Revista de Graduação em Ciências Sociais
Edição n. 5 | ISSN 2237-2423 | Ano 3 | Outubro, 2013
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A Primeiros Estudos – Revista de Graduação em Ciências Sociais é uma
publicação eletrônica de caráter cientí ico, com periodicidade semestral,
organizada por estudantes de graduação em Ciências Sociais da Faculdade de
Filoso ia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH–
USP). Seu objetivo é estimular e aproximar os graduandos de todo o país ao
cotidiano da produção e publicação de artigos, resenhas e traduções com temas
vinculados às três grandes áreas que compõem o curso de Ciências Sociais, a
saber: Antropologia, Ciência Política e Sociologia.
EQUIPE EDITORIAL
EĉĎęĔė RĊĘĕĔēĘġěĊđ
Prof. Dr. Alexandre Braga Massella
CĔĒĎĘĘģĔ EĉĎęĔėĎĆđ
Barbara Cristina Soares Santos
Eduardo Santos Gonçalves Monteiro
Gabriela Rodrigues da Guia Rosa
Mariana Ferreira Vieira
Max Luiz Gimenes
Michael Anielewicz
Thiago Rodrigues Oliveira
CĔēĘĊđčĔ EĉĎęĔėĎĆđ
Adrian Gurza Lavalle – Depto. Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Alexandre Braga Massella – Depto. Sociologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Álvaro Comin – King’s Brazil Institute, King’s College London, Reino Unido
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CĔēĘĊđčĔ EĉĎęĔėĎĆđ
Álvaro de Vita – Depto. Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Ana Claudia Duarte Rocha Marques – Depto. Antropologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz – Depto. Antropologia, Univ. Federal Fluminense (UFF), Brasil
Ana Lúcia Modesto – Depto. Sociologia e Antropologia, Univ. Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil
Ana Paula Hey – Depto. Sociologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
André Vitor Singer – Depto. Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Antonio Mitre – Depto. Ciência Política, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Brasil
Bernardo Ricupero – Depto. de Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Dominique Tilkin Gallois – Depto. Antropologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Eduardo Marques – Depto. Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Eduardo Viveiros de Castro – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil
Elizabeth Balbachevsky – Depto. Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Eunice Ostrensky – Depto. Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Fernanda Peixoto – Depto. Antropologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Fernando Limongi – Depto. Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Gabriel Cohn – Depto. Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Gabriel Feltran – Depto. Sociologia, Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), Brasil
Heitor Frúgoli Jr. – Depto. Antropologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Heloisa Buarque de Almeira – Depto. Antropologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Jean–Pierre Chaumeil – CNRS – Centre EREA de l’UMR7186, Institut Français d’Etudes Andines, França
João Paulo Candia Veiga – Depto. Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
José Guilherme Cantor Magnani – Depto. Antropologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
José Jeremias de Oliveira Filho – Depto. Sociologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
José Maurício Arruti – Depto. Antropologia, Universidade de Campinas (UNICAMP), Brasil
Leopoldo Waizbort – Depto. Sociologia. Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Mário Antônio Eufrásio – Depto. Sociologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Mauricio Moya – Depto. Ciência Política – Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil
Matthew McLeod Taylor – Depto. Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Marta Arretche – Depto. Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Maria Hermínia Tavares de Almeida – Depto. Ciência Política, Univ. de São Paulo (USP), Brasil
Maria Fernanda Lombardi – Depto. Ciências Sociais, Univ. Federal de São Paulo (UNIFESP), Brasil
Marcio Goldman – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil
Márcia Lima – Depto. Sociologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Nadya Araújo Guimarães – Depto. Sociologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Paolo Ricci – Depto. Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Patricio Tierno – Depto. Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Paula Montero – Depto. Antropologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Renato Sérgio de Lima – Fundação SEADE, Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Brasil
Renato Sztutman – Depto. Antropologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Ronaldo Almeida – Depto. Antropologia, Universidade de Campinas (UNICAMP), Brasil
Rogério Arantes – Depto. Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Rolf Rauschenbach – Depto. Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Rose Satiko Gitirana Hikiji – Depto. Antropologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Rossana Rocha Reis – Depto. Ciência Política, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Ruy Braga – Depto. Sociologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Sandra Cristina Gomes – Depto. Políticas Públicas, Univ. Fed. do Rio Grande do Norte (UFRN), Brasil
Vagner Gonçalves da Silva – Depto. Antropologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
Vera da Silva Telles – Depto. Sociologia, Universidade de São Paulo (USP), Brasil
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EXPEDIENTE
Revisão: Barbara Cristina Soares Santos, Eduardo Santos Gonçalves Monteiro,
Gabriela Rodrigues da Guia Rosa, Max Luiz Gimenes, Michael Anielewicz, Romulo
Lelis Thiago, Rodrigues Oliveira
Diagramação: Vitor Araújo
Capa: Walkir Silva e Michael Anielewicz
Imagem da capa: Marcio Zamboni
Ficha catalográ ica elaborada pela Comissão Executiva da Primeiros Estudos – Revista
de Graduação em Ciências Sociais com base nos parâmetros do Sistema Integrado de
Bibliotecas da USP (SIBI-USP)
Primeiros Estudos – Revista de Graduação em Ciências Sociais.
– Edição n.5 (2º Semestre 2013); -- São Paulo: Universidade de São
Paulo,
Faculdade de Filoso ia, Letras e Ciências Humanas, 2013 Semestral.
ISSN 2237-2423
1. Ciências Sociais. 2. Antropologia. 3. Ciência Política. 4. Sociologia.
I. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filoso ia, Letras e Ciências
Humanas. II. Título: Primeiros Estudos
CDD 300
Depósito Legal na Biblioteca Nacional, conforme Decreto Nº 10.944, de 14 de dezembro
de 2004.
Universidade de São Paulo
Prof. Dr. João Grandino Rodas – Reitor; Prof. Dr. Hélio Nogueira da Cruz – Vice-Reitor
Pró– Reitoria de Graduação
Profª. Drª. Telma Maria Tenorio Zorn
Pró– Reitoria de Pesquisa
Prof. Dr. Marco Antonio Zago
Faculdade de Filosoϐia, Letras e Ciências Humanas
Prof. Dr. Sérgio França Adorno de Abreu – Diretor; Prof. Dr. João Roberto Gomes de
Faria – Vice-Diretor
Primeiros Estudos – Revista de Graduação em Ciências Sociais
www.revistas.usp.br/primeirosestudos
primeirosestudos@gmail.com
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Twitter - @prim_estudos
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SĚĒġėĎĔ
Editorial
05
Por Barbara Soares
Artigos
06
21
“É muito duro esse trabalho”: interação e conϔlito em um serviço de
atendimento básico em saúde
Marcos Júnior Santos de Alvarenga
Uma genealgia da categoria de monstro
39
Lizandro Lui
59
Lucas Belmiro Freitas
75
Laura Pimentel Barbosa
86
Eduardo Tardeli de Jesus Andrade
98
Gustavo Vieira de Moraes
120
Felipe Brasil
Mudanças das políticas culturais no Brasil: da modernidade à pósmodernidade
Políticas culturais na sociedade em rede: cultura e tecnologia - iniciativas
brasileiras
Sistema médico kaingang: conhecimentos e utilização de “remédios do
mato” na Terra Indígena Apucarana
Só para homens! Sexo nos banheiros públicos do Centro Comercial Colombo
em Lisboa
Teoria Elitista Clássica, Democracia Elitista e o papel das Eleições: uma
questão de deϔinição dos termos
Vivendo na Bolívia: uma análise do ϔluxo de estudantes brasileiros para
Santa Cruz de La Sierra
Juliana França Varella
Resenha
138
SĎēČĊė, André Vitor (2012). Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto
conservador. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras.
Bruno Casalotti Camillo Teixeira
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Editorial
Por Barbara Soares
O quinto número da Primeiros Estudos começou com uma renovação signi icativa
do seu corpo editorial. Com o processo seletivo que se realizou no ano passado, entraram cinco novos membros que foram de grande importância para esta publicação.
Este número é formado por oito artigos e uma resenha. Entre os artigos vale
ressaltar que sua maioria é composta por autoras e autores de outras faculdades e de
outros cursos, evidenciando uma das principais propostas deste periódico, a saber, a
aproximação da produção acadêmica e do debate entre os estudantes de graduação
em Ciências Sociais de todo o país, bem como entre docentes, pós-graduandos e graduandos de outras áreas. Além disso, os vários temas tratados pelos artigos torna-
ram possível atingirmos outro grande objetivo da Primeiros Estudos: a produção de
um debate diversi icado que contribua para a integração entre os diversos estudos
cientí icos dos graduandos de Ciências Sociais e das demais ciências humanas.
Neste número, merece destaque a resenha do livro Os Sentidos do Lulismo, do Prof.
Dr. André Vitor Singer, Livre-docente do Departamento de Ciência Política da FFLCH/
USP. Livro este que recebeu o Prêmio ANPOCS 2013 de Melhor Obra Cientí ica, que
está entre os inalistas do Prêmio Jabuti, na categoria Não Ficção – Ciências Humanas,
e que contribuiu signi icativamente para o debate político em vigor acerca do contexto
político contemporâneo brasileiro.
Apesar do vertiginoso desenvolvimento da Primeiros Estudos, com o uso con-
solidado do sistema OJS, com a editoração realizada pelo Serviço de Editoração e
Distribuição da FFLCH e com o apoio inanceiro dado pelos três departamentos das
Ciências Sociais da FFLCH, tivemos o grande desa io de manter a qualidade da pro-
dução editorial em um forte processo de transição. Por isso, gostaria de agradecer a
todos os novos membros que, juntamente com os antigos, tiveram muito comprometimento pelo processo de publicação e grande interesse em continuar a fazer desta
revista uma produção discente, coletiva e de grande valor acadêmico. Além disso,
também gostaria de deixar o nosso agradecimento aos ex-membros que de algum
modo se mantiveram presentes colaborando na formação da Primeiros Estudos e, em
especial, deste número.
Uma boa leitura a todos!
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 5, 2013
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“É muito duro esse trabalho”: interação e conϐlito
em um serviço de atendimento básico em saúde
Marcos Júnior Santos de Alvarenga2*
Resumo: A proposta do presente artigo é de entender a relação que funcionários da saúde estabelecem com seus pacientes no cotidiano de trabalho em um Centro de Saúde do Distrito Federal, à luz
dos limites e possibilidades das teorias desenvolvidas por Alfred Schutz e Georg Simmel. A pesquisa
esteve vinculada a um Projeto de Extensão onde foram realizadas 29 entrevistas individuais com os
funcionários do Centro, servindo assim para mapear o campo e circunscrever a problemática. Ao
vincular as entrevistas à teoria socioantropológica presente nos escritos de Schutz e Simmel, busco
apresentar pro ícuas ferramentas analíticas para pensarmos questões relacionadas às representações e às relações que são vivenciadas pelos trabalhadores em seu cotidiano de trabalho. Pretendo
abordar um dos pontos que me chamaram mais a atenção durante a análise das entrevistas: os conlitos que se estabelecem na relação funcionário/paciente. Serão usados os limites das ideias de conlito e de estrutura de grupo desenvolvidas por Simmel, e a ideia de interação entre grupos utilizada
nos trabalhos de Schutz. A partir daí, procuro entender as percepções que os funcionários do Centro
teceram acerca de seus pacientes e de sua interação com eles, e descrever a construção da igura
do paciente que chega “armado” nos serviços de saúde. Ao inal do texto, faço uma síntese do que
foi o trabalho até então e aponto os limites da pesquisa, bem como seus possíveis desdobramentos
etnográ icos.
Palavras-chave: con lito, interação, atendimento ao paciente.
Introdução
A elaboração deste artigo partiu de uma Pesquisa de Extensão que tem por
título “É muito duro esse trabalho”: Investindo nos funcionários da Secretaria de Es-
tado de Saúde, realizada durante o ano de 2011 1. O campo para a pesquisa foi rea-
lizado junto à equipe de trabalhadores de um Centro de Saúde (CS) localizado em
Ceilândia, região administrativa do Distrito Federal. A im de preservar a identidade
e o sigilo da equipe de saúde, o número que identi ica o CS foi omitido, bem como o
cargo e a função dos funcionários entrevistados.
Um dos principais problemas que foram relatados pelos funcionários entrevis-
tados durante a pesquisa foi a relação criada no atendimento aos usuários do sistema.
Os pacientes que acorrem aos serviços de saúde são caracterizados pelos funcionários
como pessoas que já chegam “armadas” à unidade de saúde e estão potencialmente
* Graduando em Ciências Sociais - U
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.
A realização do Projeto de Extensão contou com a coordenação de uma das professoras do Departamento de
Antropologia e com a participação de cinco graduandos do mesmo departamento.
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Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 6-20, 2013
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“É muito duro esse trabalho”
prontas para agredir – verbal ou isicamente – o pro issional de saúde no exercício de
suas atribuições. Não será de todo coincidência, portanto, o fato de encontrarmos em
algumas unidades de saúde pública da capital cartazes pregados nas portas dos con-
sultórios e nos corredores lembrando aos usuários e transeuntes o art. 331 do Código
Penal Brasileiro, que estipula detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, ou multa,
em casos de desacato ao funcionário público no exercício da função ou em razão dela.
A caracterização do paciente como potencial provocador de desacatos e desen-
tendimentos, bem como sua estigmatização, trata-se de tema que tem sido abordado
por diversos trabalhos sociológicos e antropológicos no Brasil. Principalmente em
contextos hospitalares, como o trabalho de Deslandes (2002), que coloca em diálogo
o debate teórico mais amplo sobre violência e as atividades desenvolvidas no setor
de emergência de um hospital público do Rio de Janeiro, trazendo a violência nos serviços emergenciais de saúde em dois níveis: como demanda de trabalho e na relação
com o paciente. Na esfera da relação com o paciente, a autora traz para exempli icar
essa dimensão o que a equipe de emergência do hospital chama de ‘esquenta plantão’,
que são os momentos de maior tensão e agressividades vivenciadas no setor de emergência. Seja porque o paciente esperou muitas horas para ser atendido, seja porque
o familiar quer que seu parente seja atendido prontamente, culminando em algumas
vezes até em agressões ísicas envolvendo pro issionais e pacientes.
Outros trabalhos que se inserem no campo da saúde do trabalhador demons-
tram os tensionamentos vivenciados por pro issionais no encontro diário com os
pacientes no âmbito hospitalar. Como o trabalho de Bianchessi e Tittoni (2009), que
demonstra que as demandas trazidas pelos pacientes frequentemente suscitam nos
pro issionais sentimentos de impotência – quando são demandas não resolvidas,
apesar de considerarem as limitações estruturais e humanas, tensões e desgastes
que levam à ocorrência de adoecimentos e afastamentos do trabalho. Somado a esta
interação, há também os con litos que advêm da relação entre a equipe de pro issionais e a estrutura extremamente hierarquizada de trabalho, em que há constan-
temente a pressão e a responsabilidade por parte dos pro issionais para não co-
meterem erros. Deslandes (2002) também aponta essa desigualdade hierárquica,
a irmando que o processo de trabalho na saúde é desigualmente distribuído, sendo
a igura do médico a detentora do saber/poder hegemônico. Porém, a autora não
perde de vista o fato de que este processo de trabalho desigual admite espaços para
negociações e barganhas entre seus diferentes atores.
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 6-20, 2013
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Marcos Júnior Santos de Alvarenga
É justamente desse contexto con lituoso e de adoecimento que surgiu a deman-
da para a realização da pesquisa de extensão que serviu de norte para a produção des-
te artigo. Cabe lembrar aqui que existem importantes diferenças entre as experiências
descritas nas pesquisas que trouxe como referência, sediadas em hospitais de média
e alta complexidade, e a realidade da pesquisa desenvolvida no Centro de Saúde de
Ceilândia, serviço de atenção básica, onde se deve levar em conta as diferenças entre
dimensão, estruturação e as especi icidades de cada serviço estudado.
A demanda à qual me referia surge de um convite da própria diretoria do Centro
de Saúde, que a irmava haver uma crescente ocorrência de funcionários desmotivados que enfrentavam problemas de con litos interpessoais, preocupações pré-aposen-
tadoria, sofrimento psíquico e mental, desânimo para o trabalho etc. Nesse sentido, o
projeto de extensão foi estruturado com o intuito de oferecer aos trabalhadores do CS
informações e re lexões a partir da perspectiva teórico-metodológica da Antropologia
e pensar algumas possíveis ideias e alternativas para os problemas e con litos enfrentados no cotidiano de trabalho, rea irmando, assim, a importância das abordagens
compreensivas nos estudos sobre a relação trabalho-saúde. O potencial interpretati-
vo, que lançam mão as Ciências Sociais, como nos lembram Minayo-Gomez e Thedim-Costa (2003), nos ajudam a compreender não só a práxis social dos trabalhadores,
mas também o trabalho enquanto categoria social, enquanto resultado de um enreda-
do de relações políticas, econômicas, tecnológicas e sociais que se dispõem de forma
con lituosa e interdependente.
A partir dos dados e experiências encontradas em campo estabelece-se a pro-
posta deste artigo, que tenta levar adiante os esforços de aproximação e diálogo entre
a comunidade e a academia. E tem o intuito de entender as experiências relatadas em
um serviço de saúde básico a partir da perspectiva fenomenológica de pensadores
como Schutz e Simmel, em que as interações da vida cotidiana assumem primorosas
inspirações de análise: seja no estudo das formas sociais, em Simmel, seja no estudo
das intersubjetividades, em Schutz.
Este artigo está divido em dois eixos de análise sequenciais: interação e con li-
to. No primeiro eixo, trago a dimensão da interação cotidiana, tentando demonstrar,
como a concepção de interação entre grupos de Schutz (1979) pode ser aproveitada
no que tange a análise da relação entre equipe pro issional e paciente, sempre em
consonância com a perspectiva dos primeiros. Já no segundo eixo, trago as contribui-
ções da teoria de Simmel (1983) bem como os seus limites para análise do material
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“É muito duro esse trabalho”
empírico, lançando mão da noção simmeliana de con lito e seu papel na manutenção
dos grupos. Em relação à ideia de con lito, demonstro como ela é caracterizada pelo
autor e como, em dadas circunstâncias do cotidiano de trabalho dos funcionários do
CS, ela não se aplica em seus aspectos positivos, aqueles que mantém a unidade do
grupo. Ao inal desses dois eixos, retomo em forma de síntese o que foi discutido até
então e aponto os limites da pesquisa empírica junto à equipe do CS de Ceilândia, além
dos possíveis novos desdobramentos da pesquisa etnográ ica.
Aspectos metodológicos: situando o leitor
A estrutura embrionária do Projeto de Extensão que originou este artigo foi
apresentada em reunião à equipe de pro issionais do CS para perceber se os objetivos,
ações estratégicas e metodológicas faziam algum sentido e se eram, de alguma forma,
interessantes para a equipe. De forma geral, o projeto de extensão esteve sustentado
por dois eixos sequenciais: (i) etapa de pesquisa e levantamento de dados, em que foram realizadas entrevistas individuais junto aos funcionários e (ii) etapa de sugestões
e realização de atividades. A ideia dessa segunda etapa foi de apresentar à equipe de
funcionários uma primeira análise dos dados levantados no primeiro eixo da pesquisa
e, a partir daí, sugerir algumas atividades especí icas a im de servirem como alternativa para atenuar as consequências negativas da rotina de trabalho.
Na primeira parte, que corresponde à etapa de pesquisa e levantamento de da-
dos, foram realizadas 29 entrevistas individuais com os pro issionais do CS, mediante o
interesse e a disponibilidade em participar, onde se tentou contemplar funcionários de
todos os setores do CS, para garantir o mínimo de representatividade. Porém, somente
alguns trechos das entrevistas entraram na análise que aqui se desenvolve.
Um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi apresentado e as-
sinado pelas duas partes (pesquisador e entrevistado), conforme preconiza a Resolução 196/1996 do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP/MS). O projeto
foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Humanas
(CEP/IH) e o Decanato de Extensão, pelo Sistema de Informação e Gestão de Projetos
(SIGPROJ/MEC)2.
Foi utilizado um roteiro de perguntas semi-estruturado, elaborado previamente
com base na literatura especí ica e relacionada com o tema do projeto. O roteiro con-
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SIGProj N°: 88277.368.23464.0305201.
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Marcos Júnior Santos de Alvarenga
tou com perguntas divididas nos seguintes blocos de conteúdo: panorama individual,
panorama de trabalho no Centro de Saúde e perguntas especí icas.
Para a segunda etapa do projeto, foi prevista a apresentação da análise dos dados
levantados e, a partir daí, a sugestão de algumas atividades especí icas como alternati-
va para atenuar as consequências negativas da rotina pro issional. As entrevistas rea-
lizadas foram analisadas e comentadas pela equipe de pesquisadores, dando suporte
para a elaboração do relatório inal apresentado à equipe de pro issionais. Juntamente
com o relatório, foram apresentadas ideias de atividades que poderiam ser realizadas
pela equipe de pro issionais, como atividades lúdicas, confecção de cartazes e exposição de fotos. Apesar dessas ideias terem sido bem recebidas e apoiadas, não puderam
ser realizadas , por motivos de organização interna do próprio CS.
Seguindo a proposta deste artigo, pretendo abordar nas páginas seguintes os
pontos que me prenderam mais a atenção, devido a sua recorrência, durante a análise
das entrevistas: os con litos que se estabeleceram na relação funcionário/paciente em
um serviço de atendimento básico de saúde.
Interação
Ainda que os funcionários entendam o papel da saúde pública como um aten-
dimento que deva ser humanizado3 e de qualidade, em que o paciente é tido como
prioridade e foco das atenções, no decorrer das entrevistas foi possível perceber que
a relação estabelecida com os pacientes é uma das fontes de con litos e atritos mais
mencionadas. O contato imediato com o paciente no cotidiano de trabalho se mostrou
como uma atividade cansativa – para não dizer estressante – e motivo de constantes irritações. Ao reler cuidadosamente as entrevistas, foi possível detectar que, em
grande parte delas, o estresse dos pacientes é apresentado como condicionador e/ou
causa do estresse sofrido pelos funcionários do referido Centro de Saúde. Talvez por
esse motivo, o lidar diretamente com o público que procura atendimento seja menos
valorizado sob a ótica de quem está prestando os serviços.
Na fala de alguns entrevistados, notou-se a presença de duas categorias que fre-
quentemente perpassavam as histórias e explicações oferecidas durante as entrevis-
tas, a saber: a categoria “lá fora” e a categoria “aqui dentro”. Como o escopo desta
Ainda que a questão da humanização em saúde, que apresenta por principio básico a indissociabilidade entre
atenção e gestão, seja de grande importância, não será abordada de forma direta neste artigo. Para maiores
informações, consultar a Política Nacional de Humanização criada em 2003, publicação do Ministério da Saúde.
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“É muito duro esse trabalho”
pesquisa esteve centrado apenas no ponto de vista dos funcionários, a categoria “lá
fora” faz referencia às dependências do Centro de Saúde que são de acesso liberado
aos pacientes e ao público em geral. Já a categoria “aqui dentro” faria referências às
dependências burocrático-administrativas do Centro, que em teoria seriam de acesso
exclusivo aos funcionários.
A partir disto pode-se dizer, mais especi icamente, que é “lá fora” que se tem que
conviver ou “aguentar” os pacientes. Funcionários da farmácia, da coleta de exames,
das clínicas médicas, do arquivo e marcação de consultas, por exemplo, seriam os que
dividiriam seu cotidiano com os pacientes, são os que estariam “lá fora” para lidar com
o público. Como nos relatou uma funcionária,
Lá fora, a gente lida com o público. A gente tem que ouvir o tempo todo os problemas
das pessoas. Eles desacatam funcionários, descontam muita coisa na gente. É di ícil. Eu
entendo que as pessoas querem uma coisa e não conseguem e, com isso, icam chateadas.
Eu queria poder ajudar mais, mas não tinha o que fazer ali. Muita reclamação, muita briga.
A gente vai cansando disso. Aí, na farmácia, um amigo me indicou para o RH [Recursos
Humanos] (Mulher, 47 anos, trabalha no RH)4.
O transcrito acima relata-nos a história de uma funcionária que, com o “tempo
de casa”, foi deixando as atividades que antes realizava na farmácia para realizar ati-
vidades administrativas longe do público. O “lá fora”, ao concretizar para os funcioná-
rios o contato imediato com o público dito estressado e “valente”, torna-se um lugar
menos valorizado e mais desgastante. Notou-se um movimento semelhante em vários
setores, exempli icado pela fala acima, de migrar com o passar do tempo e com “tempo de casa”, de “lá de fora” para “aqui dentro”. Con igura-se, assim, uma trajetória que
valoriza transferir-se de atividades de interface e, desta forma, manter distância do
atendimento aos pacientes.
Essas estratégias de distanciamento adotadas podem ser entendidas como uma
alternativa da qual os funcionários lançam mão para burlarem o enfrentamento direto
de situações árduas no trato cotidiano com os pacientes, familiares e outros usuários.
Estratégias que demarcam os agenciamentos, resistências e fugas destes trabalhadores no exercício de suas atribuições. Salientando que o lidar com o público não faz
parte apenas do trabalho de médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e agentes
comunitários de saúde, o relacionamento com o público é uma tarefa que direta ou
Por se tratar de um centro de saúde relativamente pequeno, optei por omitir ao longo do texto informações
que pudessem identi icar os/as entrevistados/as. Sendo assim, não foram especi icados os cargos e/ou atividades
exercidas pelos trabalhadores que participaram da pesquisa, a im de que se mantivesse o compromisso ético com
a equipe de saúde.
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Marcos Júnior Santos de Alvarenga
indiretamente recai também sobre os funcionários que exercem as tarefas técnico-administrativas e também da limpeza e segurança.
Algumas vezes os setores técnico-administrativos e de segurança tem que lidar di-
retamente com importantes impactos de humor advindos dos pacientes e seus familia-
res, recebendo por vezes a primeira descarga emocional. As autoras Bianchessi e Tittoni
(2009) demonstram, em sua pesquisa com os funcionários administrativo-operacional,
que esses funcionários acabam ocupando uma posição dentro da organização em que,
literalmente, icam expostos aos primeiros impactos e descargas de pacientes e usuários
– a chamada linha de frente, como colocado pelas autoras. Considerada como desgastan-
te, a relação com os pacientes foi constantemente descrita pela maioria dos funcionários
do CS de Ceilândia como provocadora de desentendimentos, desacatos e, no seu limite,
de brigas. Perceber isto foi de certa forma paradoxal, sobretudo porque, institucional-
mente, um centro de saúde tem como missão atender as pessoas e oferecer-lhes solução
para que tenham condições de restabelecer a saúde.
Na leitura de alguns trechos de entrevistas, é possível traçarmos a igura de um
paciente que já chega “armado” ao centro. Um paciente “valente”, que chega com o
intuito de agredir o funcionário caso suas demandas não sejam atendidas da forma
adequada. O paciente é, portanto, percebido por alguns membros da equipe como um
potencial provocador de desentendimentos e atritos. Seguem, abaixo, as falas que expressam essa ideia que se constrói dos pacientes:
O paciente vem aqui e às vezes ele já vem armado. Ele já foi passar por um exame no
Centro Radiológico, por exemplo, mas não conseguiu marcar um exame lá no hospital, no
Hospital de Base, então ele já volta triste. Às vezes desiste do tratamento ou às vezes volta
armado. Armado no sentido de que vem para te agredir (Homem, trabalha no Núcleo de
Enfermagem).
De certa forma a gente lida com o estresse do público também, seus problemas, aquelas
demandas não resolvidas. Tem também o problema político, que de qualquer forma a gente está representando o governo. Então com a saúde que eles vêem na televisão que não
está [boa], que está tendo problemas nos outros lugares, icam irados com aquilo. Aí eles
já chegam armados (Mulher, 50 anos, trabalha no Núcleo de Enfermagem).
Por vezes, a idade do paciente, e não sua valentia, é o que se apresenta como
motivo de di iculdade na hora do atendimento:
Essa parte de di iculdade de lidar com os pacientes a gente observa principalmente com
os pacientes idosos, eles são sexagenários e eles têm di iculdades de compreender e na
maioria desses casos eles não são acompanhados de familiares. Eles não conseguem entender corretamente. Então seria muito importante o acompanhamento do familiar. Algumas vezes a gente tem contatado a assistente social, no sentido de ela cobrar [a presença]
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“É muito duro esse trabalho”
da família e ela me parece ter feito esse trabalho, mas os pacientes insistem em vir sozinhos pras consultas (Homem, 54 anos, Clínica Médica).
Quando falamos da realidade do Centro de Saúde pesquisado e temos em mente
a interação com os pacientes, podemos perceber a presença de dois grandes grupos:
o grupo composto pelos que trabalham no centro e o grupo integrado pelos usuários
do sistema, intitulados pelo primeiro grupo como “o público”. Não será demasiado
ressaltar que todas as análises aqui desenvolvidas dizem respeito unicamente ao pon-
to de vista dos funcionários, uma vez que os pacientes não izeram parte do escopo
da pesquisa. Portanto, ao descrever a relação entre os dois grupos, o faço sempre em
termos do grupo dos funcionários.
A relação entre estes dois grupos é marcada, como já mencionei, por desentendi-
mentos, afrontas, desacatos e um forte sentimento de antagonismo: a inal, o paciente
é entendido como fonte de estresse. A relação de antagonismo que se estabelece chega
a ser tão forte que em determinadas situações os pacientes passam a ser percebidos
como componentes alheios, tanto para o grupo de funcionários como para as atividades por eles desenvolvidas.
Quando o assunto é o atendimento ao paciente, haveria, de forma geral, uma coe-
são entre os funcionários baseada na caricaturização de um “paciente valente” que che-
ga até ao atendimento “armado”. Ainda que outros fatores, como a presença de pacientes
sexagenários desacompanhados de familiares, como visto anteriormente, contribuam
para os desentendimentos e estresses na hora do atendimento, os funcionários centram
o desenvolvimento dos con litos a partir de um paciente caracterizado como violento.
Há, em boa parte das entrevistas, um consenso estabelecido quando o assunto é
o contato com os pacientes. Nesta relação entre os dois grupos se estabeleceria uma
espécie de “círculo vicioso”, descrito por Schutz (1979) ao falar das perspectivas inter-
nas e externas na relação entre dois grupos: estabelece-se um círculo vicioso, por que o
grupo externo, através da reação alterada do grupo interno, forti ica sua interpretação
dos traços do grupo interno como sendo altamente detestáveis (S
, 1979, p. 86).
Para exempli icar nosso caso usando as ideias desenvolvidas por Schutz (1979)
sobre as visões de grupo, bastaria substituir as palavras “externo” e “interno” por
“funcionários” e “pacientes”, respectivamente. E a expressão “altamente detestáveis”
por “altamente desgastante”. Com isso quero dizer que haveria uma série de antecipações, por parte dos funcionários, de condutas e valores onde o paciente é sempre
visto e apresentado como possível fonte de problema e em geral já chega “armado”. A
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Marcos Júnior Santos de Alvarenga
ideia do “paciente armado” funcionaria como uma linguagem comum aos funcionários
e permitiria, assim, certo nível de coesão dentro do grupo.
Ao se estabelecer esta linguagem comum, é como se a igura do paciente fos-
se assumindo conotações negativas, sendo gradualmente percebida e encarada como
um fator externo às atividades desenvolvidas pelos funcionários. Por ser uma relação
marcada por con litos e desacatos, esquece-se por vezes que o paciente é a razão de
ser da própria existência do funcionário e de todo o sistema de saúde.
Não é cabível imaginar um serviço de saúde sem pacientes. A razão de ser dos
hospitais e centros de saúde, bem como dos funcionários que ali se encontrem, estressados ou não, é a existência de pacientes. Interessante, porém, que nenhum dos fun-
cionários do CS da Ceilândia entrevistados tenham mencionado que, em muitos casos,
os pacientes têm razão de reclamar e de se chatear, porque seu direito de ter acesso e
serviços de saúde de qualidade não está sendo respeitado.
Ainda que a equipe de funcionários tenha consciência do direito à reclamação
que cabe ao público que é atendido, não se sente responsável pelas adversidades que
esse público enfrenta (longo itinerário terapêutico, esperas em ilas e não atendimen-
to, por exemplo) e não acham justo ser “agredida” por isso. Talvez por isso não tenha
ouvido referências ao “direito do paciente” – ouvi muito o “problema do paciente”.
Claro que nem todo problema de saúde é solucionável na atenção básica ou mes-
mo no sistema biomédico, e muitos dos entrevistados têm clareza disso. Vale lembrar,
também, que mesmo fazendo concurso para a Secretaria de Estado de Saúde/DF, mes-
mo fazendo a formação e carreira em pro issões da saúde, não signi ica que o pro issional goste de lidar com pacientes.
Conϐlito
O con lito, tão mencionado pelos funcionários, é parte integrante do cotidiano
do Centro de Saúde, como já deve estar claro a esta altura. Enquanto tipo de interação,
o con lito pode ser entendido sociologicamente como modo de construir um tipo de
unidade. A proposta desenvolvida por Simmel (1983), e que está sendo adotada neste
trabalho, é que o con lito seja entendido para além de seus aspectos considerados
negativos. O que está em jogo são as contribuições que o con lito pode trazer para
manter a unidade das interações.
Para o referido autor, o con lito seria um tipo de interação que mobilizaria duas
forças: o antagonismo – recheado, por exemplo, por antipatias, aversões, desacatos,
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“É muito duro esse trabalho”
irritações e brigas – e a unidade – preenchida, por exemplo, por atrações, lugares comuns de fala e harmonia. Forças que podem ser separadas conceitualmente, como sa-
lienta o autor, mas que empiricamente estão integradas atuando nas interações sociais
e, quando bem administradas pelos sujeitos, são geradoras de tolerância e respeito.
A relação dos funcionários com os pacientes caminharia neste sentido. Por mais
que se trate de uma relação con lituosa e antagônica, pode-se dizer que em algum
momento da interação funcionários e pacientes trabalhariam, num jogo complexo e
múltiplo de ações, as forças de antagonismo e de unidade para gerarem um mínimo
de tolerância e de respeito:
Eu estou sempre sorrindo, eles [pacientes] chegam armados e saem desarmados comigo.
Porque se eu estou armada também, aí dá guerra. Sou meio brava. Tem dia que eles vêm
bravos e não acham os exames que estão procurando, às vezes não veio ou sumiu. Aí eles
icam valentes, mas eu dou um jeitinho. A gente conversa com ele, alguns entendem, outros não, mas acaba tudo amigo (Mulher, trabalha na entrega de exames).
Ás vezes chega paciente que é agressivo... Que ataca o servidor... Ataca mesmo. Ataca, agride, fala mal, entendeu? E aí você tem que ir lá contornar a coisa ou botar um ponto inal
na conversa... (Homem, trabalha no Núcleo de Enfermagem).
Por vezes, são acionadas intervenções mais pontuais e incisivas, mediadas pela
segurança terceirizada do Centro de Saúde ou pela Polícia Militar a im de que o conlito seja gerenciado:
Algumas situações estressam mesmo, já tive que chamar a polícia aqui, uma paciente estava realmente alterada, e agressiva, e correndo no corredor, aí teve que chamar a polícia.
Então isso é uma coisa que estressa, porque é responsabilidade minha manter a tranquilidade, manter, né? A harmonia. E os médicos não conseguiam atender, porque ela gritava e
xingava os outros pacientes (Mulher, 37 anos, trabalha na Diretoria do Centro).
Quando o con lito se torna insustentável e exige intervenção, temos no limite
do con lito um tipo bem especí ico de interação. Ao chegar neste limite, o con lito se
torna incapaz de contribuir para a unidade. O con lito passa a ser a negação da uni-
dade, afastando assim possíveis cooperações com forças uni icadoras. A presença da
Polícia Militar, acionada para normalizar, torna o con lito não mais como uma forma
sociológica regrada, controlada e ritualizada, como propõe Simmel (1983), e rompe a
interação que até então fora estabelecida.
A força uni icadora do con lito, de que fala o autor, acaba por perder-se quando
o con lito atinge seu limite por meio da intervenção da polícia – que volta a estabele-
cer a tranquilidade e a harmonia da interação. Sendo assim, o con lito deve aqui ser
entendido muito mais como oportunidade para as uni icações do que o propósito inal
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Marcos Júnior Santos de Alvarenga
dessas uni icações. Mas há que ressaltar que este reestabelecimento da tranquilidade
se dá à custa do silenciamento de um dos termos da relação, o paciente. Nem sempre,
portanto, a expressão do con lito é feita por meio de sua resolução.
Dizer que o con lito se estabelece na relação com o “paciente-armado” não im-
plica em dizer que toda relação com os pacientes é perpassada por este con lito, mas
sim que este é sempre uma antecipação plausível da interação. Em outras palavras, o
con lito com o paciente existe, porém, com variações pessoais e de contexto. Há fun-
cionários, por outro lado, que enxergam a relação com o paciente como motivo de
alegria e reconhecimento de bom trabalho:
Gosto do meu trabalho e adoro meus pacientes. Já iz muita caridade para os pacientes e
continuo fazendo. Tem muita gente que precisa da gente, né? Você pode ver que eu sou
muito querida pela população (Mulher, trabalha na Coleta de Exames).
Entretanto, por mais que tal funcionária veja no atendimento ao paciente uma
fonte de prazer e realização, o bom atendimento prestado é concebido em termos de
solidariedade e de caridade, e não conforme a lógica institucional de prestação de
um dever. As reclamações dos pacientes e suas adversidades seriam, de certa forma,
assumidas pelo funcionário no exercício de suas funções, porém, por meio de um viés
paternalista e caridoso.
Para além do que venho retratando aqui, vale dizer que o grupo de funcioná-
rios não está isento de atritos e sectarismos internos, ocasionados por oportunida-
des de trabalho desiguais e desvalorização de determinados tipos de serviço – como
os de limpeza e dos agentes comunitários de saúde. Da relação com o paciente sur-
gem, então, diferentes modos de agir que irão depender das tipi icações e relevâncias
(S
, 1979) compartilhadas pelos envolvidos na interação.
O sistema de relevâncias e tipi icação funcionaria, seguindo a linha de pensa-
mento desenvolvida por Schutz (1979), como um código de interpretação e orientação
que guia a experiência e a ação experimentada pelo indivíduo no mundo. Esse sistema
funcionaria “tanto como um código de interpretação quanto um código de orientação
para cada membro do grupo interno” (S
, 1979, p. 119). Quero demonstrar, com
isso, que apesar de ter feito uma divisão em dois grandes grupos, as categorias pro-
postas aqui são meramente analíticas e o nível de adesão a cada um dos dois grupos
varia dependendo dos projetos e anseios de cada pessoa envolvida.
Para além dos sentimentos de antagonismo e unidade, a relação dos funcionários
do Centro de Saúde com seus pacientes é também perpassada por outros desgastes
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“É muito duro esse trabalho”
emocionais. Em alguns momentos das entrevistas foram mencionadas modalidades
de sofrimento que remetem a algum tipo de comprometimento do desempenho e do
bem estar. Muitas das vezes, esses sofrimentos são ocasionados porque os trabalha-
dores acabam levando os problemas do dia a dia – que podem ser os problemas do
paciente – para dentro de casa.
O desgaste emocional, de que falam os funcionários, con igura-se como uma es-
pécie de campo comum de signi icado que se estabelece na relação com seus pacientes
e a estrutura fornecida para o atendimento. Funcionaria como uma linguagem comum
na interação, que se estabelece entre os grupos que compõem a hierarquia do atendimento básico. Quando indagados sobre as condições estruturais de seu trabalho,
os funcionários evocavam outra dimensão da relação com seus pacientes. O paciente,
que é visto como fonte de con lito, torna-se também uma fonte de preocupação e de
sobrecarga emocional. “Sofre-se”, como me foi reportado, por não conseguir atendê-
-los adequadamente. Os trabalhadores do Centro de Saúde têm consciência de que,
enquanto trabalhadores da atenção básica, é seu dever prover um trabalho constan-
te e contínuo, prevenindo hoje e investindo amanhã. Quando se fala da estrutura de
atendimento, ica claro que um dos interesses que motivam os funcionários é prestar
um bom atendimento à população. Entretanto, nem sempre é possível dispor de condições infraestruturais e de recursos para oferecer um bom atendimento.
Os problemas dos outros, as di iculdades que eles enfrentam. Isso tudo vai indo e mexe
com a gente. Isso vai icando na gente, vai acumulando aquilo ali. E a gente sofre junto.
É um tipo de doença emocional, eu diria. Por exemplo, a falta de medicamentos. Quando
eu trabalhava lá na farmácia, eu vi gente indo embora chorando. Vi gente falando que, se
não tinha ali na farmácia, ele não tinha dinheiro para comprar fora, no particular. Eu vi
gente chorando de verdade, desesperada. E eu não podia fazer nada por ela. Nada. Isso é
o problema que eu te digo (Mulher, 47 anos, trabalha no RH).
EēęėĊěĎĘęĆĉĔ: Antigamente a gente ia e não conseguia ajudar então ia icando frustrado.
Mas depois você... Tenta resolver as coisas que não se resolvem a curto prazo.
PĊĘĖĚĎĘĆĉĔėĆ: Puxa os problemas pra você?
EēęėĊěĎĘęĆĉĔ: Isso, agora você falou tudo. Deixar de ser herói.
PĊĘĖĚĎĘĆĉĔėĆ: Como assim deixar de ser herói?
EēęėĊěĎĘęĆĉĔ: Deixar de levar os problemas pra casa.
(Homem, 29 anos, trabalha no Programa de Agentes Comunitários de Saúde – PACS).
Se você tivesse uma infraestrutura melhor, você passa esse atendimento melhor para a
comunidade. Se você não está se sentindo bem onde está atendendo, te colocam em qualquer lugar para atender, você não está se sentindo bem, você acaba que não atende muito
bem também, você quer sair logo dali, uma sala abafada, não tem ventilação, você morre
de calor. Tanto você quanto o paciente também, eles reclamam. Se melhorar o lugar, melhora o atendimento também (Homem, 28 anos, trabalha na Nutrição).
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Marcos Júnior Santos de Alvarenga
Essas demandas não atendidas dos pacientes e a falta de infraestrutura diag-
nosticada pelos funcionários seriam responsáveis por gerar impotência, desgaste e
frustração. É comum encontrar, na literatura produzida na área da Saúde e das Ciên-
cias Sociais, referências sobre a carga emocional e os desgastes psicológicos no fator
atendimento ao paciente em relação à falta de estrutura, principalmente nas redes
hospitalares. Alguns destes trabalhos, como os de Dalmolin, Lunardi e Lunardi Filho
(2009), trazem as problemáticas vivenciadas pelos pro issionais da enfermagem de
dois hospitais do Rio Grande do Sul em seu cotidiano de trabalho.
Os autores demonstram que em relação ao ambiente organizacional destes pro-
issionais, marcado pela insu iciência de recursos, pela sobrecarga de trabalho e por
improvisos para suprir a falta de materiais, há fortes tensionamentos entre o desejo
dos funcionários de prestar um bom atendimento e a precariedade de recursos disponíveis. Isso vai de encontro com a última seção de trechos de entrevistas apresentadas
neste artigo, que demonstram os con litos e desgastes que surgem no atendimento
ao paciente pela falta de estrutura e de insumos da própria instituição e do próprio
sistema de saúde pública.
As relações interpessoais acabam sendo afetadas consideravelmente pela in-
fraestrutura que é disponibilizada ao pro issional da saúde, não deixando de afetar,
assim, o processo de trabalho como um todo e o seu resultado: o atendimento. Algu-
mas vezes, nas entrevistas, não se falou de si, mas dos colegas, como se fosse um tabu
falar e demonstrar as emoções. Como se mostrar o que se sente evocasse uma ideia de
fragilidade, que não corresponderia ao que é esperado de um trabalhador da saúde.
Considerações ϐinais
Buscou-se compreender o trabalho de campo realizado em uma instituição de
saúde à luz dos limites e possibilidades das idéias articuladas por Simmel e Schutz.
Estiveram em foco, principalmente, as percepções que os funcionários de um centro de
atenção básica teceram acerca de seus pacientes e de sua interação com eles. O cotidiano
de trabalho desses funcionários surgiu como consideravelmente amplo e dinâmico, e
aqui optou-se por olhar mais atentamente apenas um de seus aspectos. Privilegiei as
considerações e os discursos dos funcionários em relação a seus pacientes, por essa
interação ter sido mencionada repetidas vezes em grande parte das entrevistas.
Interação que não se estabelece de qualquer modo, mas é pautada por uma forte
carga de antagonismo e desgaste. Assim como falamos de uma interação que tem por
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“É muito duro esse trabalho”
característica ser con lituosa, não falamos de qualquer tipo de paciente que participa
desta interação. A relação é con lituosa justamente por fazerem parte dela pacientes
que são considerados “valentes” e que chegam “armados” ao Centro de Saúde.
Talvez pelo fato da pesquisa centrar-se somente na perspectiva dos funcionários
e por termos mapeado apenas suas angústias, irritações e motivações, não se tenha
encontrado nas entrevistas referências claras e diretas aos direitos do paciente de
reclamarem atendimento. Sendo assim, cabem aqui outras indagações etnográ icas,
como por exemplo: o que signi ica estar “armado”? O “estar armado” não é justi icável
do ponto de vista do reconhecimento dos direitos do paciente? Ou também, como se
dá a articulação entre as concepções de “caridade”, bom atendimento e reconhecimento de direitos e deveres dentro da instituição? Qual o sentido dos con litos para os
pacientes: repressão ou resolução? Silenciamento ou construção de consenso?
Não podemos, é claro, esquecer-nos da posição que os funcionários ocupam em
seu cotidiano. A inal, a atenção básica de saúde é a ponta do SUS que recebe, de forma
direta e sem intermediação, o cidadão para ser atendido e também para ser ouvido
e reconhecido em suas queixas. Embora os problemas dos sistemas de saúde come-
cem e se acentuem em esferas mais altas do Estado, são os funcionários do Centro de
Saúde estudado, bem como dos demais centros de saúde da capital, que recebem os
pacientes “insatisfeitos”, “irados”, “ameaçador/as”, “angustiados”, “chateados”, “reclamões”, “briguentos”, “valentes” e “agressivos”. Nesse sentido, a atenção básica de saú-
de funcionaria, metaforicamente, como um entrevistado bem colocou, como “fronte
de guerra”, a linha de frente de todo o Sistema de Saúde Público.
Referências
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Recebido em maio/2012
Aprovado em março/2013
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 6-20, 2013
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P
E
|A
Uma genealogia da categoria de monstro
Lizandro Lui *
Resumo: Este artigo tem como objetivo discutir a categoria de “monstro”. Será debatido como historicamente ocorreu a percepção, o estigma e o tratamento dado àquelas pessoas ou grupos que fogem
dos padrões considerados normais pela sociedade. Os monstros serão aqui de inidos como pessoas que
transgridem o limite natural, de inidos moral e socialmente como aberração, vistos como se fossem uma
violação em relação às leis da natureza e da sociedade. Teceremos um debate de como se constituiu historicamente o sentimento de medo em relação a essas pessoas e quais foram as formas de tratamento
dadas a estes indivíduos na Idade Média e na Idade Clássica. Em meados do século XIX, surgiram novas
tipologias de classi icação, como as teses sobre o criminoso nato defendidas pela Escola Italiana de Criminologia. Por im, será discutido o estigma em relação ao usuário de crack, representado pela mídia
como se fosse um monstro contemporâneo. Para tal, realizou-se revisão bibliográ ica com autores que
trabalham com essa temática, tendo como principal expoente Michel Foucault.
Palavras-chave: monstros, estigma, usuário de crack.
Chegado a esta conclusão, o ilustre alienista teve
duas sensações contrárias, uma de gozo, outra
de abatimento. A de gozo foi por ver que, ao cabo
de longas e pacientes investigações, constantes
trabalhos, luta ingente com o povo, podia
aϔirmar esta verdade: — não havia loucos em
Itaguaí. Itaguaí não possuía um só mentecapto.
(Machado de Assis, O alienista)
Introdução
Este artigo tem como objeto a construção da categoria de “monstro”. Essa cate-
goria é de inida por Foucault (2001) como pessoas cuja conduta, tipo ísico e modos
de viver se tornam abomináveis para a maioria da população e que normalmente
causam medo. Por meio de um recorte temporal, inicio a discussão pelos monstros da
Idade Média até a Idade Clássica e depois para os dias atuais. A discussão se baseia no
conceito mais especí ico de monstro moral.
Autores como Richards (1993) e Delumeau (2009) datam a virada do primeiro
milênio depois de Cristo como o período em que grupos especí icos de pessoas, possuidoras de características diferentes daquelas consideradas normais, começaram a
* Graduando em Ciências Sociais - UFSM.
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Lizandro Lui
receber tratamento diferenciado das demais. Conforme Richards (1993), os primeiros grupos rotulados na Europa foram judeus, hereges, bruxas e homossexuais.
É importante salientar que cada povo cria seus próprios monstros e estes vão
ganhando espaço no imaginário das pessoas conforme lhes é dada sustentação para
suas existências. Segundo Richards (1993), judeus foram acusados de disseminar
doenças e causar secas e enchentes. Nesse sentido, o objetivo da primeira parte do
artigo é discutir de que forma esses monstros sociais apareceram, como foram percebidos, ressigni icados e de que forma compuseram o imaginário social das pessoas.
Na parte inal, daremos enfoque principal ao usuário de crack e a forma como ele é
representado pela mídia.
Desde a Idade Média, são relatados casos em que indivíduos como judeus, here-
ges, assassinos, hermafroditas, mulheres, homossexuais e vários outros grupos foram
acusados de cometer atos contra os costumes morais e religiosos predominantes.
Muitas pessoas foram torturadas, queimadas e seus corpos dilacerados em praça pública, conforme Foucault (2010) explica. Autores como Richards (1993) e Delumeau
(2009) debatem acerca do tratamento que os grupos de indivíduos citados anterior-
mente recebiam entre os séculos X até o XV. Dessa forma, oferecem subsídio teórico
para pensar como as minorias eram tratadas naquele contexto e como essas relações
foram se desenvolvendo.
Em Os anormais (2001), Foucault um realiza abrangente estudo acerca dos
monstros e suas representações ao longo do tempo. Jean Delumeau (2009) discute
a perseguição sofrida por judeus e outros grupos minoritários, dessa forma, fornece
elementos para compreender o imaginário social1 sobre o medo na Europa do perío-
do da Idade Média.
Atualmente, a mídia faz uso de estereótipos que se relacionam, de algumas for-
mas, com a categoria de monstro para representar o usuário de crack, tido como um
monstro moral. A mídia de massa faz uso de símbolos relacionando o usuário de crack a
um morto vivo, um escravizado pelo vício e como promotor da violência urbana e crimi-
nalidade em geral. Critcher (2008) e Thompson (1998) contribuem para compreender
a discussão sobre a categoria de pânico moral e de como componentes que envolvem
rotulação e estigmatização oriundos de diversos contextos históricos são reorganizados pelo imaginário coletivo para signi icar pessoas consideradas desviantes.
Glockner (1994, p. 35), por exemplo, divide os monstros em reais e imaginários, aqui não se fará esse tipo de clivagem, acredita-se que mesmo não existindo materialmente, a representação simbólica do monstro já é su iciente
por que exerce in luência sobre o imaginário coletivo.
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Uma genealogia da categoria de monstro
Os estigmatizados da Idade Média
Os judeus foram um dos grupos mais estigmatizados e perseguidos da história
da Europa. Por terem costumes e alimentação diferentes, circuncidarem seus ilhos
e os educar à parte, os judeus foram demonizados, perseguidos e massacrados em
várias partes da Europa. Richards (1993) explica que a base para o sentimento antiju-
daico por parte do povo cristão reside na aceitação de teorias da conspiração diabólica, pois os judeus eram constantemente acusados de negociar com o diabo. A imagem
do diabo, inexistente até então, começou a ser construída no imaginário coletivo. Um
ser metade humano e metade animal, com corpo de homem, pés de boi, chifres de
bode, começou a ser construído e temido. Os judeus, que eram grandes negociantes,
não se ixavam em apenas um lugar; eram eles que mais trabalhavam com dinheiro,
objeto que era considerado objeto impuro pela Igreja e que deveria ser evitado, apesar da necessidade comercial existente.
Delumeau (2009) acredita ser a Igreja a grande responsável pela perseguição
dos judeus na Idade Média. Em alguns lugares como na Espanha e na Alemanha, com-
plementa o autor, no decorrer da peste negra, os nobres e os soberanos precisaram
defender os judeus da cólera popular. Continua o autor explicando que suas sinagogas, construídas em muitas cidades da Europa, foram consideradas uma anti-igreja,
uma o icina do diabo. “Todo israelita era considerado um feiticeiro em potencial”
(D
, 2009, p. 442). Segundo Feitler (2005, p. 137): “Em outubro de 1497, os
judeus de Portugal foram convertidos ao cristianismo à força”.
Desastres naturais e epidemias eram atribuídos aos judeus, os bodes expiató-
rios de todos os males que ocorriam na Europa, assim como assassinatos de crianças.
Também eram acusados de negociar com o diabo e de trocar os corpos das crianças
por conhecimentos e mercadorias. Foram proibidos de frequentar universidades e
cuidar dos cristãos doentes, visto que eram acusados de adquirirem seus conhecimentos diretamente do diabo. Conforme Delumeau:
O Concílio de Basiléia, em 1434, decreta que os judeus não serão mais admitidos nas
universidades e não deverão mais cuidar da saúde dos cristãos... As mulheres católicas
eram proibidas de casar-se com judeus [...] Antes estar doente, se tal é a vontade divina,
que icar curado com a ajuda do diabo, por meios proibidos (D
, 2009, p. 445).
Em resumo, os judeus eram vistos como ameaça religiosa e moral, eram objetos
prontos para uso do ódio e da histeria popular. Esses foram os primeiros monstros,
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Lizandro Lui
que realmente receberam um tratamento especial da Igreja e atenção por parte dos
demais grupos sociais predominantemente católicas no momento. Ocorreram, segundo Delumeau (2009) e Richards (1993), inúmeros massacres ao longo dos séculos
X-XV quando judeus foram queimados vivos em várias partes da França, da Alemanha,
da Itália, etc. Nesse momento, surgem também os hereges, designação para qualquer
pessoa que não seguisse as normas impostas pela Igreja, mas que não se con igurou
um grupo especí ico como os judeus.
A seguir será debatida a percepção e as tipologias de monstros que surgiram na
Idade Clássica e uma discussão inicial sobre as teses do criminoso nato defendidas
pela Escola Italiana de Criminologia, esta tendo como principal expoente o médico
italiano Cesare Lombroso (1835-1909). Toma-se como principal teórico Michel Fou-
cault e o seu livro Os anormais para tentar compreender as formas de identi icação e
tratamento que eram oferecidas aos que transgrediam a norma.
Os monstros: uma análise a partir de Foucault
Foucault ministrou vários cursos ao assumir a Cátedra de História dos Sistemas
de Pensamento no Collège de France em 1970. Um deles, composto por diversas aulas, resultou no livro Os anormais (1974), no qual Foucault analisou a anormalidade
fazendo uso do método genealógico. Conforme Almeida (2006), as discussões feitas
pelo autor “abordam desde os procedimentos jurídicos tradicionais da punição no
medievo até a lenta formação de um saber intimamente relacionado a um poder de
normalização” (A
, 2006, p. 360-361).
Foucault (2001) elabora um debate sobre os conceitos de anormais e de mons-
tro humano utilizando o método genealógico. Nesta fase, o autor se dedica a trabalhar com a questão do poder sobre o corpo e a constituição dos sujeitos. Para o autor,
o monstro não é apenas uma violação das leis da sociedade, também é uma violação
às leis da natureza, sendo assim o monstro é uma mistura do impossível com o proibido. O campo de aparecimento do monstro é, portanto, um domínio que se pode de-
nominar jurídico-biológico. Nesse espaço, o monstro aparece como um fenômeno ao
mesmo tempo extremo e raro. Conforme Foucault (2001, p.70): “A própria existência
do monstro já é uma perturbação à ordem”. Isso se relaciona com Durkheim (1982),
quando defende que as anomias são importantes porque reforçam os laços entre as
pessoas e traçam uma distinção entre quem faz ou não parte do grupo, o que é a norma e como se comportar diante dela.
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Uma genealogia da categoria de monstro
Conforme Foucault (2001) e Dorra (1994), pessoas hermafroditas foram estig-
matizadas, pois a estas fora vinculada a ideia de que o segundo sexo que possuíam
era em decorrência de relações sexuais com o diabo. Segundo Leite Jr. (2009, p. 290),
“uma genitália ambígua era sim um sinal de desordem espiritual-social-corporal”.
No século XIX, o trabalho foi descobrir o grau de monstruosidade que existe
por detrás das pequenas anomalias, das ações que destoam do normal. Lombroso,
no inal do século XIX, discute sobre o criminoso nato, apesar de não usar o termo
monstro e sim criminoso. Lombroso acredita que as ações antissociais são biodeterminadas. Ele procura, por meio de medições de corpos e de crânios, encontrar e
comprovar as características criminosas que, segundo ele, se encontram nas pessoas.
Um grande estigma se criou em torno de pessoas de pessoas de grupos étnicos não
europeus, principalmente com negros e presidiários. Autores como Darmon (1991) e
Harris (1993) explicam que as casas de punição, na opinião de Lombroso, deveriam
ser um local para curar esse indivíduo doente. O desviante conforme essa concepção
precisaria ser tratado, não punido e muito menos queimado na fogueira como se fazia
na Idade Média. O primeiro objetivo era retirar de circulação esses “indivíduos perigosos” que ofereciam riscos para o corpo social e, depois, tratá-los de acordo com o
crime cometido e as especi icidades de cada um. Isso desencadeou um embate muito
grande com o universo jurídico, muito preocupado com a ideia de médicos estarem
nos tribunais e seus pareceres valerem mais do que os do próprio jurista.
Mas há algumas diferenças entre o indivíduo a ser corrigido e o monstro. Fou-
cault (2001) fala, por exemplo, da frequência com que essas duas iguras aparecem:
o monstro é algo raro, a princípio uma exceção, ao contrário do indivíduo a ser corrigido. O delinquente passa a ser um fenômeno corrente na nova con iguração de sociedade que estava se formando entre os séculos XVIII e XIX. Uma nova tipologia de
monstros começa a existir. Não mais monstros exóticos e raros, mas algo frequente
e que pode ser encontrado em qualquer lugar. Segundo Foucault (2001, p. 73), uma
característica do indivíduo a ser corrigido é ser incorrigível, e na medida em que é
incorrigível, ele requer certo número de procedimentos.
No im do século XVIII aparece a igura do masturbador, num espaço muito mais
íntimo da vida do ser humano, no âmbito privado. Doenças começam a ser vincula-
das à prática da masturbação. Da mesma forma, deformidades do corpo causadas
pela masturbação poderiam acarretar as piores monstruosidades de comportamen-
to. Foucault (2001) a irma que o anormal do século XIX é um descendente de três
indivíduos: o monstro, o masturbador e o incorrigível.
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Lizandro Lui
No inal do século XVIII e início do XIX, conforme Foucault (2001), a igura mais
importante que vemos emergir na prática judiciária é a do monstro. “Este torna-se
um problema em sua existência: interroga tanto o sistema médico como o sistema
judiciário” (F
, 2001, p. 78). É entorno do monstro que a problemática da ano-
malia e da psiquiatria vão se desenvolver. Alguns casos de crimes ditos monstruosos
narrados pelo autor serão explicados a partir dessa perspectiva. Segundo o autor, o
monstro desempenha um papel importante, pois as instâncias de poder e os campos
do saber se reorganizam.
Para Foucault (2001), monstro não é um termo médico, mas sim um termo jurí-
dico. O que foi o monstro na Idade Média? Ele se mostra como um misto de homem e
animal, assim como, por exemplo, na simbologia católica o demônio foi representado
como uma mistura de homem e boi. Apesar da fusão de espécies também se dar na
mitologia grega, como o miniaturo, o centauro, a medusa, e outros seres que provinham da mistura entre espécies (D
, 1994, p. 16). O monstro é entendido aqui
como a transgressão dos limites naturais, a aberração: assim ele era visto até a Idade
Média. Conforme Foucault: “Só há monstruosidade onde a desordem da lei natural
vem tocar, abalar, inquietar o direito, seja o direito civil, o direito canônico ou o direito
religioso” (F
, 2001, p. 79).
Foucault (2001) a irma que a noção de monstro refere-se a um termo jurídico.
Posteriormente, as ferramentas que o direito dispõe não são su icientes para dar conta
da realidade que se coloca a sua frente, dessa forma, o direito precisa re letir sobre seus
próprios fundamentos e reformular suas leis. Acreditava-se que a igura do monstro
também poderia surgir como fruto de uma relação sexual entre dois seres de espécies
diferentes, como entre um homem e um animal. É por ter havido esse tipo de ideia
que moral, ética e religiosamente é estigmatizada a igura do monstro. Vê-se então uma
infração entre o direito civil e o religioso, algo que é embaraçoso e ao mesmo tempo
amedronta os outros grupos sociais. Conforme Foucault, a transgressão natural ocorre
na mistura de espécies e provoca um embaraço na lei:
Ele traz consigo a transgressão natural, a mistura das espécies, o embaralhamento dos
limites e dos caracteres. Mas ele só é monstro porque também é um labirinto jurídico, uma
violação um embaraço da lei, urna transgressão e uma indecidibilidade no nível do direito.
O monstro é no século XVIII, um complexo jurídico-natural (F
, 2001, p. 82).
Na época que corresponde ao Renascimento, Foucault (2001) fala que a igura
monstruosa passa a não ser mais a mistura de espécies, mas sim outro caso um tanto
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Uma genealogia da categoria de monstro
peculiar que ocorre: a existência de gêmeos siameses – um que são dois, dois que são
um. Se antes as pessoas não conseguiam classi icar o monstro entre animal e humano,
agora não se pode mais contar, pois se trata de dois irmãos compartilhando parte de
si mesmos. Vários outros problemas decorrem na vida desse(s) sujeito(s). Foucault
(2001) explica que no ato do batismo pensava-se que deveriam batizar o “monstro”
duas vezes, pois se acreditava que tivesse duas almas, portanto a necessidade de dois
batismos, apesar de compartilharem partes do mesmo corpo.
Na Idade Clássica, explica Foucault (2001) e Leite Jr. (2009), surge a igura dos her-
mafroditas. Por muito tempo foram executados e queimados. Em casos em que se veriicava a presença de dois sexos, o indivíduo era acusado de manter relações sexuais com
o diabo e isso teria lhe acrescentado um segundo sexo. O hermafrodita é um monstro
por que ele quebra a barreira natural existente entre homem e mulher, macho e fêmea.
No século XIX, tem-se mais um caso que gerou os chamados anormais ou mons-
tros. A ideia do criminoso nato, ou seja, pessoas biologicamente propensas a práticas
criminais e que deveriam ser identi icadas e tratadas como anômicas ou doentes. Até
o século XVIII a monstruosidade era considerada criminosa pelos estatutos jurídico-penais; a partir de então vê-se a relação entre monstruosidade e conduta: surgem
os monstros morais. Foucault explica de maneira sucinta a transferência da noção de
criminalidade de um ponto para outro ponto da realidade:
A criminalidade era, ate meados do século XVIII, um expoente necessário da monstruosidade, e a monstruosidade ainda não era o que se tomou depois, isto é, um quali icativo
eventual da criminalidade. A igura do criminoso monstruoso, a igura do monstro moral,
vai bruscamente aparecer, e com uma exuberância vivíssima, no im do século XVIII e no
início do século XIX (F
, 2001, p. 93).
Foucault (2001) fala sobre outro tipo de monstro: o monstro moral, esse mons-
tro data o seu aparecimento nos inais do século XIX e início do século XX. O indiví-
duo monstruoso como já foi mencionado era um possível criminoso. Mas ocorre uma
mudança muito importante no sentido de referenciar um monstro e a um criminoso.
Existe agora uma suspeita de monstruosidade no fundo de qualquer ato criminoso.
Por isso, explica Foucault:
Creio que, até os séculos XVII-XVIII, podia-se dizer que a monstruosidade, a monstruosidade como manifesta, ao natural da contra natureza, trazia em si um indício de criminalidade. [...] Todo criminoso poderia muito bem ser, a inal de contas, um monstro,
do mesmo modo que outrora o monstro tinha uma boa probabilidade de ser criminoso
(F
, 2001, p. 101).
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As formas de tratamento e controle dos anormais
Foucault (2001) também discute acerca da economia do direito de punição e
sobre o direito clássico, que entendia o crime como um ato voluntário feito contra
alguém. Além disso, o crime lesava a sociedade inteira, principalmente o soberano.
Quando um indivíduo executava um delito, ele atacava o soberano diretamente, sua
vontade e seu poder. Nas palavras de Foucault (2001, p. 102): “Em todo crime, portanto, choque de forças, revolta, insurreição contra o soberano”. A punição não servia
apenas para ensinar ou mostrar ao resto das pessoas como se comportar, nem tinha
como objetivo apenas castigar mas, sobretudo, tinha por função mostrar toda a força
que o soberano possuía sobre os corpos. A punição tornava-se, então, como descrito
nas primeiras páginas do livro Vigiar e Punir (2010), uma cerimônia horrível de se
ver, um ato aterrorizador. Havia um desequilíbrio de forças no momento da punição
e, portanto, era necessário causar mais dano à pessoa do que ela causou ao tecido
social. Essa desregulação era propositalmente planejada, a im de expor a força do
soberano sobre aquele que desobedeceu a norma.
Quanto mais monstruoso ou grave fosse o crime, mais atroz era a pena, pois
sempre havia um poder mais forte: o do soberano. Foi assim que se deram os julga-
mentos até o século XVIII na Europa, a im de tentar manter a ordem e os monstros
nos seus devidos lugares. De acordo com Foucault: “Os mecanismos de poder eram
fortes o bastante para poderem, eles mesmos, absorver, exibir, anular, em rituais de
soberania, a monstruosidade do crime” (F
, 2001, p. 106).
Até então não existia um debate sobre a natureza do crime monstruoso e, segundo
o autor, havia apenas um combate de forças entre o soberano e o transgressor da norma.
Não se questionava a causa do ato delinquente. Só mais tarde que se passou a estudar
o criminoso e foi necessário investigar a lógica da ação criminal, sua natureza. Aqui, um
dos principais expoentes é Lombroso, com suas teses biodeterministas: ele a irmava
que pelos aspectos bioantropológicos seriam possíveis saber quem era biologicamente
propenso a praticar atos antissociais, ou mais especi icamente, quem nascia com o cri-
me dentro de si. Até os inais do século XVIII, a economia do poder punitivo se mostrava
tão forte que a natureza do ato monstruoso não tinha porque ser colocada em questão.
Foucault (2001) discute o porquê em dado momento foi necessário voltar-se à
natureza do criminoso. Mais ainda, como os indivíduos foram divididos em normais e
anormais, e mais adiante, como seres anômicos e normais? A Europa no século XVIII
sofreu diversas mudanças políticas e industriais, con igurando-se a partir daí uma
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Uma genealogia da categoria de monstro
nova sociedade e um novo código judicial também foi elaborado. Segundo Rousseau
(1978), o soberano não está mais acima da constituição, toda a agressão ao tecido so-
cial é resolvida conforme as regras previamente escritas e não conforme as vontades
do soberano. O Estado passa a tomar formas impessoais, as agressões passam a desaiar a força do Estado e não de uma pessoa em particular. A nova con iguração política
de escolha de soberano também muda e a divisão do trabalho, agora em escala indus-
trial, também sofre mudanças. As cidades europeias se transformaram em grandes
centros populacionais, tornando-se um ambiente propenso às práticas desviantes e
todo tipo de anomia. Uma nova forma de punição deveria ser pensada, a im de dar
conta do novo contexto social que se apresentava.
Foucault (2001) discute uma nova economia dos mecanismos de poder. A puni-
ção não se estabelece mais através do rito, mas agora por mecanismos de vigilância e
de controle. Aqueles rituais de punição em praça pública, onde o corpo do indivíduo
era totalmente dilacerado, não eram mais adequados à nova sociedade que se formava. O poder e controle do Estado sobre o povo devia ocorrer de maneira contínua e
frequente. Por isso, explica Foucault:
Ele elaborou o que poderíamos chamar de uma nova economia dos mecanismos de poder: Um conjunto de procedimentos e, ao mesmo tempo, de análises, que permitem majorar os efeitos do poder, diminuir o custo do exercício do poder e integrar o exercício do
poder aos mecanismos da produção. Majorar os efeitos do poder. [...] Isso quer dizer que
ele não se exerceu mais através do rito, mas através dos mecanismos permanentes de
vigilância e controle (F
, 2001, p. 108).
Os mecanismos de controle se modi icam ao passo que as anormalidades se
transformam. De inir e identi icar o monstro tornou-se algo mais complexo. O crime
corresponde a uma pena e a um julgamento que serão aplicados de forma pública e
conforme determinadas regras e procedimentos. As formas de se extrair a verdade do
sujeito também serão previamente de inidas. O desequilíbrio antes mencionado acaba, a pessoa é punida pelo mal que cometeu e tem-se a ideia de alcançar a proporção
entre crime e castigo, nada de excessos. Depois de tantas atrocidades desmedidas,
pretende-se agora um sistema regulado e coerente, que se fundamenta sobre um có-
digo penal e não sobre a vontade de um soberano. Só é permitido punir uma pessoa
em nome da lei, o uso da violência passa a ser ato legítimo apenas do Estado.
O que entrará em debate deste ponto em diante é a lógica da ação criminal ou,
nas palavras de Foucault (2001), a racionalidade de imanente à conduta criminal.
O crime agora passa a ter uma natureza, uma origem, e quem o pratica tem que ser
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caracterizado. A preocupação passa agora a ser muito mais com o monstro do que
propriamente com o que ele fez. É a frequência dos fatos criminais que se apresenta
como surpreendente, pois se torna uma doença da coletividade. A Escola Italiana de
Criminologia representada por Lombroso a irmava que o criminoso é um doente, e a
conduta criminosa passa a ser uma patologia. Os criminosos foram avaliados, medidos e classi icados como normais ou patológicos.
No im do século XVIII, inicia-se a história do monstro moral. Para Foucault (2011,
p. 115), o primeiro monstro moral passa a ser o político. Na sua de inição, criminoso é
aquele prefere os seus interesses e assim rompe com o pacto ou contrato social, ao ignorar as leis que regem a sociedade. Um déspota não promove constituição, sua vontade é
o próprio estatuto, por isso que o autor o escolheu para ser o primeiro monstro moral.
Suas ações dependem de suas paixões, suas escolhas não obedecem a regras racionais
de administração. Em todos os casos, como explica Foucault, o rei tirânico é sempre um
monstro. Após a Revolução Francesa, vê-se essa igura desaparecer com a nova formação do Estado de Direito. Conforme Foucault:
O primeiro monstro é o rei. O rei e que e, assim creio, o grande modelo geral do qual derivarão historicamente, por toda uma série de deslocamentos e de transformações sucessivas, os maneiros monstrinhos que vão povoar a psiquiatria e a psiquiatria legal do século
XIX. Parece-me, em todo caso, que a queda de Luís XVI e a problematização da igura do
rei assinalam um ponto decisivo nessa história de monstros humanos. Todos os monstros
humanos são descendentes de Luís XVI (F
2001, p. 118).
Outro monstro que Foucault (2001) discute é o monstro que rompe o contrato
social pela revolta, como revolucionário que ataca o corpo social, assassinando pes-
soas, sendo acusado de comer carne humana, sequestrar crianças e causar desordem.
Esse monstro vem da classe mais baixa da sociedade e não das altas como era o caso
do rei. Essas duas iguras são abordadas pelo autor: o déspota e o revolucionário de
esquerda, o monstro que é monstro por abuso de poder e o que se volta à natureza
humana, chamado de antropófago. Foucault (2001, p. 173) a irma que essas duas i-
guras estarão presentes na individualidade anormal. Ele narra outros casos de antropófagos, como o da mãe que cozinhou a perna de sua ilha em 1817.
Percebe-se que iguras que antigamente causavam medo nas pessoas tinham
um misto de antropofagia e sexualidade. Outro grupo estigmatizado como monstro
moral e revolucionário são os comunistas, acusados de comedores de criancinhas, i-
gura que se tornou muito temida no século XX no Brasil e nos Estados Unidos. Nota-se
que esses tipos de casos genéricos aparecem quando se quer estigmatizar um grupo,
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Uma genealogia da categoria de monstro
como no caso dos integrantes de grupos políticos. O apelo para a igura do monstro
sempre provoca pânico nas pessoas e elas passam a estigmatizar o grupo social en-
focado. Isso ocorreu com judeus, hereges, pessoas pobres chamadas de proletários
ou classe perigosa. Atualmente pode-se citar como exemplo a construção midiática
da imagem do usuário de crack. A caracterização é feita reunindo estereótipos que
se relacionam com um monstro moral. É feita uma abominação em torno da igura
do usuário, usando imagens de pessoas machucadas, com olhos vidrados, cheias de
hematomas e guiadas pelo vício.
Monstro moral – do criminoso nato ao usuário de crack
A discussão agora será elaborada a partir de dois pontos chaves que permeiam
o debate aqui proposto: a tese do criminoso nato e a estereotipação dos usuários de
crack. Propõe-se aqui que a construção midiática da imagem do usuário de crack é
in luenciada por um pânico moral que se construiu em volta dos consumidores de
substâncias ilícitas a partir da década de 1960 (T
, 1998).
Os casos dos loucos e criminosos entram, paulatinamente no século XIX, no círcu-
lo de discussão entre médicos psiquiatras de um lado e juristas e advogados de outro. A
partir de então, começou-se a trabalhar com questões relacionadas ao louco criminoso
enquanto participante da sociedade e, consequentemente, também compartilhante dos
princípios do chamado pacto social. Foucault (2001, p. 120) faz um questionamento: “O
criminoso monstruoso, o criminoso nato, na verdade nunca subscreveu o pacto social:
insere-se ele efetivamente no domínio das leis?”. E a discussão vai mais a fundo: como
aplicar a lei a uma pessoa que não tem consciência de seus atos? A psiquiatria começa a
surgir como uma ciência relevante para tentar dar conta de todo o universo de questões
que se apresentava no momento, entre os séculos XVIII e XIX. Nessa época a psiquiatria
criminal analisa as pequenas perversidades.
As teses de Lombroso vão dar força no inal do século XIX para que os médicos
criminalistas entrem no cenário até então só ocupado pelos juristas. Há duas correntes de pensamento: a ideia do criminoso nato, defendida pela Escola Positivista
representada por Lombroso, e a ideia da Escola Clássica representada por Beccaria e
Bentham, de que a criminalidade não nascia com o indivíduo, mas ele era afetado pelo
meio social. O criminoso era pensado pela Escola Positivista como um germe social,
um doente, algo que estava infectando o espaço e que deveria ser removido. Isso ser-
viu de base para o início da discussão entre criminalistas, juristas e médicos que se
estendeu por todo o século XX (H
, 1993).
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Lizandro Lui
A Escola Clássica Francesa considerava o ato criminoso uma ação racional que
o indivíduo escolhe praticar. Robert Castel, ao analisar a Escola Clássica a irma que o
criminoso era pensado à luz do direito clássico, no qual a imputabilidade pelo ato criminoso era totalmente atribuída ao criminoso, ao contrário da Escola Positiva Italiana que
defendia ser de origem biológica as ações antissociais. Castel traz exatamente o argu-
mento contra a escola Positiva, defendido pela Escola Clássica de Direito que acreditava
que a ação criminosa era proveniente de um cálculo racional. Segundo Castel:
o resultado de um cálculo pelo qual um indivíduo escolhe seu interesse pessoal contra os
direitos de outrem. Cálculo errôneo se o criminoso se deixa prender, mas cálculo racional
pelo qual é totalmente responsável. A sanção que o atinge está, portanto, fundada em
direito, seu objeto é a transgressão de contratos que a lei tem por função garantir (apud
A
, 1996, p. 176).
O louco criminoso não era entendido pela escola de Lombroso como alguém res-
ponsável pelos seus atos, pois a criminalidade lhe era intrínseca, ou seja, o crime já nas-
cia com a pessoa, portanto essa pessoa deveria ser tratada como um indivíduo doente.
Essa escola defendia que o anormal, o delinquente, o criminoso deveria ser medicaliza-
do. Segundo a teoria evolucionista desenvolvida por Lombroso, poder-se-ia identi icar,
valendo-se de sinais anatômicos, aqueles indivíduos que estariam hereditariamente
destinados ao crime. (A
, 2002, p. 679). A prisão se tornaria uma espécie de hos-
pital, algo novo até então, tratando esses indivíduos como pacientes. Esse novo sistema
era entendido como forma de higiene pública, retirando os que estão adoecendo a sociedade. Lombroso reduziu o crime não como um fato social, mas como um fato natural,
seria resultado de condutas antissociais biologicamente determinadas.
No Brasil, houve um debate em torno desse assunto e a importação de teorias
das duas escolas de criminologia. Alvarez discute a tensão que houve no momento
e o desconforto dos juristas em perderem espaço dentro do tribunal para o parecer
médico. Conforme Alvarez:
Os autores brasileiros, ao importarem as teorias criminológicas no inal do século XIX,
partem da admissão do fundamento normalizador de toda ação jurídico-penal. Por
isso, tantas vezes a pena pode ser assimilada à terapêutica, ou o criminoso ao doente.
Para os autores que não eram tão entusiastas da nova escola, entretanto, essa assimilação era perigosa, pois abria excessivamente o campo do direito ao saber médico
(A
, 1996, p. 180).
Segundo Alvarez (2002, p. 678), as ideias que obtiveram grande repercussão
intelectual foram exatamente aquelas relacionadas à antropologia criminal, elabora-
das a partir das ideias de Lombroso. Com pretensões cientí icas, as teses positivistas
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Uma genealogia da categoria de monstro
pretendiam, segundo o autor, tornar-se um campo de conhecimento que seria voltado
a estudar a natureza do crime e do criminoso.
Quanto à in luência das ideias de Lombroso na criminologia brasileira, segundo
Ferla (2009) estas foram bem vindas tanto nas faculdades de Direito quanto na de
Medicina de São Paulo e Rio de Janeiro nas décadas de 1920 e 1930. Segundo os preceitos da Escola Positiva, o olho especializado do médico seria capaz de identi icar os
sinais de desvio em uma pessoa. A defesa social se baseava, sobretudo, na sequestra-
ção do indivíduo antissocial. Se o crime era resultado de problemas ísicos e psíquicos, ele já estava presente antes mesmo de ser cometido. Assim era necessário que o
indivíduo fosse encontrado e tratado antes de cometer o ato.
No decorrer do século XX, as ideias biodeterministas de Lombroso foram dei-
xadas de lado por não se sustentarem mais devido à críticas e à falha metodológica
de investigação. A retomada histórica que Foucault (2001) elabora é característica do
método genealógico, visto que este tem como característica situar o leitor historicamente sobre o tema proposto. O que se tentou aqui foi retomar conceitos básicos para
fundamentar a discussão proposta.
Neste ponto, discutiremos sobre a construção do estereótipo de um monstro mo-
ral contemporâneo, o usuário de crack, de como a mídia trabalha com a questão da es-
tereotipação desse indivíduo, e de como imagens e correlações geram o que Thompson
(1998) chama de pânico moral e Goffman (2008) de estigma e abominação do corpo.
Em relação ao tratamento que poderia ser dado a essas pessoas, existem, em resumo,
duas propostas. A primeira surge daqueles que defendem por punir os que infringem
a lei e causam desordem e de outro lado os que defendem uma via mais terapêutica
a irmando que os usuários devem ser tratados como doentes em clínicas. Nota-se aqui
traços do discurso, do inal do século XIX, entre as escolas de criminologia ainda podem
ser percebidos quando se discute imputabilidade penal. Percebe-se que essa percep-
ção se dá com ressalvas, a inal, a discussão ocorre em outro período histórico e com leis
diferentes, mas o que o artigo pretende salientar é que o âmago da discussão continua
o mesmo, se refere como tratar os anormais: deve-se tratá-los como doentes em casas
de correção conforme sugeria Lombroso, ou se deve apenas punir os que não cumprem
com as regras impostas pela sociedade conforme sugeria a Escola Clássica? Hoje a so-
ciedade civil conta com muitos instrumentos que podem dar conta desse problema:
hospitais, medicamentos, campanhas de combate ao uso de drogas, etc.
Em uma citação feita anteriormente, Foucault (2001, p. 82) a irmou que o monstro
do século XVIII era um complexo jurídico-natural. Em decorrência das mudanças sócioPrimeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 21-38, 2013
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Lizandro Lui
-históricas, hoje as drogas, de maneira geral, passaram a ser um assunto que é debatido
nas escolas, na saúde e também em órgãos de segurança pública. Por ser considerado
um problema sistêmico, as drogas são enfocadas em diversas instituições sociais.
Critcher (2008) usa o termo imagens processadas ou codiϔicadas para de inir o
processo de exagero e distorção que a mídia faz quando se trata de manipular imagens de pessoas que perturbam a ordem social. O autor alerta que não se trata de uma
conspiração dos jornalistas, mas uma prática normal do fazer jornalístico. O objetivo
do trabalho é discutir a construção do estigma social a partir da veiculação de ima-
gens de usuários de crack caracterizados de modo semelhante ao estereótipo de um
monstro. Os meios de comunicação tem um importante papel na formação da opinião
pública. No que se trata da construção de crenças de medo e da vinculação da imagem
de usuários de crack, o que ocorre é a vinculação de inúmeros componentes que não
estão necessariamente relacionados às drogas, como pessoas machucadas, com olhos
vidrados, cheias de hematomas, esqueléticas.
Defendo a ideia de que a imagem do usuário de crack é vinculada como se ele fosse
um monstro moral, um ser que transgride as normas sociais e da natureza, uma pessoa
que está entre a vida e a morte. Não se trata de uma apologia ao crack, mas sim de discutir o porquê dele ser representado dessa maneira. Simões (2008, p. 17) a irma que “uma
determinada substância química se torna uma droga em um determinado contexto de
relações entre atividades simbólicas e o ambiente, em que operam saberes e poderes”.
O mesmo se estende aqui para a estereotipação do usuário de crack como sendo um
monstro social, que é visto como problema policial e de saúde pública quando discursos
de poder se lançam para defender uma sociedade de hipercontrole dos corpos.
A criação e a disseminação de estereótipos faz com que se crie um monstro moral
que ameaça a coesão social. A identi icação de um estigma é, segundo Goffman (2008,
p. 14), uma abominação do corpo, ressaltando as deformidades ísicas, vícios e todo um
arsenal virtual de imagens que compõe a imagem do usuário, fazendo com que esta ima-
gem se torne a real e verossímil. O estigmatizado é, segundo Goffman (2008), um indivíduo que reúne atributo e estereótipo, e tentaremos discutir essa última característica.
Glasser e Siegel (1997, p. 230) discutem o crack nos Estados Unidos e trabalham
com o tema medo das drogas (fear of drugs). Eles a irmam que este tema tem preocupa-
do os cidadãos norte-americanos porque “imagens de morte e destruição em casos de
direito de drogas” e que duas imagens são primariamente vinculadas quando se trata de
usuários de crack: a imagem de escravizado (enslaved) e de alguém que está caminhando
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 21-38, 2013
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Uma genealogia da categoria de monstro
para a morte (one of the walking dead). Além disso, a noção de que o usuário de crack é
promotor de crimes e de violência (insidious crime) é corrente. Como se pode veri icar na
seguinte citação, é a irmado que muitas pessoas relacionam homicídios e crimes violentos ao consumo da droga: “Como resultado, muitas pessoas passaram a acreditar que o
homicídio e outros crimes violentos estavam em alta porque os residentes dos guetos estavam viciados nos efeitos químicos do crack” (G
;S
, 1997, p. 241). No mesmo
sentido, Rosa (2010) argumenta que os meios de comunicação veiculam o estereótipo de
“drogado”, introduzindo um apelo moral sobre o tema. Conforme Rosa:
O discurso dos meios de comunicação apresenta o usuário de drogas como o “drogado” sempre jovem, criando o estereótipo cultural. Qualifica este sujeito de viciado e
ocioso, e a droga como prazer proibido, veneno da alma ou flagelo, difundindo também o estereótipo moral que tem sua origem não apenas no discurso dos meios de
comunicação, mas também no discurso jurídico (produto da difusão do modelo ético-jurídico) (R
, 2010, p. 28).
Discursos vistos no início desta discussão como a punição dos monstros na Ida-
de Média e Clássica ainda não estão completamente extintos. Podem-se notar ressur-
gências de discursos que defendem a eliminação das pessoas consideradas diferentes.
A irmam Glasser e Siegel (1997, p. 231) “Los Angeles Police chief Davryl Gates seriosly
advocated shooting occasional drug users”. Nota-se claramente que os discursos comuns na Idade Média, discutidos por Foucault (2001), ainda não foram completamente
abolidos. Por isso a importância de discutir historicamente a formação dos monstros
e a construção do medo em torno deles, a im de compreender as descontinuidades
e ressurgências de discursos e práticas que aparecem. Dessa forma, se faz necessário
compreender quem são os indivíduos considerados monstro na atualidade.
O que se pretende apontar é que o usuário de crack é um representado como um
monstro social a ser corrigido. Tenta ser corrigido na escola, em instituições de apoio,
e em casas de reclusão. Esse embate que ocorre entre a força que quer corrigir e a resistência que o indivíduo oferece não é recente. Ainda no livro Os anormais é possível
perceber que intervenções sobre os corpos nunca foi uma tarefa simples. Esse debate
é feito por Foucault:
O que de ine o individuo a ser corrigido, portanto, é que ele é incorrigível. E, no entanto,
paradoxalmente, o incorrigível, na medida em que é incorrigível, requer um certo
número de intervenções especi icas em torno de si, de sobreintervenções em relação as
técnicas familiares e corriqueiras de educação e correção, isto e, uma nova tecnologia
da reeducação, da sobrecorreção. De modo que vocês veem desenhar-se em torno desse
indivíduo a ser corrigido uma espécie de jogo entre a incorrigibilidade e a corrigibilidade
(F
, 2001, p. 73).
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 21-38, 2013
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Lizandro Lui
Deve-se salientar que, apesar de se passarem muitos anos, indivíduos conside-
rados anormais ainda existem na sociedade. Eles são ressigni icados com o passar do
tempo, mas algumas características perduram. Ao inal da discussão, pretendeu-se
mostrar que atualmente o usuário de crack é estereotipado como sendo um monstro.
A mídia utiliza recursos de imagem para correlacionar a igura do usuário de crack
com a imagem de alguém à beira da morte e perigosa. Também é importante ressaltar
que algumas formas de tratamento usadas na Idade Média como extermínio de pessoas ainda não foram completamente abolidas.
Considerações ϐinais
Ao inal dessa discussão podemos re letir sobre os que ainda são estigmatizados
como monstros. Podemos perceber que eles mudam ao passo que a sociedade deixa
de acreditar em certas crenças, mas outros surgem trazendo novas características. O
objetivo do presente trabalho foi levantar discussões acerca da igura do monstro na
sociedade. Os autores citados nos proporcionam pensar historicamente a presença
dos monstros, ou seja, nas pessoas consideradas desviantes.
Os monstros construídos na Idade Média foram deixados de lado, ao passo que
o racionalismo da Modernidade vigorava. As imagens dos monstros não desapareceram, mas migraram para o subconsciente onde a signi icação simbólica mudou (D
-
, 1994, p. 13). A Idade Média, conforme Dorra (1994), foi o período das viagens,
e nessas viagens por terra, mar e, sobretudo pela fantasia, se criaram novos medos
e monstros, estes últimos ganharam signi icação simbólica e se materializavam em
pessoas tidas como diferentes. Para o autor, o monstro da Idade Média se trata de
um produto da fantasia, um ser que reunia diferenças e semelhanças, uma mescla de
animal, ser humano, seres mitológicos.
Leite Jr. (2009), com base em Foucault, percebe a transição das formas de pensar
do período que se chama de Idade Média para a Moderna. O que marca essa transição
é, segundo Leite Jr., a imposição da estrutura racionalista e cientí ica de pensamento,
o que Foucault chama de epistéme moderna superando a epistéme arcaica. No que se
relaciona à classi icação das pessoas ditas anormais, no caso dos hermafroditas não
se atribui mais sua existência à fatores sobrenaturais, mas sim a causas médicas bio-
lógicas, “surge então o pseudo-hermafrodita, ilho da modernidade, da medicina e da
‘ciência sexual’. Não mais um monstro fascinante, mas um anormal” (L
J ., 2009,
p. 290). Isso ocorreu com todos os monstros, que deixaram de pertencer às categorias
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 21-38, 2013
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Uma genealogia da categoria de monstro
de demônios para ocupar outras classi icações em nosso tempo. Foi feita uma reto-
mada histórica a im de entender e discutir o sentido que as pessoas dão aqueles que
fogem a norma considerada natural das coisas. Em relação à noção que se formula
em torno da igura do usuário de crack, o que se pretendeu aqui foi iniciar um debate
colocando em prática os conceitos postulados por Michel Foucault.
Foucault se questionou por que num dado momento histórico, foi necessário
voltar à natureza do monstro. Sugiro façamos o mesmo hoje, que nos voltemos à na-
tureza dos “monstros contemporâneos”, como os usuários de drogas, a im de dar
continuidade ao debate que vem de longa data.
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Recebido em abril/2012
Aprovado em março/2013
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P
E
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Mudanças das políticas culturais no Brasil:
da modernidade à pós-modernidade
Lucas Belmino Freitas*
Resumo: O objetivo do artigo é analisar as transformações das políticas culturais brasileiras. A primeira e a segunda parte fazem uma diferenciação entre modernidade e pós-modernidade; a terceira
parte apresenta as mudanças na política cultural brasileira desde o Estado Novo (1937-45) até os dias
atuais. A política cultural do Estado Novo é considerada como sendo moderna, e a política cultural
atual é tida como pós-moderna.
Palavras-chave: política cultural, pós-modernidade, inanciamento da cultura, sociologia da cultura.
Introdução
O artigo busca compreender as políticas culturais brasileiras atuais como ins-
critas dentro do contexto pós-moderno. Para isso, é necessário de inir o que vem a ser
a pós-modernidade e quais são suas mudanças em relação à modernidade. A primeira
parte do artigo trata sobre a modernidade e as práticas culturais nesse período. A
segunda parte discute a respeito da pós-modernidade e das práticas culturais nes-
se contexto. O objetivo da primeira e da segunda parte é realizar uma diferenciação
entre o período moderno e o pós-moderno para analisar as políticas culturas brasi-
leiras. A política cultural no Brasil é considerada, em um primeiro momento, como
moderna. A política cultural atual é considerada, pelo artigo, como pós moderna. A
terceira e a quarta parte do artigo tratam das questão das políticas culturais. Na ter-
ceira parte, isso é feito de uma maneira mais ampla, realizando uma diferenciação
entre políticas culturais no mundo. Para isso, o artigo realiza uma breve análise das
políticas culturais francesa e estadunidense, que são consideradas tipos ideais extremos de inanciamento. A última parte do artigo trata, especi icamente, da política cul-
tural brasileira. Nessa parte, é feito um breve histórico, identi icando características
modernas e pós-modernas das políticas culturais.
Desenvolvimento
Para compreender o papel do inanciamento público da cultura na modernida-
de é preciso entender primeiro o que vem a ser a experiência moderna. Para uma con* Graduando em Ciências Sociais - U B.
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Lucas Belmiro Freitas
cepção inicial, Anthony Giddens (1991) a irma que a modernidade refere-se a estilo,
costume de vida ou organização social emergente na Europa a partir do século XVII
e que, posteriormente, teve in luência mais ou menos global. Giddens vê a moder-
nidade como um conjunto de descontinuidades. Para esse autor, a modernidade se
desvencilha de todos os outros tipos tradicionais de ordem social. Giddens considera
também que as transformações ocorridas na modernidade são mais profundas do
que a maioria dos tipos de mudanças sociais dos períodos anteriores no que se refere
a extensionalidade e a intensionalidade.
Para Giddens, essas descontinuidades causadas pela modernidade têm carac-
terísticas especí icas. Uma característica importante seria o ritmo da mudança: a ra-
pidez nas mudanças é extrema quando comparada aos sistemas pré-modernos. Essa
rapidez é perceptível sobretudo na tecnologia, mas também pode ser constatada em
todas as outras esferas. Jürgen Habermas, em O discurso ϔilosóϔico da modernidade,
a irma que:
enquanto que no Ocidente cristão os novos tempos designaram o tempo ainda para vir
que se abriria ao homem só após o Juízo Final – e é ainda na Filoso ia das Idades do
Mundo de Schelling – o conceito profano de idade moderna exprime a convicção de que
o futuro já começou, signi ica a época que vive dirigida para o futuro, a qual se abriu ao
novo que há de vir (H
, 1998, p. 17).
Outra descontinuidade apresentada por Giddens é o escopo da mudança: na me-
dida em que distintas regiões geográ icas são postas em interconexão, movimentos
de transformação sociais se espalham através de toda a super ície da terra. A última
descontinuidade proposta por Giddens versa sobre a natureza intrínseca das insti-
tuições modernas. Algumas formas sociais modernas, como o surgimento do estado-nação, a transformação de produtos em mercadorias e o trabalho assalariado, não
são encontradas em nenhum período anterior.
Ao estudar a modernidade, Giddens procura caracterizar as suas dimensões
institucionais e entender as relações entre essas dimensões. As dimensões institucionais são: o capitalismo, o industrialismo, o poder militar e a vigilância. O capi-
talismo, para Giddens, é um sistema de produção de mercadorias centrado na pro-
priedade privada do capital e no trabalho assalariado sem posse de propriedade.
A principal característica do industrialismo é a utilização de fontes inanimadas de
energia material na produção de bens. O industrialismo pressupõe a organização
social regularizada da produção com o intuito de coordenar a atividade humana,
as máquinas e os usos de matéria-prima e bens. Outra dimensão institucional é o
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Mudanças das políticas culturais do Brasil
o controle do poder militar. O monopólio dos meios de violência dentro de fronteiras territoriais é característica especí ica do Estado moderno. Max Weber de ine o
Estado moderno da seguinte maneira:
o Estado moderno é um agrupamento de dominação que apresenta caráter institucional
e que procurou – com êxito – monopolizar, nos limites de um território, a violência ísica
legítima como instrumento de domínio e que, tendo esse objetivo, reuniu nas mãos dos
dirigentes os meios de gestão (W
, 2003, p. 66).
A última dimensão institucional caracterizada por Giddens é a vigilância, que se
refere à supervisão das atividades da população súdita na esfera política. Essa vigilância pode ocorrer de forma indireta ou direta.
A partir dessa caracterização introdutória da concepção de modernidade, é pre-
ciso entender como era o papel do produtor cultural dentro do contexto moderno.
Zygmunt Bauman (2010), no livro Legisladores e intérpretes, analisa o conceito de in-
telectual. Para Bauman, o termo “intelectual” é de origem histórica recente e refere-se
a um grupo de pessoas com uma ocupação e uma posição social diferenciada. O termo
surge como uma tentativa de agregar pessoas que exercem diferentes atividades proissionais, como cientistas, escritores, artistas, entre outros. Essa agregação traz um
papel a esse grupo, o papel de dirigir a nação, que se legitima através da razão e da
autoridade moral que esse grupo possui. Uma característica dos tempos modernos é
a explicitação plural de discursos em comparação com a unilateralidade da religião
na produção discursiva. Os intelectuais ganham espaço, uma vez que foi vinculado
aos seus discursos a veracidade, baseada na razão e na autoridade moral.
No período moderno, o trabalho do intelectual é caracterizado por Bauman pela
metáfora do legislador. Para ele, o papel do intelectual moderno “consiste em fazer a ir-
mações autorizadas e autoritárias que arbitrem controvérsias de opiniões e escolham
aquelas que, uma vez selecionadas, se tornem corretas e associativas” (B
, 2010,
p. 20). O poder do intelectual de arbitrar é legitimado por meio de bases acadêmicas e
cientí icas, pois há uma crença de que com os métodos adotados por essas autoridades
é possível alcançar a verdade, um juízo moral ou um gosto artístico adequado.
Michel Foucault (2009) defende que em toda sociedade a produção do discurso é
controlada, organizada, selecionada e redistribuída por um certo número de procedimentos. Toda produção de discursos, para Foucault, tem uma ligação com o desejo e o
poder, porém o discurso não é só aquilo que manifesta o desejo, mas aquilo pelo o que
se luta. Pierre Bourdieu, em Coisas ditas, discute a respeito da luta pelas palavras:
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Lucas Belmiro Freitas
o mundo social é um lugar de lutas a propósito de palavras que devem sua gravidade – e
às vezes sua violência – ao fato de que as palavras fazem as coisas, em grande parte, e ao
fato de que mudar as palavras e, em termos gerais, as representações já é mudar as coisas
(B
, 1990, p. 71).
A busca de legitimação dos modernos se dá em uma batalha com os antigos.
Joan Dejean, em Antigos contra modernos, aborda a chamada guerra cultural, ocorrida
no campo literário francês do século XVII, em que os antigos e os modernos travaram
uma batalha sobre qual seria a literatura digna de ser considerada grandiosa e qual
seria a mais adequada para preencher os currículos literários estudantis:
a primeira lição do con lito do século XVII entre Antigos e Modernos foi a de que qualquer proclamação de modernidade automaticamente força àqueles que discordem dela a
de inirem-se a si próprios em desa io como Antigos, provocando, desta forma, o ciclo das
Guerras Culturais, isto é, as lutas pela determinação de quem são os autores clássicos e
pela autoridade e direito de expressão destes autores (D
, 2005, p. 44).
Pierre Bourdieu (2005) a irma que a história da vida intelectual e artística das
sociedades europeias revela-se através da história das transformações da função do
sistema de produção de bens simbólicos e da própria estrutura desses bens. Ocorre
uma automatização progressiva do sistema de relações de produção, circulação e con-
sumo de bens culturais. Bourdieu a irma que durante toda a Idade Média e parte do
Renascimento a vida intelectual e artística estava sob tutela da Igreja e da aristocracia, porém foi se libertando progressivamente desse controle e se afastando também
de suas demandas éticas e estéticas. Com essa libertação, ocorre a constituição de um
campo artístico e intelectual, que se de ine em oposição a outros campos. A partir daí,
o poder de legislar na esfera cultural passa a ser restrito àqueles que possuem poder
e autoridade propriamente culturais.
O processo de automatização do campo intelectual e artístico se sucedeu, se-
gundo Bourdieu, conjuntamente com uma série de outras transformações: 1) a cons-
tituição de um público de consumidores cada vez mais extenso e diversi icado, que
possibilitava aos produtores de bens simbólicos uma independência econômica e
uma legitimação paralela, 2) o surgimento de um grupo cada vez mais numeroso de
produtores e empresários de bens simbólicos, 3) o aumento do número e da diversidade de instâncias de consagração competindo pela legitimidade cultural.
Bourdieu a irma que o processo de automatização da produção intelectual e
artística está relacionado à formação de um grupo mais inclinado a levar em conta
as regras a irmadas pela própria esfera intelectual ou artística. Esse processo tem
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Mudanças das políticas culturais do Brasil
ligação tanto com a mudança na relação entre artistas e não-artistas quanto com a
alteração nas relações entre os próprios artistas, o que resulta em uma nova de inição
da função da arte e da função do artista. Esse movimento de automatização, segundo
Bourdieu, ocorreu em ritmos diferentes entre as sociedades europeias, porém em todas elas esse processo se acelera sensivelmente com a Revolução Industrial. A partir
do momento em que um mercado de obra de arte é constituído, os escritores e artistas têm a possibilidade de a irmar em suas representações e práticas a singularidade
de sua condição artística e a irredutibilidade da obra de arte ao estatuto de simples
mercadoria. Instaura-se assim uma dissociação entre a arte como simples mercadoria e a arte como pura signi icação.
Walter Benjamin, em “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”,
questiona a respeito da autenticidade da obra de arte. Para ele, há uma diferença entre a obra de arte e sua reprodução. Mesmo quando as reproduções deixam intacto o
conteúdo da obra, há um abalo na autenticidade do objeto. Para Benjamin, a autenti-
cidade de uma obra é transmitida pela tradição, a partir de sua origem e é dependente
de sua materialidade. O conceito de aura de Benjamin resume as características da
autenticidade:
O conceito de aura permite resumir essas características: o que se atro ia na era da
reprodutibilidade técnica da obra de arte é a sua aura. Esse processo é sintomático, e
sua signi icação vai muito além da esfera da arte. Generalizando, podemos dizer que a
técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido (B
,
1985, p. 168).
Benjamin diz que a reprodução da arte permite multiplicar a existência única
da obra, o que amplia o acesso dos espectadores às reproduções e permite atualizar
constantemente o objeto reproduzido. Isso representa um violento abalo à tradição.
Após analisar como se davam as práticas culturais na modernidade, é impor-
tante perceber as mudanças ocorridas nessas práticas na pós-modernidade. É necessário, para isso, de inir o que é pós-modernidade, como ela surge, quais as suas
diferenças em relação a modernidade e como icam as práticas culturais nesse novo
contexto.
A vanguarda artística pós-moderna estendeu sua in luência em diversos meios
artísticos. Um campo importante para o surgimento da vanguarda artística pós-mo-
derna foi a arquitetura. Segundo datação simbólica realizada pelo teórico da arquitetura Charles Jencks, a passagem do modernismo para o pós-modernismo na ar-
quitetura ocorreu em 1972. Esse foi o ano em que o projeto de desenvolvimento da
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Lucas Belmiro Freitas
habitação Pruitt-Igoe, de St. Louis, foi demolido por ser considerado um ambiente
inabitável. Para Charles Jencks, essa demolição foi o símbolo da morte do modernismo. Nesse mesmo ano, ocorreu a publicação de Learning from Las Vegas, livro escrito
pelos arquitetos Robert Venturi e Denise Scott-Brown. Nele, os autores insistiam que
os arquitetos aprendessem com o estudo de ambientes populares e comerciais ao
invés de buscarem ideais abstratos e teóricos. Para os autores, a arquitetura devia se
voltar para as pessoas e não para um homem abstrato.
no campo da arquitetura e do projeto urbano, considero o pós-modernismo no sentido
amplo como uma ruptura com a ideia modernista de que o planejamento e o desenvolvimento devem concentrar-se em planos urbanos de larga escala, de alcance metropolitano, tecnologicamente racionais e e icientes, sustentados por uma arquitetura absolutamente despojada (as super ícies “funcionalistas” austeras do modernismo de “estilo
internacional”). O pós modernismo cultiva, em vez disso, um conceito do tecido urbano
como algo necessariamente fragmentado, um “palimpsesto” de formas passadas superpostas umas às outras e uma “colagem” de usos correntes, muitos dos quais podem ser
efêmeros (H
, 1993, p. 69).
Partindo da arquitetura, a vanguarda pós-modernista in luenciou outros campos
artísticos, como, por exemplo, a literatura. Linda Hutcheon (1991) vê o pós-modernismo como uma atividade cultural presente na maioria das formas de arte e em muitas
correntes de pensamento atuais. Para a autora, o pós-modernismo é fundamentalmen-
te contraditório, histórico e inevitavelmente político. O romance pós-modernista, segundo Hutcheon, questiona uma série de conceitos ligados ao chamado humanismo
liberal, como a autonomia, a certeza, a autoridade, a universalização e a continuidade.
Fredric Jameson (1997) percebe o pós-modernismo não como um estilo, mas
como um dominante cultural. Para Jameson, o pós-moderno é um campo de forças
em que vários tipos distintos de impulso cultural têm que encontrar seu caminho.
Jameson enumera os elementos constitutivos do pós-moderno, sendo o primeiro
deles uma nova falta de profundidade ou um novo tipo de achatamento. Jameson
percebe, ao analisar o quadro “Um par de botas”, de Vicent Van Gogh, que é possível
considerar o quadro como uma indicação ou um sintoma de uma realidade mais vasta.
Observando a obra “Diamond dust shoes”, de Andy Warhol, Jameson entende que não
é possível reintegrar a obra ao seu contexto vivido. Para ele, nada nesse quadro prevê
um espaço. De acordo com Jameson, essa diferença entre os quadros se dá por uma
nova falta de profundidade.
ainda que essa espécie de morte do mundo da aparência seja tematizada em alguns trabalhos de Warhol, mais notadamente nas séries de acidentes de trânsito ou de cadeiras
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Mudanças das políticas culturais do Brasil
elétricas, penso que não se trata mais de uma questão de conteúdo, mas de uma mutação mais fundamental, tanto no próprio mundo dos objetos - agora transformados em
um conjunto de textos ou de simulacros – quanto na disposição do sujeito (J
,
1997, p. 37).
De acordo com Jameson, o segundo elemento do pós modernismo é o enfraque-
cimento da historicidade, tanto em nossas relações com a história pública, quanto nas
novas formas de temporalidade privada. Segundo Jameson, com a pós modernidade
há uma crescente inviabilidade de um estilo pessoal. Ele aponta que essa inviabili-
dade de um estilo pessoal motiva a prática do “pastiche”, que viria, gradativamente,
tomando o lugar da paródia. O “pastiche”, assim como a paródia, consiste na imitação
de um estilo único. Jameson a irma que, diferente da paródia, o “pastiche” é uma prá-
tica neutralizada de imitação. De acordo com Jameson, os produtores culturais não
podem mais se voltar a nenhum outro lugar que não seja o passado.
Segundo Hutcheon, o pós-modernismo a irma que o acesso ao passado está to-
talmente condicionado pela textualidade. O pós-modernismo não nega que o passado
existiu, mas a irma que só é possível conhecê-lo através de seus textos, de seus documentos, de evidências e de relatos.
Jameson a irma que a abordagem do presente se dá através de uma linguagem
artística do simulacro ou do “pastiche”, abordando, assim, um passado estereotipado.
Essa abordagem do presente surge como um sintoma do esmaecimento da historicidade, da chance de experimentar a história ativamente. Jameson diz que essa abordagem do presente na pós-modernidade não é capaz de produzir um ocultamento
do presente, mas gera uma situação de incapacidade de produzir representações de
nossa própria experiência corrente.
Segundo Jameson, o terceiro elemento do pós-modernismo é a relação da nova
falta de profundidade e do esmaecimento da historicidade com a nova tecnologia, que é
uma das iguras de um novo sistema econômico mundial. Jameson a irma que é possível
se referir ao nosso próprio período como sendo a Terceira Idade da Máquina. Ele a irma
que a representação acerca da máquina é distinta em cada estágio de desenvolvimento
tecnológico. Jameson diz que no estágio do capital anterior ao atual, ou seja, durante o
capitalismo de mercado, havia uma excitação do futurismo e uma grande celebração da
metralhadora e do automóvel. A máquina exercia um imenso fascínio.
Jameson a irma que a tecnologia atual não é capaz de gerar esse tipo de repre-
sentação, pois ela já não é mais representada pelas turbinas ou pelas chaminés de fá-
bricas, mas sim pelo computador e pela televisão. Para Jameson, as máquinas como o
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Lucas Belmiro Freitas
computador e a televisão são melhor de inidas como máquinas de reprodução do que
como máquinas de produção. Essas máquinas de reprodução exigem representações
estéticas bem distintas das máquinas mais antigas. Jameson foge, assim, da noção
pós-marxista de que a tecnologia seria de algum modo determinista da vida social
cotidiana e da produção cultural.
Mike Featherstone (1995) sugere que entre as características associadas ao pós-
-modernismo está uma atitude antifundacional na iloso ia e nas teorias social e cultu-
ral. Essa atitude antifundacional sugere uma oposição às metanarrativas fundacionais,
que assentam as pretensões de uma universalidade privilegiada da modernidade ocidental. Desse modo, na pós-modernidade há uma busca pela construção de um conhecimento com menos pretensões universais e mais atencioso às diferenças locais.
Bauman (2010) realiza uma diferenciação entre a prática intelectual moderna
e a pós-moderna. Para ele, a distinção entre modernidade e pós-modernidade é uma
distinção entre períodos da história intelectual. Na prática intelectual moderna, o inte-
lectual age como um legislador na medida em que tem o dever e a legitimidade de arbitrar para chegar a um juízo moral ou a um gosto artístico apropriado. No contexto pós-moderno, o intelectual atua como uma espécie de intérprete. Segundo Bauman, o seu
papel “consiste em traduzir a irmações feitas no interior de uma tradição baseada em
termos comunais, a im de que sejam compreendidas no interior de um sistema fundamentado em outra tradição” (B
, 2010, p. 20). Diferente do intelectual moderno,
que tinha como prática o aperfeiçoamento da ordem social, o intelectual pós-moderno
está mais preocupado em impedir distorções no processo de comunicação entre tradi-
ções diferentes. O intelectual visa facilitar o equilíbrio nas interações entre as tradições,
impedindo distorções de signi icados. A prática pós-moderna abandona as pretensões
universalistas modernas. A estratégia pós-moderna não implica em uma eliminação da
prática moderna, pois é mantida a autoridade baseada na especi icidade pro issional. O
intelectual continua legislando, não em busca de um aperfeiçoamento da ordem social,
mas sim sobre as regras de procedimentos para se lidar com controvérsias de opinião e
com a interação entre tradições distintas.
Featherstone (1995) a irma que na pós-modernidade a produção de conheci-
mento tem, em geral, menor pretensão universal. A produção de conhecimento no
contexto pós-moderno privilegia o local. Esse privilégio do local se traduz em uma
derrubada das hierarquias simbólicas nas esferas acadêmicas, intelectuais e artísticas, em que são contestadas as distinções entre a alta cultura e as culturas populares.
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Mudanças das políticas culturais do Brasil
Pierre Bourdieu (2005) realiza uma diferenciação entre o campo de produção
erudita e o campo de produção da indústria cultural. Bourdieu entende o campo de
produção erudita como um sistema que produz bens culturais para um público que
também produz bens culturais. A produção da indústria cultural é voltada para um
público não produtor de bens culturais, “o grande público”. O campo de produção
da indústria cultural é regido pela lei da concorrência e busca conquistar o maior
mercado possível. O campo da produção erudita, por sua vez, tende a produzir suas
próprias normas de produção e avaliação. Este campo obedece a lei da concorrência
pela reconhecimento propriamente cultural.
Ronald Inglehart (2005) a irma que as visões clássicas de modernização, como
a de Weber e a de Marx, sugeriam que o desenvolvimento econômico gera grandes
mudanças sociais, culturais e políticas.
Inglehart, através de dados de pesquisa coletados em 81 sociedades que detêm
85% da população mundial entre 1981 e 2002, a irma que os valores e crenças bá-
sicos das pessoas em sociedades mais avançadas economicamente diferem consideravelmente dos valores e crenças encontrados em sociedades menos desenvolvidas
economicamente e socialmente. Inglehart atenta para o fato de que essa mudança
sociocultural não é linear. Para ele, os valores emergentes de autoexpressão transformam a modernização em um processo de desenvolvimento humano, produzindo um
novo tipo de sociedade, que enfatiza a emancipação humana. Para Inglehart, a primei-
ra fase da modernização mobilizou as massas, o que tornou possível a democracia, o
fascismo e o comunismo. Para ele, a democracia é a forma de governo que proporciona possibilidades mais amplas para os indivíduos escolherem como viver suas vidas.
A fase pós-industrial da modernização produz demandas de massa progressivamente
mais fortes.
Inglehart diz que o desenvolvimento econômico traz níveis cada vez maiores de
educação e informação. Ao aumentarem seus recursos econômicos, cognitivos e sociais, as pessoas tornam-se mais independentes, material, intelectual e socialmente.
Para Inglehart, “a ênfase cultural passa da disciplina coletiva para a liberdade individual, da conformidade para a diversidade humana e da autoridade do estado para a
autonomia individual” (I
, 2005, p. 19).
Segundo Inglehart, nas sociedades pós-industriais, as pessoas exigem, cada vez
mais, a faculdade de escolhas mais livres em todos os aspectos da vida, como a escolha da orientação sexual e dos padrões de consumo, entre outros aspectos.
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Lucas Belmiro Freitas
Na era pós-industrial, desenvolvimento econômico, valores de autoexpressão em ascensão e democracia efetiva trabalham em conjunto, propiciando meios, valores e direitos que dão às pessoas cada vez mais capacidade, vontade e direito de moldar sua
vida segundo suas escolhas autônomas – relativamente livres de restrições externas
(I
, 2004, p. 73).
Zygmunt Bauman (1998) afirma que os mal-estares da pós-modernidade são
causados pela liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual
muito pequena. Para Bauman, o mal-estar da pós-modernidade é, nesse sentido,
muito diferente do mal-estar da modernidade. Este tinha origem em uma espécie
de segurança que tolerava uma liberdade muito pequena na busca do prazer
individual.
Para Inglehart, a ênfase progressiva nos valores de autoexpressão não acaba
com os desejos materiais, entretanto as orientações econômicas predominantes estão sendo remoldadas. Para ele, o consumo é cada vez menos determinado pela ne-
cessidade prática e pela necessidade de sustento. Os valores dos objetos são cada
vez mais determinados por um interesse por uma experiência ou por uma distinção
através da simbolização de um estilo de vida.
Para Featherstone, a expressão “estilo de vida”, dentro do âmbito da cultura de
consumo contemporânea, diz respeito à individualidade, à autoexpressão e a uma
consciência de si estilizada. Segundo Featherstone, o corpo, as roupas, o lazer e a
preferência por determinados alimentos funcionam como indicadores da individuali-
dade do gosto e do senso de estilo do proprietário/consumidor. Featherstone a irma
que ao utilizar a expressão “cultura de consumo”, está se enfatizando que o mundo
das mercadorias e o seus princípios de estruturação são centrais para a compreensão
da sociedade contemporânea, o que envolve dois focos:
em primeiro lugar, na dimensão cultural da economia, a simbolização e o uso de bens
materiais como comunicadores, não apenas como utilidades; em segundo lugar, na economia dos bens culturais, os princípios de mercado – oferta, demanda, acumulação de
capital, competição e monopolização – que operam dentro da esfera dos estilos de vida,
bens culturais e mercadorias (F
, 1995, p. 121).
Para Featherstone, a estetização da realidade coloca em primeiro plano a im-
portância do estilo. Essa atenção ao estilo de vida sugere que as práticas de consumo, a compra, a exibição dos bens e as experiências de consumo na vida cotidiana,
não podem ser compreendidos simplesmente mediante o cálculo racional baseado na
concepção de valor de troca. Featherstone acrescenta que a própria organização do
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Mudanças das políticas culturais do Brasil
espaço, o planejamento das edi icações, é em si mesma uma manifestação de códigos
culturais especí icos.
Featherstone sugere que alguns grupos sociais, principalmente jovens, assu-
mem uma postura mais ativa em relação ao estilo de vida e se dedicam à estilização da
vida. Featherstone exempli ica essa estilização da vida a partir dos “artistas da vida”:
“os pintores que não pintam, mas adotam as sensibilidades artísticas para transformar suas vidas numa obra de arte” (F
, 1995, p. 137). Para Featherstone,
essa preocupação com a estilização da vida é o inverso das imagens estereotipadas
das sociedades de massa.
As alterações na esfera da economia ocorridas no último quartel do século XX ge-
raram diversas mudanças: na organização do trabalho, nas formas de consumo, entre
outras. Houve, historicamente, uma inserção da lógica econômica dentro da esfera cul-
tural. Porém, ocorreu também o movimento inverso, de culturalização da economia.
Neste sentindo, diversas partes do processo de consumo estão ligados a uma busca
por experiência e por uma estilização da vida. Já não é mais possível entender as tro-
cas econômicas somente através das concepções de valor de troca e valor de uso. A
economia não foi um único fator causal nesse processo de mudança social. Os valores
e crenças se alteraram devido ao desenvolvimento social e econômico dos países. As
pessoas estão exigindo maior liberdade de autoexpressão. Para Inglehart, essa busca
por autoexpressão está ligada a uma elevação dos níveis educacionais. Partindo das
características apresentadas sobre o pós-modernismo, procuro entender a relação do
Estado e o inanciamento público da cultura nesse contexto pós-moderno.
É possível observar que, historicamente, houve uma aproximação entre a esfera
da produção cultural e a esfera econômica. Isaura Botelho (2001), a irma que mesmo
nos países onde o investimento privado na produção cultural prevalece sobre o in-
vestimento estatal, como é o caso dos Estados Unidos, o Estado não deixa de assumir
um papel de destaque através do inanciamento direito das atividades culturais ou
buscando corrigir desigualdades econômicas e sociais:
Em outras palavras, para que um sistema efetivo de inanciamento às atividades culturais funcione é obrigatório que se estabeleça uma política pública, em que parcerias
– tanto entre áreas de governo, num plano horizontal, quanto entre as três instâncias
administrativas, num plano vertical – São fundamentais para conquistar novas fontes
privadas de inanciamento. Consequentemente, para que os incentivos iscais funcionem é necessário que haja um clima de recepção favorável a eles na sociedade e, nesse
sentido, a postura do governo com relação à cultura e às artes é fundamental (B
,
2001, p. 9).
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Lucas Belmiro Freitas
A participação do Estado no inanciamento das produções culturais tem carac-
terísticas distintas entre os países: há aqueles onde a participação do Estado é mais
intensa e outros países onde a participação do Estado é menor. Os Estados Unidos
são um exemplo de país em que a participação do Estado no inanciamento da pro-
dução cultural é proporcionalmente bem menor do que aquele proporcionado pelo
setor privado. A principal forma de participação do Estado nas atividades culturais
se dá através de duas agências: National Endowment for the Arts (NEA) e a National
Endowment for the Humanities (NEH). Segundo dados do censo do governo dos Esta-
dos Unidos, essas duas agências tiveram a sua disposição em 2009 a soma de 186,8 e
134,5 milhões de dólares, respectivamente. Essas quantias são superadas facilmente
pela quantia arrecada em contribuições na ilantropia privada. Em 2010, a contribui-
ção arrecada para o setor de artes, cultura e humanidade, segundo a Fundação Giving
USA, foi de 13,28 bilhões de dólares.
A principal fonte das contribuições ilantrópicas vem dos contribuintes indivi-
duais, que em 2010 responderam a 73% da quantia doada. Miceli a irma que foi instituída nos EUA em 1913 a legislação federal do imposto sobre a renda, que isentou
a maioria das organizações ilantrópicas dessa modalidade de imposto. Isso mostra
que a questão tributária é um fator que in luencia a prática ilantrópica.
Outra valiosa fonte de recursos para as artes deriva da isenção de diversos tributos
(federais, estaduais, locais) e taxas (aquelas incidentes sobre a transmissão de heranças,
etc.) concedida às contribuições, doações e legados feitos às organizações sem ins
lucrativos. Desde o inicio do século, tal sistema de arrecadação vigente nos EUA tem
possibilitado uma expansão duradoura das contribuições ilantrópicas às artes (M
,
1985b, p. 70).
É possível perceber, no caso dos Estados Unidos, que mesmo não havendo pro-
porcionalmente muita participação direta do Estado no inanciamento da produção
cultural, ele exerce um papel importante ao incentivar a participação privada no inanciamento das práticas culturais.
Miceli identi ica a França e Os Estados Unidos como sendo tipos ideais extremos
no que diz respeito à política cultural:
A França e os Estados Unidos constituem, por assim dizer, os tipos ideais extremos de
uma perspectiva comparada, ou seja, o contraste entre uma política cultural marcada
sobretudo pelo vulto da presença governamental e um apoio institucional que depende
muito mais das orientações e decisões de contribuintes privados (fundações, corporações ou particulares) do que de recursos públicos (M
, 1985a, p. 11).
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Mudanças das políticas culturais do Brasil
As práticas culturais na Europa remontam a grandes períodos em que a atividade
cultural era inanciada pela aristocracia, pela corte e pelos altos eclesiásticos. Muitas das
instituições culturais de grande prestígio na Europa, como as Óperas de Paris e Viena, o
Museu do Louvre e o teatro La Scala de Milão, foram consolidadas entre os séculos XVIII
e XIX. Miceli a irma que o processo de uni icação tardio de alguns países europeus, o
aumento da intensidade dos processos de industrialização e urbanização na Europa, a
queda de diversas monarquias e outras mudanças políticas importantes ocorridas nos
países europeus não afetaram signi icativamente a continuidade da operacionalização
dessas instituições culturais. Após o im das duas grandes guerras, a maior parte dessas
instituições inanciadas pela realeza passou para a administração dos Estados, que as-
sumiram a função de inanciadores diretos de alguns tipos de artes e artistas. Esse novo
papel dos Estados também provém do fato de algumas manifestações artísticas consideradas eruditas não conseguirem, por si só, renda su iciente para se manterem.
O grau de centralização das políticas públicas no campo das artes varia entre
os países. Miceli a irma que o grau de centralização das políticas culturais está ligado
ao grau de uni icação linguística, religiosa e cultural de uma sociedade. Países como a
Bélgica e a Suíça, que possuem mais de uma língua nacional, e países como a Holanda,
marcada por diferenças religiosas, possuem uma grande repartição dos gastos governamentais com as atividades culturais entre o governo federal, estadual e municipal.
A França, por outro lado, é marcada por uma política cultural fortemente centralizada, com pouca participação dos governos estaduais e municipais.
Miceli disserta a respeito da política cultural francesa a irmando que essa es-
fera tem grande importância política. O orçamento do ministério da cultura francês
em 1970 correspondia a 5% do orçamento nacional total. Além disso, quase todos
os setores da administração pública reservam uma parcela de seus recursos para o
inanciamento de alguma atividade cultural. O governo Francês é responsável pela
manutenção de diversas instituições tidas como essenciais para a de inição o icial da
cultural nacional. A maioria dessas instituições culturais inanciadas pelo governo
estão situadas em Paris.
As políticas públicas culturais francesas não se resumem ao inanciamento di-
reto e ao repasse de recursos. Também existem fundos de apoio a atividades culturais consideradas importantes para a preservação do prestígio nacional. A política
cultural francesa é marcada por uma forte presença do Estado no inanciamento das
práticas culturais, que é centralizada pelo governo federal francês.
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Lucas Belmiro Freitas
As políticas culturais brasileiras surgem para a realização de um direito assegu-
rado a partir da constituição de 1988, a condição de direito cultural. Marilena Chauí
(1995) a irma que há quatro principais modalidades de relação entre Estado e cultura no Brasil. Para Chauí, a primeira modalidade de relação é a liberal, que identi ica
cultura e belas-artes (as belas-artes, nesse contexto, são vistas como objeto de consumo de uma elite escolarizada). A segunda forma de relação é a do Estado autoritário,
que se apresenta como produtor o icial da cultura e controlador da produção cultural
da sociedade. A terceira forma de relação é a populista, em que há uma manipulação
da concepção de cultura popular, identi icando-a como a produção cultural do povo.
A última relação identi icada por Chauí é a neoliberal, que identi ica cultura e eventos
de massa e que tende a privatizar instituições públicas de cultura. Chauí apresenta
críticas a todas essas formas de relação entre o Estado e a cultura.
Segundo Chauí, a política cultural deve ser voltada para o usufruto da cidada-
nia cultural. Para ela, a cidadania cultural será implantada através da realização dos
seguintes direitos: o direito de acesso e fruição dos bens culturais, o direito à criação
cultural, o direito de reconhecer-se como sujeito cultural e o direito à participação
nas decisões públicas sobre a cultura. A realização dos direitos culturais é uma das
metas das políticas culturais. É possível perceber, na lei N° 8.313, de 23 de Dezembro
de 1991, que trata da criação do programa nacional de apoio à cultura (PRONAC), a
questão dos direitos culturais. O artigo 1° dessa lei de ine os objetivos do programa:
“Art. 1° Fica instituído o Programa Nacional de Apoio à Cultura (PRONAC), com a inalidade de captar e canalizar recursos para o setor de modo a: I - contribuir para
facilitar, a todos, os meios para o livre acesso às fontes da cultura e o pleno exercício
dos direitos culturais”.
Foram criadas anteriormente à Constituição de 1988 diversas instituições cultu-
rais, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e o Museu
Imperial, criados em 1937 e 1940, respectivamente. A partir do Estado Novo começa
a crescer a participação do Estado na esfera cultural. Mônica Pimenta Velloso (1987)
a irma que ocorreu, durante o Estado Novo (1937-45), uma aproximação entre as
elites intelectuais e o governo. A autora a irma que os intelectuais tinham uma gran-
de preocupação com a construção do nacionalismo. Durante o Estado Novo, as elites
intelectuais identi icaram o Estado como sendo o cerne da nacionalidade brasileira.
Mônica Velloso enfoca que as elites intelectuais, nesse período, estavam profunda-
mente inseridas na organização política e ideológica do regime. Velloso identi ica dois
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Mudanças das políticas culturais do Brasil
modos de atuação dentro do projeto educativo proposto pelo Estado: o do Ministério
da Educação e o do Departamento de Imprensa e Propaganda. Segundo Velloso, o Ministério da Educação, preocupado com a educação formal, voltava-se para a formação
de uma cultura mais erudita. Ele buscava orientar as manifestações da cultura popular, através do controle das comunicações.
Segundo Velloso, no início do século XX, no Brasil, os intelectuais se situavam
em uma posição de marginalidade em relação ao Estado. O regime do Estado Novo
criticava fortemente o ideal esteticista da literatura, o intelectual erudito e o academicismo. Para o regime, os intelectuais possuíam uma função social. Para a autora,
ao intelectual é designada a missão de ser o representante da consciência nacional. O
estado passa a ser um “pai” dos intelectuais e os intelectuais passam a ser colaboradores, possuidores de um dever com a nação. Mônica Velloso a irma que os intelectuais do Estado Novo eram considerados porta-vozes dos desejos da população, eles
seriam capazes de captar o “subconsciente” coletivo da nacionalidade.
Émile Durkheim (1983) a irma que a noção de grupo político está na oposição
entre governantes e governados, entre a autoridade e os que estão sujeitos a ela. O Estado, para Durkheim, é um grupo de funcionários que constroem vontades e representações que envolvem a coletividade. O Estado é, nesse sentido, o órgão do pensamento
social e, ao pensar, ele dirige a consciência coletiva. Para Durkheim, o Estado é a sede
de uma consciência especial e lúcida, as representações vindas dele são sempre mais
claras e conscientes de suas causas e consequências. A consciência coletiva, por sua vez,
é, em grande parte, difusa. Durkheim a irma que o individualismo só é possível através
do Estado. Devido ao fato de possuir um tipo especial de consciência, por não se ater a
particularidades e por estar afastado dos indivíduos, o Estado gera representações de
um tipo especial, que envolvem a coletividade. Essas representações ordenam a vida
coletiva e libertam o indivíduo dos grupos altruístas.
A ideia de um Estado que busca dar ordem aos interesses coletivos difusos é per-
ceptível na política cultural do Estado Novo. A política cultural, nesse período, é marcada
por um alto grau de intervencionismo estatal. Segundo Velloso, durante o Estado Novo
predomina a ideia de povo carente que necessita de condução irme e de vozes que possam falar por eles, exprimindo seus impulsos e anseios. A grosso modo, o raciocínio
constrói-se da seguinte forma: o povo é potencialmente rico em virtudes – pureza, espontaneidade, autenticidade -, mas para manisfestar este seu aspecto positivo, precisa da
intermediação das instâncias superiores. Estas tem o dom da expressão (intelectuais) e
o da organização e da ordem (políticos). A imagem do estado “pai-grande” e a do intelectual salvacionista se entrecruzam, então, em direção ao popular (V
, 1987, p. 48).
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Lucas Belmiro Freitas
Sérgio Miceli (2001) a irma que os intelectuais, durante o Estado novo, tende-
ram a ocupar os cargos que dispunham dos maiores vencimentos, se inserindo em
espaços privilegiados do serviço público. Segundo Miceli, um seleto grupo de intelectuais ocupavam cargos da cúpula do poder executivo. Miceli aponta que os inte-
lectuais tenderam a monopolizar cargos em que trabalhavam como administradores
culturais. Muitos deles dirigiram instituições culturais, como o Museu Histórico Nacional, a Biblioteca Nacional, entre outros institutos culturais. Os intelectuais ocupa-
vam também cargos nas instituições de difusão cultural, de propaganda e de censura.
Segundo Velloso, a ligação entre intelectuais e Estado fez surgir uma política
cultural marcada por um projeto pedagógico. Intelectuais ligados a vanguarda do mo-
vimento modernista, como Carlos Drummond de Andrade, Lúcio Costa e Portinari,
tiveram grande participação nesse projeto.
Frederico da Silva (2007) a irma que as normas jurídicas criadas até 2001, como
a Lei Sarney, que foi a primeira lei de incentivo, a Lei Rouanet, e a medida provisória
MP n° 2.228, de setembro de 2001, que criou o Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Nacional (Prodecine) e o Fundo de Financiamento da Indústria Cinematográ ica (Funcine), formaram a base da estrutura do sistema de inanciamento
cultural público no Brasil. Segundo Da Silva, o inanciamento público à cultura no Bra-
sil ocorre de três modos: através dos recursos orçamentários, dos incentivos iscais e
dos fundos de investimento.
Fazem parte dos recursos orçamentários o montante destinado ao Fundo Na-
cional de Cultura (FNC) e os recursos provenientes das instituições federais. O valor
destinado aos recursos orçamentários para a cultura a partir de 1995 não sofreu muitas variações. As quedas nos valores orçamentários coincidem com os anos em que
houve períodos de crise econômica. Apesar de algumas lutuações no montante de
recursos orçamentários entre 1995 e 2002, eles exerceram um papel importante no
inanciamento da cultura nesse período. A média da participação dos recursos orça-
mentários no total de recursos destinados ao inanciamento cultural nesse período
foi de 45,7%.
Os fundos de investimento, como o Ficart e o Funcine, não foram, segundo Da
Silva, muito efetivos até o momento atual, mas têm um grande potencial como fonte
de recursos no futuro.
Por meio dos incentivos iscais, as pessoas ísicas e as empresas têm a opção
de doar parcelas dos impostos pagos por elas para apoiar diretamente as atividades
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 39-58, 2013
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Mudanças das políticas culturais do Brasil
culturais. Uma parte dos recursos dos incentivos iscais é proveniente do imposto que
o Estado deixa de arrecadar e outra parte é uma parcela adicional de recursos dos
próprios empresários. Os incentivos são o modo de arrecadação de recursos que pos-
sui maior participação no total de recursos, superando, entre 1995 e 2002, os valores
arrecadados pelos recursos orçamentários. Os valores arrecadados pelos incentivos
iscais sofreram lutuações entre 1995 e 2002. Nesse período, houve uma diminuição
gradual da participação adicional dos empresários.
Considerações ϐinais
É possível observar enormes mudanças nos valores, na economia, na política e
nas práticas culturais entre os períodos moderno e pós-moderno. No que diz respeito
às práticas culturais, é importante observar que tanto o produtor quanto o produto
cultural adquiriram novas funções a partir da transição da modernidade para a pós-modernidade.
O inanciamento da cultura no Brasil sofreu diversas alterações nas últimas dé-
cadas. A partir de 1937, ocorreu uma aproximação entre o Estado, visto como um ordenador da coletividade, e a esfera cultural. Nesse período, o Estado passa a intervir
fortemente na esfera cultural com o objetivo de conduzir as expressões culturais. Os
intelectuais passam a atuar como legisladores, pois, em conjunto com o Estado, bus-
cam ordenar os gostos e as práticas culturais com a inalidade de construir uma identidade nacional. Durante o Estado Novo, a política cultural é marcada por um forte
intervencionismo, pela censura e pela preservação de algumas práticas consideradas
pertencentes à cultura nacional. As características da política cultural do Estado Novo
se mantêm, em maior ou menor grau, até o im do governo militar.
Como a irma Inglehart, uma das características da pós-modernidade é a mu-
danças de valores. Enquanto a modernidade teria uma ênfase na disciplina coletiva,
a pós-modernidade estaria ligada a uma busca por autonomia individual. A política
cultural do Estado Novo, que contava com uma grande participação de intelectuais
modernistas, tinha como ênfase o ordenamento coletivo. Por outro lado, a partir de
1988 a política cultural é marcada sobretudo por uma tentativa de democratização
dos direitos culturais. O objetivo não é mais controlar ou ajustar as práticas culturais,
mas sim incentivar produções culturais diversas e facilitar o consumo de cultura.
Enquanto na política cultural moderna existe uma diferenciação entre expres-
sões culturais válidas e expressões culturais que precisam ser transformadas, na poPrimeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 39-58, 2013
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lítica cultural pós-moderna a diferenciação se dá entre consumidores. O consumo
cultural na pós-modernidade funciona como indicador da individualidade do gosto
e do senso de estilo do consumidor. Isaura Botelho (2001) a irma que estudos inova-
dores, como o estudo inaugural de Pierre Bourdieu sobre os museus (1969), tiveram
grande in luência nas políticas culturais em âmbito global. A partir desses estudos,
foi possível perceber a existência de um público plural dividido em subpúblicos. A
ideia de uma cultura erudita legítima que representaria os melhores valores da nação é abandonada. Emmanuel Négrier (2003) a irma que, a partir da década de 80,
a política cultural francesa começou a trabalhar com um paradigma que reconhece
formas de produção cultural legítimas, como a gastronomia, o rock e a moda. Essa
mudança de paradigmas também ocorreu no Brasil, onde houve um abandono da política cultural do Estado Novo que elegia certas práticas como pertencentes à cultural
nacional, substituindo-a por outra baseada no reconhecimento da legitimidade de
diversas práticas.
A lei N° 8.313 de 23 de Dezembro de 1991 trata da criação do programa nacio-
nal de apoio à cultura (PRONAC). A lei estabelece os ins perseguidos pelo PRONAC.
Art. 1° Fica instituído o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), com a inalidade
de captar e canalizar recursos para o setor de modo a:
I - contribuir para facilitar, a todos, os meios para o livre acesso às fontes da cultura e o
pleno exercício dos direitos culturais;
II - promover e estimular a regionalização da produção cultural e artística brasileira, com
valorização de recursos humanos e conteúdos locais;
III - apoiar, valorizar e difundir o conjunto das manifestações culturais e seus respectivos
criadores;
IV - proteger as expressões culturais dos grupos formadores da sociedade brasileira e
responsáveis pelo pluralismo da cultura nacional;
V - salvaguardar a sobrevivência e o lorescimento dos modos de criar, fazer e viver da
sociedade brasileira;
VI - preservar os bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e histórico brasileiro;
VII - desenvolver a consciência internacional e o respeito aos valores culturais de outros
povos ou nações;
VIII - estimular a produção e difusão de bens culturais de valor universal, formadores e
informadores de conhecimento, cultura e memória;
IX - priorizar o produto cultural originário do País (B
, 1991).
É possível perceber que os objetivos traçados pela lei 8.313 se aproximam bas-
tante de alguns aspectos pós-modernos. Há uma maior atenção a pluralidade cultu-
ral e ao local, em detrimento do universal/nacional. Essas são características típicas
do pós-modernismo. Além disso, é possível observar o surgimento de novos valores,
como o respeito às diferenças culturais. Os fundos de cultura e leis de incentivo dão
maior foco à criação plural de bens culturais do à preservação de certos bens especí iPrimeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 39-58, 2013
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Mudanças das políticas culturais do Brasil
cos. O reconhecimento múltiplo da legitimidade de criação e difusão representa uma
grande ruptura no próprio papel da produção, do produto e do consumo cultural. A
maior parte do inanciamento público da cultura se dá através das leis de incentivo,
que fornecem instrumentos para a produção cultural. Elas buscam atender áreas cul-
turais distintas, como a literatura, as artes plásticas, o circo e alguns setores da indústria cultural como o cinema.
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Políticas culturais na sociedade em rede: cultura
e tecnologia – iniciativas brasileiras
Laura Pimentel Barbosa*
Resumo: Desde o im da União Soviética, a geopolítica e a política externa dos países capitalistas vêm
adquirindo novos eixos e representações; a economia internacional o desenvolvimento tecnológico
e o surgimento de novos atores tiveram por consequência a lexibilização da agenda internacional,
pois os Estados passaram a reconhecer a relevância de novos temas e a necessidade de se pensar em
alternativas para a superação dos desa ios políticos e econômicos relacionados à globalização. Deste
modo, os estudos culturais tornam-se mais uma fonte de ferramentas para o estudo das Relações
Internacionais, especialmente para a compreensão das novas formas adotadas pelos países em desenvolvimento e subdesenvolvidos para a inserção no sistema internacional, e uma dessas alternativas
é a economia da cultura (criativa). Os grandes conglomerados da indústria cultural podem levar à
desarticulação da produção cultural em países nos quais não há incentivos su icientes para esse setor;
nesse contexto, iniciativas que prezem pela preservação cultural e pela interação entre as diferentes
identidades têm sido consideradas estratégicas para que o desenvolvimento tecnológico e a própria
economia internacional também possam trazer bene ícios tanto econômicos quanto políticos aos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. Partindo-se dos princípios construtivistas, pelos quais
as ações políticas e econômicas são consideradas também práticas culturais, o presente artigo tratará
das in luências da globalização nas identidades e de uma das principais políticas culturais do Brasil,
o programa Cultura Viva, e a articulação entre tecnologia e diversidade cultural, neste caso o audiovisual em comunidades indígenas nacionais.
Palavras-chave: globalização, desenvolvimento, Brasil, cultura, audiovisual.
Introdução
Desde o im da União Soviética, a geopolítica e a política externa dos países
capitalistas vêm adquirindo novos eixos e representações; nesse sentido, a con i-
guração dos mecanismos de poder no século XXI é muitas vezes considerada como
multipolar (M
;N
, 2005, p. 162-185). A multipolaridade no sistema
internacional estimula novas formas de se enxergar o mundo e as relações sociais,
em outras palavras, a ordem multipolar amplia o leque de temas das Relações Inter-
nacionais, tornando importante que se alie a tais estudos novas ferramentas, como
os conceitos dos estudos culturais – a exemplo dos realizados por Richard Hoggart,
Raymond Williams, Edward Thompson e Stuart Hall 1. De acordo com esses autores,
*
Graduanda em Relações Internacionais – UNESP
1
Não se trata aqui da Teoria Social “unitária”, aquelas correntes nas quais o ser humano é visto como um ser universal, resultando no desprezo por conjunto de valores peculiares a determinado tipo de vida social e que podem
ser compartilhados. A Teoria Social descrita aqui “procura compreender as diferentes formas assumidas, em cada
tipo de vida social, pela percepção das pessoas em relação umas às outras, em relação à natureza e em relação a
si mesmas” (U
, 6 jul. 2012).
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as ações sociais são também culturais e, portanto, práticas de signi icação; a essas
práticas estão incluídos os planos econômicos e políticos.
[...] e inaugura o materialismo cultural, teoria que contempla os meios e as condições
materiais de produção e de recepção de todo e qualquer bem cultural, assim como as relações e as práticas inseridas no tecido da vida, envolvendo a linguagem, a comunicação,
as instituições, as convenções e formas que viabilizam esse bem cultural [...]. Essas asserções encerram, indubitavelmente, modos de ação e contestação, destacando o fato de
que a cultura é o palco de confrontos entre diferentes projetos, interesses e economias
políticas, e onde se ixam as relações de poder (S
, 2011, p. 23-25)2.
Assim, a teoria construtivista adquiriu visibilidade nas relações internacionais por
assumir tais ferramentas em suas análises e se concentrar na busca de soluções para os
desa ios que se apresentavam no inal do século xx: questões culturais e identitárias,
meio ambiente, migrações, organizações internacionais, trá ico internacional e os
processos de cooperação, em suma: temas caros à globalização intensi icada (M
N
, 2009, p. 163-168) e à formação da sociedade em rede (C
, 2009).
;
Nesse sentido, um dos aspectos que tem ampliado a sua in luência nas Relações
Internacionais é a cultura. Em sua relação com a tecnologia, podemos perceber o
quanto características culturais vêm in luenciando a produção e circulação de conhecimentos, bens e serviços. A interação entre cultura e economia internacional
resulta, entre outros temas, em um conjunto de setores produtivos denominados por
“economia criativa”. De acordo com o relatório Creative Economy Report 2010, esse
setor foi responsável por 7% do PIB mundial em 2005.
Considerando-se os argumentos expostos, é possível referir-se às políticas cul-
turais e relações identitárias como temas caros para o processo de desenvolvimento
econômico e práticas políticas no século XXI principalmente em países subdesen-
volvidos e em desenvolvimento, na busca por alternativas aos antigos modelos de
desenvolvimento, fundamentados na acumulação e commodities, que muitas vezes
se mostraram desagregadores das forças de coesão social, principalmente a cultura,
e colaboraram no processo de segregação social (R
, 2008, p. 14-50).
Para tanto, é importante compreendermos o modelo de desenvolvimento de-
corrente da Revolução Burguesa e Revolução Industrial e suas consequências no
campo da cultura e produção cultural.
Importante destacar que Stuart Hall não trabalha com o conceito de materialismo cultural, mas suas contribuições
para os estudos culturais são de extrema importância, especialmente para este artigo, ao tratar do “indivíduo
híbrido” e da identidade na pós-modernidade (contemporaneidade).
2
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Políticas culturais na sociedade em rede
Progresso e desenvolvimento
A Revolução Burguesa engendrou dois conceitos que se tornaram fundamen-
tais nas relações sociais dela resultantes; o racionalismo e o empirismo. Por meio
desses dois conceitos não caberia o misticismo ou mesmo o autoritarismo como
fontes de conhecimento e coesão social. Assim, as sociedades in luenciadas pela
Revolução Burguesa passariam a estabelecer vínculos por intermédio da promessa
do futuro e não necessariamente pela memória ou religião; dessa visão de futuro o
“progresso” é a representação. Se considerarmos que a revolução burguesa teve na
acumulação e diversi icação do consumo boa parte de seus objetivos – resultando
inclusive na revolução industrial – a ideia de progresso tornou-se sinônimo de acumulação (F
, 2008, p. 99-100).
A Revolução Industrial tornou o sistema econômico cada vez mais interdepen-
dente, e também serviu para propagar a própria ideologia burguesa de progresso.
O conceito de desenvolvimento que mais tarde, especialmente no século XX, seria
inserido na agenda internacional dos países centrais do capitalismo como forma de
se criar uma solidariedade internacional no processo de difusão da civilização in-
dustrial manteve a acumulação e a desarticulação das formas não “racionalistas” de
coesão social como princípios a serem seguidos caso os países do Terceiro Mundo
quisessem chegar ao mesmo patamar do Primeiro Mundo.
Portanto, a ideia de desenvolvimento que os países subdesenvolvidos (inclusi-
ve da América Latina) seguiram, especialmente no século XX, foi pautada em forças
que não permitiam às sociedades alimentar a capacidade de criar soluções próprias
para seus problemas: a aceitação de uma sociedade desenvolvida estava pautada
em parâmetros que muitas vezes ignoram as aspirações, os valores e as culturas das
comunidades pertencentes a um país (F
, 2008, p. 108-122).
A atividade política passa a ser vista como um esforço orientado para reduzir as resistências das estruturas sociais à penetração das técnicas próprias à civilização industrial
[...] Também neste caso a evolução das forças produtivas é apresentada como catapulta
para alcançar formas sociais consideradas superiores (F
, 2008, p. 108).
Na América Latina, mesmo após o im dos regimes autoritários, a relação
(neoliberal) entre Estado e mercado ainda corrobora a separação entre cultura e
política ao a irmar o papel do mercado como o ente capaz de regular a sociedade e
o promotor do bem-estar. Pensar as políticas culturais, portanto, ainda é secundário
em muitos estados (R
, 2011, p. 19).
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Nesse sentido, a abordagem de Yúdice a respeito da cultura como recurso se faz
necessária. De acordo com o autor, o papel da cultura deve ser revisto, quali icando-
-a para além de uma atividade transcendente (arte), mas também como um recurso
para se aprimorar as relações sociais, ampliar a participação política e fortalecer a
economia, ou seja, um recurso para o desenvolvimento.
[...] não mais restritas unicamente às esferas sancionadas da cultura, as artes poderiam
ser literalmente espalhadas por toda a estrutura cívica, encontrando seu lugar numa variedade de serviços comunitários e atividades de desenvolvimento econômico [...]. Esse
papel adicional também pode ser visto nas várias novas parcerias que as organizações
artísticas assumiram nos últimos anos [...] todas servindo aos aspectos utilitários das
artes na sociedade contemporânea (Y
, 2006, p. 29).
Utilizar a cultura como um recurso, por essa abordagem, não signi ica tirar-lhe
seu valor em outras esferas, como a antropológica e social; no entanto, seria estimu-
lar a esfera econômica que também faz parte das atividades culturais, utilizando arti-
ícios do mercado para valorizar e promover a diversidade cultural. O desa io estaria
em criar sistemas de produção, reprodução e circulação desses bens. A concentração
da produção e da comercialização de bens culturais por parte de poucas empresas
causa um desequilíbrio nas trocas e no comércio regional, nacional e internacional
de bens culturais (B
, 2008, p. 15-33).
As identidades não estão imunes às relações de poder. Como a globalização fa-
vorece o intenso intercâmbio de saberes, pessoas, produtos e recursos tecnológicos,
temos, por consequência, que as identidades passam a orbitar entre a tradição e a
tradução, ou seja, o imperativo de forjar, uma pureza e aceitar que as identidades estão sujeitas ao curso da história, e que elas não foram nem serão unitárias e “puras”
(H
, 2007, p. 86-89).
Nesse sentido, as novas tecnologias da informação e comunicação (NTIC) pode-
riam se tornar as ferramentas para a produção, circulação e fruição de bens culturais.
Portanto, torna-se importante a discussão de alguns aspectos sociais e da economia
internacional na globalização em função das NTIC, entre eles, a formação da sociedade
em rede e novos paradigmas econômicos (produtivos).
Os nós e as redes
A sociedade em rede (C
, 2009) alimenta a necessidade de tecnologias
da informação e comunicação através do próprio uso, a informação pressupõe
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Políticas culturais na sociedade em rede
feedbacks, contrapartidas, que utilizam mais informação e comunicação, formando
um ambiente no qual as relações sociais são facilmente deslocadas, o tempo é
comprimido e no qual o local e o global podem interagir de diversas formas.
O modelo de desenvolvimento de nosso século, o qual Castells denomina
como “Informacional”, utiliza como recurso as novas tecnologias da informação
e comunicação, o processamento de informação e a comunicação de símbolos e
signos (culturais). Essa mudança de paradigmas econômicos parece ser o resultado
da desindustrialização de muitos países desenvolvidos, levando Estados como a
Austrália e a Grã-Bretanha, por exemplo, a buscar estratégias diferenciais, como os
programas Creative Nation e Creative Industries, respectivamente.
A estrutura da sociedade “em rede” propõe que as tecnologias possam ser in-
tegradas à maioria das atividades humanas (C
, 2009, p. 107-110). O com-
partilhamento de informações e conhecimentos e a lexibilidade das instituições e
organizações a im de que possam lidar com mais facilidade com as intempéries das
crises globais também são parte dessa disposição social.
Mas devemos elucidar o fato de que as sociedades que estão fora das redes,
pelos mais diversos motivos, são cada vez mais penalizadas com o fortalecimento
dessas mesmas redes. Isso porque as redes não representam necessariamente uma
distinção entre o real e o virtual, elas só colocam símbolos e realidades, através da comunicação que elas promovem, em uma nova estrutura, um novo ambiente no qual o
acesso a estes signos é mais fácil, rápido e dinâmico, gerando uma percepção maior
da realidade, para os que estão em rede, e tornando ainda mais ignorados pela sociedade interconectada aqueles que não têm acesso. De acordo com Jean Baudrillard, a
respeito dessa hiperbolização de signos na sociedade em rede:
Estamos num universo em que existe cada vez mais informação e cada vez menos sentido [...]. Em toda parte a socialização mede-se pela exposição às mensagens midiáticas.
Está dessocializado, ou é virtualmente associal, aquele que está sub-exposto à mídia [...]
(B
, 1991, p. 103-104).
São esses “nós” na estrutura de redes que devem ser desfeitos, e a questão que
se coloca é: como incluir aqueles que estão “virtualmente assocializados”? Como os
símbolos podem ser inseridos nas redes de forma que se privilegiem as relações culturais de “tradução”, em outras palavras, para que exista interação cultural sem a
perda das especi icidades de cada uma. A solução pode estar na apropriação cultural
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dos recursos tecnológicos e informacionais, culminando em novos tipos de políticas
públicas e novos setores econômicos.
A (re)valorização da economia da cultura (economia criativa) parece ser um
desses novos setores produtivos que vêm surgindo como alternativa às crises econômicas em países desenvolvidos e aos modelos de desenvolvimento que os países
subdesenvolvidos seguiram durante décadas (D
, 2008, p. 52-74).
Em 2005 foi lançada a Parceria para a Assistência Técnica ao Estímulo da Econo-
mia Criativa em países em desenvolvimento, uma iniciativa do PNUD e da UNCTAD cujo
objetivo era integrar as políticas culturais, comerciais e macroeconômicas dos países
em desenvolvimento.
No que diz respeito aos países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, a
economia criativa é um conceito que parece se aproximar das re lexões de Celso
Furtado, nas quais o autor expressa que o desenvolvimento não deveria ser pensado
em termos somente econômicos; o verdadeiro desenvolvimento está intrínseco
a conceitos tais como mobilidade, criatividade, valores, história e cultura de uma
sociedade, e os modelos desenvolvimentistas ou de integração econômica que
frustram essas forças criam e reproduzem a dependência e as desigualdades; é o
chamado “desenvolvimento endógeno” (F
, 2008, p. 111-123).
Nesse sentido, a presença do Estado torna-se essencial, pois a promoção da
tecnologia aliada à cultura, como recurso para o desenvolvimento, se encerra não
como prerrogativa do mercado, mas como a articulação de novas políticas culturais.
Políticas culturais brasileiras: programa cultura viva
As iniciativas brasileiras referentes à consolidação de políticas culturais como
políticas públicas para o desenvolvimento estão em fase de consolidação. Torna-se
necessária uma breve apresentação de como o Ministério da Cultura vem estabelecendo seus planos dos anos 1990 até este início de século.
No governo do então presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992) o Mi-
nistério da Cultura foi reduzido a uma Secretaria e, em 1991, foi promulgada a Lei
Rouanet, com o objetivo de ampliar os incentivos iscais a organizações e empresas
que pudessem fortalecer o mercado cultural do Brasil. A Lei Rouanet de fato impulsionou o mercado cultural ao trabalhar em três frentes:
•
•
Patrocínio – mecenato;
Fundo Nacional de Cultura – FNC;
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Políticas culturais na sociedade em rede
•
Fundo de Investimento Cultural e Artístico – Ficart (este não chegou a ser
ativado).
Em 1992, a partir do governo de Itamar Franco, o Ministério da Cultura foi rea-
tivado e palestras, encontros e debates foram promovidos para rediscutir o papel do
Ministério da Cultura nas políticas governamentais. Foram os chamados Encontros
Malraux. Mas tais esforços não tiveram continuidade durante os dois períodos do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), cujo ministro-chefe do Ministério
da Cultura foi Francisco Correa Weffort (C
, 2009, p. 111-114).
A Lei Rouanet foi se tornando cada vez mais ine icaz, em função da própria
desestruturação interna do Ministério da Cultura no período, e ainda é alvo de crí-
ticas por parte de diversos gestores públicos e culturais. A Lei prevê a renúncia por
parte do Estado dos recursos iscais das organizações que colaborem com o mercado
cultural. Esses projetos, no entanto, não necessariamente são intrínsecos às comunidades que de fato necessitam de recursos nem mesmo às representações culturais
periféricas. Até 2002 os recursos “[...] concentraram-se em poucas empresas, sendo
que 17% delas respondem por 61% dos recursos incentivados” (B
, 2011,
p. 135). A concentração de recursos entre poucas organizações, geralmente grandes
empresas de marketing e mídia, tem por consequência a segregação regional dos recursos; no mesmo período, cerca de 87% dos investimentos foram direcionados para
o Sudeste (B
, 2011, p. 135).
A partir do primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006) o Mi-
nistério da Cultura do Brasil (MinC), sob supervisão do então ministro Gilberto Gil,
começou a passar por reformulações, a maioria delas aprovadas como um plano, no
dia 12 de agosto de 2003, por meio do Decreto nº 4.805. Foram criadas diversas secretarias de interesse, a Secretaria de Economia Criativa, a Secretaria de Articulação
Institucional, a Secretaria da Identidade e Diversidade Cultural, a Secretaria do Audiovisual, entre outras (C
, 2009, p. 120-123).
Em 6 de julho de 2004, por meio da Portaria Ministerial nº 156, o MinC criou o
programa Cultura Viva, cujo objetivo central é o de formar uma rede que permita o
acesso, a produção, a distribuição e a fruição de bens culturais, dentro de uma prática
cooperativa (C
, 2009, p. 124).
O programa Cultura Viva prevê a formação de redes de troca de experiências,
informações, conhecimentos e oportunidades através dos Pontos de Cultura. É por
intermédio da dinâmica de redes que as ações podem se tornar cada vez mais auPrimeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 59-74, 2013
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tônomas – ou seja, as próprias comunidades teriam o potencial de se apropriar dos
Pontos –, dinâmicas e, não menos importante, contínuas. Presume-se que o programa Cultura Viva, ainda em fase de fortalecimento como política de Estado, seja uma
nova estrutura de transferência de recursos estatais, numa sociedade em que as possibilidades de inserção no mercado cultural da maioria das comunidades, ainda que
ricas em ativos simbólicos, experiências e cultura, são restritas. O programa Cultura
Viva tem seus fundos de inanciamento vinculados ao FNC, e o volume de recursos
vem aumentando a cada ano desde 2003, inicialmente 46,9 milhões e, em 2006, 138
milhões. (B
, 7 abr. 2012).
Atualmente, há quase quatro mil Pontos de Cultura em 1122 municípios de todo o Brasil
(dados de abril/2012). Segundo projeção do Minc, a partir do levantamento de dados
feito pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), no primeiro semestre de
2012, os pontos de cultura alcançaram oito milhões e 400 mil pessoas no país, entre
participantes diretos e indiretos (B
, 6 mar. 2012).
A estrutura em redes dos Pontos de Cultura é catalisada em outro plano, dentro
do projeto Cultura Viva, chamado Cultura Digital.
[...] destinada a fortalecer, estimular, desenvolver e potencializar redes virtuais e presenciais entre os Pontos de Cultura. Dentre suas atividades destacam-se o papel de facilitadora da apropriação e do acesso a ferramentas multimídia em software livre pelos
pontos de cultura para a geração de autonomia (B
, 6 mar. 2012).
Alguns dos objetivos do projeto Cultura Viva são:
•
•
Ampliar e garantir acesso aos meios de fruição, produção e difusão cultural;
Identi icar parceiros e promover pactos com atores sociais governamentais
e não governamentais, nacionais e estrangeiros, visando um desenvolvi-
mento humano sustentável, no qual a cultura seja forma de construção e
expressão da identidade nacional;
•
Incorporar referências simbólicas e linguagens artísticas no processo de
•
Potencializar energias sociais e culturais, dando vazão à dinâmica própria
•
Fomentar uma rede horizontal de “transformação, de invenção, de fazer e
construção da cidadania, ampliando a capacidade de apropriação criativa
do patrimônio cultural pelas comunidades e pela sociedade brasileira;
das comunidades e entrelaçando ações e suportes dirigidos ao desenvolvimento de uma cultura cooperativa, solidária e transformadora;
refazer, no sentido da geração de uma teia de signi icações que envolva a
todos” (B
, 7 abr. 2012).
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Políticas culturais na sociedade em rede
Televisión America Latina – TAL
O MinC também tem atuado internacionalmente pelos mesmos princípios do
programa Cultura Viva, para criar redes que proporcionem apoio institucional às iniciativas de produção e difusão cultural, principalmente na América Latina. Uma das
ações que vale a pena destacar é a criação da Televisión America Latina (TAL) – que
passou a existir juridicamente em 2003 – com o suporte da Fundación del Nuevo
Cine Latinoamericano (FNCL), uma instituição privada, sem ins lucrativos, sediada
na cidade de Havana, Cuba. Conta também com o patrocínio da Petrobras.
A TAL é formada por centenas de associados e seu conteúdo é distribuído em
25 canais em 15 países da região. A rede é fortalecida pela criação da webTV, que con-
ta com um acervo de mais de 7 mil programas feitos por pro issionais da região, e o
acesso a esta programação é livre. A TAL é uma organização sem ins lucrativos que
também tem projetos relacionados à produção do audiovisual; é, portanto, uma rede
que atua nas três frentes: produção, difusão e fruição do audiovisual latino-americano.
Tudo isso serve de suporte para o trabalho de aproximação entre os povos latino-americanos [...] A ideia dessa entidade é fazer com que, por meio da produção audiovisual local, os
vizinhos da região se conheçam, um pouco mais (T
A
L
, 7 abr. 2012).
Por meio do estímulo ao interesse, ao respeito e à valorização do outro, o obje-
tivo a ser alcançado por essa iniciativa é que ocorra uma integração latino-americana
que conserve as culturas, o patrimônio cultural e histórico. Ao mesmo tempo em que
esses diferentes locais dialogam, eles estão se inserindo na lógica da globalização.
O audiovisual e comunidades tradicionais
A economia da cultura ainda é dominada por grandes empresas de marketing
e comunicação; isso ocorre, entre diversos fatores, também porque os custos para a
produção, distribuição e difusão de grande parte dos bens simbólicos são grandes,
principalmente se estes bens envolvem o uso de recursos tecnológicos que não po-
dem ser produzidos por qualquer comunidade em qualquer país. Um caso representativo é o setor audiovisual – cinematográ ico.
Em termos de relações internacionais, o cinema, de acordo com Armand
Mattelart, “[...] antecipa as relações de força que irão marcar a internacionalização
da produção e da circulação dos produtos das indústrias culturais” (M
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apud B
, 2011, p. 61). A in luência do audiovisual nas relações de poder
ultrapassa as questões econômicas, de acordo com Hernan Galpering; “nenhuma
outra indústria tem gerado tanto debate sobre a legitimidade e limites econômicos,
políticos e institucionais dos processos regionais de integração” (G
tradução nossa)3.
, 2009,
Em termos de mercado cultural, o setor audiovisual apresenta-se como um dos
mais rentáveis do mundo, e por tal motivo esse setor tem um peso signi icativo nas
rodadas de negociação da Organização Mundial do Comércio (OMC). Ainda não se
chegou a um consenso entre os países na OMC a respeito do tratamento a ser dado
aos bens culturais. No caso especí ico do audiovisual, o então representante brasilei-
ro na XII Reunião da Conferência de Autoridades Cinematográ icas de Iberoamérica,
Orlando Senna, declarou que:
[...] tratar um ilme como tratamos um carro, uma aeronave, milho ou soja, poderia colocar em risco a capacidade dos governos de assegurarem o luxo de fontes de informação
e cultura que subsidiam a própria vitalidade de um país [...]. A capacidade de implementação de políticas nacionais de cultura deve ser mantida e os países devem poder
controlar o tráfego de bens culturais, a im de proporcionar a seus cidadãos o contato
mais amplo com as contribuições oriundas do mundo inteiro (B
, 18 jul 2012)
Diante do exposto, é coerente a atuação brasileira nacional e internacional-
mente no que se refere a iniciativas que permitam a comunidades tradicionais o
acesso a tecnologias para a realização de produções audiovisuais, não somente para
o mercado mas também para o registro de suas culturas e manifestações artísticas,
de forma a tornar a tecnologia um recurso a mais para a manutenção do patrimônio
cultural imaterial.
O programa Cultura Viva, por meio de seu edital para a criação de Pontos de
Cultura, contemplou, em 2009, a iniciativa Indígena Pokerô, uma representação jurídica da comunidade indígena Xikrin do Kateté, localizada na zona rural de Parauapebas a 450 quilômetros de Marabá, no estado do Pará. Este ponto de cultura tem
por objetivo a capacitação de formação em audiovisual, de forma que os próprios
membros da comunidade possam contar a sua história e registrar suas atividades,
“[...] fortalecendo sua identidade e seu patrimônio material e imaterial, utilizando
para isso os recursos audiovisuais como instrumento para a valorização da identidade étnica e na conquista de seus direitos” (X
K
, 18 jul. 2012).
“No other inal-goods sector has received so many safeguards in these treaties, or has aroused so much debate
about the scope and legitimacy of integration processes” (G
, 2009).
3
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Políticas culturais na sociedade em rede
Os membros da comunidade também recebem outros estímulos para fruir o
cinema brasileiro. O Cine-clube da Indígena Pokerô, chamado Mekarón Pront – Cine-
ma em Movimento –, foi aprovado pela seleção pública do Estado do Pará em 2012, e
complementa as atividades exercidas pelo Ponto de Cultura. Por meio das exibições
no cine-clube, que ocorrem semanalmente com capacidade para até 800 pessoas,
permite-se um maior contato da comunidade com a diversidade cultural do Brasil,
além da formação humana – educacional – ao proporcionar a exibição de documentários a respeito de outras comunidades indígenas não só brasileiras. Para a comunidade a ação é de fundamental importância, pois está preservando para as futuras
gerações a cultura e tradição através do audiovisual.
A iniciativa Vídeo Índio Brasil, parte do programa Cultura Viva, é outro projeto
de êxito por parte do MinC. A sua primeira edição ocorreu em 2008 e tem por objeti-
vo a difusão da cultura das comunidades indígenas. Como forma de proporcionar os
mais amplos e diversos olhares a respeito, as produções apresentadas podem ser feitas tanto por indígenas quanto por não-indígenas. Para incentivar o máximo possível
de participação da comunidade, as atividades são gratuitas. Desde a primeira edição,
apenas a de 2012 foi realizada na Bahia, e todas as outras aconteceram no estado
do Mato Grosso do Sul; esse fato pode ser o resultado da constatação de que o Mato
Grosso do Sul apresenta o segundo maior contingente de população indígena por
estado brasileiro, e estima-se que mais de 230 povos vivem em suas terras originais
e mantêm vivas aproximadamente 180 línguas (B
, 19 jul. 2012).
Outra experiência interessante que alia iniciativa privada e apoio governamen-
tal para a democratização do acesso à tecnologia e inserção social por meio da troca
de experiências, valores e cultura é a organização Vídeo nas Aldeias. Criada em 1987,
como uma organização não governamental, pelo antropólogo Vincent Carelli, a Vídeo
nas Aldeias (VNA) é pioneira e exemplo no apoio e fortalecimento das identidades
indígenas por meio das ferramentas audiovisuais. Além da criação de registros de
suas atividades e cultura, protegendo as expressões culturais enquanto patrimônios
imateriais. Este Ponto de Cultura articula diversas comunidades por meio inclusive
das tecnologias da informação e comunicação, para a criação de materiais didáticos,
além de livros e DVDs para o público em geral.
Em 2000, o projeto realizou a série intitulada Índios no Brasil, veiculada pela TV
Escola do Ministério da Educação, como parte da introdução ao mundo indígena para
estudantes. Em 2007, por seu caráter agregador de diversas comunidades e uso da
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tecnologia em suas atividades, a organização se torna um Pontão de Cultura. Naque-
le mesmo ano a organização lançou uma série de DVDs com produções feitas pelos
membros das comunidades em que ela atua. O acervo de imagens e a coleção de mais
de 70 vídeos têm reconhecimento nacional e internacional; a respeito dessa coleção,
comenta Ivana Bentes, professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro:
O resultado sem dúvida não vem de nenhuma espontaneidade ou milagre. Pode-se vislumbrar a dinâmica de o icinas repetidas, participação da comunidade na escolha de temas, a construção dos personagens escolhidos e, em outros vídeos até a experimentação
com encenações e desenho animado. Esse cinema é uma aposta na imagem não apenas
como representação de si para os outros, mas radicalmente como a descoberta de uma
forma de pensamento audiovisual, uma aldeia audiovisual global, em que a singularidade dos índios brasileiros se encontra com a singularidade e vigor do documentário e das
questões do cinema contemporâneo (V
A
, 18 jul. 2012).
As experiências apresentadas correspondem a articulações entre ações priva-
das e públicas; a apropriação social da tecnologia na sociedade em rede parece permitir que as “políticas culturais” sejam iniciativas não somente estatais, de forma
que a sociedade civil possa incentivar a desconcentração das verbas públicas para
a cultura, que ainda tem seu foco na região sudeste, principalmente em função das
grandes empresas de marketing e das maiores emissoras e produtoras do país. Essa
concentração é prejudicial não apenas em termos econômicos para a cadeia da indústria criativa brasileira como também em termos de diversidade cultural das produções artísticas, especialmente audiovisuais.
Considerações ϐinais
“We shape our tools and afterwards our tools shape us”
Marshall McLuhan
A sociedade pós-industrial possui como uma de suas características principais
a organização social e institucional, assim como as relações humanas, em estruturas
de redes. “Redes constituem a nova morfologia social de nossas sociedades e a difusão da lógica de redes modi ica [...] os resultados dos processos produtivos e de experiência, poder e cultura” (C
, 2009, p. 565). A estrutura de redes, em função da
agregação das contínuas inovações nas tecnologias, principalmente da informação e
comunicação, “diminui” distâncias e “encurta” o tempo, é mais lexível e permite a
participação de diversos atores.
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Políticas culturais na sociedade em rede
A globalização é incentivada e se fortalece por meio desses processos. De acor-
do com Stuart Hall, a globalização pode trazer três diferentes impactos às identidades nacionais e comunitárias: [1º] a globalização caminha em paralelo com as identi-
dades locais ou [2º] é um processo desigual e tem sua própria geometria de poder, ou
ainda [3º] a globalização é “composta” de muitos aspectos ocidentais, mas que estão
sendo relativizados. Nesse sentido, duas alternativas são utilizadas pelas comunida-
des: a tradição, que é a busca pela identidade “pura”, que nega o outro, em extremo,
e leva a fundamentalismos e à xenofobia. E a tradução, que é a busca pela negociação
com as novas culturas, sem simplesmente serem assimiladas, mantendo suas características (H
, 2007, p. 80-88).
Partindo-se desse cenário, temos a compreensão de que as sociedades estão
mais complexas assim como as suas necessidades em termos econômicos e sociais.
Nesse sentido, as políticas públicas e mobilizações internacionais podem ser impe-
lidas a assumir concepções menos ortodoxas e renovar agendas no que se refere às
questões desenvolvimentistas.
Promover o encontro, a troca, poderia fazer parte dos planos de políticas públi-
cas e econômicas, e isso implica envolver as secretarias e ministérios da cultura dos
países na formulação das políticas de Estado, tudo isso porque é justamente através da
comunicação que indivíduos e comunidades enriquecem seus potenciais de inovação e
criatividade que, por sua vez, são ativos essenciais na economia global informacional.
Mas é importante ressaltar que os signos – as informações, propostas, culturas, visões
de mundo e valores – devem ser traduzidos em cada localidade cultural – que não ne-
cessariamente está ligada a uma região ísica, geográ ica –, pois as meras imitações
só restringem o potencial de qualquer sociedade. Utilizando-se de tais perspectivas
torna-se possível o desenvolvimento endógeno dentro da lógica global.
As experiências do MinC, principalmente dos últimos dez anos, com a criação
do programa Cultura Viva (e os Pontos de Cultura), apesar de recentes, vêm tentando
compreender todos os aspectos que fazem as políticas culturais essenciais para o
desenvolvimento, além de serem provas de que a relação entre cultura e Estado, no
Brasil, vem mudando. Ainda são necessárias muitas ações para que essas mudanças
se efetivem, como a implementação efetiva do Plano Nacional de Cultura e a adoção
do Sistema Nacional de Cultura por parte das unidades da federação; mas uma das
ações mais importantes, que pode ser feita pelos cidadãos e cidadãs, é a participação,
por meios democráticos, para que as políticas culturais que o Brasil conquistou nesse
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Laura Pimentel Barbosa
início de século não se percam em cada mudança de governo. As políticas públicas,
para serem bem-sucedidas, levam tempo, e por tal motivo parece ser necessário pensar as políticas culturais enquanto políticas de estado, e não de governo.
Nos casos apresentados, a respeito da produção audiovisual por membros de
comunidades tradicionais brasileiras, é possível averiguar a importância de tornar
os indivíduos capazes de lidar com as forças da globalização, como a economia, a
tecnologia e os meios de comunicação, tornando-os aptos a desmiti icarem a visão
super icial, por vezes exótica, que a mídia tradicional veicula a respeito da diversidade cultural, especialmente no caso dos indígenas.
O tema que o presente artigo se propôs a discutir é extremamente amplo, per-
mitindo diversas opiniões a respeito, e não houve a intenção de apresentar todas;
no entanto foi uma proposição de re lexões a respeito das in luências da economia
internacional, e das forças da globalização – sociedade em rede –, nas relações inter-
culturais. Nesse sentido, o papel das novas tecnologias da informação e comunicação
se apresenta como relevante, pois por meio da apropriação social da tecnologia é
possível que as diversas culturas possam estabelecer diálogo e compreensão mútua,
de forma a conseguirem manter suas características próprias ao mesmo tempo em
que interagem com o mundo globalizado.
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Recebido em abril/2012
Aprovado em agosto/2012
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Sistema médico kaingang: Conhecimentos e utilização
de “remédios do mato” na Terra Indígena Apucarana
Eduardo Tardeli de Jesus Andrade *
Resumo: Este trabalho busca compreender os sentidos e signi icados, atribuídos pelos Kaingang, de
suas práticas ligadas aos processos de adoecer e curar, focalizando os conhecimentos e a utilização de
“remédios do mato”, venh kagta. É decorrente de pesquisa de campo realizada entre 2010 e 2011 na
Terra Indígena (TI) Apucarana, localizada na cidade de Tamarana, no Paraná. As concepções e práticas
de atenção à saúde Kaingang estão intimamente ligadas à sua cosmovisão e as relações que mantêm
com a natureza, imersas em um contexto multi-étnico e de pluralismo médico, são constantemente
criadas e recriadas de forma criativa pelos Kaingang.
Palavras-chave: Kaingang, cosmologia, saúde indígena, “remédios do mato”.
Concepção kaingang de saúde e doença: relação com a natureza e cosmologia
A população Kaingang é uma das mais numerosas do Brasil, são mais de 30 mil
índios que vivem em aldeamentos localizados nos três estados do Sul do país e no
Estado de São Paulo. A língua Kaingang pertence à família Jê do tronco lingüístico
macro-Jê, e juntamente com os índios Xokleng constituem os Jê Meridionais (S
2002; T
, 2004).
,
Os índios Kaingang não concebem o meio ambiente unicamente como forne-
cedor de matéria-prima, mas se veem como parte dele. Não o consideram inerte, ao
contrário, para eles todos os elementos naturais são dotados de espírito, kuprim, e
agem com intencionalidade (T
, 2004).
Na visão cosmológica Kaingang, “tudo tem espírito”, seja insetos, árvores, ani-
mais, pedras, montanhas, etc, (V
, 1994; O
, 1996; R
, 2005). Eles são
grandes observadores dos ciclos naturais e têm enorme conhecimento dos seres que
habitam a loresta, sendo suas relações com eles determinantes na manutenção de
sua força, tar, ou de sua saúde.
A noção de força é central na concepção de saúde Kaingang, estar forte signi-
ica estar protegido de enfermidades e, por sua vez, estar fraco signi ica estar vul-
nerável a elas. Esta atribuição, forte e fraco, também é aplicada aos “remédios do
*
Graduando em Ciências Sociais – UEL
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Eduardo Tardeli de Jesus Andrade
mato”1, venh kagta, uma vez que estes têm mais força que aqueles provenientes do
posto de saúde. Os “remédios do mato” recebem um segundo atributo com relação
ao local de que são provenientes. Aos venh kagta, portanto, que são provenientes
da mata fechada, e os do quintal são atribuídos como remédios com mais e menos
força, respectivamente.
Mesmo sem estarem com problemas de saúde ou doentes, vários Kaingang
entrevistados relataram utilizar “remédios do mato” para manterem-se “fortes”. Às
crianças são administrados “remédios do mato” para “ir formando”, “remédios do
mato” que servem apenas para crianças e que in luenciam na formação de características ísicas e de personalidade.
A cosmovisão Kaingang prevê outra dimensão, outro mundo, o “lugar das al-
mas” ou Numbê, que é muito parecido com o território tradicional Kaingang, onde se
encontram inúmeras espécies nativas de plantas e animais, lugar em que vivem, “do
jeito do índio”, de forma tradicional, os espíritos dos seus antepassados, seus familiares e mesmo os animais que já tiveram morte.
É para lá que vão os mortos deste mundo, é um lugar visitado pelos Kaingang
mas somente o kujá, o xamã Kaingang, tem proteção para circular entre estes mun-
dos. Aos demais, ir para lá signi ica icar vulnerável às enfermidades e em última
instância pode levar à morte. Um dos tratamentos de cura do kujá consiste em buscar
os espíritos perdidos no Numbê.
Os Kaingang acreditam ser formados por uma complementaridade entre corpo
(hã) e espírito (kuprim ou kumbâ) (V
, 1994). O espírito pode deixar o corpo du-
rante o sono, a viagem do espírito ao “mundo dos mortos” torna a pessoa vulnerável
às enfermidades, o que acontece principalmente quando se tem saudade, ou quando
se pensa muito em alguém que já morreu.
Também potencialmente prejudicial à saúde Kaingang é a presença do waiku-
prim ou “espírito dos mortos”, geralmente o espírito de algum parente, que ao vir à
Terra e icar próximo a alguém, mesmo sem intenção, deixa esta pessoa “fraca”, adoece e pode icar bastante vulnerável à morte terrena.
Os Kaingang não parecem fazer uma oposição radical entre mundo natural, humano
e sobrenatural. São, antes, dimensões diferentes que estão em contínua comunicação
(V
, 1994, p.153).
“Remédios do mato” é um termo utilizado por Conceição (1996) e Haverroth (1997) em suas
pesquisas na TI Xapecó e também utilizado por alguns informantes indígenas na TI Apucarana.
1
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Sistema médico kaingang
Neste contexto, inserem-se as questões relativas às enfermidades e à cura Kain-
gang, como a interpretação que dão às enfermidades, os medicamentos, os tratamentos e práticas de cura, bem como os especialistas procurados.
Este trabalho teve por objetivos revelar aspectos das concepções de saúde e
doença expressas pelos habitantes da TI Apucarana, mais especi icamente analisar
aspectos das práticas de manutenção da saúde, os conhecimentos e a utilização de
“remédios do mato”. As informações etnográ icas aqui apresentadas são frutos de
pesquisa de campo realizada na TI Apucarana, localizada na Bacia do rio Tibagi, en-
tre os rios Tibagi, Apucarana e Apucarana grande, limítrofe da cidade de Tamarana,
no Paraná, entre os anos de 2010 e 2011. Este estudo constou de pesquisa biblio-
grá ica e pesquisa participante, na qual foi de enorme importância a hospedagem
na casa de uma família indígena e o acompanhamento às visitas domiciliares de um
agente indígena de saúde (AIS). Foram feitas anotações em diários de campo, além de
entrevistas abertas e semi-estruturadas, algumas delas gravadas em áudio e transcritas posteriormente.
Especialistas em cura kaingang
Por meio da auto-denominação e pelo reconhecimento dos índios da TI Apuca-
rana, foram identi icados por esta pesquisa dois especialistas em cura Kaingang, são
eles o kujá e o curador.
O kujá é o xamã Kaingang, o especialista que possui o “saber-guiado” ou seja,
ele é “guiado” por um espírito-auxiliar, iangré, na busca por algum “remédio do
mato” ou na busca pela cura, é o iangré que protege e possibilita a transição do
kujá entre este mundo e o Numbê, sendo esta uma especi icidade deste especialista
(R
, 2005).
O iangré ou espírito-auxiliar do kujá pode ser o espírito de um animal, de uma
planta ou até mesmo um santo do catolicismo popular. Neste último caso, evidencia-
-se uma ressigni icação nas práticas destes especialistas ao incorporarem os santos
do catolicismo popular, uma vez que, tradicionalmente, seus guias eram apenas os
“seres da loresta”(O
1996).
É o iangré que ensina ao kujá os rituais de cura e lhe mostra os “remédios do
mato” necessários para a cura. É ele também que lhe dá segurança no trânsito entre
os dois mundos, o leva e o traz do mundo dos mortos, lugar de onde o kujá resgata
espíritos perdidos e assim realiza a cura da pessoa.
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Eduardo Tardeli de Jesus Andrade
É importante lembrar que a concepção de saúde Kaingang está ligada ao seu
conhecimento e à relação que mantém com a natureza, o kujá é quem faz a interme-
diação entre o doente e os seres da natureza na busca pela cura, sendo muito recorrente a busca dos espíritos das pessoas que têm seus espíritos no Numbê para serem
curadas.
O curador, por sua vez, é aquele que possui o “saber não-guiado”, ele detém
os conhecimentos sobre os ”remédios do mato”, bem como aqueles utilizados para
banhos e garrafadas. Os curadores identi icados nesta pesquisa relataram ter pre-
ferência pela utilização de plantas provenientes do mato, pois as consideram mais
fortes. Mesmo assim, utilizam também plantas colhidas fora da mata, pois, segundo
eles, está cada vez mais di ícil encontrar algumas espécies de plantas, quando vão
à procura de algum venh kagta na mata, acabam tendo que andar o dia todo para
encontrar.
Os curadores da TI Apucarana conhecem e utilizam, ainda, diversas espécies de
plantas exóticas à sua região, espécimes que adquirem com índios de outras etnias
ou mesmo nas casas de comércio de ervas da cidade. Frequentemente, as proprieda-
des curativas destas plantas são reinterpretadas segundo as concepções dos processos de cura Kaingang.
Pluralismo médico na atenção à saúde kaingang
Para compreender o caminho que o paciente percorre em busca da cura de
alguma enfermidade, utilizo do conceito de “itinerário terapêutico” (A
, 1984). O
itinerário terapêutico compreende um processo que tem seu ponto de partida com
a interpretação inicial da enfermidade, em seguida se dão os tratamentos domésticos da enfermidade, a busca ou não pelos especialistas em cura, a escolha de quais
especialistas, os tratamentos utilizados, simultaneamente ou não, até a cura ou não
da enfermidade.
A interpretação de alguma enfermidade para os Kaingang se dá inicialmente
no âmbito familiar, na autoatenção, onde a enfermidade é interpretada e de onde se
parte para a busca de algum tratamento e, em alguns casos, a enfermidade é reinterpretada.
[...] las representaciones y prácticas que la población utiliza a nivel de sujeto y grupo
social para diagnosticar, explicar, atender, controlar, aliviar, aguantar, curar, solucionar
o prevenir los procesos que afectan su salud en términos reales o imaginarios, sin la
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Sistema médico kaingang
intervención central, directa e intencional de curadores profesionales[...]” (M
2003 apud S
, p. 198).
,
O sistema de saúde Kaingang está em processo de constante transformação, pois
resulta de uma dinâmica complexa entre o sistema tradicional de saúde Kaingang, o
sistema “médico-religioso” (L
;W
, 2010), e o sistema o icial de saúde.
Em outras palavras, na busca pela manutenção da saúde, o índio Kaingang
pode, simultaneamente ou não, buscar por meios tradicionais como o atendimento
do kujá ou do curador. Pode, ainda, se medicar com os “remédios do mato”, procurar
o posto de saúde dentro da TI, as farmácias, as diversas religiões dentro e fora da TI
e, em casos mais graves, os hospitais das cidades próximas.
Esta distinção entre os diversos sistemas de saúde e especialistas se dá dentro
de uma tipologia ideal, uma vez que não podem ser considerados de forma estanque,
pois pode-se identi icar em um deles, a apropriação de elementos de outros. Desta
forma, sistema de atenção à saúde é um conceito que não se constitui em uma realidade para os índios da TI, mas que é utilizado para sistematizar o estudo.
Venh Kagta, “remédios do mato”
Grande parte dos habitantes da TI Apucarana abordados nesta pesquisa, pos-
sui conhecimentos e/ou faz uso dos “remédios do mato”, especialmente os anciãos da
TI. Além disso, vários indígenas entrevistados disseram que não tomam “remédios
do mato” apenas quando estão doentes, mas o fazem constantemente, para se manterem “fortes”, para manterem a força (tar).
A grande maioria dos “remédios do mato” registrados na TI Apucarana é origi-
nária de plantas, mas existem também “remédios do mato” provenientes de animais
e, em menor número, de objetos, como, por exemplo, areia ou pedra que, para os
Kaingang, possuem espírito e agem com intencionalidade.
Tradicionalmente os “remédios do mato” só teriam “força” se fossem prove-
nientes da mata fechada, do mato, se, por exemplo, a planta estivesse em um lugar
em que passam pessoas ou se fosse uma planta plantada pelo homem, não possuiria
propriedades curativas, seria um remédio “fraco”.
Das matas tradicionais Kaingang, restaram apenas alguns fragmentos de mata,
existindo muitas espécies de plantas e animais já extintos na região. Estes fragmentos são muito importantes e ainda hoje muito utilizados pelos Kaingang pois nestes
locais eles vivenciam seus rituais e práticas tradicionais.
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Os Kaingang utilizam os mais variados remédios em conjunto, por exemplo,
utilizam medicamentos receitados pelos médicos do posto de saúde juntamente com
os “remédios do mato”, mas o fazem frequentemente de forma ritual, uma vez que
grande parte dos interlocutores indígenas a irma conversar com o medicamento.
Quando se pretende a cura por meio de alguma planta, quando colhê-la, usá-la em
banho de planta ou sempre que ingerir o chá, deve-se “pedir a cura a ela”, “conversar
bem com ela”.
Portanto, os Kaingang não atribuem a e icácia de um “remédio do mato” so-
mente às suas propriedades farmacológicas, pois esta não depende somente da planta ou do medicamento em si, não se encerra em seu efeito.
A noção do “curar” como uma “forma simbólica” é fundamental para entender a particularidade Kaingáng essencialmente no seu modo de lidar com todos os “seres da natureza”
e o poder necessário para que isto ocorra de forma satisfatória (O
, 1996, p. 16).
Haverroth considerou o fato de os Kaingang não possuírem uma visão fragmen-
tada do cosmos, “termos que nomeiam partes de plantas ou objetos a elas relacionados podem ser também rótulos para objetos de outros domínios”, (H
,1997, p.
105) o que evidencia a noção de unicidade e interdependência entre os Kaingang e os
seres da natureza.
Com o objetivo de analisar os venh kagta utilizados pelos Kaingang da TI Apu-
carana, será utilizada a classi icação utilitária proposta por Haverroth (1997), especi icamente no que tange à doença a ser curada.
Pela perspectiva da “doença a ser curada”, icam evidentes as diversas particu-
laridades Kaingang na concepção de saúde e doença. Por exemplo, existem venh kag-
ta utilizados com o propósito de afastar os waikuprim que, como dito anteriormente,
causam doenças. Para afastar os espíritos dos mortos, fazem uso da Rabo de Bugio2 e
da Kóveju, plantas bastante utilizadas para ins medicinais.
A Rabo de Bugio também é utilizada pelos Kaingang para não se perderem no
mato. Existem outras, como o Cipó Cruz, que desorienta a pessoa que passar por
debaixo dele, exceto aquela que estiver carregando consigo um pedaço do cipó Rabo
de Bugio.
As plantas aqui citadas levam seus nomes populares, transcritas da forma como foram citadas ou
soletradas pelos informantes indígenas.
2
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Sistema médico kaingang
O susto é outro exemplo de “doença a ser curada” e, assim como em outros
exemplos, revela uma concepção bastante distinta daquela da medicina o icial. Do
susto, decorre a perda do espírito, acredita-se que o espírito assustado, geralmente
de crianças, sai do corpo terreno e se perde no Numbê. Existem “remédios do mato”
para acalmar a criança ou preveni-la do susto, se o espírito sair do corpo, no entanto,
somente um kujá poderá trazê-lo de volta.
Há relatos, registrados nesta pesquisa, de crianças que se assustaram quando
estavam atravessando um rio, ou quando estavam andando na mata ou que se assus-
taram com trovões. Em todos estes casos previstos “remédios do mato” e regras de
comportamento para as devidas precauções e providências.
[...], a interpretação de uma desordem corporal, biológica nas sociedades tradicionais
faz-se sempre em referência às regras sociais, culturais; em poucas palavras, a uma organização social, religiosa ou simbólica especí ica (B
, p. 26).
Esta pesquisa identi icou que os Kaingang consideram também a nominação
dos recém-nascidos como remédios, pois acreditam que estes atuam na proteção
deles, ou seja, seus nomes in luenciam diretamente em sua saúde, protegem-nos de
doenças e de espíritos.
O nome segundo os curadores atua como um fortalecimento, uma proteção – tanto na
ocasião do nascimento (para o recém-nascido) como no decorrer das diferentes etapas
do ciclo de vida. Desse modo, ao fazermos uma analogia, o nome atuaria como algo constitutivo que protege, uma substância (ou algo que se substancializa) no corpóreo, […]
(O
, 1996, p. 45).
Podem ser citados alguns exemplos da nominação utilizados como proteção
registrados na TI, como Tãká, que protege de sustos e de waikuprim. Kaafár é o nome
de um menino e signi ica casca de árvore, uma proteção contra os espíritos, assim
como a casca é a proteção da árvore. “(...) a palavra pó (pedra) é utilizada como nome
masculino (Pó ronga, Pó xï) para prevenir doenças, “pois é dura, não acaba mais, não
termina” (S
, 2002, p. 206).
Outra perspectiva da utilização de “remédios do mato” pelos Kaingang da TI
Apucarana, se dá pelo “registro das causas” e do “registro dos efeitos” das enfermidades, propostos por Buchillet (1991). Por esta perspectiva, a utilização de medica-
mentos ocorre de duas formas, pela ação nas causas das enfermidades, “registro das
causas”, e nos efeitos das enfermidades, “registro dos efeitos”.
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Eduardo Tardeli de Jesus Andrade
Considerando esta perspectiva apontada por Buchillet, esta pesquisa revelou
que, em diversos casos, os medicamentos do posto de saúde são utilizados pelos Kaingang da TI Apucarana de forma a agir nos efeitos da enfermidade, ao passo que, em ou-
tros casos, os “remédios do mato” e os tratamentos dos kujás e do curador irão agir nas
causas destas enfermidades. Isto evidencia a importância e a centralidade, nos processos de cura, destes especialistas dentro do sistema de atenção à saúde Kaingang.
Venh Kagta e a cura por analogia
Esta pesquisa constatou a recorrência da utilização de “remédios do mato” na
TI Apucarana que operam por meio de uma relação de analogia entre a pessoa e o
medicamento, quer seja planta, animal ou objeto. Ou seja, as características observáveis destes medicamentos são transmitidas ao homem, um exemplo disto se dá na
utilização da planta “vassourinha” que, por ser di ícil de “arrancar” manualmente da
terra, é usada em banho para fortalecer os cabelos, tornando-os di íceis de “arrancar” ou de cair, assim como a planta.
Outro exemplo registrado é a utilização de uma espécie de samambaia, abun-
dante na TI, para banhar os recém-nascidos. Devido às folhas nascerem “enroladi-
nhas”, a criança icará com que seu cabelo bastante enrolado, bem crespo, como o
observado nas folhas novas da planta.
A planta “pau de anta” passa por uma relação de analogia que envolve a imita-
ção do comportamento de um animal nativo do território Kaingang, a anta. O Kain-
gang copia o comportamento deste animal, que utiliza a planta para curar suas feridas. A anta quando ferida morde o caule da árvore “pau de anta” e esfrega a sua
ferida na ferida da árvore.
Além disso, há diversos “remédios do mato” que seguem o princípio da ana-
logia e que são utilizados para as crianças. Foram registrados venh kagta que agem
sobre a destreza, a memória, as características ísicas, a personalidade, entre outros.
É o caso da planta “unha-de-gato” que, se utilizada adequadamente em banho
ritual, forma uma criança que agarra bem, “agarra em uma briga e não solta” e é
utilizado também para que a criança suba com agilidade em árvores, uma vez que
unha-de-gato é uma trepadeira.
Por exemplo, a árvore denominada ken ta iú (açoita cavalo) é concebida como remédio
porque “não pega doença”, e, quando cortada, brota rapidamente, “não se termina”. Já a
igueira (ken ven ϔï), por “espremer, abafar, matar e tomar o lugar de outras árvores”, é
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Sistema médico kaingang
percebida como “remédio brabo”, isto é, para “ icar brabo, lutar”.[...] as “pedras d`água”,
alisadas pela ação da corrente, são usadas como preventivo contra rugas: ‘ ica velho,
mas ica sempre que parece novo”. Pequenos animaizinhos que se agitam rapidamente
sobre as águas paradas (uoï-uoï) são indicados para quem quer ter destreza na luta contra inimigos, transmitindo para o paciente o poder de defesa contra seus golpes e lechas
(S
, 2002, p. 206-207).
Outra prática que segue este princípio de ação por analogia, e que foi apontada
por diversos informantes, é a de enterrar do umbigo do recém-nascido, uma prática
muito importante com efeito esperado na formação do corpo. Em rituais especí icos,
eles são enterrados nos pés de árvores (Kaa) ou mesmo são colocados dentro de
buracos na árvore que, desta forma, in luenciará as características ísicas e comportamentais daquele indivíduo, de acordo com as características da árvore escolhida. É
preciso escolher bem a árvore, pois se a árvore adoecer, isto signi icará o adoecimento da pessoa que tem seu umbigo ali enterrado.
Considerações Finais
Esta pesquisa propôs-se a revelar aspectos atuais do sistema de atenção à saú-
de Kaingang na TI Apucarana, enfocando os conhecimentos e práticas dos seus habitantes em relação à cura, principalmente, no que se refere aos “remédios do mato”,
amplamente utilizados por especialistas e “não-especialistas” em cura na TI.
Buscou-se estabelecer as especi icidades da concepção Kaingang dos proces-
sos de adoecer e curar, em que a noção de força, tar, ou o estar forte é essencial na
prevenção de enfermidades e também na cura.
Este trabalho também buscou apontar aspectos das causas das enfermidades,
como são interpretadas e o que são consideradas enfermidades para os Kaingang,
revelando aspectos de uma cultura particular que, com a presença das inúmeras formas de atenção à saúde na TI, são reinventadas e reinterpretadas pelos Kaingang
através, principalmente, de sua cosmovisão.
A análise sobre os venh kagta permitiu também um olhar sobre a relação dos
Kaingang com o seu meio ambiente e com os seres que nele habitam e como, utili-
zando-se dos “remédios do mato”, estes agem por um princípio particular, não con-
siderado válido pela biomedicina, em que as características ísicas observáveis de
um “remédio do mato” é transmitido ao Kaingang, para a cura ou para a formação do
corpo e de sua personalidade.
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 75-85, 2013
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Eduardo Tardeli de Jesus Andrade
Considerando os diversos sistemas de atenção à saúde Kaingang, este trabalho
pretendeu demonstrar o caráter dinâmico da cultura Kaingang ligada às suas práti-
cas de cura, devido a coexistência das diversas formas de atenção e dos sentidos que
os Kaingang atribuem às diversas formas de curar.
Contrário à ideia de “assimilação” cultural de práticas não indígenas de atenção
à saúde e de “perda cultural” das práticas tradicionais Kaingang na manutenção da
saúde, este artigo pretendeu evidenciar a ressigni icação das práticas de manuten-
ção à saúde dos Kaingang, principalmente, por meio de sua visão de cosmos na rela-
ção que mantêm com a natureza.
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Recebido em abril/2012
Aprovado em junho/2012
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 75-85, 2013
85
P
E
|A
Só para homens! Sexo nos banheiros públicos
do Centro Comercial Colombo em Lisboa
Gustavo Vieira de Moraes *
1
Resumo: Este trabalho de campo foi realizado durante um intercâmbio acadêmico em Lisboa para a
disciplina de Antropologia em Contextos Urbanos. Trata-se de um relatório sobre o percurso na cidade e as experiências particulares que os grandes centros urbanos proporcionam a quem circula pelos
seus espaços. Através da etnogra ia, foi possível compreender como eram construídas as práticas sexuais entre frequentadores dos banheiros masculinos do Centro Comercial Colombo. Estimular o pensamento crítico e fomentar o debate acadêmico sobre este tema ainda marginalizado pela sociedade
são os principais objetivos deste trabalho.
Palavras-chave: etnogra ia, sexualidade, contextos urbanos.
A rua como parte social
A di iculdade para se conceituar a rua é comum a todos os indivíduos que se
permitem pensar sobre este espaço urbano tão interessante e rico de signi icados;
mesmo tendo noção que ela ocupa grande parte do nosso dia-a-dia, no contato diário
com este lugar já conhecido.
Para os sociólogos (H
, 2003, p. 96-103), há duas maneiras de entender
o que seria a rua. A primeira delas é pensar a rua como parte social, um local chave
para as relações sociais entre as pessoas. Enquanto que, para o segundo grupo, a rua
é uma metáfora para o que se entende da vida moderna, o imaginário sobre o que
representa a modernidade e seus aspectos fundamentais.
Os sociólogos que percebem a rua como uma parte social têm como foco o en-
tendimento que a natureza especí ica está na dinâmica social apresentada pela pró-
pria rua e suas personagens, a ordem social e a sociabilidade. Neste trabalho, darei
mais importância ao primeiro entendimento sobre a rua, pois acredito que este espaço urbano potencializa os encontros e as relações entre indivíduos de todas as
idades, diferentes classes e gêneros.
A proposta da rua como laboratório para compreender a natureza humana e os
processos sociais se torna apropriada quando se pensa que é justamente na rua que
todos se expõem. É possível perceber traços da personalidade, pequenos hábitos ou
aspectos contingentes, particulares e fugitivos na interação social.
*
Graduando em Publicidade e Propaganda – UFG
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 86-97, 2013
86
Só para homens!
Sexualidade permitida
Ao entender que a rua é parte da sociedade e que nela atuam as normas e os
valores ditados pelas instituições sociais, como a família, a Igreja, o Estado, a ciência
e outros, nota-se uma classi icação de comportamentos que são aceitos ou não em
relação ao espaço público e ao espaço privado; sendo a sexualidade um dos comportamentos normatizados.
Para Foucault,
Esse controle e vigilância sobre a sexualidade do outro se efetiva na história do ocidente
a partir de elementos discursivos que promulgam quem pode, como pode, quando pode,
o porquê da efetivação e ainda aonde é possível e permitido a realização da prática sexual (A
, 2010, p. 1).
Sendo assim, a prática sexual que não se encaixa no modelo tradicionalmen-
te aceito pela sociedade, o sexo heterossexual, monogâmico e em locais privados, é
rapidamente marginalizada e envolvida numa tentativa de torná-la invisível. Tendo
em mente que a sexualidade não é um aspecto menor da vida social, se comparado
a outros como economia, política e educação, leva-se em consideração o que é dito
por Miskolci e Simões: “Se assumirmos que o desejo sexual é uma construção social
e histórica na qual se baseia a norma heterossexual, então ele deve marcar processos
sociais e institucionais importantes e ainda pouco explorados” (M
2007, p. 15).
;S
,
Dentro deste âmbito de discussão, o banheiro público se mostra como interes-
sante objeto de estudo para um trabalho de Contextos Urbanos, uma vez que a pos-
sibilidade de resistência às normas, quando se percebe que este espaço (ora público,
ora privado) permite a realização de práticas sexuais marginalizadas, resulta da organização do homem dentro da esfera social, mais especi icamente a cidade.
Em um estudo sobre a comunidade de surdos de São Paulo, o professor José
Guilherme Cantor Magnani faz considerações pertinentes sobre essa tênue linha en-
tre espaços públicos e espaços privados. O comportamento e a interação do grupo
estudado diferiam de acordo com o espaço que ocupavam, pois mesmo em locais
públicos a apropriação se dava de forma diferenciada de acordo com a situação. Uma
de suas conclusões foi “perceber que não se podia acoplar a paisagem urbana a uma
só modalidade de espaço público, mas era preciso distinguir as formas em que esse
espaço público se apresentava” (M
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 86-97, 2013
, 2003, p. 90).
87
Gustavo Vieira de Moraes
Ainda conforme as considerações de Magnani, em outro estudo sobre a rua, há
o que ele chama de “pedaço”, termo que designa “aquele espaço intermediário entre
o privado e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que
a fundada nos laços familiares, porém mais densa, signi icativa e estável” (M
-
, 2007). Talvez, seja necessário encarar o banheiro público como um pedaço, já
que ele apresenta características esperadas do espaço público como “a novidade,
o imprevisto, a possibilidade de contato com pessoas que não estão vinculadas pelos laços de parentesco” (M
, 2007) e do espaço privado, como a segurança,
o acesso restrito a um grupo que frequenta o centro comercial e que seja do sexo
masculino.
Além desta relação entre privado e público, há a separação entre o masculino e
o feminino, atravessada por condutas esperadas de cada gênero que se rea irmam na
sociedade. De acordo com Preciado,
Não vamos aos banheiros para evacuar, senão para fazer nossas necessidades de gênero.
Não vamos mijar, senão rea irmar os códigos da masculinidade e da feminilidade no espaço público. Por isso, escapar do regime de gênero dos banheiros públicos é desa iar a
segregação sexual que a moderna arquitetura urinária nos impõe há mais ou menos dois
séculos: público/privado, visível/invisível, decente/obsceno, homem/mulher, pênis/vagina, de-pé/sentado, ocupado/livre... (P
, 2006, p. 2).
Apesar da natureza transitória e heterogênea das condições sociais não serem
características exclusivas das grandes cidades, como foi apreendido por Gans quando
disse que “em condições de transitoriedade e heterogeneidade, só há interação entre
as pessoas em termos de papéis segmentados necessários à obtenção de serviços locais. As suas relações revelam, assim, anonimato, impessoalidade e super icialidade”
(G
, 1968, p. 103) e que mais tarde foi provado por muitos anos de experiência
empírica; cabe, aqui, a visão da cidade como um espaço fragmentado, heterogêneo,
com grande escala e que permite ao indivíduo o anonimato para que ele realize desejos e vontades sem ser reconhecido. O banheiro público é um dos lugares em que ele
exercita a sua sexualidade e encontra parceiros para o ato sexual descompromissado
e impessoal; além dele, vale dar luz às saunas, aos clubes de sexo, às casas de orgias
e aos cinemas de pegação. Como foi dito por Foucault, estes lugares se apresentam
como “laboratórios de experimentação de novos usos dos prazeres, de novas formas
de existência” (F
, 2004, p. 119-125 apud J
;R
[org], 2010, p. 49).
A apropriação do banheiro público para atividades sexuais leva a uma re lexão
sobre a natureza deste espaço que pode ser classi icado como não-lugar, de inido por
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 86-97, 2013
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Só para homens!
Augé e comentado por Neto em um trabalho acadêmico sobre as práticas sexuais em
banheiros públicos de uma universidade brasileira. Segundo o pesquisador,
Os chamados não-lugares não existem como formas unívocas. São locais que recompõem
relações e embaralham os diversos tipos de pessoas. Esses espaços são constituídos em
relação a certos ins e como será a relação que os freqüentadores mantêm com esses. Seriam recintos de circulação e comunicação, onde ica di ícil apreender tanto a identidade
como a história de uma pessoa (N
, 2005, p. 27)
Este trabalho não aponta somente para a necessidade de compreender as di-
versas maneiras de exercer a sexualidade, mas também amplia a discussão para a
análise das mudanças sociais na organização das experiências sociais. “A metrópole
é, nesse sentido, um fantástico laboratório de interpretação das manifestações locais
e globais da contemporaneidade” (F
A ida ao terreno
, 2007, p. 41-53).
Assim que iniciei o intercâmbio e as disciplinas de Antropologia, soube que ha-
veria como parte da avaliação inal um trabalho etnográ ico e, por conta disso, me
direcionei para os locais caracterizados pelo sexo, seja por relações, serviços ou produtos oferecidos.
Através de uma busca virtual, encontrei endereços de possíveis pontos de es-
tudo em Lisboa, como os cinemas pornôs, as saunas gays e as casas de strip. Para a
disciplina de Etnogra ia, realizei o trabalho de campo no Cine Paraíso, um cinema de
pegação em Bairro Alto.
Depois de visitar quatro centros comerciais e seus banheiros, me dei conta que
os banheiros do Centro Comercial Colombo (CCC) eram ideais para o trabalho de
campo; uma vez que eram próximos da minha residência, o acesso era fácil, o tama-
nho considerável do centro comercial propiciava um grande número de visitantes e,
consequentemente, o luxo de homens que procuravam os banheiros para satisfazerem outras necessidades era signi icativo para uma pesquisa antropológica.
Neste trabalho, destaco a fundamental in luência do per il do pesquisador em
relação aos resultados obtidos em campo. O fato de ser homem e homossexual permitiu o acesso fácil ao terreno e aos informantes, assim como ter sensibilidade de
perceber determinadas situações discretas que provavelmente não seriam vistas
por um homem heterossexual, como foi observado várias vezes nas visitas aos banheiros.
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 86-97, 2013
89
Gustavo Vieira de Moraes
Após uma semana observando o movimento e o número de homens que circu-
lam pelos corredores do CCC e que passam seguidamente em vários banheiros em
determinado tempo, percebi que um deles era o mais requisitado, independente do
horário em questão. Logo, escolhi este banheiro, no segundo piso e próximo à saída
Oriente, para ilustrar a minha pesquisa e direcionar a minha observação participan-
te; sem descartar eventuais visitas aos outros banheiros, seja para observar o que
acontecia ali ou para seguir homens que estavam em determinado banheiro e que
iam para outro mais tranquilo.
O fato de não ser um banheiro próximo da praça de alimentação e do cinema
(terceiro piso), localizado no segundo e não no primeiro piso, onde há uma maior
movimentação de pessoas por causa do supermercado Continente, o acesso por escadas e, talvez, pelo formato diferenciado dos mictórios em relação aos outros mictórios dos demais banheiros (este facilita a visão do pênis para quem está ao lado)
são possíveis explicações para a preferência deste banheiro para as práticas sexuais.
Neste momento, cabe uma descrição mais detalhada do ambiente pesquisado.
Como em muitos centros comerciais, os corredores com portas, cabines telefônicas
e saídas de emergência antecipam as entradas para os banheiros, divididos em duas
classes: feminino e masculino. Além disso, destaco uma particularidade: havia os ba-
nheiros de rápido acesso no mesmo nível de quem passava pelo corredor e ainda os
banheiros superiores, com portas identi icando qual era o gênero, situadas no im
das escadas que ligavam o corredor a estes espaços; por causa disso, pouco explora-
dos pelo público do centro comercial.
Ainda sobre a estrutura dos banheiros, os mictórios destes se diferenciavam dos
demais por ter uma divisão de acrílico mais baixa, enquanto que os outros eram separados por uma placa de mármore. O próprio mictório tinha um formato particular, redondo, pequeno e feito de alumínio, enquanto que os demais eram feitos de cerâmica.
No início, iquei com receio de que a minha permanência contínua no terreno
pudesse inibir os frequentadores e alterar as características das relações ali pratica-
das. No entanto, isso se desmisti icou assim que permaneci por um período maior e
ao icar claro para eles que a minha presença ali não signi icava vigilância ou denúncia. A minha participação se restringiu à observação, com algumas perguntas soltas, sem entrevistas formais. Porém, não me limitei a permanecer parado num canto,
passeava pelo banheiro, ia até a pia, olhava o que acontecia pelo espelho, caminhava
até o mictório, urinava e observava os olhares e as atitudes de quem estava ao lado.
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 86-97, 2013
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Só para homens!
Ao contrário do que aconteceu em outro exercício num cinema de pegação em Lisboa, eu não era visto como uma incógnita que não se encaixava no local e sim como
um voyeur que gostava de observar o que acontecia e que mantinha a discrição.
É di ícil mencionar quantas foram as visitas ao CCC com o propósito da pes-
quisa etnográ ica, já que antes de eleger o banheiro do segundo piso e saída Oriente
como meu objeto de estudo, fui diversas vezes para entender a movimentação e a
escolha desse banheiro como o mais requisitado pelos homens que buscavam as prá-
ticas sexuais. Após isso, foram 20 visitas registradas no diário, que duravam cerca de
quarenta a sessenta minutos, entre saídas e entradas neste e em outros banheiros. A
interação se restringia basicamente a olhares e sorrisos, sem aproximações íntimas
ou masturbação mútua; com algumas recusas aos convites de entrar nas cabines ou
tocar o órgão genital e perguntas enquanto estava lavando as mãos na pia, como por
exemplo: qual era a ocupação dele, o que ia fazer depois que saísse dali, se morava
perto do centro comercial, etc.
A pretensão de traçar um per il do praticante de sexo em locais públicos foi
rapidamente abandonada ao perceber a diversidade dos homens que iam até o ba-
nheiro para procurar um parceiro sexual. Desde o começo da observação, me deparei
com homens solteiros e casados; jovens, maduros e idosos; altos e baixos; magros,
gordos e atléticos; a desconstrução da imagem do frequentador de banheiro público
que busca o sexo foi uma constante em todo o meu trabalho. Em muitos momentos,
me surpreendi com certas situações, como foi o caso relatado no diário de campo:
Um fato interessante foi quando estava na pia lavando as mãos e vi a entrada de um
senhor que, provavelmente, deveria ter mais de 65 anos e com certa di iculdade para
andar. Quando ele se aproximava do urinol e se encaminhava para estar ao lado de outro
senhor é que a situação me chamou a atenção. Ao me distanciar para um local estratégico, observei que ambos estavam se masturbando um para o outro e mantendo o contato
visual (Trecho dos apontamentos do dia 14 de maio de 2011).
O ponto inicial da observação foi perceber como eram feitas as aproximações e
qual era a linguagem usada para efetivar o contato sexual entre os homens.
Durante um ensaio feito por Durval Muniz sobre a estética dos romances ho-
mossexuais, ele aborda justamente a natureza destes encontros que só irão perdurar
na memória do amante, pois naquele momento da prática sexual tudo se torna intenso e sensorial, sem tempos para a corte.
Só depois que, o jovem da periferia, com seu tênis e jeans puídos, guiado até o banheiro
mais próximo, por um simples aceno de cabeça ou um mordiscar de lábios cheio de de-
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Gustavo Vieira de Moraes
sejo, fecha a porta atrás de si, o amante se queda, ainda sôfrego, procurando prolongar a
sensação do gesto do carinho feito em seus cabelos por mãos geladas, trêmulas, úmidas
de medo e de emoção (J
;R
[org], 2010, p. 48).
Não foi preciso muito tempo para entender que a linguagem verbal não era uti-
lizada e o que predominava no ambiente eram os gestos e os olhares. A palavra dava
lugar às possibilidades de comunicação não verbal e o olhar era o primeiro recurso
utilizado para estabelecer uma aproximação com o outro. Após o consentimento, ou
seja, o contato visual prolongado, a masturbação era o próximo passo para mostrar
a excitação e o interesse pelo corpo alheio. “Um ato sexual afásico, um encontro que
resultou apenas da linguagem dos gestos, dos toques, dos olhares, um ato sexual em
que a boca esteve ocupada com outras práticas que não a da fala” (J
[org], 2010, p. 46).
;R
A única preocupação neste instante era ter a segurança de que ninguém inde-
sejado, seja outro frequentador ou responsável pela limpeza, entrasse no ambiente e
perturbasse a masturbação mútua. Quando isto acontecia, ambos se separavam e se
mostravam indiferentes ao outro. Quase sempre um deles se encaminhava para a pia
e se prolongava no ato de lavar as mãos e secá-las ou saia do banheiro e regressava
após alguns minutos.
No entanto, em várias ocasiões, a reaproximação dos corpos se dava logo após o
indivíduo recém-chegado entrar em alguma das repartições sanitárias, pois ali a sua
visão do que acontecia no urinol estava limitada e nada se sabia do que se passava
entre os homens observados.
O perigo de ser lagrado e o exibicionismo são características comuns entre os
adeptos do sexo em banheiros públicos. Em um trabalho etnográ ico sobre prosti-
tuição masculina, o antropólogo Perlongher traça comentários acerca dos assíduos
frequentadores de banheiros que procuram parceiros sexuais, a quem ele denomina
de “habitué”. Para o autor,
O mictório ocupa o lugar mais baixo na categoria dos locais de engate homossexual. É,
junto com as saunas, o mais diretamente sexual, o menos ‘amoroso’; mas é também o
mais perigoso, pois está sujeito a esporádicas irrupções policiais… No meio dessa profusão de fricções e masturbações exibicionistas, a abordagem não é, porém, indiscriminada, mas exige certo ritual de olhares e apalpações. Os michês, como o resto dos habitués,
icam se exibindo nos mictórios (P
, 1987, p. 170-172).
Outro ponto que vale ser destacado é o interesse de cada um neste espaço urba-
no. Ao contrário da idéia generalista de que todos buscam o mesmo objetivo quando
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 86-97, 2013
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Só para homens!
procuram o banheiro público, a realidade se mostra diferente e abre um leque de
desejos sexuais. Além da masturbação mútua já citada, muitos homens estão ali para
exibir o órgão sexual para outro homem; outros permitem o toque no pênis, mas
sem outros contatos íntimos como beijos e abraços; alguns avançam para o sexo oral,
sendo que em algumas situações isto acontecia fora das repartições sanitárias. Em
nenhuma das visitas cheguei a identi icar uma relação sexual com penetração, seja
pelo imediatismo do prazer ou pelas possíveis interrupções de terceiros.
É necessário deixar claro que era comum estarem de quatro a seis homens si-
multaneamente circulando pelo banheiro, inteirados e interessados no que estava
acontecendo ali, o que deixava a situação confortável e prazerosa para aqueles que
queriam ir para a cabine ou se exibirem durante o rito sexual. A organização do espaço só se modi icava quando outro homem ou funcionário da limpeza entrava no
ambiente; neste instante, alguns continuavam no urinol enquanto outros se voltavam
para a pia ou saíam do banheiro discretamente. Percebi que uma boa parcela dos
usuários era alheia às relações sexuais, pela maneira de se portarem pareciam não
ter muito conhecimento do que estava acontecendo ali.
Apesar deste luxo de pessoas durante o ato sexual, nem todos tinham o inte-
resse da exposição ou permitiam que um terceiro homem participasse das relações
sexuais. Quando isto acontecia, um deles sinalizava para o outro que a melhor ma-
neira era sair daquele banheiro e buscar outro mais tranquilo onde eles não fossem
incomodados por outros participantes. A motivação mais comum para esta mudança
de ambiente era a observação indesejada de algum homem muito velho, idosos que
tinham o hábito de frequentar os banheiros e observarem homens mais novos se
masturbando no espaço dos mictórios.
O encerramento das práticas sexuais não signi icava o alcance do orgasmo por
algum dos parceiros; isso se dava geralmente pela interrupção de terceiros que obrigava o distanciamento ou até mesmo a saída de algum deles. Por vezes, o ciclo se
reiniciava quando, novamente, um dos homens buscava um novo banheiro e um novo
parceiro sexual.
Durante as visitas ao terreno, em nenhum momento constatei que o banheiro
público serviu como ponto de encontro para homens que já se conheciam anteriormente. E, em algumas observações detalhadas, ao seguir pelo CCC homens que haviam se relacionado, pude notar que o envolvimento não se estendia para além da
porta e dos limites do banheiro público.
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 86-97, 2013
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Gustavo Vieira de Moraes
Cidade da contestação
A partir da experiência antropológica, cabe aqui a visão de alguns sociólogos
que enxergam a rua como uma metáfora para o que se entende da vida moderna, o
imaginário sobre o que representa a modernidade e seus aspectos fundamentais.
Compreender a cidade como um instrumento de contestação é re letir sobre os
eventos que subvertem a ordem urbana, tratando de transgredir o controle simbólico
das ruas.
É possível notar que a utilização do banheiro público para a realização de prá-
ticas sexuais foi uma resposta inconsciente à normatização da sexualidade pelas ins-
tituições sociais. Enquanto o sexo heterossexual monogâmico e privado é aceito, a
relação homossexual encontra uma maneira de subverter a divisão dos banheiros em
masculino/feminino e exercer sua sexualidade em locais públicos.
A possibilidade de se relacionar sexualmente num espaço segmentado a partir
da diferença de gêneros re lete a contestação de um grupo marginalizado da sociedade. Foi muito interessante notar que a “rebeldia” só tornou-se viável através do con-
trole social, pois a classi icação do banheiro para mulheres ou para homens criou um
ambiente propício para que eles (os homens) tivessem o livre trânsito num espaço de
intimidade completamente masculino.
A oportunidade de circular e, possivelmente, observar o corpo do outro é única
neste local, pois somente no banheiro todos se sentem confortáveis para praticarem
as suas necessidades e exibirem as suas partes íntimas. Neste momento, há uma li-
nha tênue entre o privado e o público, confundindo as normas sociais que regulam as
condutas a partir do gênero; atitudes que não são esperadas do masculino se realizam neste espaço urbano ímpar.
A partir de sentidos e signi icados variáveis, os homens que se permitem a es-
tas práticas em busca da efetivação do prazer, questionam a vigilância e o controle
sobre a sexualidade do outro; embora nem sempre esse questionamento seja consciente, ele se dá naturalmente pela situação.
Mesmo com o perigo de estes homens serem lagrados e repreendidos, a rea-
propriação deste local para encontros sexuais não parece ser ameaçada de extinção.
Pelo contrário, as técnicas para driblar o responsável pela limpeza ou outros homens
que passam por ali se multiplicam e passam de boca a boca para os frequentadores
dos banheiros públicos. No entanto, há que ressaltar que esta resposta à normatiza-
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Só para homens!
ção da sexualidade não é a única motivação destes homens que procuram o banheiro
para as práticas sexuais; o desejo, o fetiche e a fantasia fazem parte do imaginário dos
habitués dos banheiros.
As chamadas perversões ou as práticas sexuais consideradas não canônicas funcionariam, inclusive, como um atrativo para os homens que, procurariam nas relações homoeróticas, a novidade, a exploração de zonas erógenas, o uso do corpo que as relações
sexuais tradicionais com as mulheres não permitiriam: o sexo oral, o coito anal, o cunilingus, a podolatria, o travestismo, o banho prateado e dourado, o sadomasoquismo, etc.
(J
;R
[org], 2010, p. 46).
Considerações ϐinais
Ao im deste trabalho, traço uma pequena relação entre as práticas sexuais nos
banheiros públicos com algumas noções e características do modo de vida urbano,
de inido pela Escola de Chicago.
Apesar das conhecidas críticas (pertinentes) à ideia de cidade levantada pelos
pesquisadores de Chicago, como a generalização limitada pelo tempo histórico e pela
variabilidade dos contextos urbanos, o uso dos estereótipos, a sobrevalorização dos aspectos negativos da cidade e a desvalorização da cidade como integridade social, é possível perceber que as aproximações entre os frequentadores dos banheiros públicos do
Centro Comercial Colombo se encaixam em alguns aspectos que Wirth apontou sobre
o estilo de vida da cidade e que mais tarde foi alargado para outros contextos por Gans.
As relações sociais e sexuais entre os homens observados são marcadas pela:
impessoalidade, uma vez que a identidade do parceiro não é um fator relevante;
super icialidade, a busca pelo prazer imediato se apresenta como único motivo da
aproximação; e efemeridade, pois as relações iniciadas não ultrapassam a fronteira
dos banheiros e se tornam passageiras na vida de ambos.
O objetivo deste trabalho não é julgar àqueles que procuram o banheiro público
para exercerem a sua sexualidade. Pelo contrário, a intenção é alargar a possibilidade
de visão para que se enxergue outras maneiras de se praticar o ato sexual, mesmo
que isto abale o modelo construído da relação sexual permitida socialmente.
A oportunidade de ir até o terreno e observar a pluralidade de homens que iam
aos banheiros em busca do prazer sexual foi muito importante para compreender
que o espaço permitia a coexistência de diferentes modos de vida, e de uma liberdade
sexual não reconhecida.
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 86-97, 2013
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Gustavo Vieira de Moraes
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Recebido em abril/2012
Aprovado em julho/2012
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 86-97, 2013
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P
E
|A
Teoria Elitista Clássica, Democracia Elitista e o papel
das Eleições: Uma questão de deϐinição dos termos
Felipe Brasil *
Resumo: As teorias das elites vêm sofrendo diversas alterações no campo da ciência política desde
sua adesão enquanto elementos de uma teoria social e política. Surgido com Ostrogorski, autor pouco estudado no Brasil, o reconhecimento da teoria das elites deu-se com as obras de autores como
Mosca, Pareto e Michels. Com outro signi icado, Schumpeter, Dahl e Downs também são rotulados na
teoria democrática como autores elitistas, ainda que o termo tenha recebido novo signi icado. Assim,
o presente artigo tem como objetivo rever a trajetória da teoria das elites mostrando que há notáveis
diferenças entre as ideias e signi icados das “elites” entre os autores clássicos quando comparados
aos autores da democracia elitista, considerando importantes características em comum possam ser
identi icadas.
Palavras-chave: Teoria elitista, Teorias da democracia, democracia e elitismo.
Introdução
Diretamente associada aos governos autoritários que assolaram o mundo nas
primeiras décadas do século passado, a teoria elitista clássica, com os contributos
de seus principais autores, Vilfredo Pareto (1848-1923), Moisei Ostrogorski (18541919), Gaetano Mosca (1854-1941) e Robert Michels (1876-1936) tornou-se base de
contraposição acadêmica, de identi icação positiva – nunca de proposta normativa –
no período de democratização ou redemocratização dos Estados.
Após a consagração do tema “elite” pelas Ciências Sociais desde o século XIX
até meados do século XX, Grynszpan (1996) aponta o apogeu e o declínio da teoria
elitista salientando que, tendo herdado o fracasso e o descontentamento relativos
aos modelos autoritários de governo, a teoria elitista clássica foi rápida e violenta-
mente refutada. Assim, toda avaliação ou teoria que se aproximasse do termo elite foi
“amaldiçoada”, perseguida pelo ódio, motivado pela associação que dele se fazia com
o exercício ditatorial do poder a que o conceito surgia associado.
Numa tentativa de aprofundamento no âmbito do objeto de estudo, que é o
de recuperar as formas como a teoria das elites foi ganhando novos signi icados ao
longo do tempo, este artigo mostrará tanto os momentos de oposição quanto os de
aproximação entre a teoria elitista e o modelo democrático de governança. Assim,
*
Graduando em Gestão de Políticas Públicas – USP
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 100-121, 2013
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Teoria Elitista Clássica, Democracia Elitista e o papel das Eleições
como desdobramento, notaremos que a “controvérsia entre elitismo e democracia é
tão antiga quanto a iloso ia política” (H
, 2011, p.4) e ainda que sob o peso
“as ixiante” da classi icação elitista, a teoria clássica e a democracia elitista são, es-
sencialmente, distintas embora seja possível aproximar Mosca, Pareto e Michels, de
Schumpeter, Dahl e Downs, uma diferença essencial separa os dois blocos de autores:
enquanto a teoria elitista clássica não pode ser democrática, a democracia elitista
consegue, de forma mínima e altamente procedimental (baseado no instrumento da
eleição), separar o que é democrático daquilo que é “não-democrático”.
Antes de explorar a teoria elitista clássica e seus novos signi icados ao longo do
tempo, este trabalho se propõe a trabalhar, de antemão, questões acerca da representação política e as suas múltiplas de inições e perspectivas, na primeira seção. De fato,
a representação política surge como um princípio ou como uma fórmula de organização que estrutura os Estados e as democracias, legitimando ou tentando limitar a
interferência da população na vida política, seja no papel de eleitor (nos processos de
escolha dos representantes), seja em outras formas de participação. Em última análise,
como apresentado na próxima seção, poder-se-á entender por representação política
o mecanismo pelo qual o poder não é exercido diretamente pelo povo, mas sim por
intermédio de representantes que são legitimados a tomar decisões.
Parece que, de acordo com Bessa (1993), o networking assume, hoje, uma re-
levância inquestionável e a importância do papel desempenhado por grupos estruturados e organizados tende a crescer na proporção diretamente inversa à partici-
pação e ao envolvimento dos cidadãos na vida pública. Aparentemente, como a irma
Schumpeter (1984), o desinteresse público generalizado face a temas políticos; a in-
diferença e a ignorância global em matérias e decisões públicas parecem caracterizar
o nosso tempo. Assim, parecem não subsistir grandes dúvidas quanto ao fato de o
cidadão ideal das teorias clássicas não existir. Na realidade, aquele que assume o seu
lugar é um indivíduo chamado eleitor, assegurado pelo processo eleitoral como um
elemento integrante do sistema representativo, mas que pode ser apenas um com-
ponente essencial de massas manipuláveis, indefeso perante os avanços da organização. (B
, 1993, p. 280-281).
Este artigo é fruto de uma intensa re lexão relativa às possíveis formas de pen-
sar e de aplicar os vários signi icados do termo elite, e tem o objetivo de, na primeira
seção, preparar o terreno teórico dos clássicos originários da representação política,
resultando na formação de líderes e liderados. No momento seguinte, discorreremos
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 98-119, 2013
99
Felipe Brasil
sobre as ideias dos autores da teoria elitista clássica para que, na terceira seção, possamos discutir os novos signi icados dados à teoria das elites pelos autores do elitismo
democrático. A conclusão apresenta-se, então, de forma a acompanhar as modi icações
da teoria elitista, evidenciando as diferenças que singularizam, assim como apresentar
as semelhanças que podem unir o elitismo clássico à democracia elitista.
Representação e Desigualdade: Uma questão de “Inidentidade”
É importante termos a noção de que a discussão sobre a representação po-
lítica não é um assunto ou um tema, como é usual designá-lo, novo. É um proble-
ma cuja formulação inicial pode ser encontrada desde logo nas teorias de Thomas
Hobbes (1588-1689), na qual os cidadãos teriam como obrigação a obediência às
leis produzidas pelos representantes, de inidos como um agente que tem o direi-
to de atuar da forma que considere mais apropriada. Já John Locke (1632-1704)
julgava que a representação política era uma forma indireta de governo onde o
povo deve con iar o poder ao “corpo legislativo” para este realizar o seu bem comum pelo qual, ao contrário de Hobbes, defendia que o estado de natureza não
seria caótico e não necessitaria de um soberano de poder absoluto. Por outro lado,
Charles-Louis de Sécondat, Barão de Montesquieu (1689-1755), enfatizou a ideia
de democracia representativa como governo indireto, evidenciando os problemas
do governo direto enquanto deixava clara a necessidade de representação política,
não só por razões de ordem prática (como, por exemplo, a dimensão dos Estados),
mas também, por uma questão de princípio (L
, 2011) – ideia que virá mais tar-
de a ser retomada por James Madison (1751-1836) com noções burkeanas. De fato,
para ele, a representação institui um iltro que tem o poder de eliminar o mal das
facções, ao deixar o controle do Estado nas mãos de homens imunes ao partidaris-
mo. Entretanto, apesar de a representação ser uma condição necessária, sozinha
ela não é su iciente. É preciso deixar que as facções se multipliquem para que elas
próprias cheguem à neutralização recíproca. Assim, impede-se que um interesse
particular tenha condições de suprimir a liberdade. Por isso, neste sentido, é na
mistura, no equilíbrio das forças sociais, que um governo pode ser moderado e
sensato.
Uma das ideias centrais que icou explícita nos clássicos fundadores do governo
representativo é a de que, por diversas razões estruturais, seria esse um sistema em
que a comunidade política governa indiretamente através de representantes eleitos.
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Teoria Elitista Clássica, Democracia Elitista e o papel das Eleições
É baseado na noção de “inidentidade” consequente da representação política que
todo esse trabalho será baseado. Segundo Jorge Miranda:
Não há representação política, quando se veri ica identidade – seja em monarquias
puras ou mesmo em democracias diretas -, quando os governados tendem a ser,
simultaneamente, governantes ou quando a divisão entre governantes e governados
se põe ao nível da distinção dos destinatários de normas jurídicas e não ao nível de
uma distinção funcional. Pelo contrário, representação postula inidentidade (…)
(M
, 1996, p. 66).
Assim, a de inição operacional mínima, que diferencia os eleitos dos eleitores
aqui de inida como “inidentidade”, cria duas instâncias distintas: o corpo dos representantes e o corpo dos representados, com funções diferentes. Essa diferença na-
tural, consequente do modelo de governo representativo, acarreta diversas consequências: por princípio, não há igualdade na representação política, seja no sentido
procedimental, seja em outras vertentes acarretadas por essa diferença.
Uma delas seria a vertente psicológica que se estabelece na relação entre re-
presentantes e representados, no sentido em que os primeiros dão autoridade aos
segundos para executarem determinadas ações, legitimando a autoridade política,
ou seja, fazendo deste um mecanismo de legitimação entendida como “direito reconhecido a determinadas pessoas ou instituições para tomarem decisões de âmbito
geral e obrigatório e de aplicarem sanções de não cumprimento daquelas decisões.”
(B
, 1996, p. 74). Consoante a essa de inição, podemos citar um dos tipos concei-
tuais de representação de Pitkin (1972), o “advocacy” ou (acting for), de inido pela
autora como uma forma indireta de governo, ou o “ato de tornar presente algo que
está ausente” (P
, 1972, p. 28). Aqui, a representação política é assumida como
um instrumento que substitui a unicidade (a identidade) de cada um dos indivíduos
por um outro ator que represente os interesses de todos e como consequência a ausência de um autor (representado) e sua substituição por um ator (representante).
Seguindo a posição de Schmitt, Manin (1999) entende a representação política
não apenas como um método de tomada de decisões, de organização do processo de
decisão política para o funcionamento de sociedades complexas, mas sim:
a conexão entre representante e representado encontra-se plenamente instituída dentro
dos princípios do governo representativo, quer mediante a autorização eleitoral, quer
mediante o papel da opinião pública; contudo, não parece descabido a irmar que, para
o autor, seria um despropósito se pensar nos componentes dessas dualidades como antinomias ou tensões, visto que na sua gênese o governo representativo não teria sido
projetado por seus fundadores como uma democracia; antes, teria sido construído para
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Felipe Brasil
preservar a distância entre representantes e representados (M
H
C
, 2006, p. 8).
apud L
,.
Desta forma, Manin destaca que o essencial é que a representação política é
resultado de um mecanismo de seleção de líderes (as eleições) intrinsecamente aristocrático, isto é: a formação de um corpo de representantes que não se assemelha ao
corpo dos representados. Mais uma vez, a noção de desigualdade intrínseca à conse-
quente inidentidade da representação mostra a distância entre o corpo de representantes e o corpo de representados.
Segundo Held (1996), “a expressão democracia representativa incorpora a ideia
de legitimação da ação política, cimentada por um conjunto de princípios mais ou menos consensuais, mas que são objeto de práticas muito diferenciadas” (H
, 1996, p.
10). Já para autores como Manin (1996) e Balão (2001), a democracia representativa
permanece naquilo que foi desde a sua fundação: um governo de elites distintas do
conjunto dos cidadãos, ou seja, assistimos à substituição de elites em novos modelos
de governo. Mas assiste-se, igualmente (e esse é um dos aspectos mais curiosos e in-
teressantes da representação política, e sobretudo naquilo que se refere ao processo
de eleição dos representantes do indivíduo, das massas a serem governadas) à con-
tinuidade da elite governante quer nessa posição quer no desempenho das funções
inerentes, mesmo em Governos distintos (B
, 1993; D
, 2009).
Parece-nos evidente que a teoria da democracia representativa procura, acima
de tudo, suprir uma “falha” que, na realidade, nada tem de estranho ou de extraordi-
nário: a diferença. Com a criação da igura do representante (e do colégio de representantes), assim como do consequente processo de eleição, entendido como um pro-
cesso politicamente vital para a escolha de representantes, cada um dos detentores
do direito de exercício de voto passou a ser chamado a participar – desempenhando
um papel determinante e, ao pronunciar-se elegendo, alimenta-se da (e alimenta a)
ilusão de que existe igualdade, assumida na percepção fácil e simplista de que o peso
do seu voto é igual ao de tantos outros. Mas, esquece-se de que toda esta edi icação
é extremamente complexa e dependente de so isticados mecanismos de “checks and
balances” para os quais, já no século XIX, Moisei Ostrogorski chamava a atenção.
Deste modo, o que se veri ica é que a igualdade (tal como a liberdade e a frater-
nidade) – e apesar do nosso maior ou menor descontentamento – continua a fazer
parte do discurso utópico, dos mundos ideais e dos modelos ideais de que nos falava
Max Weber (W
, 1973).
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Teoria Elitista Clássica, Democracia Elitista e o papel das Eleições
O fato é que, naturalmente, não há igualdade entre as pessoas. Com início nas
condições de nascimento, nas próprias características ísicas, nas condições de propriedade, nos efeitos diversos provocados pelos mesmos estímulos, entre muitos
outros exemplos que poderão ser equacionados. Assim, poder-se-á concluir, sem
grandes margens para dúvidas, que a diferença é o fator de maior constância que é
passível de ser encontrado nas sociedades.
Vilfredo Pareto, Moisei Ostrogorski, Gaetano Mosca e Robert Michels são au-
tores que apresentam uma visão elitista da democracia na medida em que “compar-
tilhavam o diagnóstico de que toda forma política produz distinção entre minorias
dirigentes e maiorias dirigidas” (H
, 2011, p. 5), evidenciando, no campo da
política, as consequências diretas da desigualdade natural.
Assim, ao longo das suas obras, o povo é visto como uma massa amorfa e a
democracia constitui-se numa forma de governo no seio da qual as decisões, apenas aparentemente, são tomadas pelo povo (maioria). No entanto, como veremos na
próxima seção, para esses clássicos autores da teoria elitista, todo o processo – quer
de “decision making” quer, sobretudo, de “decision taking” - é, apenas e tão só, uma
forma de garantir o poder das elites. Quem governa de fato é uma minoria de representantes que, em Pareto e Mosca, é denominada “classe dirigente”; em Ostrogorski,
é designada “políticos pro issionais” e “classe política dirigente”; enquanto em Michels, ela é apenas, e tão somente, uma oligarquia.
Teoria Elitista: As clássicas deϐinições por Mosca, Pareto, Ostrogosrki e Michels
Ainda que distanciados em alguns aspectos particulares em suas análises, Mos-
ca, Pareto e Michels, mostram características importantes a respeito da problemática central: o contexto político, social e intelectual da virada do século XIX. Ainda
que com nuances e focos distintos, ambos autores estão preocupados com questões
ligadas à igualdade, à democracia, ao papel e ao lugar das massas e dos líderes na
representação política.
Para Mosca, toda a sociedade humana “minimamente civilizada” se divide
em duas classes: (I) a classe política dirigente, ou classe dos governantes, uma
minoria que dirige o Estado e monopoliza o poder político, e (II) a classe dos go-
vernados, a maioria que é dirigida pela classe dos governantes. Todo o organismo
político possui um dirigente (classe dirigente) e até mesmo na sociedade feudal e
na Idade Média podemos observar a centralização dos poderes nas mãos de um
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Felipe Brasil
soberano; mais adiante, em um sistema burocrático, vemos que um poder central
dita as diretrizes dos demais poderes que, por sua vez, são divididos, segundo a
sua natureza.
Para Mosca, o nascimento situa os homens em um universo de conhecimentos, valores
e posturas que os aproxima ou não dos modos de vida da minoria dominante. Entre os
bem e os mal nascidos haveria distâncias signi icativas nas chances de incorporação às
elites (H
, 2011, p. 4-5).
Em função desta re lexão, Mosca identi ica e refuta, simultaneamente, dois ar-
gumentos que identi ica como opositores à sua tese:
Relativamente ao argumento 1, segundo o qual “há sociedades que não têm
uma classe política dirigente propriamente dita. Nessas sociedades, apenas uma pessoa detém o poder supremo, e todas as demais pessoas estão igualmente submetidas
a ela.” (H
, 2011, p. 6). Mosca a irma que, por mais concentrado que seja o
poder supremo em determinada sociedade, nenhum chefe de Estado pode governar
sem o apoio de uma classe política dirigente que garanta o cumprimento de suas
ordens.
Em função do argumento 2, de acordo com o qual “há sociedades que não têm
uma classe política dirigente, pois a direção do Estado é compartilhada pelo conjunto dos cidadãos.” (H
, 2011, p. 6), Mosca a irma que mesmo quando a mas-
sa descontente derruba uma classe política dirigente, outra classe política dirigente
surge no interior da própria massa.
Assim, se de acordo com Mosca existem na sociedade duas classes – uma de
dirigidos e outra de dirigentes -, o que faz então a classe política dirigente (minoria)
dominar a classe dos governados (maioria)? Por que essa dominação ocorre?
Segundo a teoria proposta por Mosca, existem alguns aspectos naturais que
diferenciam as pessoas. Entre essas características, algumas são próprias da classe
dirigente porque têm:
- qualidades que a distinguem da massa e as tornam aptas para dirigir; cons-
ciência de possuir essas qualidades especiais; vontade de dominar; maior facilidade
de organização.
Todas essas qualidades estariam diretamente relacionadas com posições so-
ciais, com privilégios a que somente alguns poderiam ter acesso. Mosca destaca diversas qualidades nas quais se pode basear o domínio da classe política dirigente.
Assim, e segundo Grynszpan (1996):
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Teoria Elitista Clássica, Democracia Elitista e o papel das Eleições
Organizada, coordenada, ela [aquela classe] se impunha a uma maioria atomizada, desarticulada. Além disso, a minoria também se destacava por possuir algum atributo, alguma qualidade altamente valorizada em termos sociais, como: força ísica, valor militar,
a riqueza, o conhecimento religioso, assim como o conhecimento cientí ico aplicável às
questões de interesse público (justiça, guerra, administração pública, obras, saúde) e
também vínculos hereditários com a classe governante (G
, 1996, p. 36-37).
Tratando dessa forma política e enaltecendo os valores da minoria dominante,
sobre a democracia, Mosca acredita ser um erro a irmar que, num regime liberal-de-
mocrático, a classe política dirigente toma suas decisões com base no consentimento
explícito da maioria dos cidadãos. Segundo Mosca (1975), a partir de uma linguagem
“tocquevilleana”, seria um erro a irmar que existe soberania do povo na democracia.
A eleição seria, portanto, uma luta entre partidos diferentes para in luenciar uma
massa amorfa de eleitores, em que, nesta luta, os partidos até procuram se adaptar,
ao menos em aparência, às ideias e sentimentos da maioria dos cidadãos. Mas, na
realidade, os eleitores apenas escolhem a classe política dirigente a que irão se submeter, o partido que os dominará.
Para Mosca, a in luência da massa popular sobre as ações da classe política di-
rigente é um perigo, porque as camadas incultas da população não conhecem as verdadeiras necessidades da sociedade. A irma, ainda, que a estabilidade ou a renovação das classes políticas dirigentes dependem, em última instância, de mudanças nas
qualidades necessárias para exercer a direção política no seio de um determinado
povo. O ritmo da mudança nas qualidades exigidas dos governantes é variado: às ve-
zes, é lento; às vezes, é rápido. O ritmo da renovação das classes políticas dirigentes
acompanha o ritmo desta mudança.
Dessa forma, percebemos que, para Mosca, existe uma fórmula política que
legitima o poder exercido pela classe dominante. Segundo o autor, não existe a
“soberania popular”, o que ocorre é a eleição de uma classe dirigente. Os eleitores, por
sua vez, constituem uma massa amorfa e submissa ao poder da classe dominante;
por não apresentarem aptidão para dirigir, tampouco apresentam para reconhecer
as necessidades apresentadas pela sociedade.
Vilfredo Pareto, assim como Mosca, a irma a forma heterogênea da sociedade
humana, seja por aspectos ísicos ou intelectuais. Por outro lado, admite que “a ideia
subjetiva da igualdade dos homens é um fator de grande importância e que atua poderosamente para determinar as mudanças que a sociedade sofre” (§102, p. 71).
A teoria de Pareto diz que toda sociedade humana é governada por uma elite,
um pequeno número de homens, mesmo em sociedades aparentemente democráti-
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cas, onde se diz que o povo (ou a maioria do povo) governa. As elites governantes das
sociedades se renovam continuamente, caracterizando, assim, a lei da circulação das
elites: a marca que diferencia a teoria de Pareto dos outros clássicos. Segundo ele, a
principal diferença que existe entre as sociedades é o ritmo da circulação das elites
governantes. Haveria, assim, em todas as áreas de ação humana, indivíduos que se
destacam dos demais por seus dons, e suas qualidades superiores. “Eles compõem
uma minoria distinta do restante da população – uma elite.” (P
apud G
-
, 1996, p. 36). A história das sociedades humanas é, em grande parte, a história
da sucessão das elites governantes.
A aristocracia, composta pelos melhores em determinadas áreas (setor econô-
mico, líderes religiosos, pensadores, acadêmicos), é a base da teoria paretiana. Fator
determinante desta aristocracia é sua circulação, sua mutação. As elites, as pessoas
e grupos que formam essa classe aristocrática não são eternas e precisam ser substituídas ao longo do tempo. A substituição desses grupos é a base da circulação das
elites e daria “equilíbrio e longevidade” ao corpo social. (P
1996, p. 1304-5).
apud G
,
Assim, ica claro que, para Pareto, existe uma desigualdade natural entre as pes-
soas – geradora de líderes – que têm melhor desempenho em determinadas funções.
Por ser algo natural, esse destaque formaria de tempos em tempos uma classe mais
apta, naturalmente melhor para tomar decisões da vida pública, a irmando ainda ser
impossível ir contra o fator natural de uma elite, minoritária e formada por excelência e superior a qualquer tipo de regime.
Para esclarecer a forma como ocorre esse luxo de sucessão de elites, que pro-
porciona seu equilíbrio, longevidade e manutenção, Pareto divide a sociedade em
uma elite (aristocrática, denominada A), governante das sociedades; uma parte vul-
gar (parte B) e uma parte C que ora participa da classe A e ora da classe B. Até mesmo
na classe dominante, existem divisões e podemos dividir as classes A e B, de inidas
por Pareto, em Aα (a parte da elite que tem “força e energia” para defender sua dominação), Aβ (a parte “humanitária” e “degenerada” da elite), Bα (indivíduos da parte
dominada que estão dispostos a lutar para tomar o poder e indivíduos oriundos da
parte A que, “por cupidez e ambição, traem sua própria classe e se colocam entre os
adversários”) (P
apud G
, 1996, p. 38) e Bβ (indivíduos que compõem
a “massa vulgar que constitui a maior parte da sociedade humana”) (P
G
Apud
, 1996, p. 36). A luta fundamental na sociedade discutida por Pareto é
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Teoria Elitista Clássica, Democracia Elitista e o papel das Eleições
a luta dos Bα para tomar o lugar dos Aα. O resultado é que a luta encarniçada pelo
poder dos Bα contra os Aα aparece como uma luta de conquista pela classe C que ora
se coloca do lado de A (dominantes), ora se coloca do lado de B (dominados) “pela
liberdade, justiça, direito, igualdade e outras coisas semelhantes: e é essa forma que
a história registra”. Quando B conquista o apoio de C, ocorre a alternância do poder.
Nesse momento, esse grupo se torna o dominante (A), o que pode ser chamado de
circulação das elites. (G
, 1996).
Alguns anos depois, e focado na estrutura interna do Partido Social-Democrata
alemão, Michels retrata os princípios anteriormente trabalhados por Mosca e Pareto,
destacando-os internamente a este partido político. De forma concisa, a teoria de Mi-
chels aponta para fatores técnicos, intelectuais, estratégicos e psicológicos atuando
no interior de organizações, o que faz emergir uma minoria dirigente.
Para este autor, o chamado self-government das massas, que se baseia em de-
cisões deliberadas em assembleias é, sem dúvida, uma forma de organização mais
participativa, mas não impede a formação de um governo oligárquico. A teoria de Michels supõe que a organização da população, na verdade, criaria uma tendência para
a oligarquia, uma vez que, inevitavelmente, as diferentes habilidades individuais acabam por gerar especializações no trabalho, hierarquias – minorias dirigentes e maiorias dirigidas.
Michels enaltece que o fator técnico é a principal causa do surgimento da oli-
garquia de chefes no interior das instituições, uma vez que ele se torna tão mais ne-
cessário quanto maior o crescimento da instituição. É esse fator que causaria a divisão e especialização do trabalho com a inalidade de possibilitar a execução das
diversas e complexas tarefas adquiridas por uma grande instituição. Nesse contexto,
a participação direta passa a ser um problema estrutural e, assim, lança-se mão do
uso da igura do delegado político.
É dessa forma, com o crescimento das organizações; aumento da complexidade
de ações e do número de participantes, que começa o processo de especialização
técnica. Pela delegação, transformam os representantes em políticos pro issionais
capazes de tomar decisões mais quali icadas, sem a necessidade de consulta popu-
lar, caracterizando o processo de oligarquização. Assim, Michels mostra-se bastante
cético com relação à representação, que encara como a aceitação, no máximo, de um
sistema de consulta. Assim, ele de ine a representação como uma oligarquia repousando sobre uma base democrática (O
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, 1970).
107
Felipe Brasil
Segundo Michels, conforme a instituição se organiza, se burocratiza e hierarquiza
suas funções, menos democrática ela se torna. É nesse exato ponto que a representa-
ção passa a ser um problema. O autor aponta para a existência de uma “lei de ferro da
oligarquia” nas organizações humanas; a irma que nenhuma ordem social existe sem
uma minoria dominante, justamente pelo fato de o surgimento dessa classe política ser
intrínseco ao crescimento das organizações criadoras de chefes, que se tornam, pouco
a pouco, mais indispensáveis: seja pela sua superioridade intelectual de conhecimen-
tos técnicos, pela facilidade de organização na tomada de decisões, ainda que de forma
“menos” democrática, ou pelo simples fato de terem a posição de representante e, por
isso, estarem incumbidos de resolver determinados problemas. Ele sugere, portanto,
que a massa anularia o indivíduo e assim, com o indivíduo extinto, o governo não seria
realmente democrático (O
, 1970; B
, 2001). A representação e a dele-
gação, geradora de oligarquias, ocasionariam a “desdemocratização” do sistema.
A acumulação do poder nas mãos de algumas pessoas relativamente pouco numerosas,
tal como se dá no movimento operário, conduz fatalmente a inúmeros abusos. O ‘representante’, com a força de se saber indispensável, transforma-se facilmente de servidor
em senhor do povo. Os chefes que no início eram mandatários de seus subordinados,
acabam por ser os seus mandantes. (M
, 1982 v1, p. 188).
Baseado nisso, Robert Michels lança dúvidas sobre a e iciência dos partidos po-
líticos e denomina a tendência oligárquica das organizações partidárias como “doença oligárquica dos partidos democráticos”. (M
, 1982, v.1, p. 56)
Michels, Pareto e Mosca apresentam pontos comuns em suas concepções quan-
do, através de suas exposições, apontam para o fato de que os governos democráticos
sempre convergem a uma minoria dominante, seja por meio de uma elite dirigente (M
) ou de uma tendência oligárquica das organizações (M
). Também
mostram que, dentro das elites dominantes, existem divisões, nas quais sobressaem
os que apresentam maior aptidão para dirigir (P
). Para todos eles, a maioria
representada não passa de uma massa amorfa submetida ao poder de uma minoria
dirigente.
Nessa perspectiva, a democracia se tornava uma retórica, algo completamente
destituído de vínculos com a realidade social, e que serviria apenas à legitimação do
poder de minorias que mobilizavam seu discurso universalista com vistas a garantir
seu próprio bene ício. Isso signi ica dizer que não haveria nenhuma possibilidade de
se compatibilizar a teoria elitista clássica com a democracia.
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Teoria Elitista Clássica, Democracia Elitista e o papel das Eleições
A partir do momento em que o signi icado de Democracia passa a englobar
determinados ideais absorvidos da teoria elitista clássica, diretamente vinculados
aos princípios da representação política, da inidentidade, e da relação entre minorias
dirigentes e maiorias dominadas, os termos “elites”, “elitismo”, e “teoria elitista” ganham novos signi icados: a Democracia passa a ser compatível com o elitismo, e não
mais descolada ou teoricamente oposta a ele.
Democracia Elitista: Novos signiϐicados aos termos por Schumpeter, Dahl e Downs
Nesse momento de transição, chamar a atenção para a obra A Elite do Poder, de
Wright Mills, se faz necessário para o entendimento do pluralismo e da democracia
elitista. Defensor da tese do monismo elitista, Mills acreditava que as elites, na verda-
de, se convergiam em apenas uma elite, compostas por homens que ocupam posições
estratégicas da estrutura social em que estão atualmente concentrados os instrumentos de poder, a riqueza e celebridade. Ou seja, esse extrato social denominado
elite, refere-se diretamente à “elite do poder” composta por homens que ocupam
lugares em setores-chave, como a economia, o exército e a política.
O elitismo democrático é exatamente a contraposição do monismo das elites.
Ele é pluralista. Ainda que de formas distintas, com focos analíticos distintos, os auto-
res desta linha de pensamento se aproximam ao a irmarem, num primeiro ponto de
conversão, que o apoio popular não seria, necessariamente, compatível com aumen-
to da democracia. Segundo percepções de apoio popular em governos totalitários,
chegaram à conclusão de que sujeitas à in luência de demagogos, as massas, em lugar
de uma garantia, poderiam se constituir em uma ameaça à democracia. A garantia da
estabilidade democrática, na visão da tese elitista democrática, que inibiria os de-
magogos na in luência das massas amorfas reside na igura das minorias dirigentes.
A pergunta que se coloca então é: Como compatibilizar a existência de elites em um
sistema democrático? A inal: o que de fato de ine uma democracia? A resposta a essa
pergunta parece residir no segundo ponto que une os autores do elitismo democrático: o procedimento eleitoral competitivo como de inição mínima de democracia.
Essa discussão está diretamente vinculada ao pensamento schumpeteriano
que, explorando os limites da democracia representativa procedimental propõe uma
de inição mínima capaz de separar o que é do que não é uma democracia.
A teoria schumpeteriana apresenta a democracia como algo restrito à esfera da
política, constituindo-se apenas um arti ício (mínimo, procedimental e competitivo)
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para a eleição de representantes, que fornece as bases para a caracterização do processo de eleição como democrático ou não-democrático, mas não exerce qualquer i-
nalidade educativa. A participação popular dentro desse sistema representativo limita-se ao ato de votar do cidadão, sendo essa a efetiva participação popular existente.
Schumpeter critica a teoria clássica da democracia do século XVIII, refutando
os pressupostos nos quais ela se fundamenta. Assim, a teoria clássica baseia-se na
ideia de que a democracia é um processo pelo qual a vontade de povo é atendida
através da busca pelo bem comum das sociedades. Para que essa doutrina clássica
seja aceita, torna-se necessário que se aceite a existência de um bem comum e, con-
sequentemente, uma vontade comum a todos os indivíduos. Schumpeter refuta essa
ideia, apresentando o argumento de que não existe um bem comum, tampouco uma
vontade comum; visto que as pessoas são diferentes e apresentam, portanto, comportamentos distintos.
Para a teoria clássica as decisões políticas são tomadas de forma a satisfazer a
vontade do povo, mas Schumpeter alerta para o fato de que os cidadãos comuns não
têm preparação para in luenciar essas decisões. Segundo ele: “O cidadão comum quando envolvido na política desce para um nível inferior de rendimento mental”, (S
-
, 1984, p. 319), tornando-se irresponsável, vulnerável a preconceitos e atitudes
irracionais, sendo incapaz de medir as consequências de seus atos, por não apresentar
a familiaridade necessária para tratar de assuntos no âmbito das decisões políticas.
A teoria schumpeteriana derruba esses princípios da teoria clássica e torna a de-
inição de democracia um procedimento não sujeito à subjetividade existente entre
as de inições de “bem” e “vontade comum”. Segundo Schumpeter a “democracia é um
arranjo institucional para a tomada de decisões políticas, no qual o indivíduo adquire o
poder de decidir mediante uma luta competitiva pelos votos do eleitor”. (S
1984, p. 328).
,
Essa de inição é considerada procedimental, competitiva e mínima por apre-
sentar uma forma; admitir que existe uma disputa entre líderes políticos; e focalizar
o essencial. Assim, permite a apresentação da democracia e a realização de comparações entre processos democráticos e não-democráticos.
Robert Dahl (1997) parte do princípio de que Democracia é um “limite teó-
rico” que serve para avaliar o grau em que os sistemas políticos do mundo real se
aproximam deste limite. Pelas palavras do próprio autor: “Como a democracia pode
envolver mais dimensões do que [a competição e a participação] (...) e como nenhum
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Teoria Elitista Clássica, Democracia Elitista e o papel das Eleições
grande sistema do mundo real é plenamente democratizado, pre iro chamar os sistemas mundiais reais (...) de poliarquias”. (D
, 1971, p. 31) A partir deste primeiro
momento de análise dos componentes democráticos, Dahl (1997) irá tratar de dois
aspectos da democracia para analisar o seu avanço ou retrocesso: a universalização
do voto e a possibilidade de contestação política. Estes dois processos não são idênticos, apesar de relativamente simples de serem constatados e observados.
Num primeiro momento, podemos utilizar as obras de Robert Dahl (1997, 2005)
para desfazer o pragmatismo do monismo elaborado por Mills, convergindo-os para a
noção de que há, de fato, uma pluralidade de atores e, consequentemente, de grupos
que buscam disputar o poder, contestá-lo. Em Dahl (1997), a diferença signi icativa
está na disputa, no método decisional, que leva em conta como são formados os grupos
do poder e quem de fato poderá participar das decisões políticas. A preocupação, portanto, reside na multiplicidade de concorrentes, assegurando a disputa plural.
Segundo Valenciano:
Em suma, o elitismo democrático, ou pluralismo de Dahl, defende as eleições, com a
igualdade política assegurada por estas. Todavia, as eleições não garantirão um governo das maiorias, mas sim a acentuação da permanência das minorias no poder – e, em
certos momentos, alguns grupos, ainda assim, icarão de fora do processo de tomada de
decisões. (V
, 2010, p. 50).
Assim, vai icando cada vez mais claro na visão de Dahl que o processo eleitoral,
aqui de inido como o procedimento que caracteriza a democracia, pode não signi icar necessariamente a presença política de todos os cidadãos, limitando-se apenas a
uma pequena parcela de pessoas interessadas e dispostas a tomar parte das grandes
decisões, discussões e ações. Segundo Dahl, essa pequena parcela de cidadãos ativamente participantes da vida política seria denominada de estrato político, e teria
como principal característica a racionalidade das escolhas, a estratégia e senso de
consequência de ações, enquanto a grande maioria denominada de apolítica, seria
marcada por suas escolhas irracionais, diretamente vinculadas a impulsos naturais
de vínculos e lealdades pessoais, emoções, como o hábito e ações “não-questionáveis”. É essa irracionalidade e não compreensão das consequências do campo político e público pela maioria que, na visão dos autores da democracia elitista, poderiam
prejudicar a manutenção e crescimento da Democracia.
Em um quadro concorrencial, característico e necessário para o modelo demo-
crático de escolhas de líderes, segundo Dahl (1997), os integrantes do primeiro grupo,
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através de variados instrumentos de convencimento, buscariam garantir o apoio e o
voto, em eleições limpas, do segundo grupo, seja através de um luxo de recompensas
ou promessas de atuação em determinadas áreas familiares ao segundo grupo.
Na intenção de facilitar a compreensão do porque colocamos Robert Dahl
(1997) como um autor do elitismo democrático, sustentaremos dois pontos importantes: o pluralismo é caracterizado por adotar a crítica elitista Schumpeteriana de
que os ideais democráticos são irreais “pois o eleitorado é mais apático e mal infor-
mado do que os teóricos clássicos supunham e porque o que diferencia a democra-
cia dos outros regimes é que somente na primeira o eleitor pode escolher os seus
dirigentes” (M
, 2010, p. 7). O segundo ponto, explicitado pela avaliação feita
por Macpherson, que, ao procurar construir uma classi icação dos modelos de democracia liberal, caracteriza Dahl como um adepto da democracia de equilíbrio elitista-
-pluralista, dotada de raízes elitistas e de concorrência plural.
É pluralista porque parte da pressuposição de que a sociedade a que se deve ajustar um
sistema político democrático é uma sociedade plural, isto é, uma sociedade consistindo
de indivíduos, cada um dos quais é impelido a muitas direções por seus muitos
interesses, ora associado com um grupo de companheiros, ora com outro. É elitista
naquilo que atribui a principal função no processo político a grupos auto-escolhidos de
dirigentes. É um modelo de equilíbrio no que apresenta o processo democrático como
um sistema que mantém certo equilíbrio entre a procura e a oferta de bens políticos
(M
, 1978, p. 81).
Assim, concluímos que a teoria de Dahl (1997) ainda que rompa de vez com a
ideia de que há apenas uma elite por um lado, também nos dá insumos para concluir
que a democracia pode ser entendida tão somente como um simples mecanismo de
escolhas em que se opta, através do voto em eleições periódicas, entre as elites (no
plural) pré-determinadas que disputam o poder. Compreendido desta forma, o plu-
ralismo de atores interessados na disputa pelo poder funcionaria como “um mercado
de livre concorrência entre as elites, no qual os partidos oferecem diferentes bens e
os eleitores (tal qual consumidores) decidem quais demandas adotar, atingindo um
equilíbrio entre oferta e procura” (V
, 2010, p. 50).
Por im, Dahl assume a tendência à manutenção e à hegemonia de minorias no
poder:
Eleições e competição política não signi icam governo de maiorias em qualquer maneira
signi icativa, mas aumentam imensamente o tamanho, número e variedade das minorias, cujas preferências têm que ser levadas em conta pelos líderes quando fazem opções
de política. Sinto-me inclinado a pensar que é nesta característica das eleições – não o
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Teoria Elitista Clássica, Democracia Elitista e o papel das Eleições
governo de uma minoria, mas de minorias – que temos que procurar algumas das diferenças fundamentais entre ditaduras e democracias (D
, 1989, p. 131).
E é assim que, en im, chegamos ao cerne daquilo que se pode de inir por demo-
cracia elitista: o voto. A inclusão do cidadão no processo eleitoral, ainda que se afaste
do elitismo clássico, faz com que a competição pelo voto aconteça, sendo então de
responsabilidade dos indivíduos avaliar e escolher entre políticas e governantes, ou
seja, escolher a minoria que icará no poder. Mas, por outro lado, esse procedimento
se aproxima do elitismo clássico, uma vez que podemos pensar em momentos em que
não há uma real identi icação com os candidatos ou outros fatores que impossibilitem a escolha entre os melhores políticos e as melhores políticas. Embora façamos
o aprofundamento desse assunto na próxima seção, é importante deixar claro desde
já que, ainda que se fale em sufrágio, no direito de votar e de ser votado, as eleições
regulares ainda que assegurem o direito de eleger, de votar, não podemos assegurar
que ela garanta o mesmo quanto a ser eleito. Fatores como a pré-seleção partidária
– e a forma como essa seleção é feita – determinam aqueles que poderão, de fato, ser
votados sob uma determinada legenda. Além disso, o grande questionamento de An-
thony Downs, ao propor um modelo de análise do processo democrático através de
uma teoria econômica da democracia, baseada em princípios como a racionalidade
dos indivíduos envolvidos no processo eleitoral, leva em consideração desde os fatores que in luenciam a tomada de decisão do eleitorado até o custo para a aquisição de
informação no processo político. Tal perspectiva esclarece uma questão importante
sobre o modelo competitivo e procedimental de democracia, baseado nas eleições
regulares e, portanto, no voto: o voto, que é uma seleção entre initas opções possíveis, também tem um custo. Entendendo o voto como a escolha individual, na qual o
eleitor elenca suas preferências, recolher informações que podem dar sustentação a
essa escolha envolve tempo e ou dinheiro.
Quando os eleitores tomam suas decisões políticas, eles levam em consideração
a máxima utilidade que o seu partido lhe proporcionará, ou seja, o eleitor decide em
quem votar a partir de uma análise dos bene ícios que os partidos lhe podem oferecer,
optando pelo partido que lhe trará mais bene ícios e criando, assim, o que Downs denomina de “diferencial partidário atual”. Um outro ponto de partida utilizado pelo elei-
tor é a análise de desempenho que efetua relativamente ao partido que está no poder:
se a utilidade proporcionada pelo partido atual é boa, opta por manter esse partido no
poder; caso contrário, opta pela oposição; e quando sua análise mostra um resultado
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indiferente, opta pela abstenção. Ainda é preciso, nesse processo decisório, levar em
consideração que alguns eleitores observarão as reais chances de vitória de seu partido e, muitas vezes, elegerão um partido que não é o seu favorito, apenas para evitar que
o partido que ele identi ica como sendo o pior, atinja o poder.
Essas decisões políticas, baseadas na utilidade proporcionada, mostram-se como
uma escolha racional do eleitor. Porém, o campo no qual ocorrem é repleto de infor-
mações imperfeitas – incompletas – capazes de gerar dúvidas no eleitorado envolvido.
É, segundo Downs, essa incerteza nas informações um fator importante e gerador das
lideranças políticas capazes de in luenciar o eleitorado. Essas lideranças podem ser
divididas entre: partidos políticos, compradores de favor e grupos de interesse.
Não apenas na esfera dos líderes encontramos divisões, o eleitorado também
pode ser dividido entre os que têm a certeza de seu voto (agitadores, passivos e neutros), entre os que não têm certeza de seu voto (confusos, passivos e neutros quase-informados) e aqueles que sempre apresentam a mesma decisão (habituais e apáticos).
De acordo com o estudo de Downs, as classes mais in luenciáveis pelos líderes
são os confusos, os apáticos, os neutros, os passivos quase-informados e os habituais.
Em função do trabalho das lideranças sobre esses eleitores, o governante passa a
tratar parte do eleitorado com distinção, tratando algumas demandas com maior relevância que as demais, para a conquista de apoio político. Dessa forma, a igualdade
política, preconizada pelo sufrágio universal, é refutada pela incerteza do eleitorado
e pelas consequências das ações dos líderes. Nesse ponto, nos aproximamos novamente da desigualdade política dos elitistas clássicos.
Como percebemos, a lacuna apresentada pela informação incompleta no pro-
cesso político é preenchida pela ação das lideranças políticas sobre os eleitores inluenciáveis; e poderia ser solucionada com a obtenção da informação no universo
da política. Mas, através da análise de Downs, deparamo-nos com outro problema: o
custo da obtenção de informação. Esse seria mais um fator que geraria desigualdade
política, vinda de desigualdade social, de obtenção de informação e da totalidade da
informação. Atores diferentes estão dispostos e capacitados a gastar tempo e dinhei-
ro em proporções distintas para obterem informação. Isso justi icaria também dizer
que, agindo de forma racional, o eleitor opta por obter informações de formas menos
custosas advindas, normalmente, das próprias lideranças políticas e que, por sua vez,
poderá ser verdadeira, porém exposta de forma tendenciosa.
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Conforme apresentado por Downs, recorrendo-se a teoria econômica, encon-
tramos uma justi icativa para a ignorância política, até porque e segundo o autor, “a
verdadeira igualdade política é impossível mesmo nas democracias, desde que (1)
exista a incerteza, (...) e os homens ajam racionalmente” (D
, p. 277).
Do Elitismo Clássico para o Elitismo Democrático: conclusões acerca da
transformação do signiϐicado dos termos
Assim como foi dito no início deste trabalho, o debate aqui travado não é recen-
te, apesar de alguns autores e linhas de pensamento terem perdido espaço ao longo
do tempo. Abordamos, então, na primeira seção, como desdobramento do objetivo
principal de demonstrar a forma como a teoria elitista se transformou até ser inserida no modelo democrático, a diferença política consequente do modelo representati-
vo, designado como “inidentidade”. O entendimento prévio das noções de inidentidade, de diferenças (naturais ou construídas), é visto como imprescindível para o bom
entendimento da concepção de estado democrático, nos dias de hoje. Assim como
é necessário para entender de que forma o elitismo clássico pode ser identi icado
nas noções democráticas. Na segunda seção, trouxemos as ideias e teorias daqueles
que foram consagrados pela literatura como sendo os pais do elitismo clássico. Para
concluir as explorações teóricas, a terceira seção foi elaborada pensando nos autores
que conseguiram compatibilizar a essência mínima da democracia, se distanciando
dos elitistas clássicos, mas ainda assim, apresentando apontamentos e formas de
manutenção de minorias, anteriormente previstas e defendidas pelos clássicos.
Assim, como ponto comum entre os autores clássicos, encontramos o sistema
representativo e a inidentidade como objetos centrais de Gaetano Mosca (1858-1941),
Vilfredo Pareto (1848-1923) e Robert Michels (1876-1936), autores que constituem o
cânone do que se convencionou denominar Teoria das Elites. Apesar das nuances e até
importantes distâncias nas visões políticas desses três pensadores, todos convergem
na “descrição da democracia liberal como regime utópico cuja rotina institucional não
guarda vínculos com sua motivação ideal”. (H
, 2011, p. 6). Nessa perspectiva,
as ideias de (1) soberania popular, (2) igualdade política e (3) sufrágio universal compõem um universo abstrato de discurso, sem sustentação real. Na percepção elitista
destes fundadores, todo exercício da política, alheio às suas justi icativas formais, está
fadado à formação de pequenos grupos que subordinam a maior parte da população.
(B
, 1974).
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De imediato, podemos concluir que o elitismo clássico se perdeu no mundo
contemporâneo enquanto teoria normativa. Entretanto, ainda que num contexto teo-
ricamente oposto, de democracia, com participação e validação popular através do
voto, essa democracia é principalmente caracterizada por seu aspecto procedimental
de eleições regulares e competitivas. O que os autores do elitismo democrático nos
mostram é que o procedimento eleitoral característico de um sistema democrático
está recheado dos princípios elitistas clássicos. Seja pela participação popular restrita à escolha de minorias pré-selecionadas, seja pelo alto custo para obtenção de
informação, ou mesmo pela manutenção da desigualdade política entre os que go-
vernam daqueles que são governados, o que se entendia por elitismo pelos clássicos
deixou de ser antidemocrático e passou a integrar o signi icado mínimo da democracia, sugerindo um elitismo democrático.
Da mesma forma como o termo “elite” se transformou, o mesmo ocorreu com o
termo democracia, e as críticas quanto ao tipo de modelo “democrático versus não-democrático” passaram a debater o tipo e a qualidade da democracia. Isso mostra,
mais uma vez, que a compreensão dos diversos signi icados do termo “elite”, assim
como suas aplicações, estão diretamente ligados à compreensão do signi icante “democracia”, “representação” e “participação popular”.
Nossa discussão se encerra, portanto, em um debate que poderia se estender
por páginas e páginas: os limites do processo eleitoral. As eleições, entendidas como
a ação que de ine uma democracia, também permitem a compreensão de que o papel
dos cidadãos na política é apenas de escolher entre as elites. Vimos em Downs que
o custo para se ter informação é alto; que os partidos e atores governamentais têm
facilidades e mais acessos a informações e que a racionalidade econômica do voto,
pelo seu custo, pode gerar desinteresse político.
A grande discussão que se trava a partir desse ponto é sobre o sistema eleitoral,
o voto e suas consequências. Como visto durante todo esse trabalho, o sistema elei-
toral é o grande divisor de águas entre a teoria elitista clássica e o elitismo democrá-
tico. Enquanto no elitismo clássico, a participação popular não deveria existir, pelos
motivos já apresentados, a introdução do procedimento eleitoral e da participação
popular na legitimação de um representante de ine quando, de fato, há uma democracia. O grande problema teórico é que o mesmo sistema eleitoral que separa as
duas linhas teóricas, também as une: se as eleições são apenas uma forma de escolha
de minorias pré-selecionadas (ou auto-selecionadas), inseridas em partidos políticos
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Teoria Elitista Clássica, Democracia Elitista e o papel das Eleições
organizados de forma tecnocrática, geradora de políticos pro issionais, como alerta
Michels, caracterizadas pelo monopólio de informação, nos perguntamos: a inal, é o
procedimento, a realização de eleições regulares e competitivas, cujo papel dos cidadãos é somente o de escolher entre as opções dadas o que, de fato, caracteriza uma
democracia?
Autores como Poulantzas (1980), Macpherson (1979) e Pateman (1992) defen-
dem a participação popular para além do voto procedimental em eleições regulares.
Mostrando seu descontentamento com o modelo mínimo do elitismo democrático, es-
ses autores levantam uma questão importante: a qualidade da democracia e o envolvimento dos cidadãos não podem se limitar à possibilidade de votar regularmente. A
assimetria e o alto custo das informações poderiam ser solucionados mais facilmente
quando houvesse a possibilidade de vivência da população nas questões políticas. O ca-
ráter pedagógico de enriquecimento da cultura política poderia ultrapassar os limites
previstos por Schumpeter, quando o mesmo a irma que a massa não tem capacidade
mental para tomar decisões responsáveis em assuntos públicos. Aproximá-las, respon-
sabilizá-las e educá-las para assuntos que vão além do ambiente privado romperia com
a participação popular limitadas às eleições do elitismo democrático.
A crítica desses novos autores, da democracia participativa e deliberativa, se
insere no desfecho do nosso trabalho: a forma como os ideais dos elitistas clássicos
mudaram ao longo da história e foram inseridos, ainda que de forma sutil, no sistema
oposto ao que eles defendiam: a Democracia.
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Recebido em fevereiro/2012
Aprovado em novembro/2012
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119
P
E
|A
Vivendo na Bolívia: uma análise do ϐluxo de
estudantes brasileiros para Santa Cruz de La Sierra
Juliana França Varella *
Resumo: O presente artigo aborda o trânsito de estudantes brasileiros oriundos da cidade de Nova
Xavantina (MT) para Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, com vistas a se graduarem em medicina por
universidades particulares bolivianas. Ele resulta de breve inserção em campo, constituída de entrevistas semiestruturadas e observação participante, centrada na descoberta das motivações e projetos
que levaram esses estudantes a se deslocarem para a Bolívia, e também de uma discussão acerca da
inadequação dos termos existentes nos estudos de luxos contemporâneos na Antropologia, especi icamente da categoria “migração”, para descrever e explicar o movimento que pretendo analisar.
Irei compará-lo aos movimentos de migração laboral e estudantil encontrados em estudos de luxos;
farei uso da ótica dos “ritos de passagem” e dos conceitos de projetos e campo de possibilidades para
demonstrar a sua especi icidade; e concluirei com a a irmação da necessidade de se pensar em novos
termos em Antropologia para categorizar esse tipo novo de luxo.
Palavras-chave: Bolívia, estudantes brasileiros, projetos, ritos, luxos contemporâneos.
Introdução
O presente artigo visa analisar brevemente o luxo de estudantes brasileiros
para a Bolívia, com vistas a se graduarem no curso de medicina. Para começar a com-
preender esse movimento, pretendo analisá-lo e descrevê-lo em termos do que a lite-
ratura antropológica tem dito sobre os luxos contemporâneos de pessoas, buscando
aproximações e distanciamentos em relação ao trânsito que me proponho analisar,
para então discutir a pertinência de certas categorias utilizadas pelos estudos de mi-
gração em Antropologia para a compreensão do luxo em questão, preocupando-me
em ressaltar a sua especi icidade.
A partir de entrevistas semiestruturadas e observação participante realizadas
na cidade de Nova Xavantina com alguns desses estudantes em luxo, pude reunir
alguns dados para iniciar a minha investigação. Além disso, busquei informações a
respeito da dimensão desse luxo. Infelizmente, o contato com a embaixada boliviana
em Brasília não foi possível 1.
*
Graduada em Ciências Sociais - U
Infelizmente, após várias tentativas de contato, não consegui ter acesso aos dados fornecidos pela embaixada da
Bolívia no Brasil. Apesar de esses dados não estarem presentes neste trabalho, pretendo explorá-los em minha
monogra ia, para que a dimensão desse luxo se torne mais clara e para que eu possa começar a pensar sobre o
1
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 120-137, 2013
120
Vivendo na Bolívia
O movimento: problemas conceituais
Uma breve pesquisa sobre “estudantes brasileiros na Bolívia” na internet traz
inúmeros resultados, que representam a dimensão que esse luxo vem tomando. Algumas reportagens especulam o número de estudantes brasileiros na Bolívia, que
está, segundo algumas delas, em torno de seis mil; outras relatam os problemas que
eles sofrem no país por conta de discriminações por parte do governo, instabilidades
políticas, di iculdade de validação do diploma e obtenção do CRM no Brasil, entre
outros temas2.
Segundo as pessoas que entrevistei, “tá todo mundo indo”. Pelos relatos que
ouvi, há muitas pessoas de Nova Xavantina que estão optando por estudar medicina
na Bolívia por conta do preço do curso e do custo de vida, que são bem baixos, espe-
cialmente pelo fato da moeda boliviana ser desvalorizada em relação ao real. Outro
fator comumente relatado é a ausência do vestibular ou de qualquer outro tipo de
prova para que a matrícula seja efetuada, o que facilita a entrada dos alunos nessas
universidades.
Ao buscar a bibliogra ia sobre migração, encontrei apenas algumas categorias
que me seriam úteis. Isso porque a inalidade desse tipo de movimento que me proponho analisar é a formação acadêmica e intelectual, em que o estudante tem o apoio
inanceiro da família para morar fora, sem que precise, por exemplo, trabalhar. Outro
fato que a afasta dos estudos de migração laboral é a imagem do país de destino. A
Bolívia, ao contrário da Europa ou dos Estados Unidos, lugares comuns de destino de
migrantes laborais, é vista com maus olhos por muitos estudantes, que veem o país
como atrasado e precário. A Bolívia é, assim, encarada como “última opção”, já que
cursar medicina no Brasil é inviável inanceiramente, bem como passar no vestibular
de uma universidade pública, um sonho distante.
impacto deste movimento para os dois países.
A TV Globo chegou a exibir uma reportagem especial no Fantástico do dia 05 de junho de 2011 acerca de
brasileiros que buscam o curso de medicina no exterior, sobretudo na Bolívia, por conta das mensalidades baratas, mas que acabam por não conseguir exercer a pro issão no Brasil. Além disso, a reportagem tratou das di iculdades econômicas pelas quais passam esses estudantes e entrevistou suas famílias, que estavam muito dispostas
a mandar para o exterior o pouco e suado dinheiro que conseguiam para manterem seus ilhos no curso de medicina. A reportagem pontua ainda a necessidade de se formar mais médicos para trabalhar no Brasil e médicos que
estejam adequadamente preparados. Fonte: <http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM15289247823-BRASILEIROS+SE+FORMAM+EM+MEDICINA+NO+EXTERIOR+MAS+NAO+CONSEGUEM+TRABALHAR+N
O+BRASIL,00.html>. Acesso em 10 de junho de 2011.
2
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 120-137, 2013
121
Juliana França Varella
(S
O que foi encontrado nas bibliogra ias sobre o movimento de estudantes
, 2009; M
, 2006; M
, 2009; G
, 2008; C
, 2008), apesar
de muito mais próximo da realidade que pretendo analisar, também guarda uma
diferença com relação ao meu caso: esses estudos, assim como os de migração laboral,
analisam a mobilidade – nesse caso de estudantes – em direção a países considerados
mais adiantados e desenvolvidos economicamente do que os seus países de origem
e dos quais fazem boa imagem, ao contrário dos estudantes brasileiros que vão para
a Bolívia. Há de se considerar, no entanto, que algumas vezes o Brasil não é o destino
primeiro desejado pelos estudantes africanos, que prefeririam estudar na Europa,
por exemplo, mas que acabam vindo para cá devido a circunstancias às quais estão
expostos, a exemplo da existência de projetos de cooperação entre o Brasil e países
africanos de língua portuguesa, que facilitam esses luxos. Esses acordos exigem que
os estudantes africanos voltem para os seus países, numa ideia de que, tendo obtido
uma boa formação no exterior, podem e devem contribuir para o desenvolvimento
nacional. Tal ideologia, entretanto, não foi identi icada no caso do luxo estudantil
Brasil-Bolívia, que é, inclusive, desencorajado pelo Itamaraty – segundo entrevista
realizada – e fonte de grandes discussões que põem em pauta a di iculdade de avaliar
a formação obtida na Bolívia e a forma pela qual integrar esses pro issionais no
mercado de trabalho brasileiro.
O movimento de estudantes na cidade de Nova Xavantina não é algo recente.
Por sediar um dos campi da Universidade do Estado de Mato Grosso, a cidade recebe
muitos estudantes e, ao mesmo tempo, manda para outras cidades e estados várias
pessoas, que, não satisfeitas com os cursos oferecidos pela UNEMAT em Nova Xavan-
tina, decidem se mudar. Não é novidade, então, que após o término do terceiro ano do
ensino médio, os moradores desta cidade decidam cursar a graduação alhures. O que
chama atenção, no entanto, é esse movimento de estudantes, muitas vezes em gru-
pos, que têm ido para a Bolívia para cursar medicina, que apesar de não ser inédito,
parece ter crescido bastante.
Segundo a mãe de uma das estudantes, a escolha pela Bolívia passa ainda pelo
fato de lá haver menos burocracia que em outros países da América Latina, como
Argentina e Cuba. Já a escolha por Santa Cruz é explicada por sua ilha pelo fato de
lá já possuírem conhecidos, o que facilitou a organização da viagem, instalação no
país, matrícula na universidade e adaptação ao novo país. Apesar da di iculdade conhecida de obter o CRM quando voltam para o Brasil, os pais se mostram con iantes
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122
Vivendo na Bolívia
e dizem conhecer pessoas que já se formaram na Bolívia, que conseguiram validar o
diploma e que estão “bem”. Vê-se, portanto, a importância dos retornados e das redes
sociais para o incentivo e consolidação do luxo, fato que será discutido mais adiante.
Antropologia dos ϐluxos contemporâneos
Até o inal dos anos 50 e início dos anos 60, a Antropologia não dava atenção
ao estudo da migração como outras áreas do conhecimento o faziam. E isso pode ser
explicado pelo fato de a Antropologia à época entender a cultura como algo restrito
a um território, estanque e formada por “unidades homogêneas”. Uma vez que os an-
tropólogos reelaboraram essa noção de cultura, tornou-se possível teorizar sobre a
migração. Então, percebeu-se um movimento da Antropologia em estudar a migração
naquelas áreas que tinham sido, tradicionalmente, os lugares onde os antropólogos
faziam seus trabalhos de campo etnográ icos, a saber, a África, a Oceania e, cada vez
mais, a América Latina e o Caribe. Nesses lugares, os movimentos de pessoas indo
do campo às cidades e, mais tarde, a outros países, em números signi icantes, chamaram a atenção dos antropólogos, cujo interesse pelos migrantes cresceu também
com o aumento dos estudos da Antropologia Urbana e dos estudos dos camponeses.
O foco da Antropologia na cultura, que inclui o estudo da interação entre crenças e
comportamentos, de grupos e de relações sociais, resultou na ênfase que os estudos
de migração passaram a dar aos processos de assimilação e mudança cultural, em
formas de organização social que caracterizam o processo migratório e a comunidade imigrante, e em questões de identidade e etnicidade (B
, 2000).
Tentarei reunir neste artigo, portanto, alguns trabalhos que falam sobre o luxo
de pessoas, dos quais retirarei conceitos e ideias para tentar entender o movimento
dos estudantes brasileiros para a Bolívia.
Os estudos migratórios trazem questões como a preocupação com os motivos
que levam à migração, objetivos que, como têm sido discutido, não são só econômicos, podendo se relacionar a situações de diásporas por motivos religiosos ou – e
principalmente – a um projeto familiar que se constitui num “negócio familiar” (H
-
, 2006), que ao mesmo tempo em que envolve questões econômicas, está muito
atrelado a um projeto coletivo viabilizado e impulsionado pela família e por redes
sociais bem consolidadas em vários pontos do globo. O migrante vai para “fora” para
permitir ascensão social de sua família, ele faz um sacri ício em nome do bene ício da
família, e sofrer faz parte dos discursos comuns. Apesar de esse discurso do sacri ício
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aparecer nas falas dos estudantes brasileiros na Bolívia, aqui a relação se inverte, na
medida em que, mesmo se constituindo de um projeto familiar tanto quanto o dos
migrantes “laborais”, é a família quem se esforça para a manutenção do estudante no
exterior e não o contrário. É ela quem o apoia inanceiramente e moralmente.
Martes (1999), por exemplo, estuda imigrantes brasileiros nos Estados Unidos.
Ela faz um apanhado interessante sobre os variados tipos de explicação que são da-
dos para os fenômenos migratórios. A primeira explicação e talvez a mais conhecida
é a da teoria econômica neoclássica, a push and pull theory, ou teoria da atração e
repulsão, que enfatiza as desigualdades econômicas que existem entre os países, o
que geraria grandes diferenças de incentivos salariais, criando regiões de repulsão
e de atração, gerando certo desequilíbrio entre demanda e oferta. No nível macro, a
migração por essa teoria é explicada pelas desigualdades socioeconômicas entre as
nações e, no micro, por opções individuais. O problema desta teoria é que ela ignora
fatores de ordem social e cultural (M
, 1999, p. 35), como, por exemplo, a im-
portância das redes sociais para originar e sustentar o luxo migratório, o que icou
claro durante essa pesquisa.
Outra abordagem é uma abordagem mais sociológica que inclui, a título de ilus-
tração, os contextos sociais do país de destino e a in luência cultural desses países,
como a grande in luência que o estilo de vida americano tem sobre o resto do mundo,
o que pode ser visto como um importante fator de atração para a migração.
Vale ressaltar que, em meu caso de estudo, considerações econômicas relativas
ao mercado de trabalho e à produção não explicam o movimento, cuja inalidade é
a graduação em medicina. Os estudantes não pretendem trabalhar na Bolívia, todos
a irmaram o desejo de voltar para o Brasil e de aqui exercerem a pro issão. Outro
fator instigante é que a Bolívia não os atrai do ponto de vista do estilo de vida ou cul-
turalmente e, pelo contrário, quase todos demonstram ressalvas ao país. Como a mãe
de uma entrevistada falou: “todos os brasileiros, eles icam lá [na Bolívia], mas é por
necessidade mesmo, sabe?”.
Diferente da abordagem neoclássica, a sociológica leva em conta o papel das
redes sociais. Segundo Martes (1999, p. 44): “ao homem econômico se contrapõe o
homem solidário3 e, ao indivíduo, as redes sociais a que ele pertence”. A abordagem
sociológica parece-me especialmente proveitosa para este trabalho, principalmente
Martes questiona esse pressuposto da solidariedade entre os conterrâneos, uma vez que tomá-la como um dado, e
não algo a ser investigado, pode acabar por ignorar possíveis relações de poder, con lito e competição.
3
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Vivendo na Bolívia
no que diz respeito à centralidade que dá ao papel desempenhado pelas redes sociais, de amizade, de conhecimento ou de relações de parentesco.
Vários autores parecem fazer uso dessa concepção. Segundo diversos estudos, a
facilidade de organização para a viagem, bem como para a adaptação do migrante no
local de destino, depende de uma rede social consolidada e, no caso da migração laboral,
de uma rede social constituída em sua maioria por parentes. A presença de parentes
que deem suporte aos novos migrantes no país de destino con igura-se como fator que
diminui os custos inanceiros e emocionais do processo migratório (H
F
, 2010; F
, 2002; M
, 2006;
, 1999). O critério de aproximação comumente
retratado pelos autores para a constituição de redes sociais no local de destino é o da
origem nacional e/ou étnica comum (M
, 2006; S
, 2009).
Nas falas de estudantes entrevistadas, é possível perceber a relevância da cons-
tituição dessas redes, de conhecer pessoas no local de origem e de casos de “sucesso”
para o incentivo ao luxo:
[...] já, já conhecia [alguém que tinha ido pra Bolívia estudar e depois voltado para o Brasil], o Doutor M., assim não conhecia, eu tinha uma ligação só com ele, ele foi, se formou
lá, e pelo que eu sei, não sei assim direito, ele fez uma prova aqui e passou nessa prova
pra conseguir o CRM, só isso que eu sabia dele. Aí falei ‘ah, então dá certo, então eu vou
arriscar né’ [...].
[...] Aí, o J., da minha sala, sempre quis medicina, aí começou a conversar comigo, eu
quero na área da saúde e ele falou “ah, vamo fazer medicina lá” e eu falei assim “ah, não
sei”. Aí a irmã do L. (a entrevistada que chamo de A.) tava aqui, a A., aí eu fui conversar
com ela [...] e toda vez que a gente ia lá conversar com ela, ele vinha aqui me buscar e
me enchia o saco dizendo “vamo, vamo”, aí eu comecei a gostar da ideia, falei ‘ah, tá’, aí
conversei com meus pais e eles falaram “ah, M., você pode tentar, se não der certo, você
volta”, aí falei “ah tudo bem”, aí eu fui e vi que dava certo. [...] já tinham me falado que o
ensino era bom, o ensino realmente é muito bom, e também por meu amigo ter ido né
ajudou também, porque eu não iria sozinha logo de cara [...].
A migração é comumente vista como um projeto não apenas individual, mas so-
bretudo familiar, na medida em que é a família a entidade que possibilita a ida do mi-
grante. Ela fornece o suporte inanceiro e emocional para que este possa se deslocar e
se manter no exterior. Os estudos sobre migração laboral têm por foco também a ques-
tão da desorganização familiar, ou como outros autores preferem, a reorganização da
família em contextos transnacionais (M
, 2010). Esses autores ressaltam a troca
de papéis que existe no contexto migratório quando, por exemplo, avós viram “mães”
de seus netos, às vezes até mesmo de forma permanente (isto é, mesmo após o retorno
da mãe emigrada, a criança permanece morando com a avó). Os membros se esforçam
para criar sentimentos de pertencimento e de unidade da família transnacional.
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 120-137, 2013
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Juliana França Varella
Entretanto, não é só no local de origem que a questão familiar é abordada. Al-
guns autores falam de criação de parentesco social (relatedness) no local de destino,
num contexto em que casa é confundida com família. Esse parentesco social se cria
pelo convívio efetivo (F
, 2002).
Outro ponto de relevância considerável é o luxo de bens e dinheiro entre ori-
gem e destino como forma de manter laços sociais e “cumprir promessas” (L
,
2010). Os emigrados, apesar de distantes, se fazem presentes na vida dos familiares
que icaram no local de origem, continuando a participar, por exemplo, de decisões
familiares. Pode haver tensão entre desestruturação da família e planos e projetos
familiares. Há uma preocupação em veri icar se há efetivamente manutenção de afe-
tividade à distância e, nesse sentido, saber se há envio de remessas de dinheiro, troca
de presentes e compartilhamento de informações e de que forma isso pode contribuir
para essa investigação acerca da manutenção de laços de afetividade. O contato entre
família e emigrado é também ponto de convergência em muitos estudos, principalmente, no que diz respeito às tecnologias do contato. O uso frequente do telefone e da
internet contribui para o encolhimento das distâncias e, logo, para a maneira como
as relações são mantidas entre eles. Vale dizer que se de um lado essas tecnologias
são importantes por manterem o vínculo afetivo, por outro, elas têm o lado negativo
de propiciar condições para que o que está fora seja mais cobrado pela família, o que
faz com que alguns migrantes se sintam oprimidos e impotentes frente às demandas
familiares (S
;L
-K
;Y
, 2007). Importante ressaltar que na
maior parte dos trabalhos a que tive acesso, a distância aparecia como um problema
maior para as relações familiares no caso da migração laboral.
A partir de minha pesquisa, pude ver que os contatos diários efetuados entre
os estudantes brasileiros na Bolívia e suas famílias no Brasil são su icientes para a
manutenção de uma afetividade e que o tema da desestruturação familiar não faz
para eles muito sentido. Segundo as estudantes com quem conversei, os contatos
que fazem com a família são frequentes, seja por telefone ou internet, os meios mais
utilizados, e não há, segundo elas, nenhum tipo de desestruturação familiar devido
à distância, talvez pelo fato de o papel exercido pelo emigrado ser bem diferente do
papel exercido pelo estudante migrante. Essa inversão de papéis passa também pelo
fato de, ao contrário do que ocorre nos casos de migração laboral, não serem os es-
tudantes os responsáveis pela geração de renda no exterior e posterior envio desse
dinheiro para o sustento da casa no país de origem. Fica patente a discrepância do
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 120-137, 2013
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Vivendo na Bolívia
projeto que de ine a migração – laboral – e aquele que impulsiona a ida do estudante
para o exterior.
De um lado, estudos sobre fenômenos de migração laboral e, de outro, estudos
a respeito do luxo de estudantes, em especial, estudantes africanos. Os dois tipos de
trabalho me foram úteis. No entanto, os estudos sobre o luxo de estudantes me re-
velaram algumas categorias próprias do estudo de mobilidade com ins de estudo, o
que eu creio ser mais coerente com o tipo de fenômeno que pesquiso. A multiplicidade de termos que encontrei para de inir esse tipo de movimento me chamou a aten-
ção: “deslocamento com a inalidade de estudo”; “migração temporária”, “migrante
temporário”, “migrante sazonal”, entre outros. Essa emergência de vários termos vem
reforçar minha suspeita de que se trata sim de um tipo movimento bem diferente
daquele dos estudos de migração.
Ao contrário do que aparece em estudos acerca de migrantes que buscam tra-
balho no exterior (M
, 1999), a competição entre os estudantes em luxo não
aparece como fator desagregador, uma vez que eles não estão competindo no merca-
do de trabalho. No geral, há um nível elevado de solidariedade entre esses estudantes, especialmente entre aqueles que compartilham mesma origem nacional e étnica.
Entre os estudantes, o fenômeno de ajuda mútua está muito presente, há uma relação
de camaradagem entre os conterrâneos, mesmo que desconhecidos.
Os trabalhos acerca dos estudantes africanos a que tive acesso discutem ques-
tões raciais e étnicas, bem como identitárias. A discriminação sofrida por eles nos
locais de destino é ponto de convergência entre vários autores. Além disso, cisões
internas ao grupo dos “estudantes africanos” icam latentes nesses estudos, uma
vez que existem inúmeras diferenças intragrupos que podem não icar aparentes
quando se olha para o grupo sob o rótulo de “africano”. Essas cisões também se
relacionam com todo um jogo de identidades – contrastivas – que é marcado pelo
acionamento de diferentes traços identitários de acordo com as situações, algo que
também ocorre em outros contextos migratórios quando, por exemplo, atores so-
ciais tentam se tornar sujeitos políticos e buscar seus direitos. Dessa forma, um estudante pode ser africano ao se relacionar com brasileiros, e cabo-verdiano ao se
relacionar com africanos de outras origens nacionais. Fala-se também em mudança
da auto-representação dos migrantes, em crises pessoais, de inserção, problemas
identitários, “identidades em trânsito” (C
S
, 2009).
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 120-137, 2013
, 2008; M
, 2009; M
, 2006;
127
Juliana França Varella
Uma noção importante cunhada por autores que falam de migração laboral é
a ideia de que os retornados que conseguem – e devem! – demonstrar, através de
diversos símbolos, seu sucesso (tanto em termos econômicos quanto de status) fun-
cionam como estímulo fundamental para novas migrações e, nesse sentido, ajudam
a construir um verdadeiro luxo migratório em direção à determinada região. Os
“casos de sucesso” funcionam não só para in luenciar outras pessoas a migrarem,
mas os sujeitos considerados triunfantes podem, inclusive, acabarem por se tornar
agenciadores “pro issionais” de viagem, facilitando a ida de mais migrantes (F
,
2010). O retorno é algo desejado, pois é o momento em que se conclui o ciclo, em
que se mostra aos demais o prestígio adquirido. Essa ideia se insere no contexto dos
estudantes brasileiros na medida em que eles retornam para a sociedade de origem
com o diploma de médico, o que lhes confere um status diferenciado em relação às
pessoas de sua sociedade e em relação a uma condição anterior que eles mesmos
possuíam. A partir dessa noção, considero interessante a utilização do conceito de
“rito de passagem”, com suas três fases principais, para especi icar o luxo tratado.
Num primeiro momento, eles se afastam de um tipo de vida ao qual estavam
acostumados: deixam suas casas, terra natal, parentes e amigos, saindo também da
condição de estudante de ensino médio ou pré-vestibular, para a condição de estudante de medicina na Bolívia, estrangeiro e pessoa que mora “sozinha”. Esta série de
rupturas é acompanhada e marcada pela distância espacial entre os dois lugares.
Em seguida, esses estudantes, já distantes de uma condição anterior de vida,
viveriam numa espécie de fase de transição e liminaridade, período de separação da
família (isolamento), em que há a suspensão da estrutura social, os alunos se encon-
tram em um contexto diferente daquele em que se encontravam antes e diferente
também daquele que encontrarão posteriormente, na fase de reagregação, quando
serão médicos, e se agregarão novamente à família e à sociedade de origem, com
outra posição social, superior.
É possível pensar também na ideia que Turner (1974) desenvolve acerca dos
discursos de sofrimento que permeiam a fase de liminaridade. O discurso de “sofrer
faz parte” pode ser encontrado tanto nos estudos acerca dos estudantes africanos no
Brasil quanto nas falas dos estudantes brasileiros que estão na Bolívia. Essas falas,
que se apegam à ideia de que problemas e dores que enfrentam fora do país de ori-
gem “fazem parte”, deixam explícitas algumas das características que Turner associa
à fase da liminaridade num rito de passagem: visão conformista, comportamento
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 120-137, 2013
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Vivendo na Bolívia
passivo e humilde, bem como o conformismo com a suspensão de alguns prazeres,
aceitação de dores e sofrimentos, humilhações. Tudo isso faz parte da destruição de
uma condição anterior para que os “neó itos” se remodelem e possam atingir a fase
posterior. Outra característica dessa fase de transição é a camaradagem entre aque-
les que nela se encontram, como pode ser visto no caso de pessoas que nem se co-
nhecem se ajudarem mutuamente nesse contexto migratório/de luxo. Esse fato nos
leva a pensar no critério de etnicidade e nacionalidade que perpassa as formações
das redes sociais dos migrantes no local de destino.
Tentando fazer o paralelo com a ideia das três fases do rito de passagem, de Van
Gennep (2011) e Turner (1974), pode-se associar a chamada fase de reagregação
com o momento em que esses estudantes voltam para o Brasil, fazem a prova para
obtenção do CRM e se tornam, de fato, médicos (o que pode ainda demandar algum
tempo de experiência em grandes centros, como São Paulo, antes de exercerem a
pro issão na cidade de origem). Nesse ponto, ica visível a característica desse movi-
mento como rito de passagem, uma vez que ele que permite a mudança de posição,
de status desses estudantes na sociedade de origem e frente às suas famílias.
Apesar da solidariedade encontrada entre os migrantes (especialmente na fase
descrita como de liminaridade), alguns autores ressaltam que existem diferentes tipos de migrantes, a exemplo da diferença de escolaridade entre migrantes brasileiros nos EUA ou de origem regional, o que pode gerar clivagens internas ao grupo
brasileiro (F
, 2002; M
, 1999), o que também é válido para o caso dos
estudantes africanos: uns vêm com auxílio de bolsa ou do governo; outros, advindos
de classes sociais mais elevadas no país de origem, conseguem custear eles mesmos
a viagem e permanência no local de destino. Em alguns casos existe o auxílio de ONGs
ou instituições religiosas. Essas clivagens são vistas também no caso dos estudantes
brasileiros na Bolívia. Segundo uma entrevistada, a questão inanceira difere uns estudantes de outros e interfere no tipo de adaptação ao país:
Porque tem muita gente que tá lá que não gosta de lá, entendeu? Odeia lá, mas depende
também, Juliana, eu entendo porque certas pessoas odeiam, pela condição inanceira.
Tem gente que tá lá com muito pouca condição inanceira, com pouco dinheiro demais.
Eu entendo, sabe? Passa di iculdade, o dinheiro lá é pra pagar faculdade, pra morar e
pra andar de micro. E o micro lá é uma coisa tão precária, entendeu? É como se fosse
uma vanzinha assim, sabe? Que você paga um peso e você tem que ir apertado ali com
todo mundo, sorte quando você pega o micro... Tem gente que vai de táxi pra faculdade,
tem gente que tem carro, entendeu? Tudo depende da condição inanceira. Lá não tem
só aluno que, por exemplo, não pode pagar a faculdade, tem muita gente rica lá, mas por
quê? Porque não passou no vestibular no Brasil [...].
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Juliana França Varella
Tema central tanto nas obras de autores que pesquisam migrações laborais
quanto daqueles que falam de estudantes em luxo é a preocupação com os espaços de sociabilidade entre os migrantes, vistos como vitais para a manutenção dos
laços entre eles e entre a sua cultura de origem. Esses espaços podem ser locais de
encontro, como igrejas, ou mesmo festas, organizadas por eles mesmos. São locais
de identi icação entre os migrantes. Para os estudantes brasileiros, a igreja e a uni-
versidade são espaços importantes para a sociabilidade e as festas de aniversários
(em sua maioria de conterrâneos), momentos propícios para o encontro de iguais e
trocas de afetividade.
Um aspecto que tem sido discutido em muitos casos, seja de migração laboral
ou não, é a ideia da mobilidade como um valor positivo. Se deslocar é algo bem visto
em certas sociedades e o luxo pode até mesmo fazer parte de sua estrutura social.
No entanto, há de se considerar para onde se vai e de que forma.
Algumas pesquisas trazem, por vezes, como abordagem, o elemento da memó-
ria, principalmente, quando a intenção é resgatar elementos da cultura de origem e
fazer a comparação do “lá” e do “cá”. As imagens que se tinha do local antes de conhecê-lo são também explorados. A esse respeito, muitos estudos falam da mídia como
importante veículo de informações e de criação de imagens acerca de uma localidade
de destino (S
, 2009). Como uma estudante me relatou, a mídia havia lhe
transmitido uma imagem negativa da Bolívia que foi, em alguns aspectos, apagada
por sua experiência pessoal naquele país:
[...] todas as outras cidades são os “colla”, de descendência indígena, que usa aquelas
saias, entendeu? Sempre quando você vê uma notícia no jornal, vai mostrar aquilo ali,
porque o presidente é “colla” [...].
[...] então quando você vai de carro você vai passar por cidades muito pobres, você vai
ver muita coisa feia [...] só que chegando na cidade e Santa Cruz é uma cidade muito
grande, gostei muito da cidade, falei “nossa, uma cidade bacana, grande e tem muita coisa, nossa, que legal!”. Só que eu tinha uma imagem diferente de uma cidade mais rústica,
mais feia e uma coisa mais tipo um povoado assim, só que não, é uma cidade moderna, é
uma cidade que em questão de cultura e tudo ela tá uns 20 anos atrás, assim em questão
de estrutura, eu falo a estrutura de cidade, ela tá há uns vinte anos atrás. É um estilo
Goiânia, mas mais velha, só que em questão tecnológica ela tá avançada uns dez anos a
mais que o Brasil, entendeu?
Por im, as questões da adaptação do migrante ao local de destino são ampla-
mente discutidas, o que envolve, por exemplo, o domínio da língua, fator que pode
ser determinante para uma plena adaptação do migrante (F
me contou uma estudante:
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 120-137, 2013
, 2002). Como
130
Vivendo na Bolívia
[...] a língua lá é muito diferente, às vezes você não tem noção do que tão falando com
você, é muito di ícil. Juliana, é o seguinte: lá em Santa Cruz, na Bolívia, tem muito brasileiro, muito brasileiro mesmo, então é assim, pra você aprender a língua você tem que
se misturar com eles, você tem que fazer amizade com eles. [...] As meninas, foram umas
meninas, e elas icam muito entre elas, não se misturam com os bolivianos [...].
Os motivos pelos quais as pessoas decidem emigrar são procurados por vários
autores que se valem de diferentes perspectivas. Também são amplamente discuti-
dos os motivos que as fazem retornar. Como dito acima, entende-se a necessidade de
voltar para fechar o ciclo e atestar um aumento de status e uma “melhora de vida”.
É na volta que o migrante tem a oportunidade de mostrar o que conseguiu no tem-
po que esteve fora, e os símbolos do sucesso variam, podendo ser uma casa de três
andares, um casamento pomposo ou vestimentas diferenciadas. E quando se fala de
estudantes, por que a volta pode ser considerada tão importante? A análise feita aci-
ma sob a ótica dos ritos pode nos proporcionar algumas pistas. Além dela, considero
essencial dissertar brevemente sobre a noção de campo de possibilidades e projetos,
uma vez que acredito que o que diferencia o luxo de estudantes daquele de “migran-
tes” é justamente o projeto que está por trás desse movimento. E o projeto é, como
será visto adiante, o que dá sentido às ações e guia a vida dessas pessoas, logo, o que
pode explicar a importância da volta: ela concretiza e inaliza o projeto buscado.
A concepção de projeto e campo de possibilidades, cunhada por Gilberto Velho
(1994) já foi usada para pensar o caso dos estudantes africanos no Brasil (M
,
2006). Velho fala de projeto enquanto uma dimensão mais racional e consciente da
ação, como uma conduta organizada para atingir inalidades especí icas; e do campo
de possibilidades enquanto a dimensão sociocultural, constitutiva de modelos, para-
digmas e mapas, espaço para a formulação e implementação de projetos. A dialética
entre essas duas dimensões constitui os indivíduos através de suas trajetórias existen-
ciais. Velho fala em associar as noções de projetos e campo de possibilidades para evi-
tar ou um individualismo exacerbado ou um determinismo sociocultural. Esses dois
conceitos, juntos, ajudam na análise de trajetórias e biogra ias enquanto expressão de
um quadro sócio-histórico, sem esvaziá-las arbitrariamente de suas peculiaridades e
singularidades. Nesse sentido, pode-se pensar nas trajetórias particulares desses es-
tudantes que estão na Bolívia sem perder de vista que eles estão buscando um projeto
comum de formação acadêmica, que passa pela ida para Santa Cruz de La Sierra e se
encerra na volta, momento em que concluirão esse projeto, que me pareceu central
na vida de muitos deles e mesmo de suas famílias, grandes entusiastas desse plano.
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Juliana França Varella
Como exemplo etnográ ico, Velho fala do projeto da família de Catarina, uma
jovem imigrante nos EUA. Sua família visava melhorar suas condições de vida, por
isso, migrou para os EUA. Esse era um projeto coletivo, da família; no entanto, ele
era vivido de formas diferentes pelos pais da jovem e por ela mesma. O que o autor
pretende com esse exemplo etnográ ico é dizer que, embora possam existir projetos
coletivos e, especialmente no caso de contextos migratórios, eles são muito comuns,
eles são vividos de formas diferentes, de acordo com gênero, geração, status, trajetó-
ria, origem regional. No caso de Catarina, a variável geracional pode vir a trazer des-
continuidade do projeto familiar, na medida em que a jovem vive o projeto de forma
diferente dos seus pais e cria para si um projeto seu, individual, que pode entrar em
con lito com o projeto da família (ou não).
No caso dos estudantes brasileiros na Bolívia, uma breve inserção em campo
me mostrou casos de desentendimentos e formas de compreensão diversi icadas sobre o que se deve esperar da “ida para a Bolívia”, o que se relaciona com os conceitos
cunhados por Velho. Algumas vezes, eram as diferentes atitudes de estudantes frente
a esse luxo que se mostravam con litantes, segundo um entrevistado: “algumas pes-
soas são sérias, outras só querem ‘festar’”. Outras vezes, con litos entre pais e estudantes é que eram o problema, justamente pelo fato de estarem os pais com algumas
expectativas que podem não ter sido satisfeitas pelos estudantes, que vivenciam esse
projeto de ir para a Bolívia de uma forma bem diferente.
Interessante notar que, no caso das migrações laborais, aquele que vai a irma
fazer sacri ícios pela família, ele normalmente poupa grande parte do que ganha no
exterior para mandar para a família no local de origem, para que eles tenham melho-
ria na qualidade de vida. Esse caso exempli ica a ideia de projeto migratório como
projeto familiar. No caso dos estudantes, pode-se pensar até que ponto o aumento
do status e qualidade de vida do estudante proporcionado pelo curso de medicina se
estende à família e pode explicar o investimento dos familiares nesse projeto.
A viabilidade dos projetos vai depender, diz Velho, do jogo e interação com ou-
tros projetos individuais ou coletivos, da natureza e da dinâmica do campo de possibilidades (V
, 1994, p. 47). Vale ressaltar que, assim como as pessoas, os projetos
mudam e também as pessoas mudam através de seus projetos, ao longo do tempo e
de acordo com os contextos. O que pode exempli icar o caso de estudantes que desistem do curso de medicina, apesar de todo o incentivo da família e mesmo possuindo
uma rede social bem consolidada na Bolívia.
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Vivendo na Bolívia
O autor diz ainda que a consistência do projeto depende da memória, que for-
nece a consciência do passado e das circunstâncias do presente, o que permite a
elaboração de projetos (V
, 1994, p. 101). O projeto e a memória se associam e
articulam ao dar signi icado à vida e às ações dos indivíduos, ou seja, à própria identidade. Memória (retrospectiva) e projeto (perspectiva) ordenam e dão signi icado às
trajetórias de vida das pessoas (V
, 1994, p. 102).
O projeto é o instrumento básico de negociação da realidade com outros atores,
indivíduos ou coletivos, ele é meio de comunicação; maneira de expressar e articular
interesses, objetivos, sentimentos, aspirações para o mundo; ele resulta de uma deli-
beração consciente a partir do campo de possibilidades (circunstâncias) em que está
inserido o sujeito, o que implica reconhecer limitações e constrangimentos (V
,
1994, p. 103). O indivíduo pode ter mais de um projeto, mas em geral existe um projeto que é central (ex.: virar médico).
Nesse sentido, pode-se especular em que medida estudar medicina é um projeto
individual e familiar – vivenciado de forma diferente pelo estudante que vive na Bolívia
e pela sua família que ica no Brasil – que está inserido num determinado campo de
possibilidades que inclui ir para a Bolívia e lá cursar a graduação, e como esse projeto
de se tornar médico se articula com o projeto “migratório” de ir para a Bolívia.
Na sociedade moderna em que vivemos, diz Velho, há uma multiplicidade de
motivações e fragmentação sociocultural que produzem necessidade de projetos e
trazem ao mesmo tempo a possibilidade de contradição e con lito. Por isso, o projeto
é dinâmico e é permanentemente reelaborado, reorganizando a memória do ator,
dando novos sentidos e signi icados, provocando com isso repercussões na sua identidade (V
, 1994, p. 104). Para exempli icar esse fato, pode-se analisar o caso de
estudantes brasileiros que depois de certo tempo desistem do curso, a contragosto
de pais, e retornam para o país de origem. Isso com certeza traz con litos para a família e pode mudar a forma do estudante de se auto-representar enquanto sujeito,
dentro e fora da esfera familiar, alterando, assim, sua identidade.
Conclusão
Pude concluir que se por um lado a literatura de migração ajuda a pensar meu
movimento por trazer questões pertinentes ao luxo de pessoas (motivações e incentivo para o luxo, criação de redes sociais, questões familiares, adaptação no país
de destino, etc.), por outro, ela, diferente da breve literatura sobre estudantes em
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 120-137, 2013
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Juliana França Varella
luxo, não desperta questões referentes à motivação do estudo, de possíveis coope-
rações internacionais ou mesmo do impacto que novos pro issionais formados fora
de seus países podem trazer para suas terras natais, a exemplo da ampla discussão
acerca da validação do diploma de médicos formados no exterior, que vem também a
questionar os meios de avaliação da qualidade dos pro issionais formados no Brasil.
Outra diferença é que dentro do tema do luxo de estudantes não cabe abordar, como
o fazem os estudos de migrantes laborais, a esfera do trabalho, da competição e da
ilegalidade no exterior.
Por se tratar de um tipo diferente de movimento – o luxo de estudantes brasilei-
ros para a Bolívia – o termo “migração” parece não contemplar a especi icidade desse
fenômeno, assim como o termo “migrantes” também não aparece nos discursos desses
estudantes em trânsito. Tal fato me leva a crer que há a necessidade de se buscar novas
terminologias e uma nova categoria para inserir esse tipo de fenômeno que parece, por
isso mesmo, distinto daqueles tão discutidos pela literatura antropológica.
O caso dos estudantes brasileiros na Bolívia se mostrou curioso por dois mo-
tivos principais: primeiro, por ser um luxo de estudantes que visam tão somente o
estudo e não competem por emprego no mercado de trabalho boliviano, ao contrário
do que ocorre na maior parte dos trabalhos acerca de migrações, que têm como ina-
lidade a análise de luxos de trabalhadores; e, segundo, porque nos raros e escassos
casos em que os estudos migratórios lidam com o luxo de estudantes e não de tra-
balhadores, esse luxo se dá no sentido sul-norte4 ou em direção a países que essas
pessoas consideram mais desenvolvidos do que os seus países de origem (como no
caso do movimento estudantil África-Brasil5), ao contrário do que se vê no caso do
luxo Brasil-Bolívia (contra luxo?).
O fato em si de se mudar para a Europa ou mesmo para o Brasil já é visto como
algo positivo, ao contrário do que ocorre com os brasileiros na Bolívia. Esse país é
visto por eles como última opção, uma vez que seu próprio país não lhe possibilitou
cursar a graduação desejada. Os estudantes brasileiros na Bolívia costumam ser, inEntendo sul-norte não apenas como referenciais de hemisfério sul e hemisfério norte, mas dentro de um contexto em que se compreendem as diferenças de “desenvolvimento” entre as nações. Neste caso, não me re iro
apenas ao sul como “hemisfério sul” do globo, mas entendo sul dentro de um contexto de “subdesenvolvimento”,
se comparado com a visão que se tem dos países “do norte”, nações tidas como mais “desenvolvidas” e que, por
isso, também abrigariam instituições de ensino mais renomadas internacionalmente.
4
Mesmo o Brasil sendo visto pelos estudantes como uma nação de desenvolvimento intermediário, diferente de
países europeus ou norte-americanos, ele é tido como mais desenvolvido do que os seus países de origem.
5
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Vivendo na Bolívia
clusive, menosprezados a princípio pela decisão de “migrar”. Sair neste caso não é
visto como algo positivo, mas pode até mesmo ser considerado atestado de incompetência: “ele não passou no vestibular” ou “os pais dele não podem pagar uma facul-
dade particular”. Enquanto que para os estudantes africanos, o movimento é extre-
mamente positivo, pois ter a oportunidade de estudar fora e em países considerados
“mais avançados” que os seus países de origem “não é para qualquer um”. Há de se ter
condições econômicas para isso ou passar em seleção competitiva para a obtenção
de bolsas de estudos.
Dessa forma, é preciso questionar, então, por que esses estudantes brasileiros
continuam indo para a Bolívia. Como tentei demonstrar, o estudo de ritos e dos projetos pode auxiliar na compreensão desse questionamento. O fenômeno em questão
pode ser visto pela ótica do rito de passagem, na medida em que proporciona uma
transição, uma mudança de status do estudante quando este volta para a sua sociedade
de origem, status esse que parece ser ampliado e abarcar a sua família, quem possi-
bilitou e incentivou a sua ida à Bolívia. Pode-se entender, então, que esse movimento
não é um projeto individual do estudante brasileiro, mas está inserido num contexto
coletivo, em que ir para a Bolívia foi, dentro do campo de possibilidades em que essas
pessoas se inserem, o projeto traçado pela família para alcançar o objetivo pro issional
de seu (sua) ilho (a), que, apesar de ser coletivo, é vivenciado de formas completamente diferentes pelo ilho que está na Bolívia e pela família que ica no Brasil.
Como já argumentado, os estudos de antropologia dos luxos contemporâne-
os aqui discutidos iluminam a análise do meu caso, mas não são su icientes, dadas
as especi icidades já comentadas do fenômeno. Assim, acredito ser essencial para a
Antropologia repensar essas terminologias e categorias, a im de criar (quem sabe)
algo novo que possa melhor expressar e descrever esse movimento tão singular, que
nesse artigo tentei pensar especialmente a partir dos conceitos de ritual e projeto e
campo de possibilidades.
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Recebido em abril/2012
Aprovado em abril/2013
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 120-137, 2013
137
P
E
|R
SĎēČĊė, André Vitor (2012). Os sentidos do
lulismo: reforma gradual e pacto conservador.
1ª ed. São Paulo, Companhia das Letras.
Bruno Casalotti Camillo Teixeira *
Falar de fatos recentes é sempre algo di ícil, ainda mais quando se trata de ana-
lisar como o presente interliga diversas esferas da sociedade, cuja totalidade é fruto
de divergências e linhas teóricas distintas. Nas Ciências Sociais e, em especial, na
Ciência Política, os pesquisadores têm preferido as teorias de médio alcance. A bus-
ca pela precisão na análise dos dados faz com que os autores afastem-se um pouco
do cruzamento de elementos empíricos de naturezas diferentes, em lugar de optar
por uma leitura mais extensa e polissêmica dos fatos sociais. No livro Os sentidos do
lulismo: reforma gradual e pacto conservador, André Singer foge dessa disposição,
fazendo com que este seja um trabalho para o qual devemos olhar com bastante
atenção. Nele, o autor busca uma interpretação dos oito anos da presidência de Luiz
Inácio Lula da Silva através da síntese entre dados eleitorais e econômicos, mas, não
só, também se provendo de um ângulo muito importante: o de classe. Conforme relatado por ele mesmo em seu posfácio, a adoção desse ângulo se deu após um reen-
contro com o 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Karl Marx, o que teria lhe permitido
dar acepção à in inidade de variáveis sociais com a qual ele estaria se defrontando,
sempre apreendendo a teoria “como re lexão crítica sobre as condições de produção
da totalidade social” (S
, 2012, p. 237).
A obra pode frustrar quem busca nela as linhas de um entusiasmo sistemático
do governo Lula. Singer pretende não perder sua perspectiva teórica crítica, o que
o faz analisar com coerente distanciamento o governo com o qual ele mesmo esteve envolvido como porta-voz e secretário de Imprensa da Presidência da República
entre 2003 e 2007. Desde o primeiro momento, o autor reconhece que o con lito
entre esquerda e direita perdeu centralidade no cenário político nacional. Isso não
signi icaria, no entanto, que estamos vivendo uma conjuntura de despolarização
ideológica: rebatendo teses de que está em curso uma pasteurização dos partidos,
o autor nos propõe a hipótese de que há, na verdade, um sentido de repolarização e
* Graduando em Ciências Sociais - USP.
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 138-145, 2013
138
Resenha: Singer, André Vitor. Os sentidos do lulismo
repolitização dos campos políticos onde, no lugar de “esquerda versus direita”, estaria irmada a oposição entre “pobres versus ricos”.
O primeiro capítulo, Raízes sociais e ideológicas do lulismo, compreende o io
condutor da análise. Nele, está contido o problema central levantado por André Singer: por trás da vitória de Lula nas eleições de 2006, que transformação social está
ocorrendo atualmente no Brasil? Se olharmos somente os índices eleitorais e o nú-
mero inal do resultado, poderíamos achar que nada mudou. A inal, os números da
votação de 2006 são muito próximos dos de 2002, o que levaria a crer que a reelei-
ção de Lula foi rati icada pelo mesmo eleitorado que o elegeu para o seu primeiro
mandato. Mas, se olharmos o eleitorado pelo ângulo de classe e das bases materiais
do voto, a leitura ganha outra dimensão. Houve no pleito de 2006 o que o autor
identi ica como realinhamento eleitoral, que se realizou pelo fato de o lulismo ter
representado em seu governo as expectativas de uma fração de classe, a saber, o subproletariado brasileiro. A adesão em massa do subproletariado ao programa lulista
permitiu que o presidente se reelegesse mesmo após ter perdido o apoio de grande
parte da classe média que o apoiava até 2002.
Para construir sua argumentação, Singer parte de outra obra sua, Esquerda e
direita no eleitorado brasileiro, na qual ele constatou que a base social do PT e de
Lula, antes de 2002, era formada por setores de classe média e estava localizada
majoritariamente nos centros urbanos. Essa era uma realidade política e ideológica
que expressava a esquerda numa sociedade onde os mais pobres se inclinavam para
a direita. Tal quadro só se alteraria quando o governo Lula já estava em curso. Os
principais fatores que induziram a esse processo foram: o programa Bolsa Família e
a transferência de renda, o aumento real do salário mínimo, a estabilização do preço
da cesta básica e a contenção dos preços de produtos de primeira necessidade. Essas
políticas, somadas à expansão do crédito consignado, ativaram o mercado interno
e favoreceram diretamente a qualidade de vida do subproletariado (especialmente
o subproletariado de localidades recônditas do país). Essa foi a primeira redução
signi icativa da pobreza no Brasil desde a implantação do Plano Real e, portanto,
constituiu muito mais do que uma simples “ajuda” aos pobres: sinalizou um real
avanço no sentido de diminuição da desigualdade no país (ainda que tímido e pequeno, dada a realidade brasileira de fosso social).
Mas a questão não se encerra aí. Lula executou um programa de combate à
pobreza por dentro da ordem. Manteve elementos conservadores em sua política
Primeiros Estudos, São Paulo, n. 5, p. 138-145, 2013
139
Bruno Casalotti Camillo Teixeira
econômica de forma a não entrar em choque com o capital e manter a estabilidade
no Brasil. Ao fazer isso, realizou uma combinação sui generis de bandeiras distintas
que pareciam não combinar, confeccionando uma “via ideológica própria” que por
im expressou os desejos mais prementes do subproletariado, a saber: aumento do
poder de consumo sem que, para isso, fosse abalado o equilíbrio econômico do país.
O lulismo, dessa forma, neutralizou o temor muito comum entre os mais pobres de
que sua chegada ao poder poderia signi icar balbúrdia e desordem para o país, conquistando, por im, a con iança de uma fatia numerosa da população na qual antes o
PT tinha di iculdade de penetrar. Foi essa fatia que sustentou a reeleição de Lula em
2006.
No segundo capítulo, Singer procura analisar como o lulismo foi sustentado no
plano político pelo surgimento de uma segunda “alma” no interior do PT, a que ele
denomina Espírito do Anhembi. Se dos eventos que marcaram a fundação do partido registra-se o Espírito de Sion (radicalismo, caráter socialista e anticapitalista das
proposições partidárias, rejeição explícita à aliança com partidos de centro e de direita, ação organizativa e mobilização classista), a partir de 2002, com a publicação
da Carta aos brasileiros, surge o Espírito do Anhembi (abandono da postura antica-
pitalista, preservação do superávit primário para manutenção da estabilidade das
contas públicas, responsabilidade iscal e “sólidos fundamentos macroeconômicos”,
defesa de uma mobilização nacional que envolvesse o pacto entre empresariado e
trabalhadores). Em 2002, portanto, inicia-se a um segundo sistema de “crenças políticas” dentro do PT que se sedimentaria a partir de 2006 por conta do realinhamen-
to eleitoral analisado no primeiro capítulo. O autor observa uma mudança ocorrida
na composição social do partido: a renda média dos iliados abaixou, bem como a
proporção dos que têm escolaridade de nível superior; abaixou também a partici-
pação da região sudeste e da população proveniente dos grandes centros urbanos.
Em compensação, houve um crescimento eleitoral nos âmbitos municipal, estadual
e federal, o que estaria associado a uma elevação da participação das regiões norte e
nordeste no quadro de petistas iliados. Apreende-se disso que o realinhamento elei-
toral expressou não só uma mudança no eleitorado do PT, como também expressou
a integração para dentro do próprio partido de setores em que antes o petismo tinha
di iculdades de inserção.
O Espírito do Anhembi não é um fenômeno temporário, como se aventava quan-
do do lançamento a Carta aos brasileiros. O partido deixou para um segundo plano
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seu vértice anticapitalista, e passou a endossar o discurso corrente de uma sociedade fundada em valores de competição e sucesso (frustrando aqueles que vislumbravam nos compromissos de 2002 apenas uma etapa breve na trajetória petista). O PT,
enquanto “partido dos pobres” defensor de um modelo de “redução de pobreza e
manutenção da ordem”, continuará fazendo prevalecer a sua segunda alma. “O êxito
eleitoral lhes augura dominação prolongada” (S
, 2012, p. 119), assinala Singer.
O que não se pode deixar de observar, no entanto, é que o Espírito do Anhembi não
sufocou de initivamente o Espírito de Sion1. Este sobrevive em espaços como a Fun-
dação Perseu Abramo ou mesmo em alguns ministérios da república (Ministério do
Desenvolvimento Social e o Ministério do Desenvolvimento Agrário), levando para
o centro do Estado brasileiro a compreensão estratégica de que é preciso combater
a pobreza.
Há, portanto, uma unidade contraditória das duas almas divergentes, que se
expressa tanto no âmbito das políticas de Estado quanto nos programas do PT. Ao
concluir o capítulo, André Singer observa que um dos resultados dessa unidade se-
ria a reativação de uma “gramática política” que parecia estar enterrada desde o
golpe de 1964: uma gramática muito presente nas falas de políticos e intelectuais e
em textos jornalísticos e partidários, que valoriza a ideia do nacional-popular como
aval para a unidade de diferentes classes sociais por um objetivo em comum. O que
é curioso observar, nesse ponto, é que essa linguagem foi amplamente combatida
pelo radicalismo do Espírito de Sion, que possuía um forte caráter antipopulista e
anticonciliador.
No terceiro capítulo, André Singer procura entender como o governo Lula,
tendo sustentação de massas a partir do subproletariado e de um PT lulista, teria
assumido uma postura arbitral entre grupos de interesses econômicos opostos. Singer subtrai das coalizões de classe durante o governo Lula a hipótese da arbitragem
política que equilibra diferentes interesses de classe (e de coalizões de classe). A ar-
bitragem refere-se ao contexto de um fenômeno que Gramsci chamou de cesarismo.
Não seria, pois, equivocado dizer que o lulismo teve traços da arbitragem cesarista.
Nele, duas grandes coalizões foram postas na balança: a produtivista (formada pelo
proletariado, setores do campo e da agricultura familiar, e a burguesia industrial na-
No entendimento de Singer não teria havido no PT uma ruptura análoga ao Bad Godesberg do SPD alemão e à
exclusão da Cláusula 4 do Partido Trabalhista britânico. A resolução política do IV Congresso Nacional Extraordinário do PT (realizado em setembro de 2011) rea irma o compromisso histórico do partido com o socialismo
e com um modelo de desenvolvimento alternativo.
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cional2) e a rentista (formada pela classe média tradicional, pelo capital inanceiro, e
por setores do agronegócio).
O subproletariado constitui uma fração de classe que não participa de nenhuma
dessas coalizões, pois possui interesses que se inserem no escopo de ambas. Além do
que, ele não possui programa próprio: sua principal proposição é desaparecer, conquanto as desigualdades diminuam ao longo do tempo. Essa característica dual favo-
receria a arbitragem uma vez que, para se dirigir ao subproletariado, Lula precisou
garantir a combinação de fatores econômicos que em princípio são díspares. Ao fazer
isso, o lulismo procurou não apenas preservar a ordem, mas também garantir à fatia
mais pauperizada de nossa população as condições fundamentais para a ampliação
de seu poder aquisitivo. O efeito econômico disso foi um rápido crescimento na renda de 20 milhões de brasileiros, ou seja, diminuição da “pobreza monetária” de uma
grande parcela da população (ainda que isso não signi icasse uma rápida diminuição
dos imensos índices de desigualdade no país). O efeito político foi o estabelecimento
na agenda nacional do combate à pobreza como pauta prioritária. A isso, Singer entende como o despertar do sonho rooseveltiano no segundo mandato, de forma que
poderíamos fazer um paralelo dessa pauta com o new deal norte-americano e com as
transformações observadas nos EUA a partir da década de 1930. O autor julga que a
busca por esse sonho ainda fará com que o combate à pobreza ocupe o centro do de-
bate político nacional durante bastante tempo (compreende-se, portanto, a hipótese
de que o lulismo é um fenômeno de longo prazo).
Saliente-se que, segundo a interpretação dos dados aponta, a desigualdade no
Brasil cai devagar porque o lulismo permitiu que os ricos também icassem mais
ricos. Mas isso não impediu, no entanto, que num dado momento (especialmente no
segundo mandato) o combate à pobreza fosse colocado como pauta prioritária. Em
verdade, durante o governo Lula, houve mudanças de hierarquia nas prioridades das
políticas, o que aconteceu segundo a margem de manobra disponível em face de cada
conjuntura. Se, no primeiro mandato, houve um pacote de medidas conservadoras
com vistas à estabilização da economia e das contas públicas, sendo esta uma escolha
eminentemente política de não entrar em choque com o capital, no segundo man-
dato, consolidou-se o combate à pobreza como prioridade. A valorização do salário
Mesmo que se possa conferir a esse grupo o caráter de “coalizão”, isso não impediu que, em determinados
momentos do governo, seus diferentes estratos tivessem interesses con litantes, como foi no caso da extinção
da CPMF, que era uma grande reivindicação dos industriais ao mesmo tempo em que constituía interesse dos
trabalhadores que vislumbravam um montante de recursos para a saúde pública.
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mínimo e a geração de postos de trabalho (elemento decisivo no combate à pobre-
za, sendo que só pela transferência de renda não há geração de riqueza) ativaram o
mercado interno por baixo e integraram o subproletariado, o que signi ica que houve
um sentido reformista no segundo mandato. Resta avaliar que tipo de reformismo é
esse, e em que patamar ele coloca o ciclo expansivo do capitalismo brasileiro. É isso
o que Singer faz no quarto capítulo. Nesta parte, ele de ine o lulismo como tendo o
sentido de um “reformismo fraco”. Em contraste com o “reformismo forte”, característico da alma que prevaleceu no PT até 2002, o lulismo teria optado pelo caminho
da reforma gradual, lenta e sem rupturas. O caminho sem rupturas é ambíguo: por
um lado, ele permite a continuidade do projeto político, mas, por outro, ele faz com
que as mudanças sejam muito lentas. Na opinião de Singer, o reformismo fraco não se
opõe ao forte, pois seria, em último juízo, a sua diluição em doses homeopáticas. Lula
pinçou das propostas originais do partido aquilo que não signi icava entrar em cho-
que diretamente com o capital3, mas manteve o rumo geral do reformismo. Para fazer
uma imagem disto, o autor argumenta que a tributação das fortunas do reformismo
forte foi substituída pelo crédito consignado do reformismo fraco: uma medida de-
cididamente mais moderada, mas que em 2010 chegou a representar 60% de todo o
inanciamento pessoal no Brasil.
Se os apontamentos levantados por André Singer se con irmarem, o lulismo
poderá trazer transformações signi icativas na formação social brasileira. Nos últi-
mos anos, falou-se muito do grande número de pessoas que ascenderam à classe C,
o que chegou a ser repercutido por políticos e por jornalistas como sendo a “nova
classe média” brasileira. Matéria de divergências no debate acadêmico, talvez seja
mais apropriado denominar esse setor como “novo proletariado”. Investigar deta-
lhadamente qual é o per il deste setor, que posições ocupam na cadeia produtiva, e
em que medida ele pode representar propriamente uma classe social: eis aí grandes
temas que já estão mobilizando bons estudos e pesquisas nas Ciências Sociais. Al-
gumas pistas estão sendo dadas, e sabe-se que estes são trabalhadores que se dedicam a jornadas extenuantes de trabalho cujas condições são, na maioria das vezes,
precárias. Mas o caminho para mudanças está aberto. Singer nos lembra que “é o
tamanho do exército industrial [de reserva] que garante ao capital a possibilidade de
rebaixar os salários e aumentar a jornada de trabalho” (S
, 2012, p. 208). Isso
Dentre as bandeiras que signi icariam o choque com o capital, estaria a tributação das grandes fortunas, desapropriação de latifúndios, revisão das privatizações, dentre outras.
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signi ica que, se o lulismo obtiver sucesso em levar o subproletariado para dentro do
proletariado, ele produzirá uma mudança estrutural que favorecerá a atuação cole-
tiva dos trabalhadores, dando margem à auto-organização e a uma maior amplitude
às reivindicações do mundo do trabalho. Se a democracia se empobreceu no período de hegemonia neoliberal, com a política deixando de re letir a luta de classes, a
emergência de um novo proletariado poderá colocar novamente no centro do debate
nacional tensões de classe que estavam obscurecidas.
Em tempo: o projeto lulista é, em grande medida, a realização de elementos
importantes da Constituição de 1988. A Assembleia Nacional Constituinte correu na
esteira de mudança e mobilização política que pretendia “refundar” a República bra-
sileira na década de 1980, o que permitiu que pontos importantes de transformação
social fossem alocados em nossa carta magna (vide, por exemplo, o §III do art.3ª e o
§X do art. 23, que colocam o combate à pobreza como princípio do Estado e da União,
e o art. 79 que instituiu o Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza). Porém, as
reformas previstas na Constituição foram paralisadas ao longo da década de 1990
(houve inclusive tentativas de se revogar algumas delas), imprimindo ao período a
marca da contra-reforma. O que se viu a partir do lulismo foi uma retomada do reformismo na agenda política brasileira. A hipótese da arbitragem dá conta de delinear
o signi icado do pacto que permitiu alavancar o “reformismo fraco”, e que não foi
possível de ser estabelecido durante o governo FHC.
Quando Gramsci escreveu sobre a arbitragem e sobre o cesarismo, ele ressaltou
que a força mediadora poderia pender tanto para o lado progressivo quanto para o
lado regressivo. Interpretar se, no binômio reforma versus contra-reforma, prevaleceu a força progressiva ou a força regressiva durante o governo Lula, é matéria pra
muita discussão no interior das ciências humanas. André Singer não deixa de se posi-
cionar a esse respeito, e acredita que as transformações ocorridas entre 2003 e 2010
poderão sim colocar “as contradições brasileiras em um degrau superior àquele que
conteve a história do país até o início do século XXI” (S
, 2012, p. 221). Dessa
forma, o autor se coloca no campo que defende a ideia de que o lulismo poderá dar
margem para que prevaleça a força progressiva no rumo do desenvolvimento brasi-
leiro. Entretanto, mais do que uma “comprovação”, o que Singer busca é um sincero
levantamento de deduções e evidências que apontam para um (porém não único)
caminho possível. A riqueza de informações contida na obra, a clareza teórica do
autor e o espírito crítico com que ele trata das questões analisadas não deixa dúvi-
das: a leitura de Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador se faz
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Resenha: Singer, André Vitor. Os sentidos do lulismo
fundamental tanto para aqueles que buscam lançar um olhar mais crítico aos rumos
tomados pelo governo Lula e pelo PT, quanto para aqueles que pretendem sublinhar
os seus avanços.
Referência
S
, A. V. (2012). Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. 1ª
ed. São Paulo: Companhia das Letras.
Recebido em dezembro/2012
Aprovado em setembro/2013
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