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Pragmática: desenvolvimentos e extensões

2020, Revista Memorare

Pragmática: desenvolvimentos e extensões DOI: 10.19177/memorare.v7e220202-6 É com imensa satisfação que apresentamos à comunidade científica o dossiê Pragmática: desenvolvimentos e extensões, destacando um panorama do que se produz em pragmática no sul do Brasil e, desse modo, contribuindo para a missão de Revista Memorare como veículo de propagação de estudos com temáticas de linguagem, cultura e identidade. Diferente do que ocorre no cenário mundial, ainda há poucos e dispersos projetos e pesquisadores alinhados com abordagens pragmáticas contemporâneas – que consideram capacidades linguísticas e metarrepresentacionais humanas –, para a comunicação e para criação e aprendizagem de culturas humanas como propriedades da evolução de organismos capazes de constantemente inferir a informação relevante em contexto (TOMASELLO, 2008; SPERBER et al., 2010; BARA, 2010; REBOUL, 2017). Posto isso, o objetivo deste dossiê é, em essência, o de fazer avançar estudos dessa espécie em seus múltiplos diálogos com outras ciências. No primeiro texto, apresentamos a tradução de Marco Aurélio Bittencourt do texto Ciências humanas e a esfera pública: uma perspectiva pragmática de Jef Verschueren, professor titular de linguística na Universidade da Antuérpia na Bélgica e membro da diretoria da Associação Internacional de Pragmática (IPrA). Para Verschueren, qualquer uso de linguagem inevitavelmente combina significados explícitos e implícitos e todas as línguas contêm meios estruturais para marcar significado implícito. Isso faz emergir o aparente paradoxo pragmático de a existência de marcadores de implicatura pôr em xeque a existência das próprias implicaturas. Em função disso, o autor busca uma solução descritiva e explicativa para esse problema a partir de uma matriz tridimensional. No segundo texto do dossiê, Intention and Goal-Conciliation, Fábio Rauen analisa potencialidades de se conceber ostensão como conversão de intenções práticas em intenções informativas e comunicativas. Apresentando a arquitetura abdutivo-dedutiva de sua teoria de conciliação de metas em casos de auto e heteroconciliação de metas, ele traça em seguida algumas considerações sobre intenção à luz de uma abordagem da comunicação como agência proativa. Rauen propõe que intenções comunicativas a serviço de intenções informativas devem ser descritas e explicadas no domínio de planos de ação intencional em direção à heteroconciliação colaborativa de metas práticas. Para isso, observa a conexão entre a resposta da audiência e o reconhecimento da intenção informativa viabilizada pelo estímulo comunicacional, integrando intenções comunicativas e informativas numa abordagem que considera a ação intencional humana e inclui o falante como agente proativo capaz de produzir estímulos comunicacionais para alcançar propósitos práticos. No terceiro texto, Efeito racional e efeito emocional: um estudo pragmático da cognição humana, Sebastião Lourenço dos Santos e Elena Godoy demonstram que, além dos processos lógicos que integram a Memorare, Tubarão, v. 7, n. 2, maio/ago. 2020. ISSN: 2358-0593 3 razão, o significado emerge de emoções e sentimentos. Para os autores, a dicotomia corpo/mente mostrou-se bastante aguda ao longo da história, principalmente na Filosofia de Espinosa, Santo Agostinho, Kant e Descartes, para quem as emoções seriam sinal de distúrbio e mente sadias seriam aquelas livres de paixões. Tomando como referência a teoria da relevância de Sperber e Wilson (1986, 1995) e os estudos de Damásio (1994, 2004), Santos e Godoy defendem integrar razão e emoções na interpretação discursiva, sugerindo que o desejo é o gatilho mental do processo inferencial humano. No quarto texto do dossiê, A pragmática e os jogos comunicativos nas comunicações organizacionais, Ivete Morosov e Aristeu Mazuroski Júnior partem da perspectiva cognitiva da teoria da relevância e da proposta sociocultural da teoria da polidez para analisar falhas comunicativas que culminaram em acidentes aéreos. Fazendo uma releitura do trabalho de Godoy (2016), verificam que, quando garantidas as condições de validade, o jogo comunicativo deve ser negociado e aceito por todos os participantes, e ser jogado pelos participantes durante todo o curso de sua vida útil lógica, até chegar à conclusão natural. Os autores concluem que a estrutura global de um diálogo não deriva de regras linguísticas, mas de jogos comportamentais que governam a interação. No quinto texto, Relevância, conciliação de metas e polidez, Gabriela Niero e Fábio José Rauen produzem um panorama de pesquisas que tratam fenômenos de polidez comunicacional a partir de um ponto de vista pragmático-cognitivo orientado pela noção teórica de relevância de Sperber e Wilson (1986, 1995). Os autores exploram potencialidades e fragilidades das abordagens de Escandell-Vidal (1996; 1998), Jary (1998), Ruhi (2008) e Chen (2014). Em síntese, argumentam que os estudos em pauta são reativos, na medida em que dão conta exclusivamente de um ouvinte interpretando um enunciado, pouco ou nada dizendo sobre o caráter proativo do falante, e reducionistas, na medida em que assimilam comunicação a trocas informacionais, pouco ou nada dizendo sobre as metas práticas dos falantes. No sexto texto, relacionado à teoria da polidez, incluímos a tradução de Ana Cláudia Fagundes da Cunha e Crisbelli Domingos do texto A construção da identidade do usuário em chamadas para serviços telefônicos de empresas públicas do Uruguai de Beatriz Gabbiani. Neste estudo, Gabbiani verifica a interação entre clientes e fornecedores de serviços de teleatendimento das empresas estatais uruguaias UTE e OSE (fornecedores de luz e saneamento, respectivamente) com o objetivo de comparar as formas de tratamento utilizadas nas interações com cada estatal a partir do histórico das reclamações registradas. No contexto da sociopragmática, Gabbiani observa dois aspectos elementares no corpus: as diferenças culturais que regem a forma de tratamento empregada em cada uma das empresas e o resultado da interação comunicativa em cada caso analisado. No sétimo texto, Aspectos pragmáticos de Libras como língua adicional, Marina Xavier e Maurício Fernandes Neves Benfatti discutem a contribuição da pragmática para a aquisição da Libras como língua adicional. Destacando que a imersão em comunidades de prática e o contato com aspectos culturais da língua são imprescindíveis para o Memorare, Tubarão, v. 7, n. 2, maio/ago. 2020. ISSN: 2358-0593 4 conhecimento de Libras e sua aquisição, os autores constatam que conceitos pragmáticos essenciais como contexto, conhecimento enciclopédico e ostensão podem ser úteis para a interpretação de estímulos ostensivos nessa língua. No oitavo texto, Interações de Sheldon Cooper no episódio piloto de “Big Bang: a Teoria”: análise conforme a Teoria da Relevância, João Augusto Campos Michels e Fábio José Rauen analisam o comportamento da personagem neste episódio. Os resultados sugerem pistas de expertise nas relações sociais com os diversos personagens da série que se revelam dissonantes das características que definem a personagem. Se Sheldon Cooper se caracteriza no decorrer da série como alguém com sérios problemas de empatia, com uma arrogância intelectual que o leva a ser intolerante com a ignorância alheia, e com uma compreensão sofrível da linguagem indireta, especialmente ironias e sarcasmos, segundo os autores, isso não ocorre no episódio piloto. No nono texto do dossiê, Cognição e relevância: uma análise pragmática da loucura quijotesca, Letícia dos Santos Caminha e Sebastião Lourenço dos Santos propõem uma análise pragmática da mente quijotesca a partir da perspectiva da teoria da relevância de Sperber e Wilson (1986, 1995). Para dar conta desse propósito, os autores analisam o comportamento patológico do personagem cervantino nos capítulos IV, VIII, XVIII, XXI e XXII da primeira parte do romance El Ingenioso Hidalgo Don Quijote de la Mancha. Para os autores Don Quijote, após a intensa e contínua leitura de novelas de cavalaria, desenvolve uma patologia mental mais bem caracterizada como uma espécie de disfunção pragmática. Para os autores, essa disfunção pragmática, passível de ser descrita e explicada em termos relevantista, afeta o modo como a personagem restringe o processamento de informações. No décimo texto do dossiê, Pragmática do cotidiano: notas sobre a epidemiologia cultural de bebidas alcoólicas, Aristeu Mazuroski Júnior mobiliza duas importantes teorias para analisar o modo como a sociedade lida com comportamentos e fenômenos envolvendo a cerveja e o vinho: a teoria da relevância e a epidemiologia das representações. Conforme o autor, objetos culturais como cerveja e vinho propiciam vasto universo de interações comunicativas, pois integram eventos gregários e comemorativos, adjuntos de ocasiões festivas ou busca de estados hedônicos. Em síntese, trata-se de itens que definem culturas e grupos sociais, absorvendo e indexando muitas vezes mudanças sociais desses grupos. No décimo primeiro texto, A Constituição Federal brasileira e suas controvérsias interpretativas: uma perspectiva pragmática, Marina Godoy e Crisbelli Domingos, destacando as chamadas Súmulas Vinculantes, desenvolvem uma proposta de análise da interpretação jurídica da Constituição Federal Brasileira (BRASIL, 1988). As autoras argumentam que a pragmática cognitiva constitui base epistêmica útil para a interpretação forense (SMOLKA; PIRKER, 2016) oferecendo um modelo teórico mais aprofundado do que abordagens estritamente sociológicas mobilizadas recorrentemente nesses estudos. Para fechar o dossiê, elegemos o artigo Infodemia em tempos de pandemia: batalhas invisíveis com baixas imensuráveis, de Angélica Memorare, Tubarão, v. 7, n. 2, maio/ago. 2020. ISSN: 2358-0593 5 Andersen e Elena Godoy, sobre o debate da propagação das Fake News durante a pandemia mundial por COVID-19. Conforme o texto, as plataformas de mídia social mudaram o ecossistema da informação, tornando difícil distinguir conteúdos corretos daqueles falsos ou de baixa qualidade. Nesse contexto, a disseminação de desinformação emerge como problema relevante na modernidade, a tal ponto que o termo infodemia foi cunhado para tratar o fenômeno mundial de desinformação durante a pandemia de COVID-19. Posto isso, as autoras analisam a aderência à desinformação, considerando um conjunto expressivo de teorias e linhas de investigação. Uma vez apresentados os textos que compõem esse dossiê, restanos desejar que o material seja capaz de demonstrar a riqueza como a pragmática é capaz de lidar com temas tão amplos e de promover interfaces tão instigantes com diversas áreas do conhecimento. Seguem nossos votos sinceros de uma leitura crítica muito proveitosa. Organizadores Fábio Rauen (Unisul) Crisbelli Domingos (UFPR) Referências BARA, B. Cognitive Pragmatics: the mental processes of communication. Cambridge: MIT Press, 2010. BRASIL. Casa Civil. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 8 nov. 2016. CERVANTES M. Don Quijote de la Mancha. São Paulo: Real Academia Española: Asociación de Academias de la Lengua Española, 2004. CHEN, X. Politeness Processing as Situated Social Cognition: a RT-Theoretic Account. Journal of Pragmatics, n. 71, p. 117-131, jul. 2014. DAMÁSIO, A. R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. 11. ed. São Paulo: Companhia da Letras, 2007-1994. DAMÁSIO, A. R. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo: Companhia da Letras, 2004. ESCANDELL-VIDAL, V. Towards a Cognitive Approach to Politeness. Contrastive Semantics and Pragmatics, v. 2, n. 18, p. 629-650, 1996. ESCANDELL-VIDAL, V. Politeness: A Relevant Issue for Relevance Theory. Revista Alicantina de Estudios Ingleses, Madrid, n. 11, p. 45-57, 1998. GABBIANI, B. Géneros en el discurso institucional: reclamos con formato de consulta. Artexto (Revista do Instituto de Letras e Artes), v. 14, p. 73-83, 2013 GODOY, E. Pragmática no ar. III Workshop Internacional de Pragmática. Anais..., Curitiba, UFPR, nov. 2016. Memorare, Tubarão, v. 7, n. 2, maio/ago. 2020. ISSN: 2358-0593 6 JARY, M. Relevance Theory and the Communication of Politeness. Journal of Pragmatics, n. 30, p. 1-19, 1998. REBOUL, A. Cognition and communication in the evolution of language. Oxford: Oxford University Press, 2017. RUHI, S. Intentionality, Communicative Intentions, and the Implication of Politeness. Intercultural Pragmatics, n. 5, p. 287-314, 2008. SMOLKA, J.; PIRKER, B. International Law and Pragmatics: An Account of Interpretation in International Law. International Journal of Language and Law, v. 5, 2016, p. 1-40. SPERBER, D. et al. Epistemic Vigilance. Mind & Language, v. 25, n. 4, set. 2010, p. 359-393, 2010. SPERBER, D; WILSON, D. Relevance: Communication & Cognition. 2nd. ed. Oxford: Blackwell, 1995. (1st. ed. 1986). TOMASELLO, M. (2008). The Jean Nicod Lectures. Origins of human communication. Cambridge: MIT Press. VERSCHUEREN, Jef. Humanities and the public sphere: a pragmatic perspective. Trabalho apresentado ao Departamento de Ciências Humanas da Finnish Society of Sciences and Letters, em Helsinki, no jubileu de seu 175º Simpósio, 21-22 out. 2013. Memorare, Tubarão, v. 7, n. 2, maio/ago. 2020. ISSN: 2358-0593