Pragmática: desenvolvimentos e extensões
DOI: 10.19177/memorare.v7e220202-6
É com imensa satisfação que apresentamos à comunidade científica
o dossiê Pragmática: desenvolvimentos e extensões, destacando um
panorama do que se produz em pragmática no sul do Brasil e, desse
modo, contribuindo para a missão de Revista Memorare como veículo de
propagação de estudos com temáticas de linguagem, cultura e
identidade.
Diferente do que ocorre no cenário mundial, ainda há poucos e
dispersos projetos e pesquisadores alinhados com abordagens
pragmáticas contemporâneas – que consideram capacidades linguísticas
e metarrepresentacionais humanas –, para a comunicação e para criação
e aprendizagem de culturas humanas como propriedades da evolução
de organismos capazes de constantemente inferir a informação
relevante em contexto (TOMASELLO, 2008; SPERBER et al., 2010; BARA,
2010; REBOUL, 2017). Posto isso, o objetivo deste dossiê é, em essência,
o de fazer avançar estudos dessa espécie em seus múltiplos diálogos
com outras ciências.
No primeiro texto, apresentamos a tradução de Marco Aurélio
Bittencourt do texto Ciências humanas e a esfera pública: uma
perspectiva pragmática de Jef Verschueren, professor titular de
linguística na Universidade da Antuérpia na Bélgica e membro da
diretoria da Associação Internacional de Pragmática (IPrA). Para
Verschueren, qualquer uso de linguagem inevitavelmente combina
significados explícitos e implícitos e todas as línguas contêm meios
estruturais para marcar significado implícito. Isso faz emergir o
aparente paradoxo pragmático de a existência de marcadores de
implicatura pôr em xeque a existência das próprias implicaturas. Em
função disso, o autor busca uma solução descritiva e explicativa para
esse problema a partir de uma matriz tridimensional.
No segundo texto do dossiê, Intention and Goal-Conciliation, Fábio
Rauen analisa potencialidades de se conceber ostensão como conversão
de intenções práticas em intenções informativas e comunicativas.
Apresentando a arquitetura abdutivo-dedutiva de sua teoria de
conciliação de metas em casos de auto e heteroconciliação de metas, ele
traça em seguida algumas considerações sobre intenção à luz de uma
abordagem da comunicação como agência proativa. Rauen propõe que
intenções comunicativas a serviço de intenções informativas devem ser
descritas e explicadas no domínio de planos de ação intencional em
direção à heteroconciliação colaborativa de metas práticas. Para isso,
observa a conexão entre a resposta da audiência e o reconhecimento da
intenção informativa viabilizada pelo estímulo comunicacional,
integrando intenções comunicativas e informativas numa abordagem
que considera a ação intencional humana e inclui o falante como agente
proativo capaz de produzir estímulos comunicacionais para alcançar
propósitos práticos.
No terceiro texto, Efeito racional e efeito emocional: um estudo
pragmático da cognição humana, Sebastião Lourenço dos Santos e Elena
Godoy demonstram que, além dos processos lógicos que integram a
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razão, o significado emerge de emoções e sentimentos. Para os autores,
a dicotomia corpo/mente mostrou-se bastante aguda ao longo da
história, principalmente na Filosofia de Espinosa, Santo Agostinho, Kant
e Descartes, para quem as emoções seriam sinal de distúrbio e mente
sadias seriam aquelas livres de paixões. Tomando como referência a
teoria da relevância de Sperber e Wilson (1986, 1995) e os estudos de
Damásio (1994, 2004), Santos e Godoy defendem integrar razão e
emoções na interpretação discursiva, sugerindo que o desejo é o gatilho
mental do processo inferencial humano.
No quarto texto do dossiê, A pragmática e os jogos comunicativos
nas comunicações organizacionais, Ivete Morosov e Aristeu Mazuroski
Júnior partem da perspectiva cognitiva da teoria da relevância e da
proposta sociocultural da teoria da polidez para analisar falhas
comunicativas que culminaram em acidentes aéreos. Fazendo uma
releitura do trabalho de Godoy (2016), verificam que, quando
garantidas as condições de validade, o jogo comunicativo deve ser
negociado e aceito por todos os participantes, e ser jogado pelos
participantes durante todo o curso de sua vida útil lógica, até chegar à
conclusão natural. Os autores concluem que a estrutura global de um
diálogo não deriva de regras linguísticas, mas de jogos comportamentais
que governam a interação.
No quinto texto, Relevância, conciliação de metas e polidez, Gabriela
Niero e Fábio José Rauen produzem um panorama de pesquisas que
tratam fenômenos de polidez comunicacional a partir de um ponto de
vista pragmático-cognitivo orientado pela noção teórica de relevância
de Sperber e Wilson (1986, 1995). Os autores exploram potencialidades
e fragilidades das abordagens de Escandell-Vidal (1996; 1998), Jary
(1998), Ruhi (2008) e Chen (2014). Em síntese, argumentam que os
estudos em pauta são reativos, na medida em que dão conta
exclusivamente de um ouvinte interpretando um enunciado, pouco ou
nada dizendo sobre o caráter proativo do falante, e reducionistas, na
medida em que assimilam comunicação a trocas informacionais, pouco
ou nada dizendo sobre as metas práticas dos falantes.
No sexto texto, relacionado à teoria da polidez, incluímos a
tradução de Ana Cláudia Fagundes da Cunha e Crisbelli Domingos do
texto A construção da identidade do usuário em chamadas para serviços
telefônicos de empresas públicas do Uruguai de Beatriz Gabbiani. Neste
estudo, Gabbiani verifica a interação entre clientes e fornecedores de
serviços de teleatendimento das empresas estatais uruguaias UTE e OSE
(fornecedores de luz e saneamento, respectivamente) com o objetivo de
comparar as formas de tratamento utilizadas nas interações com cada
estatal a partir do histórico das reclamações registradas. No contexto da
sociopragmática, Gabbiani observa dois aspectos elementares no corpus:
as diferenças culturais que regem a forma de tratamento empregada em
cada uma das empresas e o resultado da interação comunicativa em
cada caso analisado.
No sétimo texto, Aspectos pragmáticos de Libras como língua
adicional, Marina Xavier e Maurício Fernandes Neves Benfatti discutem
a contribuição da pragmática para a aquisição da Libras como língua
adicional. Destacando que a imersão em comunidades de prática e o
contato com aspectos culturais da língua são imprescindíveis para o
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conhecimento de Libras e sua aquisição, os autores constatam que
conceitos pragmáticos essenciais como contexto, conhecimento
enciclopédico e ostensão podem ser úteis para a interpretação de
estímulos ostensivos nessa língua.
No oitavo texto, Interações de Sheldon Cooper no episódio piloto de
“Big Bang: a Teoria”: análise conforme a Teoria da Relevância, João
Augusto Campos Michels e Fábio José Rauen analisam o comportamento
da personagem neste episódio. Os resultados sugerem pistas de
expertise nas relações sociais com os diversos personagens da série que
se revelam dissonantes das características que definem a personagem.
Se Sheldon Cooper se caracteriza no decorrer da série como alguém com
sérios problemas de empatia, com uma arrogância intelectual que o leva
a ser intolerante com a ignorância alheia, e com uma compreensão
sofrível da linguagem indireta, especialmente ironias e sarcasmos,
segundo os autores, isso não ocorre no episódio piloto.
No nono texto do dossiê, Cognição e relevância: uma análise
pragmática da loucura quijotesca, Letícia dos Santos Caminha e
Sebastião Lourenço dos Santos propõem uma análise pragmática da
mente quijotesca a partir da perspectiva da teoria da relevância de
Sperber e Wilson (1986, 1995). Para dar conta desse propósito, os
autores analisam o comportamento patológico do personagem
cervantino nos capítulos IV, VIII, XVIII, XXI e XXII da primeira parte do
romance El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha. Para os autores
Don Quijote, após a intensa e contínua leitura de novelas de cavalaria,
desenvolve uma patologia mental mais bem caracterizada como uma
espécie de disfunção pragmática. Para os autores, essa disfunção
pragmática, passível de ser descrita e explicada em termos relevantista,
afeta o modo como a personagem restringe o processamento de
informações.
No décimo texto do dossiê, Pragmática do cotidiano: notas sobre a
epidemiologia cultural de bebidas alcoólicas, Aristeu Mazuroski Júnior
mobiliza duas importantes teorias para analisar o modo como a
sociedade lida com comportamentos e fenômenos envolvendo a cerveja
e o vinho: a teoria da relevância e a epidemiologia das representações.
Conforme o autor, objetos culturais como cerveja e vinho propiciam
vasto universo de interações comunicativas, pois integram eventos
gregários e comemorativos, adjuntos de ocasiões festivas ou busca de
estados hedônicos. Em síntese, trata-se de itens que definem culturas e
grupos sociais, absorvendo e indexando muitas vezes mudanças sociais
desses grupos.
No décimo primeiro texto, A Constituição Federal brasileira e suas
controvérsias interpretativas: uma perspectiva pragmática, Marina
Godoy e Crisbelli Domingos, destacando as chamadas Súmulas
Vinculantes, desenvolvem uma proposta de análise da interpretação
jurídica da Constituição Federal Brasileira (BRASIL, 1988). As autoras
argumentam que a pragmática cognitiva constitui base epistêmica útil
para a interpretação forense (SMOLKA; PIRKER, 2016) oferecendo um
modelo teórico mais aprofundado do que abordagens estritamente
sociológicas mobilizadas recorrentemente nesses estudos.
Para fechar o dossiê, elegemos o artigo Infodemia em tempos de
pandemia: batalhas invisíveis com baixas imensuráveis, de Angélica
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Andersen e Elena Godoy, sobre o debate da propagação das Fake News
durante a pandemia mundial por COVID-19. Conforme o texto, as
plataformas de mídia social mudaram o ecossistema da informação,
tornando difícil distinguir conteúdos corretos daqueles falsos ou de
baixa qualidade. Nesse contexto, a disseminação de desinformação
emerge como problema relevante na modernidade, a tal ponto que o
termo infodemia foi cunhado para tratar o fenômeno mundial de
desinformação durante a pandemia de COVID-19. Posto isso, as autoras
analisam a aderência à desinformação, considerando um conjunto
expressivo de teorias e linhas de investigação.
Uma vez apresentados os textos que compõem esse dossiê, restanos desejar que o material seja capaz de demonstrar a riqueza como a
pragmática é capaz de lidar com temas tão amplos e de promover
interfaces tão instigantes com diversas áreas do conhecimento.
Seguem nossos votos sinceros de uma leitura crítica muito
proveitosa.
Organizadores
Fábio Rauen (Unisul)
Crisbelli Domingos (UFPR)
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