER TV Planície (2009), e Fiat (2010), o empreendimento mobiliário Fit Vivai (Condomínio Residencial Vertical); Boulevard Shopping Campos (2011)19. Definida no atual Plano Diretor (2008) predominantemente como uma Zona de Expansão Urbana, buscou6se delimitar a área a ser estudada, se baseando na linha imaginária que demarca o Limite do Perímetro Urbano da Cidade de Campos dos Goytacazes20, através da Lei nº. 7.973, de 10 de dezembro de 2007, que delimita os Perímetros Urbanos da cidade. 18 Além dos dados de Pohlmann, durante as saídas de campo, vários moradores relataram o mesmo motivo que levou ao surgimento da Favela Margem da Linha. 19 Desde abril de 2010, o Jornal O Globo fazia menção ao novo empreendimento que seria instalado na cidade de Campos dos Goytacazes (Shopping Boulevard Campos 6 pertencente ao grupo Alliansce, uma das maiores redes de shoppings centers e empreendimentos do Brasil). Sua inauguração foi realizada no dia 26 de abril de 2011. 20 Esta delimitação se inicia no encontro do Canal Campos – Macaé com o Canal de Tócos. Segue uma linha reta até encontrar a BR6101 num ponto que dista 1600m Sudoeste do ponto de encontro desta Rodovia com o eixo da Avenida Sílvio Bastos Tavares (estrada do contorno). Segue uma linha reta até o encontro com a paralela do traçado alternativo projetado da BR 101. Deflexiona a direita, seguindo uma linha reta até o encontro com a paralela da Linha Férrea que acompanha no mesmo sentido a BR 101 e, deflexiona em sentido sudoeste em direção ao ponto inicial. Página (* de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES É importante notar que inicialmente os empreendimentos construídos no local abrangiam classes mais diversificadas, proporcionando a heterogeneidade dos espaços e a possibilidade de troca de experiências. No entanto, nos últimos cinco anos, este ambiente, que ainda era multifacetado, tem se transformado. Percebe6se que os novos empreendimentos que estão sendo instalados no local, buscam um público mais segmentado, com características homogêneas e que buscam o status social. Os exemplos são os condomínios fechados horizontais (Sonho Dourado, Condomínio Fechado da Torre, Nashville e Athenas Residence Park), em que a entrada é restrita, tendo o visitante que se identificar na guarita e aguardar para a permissão de entrada no local. Já no condomínio vertical Recanto das Palmeiras, não há impedimento dos vigias ao acesso do visitante. Exemplos concretos desta segmentação de mercado no local é a instalação de dois empreendimentos ligados a grandes corporações do país que são: o Fit Vivai e o Boulevard Shopping Campos. O primeiro foi incorporado pela construtora TENDA S/A, em outubro de 2008 21 , e o segundo, pertencente ao grupo Aliansce Shopping Center. Como é possível notar no site do shopping22, a área em que o empreendimento está instalado é apresentada como de expansão urbana. Nota6se também, que será integrado ao shopping o renomado hotel Tulip Inn. Esses dados comprovam ainda mais a segmentação de mercado em que está sujeito o local. Além do Tulip Inn, outro hotel também será instalado na área de estudo, o Supreme. Este hotel/apart6hotel possui bandeira internacional, e será construído na Estrada do Contorno, ao lado do condomínio vertical Recanto das Palmeiras. 23. Como pode ser observado, os dois empreendimentos acima citados, representam mais uma ação das grandes empresas em áreas que mostram potencial mercadológico. Na área que era vista no passado como apenas periférica, agora se encontram instalados os empreendimentos privados mais importantes neste momento para a cidade de Campos dos Goytacazes. Vale ressaltar, que a maioria desses empreendimentos se localiza nas proximidades da favela Margem da Linha (alguns são praticamente vizinhos). No entanto, não se nota nenhuma referência à presença da favela nas reportagens, ou 21 Dados retirados de propagandas impressas do empreendimento. Página do site impressa em Anexos. 23 Reportagem no site Folha On Line do jornal Folha da Manhã, http://fmanha.com.br. Consulta 12/08/2011. 22 Página )+ de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS alguma obra que venha favorecer a população já instalada no local, o que demonstra a inexistência de interesse em integrar a população mais carente já instalada no local. Além disso, a população da Margem da Linha não oferece “risco” aos moradores e comerciantes recentemente instalados no local. Segundo moradores e comerciantes estabelecidos na região, a população da favela em não oferece “ameaça alguma, até por que o tráfico de drogas não é tão representativo no local”. Assim, para as pessoas que vivem ou possuem serviços na área, a favela é “bem tranqüila, justamente por seus moradores não circularem constantemente pelos empreendimentos”24. A partir do que foi apresentado até o momento, é possível levantar a discussão de estar surgindo sintomas de determinados fenômenos nesta área o “emuralhamento da vida social” e, logo, o crescimento de “ilhas utópicas” conforme definidos por Paulo César da Costa Gomes, em seu livro A Condição Urbana (2006). Essas “ilhas” representam uma parte do universo urbano; o que é necessário e o que é de bom grado aos olhos de seus moradores; mas a realidade externa, o contraste social, e a problemática urbana, não se encontra presente nesses espaços exclusivos. Enquanto isso, observamos a ausência na favela dos novos programas urbanos implementados pela Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes: o programa habitacional “Morar Feliz”25 e o programa de urbanização “Bairro Legal”26. A população da Margem da Linha ainda não foi assistida por nenhum dos referidos programas, ao passo que a vizinha localidade Tapera foi contemplada com dois conjuntos habitacionais do Morar Feliz e o núcleo urbano Ururaí pelo “Bairro Legal”. Esses programas não têm resolvido completamente os problemas sociais e urbanos porém favorecem a urbanização difusa e fragmentada e aquecem o setores de construção civil. O Bairro Legal apresenta6se como um programa interessante, pois se propõe a redistribuir e estender os recursos urbanos aos bairros periféricos e carentes dos serviços 24 Essas expressões foram usadas pelos próprios comerciantes durante as investigações realizadas nas saídas de campo. 25 Este programa foi lançado no final de 2010 pela prefeita Rosinha Garotinho e tem como principal objetivo garantir moradia digna para a população pobre e periférica da cidade de Campos dos Goytacazes, com promessa de serem construídas 10.000 casas populares. Segundo a Secretaria de Obras e Urbanismo, foram entregues 5.100 casas na primeira etapa. Reeleita para o quadriênio 201362016, a prefeita já anunciou a construção das casas restantes. 26 É um programa que tem por objetivo promover melhorias na infraestrutura e na acessibilidade. Os bairros recebem sistema de drenagem e coleta de esgoto sanitário (construção de nova base e sub6base de tratamento), nova iluminação, construção de passeios públicos e tratamento paisagístico. As obras visam conter os alagamentos das áreas e garantir saneamento básico e a retificação e pavimentação de todas as ruas do bairro. Página ) de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES de infraestrutura: saneamento básico, iluminação e pavimentação das vias de circulação. Porém existem problemas como lentidão e qualidade das obras que apresentam problemas na pavimentação, vazamento de esgotos e de água, gerando conflitos da população com o poder público. O Morar Feliz provoca muitas vezes a remoção forçada dos habitantes de certos assentamentos com a justificativa de estarem em área de rico. Além disso, os conjunto habitacionais são localizados em áreas periféricas e periurbanas com infraestrutura precária, longe de amenidades ambientais, dos serviços e principalmente do emprego, não rompendo com a configuração dual centro6periferia e consolidando a segregação e fragmentação socioespacial. O Complexo Logístico e Industrial do Porto do Açu: AXU versus Açu Essa situação privilegiada – altos valores de royalties 27 e instalação do GPI Complexo Logístico e Portuário do Açu, ou “Superporto do Açu” ou simplesmente Porto do Açu, que é anunciado como “o maior empreendimento do interior do Estado do Rio de Janeiro” – aportando promessa de desenvolvimento – aguçou o interesse da municipalidade de Campos em auferir benefícios com a instalação do Superporto. Durante as obras para sua instalação, haverá possibilidades de oferta de serviços de engenharia e construção pesada, além de máquinas e equipamentos variados. Ainda nesta fase de construção, o contingente de trabalhadores demandará instalação de comércio e serviços no entorno do empreendimento e na cidade (Ribeiro, 2011b). Evidentemente, a demanda por moradia também aumentará, incrementando a construção civil, o mercado imobiliário e o setor hoteleiro. Porém, o empreendimento se situa no visinho município de São João da Barra, mais precisamente no 5º distrito, na localidade de Barra do Açu que deu nome ao complexo logístico e industrial. O município de São João da Barra foi fundado, em 1676 quando o povoado foi elevado à categoria de vila. Mais tarde, em 1814, foi criado o município de Macaé (antiga aldeia indígena). A cidade de São João da Barra foi criada com o objetivo de ser o porto da região (navegação de cabotagem) e juntamente com Campos, também criada, em1676, e com Macaé formavam uma importante tríade na 27 Campos recebeu no início de fevereiro de 2013 R$ 188 milhões em participação especial da Agência Nacional do Petróleo (ANP), referente ao quarto semestre de 2012. Macaé recebeu ontem da ANP, R$ 14.384.364,60 de Participação Especial; Quissamã, R$ 4.117.389,18; e São João da Barra, R$ 33.366.490,67. Estes municípios são também integrantes da Bacia de Campos. Página ) de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS distribuição de produtos da região para o Rio de Janeiro de onde seguiam para o exterior, evidentemente, controlados por Portugal (Faria: 1998: 158). Atualmente o Município de São João da Barra possui 32.767 habitantes28 e se prepara para receber o futuro prometido pelo Porto do Açu: aprovou Plano de Diretor (Lei Municipal Nº. 50/2006) e atualmente discute sua atualização, realiza obras de infraestrutura na cidade e nos distritos29. A vila Barra do Açu, ou apenas Açu, onde o porto está sendo instalado, é um dos núcleos urbanos do 5º distrito, localizada no litoral, vive da pesca e de veraneio. Foi construída uma via asfaltada de acesso ao porto, a partir da BR 316. Porém o acesso à vila permanece sem pavimentação. A mesma não sofreu nenhum grande investimento direto advindo do empreendimento. Mas por ser o núcleo urbano mais próximo, poderá sofrer adensamento, pois ficará limitada em seus espaços, na pequena faixa de terra que lhe sobrou para ocupar entre o mar e três lagoas, a do Salgado, a do Açu e a Lagoa do Veiga. O Distrito Industrial do Complexo tem área prevista de 90 km² “maior que a ilha de Manhattan”, segundo apresentação no próprio site da LLX. O Projeto do porto prevê também um corredor logístico, um novo núcleo urbano a “Cidade X”, na localidade de Cajueiro. Os inúmeros empreendimentos realizados tanto no Município de São João da Barra como de Campos são motivados pelas rendas petrolíferas e pela instalação do Complexo do Porto do Açu. Porém os problemas também são inúmeros, sobretudo para São João da Barra. As atividades recém chegadas e impostas à população do 5º Distrito de São João da Barra apresentam um teor tecnológico e de inovação incompatível com as atividades desenvolvidas localmente, o que pode ser um impedimento para a inserção e participação da comunidade. Sem contar com o impacto sobre a história, a memória nas práticas culturais e sociais locais e regionais. Os problemas ambientais que, evidentemente, tem rebatimento na realidade social e nas atividades econômicas de base, já começaram a se manifestar: salinização da água na região do 5º Distrito e risco de desertificação. Os conflitos sociais provocados principalmente pela remoção forçada dos pequenos proprietários para instalação do distrito Industrial, violando tanto o art. 6º da 28 Dados do censo do IBGE de 2010. A população urbana é de 25.715 habitantes e a rural é de 7.052 habitantes. O município possui 455,04 km². 29 Folha da Manhã 17/02/2013, p.1 do caderno “Folha Região”. Página )% de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Constituição – que prevê o direito à moradia, que ora é negado pelos processos de desapropriação em curso – como a Constituição do estado do Rio de Janeiro, com destaque para o seu artigo 265. Por outro lado há um processo de construção e participação dos movimentos sociais de resistência, frente aos problemas causados pela implantação do Porto do Açu, congregando diversas entidades estudantis, profissionais, religiosas e sindicatos ligados às lutas dos trabalhadores como também pesquisadores das Instituições de Ensino Superior da região (Conceição e Quinto Jr., 2012). A competitividade entre os municípios de Campos e São João da Barra se manifesta nas formas de indução dos governos de investimentos privados decorrentes da instalação do porto do Açu. A questão dos limites entre os dois municípios é um caso sui generis: há um pedido da parte da Prefeitura Municipal de Campos dos Goytacazes em análise no IBGE sobre estes limites. A Alerj (Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro) já tratou deste tema, mas sem os investimentos do Açu, a matéria vem sendo adiada, mas, tudo leva a crer que o assunto possa voltar à baila de uma forma muito mais forte num futuro não muito distante. Considerações finais Os grandes empreendimentos e investimentos como o Superporto do Açu provocam efeitos múltiplos sobre a organização do território em diversas escalas. É dessa forma que assistimos, por exemplo, a construção de novas vias de circulação, a exemplo do corredor logístico mudando a configuração do espaço regional, e a implantação dos empreendimentos imobiliários em Campos dos Goytacazes. As formas de planificação do território impostas por esse processo de desenvolvimento de novas atividades econômicas e industriais geralmente produzem uma expansão e urbanização caracterizadas por fenômenos notadamente marcados por desigualdades socioespaciais que podem ser consideradas como injustas. A gestão do território diante do porte desta nova organização que está sendo induzida pelo empreendimento do Açu é complexa e exige, principalmente uma ação integrada, pois envolve vários municípios e o próprio Estado do Rio de Janeiro, impondo assim uma governança que tenha o diálogo, a interlocução permanente e a participação da sociedade, sobretudo das comunidades diretamente afetadas, como instrumento planejamento e de (re)formulação de políticas públicas e sociais que visem a abolição ou pelo menos a redução das injustiças socioespaciais. Página )& de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Bibliografia CALDEIRA, Teresa Pires do Rio (2000). Cidades de Muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Edusp, Editora 34. CARVALHO, Marcelo Barbosa (2005). “Proximidade Espacial e Distanciamento Social: determinantes da segregação sócio6espacial, a percepção entre segregados e auto6segregados: um estudo de caso sobre a Favela do Matadouro e seu entorno”. 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Página )' de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS DIFUSÃO I TER ACIO AL E MODELAGEM DE POLÍTICAS PÚBLICAS PARA REDUÇÃO DA POBREZA: reflexões sobre políticas sociais brasileiras30 Samira Kauchakje Pontifícia Universidade Católica do Paraná skauchakje@gmail.com Resumo A relação entre as políticas públicas sociais para redução da pobreza e as prescrições de organizações internacionais como ONU, FMI e Banco Mundial sobre o tema podem explicar as semelhanças de tais políticas públicas em países que têm diversidades econômicas e culturais significativas. Quer dizer, a formulação dessas políticas pode estar articulada a fatores do ambiente político e econômico doméstico, mas, também, ao incentivo institucional e padrão cultural internacional, conforme discussão da literatura sobre modelagem internacional e as Theories of Policy Diffusion. Este artigo objetiva apresentar resultados da pesquisa em andamento que investiga políticas sociais para a redução da pobreza dos governos Cardoso, Lula e Dilma sob a perspectiva destas correntes teóricas. A metodologia está na fase exploratória e da organização quantitativa dos dados selecionados em sítios do Banco Mundial, do FMI e da ONU. Na discussão relaciono os dados aos momentos marcantes do sistema de proteção social brasileiro entre os anos 1995 a 2012. Os resultados sugerem que nos governo Cardoso, Lula e Dilma predominou a denominada modelagem “positiva” (isomorfismo) tanto pela aderência das políticas nacionais às diretivas internacionais sobre focalização na população de baixa renda, quanto pelo fato das políticas brasileiras de transferência monetária serem recentemente consideradas modelo pela comunidade política internacional. No segundo governo Lula e no governo Dilma há, por um lado, a modelagem negativa (isto é, políticas que tendo como referência as noções difundidas são formatadas de modo oposto) identificada na articulação entre políticas de crescimento econômico e o aumento ou a manutenção dos valores dos gastos públicos sociais. Isto contraria recomendações das instituições financeiras internacionais que prescrevem austeridade com redução da política pública social. Por outro lado, permanece a modelagem positiva devido à centralidade que os governos vêm atribuindo às políticas que priorizam pessoas de baixa renda combinando6as com uma fragilização de políticas universais, ao invés do fortalecimento da articulação entre priorização e universalidade. Palavras?chave: política pública social, pobreza, difusão de políticas. 30 Esta pesquisa é financiada pelo CNPq. Uma versão preliminar deste artigo foi publicada nos anais do VIII Congresso da ABCP6 2012. Página )( de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES I. Introdução As relações entre as políticas públicas sociais voltadas para a redução da pobreza e as indicações sobre o tema divulgadas por organizações internacionais como ONU, FMI e Banco Mundial, por exemplo, podem explicar as semelhanças de tais políticas públicas que se espalham por países, mesmo entre aqueles que têm diversidades econômicas e culturais. Poderia haver adesão de governantes e pessoal do Estado a um padrão cultural e institucional difundido entre blocos de países e, também, pelo incentivo de organizações internacionais como as Nações Unidas, Banco Mundial e FMI, entre outras. Quer dizer, as modificações e na política social se devem a fatores do ambiente político e econômico doméstico, mas, também, ao incentivo das instituições e ao padrão cultural internacional, conforme discutido pela perspectiva teórica para análise de políticas públicas denominada de modelagem internacional (Skocpol & Amenta, 1986), assim como, pelas Theories of Policy Diffusion (Weyland, 2004; 2005). A literatura recente sobre modelagem e também sobre transplante de políticas públicas cita como referência a atuação recente de entidades internacionais como o FMI e o Banco Mundial, principalmente através do que ficou conhecido por Consenso de Washington. De acordo com a orientação de tais entidades, países em busca de crescimento econômico e (posteriormente) da redução das desigualdades deveriam reformar suas políticas macroeconômicas e suas instituições segundo um modelo padrão usado em países desenvolvidos (Pessali, 2010: 3). No Brasil, a Constituição Federal de 1988 representa uma inflexão no campo dos direitos e políticas sociais, sendo que os governos Cardoso, Lula e Dilma formularam expressivas políticas públicas para redução da pobreza como, por exemplo, Bolsa Escola no caso do primeiro e Bolsa Família para os governos petistas31. Estas políticas públicas se diferenciam das promovidas pelos governos Sarney, Collor e Itamar porque para estes a política de redução da pobreza estava subordinada a políticas e reformas econômicas, enquanto que nos governos escolhidos, a despeito das diferenças entre Cardoso e os subsequentes, a redução da pobreza passa a ser uma política social de caráter redistributivista e articulada com a política econômica. Dados de institutos 31 O Programa Bolsa Família é parte de políticas “guarda6chuva” abrangentes como Fome Zero e, também, Brasil sem Miséria. Página )) de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS oficiais como IPEA32 e de artigos de Fagnani (2011) e Neri (2011) apontam o impacto positivo destas políticas sobre a redução da desigualdade e, especialmente, da pobreza. Estou de acordo com a concepção de impacto positivo ao se levar em consideração a série histórica, particularmente entre os anos 1960 e 2000, que imprimiu a posição brasileira entre os países mais desiguais do mundo e com um número grande de população com baixa renda (aspectos que nos anos 2000 melhoraram, mas, não se reverteu). Posição esta que não estava calcada no tamanho da economia brasileira, mas sim, em fatores ligados ao predatório padrão de apropriação da riqueza social e de usufruto privilegiado dos recursos e serviços públicos por parte da elite econômica brasileira com a anuência do Estado pautado pela ausência ou frágil política social redistributivista e pela política econômica e fiscal sem palpáveis critérios de justiça social entendida como promotora de condições de acesso à população, de forma universal, à riqueza cultural e material da sociedade. Parto da observação que as políticas de redução da pobreza no Brasil tanto absorveram quanto geraram concepções difundidas na comunidade internacional. Tal incorporação de concepções sobre pobreza, cobertura e fontes de financiamento ocorre seja por uma imposição vertical das Instituições Financeiras internacionais, seja devido ao contágio horizontal entre países e especialistas governamentais (Weyland, 2004, 2005). O objetivo deste artigo é apresentar resultados preliminares da pesquisa sobre políticas públicas sociais para a redução da pobreza dos governos Cardoso, Lula e Dilma, sob a perspectiva das Theories of Policy Diffusion e da modelagem internacional, ou seja, apresentar a primeira rodada da revisão da bibliografia e da exploração de dados quantitativos. A hipótese é que as correntes teóricas em foco contribuem para compreender estas políticas públicas. O texto está dividido em dois itens principais: o primeiro aborda a revisão da bibliografia até o momento e o segundo apresenta o teste preliminar de conhecimento dos documentos acessíveis nos sites das organizações internacionais selecionadas 6 Nações Unidas, Banco Mundial e FMI e a discussão destes resultados. 32 Dados sobre o impacto positivo das políticas sociais podem ser encontrados no documento “A década inclusiva” disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/comunicado/120925_comunicado0155.pdf Página )* de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES II – Políticas Públicas e Modelagem Institucional Internacional O conjunto da política pública social nos séculos XIX e XX, juntamente com o keynesianismo, foi responsável pela construção da ordem social que configura um padrão intervencionista do Estado capitalista na proteção social. Estudos como de Rezende (2008) e Draibe (2003) demonstram que as modificações neste padrão, após os anos 1980 até início de 2000, significaram menos declínio e mais adaptação. Rezende (2008: 36) ratifica que “os Estados continuam a exibir fortes padrões de intervenção nas políticas sociais.” Inclusive para o caso do Brasil, os “gastos sociais representam grande porção dos gastos governamentais, e [...] observa6se expressiva expansão das políticas sociais”. Draibe (2003) afirmou serem raros os casos em que as mudanças provocaram mudanças exteriores aos próprios modelos de Estado de Bem Estar Social aos quais se referia Esping6Andersen (1991) – liberal, conservador e socialdemocrata – e que podem ser agrupados em bismarckiano e beveridgeano, Hammoud (2008) concorda ao constatar que em cada país modificações ocorreram de acordo com os constrangimentos institucionais próprios a cada modelo historicamente vigente. Estas constatações estão em sintonia com a linha analítica institucionalista – como discutido em Perissinoto (2004); March, Olsen (2008) e Souza (2006) –, assim como com o incrementalismo que salientam a noção de path dependency, isto é, a importância da trajetória histórica e arranjos institucionais no âmbito da política pública para a delimitação das possibilidades no presente e encaminhamentos futuros de alteração a partir do contexto da chamada crise econômica e dos programas de austeridades propostos nos anos recentes. Para o caso brasileiro, o padrão institucional configurado como conservador6 meritocrático sofreu uma inflexão significativa. Neste modelo conservador há a vinculação entre emprego e o acesso aos benefícios, sendo que a premissa é “que as pessoas devem estar em condições de resolver suas próprias necessidades, com base em seu trabalho (...). A política social intervém apenas parcialmente, completando e corrigindo as ações alocativas do mercado...” (DRAIBE, 1993b: 7). As alterações no padrão ocorreram sob dois direcionamentos em tensão: o da CF88 com princípios redistributivista, universalista e de prestações sociais público6estatais (Draibe, 1993a, Arretche, 2000) e o dos princípios liberais voltados para diminuir a carga de financiamento e de provisão social do Estado, assim como, estabelecer critérios seja de priorizações (seletividade), seja de focalização nos grupos empobrecidos ou em Página *+ de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS miserabilidade (Figueiredo, Limongi, 1995; Fagnani, 2005). Esta trajetória incide sobre a atual formatação do sistema público da política social, incluindo as políticas e programas de combate à pobreza dos anos 2000. 2.1 Correntes teóricas explicativas sobre política pública social As correntes teóricas que explicam a emergência, desenvolvimento e mudanças da política pública de corte social foram sumarizadas por Skocpol e Amenta (1986) e Arretche (1995). Com base nestes textos pode6se organizar quatro matrizes teóricas, com respectivas vertentes, como se segue: A primeira é a corrente de caráter econômico que enfatiza o processo de industrialização ou explica o advento de um sistema de política social como dependente do desenvolvimento do capitalismo. A vertente estrutural6funcionalista destaca a transição do agrarismo para o industrialismo – o crescimento econômico6industrial e mudanças especialmente demográficas decorrentes – como causa primordial que explica o desenvolvimento do welfare state. Entretanto, a forma de sua expansão e modificações subsequentes, em cada sociedade particular, tem como um dos fatores a cultura política referente à relação entre necessidades sociais construídas e modos públicos mais ou menos amplos para seu atendimento. A vertente neomarxista teoriza sobre a política social como uma variável dependente do desenvolvimento interior do capitalismo, isto é, a transição do capitalismo competitivo para o capitalismo monopolista. A política social seria funcional à necessidade de reprodução social, seja nos aspectos da acumulação, legitimação e manutenção de estabilidade social, seja no da participação da constituição da classe trabalhadora e de suas formas de consumo. A segunda corrente explicativa é de caráter político=institucional e focaliza as instituições democráticas ou a ampliação de direitos. O foco nos direitos aborda os efeitos do acréscimo do componente social da cidadania às dimensões civil e política sobre os padrões de desigualdade econômica. O foco nas instituições democráticas, leva em conta que, por um lado, a distribuição de recursos e resultados é afetada pelos governos e, por outro, a política social dos estados de bem6estar têm efeitos redistributivos. Esta abordagem produz vertentes explicativas que irão: a) relacionar as instituições e procedimentos formais da democracia (especialmente participação eleitoral, eleições competitivas) ao crescimento de política social, em seus vários setores; b) destacar o impacto do sistema partidário e a competição entre partidos Página * de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES políticos; c) entender que as demandas e protestos populares influenciam a formulação de políticas sociais; d) partilhar com os neomarxistas a visão de que a questão de classe é o eixo fundamental de poder e da política nas democracias capitalistas industrializadas, com rebatimento na formulação das políticas públicas entre elas a social. A terceira é de caráter institucional e histórico centrado no Estado. A política pública social é moldada pela estrutura organizacional e capacidade dos estados e pelos efeitos políticos de políticas já estabelecidas. Uma de suas subcorrentes não interpreta os estados como meros mecanismos administrativos ou arenas instrumentalizadas por grupos interessados na formatação das políticas, ao contrário, esta subcorrente considera os estados como atores e estruturas. A atenção recai sobre a sequência histórica de construção das estruturas institucionais dos estados, a qual afeta a formulação da política social e, com isso, exerce impacto sobre os partidos políticos, a formação de classe e a cultura política. Outra subcorrente analisa as consequências políticas das políticas já instituídas, destacando que as causas que originam políticas públicas não são necessariamente as mesmas causas de seu subsequente desenvolvimento, em parte, porque as próprias políticas públicas afetam políticas. 33 Políticas públicas são produtos históricos de ações e decisões passadas, sendo que as instituições, uma vez formadas, adquirem um desenvolvimento e movimento praticamente autônomos. A última corrente é a do contexto transnacional. O modo com que a economia, o contexto geopolítico e a cultura internacional se desenvolveram contribuiu para moldar políticas sociais nacionais tanto antes, durante como depois do século XX. Nesta corrente, a análise esta agrupada entre teóricos que a) inserem a política social no âmbito das estratégias de governo ligadas à economia mundial; b) relacionam a política social com a geopolítica e entendem sua formulação como um dos recursos mobilizados no ambiente de competição internacional e; c) observam que um padrão de políticas sociais se espalhou em países com diferentes níveis de desenvolvimento, em especial depois de 1920 e a partir das primeiras implantações na Europa e na Américas. A pesquisa busca operacionalizar a última subcorrente denominada de modelagem institucional internacional, para a qual as políticas sociais são explicadas 33 “As new research is designed, scholars should presume that the causes of policy origins are not necessarily the same as the causes of the subsequent development of policies, in part because policies themselves transform politics. Researchers should likewise be sensitive to precise time periods on national and world scales and attuned to processes unfolding over time. Analysts of states and social policies must, in short, become unequivocally historical in their orientation” (Skocpol & Amenta, 1986: 152). Página * de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS pela adesão de governantes e pessoal do Estado a um padrão cultural e de características institucionais e, também, pelo incentivo de organizações intergovernamentais. As modificações e adaptações na política pública social, portanto, estão relacionadas a fatores do ambiente político e econômico doméstico, mas, também, ao incentivo das instituições e ao padrão internacional. Considero que este último ponto ainda não foi explorado suficientemente nos estudos sobre política social. Por exemplo, Hammoud (2008) não aprofunda esta linha analítica ao tratar dos determinantes domésticos das mudanças no modelo do welfare state em estados europeus, mesmo ao levar em conta tanto as pressões da União Europeia – UE – para a convergência de políticas, quanto às preferências dos atores políticos nacionais. Mauriel (2009: 60) não adensa esta perspectiva teórica ao inserir as reformas da proteção social no Brasil num concerto internacional favorável “ao crescimento e reforço dos mecanismos de mercado”. O mesmo ocorre em Ugá (2004) ao tratar da construção da categoria pobreza como parte e expressão de uma ordem social, política e cultural internacional. Por isso, considero relevante explorar algumas estratégias para estabelecer relações entre concepções da corrente da modelagem internacional e a política relativa à pobreza no Brasil. Para este artigo as estratégias metodológicas foram: buscar documentos sobre o tema disponíveis nos sítios do Banco Mundial, do FMI e da ONU e; discutir os dados quantitativos em relação aos momentos apontados pela literatura como marcantes para o sistema de proteção social brasileiro no período de 1995 a 2012. III – Pesquisa Documental: Primeiros Resultados A busca de documentos nos sítios das organizações internacionais selecionadas34 utilizou as palavras6chave poor, poverty e social policy. Foram computados apenas os textos sobre o Brasil, América ou aqueles de referência mundial, totalizando 598 documentos (tabela 1) 35 34 Estes resultados da busca em sítios das OIs restringem6se a um primeiro teste para observar seu potencial para a construção de dados. Posteriormente haverá o refinamento metodológico e a busca intencional de documentos aludidos como relevantes pela literatura e análise de conteúdo. 35 Busca nos sítios do Banco Mundial, ONU, FMI e UE realizada por Juliane Kelm, Daiana Ximendes, Adriele Cordeiro, Gabriele Cristine e Bernadette Borges, inscritas no PIBIC – PUCPR. Página *% de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Tabela 1. Documentos sobre pobreza e política social, entre 1995 e 2012, encontrados nos sítios de organizações internacionais Ano O U Banco Mundial FMI Total nº % nº % nº % nº % 1995 9 1,69 2 7,14 1 2,63 13 2,01 1996 18 3,38 0 0,00 0 0,00 18 3,01 1997 13 2,44 0 0,00 0 0,00 13 2,17 1998 11 2,07 4 14,29 2 5,26 18 2,84 1999 11 2,07 6 21,43 0 0,00 17 2,84 2000 12 2,26 1 3,57 2 5,26 15 2,51 2001 23 4,32 4 14,29 9 23,68 36 6,02 2002 29 5,45 1 3,57 7 18,42 40 6,19 2003 19 3,57 3 10,71 2 5,26 24 4,01 2004 46 8,65 6 21,43 4 10,53 56 9,36 2005 54 10,15 0 0,00 3 7,89 60 9,53 2006 52 9,77 0 0,00 3 7,89 56 9,20 2007 39 7,33 0 0,00 1 2,63 42 6,69 2008 31 5,83 0 0,00 2 5,26 35 5,52 2009 31 5,83 0 0,00 1 2,63 33 5,35 2010 62 11,65 0 0,00 0 0,00 67 10,37 2011 60 11,28 0 0,00 1 2,63 61 10,20 2012 12 2,26 1 3,57 0 0,00 13 2,17 Total 538 100,00 36 100,00 43 100,00 637 100,00 A partir de 1988 a ONU produziu a grande maioria dos documentos encontrados e nos anos 2000 a distância entre esta organização e as demais aumentou (tabela 1). De forma geral, é expressivo o aumento do número dos documentos a partir do início do novo século (tabela 2)36. 36 É preciso considerar que a busca foi em documentos digitalizados em sites, sendo que é possível, em parte, atribuir o aumento crescente do número de documento devido à difusão do uso de computadores e internet a partir da segunda metade dos anos 1900 Página *& de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Tabela 2. Documentos sobre pobreza e política social, entre os períodos 1995 ?2000 e 2001?2012, encontrados nos sítios de organizações internacionais O U Ano º Banco Mundial % º FMI % º Total % º % 1995 a 2000 74 13,91 13 46,43 5 13,16 92 15,38 2001 a 2012 458 86,09 15 53,57 33 86,84 506 84,62 Total 532 100,00 28 100,00 38 100,00 598 100,00 Cabe lembrar que nas últimas décadas do século XX, especialmente entre os anos 1980 e 90, a perspectiva neoliberal orientou reformas de programas sociais em países com governos de diferentes orientações ideológicas e com diversas trajetórias de política social e de Estado de bem estar. A data da maioria dos documentos encontrados coincide com o “revival” da onda neoliberalizante ou seu novo fôlego advindo da crise no sistema financeiro dos anos 2000 e agravada a partir de 2006 nos EUA e em grande parte da Europa. Porém, o padrão das Instituições Financeiras Internacionais (IFI) é diferente da ONU, pois, enquanto para está o maior número de documentos sobre o tema concentra6se entre 200662012, para as IFI a maioria significativa dos documentos encontrados estão entre os anos 199562005, isto é no final da primeira onda neoliberal e início da crise do sistema financeiro assumida por estas organizações como crise do Estado em termos da sua capacidade de implementação de políticas do sistema de proteção social de cada país (tabela 3). Tabela 3. Documentos sobre pobreza e política social, entre os anos 1995?2005 e 2006?2012, encontrados nos sítios de organizações internacionais O U Banco Mundial FMI Total Ano nº % nº % nº % nº % 1995?2005 245 46,05 27 96,43 30 78,95 302 50,50 2006?2012 287 53,95 1 3,57 8 21,05 296 49,50 Total 532 100,00 28 100,00 38 100,00 598 100,00 Organizações internacionais têm sido difusores de valores e orientações no sentido da reformatação da oferta pública de bens e serviços sociais com a substituição de “políticas keynesianas do pós6guerra por políticas restritivas de gastos” (Souza, 2007: 65). A influência e o impacto do sistema internacional sobre as políticas sociais nacionais se efetivam “mediante processos de difusão e aprendizagem institucional” e, também, “mediante impulsos, incentivos ou vetos”. Não raro, trata6se de uma Página * de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES “articulação assimétrica da agenda internacional e políticas públicas nacionais” (Draibe, 2007: 36). Em atenção a estas determinações alguns países, entre eles o Brasil, condicionaram a implementação de políticas públicas ao “cumprimento do ajuste fiscal e do equilíbrio orçamentário entre receita e despesa, restringindo, de certa forma, a intervenção do Estado na economia”, priorizando a focalização (Souza, 2007: 65) e concebendo arranjos legais para parcerias com as organizações da sociedade civil 37 (Bresser6Pereira, 2004). As principais justificativas para orientações de austeridade e “redução do Estado” são a excessiva centralização e burocratização do Estado (e sua incompetência na gestão social ou incapacidade de atender as novas demandas socioeconômicas) e a crise financeiro6fiscal. Porém, outra interpretação pode ser dada ao desequilíbrio entre receitas e despesas. Isto é, o que se designa como crise ou falência do Estado providência “é, antes de tudo, o problema do grau de socialização tolerável de certo número de bens e serviços.” Uma das razões desta deslegitimação do Estado de bem estar por parte de grupos e organismos internacionais é, de ordem cultural, ou seja, “a crise é de um modelo de desenvolvimento e crise de um sistema dado de relações sociais” (Draibe & Henrique, 1988: 67). Todavia, até início dos anos 2000, estudos demonstraram que as políticas empreendidas neste sentido conseguiram enfatizar a priorização e focalização em grupos sociais mais empobrecidos, reduzir universalidade, alterar normas previdenciárias (Brooks, 2004) e reduzir o gasto social, mas, no geral, não lograram desmantelar o padrão público protetivo previamente existente, ou seja, o modelo de Estado de Bem Estar Social anteriormente firmado em cada país. No caso do Brasil, o gasto social significou menos declínio e mais adaptação às áreas e grupos sociais focalizados (Rezende, 2008; Draibe, 2003). Segundo Hammoud (2008: 30), dados da União Europeia demonstraram que na primeira década dos anos 2000, embora tenham ocorrido mudanças, as grandes tendências permaneceram as mesmas: “os países nórdicos continuam com o Welfare State mais amplo e mais universal, os países do continente com um Welfare State mediano, e a Inglaterra com os benefícios sociais mais módicos e mais ligados ao mercado...”. 37 Organizações com os nomes genéricos de organizações não governamentais – ONGs – e organizações da sociedade civil de interesse público – OSCIPs . Nestes arranjos estão incluídas as empresas com ações de responsabilidade social. Página *' de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Uma vez que o contexto atual é diferente daquele presente na emergência dos sistemas de política pública social 38, a compreensão desta solidez pode ser auxiliada por noções como autonomia e path dependency39, ou seja, políticas públicas são produtos históricos de ações e decisões passadas, sendo que as instituições, uma vez formadas, adquirem um desenvolvimento e movimento praticamente autônomos40 (March, Olsen, 2008; Nascimento, 2009). Os condicionantes institucionais e históricos são observados em certa rigidez e permanências nos sistemas de política social, mesmo após as últimas três ou quatro décadas do movimento e das práticas neoliberais para alterar a direção dos gastos sociais e minar o princípio da universalidade calcada na condição de cidadania e não no do carecimento 41. No final da primeira década do século XXI, entretanto, a crise econômica e fiscal trouxe a oportunidade para que organizações internacionais recuperassem a concepção de Estado mínimo e passassem a incentivar o aprofundamento e aceleração de alterações no sistema público de proteção social que tendem a comprometer os arranjos institucionais de Estado de bem estar que, no século XX, definiram a alargaram direitos e a cidadania por meio de políticas públicas sociais (Lavalle, 2003). São incentivos seletivos para implementação de políticas focalizadas em grupos sociais e necessidades específicas dissociadas ou substitutivas de políticas universais pautadas na generalidade da cidadania, quer dizer, sem a articulação ou a “mescla virtuosa entre programas universais e programas focalizados” (Draibe, 2002: 8) que podem vir a 38 Na atualidade a economia funda6se em uma etapa tecnológica com diminuição ou desaparecimento de postos de trabalho e desemprego de longa duração, acarretando, por um lado, a redução da capacidade do conjunto dos trabalhadores para a contribuição no sistema público de oferta de bens e serviços sociais – contribuindo para a chamada crise fiscal do Estado. Além disso, a composição geopolítica internacional não gira mais em torno do confronto entre bloco capitalista e bloco socialista. Portanto, fatores que participaram das condições de emergência do sistema público de políticas sociais não estão mais presentes, conforme discutido por Castel (2001); Draibe (1989, 2002); Rosanvallon (1995); Arretche (2000) e Laville (2008). 39 “Path dependence não significa apenas que a história e o passado contam, mas sim que [...] quando um país (ou uma região) adota um determinado caminho, os custos de mudá6lo são muito altos. [...] Portanto, eventos anteriores influenciam os resultados e a trajetória de certas decisões, mas não levam necessariamente a movimentos na mesma direção que prevalecia no passado. O conceito de path dependence é importante exatamente porque pode haver uma reação ao path anterior, levando6o a outra direção” (Souza, 2003: 138). 40 Outras vertentes de análise relacionam a resiliência do Estado de bem estar a fatores societários e econômicos (tomando a política pública social como variável dependente), tais como as explicações que destacam a “necessidade” dos sistemas públicos de proteção social diante da crise econômica do período que gera o aprofundamento da questão social em países do capitalismo central e; a força de movimentos sociais contrários à desestruturação do provimento social público e de direitos trabalhistas (Anderson, 1995). 41 Os dados apresentados por Avelino, Brown e Hunter (2007: 235) para a América Latina, no período de 198061999, mostram reestruturação dos programas na área social, sendo que “os gastos sociais têm sido redirecionados”, havendo aumento nos gastos com educação e “o crescimento de programas mais focalizados”. Página *( de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES conjugar a vantagem de garantias universais e a destinação adicional de recursos e serviços para grupos específicos, tendo em vista a e diminuição da desigualdade social. Ao contrário, no entendimento de organizações financeiras internacionais a focalização representa um teto para os gastos sociais dos países do sul e, também, uma “moeda de troca para a [...] reforma dos regimes de welfare state europeus – medida de austeridade para fazer frente à crise fiscal” dos anos 2000 (Fagnani, 2011: 12). No Brasil este foi o período da formatação e consolidação do atual sistema da política pública social com base na Constituição Federal de 1988 – CF1988 e nas leis regulamentadoras. Esta norma jurídica determinou a formatação de políticas sociais orientadas pela solidariedade estatista, ou seja, estabelecimento dos direitos sociais entre os fundamentais; a provisão pública e universal no âmbito da política pública social; e formas de transferência monetária, entre outros pontos. Conforme Fagnani (2011: 12), o processo de formatação do atual sistema brasileiro da política pública social pode ser de ser dividido em três momentos. No primeiro, que abrange o final do regime ditatorial e o processo constituinte, o país caminhou “na contramão do mundo” e seguiu “a rota inversa do neoliberalismo.” Os movimentos sociais e políticos incitaram a introdução de artigos sobre direitos e políticas sociais na CF19886 com princípios de universalidade e competência do Estado como já aludido. O caso brasileiro, portanto, traz uma peculiaridade: a CF1988 “institucionaliza a agenda de universalização e igualdade de acesso na década em que se fortalecem, no cenário internacional, as estratégias de desmantelamento do Estado de Bem6Estar Social.” (Franceze & Abrucio, 2009: 12). No segundo momento, entre 1990 e 2005, é um período caracterizado pela priorização de público6alvo de menor renda e, também, pela regulamentação da política social brasileira. Este processo revela as pressões para diminuir o alcance das garantias constitucionais mediante lei complementar e para a realocação dos gastos sociais42 e os movimentos e políticas contrários a isto. A tramitação de leis e emendas após a Constituição demandou “intensas negociações dentro da coalizão governamental e com a oposição” (Melo, 2005: 860). Nestas arenas estavam presentes grupos cujos valores políticos eram compatíveis com os artigos da CF1988 e grupos cujos valores eram incompatíveis. Grosso modo, os 42 A partir dos anos 1980 e durante os anos 1990 Avelino, Brown e Hunter (2007: 235) observam no Brasil e outros países latino6americanos “mudanças em alocações de recursos para o setor social geradas pela integração econômica e a democratização”, sendo que o crescimento de programas sociais focalizados é um exemplo de como “os gastos sociais têm sido redirecionados consideravelmente”. Página *) de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS primeiros viam na Constituição a materialização “das esperanças progressistas que habitavam as mentes das lideranças e dos militantes políticos situados à esquerda do espectro ideológico durante esse período” (Perissinotto, 2010: 13); e os segundos tinham afinidade com o tradicional padrão conservador das políticas sociais ou alinhavam6se com a perspectiva neoliberal empenhando6se em reformas neste sentido. Nas negociações e embates travados, algumas das estratégias destes grupos foram o adiamento da legislação complementar e interpretações restritivas ou de aprofundamento dos artigos por ocasião da aprovação de leis para sua regulamentação e, também, as emendas constitucionais 43. Entre 1992 e janeiro de 2004 foram apresentadas 50 emendas à Constituição. 26 destas emendas tratam de questões institucionais, 22 de federalismo, 22 de controle fiscal, 11 de política social/direitos sociais e, 11 de economia. Tais áreas organizadas pelo autor não são excludentes, pois, uma emenda pode abranger mais de uma matéria. Emendas constitucionais sobre políticas e direitos sociais compõem 22% do total, mas, esta porcentagem aumenta se considerarmos dois dados: “42% das emendas constitucionais aprovadas refere6se diretamente a aspectos do federalismo brasileiro” e do “total de emendas pertinentes ao federalismo, mais da metade (53%) relaciona6se a políticas e direitos sociais” (Melo, 2005: 860 6 862). O número proporcionalmente grande das emendas em torno da política social reflete tanto a sua constitucionalização quanto o programa de reforma na área que foi empreendido, especialmente, nos anos 1990 e início de 2000. Quer dizer, uma vez que o texto constitucional abrange questões da política específica, grande parte da reforma e “iniciativas na política social e redução da pobreza” foi viabilizada via emendas constitucionais44 (Melo, 2005: 867). Mas, apesar de emendas e regulamentações nem 43 Para as leis regulamentadoras destaco os seguintes exemplos: o artigo 203 (V) da CF88 6 que trata da garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso sem meios de garantir o próprio sustento, nem tê6lo provido por sua família 6 foi regulamentado no artigo 20 da lei 8.742/1993. Para a elaboração da lei houve debate sobre se a falta de condições de garantir o sustento seria interpretada com base na renda familiar de um salário mínimo ou não. Venceu a interpretação mais restritiva que considera a renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo; o artigo 3º da CF88 – que trata da erradicação da pobreza – é referência para a lei nº 10.835/2004 instituindo a renda básica de cidadania que se constitui no direito de todos os brasileiros residentes no País e estrangeiros residentes há pelo menos 5 (cinco) anos no Brasil, não importando sua condição socioeconômica, receberem, anualmente, um benefício monetário. O artigo 3º é, também, referência para a lei nº 10.836/2004 (Bolsa Família) que prevê transferência monetária para famílias que se encontrem em situação de extrema pobreza. A implementação de política governamental, até hoje, restringiu6se a esta segunda lei e a lei 10.835/2004 não foi, até hoje, regulamentada. 44 Um exemplo é a Emenda nº 31/2000 que criou o Fundo de Combate à pobreza aprovado depois de negociação sobre a origem dos recursos que o manteria. A Comissão estabelecida para este fim e o governo concordaram com a alternativa de aumentar a alíquota do imposto sobre as transações financeiras Página ** de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES sempre alinhadas com o “tom” geral da CF1988, as grandes linhas constitucionais para a política social promoveram um padrão legal de inspiração social – democrata. O terceiro momento da formatação do atual sistema da política pública social seria a partir de 2006 no qual, segundo Fagnani (2011: 13) as políticas sociais estão articuladas a uma “estratégia macroeconômica, direcionada para o crescimento econômico com distribuição de renda”. Esta periodização permite estabelecer relações entre o número de documentos das organizações internacionais e os momentos de formatação e consolidação do sistema brasileiro da política pública social atual (SBPPS), momentos estes mais ou menos coincidentes com períodos de governos (tabelas 4 e 5). Tabela 4. Documentos sobre pobreza e política social, entre 1995 e 2012, encontrados nos sítios de organizações internacionais, em relação aos governos e ao sistema brasileiro de política pública social. Anos Momentos do SBPPS 1995?2005 2º momento (seletividade 6menor renda 6 e regulamentação da política social) 3º momento (articulação entre 2006?2012 pol.combate à pobreza e pol. econômica) Total Governos Doc. internacionais nº % FHC; Lula 302 50,50 Lula, Dilma 296 49,50 598 100,00 No 2º momento do SBPPS, especialmente nos governos Cardoso e início do Lula, a política social está sendo regulamentada. Nestes anos são formuladas e visibilizadas políticas com foco na pobreza e de transferência monetária no Brasil e encontra6se metade (50,50%) dos documentos das organizações internacionais sobre o tema. No 3º momento os documentos correspondem à praticamente metade dos selecionados (apesar do conjunto de anos do período 200662012 ser menor que o 19956 2005) (tabela 4). (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira – CPMF). A Emenda Constitucional nº 29 “estipulou valores mínimos para os investimentos na área de saúde nos três níveis de governo”. A Emenda Constitucional nº 14, instituiu o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério 6 FUNDEF.” (MELO, 2005, p. 859, 866). O “produto final desse consenso foi o jogo constitucional em torno da vinculação de recursos para as áreas sociais da saúde e da redução da pobreza [...] O Congresso aceitou a instituição de novos impostos ou alíquotas para os impostos existentes em troca de mais recursos fiscais, inclusive para os setores sociais que passaram a absorver uma parcela cada vez mais expressiva do orçamento” (Melo, 2005: 867). Página ++ de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Na literatura há um debate sobre a existência de semelhanças ou diferenças, e em que medida, entre os governos FHC e Lula. Boito Jr. (2007) argumenta que programas sociais focalizados na população de baixa renda dos governos FHC e Lula, têm em comum ao fato de negligenciarem políticas sociais universais, o que, nos dois períodos, incidiu sobre a capacidade e qualidade de atendimento dos serviços previdenciários, de saúde e educação, por exemplo. Situação que impulsiona parte da classe média baixa e as classes com rendimento superiores a buscarem tais bens no mercado, fortalecendo, assim, os setores de prestação e venda de serviços. Diniz (2007) entende que as diferenças entre os governos FHC e Lula estão justamente no aspecto da fração do setor empresarial favorecida pelas políticas governamentais. No período FHC, a Reforma do Estado rompeu com o corporativismo aos moldes do período do nacional6desenvolvimentista e afrouxou a intervenção do Estado nas áreas das políticas econômica e social, o que esteve alinhado a medidas de favorecimento do setor empresarial ligado ao capital financeiro internacional. No primeiro período do governo Lula, embora sejam mantidas a política macroeconômica e a hegemonia do capital financeiro, há a implementação de políticas econômicas que contemplam objetivos de desenvolvimento e o setor do empresariado vinculado ao capital produtivo nacional. Boito Jr. (2005: 54) considera, também, que nos dois governos a priorização de políticas compensatórias por meio de programas de transferência monetária está alinhada com o “discurso ideológico neoliberal que estigmatiza os direitos sociais como privilégios.” Fagnani (2005: 551) situa especialmente no governo FHC este alinhamento entre as políticas e programas sociais brasileiros e as diretrizes neoliberais de instituições como FMI e BIRD45. No que tange ao governo FHC, Draibe (2003: 11) diverge desta concepção. Para a autora, os programas de enfrentamento a pobreza tinham potencial para “reduzir as chances da reprodução da desigualdade sob o manto de programas universais”, pois, a alocação prioritária de recursos destinados a grupos selecionados estaria vinculada e não substituiria políticas universais. Neri (2007, 2011) e dados oficiais (IPEA (2012), como mencionado anteriormente, constatam que políticas com critérios de seletividade e transferência monetária, implementadas desde os governos FHC até os de Lula e Dilma, tiveram um impacto positivo no sentido de redução da desigualdade de renda e diminuição da 45 FMI – Fundo Monetário Internacional, BIRD – Desenvolvimento. Internacional para a Reconstrução e o Página + de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES pobreza. Entendo que é neste ponto que reside o aspecto de continuidade das políticas pública de combate a pobreza dos governos FHC, Lula e Dilma, a despeito das posições partidário6ideológicas destes governantes que têm rebatimentos e imprimem diferenças de prioridades, opções orçamentárias e na formulação da política pública social em geral. Tabela 5. Documentos sobre pobreza e política social, entre 1995 e 2012, encontrados nos sítios de organizações internacionais em relação aos momentos do sistema brasileiro de política pública social e governos brasileiros Anos Governos 1995?2002 FHC Momentos do SBPPS Doc. internacionais 2º momento (seletividade 6menor renda e legislação sobre política social) nº % 165 27,59 359 60,03 74 12,37 598 100,00 2º momento seletividade 6menor renda e 2003?2010 Lula legislação da política social) 3º momento (articulação entre pol. redução da pobreza e pol. econômica) 2011?2012 Dilma 3º momento (idem) Total Chama a atenção a possível relação nos anos dos governos Lula e Dilma dos seguintes dados: concentração de mais de 70,0% dos documentos coletados das instituições internacionais; agravamento da crise econômica mundial e o recrudescimento das medidas e recomendações das IFI no sentido da austeridade econômica com encolhimento do sistema universalista de proteção social e priorização da destinação dos gastos e serviços sociais para os grupos empobrecidos; políticas sociais brasileiras para redução da pobreza são consideradas modelos pelos organismos internacionais e; são principalmente nestes anos que os dados sobre o impacto positivo destas políticas implementadas no Brasil desde o início dos anos 2000 são divulgados interna e internacionalmente (IPEA, 2012; Neri, 2007; Neri, 2011) (tabela 5). Os dados do período 199562012 e a literatura sugerem ter havido uma adesão dos governantes brasileiros e formuladores de políticas aos valores e arranjos institucionais difundidos internacionalmente, assim como, que as políticas públicas brasileiras participaram como condutoras da difusão e modelagem internacional de políticas públicas para redução da pobreza. Página + de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS IV ? Conclusão A questão que norteou a discussão é se e de que modo as teorias da modelagem e da difusão internacional de políticas poderiam contribuir para a compreensão das políticas públicas sociais para redução da pobreza no Brasil a partir de 1995. Algumas conclusões parciais podem indicar a resposta, como se segue. A articulação entre as políticas públicas sociais brasileiras de combate à pobreza e miséria, o aprendizado e difusão cultural e os incentivos institucionais internacionais demonstram tanto uma modelagem “positiva” (isomorfismo) como, também, uma modelagem “negativa” (baseada nas concepções difundidas, mas, numa direção oposta). No governo Cardoso e primeiro governo Lula haveria maior grau de incorporação e contágio de prescrições internacionais em comparação com o segundo governo Lula e Dilma, nos quais as políticas brasileiras de transferência monetária são difundidas e consideradas modelos exitosos a serem aprendidos. A modelagem negativa é observada na elaboração da Constituição Federal que, inversamente ao ambiente neoliberal internacional, consolidou a competência estatal e a combinação da universalidade e seletividade da cobertura. O isomorfismo é identificado nos governos Cardoso, Lula e Dilma tanto no sentido da aderência destes às diretivas internacionais sobre priorização da população de baixa renda como, também, das políticas brasileiras de transferência monetária serem consideradas modelo pela comunidade política internacional. Nos últimos dois períodos de governos há modelagem negativa, observada na articulação entre políticas de crescimento econômico e gastos públicos sociais (contrariando recomendações de organismos financeiros internacionais sobre austeridade com redução da política social) e, também, modelagem positiva devido à centralidade da priorização de grupos sociais e risco de redução da perspectiva universalista. Portanto, há indícios na literatura especializada e nos dados explorados da relação entre cultura e instituições no contexto transnacional e a política social brasileira relativa à pobreza. 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Gestores e empreendedores vêm construindo e difundindo uma marca em torno da Cidade do Rio de Janeiro que remete às suas belezas naturais, à cultura, ao lazer, aos esportes, aos grandes eventos internacionais, sendo priorizadas como áreas de investimento em termos de políticas públicas aquelas detentoras de maior visibilidade e capazes de atrair investidores nacionais e internacionais, bem como um público “qualificado”, principalmente os turistas. Durante anos, a imagem do Rio de Janeiro foi maculada pelo crescimento da pobreza e pelo avanço da criminalidade e, em nome do restabelecimento da ordem e da segurança, vem se fortalecendo no contexto carioca o poder punitivo como modo de administração dos efeitos das políticas neoliberais sobre os segmentos populares, onde usuários de crack, população em situação de rua, ambulantes, “flanelinhas” tornam6se alvos preferenciais das investidas da “política de tolerância zero” que grassa, com vários matizes, na Cidade e que tende a qualificar tais segmentos como “classes perigosas”. Palavras?chave: Cidade, Política Urbana, Pobreza Página +) de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS A título de introdução: Anos 90 – uma guinada no planejamento urbano Vimos constatando, desde o início dos anos 90, que uma nova concepção de cidade e de planejamento urbano impõe6se, a cada de dia e de forma mais decisiva, em vários lugares do planeta. No que se refere à realidade brasileira, o Rio de Janeiro talvez seja exemplar para o entendimento desta nova dinâmica, num contexto onde as cidades passaram a se constituir em locais privilegiados de articulação de interesses econômicos e tecnológicos, orientadas por uma visão estratégica em relação ao planejamento urbano. Segundo Carvalho (2006, p. 6), evidencia6se, desde então, a conformação de uma “nova geografia e uma arquitetura produtiva que tece redes e nós e qualifica e desqualifica espaços em função de fluxos mundializados”, produzindo impactos “sobre a morfologia territorial e social e sobre a organização e funcionamento dessas cidades, sobre a qualidade de vida urbana, as desigualdades e as mobilizações políticas e sociais”. O que se persegue, nesse sentido, é a inserção de cada cidade no que se convencionou chamar de mercado mundial de cidades e, para tanto, coloca6se como fundamental o investimento em atividades vinculadas ao terciário avançado, assim como a descoberta e/ou reforço de elementos que expressem a vocação de cada uma delas, a sua marca, seu “diferencial” em relação às demais. (Maia, 2006: 63) A cidade, nesse sentido, é qualificada enquanto mercadoria a partir dos insumos que detêm e que são valorizados pelo capital transnacional, a exemplo do sugerido por Borja & Forn (apud Vainer, 2002: 79). Tais insumos seriam, segundo os mesmos autores, todo um conjunto de infraestruturas e serviços capazes de atrair “investidores, visitantes e usuários solventes à cidade e que facilitem suas ‘exportações’ (de bens e serviços, de seus profissionais, etc.) (Borja & Forn, apud Vainer, 2002: 80). Gestores e empreendedores têm construído/reforçado e difundido uma marca em torno da Cidade do Rio de Janeiro que remete às suas belezas naturais, à cultura, ao lazer, aos esportes, aos grandes eventos internacionais – de caráter esportivo, ecológico ou cultural. Para tanto, propõem, em parceria, políticas urbanas pautadas em intervenções excludentes, segregacionistas, claramente comprometidas com as demandas do capital, sem qualquer compromisso com aquelas colocadas legitimamente pelos citadinos. Tanto é assim que as áreas priorizadas pelos referidos projetos são aquelas detentoras de maior visibilidade e as que agregam equipamentos voltados para o turismo, para a cultura e o lazer, sendo capazes de atrair investidores nacionais e Página +* de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES internacionais, bem como um público “qualificado”, principalmente os turistas. Diante de intervenções como estas, a paisagem da Cidade demonstra, claramente, sua adequação aos interesses dos grupos dominantes, conforme sugerido por Zukin46: A paisagem é claramente uma ordem imposta ao ambiente – construído ou natural. Portanto, ela é sempre socialmente construída: é edificada em torno das instituições sociais dominantes (a igreja, o latifúndio, a fábrica, a franquia corporativa) e ordenada pelo poder dessas instituições. […] Desse modo, a paisagem dá forma material a uma assimetria entre o poder econômico e o cultural. Essa assimetria de poder modela o sentido dual da paisagem (2000: 84). Por outro lado, as iniciativas de renovação urbana que marcam a contemporaneidade trazem subjacente o discurso de “recuperação da história”, do patrimônio, pautando6se em elementos de ordem simbólica, e não material exclusivamente. Investe6se, assim, em espaços capazes de se constituírem em centros culturais e/ou de restabelecerem a vida a locais que, ao longo dos anos, passaram por processos de deterioração/obsolescência, induzindo a um movimento de “volta à cidade”, no sentido de requalificação/retorno à sua área central, em parte como decorrência do reencontro glamouroso entre cultura (urbana ou não) e capital” (Arantes, 2002: 5). O investimento na “imagem” das cidades também tem sido privilegiado pelos governos locais, conferindo6lhes não só um caráter de mercadoria, mas, igualmente, atribuindo um cunho empresarial às ações e programas que nelas desenvolvem. Com isto, tiram partido da positividade da imagem construída, relacionando6a às suas próprias ações e traduzindo6a em elementos como “respeitabilidade, qualidade, prestígio, confiabilidade, inovação” (Harvey, 2001: 260). Assim, ainda segundo o mesmo autor, a “competição no mercado da construção de imagens passa a ser um aspecto vital da concorrência entre as empresas (...), [servindo] para estabelecer uma identidade no mercado” (2001: 260). 46 Zukin, entretanto, considera possível a emergência de construções sociais que, ao contrário de denominadas paisagens, seriam tratadas como VERNACULARES, chanceladas pelos “sem poder”. (Zukin, 2000: 84). Reportando6se aos contra6usos passíveis de emergirem em espaços vernaculares, afirma Leite: as ‘táticas’, quando associadas à dimensão espacial do lugar, que as torna vernaculares, se constituem em um contra6uso capaz não apenas de subverter os usos esperados de um espaço regulado como de possibilitar que o espaço que resulta das ‘estratégias’ se cinda, para dar origem a diferentes lugares, a partir da demarcação socioespacial da diferença e das ressignificações que esses contra6usos realizam (2004: 215, grifos do autor). Página + de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Diante disso, a marca estabelece6se como o diferencial de uma cidade, sendo constituída a partir daquilo que ela apresenta como sua vocação – o turismo, os negócios, a cultura. Definem6se algumas especializações entre as cidades, ao mesmo tempo em que são tecidas relações de complementaridade e, paradoxalmente, de competição (Maia & Icasuriaga, 2012: 06) Em última instância, o que se pretende é torná6las funcionais ao atual estágio do capitalismo, onde 6 da mesma maneira que se evidencia na produção – também o planejamento urbano é marcado pela flexibilidade, pela orientação pelo/para o mercado. Para Vainer, O neourbanismo privilegia a negociação e o compromisso em detrimento da aplicação da regra majoritária, o contrato em detrimento da lei, a solução ad hoc em detrimento da norma. Mas a flexibilidade não é senão um dos elementos do novo modelo. A transposição de conceitos e métodos do planejamento estratégico empresarial, nascido na Harvard Business School, conduziu rapidamente a que as cidades fossem, elas também, pensadas como empresas, em competição umas com as outras. […] E, já que a cidade é uma empresa, como tal deve ser conduzida. Por conseguinte, há de ser entregue, sem hesitação e sem mediações, a quem entende de negócios: os empresários capitalistas. As parcerias público6privadas são a nova senha também nas cidades (2011: 13). O embrião dessa perspectiva “empresarial” e “mercadológica” se apresenta, no início da década de 90, na cidade catalã de Barcelona (que foi eleita, em 86, para sediar os Jogos Olímpicos de 1992). Segundo Sanchez, as publicações e documentos que condensam as principais diretrizes do modelo de planejamento urbano levado a termo naquela cidade apontam para “um grande comprometimento das agências de cooperação e instituições multilaterais [como o FMI, a OMC, o Banco Mundial e a ONU] com a difusão dos chamados “modelos” e seu ideário” (Sanchez, 2001: 32). A velocidade de propagação do referido modelo de cidade, sobretudo em função do protagonismo das agências multilaterais de cooperação, associado à influência dos experts catalães, “permite=nos o entendimento das conexões entre o chamado “pensamento global” e a ideologia neoliberal”. (Sanchez, 2001: 32). As cidades, ao assumirem a qualidade de mercadorias, são tornadas fruto de uma estratégia global de produção do espaço. Sob essa nova concepção de planejamento, as intervenções urbanas e os instrumentos elaborados para tal sustentam6se em propostas de “revitalização”, Página de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES “preservação”, “refuncionalização”, “competitividade”, “marketing urbano” – discursos e práticas que camuflam e revelam tanto representações, quanto disputas materiais e simbólicas para sua efetivação, demonstrando pouca atenção/preocupação em relação aos desejos e demandas legítimos da maioria dos citadinos. Os projetos que se apresentam – sobretudo aqueles voltados para as artes e a cultura, os esportes e o lazer –, além de “mega”, possuem um fabuloso apelo simbólico e convocam a população a um tipo de participação que poderíamos chamar de contemplativa ou, segundo Sanchez, a um “patriotismo de cidade” (Sanchez, 2001). Os meios midiáticos47, através da forma espetacular com que tratam o cotidiano e o processo de produção/renovação do espaço urbano, assumem um papel fundamental e estratégico no estímulo a essa forma de “participação”, sendo constantes as campanhas que, de maneira clara ou subliminar, incitam a população a uma adesão às políticas e aos projetos em curso na cidade, bem como difundem formas e usos adequados de determinados equipamentos urbanos. Para Sanchez, a “política de comunicação social, além de instrumento para a renovação urbana, visa a construir uma ordem urbana sob a qual as formas de viver a cidade que não se adaptem à cidade=pátria são interpretadas como “ingovernabilidade”, desordem.” (2001: 45). Nesse novo momento das cidades, os projetos apresentados à população são, em geral, justificados a partir do legado que deixarão para as cidades: “Em troca do negócio, nos diz, vamos cuidar do meio ambiente, dos transportes, da questão social. […] O legado, já sabemos de antemão: a socialização dos custos e a privatização dos benefícios. E cidades ainda mais desiguais e injustas” (Vainer, 2011: 14). Em resumo: dívidas, desperdício de dinheiro público, dentre outros. A legitimidade das propostas decorre, sobretudo, do recurso ao saber técnico produzido por “experts”, que são recrutados nas mais distintas áreas de saber: Publicitários, consultores em marketing, produtores culturais, conselheiros em comunicação e pesquisadores de mercado são os agentes exemplares que emergem 47 Quando falamos de mídia, referimo6nos às empresas de comunicação de ampla difusão e alcance no território nacional e que reproduzem a ideologia hegemônica. Segundo Canclini, Uma descoberta que se confirma em diversas pesquisas dos últimos anos é que a imprensa, o rádio e a televisão contribuem para reproduzir, mais do que para alterar, a ordem social. Seus discursos têm uma função de mimese, de cumplicidade com as estruturas sócio6econômicas e com os lugares comuns da cultura política. Mesmo quando registram manifestações de protesto e testemunham a desigualdade, editam as vozes dissidentes ou excluídas de maneira a preservar o status quo. (2002: 50) Página de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS como figuras centrais associadas à gestão empresarial das cidades. Têm como missão dar forma mercadológica aos projetos políticos das coalizões com interesses localizados (Sanchez, 2001: 40). Bem sabemos que a justificativa de determinadas políticas ou intervenções urbanas a partir do acionamento de um saber técnico6científico não é novo na história da Cidade. Já na virada do século XIX para o século XX e, principalmente, sob o governo de Pereira Passos, entre 1902 e 1906 – quando o que se propagava era a necessária adesão da Cidade a um projeto de modernidade (que podemos traduzir como sua assunção definitiva de um caráter capitalista) – a associação entre política e saber técnico6científico já era bastante comum. Segundo Rodrigues, naquele momento ganham importância os laudos científicos e três instituições funcionam como respaldo do progresso e avaliadoras do término das reformas: o Clube de Engenharia – que movimenta a “elite técnica” e se assenta nas figuras de Paulo de Frontin e Francisco Bicalho, além do apoio de Lauro Muller – institui as leis de desapropriação; a Saúde Pública, por intermédio de Oswaldo Cruz, que define os critérios de civilidade e atua como instrumento de controle da vida social, estabelecendo os padrões mínimos de higiene e saneamento para a cidade e sua população; e a polícia, que cria as condições de defesa dos padrões burgueses de educação e garante a renovação. Com uma nova estrutura, amplia suas funções e ganha condições de cobrar as posturas municipais e cuidar do despejo das áreas desapropriadas (2009: 111). A intolerância frente à desordem – o receituário da “tolerância zero” se espalha… Na contemporaneidade, práticas similares tornam6se cada vez mais frequentes, sobretudo aquelas que, em nome do restabelecimento da ordem e da segurança, contribuem para o fortalecimento do poder punitivo como modo de administração dos efeitos das políticas neoliberais sobre os segmentos pobres das sociedades. Wacquant (2001), embora desenvolva sua análise a partir da observação de sociedades ditas avançadas, alega que, hoje, a maioria das intervenções urbanas não pode prescindir da lei e da ordem. Neste sentido, a desregulação social seria compensada pela expansão do Estado Penal, que pauta sua intervenção em intervenções sustentadas, prioritariamente, na repressão à criminalidade e no combate à violência, sobretudo nos grandes centros urbanos onde efeitos das políticas econômica e social em curso se apresentam de forma mais evidente. Página % de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Da mesma maneira que o neoliberalismo teve seus ideólogos e o modelo de planejamento estratégico das cidades foi gestado intelectualmente e difundido por alguns de seus mentores, a dita “política de tolerância zero” – cuja experiência pioneira foi levada a cabo por Rudolph Giuliani, prefeito de Nova Iorque entre 1994 e 2001 – pautou6se em ideias de William Bratton, ex6chefe da polícia Nova Iorquina, além de Charles Murray, James Q. Wilson e George Kelling. Segundo Wacquant (2001), foram eles importantes autores de textos que traziam elementos que dariam suporte à referida política. Em linhas gerais, o que preconizavam é que o mal deveria ser cortado pela raiz e, neste sentido, mesmo os pequenos delitos, as incivilidades, tudo aquilo que perturbasse a ordem pública e os direitos do “bom cidadão” precisaria ser reprimido. O que sustentava tal pressuposto era a tão propalada “teoria da vidraça quebrada”, formulada por James Wilson em 1982, segundo a qual “lutando passo a passo contra os pequenos distúrbios cotidianos é que se faz recuar as grandes patologias criminais” (Wacquant, 2001: 25). Fato é que grande parte das ações repressivas que foram empreendidas em Nova Iorque sob tal justificativa passaram a recair sobre a miséria. Ou seja, verificou6se, progressivamente, a criminalização da pobreza com a montagem de um aparato repressor policial a partir da liberação de “um cheque em branco para perseguir agressivamente a pequena delinquência e reprimir os mendigos e os sem=teto nos bairros deserdados” (Wacquant, 2001: 25); isto sem falar em outras medidas não menos polêmicas e coercitivas, como a paulatina “mutação do welfare em workfare e a instituição do trabalho assalariado forçado para as pessoas ‘dependentes’ das ajudas do Estado” (Wacquant, 2001: 43), disseminando6se, assim, a ideia de que na “excessiva generosidade” das políticas sociais estaria a origem da violência. Todas as práticas adotadas em termos de segurança em Nova Iorque visavam o atendimento a um objetivo principal: refrear o medo das classes médias e superiores – as que votam – por meio da perseguição permanente dos pobres nos espaços públicos (ruas, parques, estações ferroviárias, ônibus e metrô, etc.). Usam, para isso três meios: aumento em 10 vezes dos efetivos e dos equipamentos das brigadas, restituição das responsabilidades operacionais aos comissários de bairro com obrigação quantitativa de resultados, e um sistema de radar informatizado com arquivo central sinalético e cartográfico consultável em microcomputadores a bordo dos carros de patrulha) que permite a redistribuição contínua e a intervenção quase instantânea das forças de ordem, desembocando em uma Página & de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS aplicação inflexível da lei sobre delitos menores tais como a embriaguez, a jogatina, a mendicância, os atentados aos costumes, simples ameaças a ‘outros comportamentos anti6sociais associados aos sem6teto’ (Wacquant, 2001: 26). Para Bratton, chefe da polícia nova6iorquina de então, os inimigos a serem combatidos eram, prioritariamente, aqueles que abordavam os motoristas nos sinais de trânsito, os “pequenos passadores de drogas”, os vagabundos, os pichadores. Em suma, todos os que não sabiam se comportar em público. Daí a necessidade de se restabelecer à maioria dos citadinos a tão desejada “qualidade de vida” – traduzida na política de “tolerância zero”. Assim, o uso de aparatos repressivos por parte do Estado coloca6se como fundamental para fazer frente ao aumento da insegurança social, demonstrando que uma “mudança em curso da assistência social para o tratamento penal da marginalidade urbana” (Wacquant, 2011: 4). As práticas levadas a termo em Nova Iorque sob o nome de Política de Tolerância Zero – ou “Política de Qualidade de Vida” – acabaram por se globalizar, alcançando rapidamente alguns países europeus e chegando também à América Latina. No caso brasileiro, foi em Brasília, no governo de Joaquim Roriz, em 1999, que pela primeira vez se falou em “tolerância zero”, num momento em que a cidade estava sendo acometida por mais uma “onda” de crimes violentos. Entretanto, é no Rio de Janeiro que, desde 2009 – já sob a gestão do Prefeito Eduardo Paes e em função, principalmente, dos grandes eventos que a Cidade tem sediado e de outros que estão por vir –, que os discursos da segurança e da ordem pública assumem centralidade. O referido ano, inclusive, foi marcado pela vinda de Rudolph Giuliani à Cidade e pelos elogios que fez às forças de segurança, durante encontro que teve com autoridades representantes do Governo do Estado e da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Tal qual ocorrido em Nova Iorque, o que constatamos, desde então – o que também não é inédito em nossa história 6, é a realização, pela burguesia e por seus representantes políticos, da “contenção da pobreza por meio da criminalização dos pobres”, conforme nos diria Menegat (2008: 155). Segundo este mesmo autor, Ao reduzir os conflitos a um problema penal, despolitizando6os, o Estado, como comitê de organização do domínio do grande capital, seleciona os agentes sociais conforme a sua irrelevância na reprodução das relações sociais, o que invariavelmente recai sobre as opressões étnicas (negros, árabes, índios), o local de moradia (pobres da periferia) ou as formas de atuação (movimentos sociais) (Menegat, 2008: 164). Página de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Rio de Janeiro: Cidade Maravilha, da DESORDEM e do caos – a adoção de medidas repressivas para enfrentamento do caos urbano Pobres, negros, favelados têm sido, neste sentido, os alvos preferenciais das investidas dessa “política de tolerância zero” que grassa, com vários matizes, na Cidade do Rio de Janeiro. Para tanto, governos estadual e municipal (e, quando “convocado” também o federal), cada vez mais articulados, submetem as políticas sociais (sobremaneira a de assistência social e a de habitação) à política de segurança pública. Sendo esta última de competência estadual, não é a toa que, no âmbito municipal, ela terá uma “versão adaptada” – qual seja, de “ordem pública” – organizada a partir da SEOP, Secretaria Especial da Ordem Pública, não por acaso criada em 2009, já na gestão do atual prefeito da Cidade. Tal Secretaria apresenta6se como “um órgão regulador e fiscalizador da atividade econômica, das posturas municipais e regulamentador do uso do espaço público”, tendo com missão “ordenar os espaços públicos do Rio de Janeiro fazendo valer as legislações municipais e o Código de Postura da cidade”48. Os resultados que busca, a partir das suas ações, são bastante parecidos com aqueles postulados por Giuliani, durante sua gestão na prefeitura de Nova Iorque: Avançar no restabelecimento da Ordem Pública em caráter permanente e duradouro Contribuir para melhora da conservação dos espaços públicos Garantir o uso do espaço público de forma segura Pôr um fim à desordem urbana, combater os pequenos delitos nos principais corredores, contribuir decisivamente para a melhoria da qualidade de vida em nossa cidade49. Fica patente, a partir da leitura dos resultados perseguidos e das intervenções realizadas, que enquanto a Medicina Social, com suas práticas higienistas, dava sustentação às intervenções urbanas e aos recortes estabelecidos em termos de prioridades às políticas públicas /sociais na virada do século XIX para o XX, em nome da modernidade vislumbrada para a Cidade, na contemporaneidade é ele – o discurso da 48 http://www.rio.rj.gov.br/web/seop/exibeconteudo?article6id=94564 . Consultado em 10/09/2012) Tais resultados também se encontram expressos no site da SEOP: http://www.rio.rj.gov.br/web/seop/exibeconteudo?article6id=94564 Acesso em 10/09/2012. 49 Página ' de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS lei e da ordem 6 quem traça os caminhos, inclusive em termos de política urbana, para a Cidade do Rio de Janeiro do Século XXI. Na gestão anterior – do Prefeito César Maia 6, algumas das ações já haviam sido esboçadas. Com sua visão mais “engenheira”, Maia esteve à frente da Prefeitura da Cidade em meados dos anos 90 e voltou no início dos anos 2000 para cumprir mais dois mandatos, onde realizou intervenções urbanas centradas em obras voltadas para o embelezamento, principalmente da Zona Sul, a mais elitizada do Rio, além de “dedicar6 se” ao programa Favela6Bairro, provendo algumas favelas de equipamentos urbanísticos “básicos”, como ruas e acesso aos morros. A “ordem urbana” também esteve dentre as suas iniciativas: medidas de segurança, ordenação do comércio ambulante, com a criação de “camelódromos”, definição de locais próprios para estacionamento, retirada de população de rua, dentre outras. O ano de 2009, contudo, foi um marco para a Cidade e Paes inaugurou um momento singular em se tratando de Política Urbana e, mais que isso: de “articulação/submissão” de outras políticas públicas/sociais a ela. Esse foi o ano em que a Cidade do Rio de Janeiro – eleita Cidade Olímpica – deu passos mais largos em direção à consolidação da reforma urbana em curso, fazendo com que os tão aguardados investimentos públicos e privados começassem a se efetivar e dando “patriótica” legitimidade às políticas urbanas em desenvolvimento (Maia & Icasuriaga, 2012: 9). Desde então, a Cidade foi agraciada com alguns títulos como de “Melhor Destino Gay do Mundo”, de “Patrimônio Cultural da Humanidade” – na categoria “Paisagem Cultural”6, títulos estes que só ajudam a ratificar a imagem que já vem sendo lapidada pelo prefeito no sentido de atrair um público consumidor cada vez mais qualificado e diversificado para a Cidade. Além disso, também sediou uma série de eventos de porte, sendo o último deles a Rio +20 6 a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável. Entretanto, apesar de todos os “louros” recebidos pela Cidade na última década, sua imagem ainda não conseguiu se desvencilhar totalmente da violência que, desde os anos de 1980, com a escalada do tráfico de drogas, tanto a maculou. Não é a toa que este primeiro mandato de Paes – que será sucedido por um segundo, já definido pelos eleitores no processo eleitoral ocorrido em outubro de 2012 – tem sido marcado pelo discurso da lei e da ordem. Ainda que não seja de sua competência o enfrentamento do tráfico e das milícias (outro modalidade de criminalidade que se espraia pela cidade), Página ( de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Paes tem concentrado grande parte de seus “esforços” na tentativa de “organização do espaço público” a partir da adoção de medidas repressivas, de cunho policialesco. Embora seus alvos preferenciais sejam, como já mencionado anteriormente, as “classes perigosas” – a população em situação de rua50, os ambulantes, os “flanelinhas”, os usuários de crack (já vulgarmente qualificados de “cracudos”), algumas ações têm sido dirigidas a outros segmentos: os motoristas que estacionam seus carros em locais proibidos; os “mijões” (aqueles que urinam em locais públicos, ainda que a cidade não disponha de banheiros químicos suficientes, sobretudo durante grandes eventos, como carnaval ou outros grandes espetáculos). De alguma forma, é como se a ordem precisasse se impor a todos. A única diferença é que, para os mais pobres, o ônus é muito maior, já que pode significar cerceamento de direitos. O “choque de ordem” – marca de seu governo, tem provocado uma série de situações polêmicas, como a que se refere ao recolhimento dos usuários de drogas ilícitas (inclusive crianças e adolescentes) e a seu encaminhamento para abrigos. Em 2011, por exemplo, muitas organizações da sociedade civil e entidades profissionais (incluindo o CRESS – Conselho Regional de Serviço Social) manifestaram6se totalmente contrários à medida adotada pela SMAS nesse sentido, sobretudo pelo fato de que ela privilegia a repressão em detrimento da prevenção, negligenciando princípios que, em se tratando de aplicação de medidas de proteção a crianças e adolescentes, encontram6se tão claramente expressos no ECA: seu reconhecimento enquanto cidadãos de direitos; a necessidade de proteção integral e prioritária dos direitos de que são titulares; o respeito à intimidade e ao seu interesse superior; intervenção mínima das autoridades e instituições; prevalência da família na promoção de seus direitos e na sua proteção, dentre outros. Em torno da internação compulsória de adultos dependentes de crack – projeto que vem sendo defendido pelo prefeito Eduardo Paes e encampado pelo ministro da Saúde, Alexandre Padilha – ainda não há consenso, tampouco amparo legal. Segundo Promotores do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, o recolhimento de 50 A atenção à População em Situação de Rua encontra6se prevista como uma das modalidades de atenção da Proteção Social Especial, compreendendo um conjunto de serviços/programas contemplados pelo SUAS. O Serviço Especializado para Pessoas em Situação de Rua visa prover condições de acolhida na rede de serviços da Política de Assistência Social e de inserção nas demais políticas, realizando ações de reinserção familiar e/ou comunitária e contribuindo para a construção de novos projetos de vida, respeitando as escolhas dos usuários [...] e para restaurar e preservar a integridade e a autonomia da população em situação de rua” (Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais, p. 30). http://www.mds.gov.br/assistenciasocial/protecaobasica/cras/documentos/Tipificacao%20Nacional%20de %20Servicos%20Socioassistenciais.pdf Acesso em 18/08/2012 Página ) de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS maiores de idade usuários de drogas, feito pela prefeitura do Rio, é inconstitucional, conforme descrito abaixo: Para o MP, as medidas de remoção compulsória de adultos atualmente não têm fundamento legal, e o município reconheceu isso quando assinou um termo de ajustamento de conduta (TAC), em maio de 2012. Os promotores ressaltam que só é possível privar de liberdade alguém que seja apanhado em flagrante delito ou se há laudos técnicos que comprovem a necessidade de internação. O MP também contesta as averiguações criminais pelas quais o morador de rua passa, o que representa um constrangimento. O acolhimento e a internação compulsória de menores de idade, instituída por decreto pela prefeitura do Rio, foi um processo mais simples. Afinal, o município tem o dever constitucional de zelar pela infância. E, no caso de menores usuários de crack, é facilmente comprovada a situação de risco para alguém desassistido, sem responsáveis identificados ou com graves problemas de saúde. Com os adultos, apesar de o crack também representar uma ameaça, qualquer ação de restrição de liberdade por parte do poder público pode ser confundida com desrespeito a uma liberdade individual (Ritto, 2012). O crack – ou qualquer outra droga ilícita – funciona assim como um pretexto para legitimar a atuação repressiva do governo municipal através das suas diferentes secretarias (no caso, SEOP, SMAS), sendo auxiliados, inclusive, por outros órgãos municipais – inclusive a Companhia de Limpeza Urbana – (que, durante as operações, responsabiliza6se por coletar os pertences dos usuários recolhidos) – uma verdadeira “operação de guerra” visando remover toda a sujeira da cidade – ou melhor, das áreas de maior visibilidade. Para tanto, tais operações costumam contar com o apoio da mídia, que não se cansa de propagandear os efeitos nocivos do crack – o que seria muito bom, se fosse só isso – mas que, para além, associa6o quase que diretamente aos segmentos que maculam a imagem que se pretende atribuir à Cidade, ao mesmo tempo em que arregimenta “simpatizantes” das medidas higienistas atualizadas na história do Rio de Janeiro. Assim, legitima6se uma intervenção que encara o problema do crack “como algo da área da segurança pública, e não da assistência social”, conforme sugerido por Rogério Pacheco Alves, da Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Defesa da Cidadania (Ritto, 2012). O “Choque de Ordem” também tem sido contundente em relação aos ambulantes. Na Zona Sul e no Centro da Cidade, principalmente, há ações que ocorrem Página * de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES diariamente, em vários momentos do dia. O fato de se exercer tamanha repressão sobre o comércio ambulante nos leva a concluir que, na atual gestão, não existe qualquer tipo de preocupação com políticas de geração de emprego e renda numa fase do capitalismo em que se torna cada vez mais nítido que a questão do desemprego se apresenta com um caráter estrutural, afligindo, inclusive, os países desenvolvidos. Referindo6se aos novos modos de ser da informalidade – e caracterizando uma primeira modalidade tradicional, que remeteria a uma categoria que envolveria os ambulantes, afirma Antunes: Nesse universo encontramos "os menos 'instáveis', que possuem um mínimo de conhecimento profissional e os meios de trabalho e, na grande maioria dos casos, desenvolvem suas atividades no setor de prestação de serviços", de que são exemplos as costureiras, pedreiros, jardineiros, vendedor ambulante de artigos de consumo mais imediato, como alimentos, vestuário, calçados e bens de consumo pessoal, camelôs, empregado doméstico, sapateiros e oficinas de reparos. […] Esses trabalhadores mais "instáveis" podem inclusive ser subempregados pelos trabalhadores informais mais "estáveis (2011: 408). A criminalização dos trabalhadores excluídos do mercado formal de trabalho não é capaz de, por si, “incentivá6los” ao reingresso à formalidade – até porque isto não depende de vontade individual. Além disso, significa desconsiderar o paradoxo presente na própria situação vivida por muitos trabalhadores informais, sobretudo os ambulantes, conforme nos demonstra Tissi, O processo e as condições de trabalho no comércio ambulante atestam que inclusão e exclusão não são pólos antagônicos. Os ambulantes fazem parte de um processo produtivo e, mais do que isso, de um processo social que se desdobra em múltiplas relações e dimensões sociais. A inserção no trabalho promove a integração econômica, permitindo renda e possibilitando a subsistência própria e da família, o acesso ao consumo e a recursos materiais. À integração econômica imbrincam6se ganhos no plano simbólico, como são os valores éticos e morais associados à inserção no trabalho e aos seus resultados materiais […] Neste sentido, os vendedores ambulantes inserem6se numa extensa trama de trocas sociais de diversos tipos e qualidades, o que não permite qualificá6lo somente como espaço de exclusão. É buscando integrar6se economicamente, buscando meios de sobrevivência e reproduzindo6se como trabalhadores que acessaram o comércio ambulante; constituem6se na identidade de trabalhadores e provedores da família, o que lhes confere a dignidade e o respeito na rede de relações pessoais, incluindo familiares, amigos, vizinhos. Ainda que dentro de Página + de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS limites estreitos, a inserção no comércio ambulante é possibilidade de autonomia, de decisão e gestão das próprias vidas (2000: 78679). Quanto às “políticas” empreendidas pelo Estado em relação aos segmentos sociais aqui referidos, constatamos um enorme retrocesso frente a tudo o que se conquistou, desde 1988, no que se refere aos direitos sociais. No que tange à assistência social, o fato dela ter sido reconhecida como direito e afirmada no conjunto das políticas públicas, a partir da constituição de 1988 e, especialmente, após a promulgação da Lei Orgânica da Assistência Social, em 1993, deixa claro que ainda permanece um abismo enorme entre o marco legal e a possibilidade de sua efetivação. Conforme avalia Yasbek, na árdua e lenta trajetória rumo à sua efetivação como política de direitos, permanece na Assistência Social brasileira uma imensa fratura entre o anúncio do direito e sua efetiva possibilidade de reverter o caráter cumulativo dos riscos e possibilidades que permeiam a vida de seus usuários (2004: 26). As questões que vimos problematizando até então têm nos despertado a atenção para os visíveis impactos das ações intervenções aqui descritas sobre três bairros contíguos, situados na Cidade do Rio de Janeiro – quais sejam, Lapa, Glória e Catete: A Lapa é um bairro da área central da cidade do Rio de Janeiro, cuja condição oficial de bairro foi estabelecida em 17de maio de 2012, pela Lei Municipal 5.407. Até então, a Lapa era parte do Centro. É um bairro conhecido como berço da boemia carioca e, durante anos, sua imagem esteve associada à prostituição, à malandragem. Grande parte de sua arquitetura, edificada na época do Brasil Colonial, é importante referência para a área. Seus arcos, que serviram como aquedutos e, até bem pouco tempo, foram utilizados para o tráfego de bondes que se dirigiam ao morro de Santa Teresa, é o símbolo mais conhecido do bairro, ainda que outras edificações, como o Circo Voador e a Fundição Progresso, também sejam importantes referências arquitetônicas e culturais da área. Página de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES A partir da década de 90, principalmente, com o movimento de valorização do Centro, a área passou por um processo de “revitalização” 51 e vem se tornando um importante espaço cultural da Cidade, apesar de poucos investimentos por parte do Poder Público em termos infraestruturais. Nos últimos anos, tem havido um crescimento da população fixa do bairro (novos moradores) além de uma procura cada vez maior por parte de turistas, que, em busca das diversas expressões musicais/culturais lá presentes transformam6no numa “Lapa de todas as tribos”. O chamado “Choque do Ordem” lá sempre se faz presente, seja na abordagem a motoristas que estacionam irregularmente, seja na “formalização” das atividades informais, através da padronização de barracas, seja na perseguição aos vendedores ambulantes, seja no recolhimento compulsório de “crianças e adolescentes” usuários de drogas. Glória e Catete, por sua vez, são bairros que já tiveram seus dias de glamour, pois lá residiu, por décadas, a burguesia carioca. O Catete, inclusive, abriga o prédio que foi, por décadas, residência oficial da Presidência da República, antes da transferência da Capital para Brasília, e onde ocorreu o suicídio de Getúlio Vargas. Com casarões imponentes, com hotéis onde se hospedaram visitantes ilustres, tais bairros amargaram anos de decadência e, hoje, são marcados por uma heterogeneidade de classes, por favelas recentemente pacificadas, por população em situação de rua, por ambulantes em suas calçadas, por usuários de drogas nas esquinas e por uma tentativa ferrenha da Prefeitura, em nome da imagem de Cidade perseguida, de ordenar o espaço urbano. Além disso, constata6se um crescente interesse por parte da iniciativa privada – cujo pontapé inicial foi dado pelo empresário Eike Batista, com a aquisição da concessão da Marina e da compra do Hotel Glória 6, de investir na localidade, o que tem feito disparar o preço dos imóveis (um aumento de cerca de 200%, segundo estimativas do Sindicato de Habitação do Rio 6 SECOVI6Rio), expulsando, direta ou indiretamente, antigos moradores da localidade. O grupo comandado pelo referido empresário (o EBX) investe, ainda, no projeto de “Corredor Cultural da Glória, que pretende transformar o morro da Igreja de Nossa Senhora da Glória numa espécie de Montmartre Carioca” (Schmidt, 2012, p. 2), que abrigará artistas, floristas e músicos, dando um ar francês ao 51 É importante que se esclareça que a Lapa nunca foi um bairro “sem vida”, o que justificaria, em termos “conceituais”, revitalizá6la. Entretanto, o sentido de revitalização urbana refere6se à apropriação cultural e econômica de espaços e imagens das cidades com o objetivo de atribuir novos usos e sentidos a um lugar, detendo, não raras vezes, um caráter segregador e higienizador. Em geral, as “políticas de revitalização urbana” induzem à reapropriação desses espaços por outros sujeitos, em geral mais “qualificados” 6 leia6 se turistas e investidores. Página de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS bairro. Durante os Jogos Olímpicos de 2016, as competições de vela ocorrerão na Baía de Guanabara – mais especificamente na Praia do Flamengo/Enseada de Botafogo 6, enquanto as de atletismo, ciclismo, marcha e maratona terão lugar no Aterro do Flamengo, daí a necessidade de se investir nos bairros em foco para prepará6los para receberem seu público. otas inconclusas, pois espetáculo urbano continua… Diante do que foi discutido, o que se constata é que o discurso recorrente e legitimador da política que marca o contexto carioca sustenta6se em “operações”/intervenções encaminhadas de maneira que a “sujeira” (tudo aquilo considerado capaz de macular a imagem de cidade perseguida) vai sendo empurrada para debaixo do tapete. Muitas destas ações são legitimadas pelo potencial que detêm de atração de investimentos voltados ao terciário avançado, bem como pela possibilidade de restabelecerem “vida” a locais que, ao longo dos anos, passaram por processos de deterioração/obsolescência. A “cultura”, em certa medida, transforma6se em instrumento de seleção urbanística e de "gentrificação” de espaços urbanos reconvertidos – na verdade, um instrumento de exclusão e habilitação de determinadas áreas da cidade –, razão pela qual se investe num alto padrão de vigilância que, para além da função da segurança, volta6se claramente para a seleção social de usuários ou consumidores (Icasuriaga, 2005: 68). Assim, as reformas urbanas promovem segregação e hierarquização dos espaços, aprofundando a especulação imobiliária que expulsa antigos moradores – os mais pobres, obviamente 6 de determinados bairros. Fica claro, destarte, que o que se busca é o enobrecimento de áreas de grande interesse para o capital. Não é nada casual o fato de se constatar um acelerado investimento nestes locais, diante da proximidade dos megaeventos esportivos que estão por vir. Além disso, ordem, controle e vigilância dos espaços públicos passam a ser, assim, o mote das ações que evidenciam que o que se vislumbra é o combate aos pobres, e não à pobreza. Enfim, megaprojetos, cuja “maravilha” é duvidosa, aprofundam as contradições que teimam em marcar o “cenário” da Cidade Maravilhosa. Página % de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Bibliografia ANTUNES, R. (2011). Os modos de ser da informalidade: rumo a uma nova era da precarização estrutural do trabalho? In Serviço Social e Sociedade. [online], n.107, pp. 4056419. [disponível em 10/01/2012] <URL: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_pdf&pid=S010166282011000300002 &lng=en&nrm=iso&tlng=pt ARANTES, O. B. F. (2000). Uma estratégia fatal – cultura nas novas gestões urbanas. In: MARICATO, H, VAINER, C. & ARANTES, O. In A cidade do pensamento único – desmanchando consensos. Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, pp. 116 74. ARANTES, O. B. F. (2002). Cultura e transformação urbana. In: Pallamin, Vera M. (org.) 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Dentre as abordagens, destacam as que discorrem sobre as desigualdades sócio6 espaciais. Cabe ao Poder Público o processo de elaboração de estratégias de apropriação dos espaços, primando por dirimir as disparidades sócio6espaciais e buscando garantir o bem6estar de toda a população. O presente trabalho busca demonstrar a utilização de Indicadores Sociais combinado com as Geotecnologias para subsidiar o planejamento urbano de políticas públicas. A perspectiva de análise se concentrou na análise dos aspectos habitacionais por entender que são determinantes na visualização da segregação sócio6espacial. Fez6se um vasto levantamento bibliográfico e foram utilizados Indicadores Sociais de habitação disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e o Sistema de Informação Geográfica para espacialização dos dados. Como âmbito da pesquisa teve6se a cidade média de Montes Claros. Observou6se que esta possui expressiva desigualdade sócio6espacial, com a parcela da população com maior poder aquisitivo localizada na parte centro6oeste. Palavras?chave: Desigualdade, Habitação, Montes Claros Página ( de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Introdução As urbes são objetos de constante discussão no meio científico, dada a sua dinâmica e multifuncionalidade. Como locus social, as cidades se configuram de acordo com a capacidade de apropriação do espaço, logo, quem possui mais recurso econômico aloca em locais mais estruturados em detrimento dos menos favorecidos. Portanto, toda sociedade apresenta alguma forma de segregação entre seus membros de maneira a permitir a identificação de grupos com as mesmas características. Entretanto, estas formas de divisão não devem ser baseadas em caracteres voltados para a exploração e dominação desumana de um grupo sobre o outro. Diante desse cenário, a habitação se demonstra como forte aspecto que permite a identificação e divisão sócio6espacial52 dos grupos. Assim, o presente estudo objetiva analisar a segregação sócio6espacial a partir das feições da habitação com uso dos Indicadores Sociais combinado com as Geotecnologias. Para elucidar essa análise e sistematizar o aspecto teórico com o real tomou6se como referência a cidade de Montes Claros/MG. O caminho percorrido foi iniciado com uma revisão bibliográfica de juristas, urbanistas, geógrafos e sociólogos, que discorrem sobre a temática em comento. Posteriormente, foi construído um Sistema de Indicadores Sociais de habitação composto por seis variáveis, disponibilizadas pelo Censo 2010 do Instituto Brasileiro Geografia e Estatística – IBGE, a saber: a) domicílios particulares improvisados; b) domicílios particulares permanentes tipo casa; c) domicílios particulares permanentes sem banheiro ou sanitário; d) domicílios particulares permanentes com 04 banheiros ou mais; e) domicílios particulares com até 04 moradores; e f) domicílios particulares com mais de 04 moradores. Estas variáveis possibilitaram a visualização de características habitacionais da cidade. 52 Muito se tem discutido sobre a grafia correta para “sócio6espacial” e “socioespacial”. Nas palavras de Souza (2009, p. 25) “Existe a possibilidade de dupla grafia − o que constitui, aliás, algo conceitualmente conveniente e relevante. “Socioespacial”, sem hífen, se refere somente ao espaço social (por exemplo, tomando6o do ponto de vista do resultado de sua produção em determinado momento histórico, real ou potencial, como em um plano de remodelação urbanística); de sua parte, “sócio=espacial”, com hífen, diz respeito às relações sociais e ao espaço, simultaneamente (abrangendo, diretamente, a dinâmica da produção do próprio espaço, no contexto da sociedade concreta como totalidade)”. Assim no presente artigo expressão “sócio6espacial” foi considerada mais apropriada, pois quando se faz alusão à segregação sócio6espacial se tem como correspondência simultânea às relações sociais e o espaço social, que são distintos e interdependentes. Página ) de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Posteriormente, em ambiente de Sistema de Informação Geográfica (SIG) foi constituído o banco de dados dos Indicadores Sociais a serem mapeados. Pelo IBGE, também foram selecionadas representações vetoriais de 361 setores censitários da área urbana de Montes Claros e em seguida foi realizada a junção das variáveis em formato de tabela nas representações geográficas em formato shapefile. A organização das variáveis em ambiente SIG teve como referencia os códigos dos setores utilizando a ferramenta join. Nesse contexto, conforme Jannuzzi (2009) e Vieira (2005) foram destacados em mapas de graduação em cores os melhores indicadores, intermediários melhor, intermediários pior e os piores indicadores presentes na área urbana de Montes Claros. Todo o procedimento operacional foi realizado no software ArcGis 10, com licença disponibilizada pelo Laboratório de Geoprocessamento da Universidade Estadual de Montes Claros – UNIMONTES. Para ratificar os resultados obtidos foram visitados os locais díspares e fotografadas as habitações. Esta etapa foi importante para comprovar a veracidade da espacialização53 dos Indicadores Sociais de habitação com o aspecto visível na cidade de Montes Claros. Logo, o presente estudo demonstra uma nova forma de vislumbrar a desigualdade sócio6espacial em Montes Claros através da espacialização de Indicadores Sociais de Habitação. Esta metodologia já se mostrou eficaz em outros estudos como: Genovez (2002) realizando a análise espacial intraurbana no estudo da dinâmica de exclusão/inclusão social em São José dos Campos (SP); Nunes (2007) com o estudo da produção do espaço urbano e exclusão social em Marília (SP); Vieira (2005) avaliando o uso dos indicadores sociais de desigualdade intraurbana; entre outros. Da cidade à segregação Antes de discorremos sobre a cidade e a segregação faz6se mister discorrer sobre a definição da cidade. Contudo, compreender o que é a cidade é, sobretudo complexo, pois o seu significado pode ser obtido por distintas formas. Sobre as várias visões das cidades ressaltam os ensinos de Rolnik (1995: 12) quando relata que o espaço urbano deixa "de se restringir a um conjunto denso e 53 O autor Souza (2006) esclarece que espacializar refere6se a um tipo de organização espacial e de processo de produção e apropriação do espaço por uma determinada sociedade. Página * de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES definido de edificações para significar, de maneira mais ampla, a predominância da cidade sobre o campo". A preponderância da cidade não é mais descrita pela limitação de um espaço estático, mas sim pela dinamicidade e mutabilidade de suas formas e significâncias. Assim, a cidade pode apresentar características diversas e Rolnik (1995) ressalta que dentre as várias formas da cidade, ela pode ser observada como ímã, escrita, política e mercado. A cidade descrita como ímã reflete a ideia de um local de atração e concentração de pessoas, Rolnik (1995) discorre que antes da cidade ser um local de trabalho e moradia ela é um ímã. Por outro lado, a cidade como escrita demonstra a necessidade de memorizar, medir e gerir o trabalho coletivo. A cidade política ou “civitas” implica na busca pela manutenção da vivência coletiva, assim, “da necessidade de organização da vida pública na cidade, emerge um poder urbano, autoridade político6administrativa encarregada de sua gestão” (Rolnik, 1995: 19). Além das características supracitadas, tem6se a cidade como mercado, demonstrada pela aglomeração num determinado espaço de uma expressiva população que cria o mercado. O que se tem como evidência na cidade mercado é a divisão do trabalho entre cidade e campo e a especialização do trabalho no interior da cidade (Rolnik, 1995). Na atualidade observa6se a supremacia da cidade do capital, esta nova conjuntura faz com que haja a intensificação da mercantilização do espaço urbano. Diante disto, a organização da cidade marcada pela divisão da sociedade em classes sociais e a instauração de um novo tipo de poder interfere diretamente na condução da vida dos cidadãos (Rolnik, 1995). O autor Castells (1983) propõe estudar a cidade como um “espaço de consumo coletivo” no qual se desenvolvem as relações capitalistas de produção. A partir desta consideração se estaria diante de uma visão mais ampla da cidade. Desta feita, considerar a cidade como um “espaço de consumo coletivo” é reconhecer que o ambiente urbano é determinado pelas forças produtivas e pelas relações de produção. Logo, a terra urbana é vista como uma mercadoria, e como ensina Marx (1988: 165) “a mercadoria é, antes de tudo, um objeto externo, uma coisa, a qual pelas suas propriedades satisfaz necessidades humanas de qualquer espécie” e esta é a “célula germinativa do modo de produção capitalista”. Logo, a mercadoria é uma unidade indissolúvel de valor de uso e de valor de troca que se entende a todas as relações sociais numa sociedade capitalista. Página %+ de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Salientam6se também as reflexões de Carlos (2004) sobre os apontamentos marxistas que diz que o capital é um elemento de produção espacial. Com isto, a cidade passa é produzida em função do sistema capitalista. Logo, o espaço urbano denota as contradições da sociedade, em que os seres humanos se diferem pelo que possuem e por sua condição de proprietários de bens (Carlos, 2004). A constituição da cidade é dotada por caracteres de dominação e organização da produção, nos dizeres de Singer (1980: 8) “a cidade é, via de regra, a sede do poder e, portanto da classe dominante”. Logo, a cidade é um modo de organização espacial que permite à classe dominante maximizar a transformação do excedente. Neste cenário destacam6se as relações sociais presentes nas cidades, o que vai de encontro com Carlos (2004: 15) que diz “a cidade pode ser entendida, dialeticamente, enquanto produto, condição e meio para a reprodução das relações sociais, enquanto produtoras da vida humana, no sentido amplo da reprodução da sociedade. Aqui a cidade se reafirma enquanto espaço social”. A cidade deve ser compreendida como fruto das relações sociais e isso denota uma complexidade cada vez mais latente. Diante disso, devem6se considerar as condutas sócio6espaciais dos sujeitos que produzem as cidades. O autor Carlos (2004: 18) certifica que: A vida cotidiana [...] se definiria como uma totalidade apreendida em seus momentos (trabalho, lazer e vida privada) e, nesse sentido guardaria relações profundas com todas as atividades do humano – em seus conflitos, em suas diferenças. [...]. Nesta direção, o sentido da cidade é aquele conferido pelo uso, isto é, os modos de apropriação do ser humano para a produção de sua vida (e no que isto implica). Salienta6se que os modos de apropriação e produção não são igualitários no contexto capitalista da cidade. Os economicamente favorecidos possuem mais acesso, apropriação e domínio ao espaço urbano 54 em detrimento dos menos favorecidos. Corrêa (1995) descreve com propriedade quem são os produtores do espaço urbano: a) proprietários fundiários e dos meios de produção; b) promotores imobiliários; c) Estado e d) grupos sociais excluídos. 54 No presente trabalho considerou6se cidade como sinônimo de espaço urbano, pois conforme Corrêa (1995, p. 5) “o geógrafo considera a cidade, de um lado, como um ou vários núcleos localizados em um região ou país; [...] de outro, a cidade é considerada como espaço urbano, sendo analisada a partir de mapas de grande escala. Estas duas abordagens não são mutuamente excludentes. Nem do âmbito exclusivo dos geógrafos, apesar das diferenças de abordagem em relação aos demais estudiosos”. Página % de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Desse modo, os sujeitos produtores da cidade são responsáveis pela fragmentação contida no mesmo espaço. Como assevera Corrêa (1995: 62) a fragmentação “verifica6se basicamente devido ao diferencial da capacidade de cada grupo social tem de pagar pela residência que ocupa, a qual apresenta características diferentes no que se refere ao tipo e à localização”. Contudo, a segregação não se refere somente à dimensão residencial, pois ela é muito mais ampla, sendo percebida como a fragmentação não só dos espaços urbanos, mas como a fragmentação e a restrição dos diferentes usos que podem fazer da cidade. Nas palavras de Corrêa (1995: 65666): A segregação residencial pode ser vista como um meio de reprodução social, e neste sentido o social age como um elemento condicionador sobre a sociedade. Neste sentido, enquanto o lugar de trabalho, fábrica e escritórios, constitui6se no local de reprodução, as residências e os bairros, definidos como unidades territoriais e sociais, constituem6se no local de reprodução. Assim, a segregação residencial significa não apenas um meio de privilégio para a classe dominante, mas também um meio de controle e de reprodução social para o futuro. Desse modo, observa6se que a segregação residencial não se limita a casa e/ou moradia, ela estende ao aspecto sócio6espacial, político6administrativo e econômico, fazendo com que as relações estabeleçam um elo "no plano do morar e de tudo que essa expressão significa enquanto realização da vida humana." (Carlos, 2004: 47). Nesse ambiente urbano, complexo e fragmentado a segregação se demonstra como um “processo segundo o qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes regiões gerais ou conjuntos de bairros” (Villaça, 2001: 142). Avançando no conceito, Castells (1983: 203) afirma que se entende por segregação a “tendência à organização do espaço em zonas de forte homogeneidade social interna e com intensa disparidade social entre elas, sendo esta disparidade compreendida não só em termos de diferença, como também de hierarquia”. Souza aponta dois aspectos que permeiam a segregação, o primeiro refere6se à segregação atrelada as disparidades estruturais na distribuição da riqueza socialmente gerada e do poder. Já no segundo “a segregação deriva de desigualdades e, ao mesmo tempo, retroalimenta desigualdades, ao condicionar a perpetuação de preconceitos e a existência de intolerância e conflitos” (Souza, 2008: 84). Página % de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Diante desses aspectos tem6se a segregação imposta e a auto segregação. A primeira forma refere6se a grupos sociais que possuem oportunidades restritas e nulas de onde morar, já a segunda traduz a faculdade da classe dominante de escolher onde e quando segregar (Corrêa, 1995). Logo, quando o grupo dominante decide onde será estabelecida a sua residência, acaba por determinar também a do outro grupo, repercutindo diretamente na formação do espaço urbano e de seus serviços. Em suma, definir a cidade não é tarefa fácil, porém deve6se admitir que ela possui diversos conceitos e distintas formas de análises que irão depender da dimensão do estudo de cada trabalho. Nos dizeres de Braz (2006: 285) “a cidade não é apenas um aglomerado de construções ou de sistemas viários, ela deve ser vista em seu sentido humano e desenvolvidas para atender à coletividade das pessoas que nela vivem”. Logo, a presente pesquisa não possui como objetivo a definição acabada da cidade, mas sim suscitar que a cidade possui múltiplos olhares e que nele está presente a desigualdades de apropriação e de usos do espaço. No próximo tópico deste artigo serão discutidas as principais nuances do planejamento urbano no Brasil. Considerações sobre o planejamento urbano no Brasil A origem do pensamento urbanístico no contexto brasileiro é recente e conforme os apontamentos apresentados por Villaça (1999) as atividades urbanísticas datam pouco mais de um século. Destarte, Villaça (1999) adverte que a reconstituição histórica do planejamento urbano no Brasil se apresenta como um tema difícil face à sua formação, pois o discurso e a prática se misturam de forma complexa dificultando sua separação. Outra dificuldade apresentada pelo autor é a exposição de várias formas possíveis de planejamento urbano, como o zoneamento, planos setoriais, planos diretores, projeto de cidades novas e outras. Assim, muitas vezes o plano se confunde com o projeto, porém quando se trata de pratica e discurso do Estado sobre o espaço urbano estar6se diante de plano, pois: a) há a abrangência de todo o espaço urbano e desse espaço com vários elementos constitutivos no tocante aos objetivos; b) continuidade de execução, necessidade de revisões e atualizações; c) Intervenção da ação sobre grande parte da população; e d) tomada de decisões políticas com maior participação municipal (Villaça, 1999). Diante Página %% de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES as características que englobam os planos, Villaça (1999) apresenta cinco tipos de planejamento lato sensu, descritos pela figura 01: Figura01 – O Planejamento urbano , Fonte: Villaça, 1999 Org.: PEREIRA, Deborah Marques, 2012 Assim, para Villaça (1999) o Planejamento lato sensu engloba o planejamento stricto sensu (plano diretor), o Zoneamento, o planejamento para novas cidades, o urbanismo sanitarista e os projetos (planos de infraestrutura). No Brasil, Villaça (1999) relata que o planejamento pode ser dividido em três períodos distintos: 1875 a 1930; 1930 a 1990; e de 1990 em diante. No quadro 01 estão expostos os períodos e os principais eventos descritos por Villaça (1999): Página %& de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Quadro 01 – Evolução do planejamento urbano no Brasil Período De 1875 a 1930: Plano de Melhoramentos e Embelezamento De 1930 a 1990: Ideologia do planejamento enquanto técnica de base cientifica A partir de 1990: reação ao período anterior Características Influência francesa; Enfatiza a beleza monumental e higienista; 1875 6 1º plano de conjunto do Rio de Janeiro 6 1º Relatório da Comissão de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro; 1875 a 1906 – ascensão dos planos de melhoramentos e embelezamento; 1906 a 1930 – declínio dos planos de melhoramentos e embelezamento; Plano de Pereira Passos – ápice desse período; Planos elaborados por funcionários municipais; Fim do período 6 Plano Agache no Rio e o Plano de Avenidas de Prestes Maia em São Paulo. De 1930 a 1940 – Planos de remodelações dos centros do Rio, de São Paulo, de Porto Alegre ou do Recife; Em 1950 – necessidade de integração entre os vários objetivos e ações dos planos urbanos. Surge o plano diretor; De 1960 a 1970 – desenvolve o planejamento urbano ou planejamento local integrado; Em 1970 – os planos passam da complexidade, do rebuscamento técnico e da sofisticação intelectual para o plano simplório. Fortalecimento dos movimentos populares – nova etapa na consciência popular urbana; Década de 80 – retomada das demandas populares iniciadas no 1º Seminário de Habitação e Reforma Urbana (1963); No final da década de 80 o termo plano diretor é ressuscitado pela Constituição Federal. As cidades brasileiras novamente elaboram novos planos diretores; O conteúdo dos planos abarcam preceitos da reforma urbana e dispositivos dos princípios de justiça social no âmbito urbano; Fim de um período na história do planejamento urbano que marca o início do processo de politização, fruto do avanço da consciência e organização populares; Recusa ao diagnóstico técnico como mecanismo de revelar os problemas políticos; Destacam os aspectos de competência municipal, particularmente os atinentes à produção imobiliária – ou do espaço urbano. Fonte: Villaça, 1999 Org.: PEREIRA, Deborah Marques, 2012 Na atualidade, há esforços dos gestores municipais para organizar o espaço urbano. Assim, eles têm procurado adotar várias condutas para melhor planejar as urbes. Dentre as ações, os recursos geotecnológicos se manifestam como ferramenta de auxílio para o planejamento urbano. No próximo tópico será discutido sobre a importância das Geotecnologias no estudo do ambiente urbano. As geotecnologias e o espaço urbano Nas últimas décadas os estudos foram se aprimorando e sofisticando no afã de responder os novos questionamentos científicos. Deste modo, as Geotecnologias têm Página % de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES ganhado lugar de destaque, proporcionando maior dinâmica às análises geográficas. O autor Fitiz (2008) relata que a tecnologia espacial teve sua base teórica no pragmatismo da chamada Geografia Quantitativa, ou Geografia Teorética, tendo como cenário a II Guerra Mundial. Os autores Leite e Rosa (2002: 185) definem as Geotecnologias como: A técnica que engloba o Geoprocessamento (GIS – Sistema de Informação Geográfica, Cartografia Digital, processamento digital de imagem), além do Sensoriamento Remoto, do Sistema de Posicionamento Global=GPS, da Aerofotogrametria, da Geodésica e da Topografia Clássica, dentre outros. Assim, as Geotecnologias têm auxiliado variados ramos da ciência e tecnologia a dinamizar as análises do espaço geográfico. A capacidade em obter, cruzar e armazenar dados georreferenciado tem proporcionado à produção de diversas informações que auxiliam as tomadas de decisões. Assim, as Geotecnologias não estão limitadas somente ao contexto geográfico, pelo contrário a interdisciplinaridade maximiza os seus efeitos. O uso mais evidente para os estudos urbanos é a o recurso Geotecnológico conhecido como SIG, pois contribui para a tomada de decisão do poder público municipal. Leite (2011: 69) explica que: Através do processamento e cruzamento de dados, as informações podem, também, ser espacializadas, contribuindo eficientemente para o planejamento das ações do poder público na cidade. Além das vantagens técnicas, alguns softwares de SIG apresentam linguagem fácil e prática, tornando o processo de aprendizagem de operação dessa tecnologia mais rápido”. Logo, as Geotecnologias podem contribuir expressivamente para o planejamento urbano, orientando as condutas a serem adotadas pelo poder gestor municipal. Seguindo ainda o raciocínio de Leite (2011: 70): “Estudar e planejar o espaço urbano requer bastante conhecimento em várias áreas, o que dificulta o sucesso dessa atividade; além dessa complexidade que envolve o espaço urbano, a visualização das diferenças socioeconômicas encontradas torna o planejamento falho. Sendo assim, conhecer a configuração espacial de uma cidade é requisito fundamental para o sucesso do planejamento”. Página %' de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Compreender o espaço urbano e suas complexidades requer uma análise interdisciplinar, em que a configuração espacial é fundamental. Contudo, os usos das Geotecnologias só tendem a contribuir para a análise das urbes, auxiliando no planejamento urbano e nas tomadas de decisões para amenizar as desigualdades sócio6 espaciais. Indicadores sociais e espacialização O uso de Indicadores Sociais no meio científico é recente, porém vem ganhando abrangência e credibilidade no meio científico e nas condutas dos planejadores públicos. Para a Jannuzzi (2009: 15) na pesquisa acadêmica, o Indicador Social é “uma medida em geral quantitativa dotada de significado social substantivo, usado para substituir, quantificar ou operacionalizar um conceito social abstrato, de interesse teórico (para pesquisa acadêmica) ou programático (para formulação de políticas)”. Assim, os Indicadores Sociais podem contribuir significativamente para os estudos de cunho teórico e ainda subsidiar atividades de planejamento público. Além disso, Jannuzzi (2009: 16) assevera que os Indicadores Sociais representam o elo entre “modelos explicativos da Teoria Social e a evidência empírica dos fenômenos sociais observados. Em uma perspectiva programática, o Indicador Social é um instrumento operacional pra monitoramento da realidade social, para fins de formulação e reformulação de políticas públicas”. Diante do exposto, observa6se que uso dos Indicadores Sociais tem ganhado cada vez mais espaço nas discussões dos pesquisadores, cientistas sociais e gestores públicos. Porém, Jannuzzi (2009: 11) assevera que “uma cifra estatística isolada é como poste com luz queimada: Pode servir como apoio, mas sozinha não ilumina nada”. Logo, os Indicadores devem ser analisados dentro de um contexto específico, com dimensões e objetivos previamente traçados. Na presente pesquisa os Indicadores Sociais de Habitação combinados com espacialização permitem vislumbrar as desigualdades sócio6espaciais. O espaço urbano de Montes Claros O município de Montes Claros está localizado entre as coordenadas geográficas 16º 04' 57" e 17º 08' 41" de Latitude sul e Longitudes 43º 41’ 56" e 44º 13’ 1" oeste de Página %( de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Greenwich. Possui uma população de 361.915 habitantes (IBGE/2010), com grau de urbanização de aproximadamente 95% e é a única cidade do norte de Minas Gerais que apresenta mais de 100.000 habitantes. A área territorial é de 3.568,941 Km² e sua densidade demográfica é de 101,41 hab/Km² (IBGE, 2010). A figura 02 apresenta a localização da cidade de Montes Claros no norte de Minas Gerais. Os municípios limítrofes a Montes Claros são: São João da Ponte ao norte; Capitão Enéias sentido nordeste; Francisco Sá ao Leste; Juramento e Glaucilândia na direção sudeste; São João da Lagoa e Coração de Jesus ao oeste; e Mirabela e Patis para Noroeste. Figura 02 – Localização da cidade de Montes Claros no norte de Minas Gerais. Org.: PEREIRA, Deborah Marques, 2012 Desde 1970, Montes Claros é um município de população predominantemente urbana, característica que vem sendo ratificada nas últimas décadas, com o aumento do seu grau de urbanização. O gráfico 01 apresenta o crescimento da população urbana de Montes Claros conforme dados do IBGE nos anos de 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010. Página %) de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS Gráfico 01 – Evolução populacional de Montes Claros (1960, 1970, 1980, 1990, 2000 e 2010) Fonte: IBGE, 2010 Org.: PEREIRA, Deborah Marques, 2012 Analisando o contexto mineiro, Montes Claros é a sexta cidade mais populosa de Minas Gerais, possuindo população inferior da capital mineira Belo Horizonte, Uberlândia, Contagem, Juiz de Fora e Betim, conforme evidencia o gráfico 02 (IBGE, 2010). Essa cidade se destaca no contexto regional, como principal pólo, e sua área de influência ultrapassam os limites da mesorregião Norte de Minas Gerais (Pereira, 2007). Gráfico 02 – Municípios mais populosos de Minas Gerais (2010) Fonte: IBGE, 2010 Org.: PEREIRA, Deborah Marques, 2012 Página %* de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Diante do exposto, observa6se que recentes estudos científicos apontam Montes Claros como uma cidade média55, não só por possuir mais que 100.00 habitantes, mas também por sua importância e destaque regional. Os autores França (2007; 2012), Leite (2006; 2012), Pereira (2007), apresentam nos seus estudos a importância de Montes Claros no contexto local e regional e a sua sistematização como cidade média. Deve6se salientar que nas cidades médias há a intensificação dos processos sociais, econômicos e políticos, pois as dinâmicas ocorridas nestas cidades são mais aceleradas e latentes. Além disto, ressalta6se que Montes Claros possui uma forte atração de migrantes, pois é uma característica comum das cidades médias brasileiras, como destaca Maricato (2001) esse tipo de cidades apresenta desde a década de 1990 um crescimento demográfico acima da média nacional. Indicadores sociais de habitação de Montes Claros Os dados habitacionais são de extrema importância para a análise da segregação sócio6espacial, porém, classificá6los como adequados ou não é uma tarefa difícil e requer articulação de variados atributos. Como o objetivo desta pesquisa é apresentar as disparidades habitacionais visíveis no contexto urbano de Montes Claros a partir do Censo de 2010, foram selecionadas seis variáveis que contribuíssem para qualificar a cidade em áreas de melhores indicadores habitacionais, intermediários melhor, intermediários pior e piores indicadores habitacionais. As variáveis habitacionais utilizadas foram: a) domicílios particulares improvisados 56 ; b) domicílios particulares permanentes tipo casa 57 ; c) domicílios particulares permanentes sem banheiro ou sanitário; d) domicílios particulares permanentes com 04 banheiros ou mais; e) domicílios particulares com até 04 moradores; e f) domicílios particulares com mais de 04 moradores. 55 No contexto atual o estudo das cidades médias encontra6se sistematizado e em constante evolução no cenário científico. Dentre os vários estudos já realizados sobre as cidades médias destacam os publicados por Spósito (2002) para Presidente Prudente; Whitacker (2003) e Vieira (2005) para São José do Rio Preto; Soares (1995) e Bessa (2007) para Uberlândia; entre outros. 56 O domicílio particular permanente é a unidade não residencial ou com dependências não destinadas exclusivamente à moradia, mas que na data de referência estava ocupado por morador. Exemplos: prédios em construção, vagões de trem, carroças, tendas, barracas, grutas etc. que estavam servindo de moradia na data de referência foram considerados domicílios particulares improvisados (IBGE, 2010). 57 O domicílio particular permanente tipo casa trata6se de uma edificação com acesso direto a um logradouro (arruamento, vila, avenida, caminho etc.), legalizado ou não, independentemente do material usado em sua construção, estado de conservação ou número de pavimentos (IBGE, 2010). Página &+ de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS A análise espacial desses Indicadores possibilita a identificação das diferentes classes sociais no espaço urbano da cidade de Montes Claros e as principais características dos locais de moradia. Diante disto observa6se que na cidade de Montes Claros os domicílios particulares improvisados estão espraiados pela cidade, tendo como pior qualificação a parte norte e nordeste abarcando principalmente a área do Jaraguá e Cidade Industrial e na parte sul pelo loteamento do Santo Amaro. Os domicílios particulares permanentes tipo casa apresentam os piores indicadores na parte leste abrangendo as áreas do Jaraguá, Jardim Primavera, JK, Planalto e outras. Ao sul abarca o loteamento da Alterosa, Conjunto José Corrêa Machado, Maracanã, Sion e arredores. Os melhores indicadores se encontram na área do Ibituruna, Jardim Parque Morada do Sol, Morada do Parque, Jardim São Luís e adjacências. A presença de domicílios particulares permanentes sem banheiro ou sanitário é mais visível na parte norte de Montes Claros, abarcando a área do Castelo Branco, Nova América e São Lucas, também ao sul em Santo Amaro, Alterosa e arredores. Em contrapartida, os melhores indicadores encontram na parte central, centro6oeste e leste da cidade. Na cidade de Montes Claros há poucas localidades que apresentam domicílios particulares permanentes com 04 banheiros ou mais. Assim, elas estão concentradas na área centro6oeste nos espaços do Ibituruna, Jardim Parque Morada do Sol, Morada do Parque, Jardim São Luís, Melo e entorno. Os domicílios particulares com até 04 moradores se agrupam na parte centro6 oeste da cidade e nas áreas centrais, já na parte leste e sul grande parte dos domicílios possuem mais de 04 moradores. Através da análise dessas variáveis é possível individualizar os domicílios que apresentam alto padrão. Assim, a parte centro6oeste de Montes Claros se destaca como a área que possui um maior padrão habitacional, apresentando domicílios permanentes com 04 banheiros ou mais, sem a presença de domicílios tipo casa e domicílios improvisados e geralmente com até 04 moradores. A figura 03 apresenta a espacialmente das considerações apresentadas. Página & de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Página & de Visando comprovar os dados obtidos pelo Censo do IBGE de 2010 com a parte visível da cidade foi organizado um trabalho de campo, tendo como foco retratar os indicadores sociais de habitação mais díspares na cidade de Montes Claros. As figuras 04 e 05 retratam localidades com indicadores considerados piores na área de estudo, confirmando os resultados encontrados. Assim, ficou evidente a falta de infraestrutura de moradia e o precário acesso. Figura 04 – São Geraldo, sul de Montes Claros Figura 05 – Clarice Ataíde, norte de Montes Claros Autor: PEREIRA, Deborah Marques, 2012 Em contrapartida, as localidades que apresentam bons indicadores se concentram na parte centro6oeste da cidade. As figuras 06 e 07 demonstram os locais com melhores atributos de habitação. Figura 06 – São Luís, centro?oeste de Montes Claros Autor: PEREIRA, Deborah Marques, 2012 Figura 07 – Ibituruna, oeste de Montes Claros POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Pela análise das figuras 04, 05, 06 e 07 observam6se as disparidades habitacionais existentes entre os locais com piores e melhores indicadores, ratificando a espacialização apresentada. Nos estudos de Leite (2011) ele relata que a partir da década de 1980 houve incentivo municipal para a ocupação da área centro6oeste da cidade pelas camadas de alta renda, principalmente com a criação do loteamento do Ibituruna na parte oeste. O Ibituruna apresenta belezas naturais diversas como a Serra do Ibituruna e a reserva ecológica do Sapucaia que valorizam a área. Movida pelos incentivos municipais, belezas naturais e valorização imobiliária, a população de alta renda se concentrou na parte oeste e arredores, fazendo da região centro6oeste a mais estimada da cidade. Não obstante, o baixo custo do solo urbano de áreas distantes ao centro6oeste acolheu a população de menor renda, sobretudo na área leste e norte de Montes Claros. A atuação municipal foi conivente com o distanciamento dos menos favorecidos, contribuindo com a doação de lotes e a manutenção das áreas nobres. Diante do exposto, pode6se concluir que a cidade de Montes Claros apresenta fortes disparidades habitacionais, oscilando desde a presença de domicílios particulares improvisados e sem banheiros ou sanitários até domicílios com infraestrutura dotada de mais de 04 banheiros e com até 04 moradores. Deste modo, a parte centro6oeste da cidade apresentou melhores indicadores e intermediários melhor nas seis variáveis pesquisadas, enquanto as demais áreas, especialmente a leste a norte, expuseram indicadores piores e intermediários pior. Palavras finais Consoante ao exposto observa6se que no decorrer dos anos as cidades têm se tornado cada vez mais complexa e desigual, necessitando condutas veementes do poder público que abarquem no planejamento ações de repelem as desigualdades sócio6 espaciais e priorizem o bem6estar da população. Não obstante, a análise dos Indicadores Sociais e as Geotecnologias são ferramentas que podem contribuir para o planejamento urbano de forma eficaz. No presente trabalho foi analisado abordado os Indicadores Sociais de Habitação na cidade de Montes Claros, para tanto foram selecionadas 06 variáveis: a) domicílios particulares improvisados; b) domicílios particulares permanentes tipo casa; c) domicílios particulares permanentes sem banheiro ou sanitário; d) domicílios Página && de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS particulares permanentes com 04 banheiros ou mais; e) domicílios particulares com até 04 moradores; e f) domicílios particulares com mais de 04 moradores. As análises dos Indicadores de habitação somadas à espacialização permitiram a identificação de áreas com melhores, intermediários melhor, intermediários pior e pior atributos habitacionais. Assim, restou evidente que Montes Claros possui expressiva desigualdade sócio6 espacial, com a parcela da população com maior poder aquisitivo localizada na parte centro6oeste. Em contrapartida, a população com poucos recursos encontra6se espraiada pela cidade, destacando as áreas mais distantes da área central. O uso de Sistema de Indicadores Sociais de habitação conjugados com as geotecnologias possibilitam a melhor compreensão da realidade das cidades, contribuindo veementemente para o planejamento de políticas públicas. Logo, o Mapeamento dos indicadores habitacionais sociais torna6se uma veemente contribuição para planejamento de políticas públicas. Contudo, compreender os aspectos sociais e espaciais da área urbana é um grande desafio, requerendo, cada vez mais, estudos aprofundados e sistematizados. Bibliografia CARLOS, Ana F.A. O espaço urbano: novos escritos sobre a cidade. São Paulo: Contexto, 2004. CASTELLS, Manuel. A Questão Urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. CORRÊA, R.L. O espaço urbano. 3ª ed. São Paulo: Ática, 1995. FRANÇA, Iara Soares de. Aglomeração urbana descontínua de Montes Claros (MG) / Iara Soares de França – Uberlândia, 2012. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Uberlândia, Geografia e Gestão do Território. GENOVEZ, P. C. Território e desigualdade: análise espacial intra=urbana no estudo da dinâmica de exclusão/inclusão social no espaço urbano em São José dos Campos / P. C. Genovez. 6 São José dos Campos: INPE, 2002. Dissertação (Mestrado em Sensoriamento Remoto) – Programa dePós6graduação em Sensoriamento Remoto, Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, São José dos Campos/SP Página & de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Censo Demográfico, 1950, 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 09.06.12. JANNUZZI, Paulo de Martino. Indicadores sociais no Brasil: conceitos, fontes de dados e aplicações. 4ª ed. Campinas: Alínea, 2004 LEITE, Marcos Esdras. Geotecnologias Aplicadas ao Mapeamento do Uso do Solo Urbano e da Dinâmica de Favela em Cidade Média: O Caso de Montes Claros / Marcos Esdras Leite. – Uberlândia, 2011. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Uberlândia, Geografia e Gestão do Território. MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis: Vozes, 2001. Nunes, Marcelo. 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Em simultâneo, discutimos o papel das Políticas Públicas Educativas no âmbito dos Cursos Profissionais de nível secundário. O estado da arte que temos vindo a desenvolver, bem como o estudo empírico, permitiu6nos selecionar um caso de interesse científico. O modelo de parceria que apresentamos emergiu do nosso estudo exploratório e tem como núcleo central uma turma de um Curso Profissional, numa Escola Pública, que trabalha em parceria, no âmbito da formação, com uma Empresa Privada, do setor da indústria da aeronáutica. Os procedimentos que seguimos ao longo da presente investigação centraram6se nos objetivos e questões do estudo, numa perspetiva de responder à nossa problemática, articulando o estudo empírico com o nosso quadro teórico. Os instrumentos utilizados na recolha de dados foram as entrevistas semiestruturadas, tendo as mesmas sido administradas aos atores do estudo num total de nove. Para além das entrevistas recorremos à consulta de legislação que regulamenta os Cursos Profissionais e a outros documentos fornecidos pelos Responsáveis da Escola. A estratégia de análise utilizada será a análise de conteúdo, através de uma abordagem qualitativa, para que possamos ter uma visão holística do fenómeno em estudo. Palavras?chave: Parcerias, Formação (qualificação), Cursos Profissionais Página &( de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Introdução O presente artigo foi elaborado com base em contributos teóricos e em alguns dados empíricos que constam da tese de doutoramento da autora, ainda em desenvolvimento. Este facto, conduz6nos a uma atitude de precaução no sentido de evitar conclusões superficiais e menos elaboradas. O interesse em trazer para o debate público, no momento presente, temas como a formação (qualificação), as parcerias e os cursos profissionais, surge6nos como uma oportunidade de enriquecimento e de complementaridade de conhecimentos que poderão vir a tornar6se uma mais6valia no nosso desenvolvimento pessoal, social e profissional, face ao estatuto de investigadores que usufruimos. Para além disso, deparamo6nos com a oportunidade de transmitir alguma visibilidade à nossa investigação, contribuindo para aquilo que Coutinho (2009) apelida de consistência do estudo. Âmbito do artigo O presente artigo decorre no prosseguimento do Colóquio da Ação Pública e Problemas Sociais em Cidades Intermediárias que teve lugar de 23 a 25 de Janeiro de 2013 na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. O artigo é fruto de um estudo mais abrangente, como já referimos na introdução, que se desenvolve no âmbito das Ciências da Educação – Educação e Formação de Adultos, tendo como suporte a Aprendizagem ao Longo da Vida58 (ALV), encarada pela União Europeia como uma prioridade política, por considerar que é a partir dela que se determinam estratégias, meios e modelos de monitorização 59 . Também a Unesco adverte para uma das suas grandes intenções, no âmbito da educação do novo milénio, – a universalização das condições de aprendizagem ao longo da vida inserindo6se nos desejos e valores de uma sociedade democrática, em suma, de uma sociedade mais justa e inclusiva. No que diz respeito a declarações internacionais, bem como a estudos realizados no campo do desenvolvimento social, os mesmos direcionam6se no sentido preconizado pelos propósitos da Unesco e da União Europeia, dando ainda especial 58 Doravante, em vez de Aprendizagem ao Longo da Vida, utilizaremos ALV, por uma questão de economia. 59 Comissão Europeia (1995). Livro Branco sobre a educação e a formação. Página &) de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS relevo ao poder que os sujeitos devem usufruir de autonomia para se questionarem sobre o modo de como desenvolverem um aperfeiçoamento permanente e de envolvimento do outro, contribuindo positivamente para a esfera da vida em sociedade. Em prosseguimento da referida linha de políticas, e, porque somos defensores da ALV, do seu alargamento a todos os cidadãos e respeito pelas decisões e opções quanto ao contributo para uma melhor vida em sociedade, surge o nosso artigo em jeito de mera reflexão. Objetivos do artigo e levantamento de algumas questões Como realçamos na introdução, o objetivo principal do presente artigo prende6 se com o interesse em colocar à discussão temas que, para além se serem da atualidade e de interesse público, face à ação pública que desenvolvem, também nos permite uma refleção mais aprofundada sobre o estudo em que nos encontramos envolvidos no âmbito da investigação. Para além disso, também esperamos encontrar algumas sugestões por parte dos pares que incluem o nosso grupo de trabalho, que poderão constituir um valioso contributo para a investigação. De salientar o facto de a participação em eventos desta natureza se revelarem de interesse e motivação, uma vez que, para além de podermos alargar o nosso debate teórico, temos igualmente a oportunidade de o melhorar, no que concerne aos contornos dos conteúdos da pesquisa. A acrescentar aos objetivos apontados, é nossa intenção saber se as parcerias, no âmbito da formação, podem, ou não, ser um processo de combate ao insucesso, ao abandono precoce escolar, à redução de desigualdades sociais e à criação de soluções de emprego que satisfaçam as empresas e os Formandos. As preocupações aqui esboçadas serviram de mote para a construção do nosso objeto de estudo e desenvolvimento da problemática. Deste modo, e, como guia do presente artigo arquitetamos a seguinte questão de partida: – Quais as vantagens, ou não, que as parcerias, no âmbito da formação, entre a Escola e as Empresas veiculam… 1. Para a Escola? 2. Para a Empresa? 3. Para os Formandos? Página &* de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES Uma vez que nos encontramos numa fase de análise de informação preliminar60, as referidas questões serão abordadas apenas com base no quadro teórico que fomos construindo ao longo da nossa pesquisa. Descrição sumária do tipo de investigação O presente artigo aborda apenas uma parte da investigação que estamos a desenvolver, como já referimos. Trata6se de um estudo de caso entre a escola ESCVF61 e a Empresa REMA62, que trabalham em parceria, no âmbito da formação. O facto de o estudo abordar a referida parceria prende6se com uma nova forma de agir e de organização da sociedade portuguesa, ou seja, de uma aproximação dos universos de educação (formação) e de emprego. A referida aproximação insere6se na linha das políticas públicas de educação que apontam para novos processos de reconfiguração da sociedade. O século XXI conduziu a uma série de alterações e de mudanças nos cidadãos, nas comunidades (escolares, locais, nacionais, europeias e internacionais) e na sociedade em geral. Tal tendo originado uma abertura ao mundo, talvez a maior dos últimos tempos. Contudo, esta abertura de horizontes esboça um quadro, que aos olhos de alguns observadores, sejam eles académicos, cientistas, educadores, formadores, ou outros atores sociais, parece apresentar as suas controvérsias e refletir6se na educação, nas empresas, na formação e na qualificação dos respetivos atores. Este facto, associado às exigências dos tempos atuais, parece exigir novas formas de desenvolvimento social, de organização de trabalho nas instituições, nos próprios atores e à “reorganização produtiva” Castillo, J. (1998: 25). Os novos desafios vinculados às economias locais, fruto do novo enquadramento económico, resultante da crise iniciada nos anos setenta, denominada de crise do modelo fordista, fizeram com que as sociedades modernas se vissem obrigadas a discutir as bases dos modelos de desenvolvimento, a fim de encontrar soluções para enfrentar os novos problemas. De entre os vários problemas do século, o problema do desemprego, é digno de alguma reflexão e discussão, não só pelo efeito que cria nos 60 Como informamos no início, trata6se de um estudo ainda em desenvolvimento e em fase de análise de informação, pelo que, as informações aqui transmitidas são baseadas no quadro teórico que fomos construindo. 61 Nome que atribuímos à Escola para manter o seu anonimato. 62 Nome que atribuímos à Empresa para manter o seu anonimato. Página + de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS próprios indivíduos, mas também, pelo facto de ao desemprego estarem ligadas temáticas como – emprego precário e, consequentemente, o de exclusão social e de pobreza. O facto de se ter, ou não, emprego, ou de preservação do mesmo, surgem, na atualidade, como opções a ter em conta pelos próprios indivíduos. O panorama de incertezas e de obscuridades que ressalta do quadro aqui esboçado em poucas linhas, justificam que se indague sobre o papel da Escola e se reflita sobre o modo de colmatar problemas que afetam os indivíduos e as instituições. Na nossa perspetiva, a Escola poderá decidir em muitas situações, falta saber como e de que modo o deverá fazer. Daí o questionarmos: Serão as parcerias, de facto, a estratégia encontrada pela escola e empresas que melhor se ajusta à resolução dos problemas do desemprego, de desigualdades sociais, de insucesso escolar? Esta e outras questões ficam em aberto … Delimitação teórica: Definição de conceitos chave O estado da arte centrou6se nos conceitos chave do presente artigo – Parcerias, Formação (qualificação) e Cursos Profissionais bem como nos autores defensores da ALV, o que nos permite uma melhor compreensão do objeto em estudo. A pesquisa de estudos sobre parcerias teve eco em autores como Estivil et al., (1994), Carrilho (1998), Rodrigues e Stoer (1998), entre outros, os quais nos revelam experiências de parcerias em contexto de trabalho, que apresentam indicadores positivos em relação à diminuição de desemprego, de abandono escolar e de exclusão. Carrilho (2008) interpreta o conceito de parceria “como o processo através do qual dois ou mais atores se relacionam na base de pressupostos6chave que têm tradução na dinâmica subjacente a determinado projeto”. O conceito de parceria de Carrrilho é semelhante ao descrito por Estivil et al., (1994), bem como ao de outros autores. A formação (qualificação), a que nos referimos no presente artigo, versa a formação em contexto de trabalho e é dirigida aos jovens (Formandos), que estão implicados no processo de parceria entre a escola e a empresa e que se movimentam nestes dois espaços. Os referidos Formandos encontram6se a frequentar um curso profissional, onde combinam as vertentes escolar e profissional. A conclusão do curso permite6lhes a obtenção de uma dupla certificação – escolar e profissional, podendo optar, findo o curso, pelo prosseguimento de estudos, quer na Faculdade, quer num Página de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES curso tecnológico. A opção de seguirem apenas a vertente profissional é pessoal, permitindo6lhes um ingresso mais rápido no mercado de trabalho. Hoje assiste6se a um grande investimento na qualificação, facto que não terá a ver com um simples modismo, mas sim com uma das exigências do mercado de trabalho. O mercado de trabalho, cada vez mais competitivo e rigoroso, proporciona a disputa entre as empresas e os profissionais que se querem afirmar e ocupar o mercado. Kovács (1998) argumenta este facto com o elevado número de recursos humanos e à grande competitividade existente entre eles na procura de emprego e na obtenção de formação. A falta de trabalhadores qualificados, parece ser um problema transversal a outros países e refletir6se em áreas diferentes, como seja a área de Serviços, da Indústria da Construção, do Turismo, entre outras. Desde Países da União Europeia, incluindo Portugal, aos Estados Unidos da América, Canadá e Países da América Latina, a falta de qualificação básica ou qualificada, por parte dos trabalhadores profissionais, parece estar nas preocupações das Políticas Públicas nacionais, europeias e internacionais e de algumas instituições, como a UNESCO e a ONU. A título de exemplo, numa mera leitura transversal efetuada num dos momentos em que procedíamos à revisão da literatura, sobre o que se passa noutros países, no âmbito da qualificação, fomos confrontados com informação sobre o caso do Brasil, país no qual, a falta de qualificação básica ou qualificada, por parte dos trabalhadores profissionais, é bastante notória. Esta informação surgiu de estudos já efetuados na área das empresas ligadas à construção civil 63 . Tal facto, segundo o referido levantamento, teve origem na grande rotatividade dos trabalhadores, na má qualidade de educação básica e no facto das empresas revelarem alguma apreensão de que a formação poderá facultar a perda dos seus trabalhadores. Com o intuito de colmatar os referidos problemas, e, para melhorar a qualificação profissional, muitas empresas (64% das 385, já referidas), optam por planos de formação adequados à própria empresa e por reforçar os laços entre a empresa e o trabalhador, através de benefícios e incentivos salariais. O estudo acima referido faz saber que, também há outros países da zona euro, incluindo Portugal, em que a falta de qualificação de trabalhadores profissionais tem 63 O levantamento efetuado em 385 empresas do ramo da construção civil, pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e pela Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) indica uma grande carência de trabalhadores profissionais com qualificação básica que respondam às categorias de pedreiros e serventes e de trabalhadores qualificados. Página de AÇÃO PÚBLICA E PROBLEMAS SOCIAIS EM CIDADES I TERMEDIÁRIAS efeitos negativos no aumento da produtividade e na qualidade dos mesmos, no cumprimento de prazos de entrega, seja de empreendimentos, como no caso apontado, seja na área de outros bens e produtos, e, ou serviços. Contudo, não será apenas o fator ligado à qualificação (formação) o único responsável pelo desemprego, mas também o fator trabalho, que, na ótica de alguns sociólogos atuais, consideram que o conceito de trabalho está ultrapassado, como é o caso de Marcuse. Se é bem verdade que o trabalho foi considerado o principal fator de organização da sociedade, hoje assiste6se a outros fatores de organização, como a família, o racismo, o corpo, entre outros. Síntese conclusiva A concluir este artigo, gostaríamos de deixar alguns pontos em aberto, fruto de alguma reflexão. Será que uma maior procura de qualificação por parte dos formandos contribuiu para reduzir o desemprego? Será que o investimento que se fez sentir na educação nos últimos anos, por parte das instituições – escola, autarquias, empresas, entre outros, contribuiu para uma redução substancial do insucesso e do abandono escolar? E o que se fez para reduzir as desigualdades sociais? Não será que o caminho é sempre o mesmo e as ações políticas se vão repetindo? E a aposta nas parcerias, será para continuar? O que se pode melhorar? O olhar crítico que aqui espelhamos é na tentativa de que as questões que deixámos em aberto possam contribuir para que se reflita sobre o momento presente e para que desigualdades sociais não se multipliquem. Contudo, resta6nos um ar de confiança em relação à educação e ao futuro de jovens e adultos. A aprendizagem ao longo da vida e a procura de uma qualificação baseada em competências, sejam elas adquiridas através do percurso individual, profissional, ou adquiridas num processo de ligação escola e trabalho poderá ser uma ferramenta essencial e estimulante para os indivíduos. O programa preconizado pela Iniciativa Novas Oportunidades contribuiu para que decrescesse o número de indivíduos com a escolaridade mínima e, consequentemente, com um nível escasso de formação (qualificação), primeiro, através do Reconhecimento, Validação de Competências Chave (RVCC), como é o caso de Adultos até aqui pouco escolarizados, depois, e, mais recentemente, através do ensino Página % de POLÍTICAS PÚBLICAS E DESIGUALDADES dual (profissional) e destinado aos mais Jovens, que procuram uma dupla certificação e uma maior ligação ao trabalho, através de cursos profissionalizantes. Na nossa perspetiva, esta estratégia gerada de consensos entre Políticas Públicas nacionais, europeias e internacionais, tem, em nosso entender, uma face positiva nos atores sociais, na escola e nos centros de formação, ou onde o acesso à formação seja facultado. Contudo, falta a outra face, pelo que, ainda há muito para fazer, apesar de se verificarem algumas melhorias no âmbito da formação (qualificação). Programas como o PISA e a divulgação de dados estatísticos referentes a rankings nacionais e europeus, apontam para a ainda existência em Portugal de abandono escolar, desigualdades sociais, exclusão social e, para um grande aumento de desemprego, aliás, o flagelo do século. Há que ter isso em conta. Da nossa parte, confiamos que os desafios aplicados às economias locais, possibilitem o estudo de formas de crescimento e se insista em arranjar soluções para os problemas atuais. Como já foi referido, um dos problemas emergentes prende6se com a propagação e generalização do desemprego, com incidência do aumento dos índices de pobreza e de exclusão social. Na nossa perspetiva, com base em dados teóricos, as parcerias constituídas por entidades públicas e privadas, como é o caso que apresentamos, poderão trazer uma nova dinâmica de intervenção, contendo respostas inovadoras, muitas delas experimentadas por diferentes atores sociais. Bibliografia ALVES, J.E. (2009). Pode o “local” fazer a diferença? Três projetos inovadores na promoção do emprego e no combate à exclusão. Recuperado em 01 Março de 2013 em: http://comum.rcaap.pt/handle/123456789/2122 CARRILHO, T. Conceito de parceria: três projectos locais de promoção do emprego. In: Análise Social, vol. XLIII (1.º), 2008: 816107. CASTILLO, J.. A emergência de novos modelos produtivos – Produção ligeira e intensificação do trabalho, in: Kovács, I. e Castilho, J. (1998). ovos modelos de produção: Trabalho e pessoas. (Cap. 2), p. 25. Oeiras. Celta Editora. COSTA, H., PEIXOTO, J. e MARQUES, R. (Org.) (2003). A nova sociologia económica: Uma antologia. Oeiras: Celta Editora. 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Decreto6lei 26/89 – Promove “a elevação da qualificação dos Recursos Humanos do País”. Decreto6lei 4/98 de 8 de Janeiro – Este decreto destaca os estágios. “A formação dispensada na Escola completa6se com a formação em contexto de trabalho nas Empresas sobre a forma de estágios”. Página de