v. 5 Publicação
n. 2 Contínua
Apresentação
A partir deste ano, a Revista ORFEU adota também a modalidade de Publicação
Contínua, ou simplesmente PC, com o objetivo de dar maior visibilidade aos trabalhos
submetidos e facilitar os processos editoriais e de publicações. A visibilidade ocorre pelo
fato de o artigo ser publicado assim que for aprovado. Esse processo acelera a divulgação rápida dos resultados de pesquisas, uma vez que estará disponível em um curto prazo de tempo para leitura e citação. A facilidade editorial justifica-se pela possibilidade
de publicar artigos individuais, sem a necessidade de esperar a composição completa
de um número, eliminando a frequência semestral ou quadrimestral. Dessa forma, os
artigos não possuem paginação convencional e sim um identificador eletrônico.
A previsão da Revista para o ano de 2020 era a publicação de dois números
organizados, principalmente, nas seções Dossiê – com temáticas específicas, e Artigos – com temas diversos. Entretanto, mais de cem trabalhos foram submetidos, o
que resultou em uma nova estruturação. Várias são as razões que podem justificar o
aumento expressivo de submissões: momento atípico que estamos vivendo devido
à pandemia provocada pelo vírus Covid-19; temáticas atrativas para os Dossiês, números 1 e 3; e, ainda, a classificação da Revista como A1 na divulgação preliminar do
Qualis CAPES 2019. Como editores expressamos nossa satisfação em receber tantos
trabalhos de qualidade e agradecemos aos pareceristas que nos acompanham nesta
importante tarefa acadêmica de divulgação científica.
Desejamos a todos uma ótima leitura!
Prof. Dr. Guilherme S. de Barros
Profa. Dra. Teresa Mateiro
Editores da Revista Orfeu
ORFEU, v.5, n.2, 2020
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Sumário
Expediente
Seção artigos demanda contínua
Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
Luciana Hamond
A didática na literatura de técnicas estendidas de produção de som para violino
Lourenço De Nardin Budó
Play along ou play alone?: um estudo sobre presença e interatividade na livre improvisação
musical
Fabio Manzione Ribeiro
Pernambuco “feminina”, Mulher fêmea sim!: a mulher na mazurca do Alto do Moura: culturas,
vivências e músicas
Marília Paula dos Santos
Três gravações de campo na cidade do Rio de Janeiro
Alexandre Sperandéo Fenerich
DIÁLOGOS DESCLASSIFICADOS Música e corpo-arquivo na construção de um saber
inacabado, primeiros passos
Erickinson Bezerra de Lima e Klênio Barros
Propuestas pedagógicas y estéticas de El Sistema: Un estudio de caso del SOJ
Viviana Carolina Jaramillo Alemán
O ensino das artes na educação básica frente aos ordenamentos vigentes
Sonia Regina Albano de Lima
Timelines na Coisa nº 5 de Moacir Santos
Fabio Marinho
Equivalência de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade: Formas de
Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”
Aline Moreira Brandão André, Cristiano Mauro Assis Gomes e Cybelle Maria Veiga Loureiro
ORFEU, v.5, n.2, 2020
P. 2 de 638
JPMB: Qualificação da performance no contexto da educação musical comunitária em cidades
interioranas de Alagoas
Marcos Santos Moreira
Desintegração de vozes, reintegração de posses: apontamentos sobre a polca purahei jahe’o
como narrativa de aspectos sócio-históricos da cultura paraguaia
Miguel Díaz Antar e Yonara Dantas de Oliveira
ADAPTAÇÃO E VALIDAÇÃO SEMÂNTICA DO THINKING STYLES INVENTORY – REVISED II
(TSI-R2) PARA AS LICENCIATURAS EM MÚSICA NO BRASIL
Sérgio Inácio Torres, Graziela Bortz e Katya Luciane de Oliveira
A música sacra no reinado de Leopoldo I (1658-1705)
Caio Amadatsu Griman e Dorotéa Machado Kerr
Seção Estréias
Das mortes nas estações?
Dierson Torres e Marília Santos
ORFEU, v.5, n.2, 2020
P. 3 de 638
Expediente
DEPARTAMENTO DE MÚSICA - DMU
Chefe: Prof. Dr. Hans Brandon Twitchell
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM MÚSICA - PPGMUS
Coordenador: Prof. Dr. Sérgio Paulo Ribeiro de Freitas
CENTRO DE ARTES - CEART
Diretora: Profa. Dra. Maria Cristina da Rosa Fonseca da Silva
UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA - UDESC
Reitor: Prof. Dr. Dilmar Barreta
Editores
Prof. Dr. Guilherme Sauerbronn de Barros
Profa. Dra. Teresa Mateiro
Conselho Editorial
Adriana Lopes Moreira, Universidade de São Paulo (USP)
Alexandra Kertz-Welzel, Ludwig-Maximilians-Universitaet (LMU), Alemanha
Ana Claudia Assis, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
Cristina Capparelli Gerling, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Guillermo Rosabal-Coto, Facultad de Artes, Universidad de Costa Rica
Julie Ballantyne, The Queensland University, Australia
José Luis Aróstegui Plaza, Universidad de Granada, Espanha
Liduino Jose Pitombeira de Oliveira, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
L. Poundie Burstein, CUNY - City University of New York, Estados Unidos
Luis Henrique Fiaminghi, Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
Marcos Tadeu Holler, Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
Maria Bernardete Castelan Póvoas, Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
Patricia Adelaida González Moreno, Universidad Autónoma de Chihuahua, México
Tiago de Oliveira Pinto, Hochschule für Musik Franz Liszt, Weimar / FriedrichSchiller-Universität Jena, Alemanha
Viviane Beineke, Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
CONSELHO CONSULTIVO, V.5, N.2
Alexandre Mascarenhas Espinheira (UFBA)
Ana Claudia Assis (UFMG)
Ana Leticia Zomer (USP)
Bárbara Trelha
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Expediente
Beatriz Ilari (USC, Estados Unidos)
Cíntia Thais Morato (UFU)
Danilo Ramos (UFPR)
Euridiana Silva Souza (UDESC)
Evandro Rodrigues Higa (UFMS)
Fatima Corvisier (USP)
Felipe Castellani (UFPel)
Felipe Mendes Vasconcelos (UFMG)
Fernando Vieira da Cruz (UNICAMP)
Francisco Zmekhol Nascimento de Oliveira (UNIR)
Geni Rosa Duarte (UNIOESTE)
Gleisson Oliveira (UFMG)
Guilherme Bertissolo (UFBA)
Isabel Nogueira (UFRGS)
José Claudio Castanheira (UFSC)
José Davison da Silva Júnior (IFPE)
Késia Decoté (Oxford Brookes University, Inglaterra)
Leonardo Piermartiri (UDESC)
Luciane da Costa Cuervo (UFRGS)
Luciano da Silva Candemil (UFPR)
Maira Ana Kandler (UDESC)
Marina Horta Freire (UFMG)
Mauren Liebich Frey Rodrigues (UFPel)
Michele Mantovani (IFRS)
Pedro Razzante Vaccari (UNESP)
Rafael Luís Garbuio (UFBA)
Rafael Prim Meurer (UDESC)
Rafael Tomazoni Gomes (UNICAMP)
Raphael Ferreira da Silva (UFU)
Renato Cardinali Pedro (UFRGS)
Romy Martínez (Royal Holloway University of London, Inglaterra)
Rosalía Trejo León (UAEH, México)
Rosane Cardoso de Araújo (UFPR)
Sara Carvalho (Universidade de Aveiro, Portugal)
Sergio Luiz Ferreira de Figueiredo (UDESC)
Sílvio Ferraz (USP)
Simone Marques Braga (UEFS)
Tiago Eric Abreu (UFU)
Vânia Müller (UDESC)
Verônica Magalhães Rosário (UFMG)
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Expediente
REVISORA GRAMATICAL
Priscilla Morandi – Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Brasil
EDIÇÃO
Apoio - Setor de Periódicos CEART.UDESC
Produção Gráfica - Laboratório de Design, LABDESIGN CEART.UDESC
Projeto Gráfico - Luiz H. B. Maia e Ana Paula Lordello, 2015
Diagramação - João Wesley e Mariana Frizze
Imagem da Capa - Mariana Frizze
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10.5965/2525530405022020e0001
Onze prelúdios para piano solo de
Edmundo Villani-Côrtes: uma análise
para a compreensão do potencial didático
da obra para o desenvolvimento de
habilidades técnico-interpretativas
Eleven preludes for solo piano by Edmundo Villani-Côrtes:
an analysis to understand the pedagogical potential of
these piano works for the development of technicalinterpretive skills
Luciana Fernandes Hamond1
Escola de Música Baden Powell
Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro (Faetec-RJ)
lucianahamond@gmail.com
Submetido em 08/04/2020
Aprovado em 09/06/2020
ORFEU, v.5, n.2, 2020
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
Resumo
Edmundo Villani-Côrtes (1930) é um
dos compositores brasileiros de maior
destaque da atualidade. Este artigo vem
celebrar os noventa anos de nascimento
do compositor por meio de um recorte da
pesquisa de mestrado realizada há 15 anos.
Dentre o acervo de mais de quatrocentas
obras, encontram-se os onze prelúdios
para piano solo compostos em diferentes
épocas. O objetivo deste artigo foi realizar
uma análise musical das obras seguindo as
ideias de Schmalfeldt (2002) e Kochevitsky
(1967) e identificar o potencial pedagógico dos prelúdios avaliando as habilidades
técnico-interpretativas a serem desenvolvidas de acordo com os parâmetros de
Uszler (1995). Além disso, uma revisão dos
prelúdios foi realizada junto ao compositor.
A pesquisa revelou a importância da obra
como material didático e a sua posição no
repertório de música brasileira para piano.
Abstract
Edmundo Villani-Côrtes (1930) is
one of today’s most prominent Brazilian composers. This article celebrates
his ninetieth birthday through an excerpt
from a research conducted 15 years ago.
Among his over four hundred works, are
the eleven preludes for solo piano composed at different times. The aim of this
paper was to analyse the preludes following the ideas of Schmalfeldt (2002) and
Kochevitsky (1967), and to identify the
pedagogical potential by looking at the
technical-interpretive skills to be developed in each one according to Uszler's
parameters (1995). In addition, a review
of the preludes was carried out with the
composer. This research reveals the importance of Villani-Côrtes’ piano preludes
as pedagogical material and their place in
the Brazilian piano music repertoire.
Keywords: Preludes; Edmundo VilPalavras-chave: Edmundo Villani- lani-Côrtes; Piano Pedagogy; Brazilian
-Côrtes; Prelúdios; Música Contemporâ- Contemporary Music.
nea Brasileira; Pedagogia do Piano.
1
Professora da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Rio de Janeiro (Faetec-RJ), Brasil. Doutora pelo Institute of Education-UCL, Univer¬sity College London (Reino Unido), com Bolsa Doutorado Pleno no Exterior pela Capes. Realizou pós-doutorado na Universidade do Estado de
Santa Catarina (Udesc), Brasil.
Luciana Fernandes Hamond
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
Como tudo começou
O meu primeiro contato com a obra de Edmundo Villani-Côrtes ocorreu em 2001
no Rio de Janeiro, quando eu tinha ensaios regulares com a violinista Angélica Alves e a
violoncelista Cláudia Grosso, e escolhíamos uma peça do repertório de música brasileira
para a formação instrumental específica de trio para piano e cordas. A obra escolhida foi
Cinco miniaturas brasileiras (1978), de Villani-Côrtes, a mais conhecida e tocada do compositor. Esta obra me encantou de imediato e me fez entrar em contato com o compositor numa época em que eu buscava escrever um projeto de mestrado. O projeto inicial
era realizar um estudo comparativo entre as várias versões das Cinco miniaturas brasileiras de formação instrumental com piano, incluindo a versão original composta para
flauta doce e piano. Atualmente há em torno de 15 versões desta obra, inclusive uma
transcrição para piano solo. No entanto, no decorrer do curso, o colega Wendell Kettle,
então aluno de Villani-Côrtes em São Paulo, entregou-me, a pedido do compositor, o
seu álbum dos Dez prelúdios e cinco interlúdios para piano solo, editado por Ulisses de
Castro pela Estúdio Dois Produções Culturais. Foi quando mudei o objeto de estudo do
meu projeto de mestrado: os prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes.
Após a defesa do mestrado, os prelúdios e interlúdios, juntamente com as canções para piano solo, foram registrados em CD entre 2007 e 2008 no estúdio DRUM,
em Laranjeiras, no Rio de Janeiro (RJ), com o engenheiro de som Alexandre Hang. Uma
entrevista com Jose Schiller antecedendo o lançamento do CD foi concedida ao programa A grande música, sendo exibido pela Rede Brasil – antiga TVE – em 2009. O CD
intitulado Luciana Hamond interpreta Edmundo Villani-Côrtes: prelúdios, interlúdios e
canções para piano solo foi lançado em 2010 na ocasião de comemoração dos 80 anos
no Centro Cultural São Paulo (SP) e no Centro de Integração Empresa-Escola (SP) em
julho de 2010. No Rio de Janeiro, os lançamentos aconteceram na Livraria da Travessa
(RJ), em maio de 2010, e no Theatro Municipal de Niterói, em julho de 2010.2 Todos os
eventos contaram com a ilustre presença do compositor.
Em setembro de 2018, a convite de Thais Nicolau, ministrei um recital-palestra:
Prelúdios e interlúdios de Edmundo Villani-Côrtes, como parte do II Festival de Música
Contemporânea Brasileira Edino Krieger, realizado no auditório do Departamento de
Música da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), em Florianópolis (SC). A
receptividade e o interesse do público presente nesse recital-palestra me encorajaram a
preparar este artigo, baseado na minha dissertação de mestrado (HAMOND, 2005), com
atualizações de trabalhos acadêmicos subsequentes.
Em 2020, o compositor Edmundo Villani-Côrtes (1930) completa seus 90 anos.
Em homenagem ao compositor, pretendo, por meio deste artigo, encorajar pianistas,
professores e alunos de piano a conhecerem esse repertório pianístico que oferece um
potencial pedagógico relevante na área de aprendizagem e ensino do piano de nível
2
O concerto realizado no Theatro Municipal de Niterói (RJ) foi filmado integralmente pela Rede Brasil e exibido para audiência nacional e
está disponível no canal do YouTube da autora: https://www.youtube.com/user/lucianahamond/featured.
Luciana Fernandes Hamond
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
intermediário, além de conhecerem a linguagem única do compositor que transita com
excelência entre as músicas popular e erudita com seu estilo musical particular.
O potencial musical e pedagógico do repertório brasileiro para o ensino do piano
de tem sido investigado por vários autores através de características composicionais,
aspectos técnicos e didáticos, e avaliação do grau de dificuldade dessas obras (GANDELMAN; COHEN, 2006; GANDELMAN, 1997; BARANCOSKI, 2004; HARTMAN, 2017).
No entanto, ainda há necessidade tanto da divulgação da literatura pianística por compositores brasileiros quanto da investigação sistemática de seus potenciais pedagógicos no ensino de piano.
O presente estudo tem como objetivo identificar e compreender o potencial didático dos onze prelúdios para piano de Edmundo Villani-Côrtes, incluindo o Prelúdio
Nº 9 (1956) ao álbum Dez prelúdios e cinco interlúdios (2000), através de uma análise
musical dessas peças (KOCHEVITSKY, 1967; SCHMALFELDT, 2002) e avaliação das habilidades técnico-interpretativas (USZLER, 1995). Neste artigo, o potencial didático envolve as habilidades técnicas e interpretativas possíveis de serem desenvolvidas a partir do
estudo de uma obra. Desta forma, este artigo visa também contribuir para a divulgação
da obra para o ensino e aprendizagem de piano.
Sobre Edmundo Villani-Côrtes
Edmundo Villani-Côrtes (1930) é um dos compositores brasileiros de maior destaque da atualidade. Compositor, maestro, pianista e arranjador, Villani-Côrtes tem
sido requisitado por muitos músicos, produtores musicais e acadêmicos, obtendo reconhecimento no Brasil e no exterior. Vários músicos pesquisadores escreveram dissertações de mestrado (FREITAS, 2012; HAMOND, 2005; NETO, 2010; SANTOS, 2014;
ZANON, 2005), teses de doutorado (ARAUJO FILHO, 2011; GIARDINI, 2013; NICOLAU,
2013; CARVALHO, 2016; MACHADO, 2017; RODRIGUES, 2014) e de pós-doutorado (BARONI, 2004), além de outras publicações, como artigos e entrevistas (MATOS, 2006;
SANT’ANNA, 2006; SOBREIRO, 2016) para uma compreensão melhor de sua vida, seu
estilo musical e suas obras. A formação musical de Villani-Côrtes é singular, visto suas
experiências e vivências entre a música clássica e a música popular.
Nascido em Juiz de Fora (MG) em 8 de novembro de 1930, iniciou seus estudos
musicais como autodidata com influências de seu pai, músico amador, flautista, e de
seu irmão, ao violão, enquanto os observava em serestas. Aprendeu a tocar cavaquinho
de ouvido, imitando os outros ao violão. Suas influências musicais vieram das programações de rádio e dos filmes musicais de uma época em que eram revividas as obras de
Chopin, Liszt, Mozart, Puccini, Gershwin, dentre outros (LIMA, 1999). Tentava reproduzir
no violão as músicas que ouvia no rádio, mas, quando essas tornaram-se difíceis, como
por exemplo obras orquestrais, sentiu necessidade de iniciar seus estudos de piano.
Em 1969, Villani-Côrtes escreve a obra Sonata para violoncelo e piano,3 que foi
o divisor de águas na sua carreira: “Foi uma espécie de libertação” (VILLANI-CÔRTES,
3
Mais tarde, essa sonata transformou-se no Concerto para violoncelo e orquestra (1976) e em 1996 ganhou uma versão para violoncelo
de orquestra de câmara (VILLANI-CÔRTES, 2004a).
Luciana Fernandes Hamond
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
2004a). O autor relembra suas impressões ao compor a peça: “Essa sonata eu quero
escrever da seguinte maneira: se um dia chegar numa sala de concerto e tiver um violoncelo e um piano tocando, que som que eu quero ouvir? Que música eu queria ouvir?”
(VILLANI-CÔRTES, 2004a). E compôs sem aceitar interferências.
O grito de liberdade do compositor é retratado no modo único de trilhar seu próprio caminho, usando até mesmo uma linguagem musical que, por diversas vezes, já
foi utilizada por outros compositores. Certa vez, um aluno de composição comentou
que estava lendo o romance Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe (17491832). Villani-Côrtes se apropria da ideia do autor e comenta que uma passagem desta
obra reflete justamente o seu pensamento:
Mais uma vez eu vou passar pelo mesmo caminho que eu mesmo já passei várias
vezes. Caminho esse que já foi trilhado por muitas outras pessoas também, e
que já passaram por esse mesmo caminho também. Mas eu vou passar por esse
caminho como se fosse a primeira vez, de uma maneira tão autêntica que não é
semelhante a nenhuma dessas outras. (VILLANI-CÔRTES, 2004a).
As implicações musicais deste trecho são assim interpretadas por Villani:
Se o caminho que você tem que seguir e que você escolheu, se o acorde que
você escolheu é aquele, não interessa se foi tocado milhões de vezes. Aquele
acorde, colocado naquela hora, foi colocado de maneira única e original, e foi
colocado por você no momento que você achou que aquele acorde era o melhor. (VILLANI-CÔRTES, 2004a).
A obra de Villani-Côrtes reúne mais de 700 obras escritas, incluindo obras originais
e versões transcritas pelo próprio compositor de suas obras para diversas formações
instrumentais, como óperas, concertos, música de câmara, peças para canto e piano,
vários duos, trios, quartetos. Dedicando-se à individualidade de cada instrumento, praticamente compôs para todos os instrumentos e piano solo. Possui mais de 40 CDs
gravados em países como Japão, França, Inglaterra, Itália, Estados Unidos e Brasil. Sua
obra mais conhecida, as Cinco miniaturas brasileiras, possui versões para várias formações instrumentais, para orquestra, para trio violino, violoncelo e piano, e duos. É muito
comum acontecer de o autor transcrever algumas de suas obras para a formação instrumental por encomenda de músicos.
Edmundo Villani-Côrtes reside em São Paulo com a família desde a década de
1960. Sua esposa Efigênia é cantora lírica. Edmundo e Efigênia têm três filhos: a contrabaixista Gê Côrtes, a artista plástica Maitê Villani e o saxofonista, compositor e produtor
musical Ed Côrtes. São sete netos, dentre eles João Côrtes, que é ator, cantor, pianista
e baterista, e dois bisnetos de sua neta Carolina. Muitas de suas obras refletem temas
de seu cotidiano, como Borulóides, que foi uma obra composta baseada em lendas
infantis que ele mesmo criou para brincar com seus filhos. Seus filhos, netos, neta e bisnetos ganharam composições com seus nomes, como, por exemplo: O orelha (1983) e
Balada dos 15 minutos (1993) para seu filho produtor musical e saxofonista Ed Côrtes;
Rue Ramponeau (2007), Ânfora (2011) e Beiráceas (1978) para sua filha artista plástica
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
Maitê; Praeludius Onnibus (1979), Choron (1981), Concerto para contrabaixo e orquestra (1996-2001), dedicado à sua filha contrabaixista Gê Côrtes. Várias obras foram compostas homenageando o nascimento de seus netos: o Choro do João (1995); O Gabriel
chegou (1997); a Sonata Nº 1 (1994), dedicada aos netos gêmeos Renato e Giovanni;
Canção de Carolina (1990); Francisco no choro (2006); Acalanto (2013), dedicada ao
neto Guilherme; e Salve Salve Daniel (2012) e o Choro do Gugu (2017), dedicada aos
seus bisnetos, filhos de sua neta Carolina. A canção Você (1958) foi dedicada à sua esposa Efigênia.
Obra para piano solo
A produção de Villani-Côrtes para piano solo (vide Anexo)4 abrange uma variada
gama de gêneros, correspondendo a cerca de um quarto da produção musical total do
compositor. O compositor utiliza gêneros tradicionais, como o prelúdio, o estudo, a
suíte, o tema com variações, a sonata, a sonatina, a tocata, o adágio e o interlúdio, além
de gêneros musicais brasileiros, como o choro, a toada, a canção, a cantiga de ninar, e
do gênero jazz, como o boogie e a balada.
As peças para piano foram compostas em diferentes épocas e englobam peças
originalmente compostas para piano solo e as versões de obras compostas para outras
formações transcritas para piano solo, pelo próprio compositor. Dentre as peças escritas
para piano estão os oito prelúdios (1949-1956), suas primeiras composições. Dentre as
versões transcritas para piano estão as Cinco miniaturas brasileiras (1978), original para
flauta doce e piano (1978). Algumas canções também foram transcritas pelo compositor, que as reuniu num álbum intitulado Canções para piano solo: Papagaio azul (1966),
Valsinha de roda (1979), Canção de Carolina (1990), Alma da natureza (1991), Casulo
(1991), Rua Aurora (1993), Balada dos 15 minutos (1993) e Choro das madrugas (1999).
A produção para piano solo inclui outros títulos que nos remetem à música popular, principalmente de influência jazzística, como é o caso de Pedrinho’s boogie (1994),
feita especialmente para a gravação do CD de seu amigo pianista Pedrinho Mattar.
O choro é um gênero muito presente na sua produção musical para piano solo,
aparecendo num dos quatro movimentos da Série Brasileira opus 8 (1957) - Prelúdio,
Dança, Movimento em 3/4, Chôro em forma de rondó. Villani-Côrtes também compôs
dez choros e os reuniu no Álbum de chôros para piano solo5 (1999): Os chorões da
Paulicéia, O orelha, Chôro do João, O Gabriel chegou, Chôro urbano, Chôro miniatura,
Chôro das madrugas, Chôro patético, Canhoto também tem vez e Pretensioso.
As experimentações de efeitos sonoros e formas incomuns de tocar, incluindo o
uso do antebraço ou até mesmo da testa, são encontradas em Timbres Nº 1 e Nº 2
(1977), compostas durante o período em que estudou com Koellreutter. Ao tocar os
4
O Anexo apresenta a lista da produção musical para piano (piano solo, piano a quatro mãos e para dois pianos), incluindo obras para
órgão, em ordem cronológica. A lista da obra para piano foi atualizada por meio de conversa ao telefone com o compositor em 31 de março de 2020.
5
Este álbum não foi publicado. Foi apenas organizado pelo compositor em 1999.
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
Timbres Nº 1 e Nº 2 (1977) na presença do compositor, Villani-Côrtes comentou que
imaginou a peça como se fosse um fundo musical de um filme de terror, e foi abordada
a importância do lado cênico na interpretação, pois o intérprete deve retratar o clima
de mistério durante a execução da obra: “A pessoa tem que tocar isso pensando sempre
em criar uma expectativa… expectativa baseada em contrastes, em efeitos de timbres
do instrumento e rítmicos inesperados” (VILLANI-CÔRTES, 2003).
As obras de Villani-Côrtes para o instrumento apresentam um repertório que
abrange o estudo pianístico atendendo a diversos aspectos para o desenvolvimento
das habilidades técnico-interpretativas ao piano: desde peças simples àquelas de maior
virtuosidade, formando um repertório de música brasileira vasto e diversificado, enriquecendo as possibilidades de escolha para os pianistas.
A relação entre análise e os aspectos técnico-interpretativos
Ao iniciar o estudo dos prelúdios, pude constatar, na partitura de alguns deles, a
ausência de marcação metronômica, poucas indicações de dinâmica, entre outras informações que necessitavam de esclarecimentos. Algumas questões foram surgindo:
quais seriam os subsídios extramusicais que o compositor pode nos oferecer para que
possamos esclarecer aspectos interpretativos dos prelúdios? Os prelúdios foram compostos com finalidade didática? Quais as contribuições que essa obra, como repertório,
pode oferecer e/ou representar para um pianista, ou para um aluno do instrumento, em
relação ao desenvolvimento de suas habilidades técnico-interpretativas? Este artigo,
portanto, propõe-se a elucidar as questões acima relacionadas.
O contato com o compositor por meio de entrevistas e de encontros para apresentar as interpretações de suas obras, juntamente com um estudo que relacionasse a
análise musical e a avaliação de seu potencial didático, com foco nos aspectos técnico-interpretativos, foi crucial para a compreensão do lugar dessa obra dentro do repertório de música brasileira na área da pedagogia do piano.
A análise musical tem sido considerada uma importante ferramenta para uma maior
consciência do pianista, seja professor, seja aluno, em relação aos aspectos técnicos-pianísticos envolvidos para a execução de uma obra (KOCHEVITSKY, 1967; SCHMALFELDT apud CAVAZOTTI; GANDELMANN, 2002). A análise prévia de uma obra musical
promove a compreensão clara de todos os seus elementos (KOCHEVITSKY, 1967, p.50).
Alinhada com essa ideia, Schmalfeldt (apud CAVAZOTTI; GANDELMANN, 2002) afirma
que começa a pensar analiticamente sobre uma peça iniciando os trabalhos técnico e
analítico concomitantemente, duas atividades consideradas por ela inseparáveis. Dessa
forma, a análise musical é uma ferramenta para compreender:
A interação de todas as dimensões musicais – ou seja, motivo, ideia, frase, progressão harmônica, cadência, ritmo, compasso, textura, condução de vozes, dinâmica, instrumentação e plano tonal geral. (SCHMALFELDT apud CAVAZOTTI;
GANDELMANN, 2002, p.58, grifo do autor).
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
Kochevitsky complementa a proposta acima ao afirmar:
Antes de tocar uma obra, ele [o intérprete] deve se familiarizar com a sua forma,
estruturas harmônicas e polifônicas, relações métrico-rítmicas, desenho melódico, fraseado, articulação, qualidade da sonoridade desejada e gradações de
dinâmica. Ele tem que tratar de questões técnicas – posições e movimentos de
seu aparato motor, tipos de toque e dedilhado apropriado. (KOCHEVITSKY, 1967,
p.50, tradução minha).6
Através da familiarização com esses elementos estruturais, o intérprete pode tocar
uma peça conscientemente – o que significa que o pianista vai elaborar uma interpretação através dos enfoques adquiridos por meio da análise musical (RINK, 2007, p.25). A
partir do momento que o intérprete possui uma imagem sonora7 da obra, fundamentada analiticamente, pode fazer, então, escolhas sobre o dedilhado e decidir também sobre pedalização e articulação (SCHMALFELDT apud CAVAZOTTI; GANDELMANN, 2002).
Ao iniciar o estudo de uma obra, o intérprete busca a execução mais fiel possível às
anotações do autor, ao seu estilo e às tendências de sua época. Durante anos de estudo
do repertório, o intérprete vai desenvolvendo, através de sua vivência musical, familiaridade e conhecimento sobre os mais diversos estilos: Barroco, Clássico, Romântico
e Moderno. Ao executar uma obra de um autor contemporâneo, em que ainda estão
sendo estabelecidas tradições interpretativas, como é o caso da obra de Villani-Côrtes,
toda a bagagem estilística trazida pelo instrumentista será válida para a sua interpretação. O conhecimento prévio de repertório, no âmbito da interpretação musical e de
suas convenções, favorece uma boa compreensão e, consequentemente, terá um impacto positivo na performance de determinada obra.
A análise musical de uma obra tem um impacto na compreensão da obra e, consequentemente, na execução musical. No entanto, o preparo técnico de um instrumentista está intimamente ligado à sua capacidade de responder musicalmente. Por sua vez, o
instrumentista idealiza uma performance através de sua compreensão da obra e de seu
preparo técnico, onde a proximidade entre a interpretação artística desejada e a execução musical realizada demonstra o nível de compreensão da obra. Kochevitsky (1967)
ressalta sobre a interdependência dos aspectos interpretativos e técnico:
Técnica é a interdependência entre nosso aparato de tocar, nossa vontade e nossas intenções artísticas. Na técnica perfeita, a vontade e o movimento aparecem
como uma coisa só. Técnica é o ajuste às intenções artísticas e normalmente é
somente o meio para atingir uma meta definida. (KOCHEVITSKY, 1967, p.13-14,
tradução minha).8
6
Original: “Before playing a composition he has to become familiar with its form, harmonic and polyphonic structure, metrical-rhythmic
relationships, melodic design, phrasing, articulation, quality of desired sonority and dynamic shading. He has to consider technical questions –
positions and movements of his playing apparatus, kind of touch and appropriate fingering”.
7
Sound image. Consideramos imagem sonora de Schmalfeldt como sinônimo de imagem acústica de Hofmann. “A completa imagem
acústica da música deve estar alojada na mente, antes de ser expressada pelas mãos. Então tocar é simplesmente a expressão manual de algo [que
o pianista] sabe” (HOFMANN apud KOCHEVITSKY, 1967, p.50, grifo do autor). Do original: “The full acoustic picture of the music must be lodged in
the mind, before it can be expressed through the hands. Then the “playing is simply the manual expression of something [a pianist] knows”.
8
Original: “Technique is the interdependence of our playing apparatus with our will and our artistic intentions. In the perfect technique the
will and the movement appears as one. Technique is the adjustment to artistic intentions and normally is only the means to achieve a definite goal”.
Luciana Fernandes Hamond
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
Perfeição técnica não deveria ser medida através do domínio do pianista sobre um
ou outro tipo de técnica, mas através da correspondência entre suas intenções artísticas e os meios de sua realização. (KOCHEVITSKY, 1967, p.37, tradução minha).9
Desta forma, quanto maior o nível técnico, mais fiel a performance será das intenções artísticas e musicais que o pianista imaginou. A seguir, serão abordadas as habilidades técnico-interpretativas a serem desenvolvidas no estudo de repertório pianístico
de nível intermediário.
O potencial pedagógico de nível intermediário
A atividade de professor de piano requer a prudente atitude de escolher, junto com
o aluno, o repertório, que deve ser adequado para o desenvolvimento individual técnico-interpretativo de cada aluno pianista. Autores da área da pedagogia do piano (BASTIEN,
1973; HOBSON, 1996; USZLER, 1995) debruçaram-se em pesquisar e avaliar as habilidades a serem desenvolvidas no nível intermediário do repertório e do estudo pianístico.
Bastien (1973) apresenta seis áreas para o desenvolvimento da técnica do aluno
intermediário: escalas, arpejos, acordes, notas duplas, trinados e estudos técnicos especializados. Hobson (1996) indica uso de repertório para o desenvolvimento de movimento lateral do punho, uso do peso, cantabile, articulações diversas (legato, staccato,
portato), staccato de mão, staccato de dedo para passagens rápidas, independência dos
dedos, notas duplas (em terças e outros intervalos), além do uso do pedal sustain (direito) e una corda (esquerdo).
Uszler (1995) considera as seguintes habilidades técnicas a serem desenvolvidas
por alunos do nível intermediário: legato em passagem extensa e em notas duplas; vários tipos de staccato (pulso, braço, dedo); substituição de dedo; escalas e arpejos em
tonalidades maiores e menores; ornamentação; abertura de mão na extensão de uma
oitava; oitavas; independência de mãos e dentro de uma só mão; acordes de quatro
sons; refinamento em estilos de acompanhamento; mudanças rápidas de registro e de
textura, mobilidade; sentido de dinâmica, cor e caráter; pedalização sincopada, rítmica
e uso do pedal una corda; desenvolvimento de velocidade, força, resistência e coerência (USZLER, 1995, p.214-215).
Esta autora defende um trabalho integrado com o repertório e aponta para três
áreas do desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas: independência, mobilidade, e controle da sonoridade. Cada categoria é organizada em subáreas, como
podemos observar na Tab. 1.
9
Original: “Technique perfection should be measured, not by the degree of a pianist’s mastery over this or that form of technique, but by
the correspondence between his artistic intentions and means of their realization”.
Luciana Fernandes Hamond
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
Tab. 1: Áreas e subáreas de desenvolvimento técnico-interpretativo. Fonte: Uzsler (1995).10
A primeira categoria (USZLER, 1995), independência, se refere à consciência do
aluno em distinguir e apreciar a independência, ouvindo e tocando uma peça; é organizada em cinco subáreas. A primeira subárea avalia o que apenas uma das mãos é capaz
de fazer – seja tocar uma melodia simples, seja tocar uma melodia com acompanhamento, dosando o peso da mão em diferentes registros do piano. A segunda subárea
desenvolve a consciência da textura a duas vozes através do enfoque da independência
de dinâmica, ritmo, articulação, e/ou a combinação de todos esses elementos. A terceira subárea trabalha o equilíbrio cuidadoso de dinâmica e de articulação entre as mãos,
especialmente em peças homofônicas. A quarta subárea desenvolve a consciência da
distribuição do peso na mão através de toque timbrado de uma linha melódica. Finalmente, a quinta subárea envolve a tomada de decisões técnico-interpretativas acerca
da obra executada pelo intérprete, através do uso de improvisação, ornamentação, pedalização, condução da agógica, entre outros.
A segunda categoria (USZLER, 1995), mobilidade, inclui tudo o que lida com ajustes rápidos do corpo, mãos e dedos; é organizada em três subáreas. A primeira subárea
envolve regular a velocidade com consciência e controle em passagens que exijam agilidade, como arpejos, padrões escalares, escalas cromáticas e ornamentos. A segunda
subárea envolve ajustes cinestésicos múltiplos, requerendo uma constante mudança
de configuração da mão, como, por exemplo, através de mudanças rápidas de acordes.
A terceira subárea desenvolve o equilíbrio de força e de peso em peças que combinam
diferentes registros e texturas a fim de dar dramaticidade ou humor às obras.
10
Original: “1. Independence: Independence of the single hand, Playing two independent lines, Independence of dynamics and articulation, Independence within the hand, Independence of expression: freedom to make choices; 2. Mobility: Velocity, Quick chord changes, Quick
changes of register and texture; 3. Tonal control: Developing a sense of drama and style, Balancing dynamics throughout the keyboard range”.
Luciana Fernandes Hamond
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
A terceira categoria (USZLER, 1995), controle de sonoridade, aborda a habilidade
de tocar diferentes tipos de som, de explorar o amplo espectro de coloridos sonoros
“através do estímulo das capacidades imaginativas e auditivas do aluno”11 (USZLER, 1995,
p.222), e estudar os meios para alcançá-lo; é organizada em três subáreas. A primeira
subárea envolve o trabalho do aluno ser capaz de identificar, principalmente através
do estímulo auditivo, alguns elementos musicais inerentemente dramáticos, como, por
exemplo, passagens em movimento contrário, uso de extremidades do teclado, propulsão rítmica intensa, modulações em tonalidades inesperadas, entre outros. A segunda subárea requer um treinamento auditivo e do aparato motor a fim de se obter, por
exemplo, um toque suave ou um som fundo de tecla. Finalmente, a terceira subárea
visa estimular e desenvolver o ouvido e a imaginação do aluno sobre a construção de
diferentes sonoridades através de toques e sobre a utilização do pedal como um meio
de alcançar um colorido sonoro. Desta forma, o trabalho de Uszler (1995) foi tomado
como referência para analisar o potencial didático para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas de cada prelúdio de Edmundo Villani-Côrtes.
Os prelúdios para piano solo de E. Villani-Côrtes
Os prelúdios foram os primeiros passos que dei para iniciar uma longa caminhada. Para onde? Para a arte, para as estrelas, para o infinito… (VILLANI-CÔRTES,
2000, p.5).
São onze os prelúdios de Villani-Côrtes compostos em diferentes épocas. Dez prelúdios estão inseridos no referido álbum publicado em 2000 pela Estúdio Dois Produções Culturais;12 e o Prelúdio Nº 9, com a data de composição de 1956, que foi publicado
separadamente pela Irmãos Vitale (São Paulo) em 1977. A peça não foi publicada no álbum pois a editora impossibilitou sua inclusão ao exigir do compositor um valor absurdamente alto pelos direitos de reedição. Para completar a série de dez prelúdios, Villani-Côrtes compôs então o Prelúdio op.2 Nº 9. Em contrapartida, os Prelúdios Nº 3 e Nº 4
foram publicados anteriormente pela extinta Cultura Musical (São Paulo) em 1980 e em
1981, respectivamente, e puderam ser reeditados e inseridos no álbum de 2000 devido à
falência desta editora, o que propiciou o retorno dos direitos ao compositor sobre essas
peças. Por meio do contato com o compositor, foi possível resgatar o Prelúdio Nº 9, e
assim completar a série dos onze prelúdios. A partir daqui será adotada a denominação
Prelúdio Nº 9 (1956) para distingui-lo do Prelúdio op.2 Nº 9 no presente artigo.
Através dos manuscritos das partituras, podemos verificar que o autor reuniu e organizou seus primeiros oito prelúdios em 1957, intitulando o grupo de peças com as seguintes inscrições: 8 Prelúdios, Juiz de Fora, 3-5-957 (vide HAMOND, 2005). O compo-
11
Original: “[…] by stimulating the imaginative and listening capacities of the student rather than by isolating and explaining specific
techniques of tonal production”.
12
Uma nova edição foi realizada pela Musica Brasilis através do site https://musicabrasilis.org.br/.
Luciana Fernandes Hamond
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
sitor afirma que, genericamente, esses prelúdios foram compostos entre 1949 e 1957.13
Os prelúdios do álbum estão numerados consecutivamente de um a dez, com exceção
do Prelúdio op.2 Nº 9. Apenas os Prelúdios Nº 2 e op.2 N° 9 apresentam indicação das
datas de composição na partitura: 1949 e 16/7/1998, respectivamente. O Prelúdio N°
10 corresponde à versão para piano solo do primeiro movimento de Cinco miniaturas
brasileiras (1978), e, apesar de não estar datado, foi escrito na mesma época do Prelúdio
op.2 Nº 9, para a ocasião do lançamento do álbum.14
Ao entrevistar o autor, comentei que os prelúdios do álbum mostravam uma certa coerência na sequência em que foram colocados na publicação, ou seja, como se
estivessem encadeados através de relações intervalares de segundas maiores, terças
menores, quintas justas e, até mesmo, por ligação entre tonalidades relativas ou homônimas, conferindo uma certa continuidade, apesar de estarem dispostos valorizando contrastes no caráter e na sonoridade. O compositor afirmou que alterou a ordem
original dos primeiros oito prelúdios compostos na década de 1950 para o lançamento
do álbum de 2000 (VILLANI-CÔRTES, 2004a). Quatro dos oito primeiros prelúdios tiveram a sua numeração modificada para a publicação do álbum, seguindo uma sequência
imaginada pelo compositor. A mudança da numeração com a minutagem de cada peça
pode ser observada nas Tab. 2 e 3 a seguir, com exceção dos Prelúdios op.2 Nº 9 e Nº
10, pois não tiveram sua ordem alterada, sendo apenas acrescidos à série dos primeiros
oito prelúdios.
Tab. 2: Numeração original dos oito primeiros prelúdios do manuscrito.
Tab. 3: Modificação da ordem da numeração dos prelúdios para a publicação da edição de 2000.
Nos seus onze prelúdios, sua escrita é clara e concisa, com um nível de detalhamento que constantemente oferece ao pianista oportunidades de decisões interpreta13
Em depoimento à autora, ao telefone, no dia 16 de julho de 2005, não registrado.
14
Em depoimento do compositor, em outubro de 2004, não registrado.
Luciana Fernandes Hamond
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
tivas, seja através de elementos indicados na partitura que apresentam diversas possibilidades de execução, tais como fraseado e sonoridade, seja através de elementos não
escritos. Os prelúdios são textos musicais que refletem o pensamento do compositor e
que deixam transparecer o conhecimento e a vivência musical do autor como pianista.
As peças são muito bem escritas para o piano, o que torna a obra idiomática para o instrumento. Alguns aspectos da escrita musical do compositor serão abordados a seguir
a fim de realizar uma avaliação do equilíbrio entre a precisão da notação do compositor
versus a liberdade por parte do intérprete.
Quanto aos registros do piano, Villani-Côrtes explora quase toda a extensão do
teclado do piano, usando desde o extremo agudo (Dó 6) ao extremo grave (Dó -1), para
efeitos sonoros e finalizações, porém a região mais explorada está no âmbito do Dó 1
ao Dó 5.
Em relação à variedade de dinâmica, a maior parte dos prelúdios tem indicação
detalhada de dinâmica, variando um espectro de uma a cinco gradações, entre ppp a
ff, o que propicia uma ampla exploração de sonoridades (Tab. 4). O maior número de
indicações de dinâmicas diferentes encontra-se nos Prelúdios Nº 4, Nº 8 e Nº 9 (1956),
enquanto nos Prelúdios Nº 6 e Nº 10 a dinâmica oscila entre apenas dois níveis. Apesar
da intensidade máxima utilizada em quatro prelúdios ser f ou ff e em outros sete ser p
ou mf, os prelúdios apresentam uma dinâmica predominantemente em p e pp, nos convidando a expressar uma sonoridade mais intimista.
Tab. 4: Gradações de dinâmica com frequência e constância em número de compassos para cada prelúdio.
A indicação de dedilhado é um elemento ausente em seus prelúdios. Como são
bem escritos para o instrumento, o intérprete tem a liberdade de escolha, levando em
consideração o fraseado imaginado para a peça, optando sempre por um dedilhado que
lhe seja confortável e esteja de acordo com suas características físicas e seu desenvolvimento técnico.
Luciana Fernandes Hamond
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
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Em relação à variedade de toques, encontramos as indicações de legato, de non
legato, de pequenas ligaduras de articulação e de nota com tenuta. É surpreendente
notar que não há nenhuma indicação de staccato. A predileção de Villani-Côrtes pelo
toque legato em suas obras é evidente. Entretanto, o intérprete deve explorar a riqueza sonora dos prelúdios levando em consideração o caráter da peça, as indicações do
compositor, além da experiência e do conhecimento musicais prévios do intérprete.
Por exemplo, no Prelúdio op.2 Nº 9, o toque firme e presente é subentendido através
da indicação do caráter rítmico e das articulações das notas, apesar da dinâmica em p.
Já no Prelúdio Nº 6, o toque velado e claro pode ser percebido a partir da presença de
ligaduras de prolongamento e do caráter fluente, ambos indicados. Interessante citar o
sfz encontrado no final do Prelúdio Nº 8 como a única ocorrência de acento nesta obra.
As indicações de andamento, marcação metronômica (M.M.), caráter, fórmula de
compasso (F.C.) e variação de agógica são ilustradas na Tab. 5. Sete dos onze prelúdios
apresentam indicação de andamento, oito de M.M., sendo que seis deles possuem as
duas informações. A mudança de fórmula de compasso ocorre com frequência em três
dos onze prelúdios. Ao contrário dos outros aspectos, a agógica é bem explorada em
todos os prelúdios, exceto no Prelúdio Nº 9 (1956), no qual apenas poco rallentando e
rallentando são designados. As indicações adicionais de caráter nos trechos intermediários da peça estão presentes com uma certa constância nos termos ingenuamente,
perdendo-se, entre outros. As anotações de agógica são muito claras, auxiliando o pianista na sua interpretação, através de: retendo, apressando um pouco, affretando [sic],
entre outros.
Não há nenhuma indicação de pedal nos Prelúdios, seja ele o pedal direito (sustain), o esquerdo (una corda) ou, ainda, o tonal. A pedalização faz parte das decisões
interpretativas do intérprete, pois o compositor, ao não indicar o uso de pedais, oferece
total liberdade de escolha ao pianista. Faz-se necessário o seu uso cuidadoso, sem excessos, para favorecer o entendimento sonoro de mudanças harmônicas e a precisão
rítmica. O uso do pedal pode ser subentendido quando a peça apresenta algumas características, como, por exemplo: sustentar notas longas ou notas pedal, como ocorre
nos Prelúdios Nº 2 e Nº 9 (1956); propiciar a ressonância de notas que formam a harmonia, como acontece nos Prelúdios Nº 6, Nº 7 e Nº 8; favorecer o caráter das peças, nos
casos de Cantabile no Prelúdio Nº 4, como um regato, fluente no Prelúdio Nº 6, etéreo
no Prelúdio Nº 10 e Calmo, bem ligado no Prelúdio Nº 5.
Luciana Fernandes Hamond
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
Tab. 5: Indicações de Andamento, Marcação Metronômica (M.M.), Fórmula de Compasso (F.C.), Caráter e Variação de Agógica.
Fonte: Hamond (2005, p.60).
Podemos classificar o emprego do pedal quanto à troca, podendo ser sincopada
ou rítmica, e quanto à profundidade, através do pedal inteiro, do meio pedal ou do 1/4
de pedal. O uso do pedal, a sua troca e a profundidade a ser utilizada vai depender da
sua função dentro de cada peça ou trecho dela. O pedal sincopado pode ser usado na
maior parte dos prelúdios. O pedal rítmico é uma boa escolha no Prelúdio op.2 Nº 9. O
pedal inteiro, com a função de produzir o efeito de ressonância, pode ser empregado
nos Prelúdios Nº 4 e Nº 6. O meio pedal, para sustentar as notas pedal e limpar a sequência de acordes ou notas, pode estar presente no Prelúdio Nº 9 (1956). O pedal tonal
pode ser usado quando uma nota pedal soar durante um compasso inteiro ao mesmo
tempo em que uma melodia diatônica precisa ser clara: este é o caso do Prelúdio Nº 2
(c. 1-17),15 onde uma semibreve é sustentada através do pedal tonal e as terças duplas
são ligadas através do uso criterioso do pedal direito sincopado, evitando que as ressonâncias das notas duplas se acumulem.
A utilização do pedal una corda pode estar associada à mudança de timbre, de sonoridade, de caráter e até mesmo de dinâmica, p e pp em alguns casos. As sonoridades
aveludadas e suaves podem ser valorizadas com o seu emprego. É interessante escolher
o seu uso na repetição final de um tema, como acontece no Prelúdio Nº 4 (c. 46-67); ou
pela indicação de caráter como um regato, fluente e de dinâmica p no Prelúdio Nº 6 (c.
1-28), com o uso concomitante do pedal direito. Da mesma forma, o não uso do pedal
15
A partir daqui será utilizada a abreviação c. para designar compasso.
Luciana Fernandes Hamond
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
pode ser uma escolha do intérprete e é subentendido pelo caráter da peça, como acontece em alguns trechos do Prelúdio op.2 Nº 9, através da indicação Rítmico com simplicidade. A seguir, uma análise musical dos onze prelúdios de Villani-Côrtes é realizada
a fim de ressaltar aspectos técnico-interpretativos, além da identificação do potencial
pedagógico no ensino de piano.
Prelúdio Nº 1
O Prelúdio Nº 1 foi uma das primeiras composições para piano de Villani-Côrtes.
Na época, o compositor começava a estudar piano e a pesquisar modulações no instrumento. Sua intenção foi “um treino de tocar dó, ré, mi, fá, sol” com “espírito mais
contemplativo, mais suave, meio perdido”, que se confirma na M.M. θ = 128 indicada na
partitura (VILLANI-CÔRTES, 2004a).
Exemplo 1.1: Prelúdio Nº 1 (c. 1-8). Fonte: Hamond (2005, p.64).
O movimento cíclico do tema nos remete ao vai e vem das ondas do mar, que inicialmente é brando, mas de repente nos surpreende com uma maior amplitude e depois
retorna à calmaria. O compositor classifica essa peça como minimalista: a melodia da
mão direita repete o mesmo motivo, apesar da mudança da harmonia na mão esquerda.16 Sobre a questão da continuidade, podemos admitir que a peça permite um andamento um pouco superior à M.M. θ = 128,17 como indicado na partitura. Ao adotar um
andamento mais andado, ainda em Moderato, com a indicação M.M. θ = 144, podemos
contar mais facilmente um pulso por compasso, o que facilita a construção das frases
longas e confere um caráter mais movido e fluente. No entanto, o compositor relatou
que a interpretação do Prelúdio Nº 1 a M.M. θ = 144 apresenta “um caráter um pouco
mais virtuosístico, mais pé no chão, mais decidido, mais vigoroso”, suspeitando desta
execução ser mais funcional (VILLANI-CÔRTES, 2004a). Porém, ao adotar a indicação
M.M. θ = 128, a dinâmica pode ser mais explorada e o intérprete pode “sugar mais cada
nota” (VILLANI-CÔRTES, 2004a).
Na parte A (c. 1-16), as ligaduras de frase na mão direita (m.d.) solicitam um toque
legato combinado com o uso cuidadoso do pedal direito para ressaltar a linha melódica
16
A partir daqui utilizaremos a abreviação m.d. para designar mão direita e m.e. para designar mão esquerda.
17
Apesar da M.M. = 128 não se apresentar no metrônomo, realizamos uma extrapolação para um andamento intermediário ao M.M. =
126 e M.M. = 132.
Luciana Fernandes Hamond
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
e a progressão de décimas. A repetição do tema (c. 9-16) apresenta um caráter mais
intimista, devido à mudança na textura e no registro do acompanhamento, e direciona
para um toque velado pela presença da dinâmica pp indicada dois compassos antes.
A parte B (c. 17-28) apresenta o tema invertido com a mesma forma cíclica da parte A.
O acompanhamento da mão esquerda (m.e.) fica mais dissonante e denso, apresentando
acordes quebrados de quatro sons, ainda com pedal na dominante. A parte C (c. 35-49) é
a mais contrastante e se subdivide em três seções. A presença de marchas harmônicas, de
variações no caráter, mais dramático, na agógica e no andamento, através do poco piú,
faz com que essa parte seja passível de explorar diferentes sonoridades. O intérprete deve
enfatizar a melodia da m.d. e equilibrar o toque nos planos sonoros do acompanhamento.
O prelúdio finaliza com uma Coda (c. 58-73), com caráter ingenuamente, resgata
elementos presentes nas partes B e C e apresenta o tema invertido. Esta linha melódica
é semelhante ao tema de Amanhecer da Suite Peer Gynt de Edward Grieg (1843-1907).
Exemplo 1.2: Prelúdio Nº 1 (c. 58-62). Fonte: Hamond (2005, p.67).
Exemplo 1.3: Amanhecer da Suíte Peer Gynt Nº 1, Op 46 (c. 1-2) de Grieg.
Fonte: Hamond (2005, p.68).
O trillo no c. 62 é um dos poucos momentos em que Villani-Côrtes escreve ornamentos nos prelúdios: o toque deve ser delicado e brilhante. Um arpejo ascendente
conduz à escala cromática (c. 68-72), que nos remete a um glissando. Este é um dos
momentos mais fluentes do prelúdio, onde o intérprete deve manter o legato e a direção da frase de uma frase longa.
Ao identificar o potencial didático do Prelúdio Nº 1, foi possível observar as seguintes habilidades técnicas desenvolvidas: legato em passagens escalares na m.d.; igualdade na continuidade de colcheias; abertura da mão na extensão de 8ª na m.d.; oitavas
na m.d. e m.e.; abertura da m.e. na extensão de 10ª (com sustentação de nota pedal);
presença de terças na m.e.; acordes de três e quatro sons (quebrados ou em blocos);
Luciana Fernandes Hamond
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
deslocamento rápido da m.e. (saltos de oitavas para acordes); ornamentação na m.d.:
trinados e arpejos rápidos (c. 54; c. 62-65; c. 73); escala cromática descendente com
intervalo de 4ª justa entre m.d. e m.e.; movimento alternado das mãos para execução
de arpejos (c.66-67); movimento de rotação da m.d. (c.21-24) através da repetição de
uma nota intercalada com uma sequência diatônica descendente; variação da agógica
e mudança no tempo através de rall, Tempo I, poço piú, dentre outros; uso de pedal
direito com troca sincopada.
Prelúdio Nº 2
A principal característica deste prelúdio é a apresentação de escala pentatônica
e a ocorrência de quatro planos sonoros distribuídos em diferentes registros do piano,
conforme podemos observar no exemplo 2.1.
Exemplo 2.1: Prelúdio Nº 2 (c. 1-4). Fonte: Hamond (2005, p.69).
A parte A (c. 3-18) mostra o tema no desenho em que é construído: sobre a escala
pentatônica de Mi b maior, nos remetendo ao ambiente sonoro oriental. Os planos sonoros
continuam a ser apresentados e podem ser ressaltados com diferenciação no toque dos
planos sonoros, o baixo e as terças duplas na mão esquerda, e a melodia e as oitavas na
mão direita, e através do uso de pedal. O pedal direito com troca sincopada pode ser
usado para controlar a sonoridade desejada e auxiliar no toque claro e em legato das
terças duplas. O uso do pedal tonal é uma sugestão interessante, pois sustenta os baixos.18
O maior desafio técnico-interpretativo para o pianista está em controlar a dinâmica, a
articulação, o toque, além de equilibrar a sonoridade de cada plano. Uma sugestão para
a interpretação musical é através da diferenciação de toque e dinâmica em cada plano
sonoro e da realização das articulações características de cada um dos planos.
A parte A’ (c.19-31) contrasta em relação à parte A no que diz respeito ao discurso
com notas duplas (m.d.) e no acompanhamento, em arpejos (m.e.). Ocorre um gradual
aumento da densidade sonora da m.d., pelo acréscimo de uma, duas ou de até três notas
em cada acorde. O ritmo do acompanhamento confere um caráter mais movido ao
trecho. A dramaticidade deste prelúdio é observada pela modulação do material temático
para tons afastados, como Sol b maior, lá maior e dó maior (c. 23-25) e pela presença de
marcha harmônica (c. 25-26), que conduzem ao ponto culminante da peça (c. 26): maior
18
Caso o intérprete opte por utilizá-lo, este deve ser acionado logo após a tecla ser afundada, trocando a cada mudança de nota pedal.
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dinâmica (mf) e exploração de registros agudos, médios e graves do piano. O intérprete
deve estar atento às mudanças harmônicas (c. 22-25), como por exemplo Mi b maior, Sol
b maior, Lá maior e Dó maior, buscando expressar e valorizar essas surpresas, criando
uma expectativa sobre qual direção harmônica o compositor quer alcançar. A condução
dos três acordes sucessivos e repetidos (c. 26-29) deve ser executada realizando um
decrescendo. Um momento totalmente novo e inesperado ocorre na peça nos c. 30-31:
a apresentação simultânea de uma linha melódica e de uma passagem rápida de arpejos,
com efeito de appogiatura, com caráter improvisatório e cadencial.
A revisão da peça junto com o compositor foi necessária e válida, resultando nas
seguintes anotações, conforme mostra o Exemplo 2.2: 1) nota Mi b (semínima) m.d., c.
30 e ligadura unindo a nota Mi b, m.d., c. 29, à nota Mi b acrescentada, m.d., c. 30; 2)
acidente (bequadro) na nota Sol do quarto tempo, m.d., c. 30.
Exemplo 2.2: Prelúdio Nº 2 (c. 29-31). Fonte: Hamond (2005, p.70).
Para esta parte, Villani-Côrtes declarou que sua intenção foi ressaltar a voz superior, fazendo com que o arpejo representasse apenas uma condução para a melodia principal. Desta forma, a continuidade da linha melódica superior foi priorizada em
relação à sequência de notas arpejadas. O intérprete deve buscar um toque diferente
para a voz superior, timbrando a voz superior e realizando um toque mais suave para as
fusas e semicolcheias arpejadas em mãos alternadas, de modo que ressoe a harmonia
resultante dessas notas de passagem, pensando o trecho como sendo executado por
uma orquestra.
A Coda (c. 32-39) reapresenta uma parte do tema, ora em Mi b maior (c. 32 e 34), ora
em Sol b maior (c. 33 e 35). A oscilação harmônica nos remete à linguagem composicional de Debussy, mais especificamente em Claire de Lune (c. 27), da Suíte Bergamasque.
Exemplo 2.3: Prelúdio Nº 2 (c.32-33). Fonte: Hamond (2005, p.71).
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do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
Exemplo 2.4: Claire de lune (c. 27) da Suíte berguemasque, de Debussy. Fonte: Hamond (2005, p.71).
Ao identificar o potencial didático do Prelúdio Nº 2, foi possível observar as seguintes habilidades técnicas desenvolvidas: quatro planos sonoros: melodia (tema na
m.d.) e acompanhamento (nota pedal e terças duplas na m.e. e oitavas na m.d.); riqueza
de recursos timbrísticos; legato em passagens escalares (pentatônica); possibilidade de
substituição de dedo; legato em notas duplas na m.d. (c. 19-21); legato em terças duplas
na m.e. (c. 1-17); acordes de três e quatro sons na m.d. (c. 19-39); abertura da m.e. nos
arpejos (c. 19-39); movimento alternado das mãos para execução de arpejos e passagens escalares (c. 30-31); oitavas (c. 1-2; c. 9-10); saltos entre notas pedal e terças duplas
na m.e. (c. 1-17); ornamentação: arpejos de execução rápida com efeito de apojatura (c.
30-31); variação da agógica através de perdendo-se (c. 37), poco rall (c. 29), rall (c. 31)
e rall até o fim (c. 34); pedal direito com troca sincopada, pedal tonal para sustentação
das notas pedal da m.e. (c. 1-17) e possibilidade do una corda (c. 32-39).
Prelúdio Nº 3
Os elementos que melhor caracterizam este prelúdio são a presença de síncopes,
de tercinas e de cromatismo. As indicações de caráter e andamento são suficientes para
delimitar a forma desse prelúdio. Uma análise mais profunda mostra que essas partes se
diferenciam também em ritmo, textura e dinâmica.
O ritmo sincopado alternado com tercinas marca a entrada do tema na parte A e
está presente tanto na melodia quanto no acompanhamento.
Exemplo 3.1: Prelúdio Nº 3 (c. 5-8). Fonte: Hamond (2005, p.74).
Num primeiro momento, o intérprete, ao se deparar com essa variação de padrões
rítmicos – síncopes e tercinas –, poderia pensar em seguir rigorosamente a partitura e executar esses ritmos de maneira muito precisa. Na verdade, o autor comenta que sua inten-
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ção é a de tocar um padrão rítmico meio parecido com o outro, como se toca na música
popular: sem seguir “o rigor da escrita” (VILLANI-CÔRTES, 2004a). Segundo o compositor,
a sua visão didática da peça está justamente em realizar uma execução que aproxime os
padrões rítmicos da síncope (meio tercinada) e da tercina (meio sincopada), ou seja, executar essas passagens sem rigidez metronômica. Ao revisar a peça com o compositor, ele
comentou que este prelúdio é um samba-canção meio saudoso, meio dolente.
Ao identificar o potencial didático do Prelúdio Nº 3, foi possível observar as seguintes habilidades técnicas desenvolvidas: textura homofônica (melodia acompanhada); legato em passagens escalares; intercalação de ritmo sincopado e tercinas (execução no estilo de música popular); notas presas na m.e. (c. 5-6; c. 9-10; c. 13; c. 15-17);
terças repetidas e acordes de quatro sons repetidos na m.e. (c. 5-21); abertura das mãos
na extensão de 8ª: na m.e. (c. 8, c. 12; c. 25) e na m.d. (c. 26-29); oitavas; acordes de três
sons na m.d. e de quatro sons na m.e.; ornamento: arpejo em passagem rápida (c. 28);
agógica variada: poco rall (c. 8), a tempo (c. 9, c. 21), affretando [sic] (c. 18), rall (c. 19, c.
25, c. 29), Lento (c. 26); pedal direito com troca sincopada e rítmica.
Prelúdio Nº 4
As características mais marcantes deste prelúdio são as alternâncias de ritmo e de
textura (homofônica e polifônica). A obra apresenta um continuum, ora de semicolcheias, ora de tercinas, por meio de arpejos ou passagens escalares realizados através
da alternância entre as duas mãos, que é apresentado do início ao fim do prelúdio e nos
remete à fluência de uma peça escrita para harpa.
Exemplo 4.1: Prelúdio Nº 4 (c. 1-4). Fonte: Hamond (2005, p.76).
Devido à quantidade de repetições do tema, o intérprete deve conduzir o prelúdio de modo que este não fique monótono, através de diferentes sonoridades, toques
e agógica. Sugerimos a utilização de pequenos rallentandi, não escritos originalmente
pelo compositor, nos finais de frases e pequenos accelerandi nos meios de frases, promovendo uma variação da agógica. A utilização do pedal direito é recomendada, pois
favorece a ressonância da harmonia, porém o seu uso deve ser cauteloso quanto à profundidade nos grupos de tercinas, onde a clareza e a independência das conduções de
vozes são requeridas.
Ao identificar o potencial didático do Prelúdio Nº 4, foi possível observar as seguintes habilidades técnicas desenvolvidas: legato em passagem extensa na m.e. e m.d.;
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arpejos na m.d. e m.e.; abertura da mão na extensão de 7ª na m.d. e m.e.; igualdade das
semicolcheias; nota presa com substituição de dedo e mudança de dedilhado (c. 1-28;
c. 46-67); subdivisões ora em semicolcheias, ora em tercinas (c. 1-28; c. 46-67); precisão
em padrões rítmicos diferentes; mudança de fórmula de compasso; saltos na m.d. e m.e.
(c. 39-45); legato em notas duplas na m.d. (c. 39-45); timbragem de nota superior da m.d.
(melodia); movimento alternado das mãos pela execução de arpejos (c. 1-38; c. 46-67);
cruzamento de mãos e saltos com distância de oitavas (c. 39-45; c. 63-65); presença de
acento e tenuta; variação na agógica: rall (c. 37; c. 44), a tempo (c. 39; c. 46; c. 58), menos
(c. 65); pedal direito com troca sincopada e una corda (reexposição do tema).
Prelúdio Nº 5
O prelúdio apresenta-se como uma valsa e é caracterizado por uma oitava seguida
de uma superposição de acordes de três e quatro sons combinados entre as duas mãos,
através dos quais ocorre uma condução de vozes.
Exemplo 5.1: Prelúdio Nº 5 (c. 1-4). Fonte: Hamond (2005, p.80).
Este prelúdio apresenta o tema na parte A (c. 1-8) e A’ (c. 18-29), na tonalidade de
Sol maior, repetido duas vezes: uma oitava seguida de dois acordes, que nos remete a
uma dança. A melodia e o acompanhamento se confundem, pois as duas linhas melódicas resultam das vozes superiores dos acordes de cada mão, devendo ser timbradas
pelo intérprete.
A parte B (c. 9-17) se assemelha à parte A em termos da disposição dos acordes,
porém contrasta nas suas relações intervalares, que agora ocorre em terças descendentes, e nas progressões harmônicas, que se mostram mais presentes e constantes.
Ao contrário da parte A, os acordes superpostos movimentam-se paralelamente. Apesar de a dinâmica se manter em p, o intérprete deve buscar sonoridades e toques que
valorizem as conduções melódicas e as mudanças na harmonia. O c. 29 é o único momento em que ocorrem arpejos em mãos alternadas no prelúdio, contrastando com os
momentos predominantes de oitavas e acordes. Este é um elemento que oferece certa
liberdade de execução ao intérprete, através também da mudança de andamento para
Lento, e pontua a estrutura da peça.
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Exemplo 5.2: Prelúdio Nº 5 (c. 29). Fonte: Hamond (2005, p.81).
Na Coda (c. 30-36) o padrão estrutural – nota pedal seguida de dois acordes superpostos – é retomado e ocorre como uma dissolução, através do decrescendo gradual e
retenção do andamento (rall), conduzindo a uma sonoridade mais suave. Entendemos
que o intérprete pode conceber uma sonoridade mais velada, através do uso simultâneo dos pedais una corda (esquerdo) e sustain (direito) com troca sincopada.
Ao identificar o potencial didático do Prelúdio Nº 5, foi possível observar as seguintes habilidades técnicas desenvolvidas: oitavas na m.e.; abertura da mão na extensão de
8ª; saltos entre oitavas e acordes de quatro sons na m.e.; legato entre acordes na m.d.
e m.e.; acordes de quatro sons na m.d. e m.e.; movimento paralelo das mãos nos acordes (c. 9-14; c. 35); timbragem de nota superior do acorde: 5º e 4º dedos da m.d. e 2º e
1º dedos da m.e.; arpejos em mãos alternadas (c. 29); riqueza de recursos timbrísticos;
legato em passagens extensas (c. 29); movimento alternado das mãos para execução de
arpejo (c. 29); presença de tenuta (c. 35-36); variação na agógica: rit (c. 4, c. 8), a tempo
(c. 5; c. 35), a tempo poco più (ma non tanto) (c. 9), apressando um pouco (c. 15), retendo (c. 17), rall (c. 33), poco rall (c. 35); pedal direito com troca sincopada e una corda.
Prelúdio Nº 6
A principal característica deste prelúdio é a apresentação de dois momentos musicais distintos que contrastam em registro, textura, timbre, andamento e caráter: o primeiro apresenta zonas de ressonância da harmonia criadas por arpejos, criando uma
atmosfera “impressionista”, revivendo Claude Debussy e lembrando a execução numa
harpa, conforme o Exemplo 6.1.
Exemplo 6.1: Prelúdio Nº 6 (c. 1-3). Fonte: Hamond (2005, p.83).
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Pensar num compasso 3/4 para a parte A (c. 1-28) auxilia o intérprete, pois expressa um movimento ascendente e descendente, ressaltando a progressão harmônica,
como sugere o Exemplo 6.2:
Exemplo 6.2: Prelúdio Nº 6 (c. 1-3) modificado. Fonte: Hamond (2005, p.84).
A progressão harmônica com acordes arpejados de 7ª convidam o intérprete para
uma exploração de sonoridades nas quais as ressonâncias devem ser enfatizadas, criando um ambiente sonoro instável e flutuante. O planejamento do fraseado deve levar
em conta o formato parabólico do discurso, exigindo do intérprete a realização de um
crescendo até atingir a nota mais aguda e um decrescendo até a nota mais grave, pontuando a linha melódica do baixo. O continuum de semicolcheias pode ser alcançado
através da combinação controlada entre legato de dedo e uso dos pedais, pensando
sempre na preservação do movimento rítmico contínuo das figuras para obter o ambiente sonoro indicado. O pedal una corda pode ser usado desde o início para conferir
uma sonoridade velada.
Na parte B (c. 29-44) há o estabelecimento do centro tonal em fá maior, além de
um estilo mais jazzístico, nos remetendo à escrita de personalidades da música popular
americana, como Henry Mancini, ou até mesmo à linguagem de Maurice Ravel, conforme o Exemplo 6.3. Há uma breve citação de um dos temas da Pavane pour une infante
défunte, de Ravel, como podemos ilustrar a seguir.
Exemplo 6.3: Prelúdio Nº 6 (c. 29-33). Fonte: Hamond (2005, p.83).
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Exemplo 6.3: Pavane pour une infante défunte, de Ravel (Mineola: Dover Publications, 1986). Fonte: IMSLP.19
Ao identificar o potencial didático do Prelúdio Nº 6, foi possível observar as seguintes habilidades técnicas desenvolvidas: legato em passagem extensa; timbragem
de notas inferiores da m.e.; igualdade de semicolcheias (c. 1-28, c. 54-85); arpejos nas
m.d. e m.e.; movimento alternado com cruzamento das mãos para execução de arpejos; possibilidade de substituição de dedo; sustentação de notas nos arpejos; controle de sonoridade; mudança de fórmula de compasso; acorde de quatro sons na m.e.;
ornamentação: arpejo com efeito de apojatura (c. 29-30; c. 38-40), apojatura (c. 53) e
apojatura com efeito de glissando (c. 86); deslocamento métrico ou de acentuação no
compasso (c. 45-52); notas duplas com cruzamento de mãos (c. 84-85); pedal direito
com troca sincopada e rítmica e una corda.
Prelúdio Nº 7
Os elementos mais caractsticos deste prelúdio são as modulações e os cromatismos. Construído como uma colcha de retalhos, este prelúdio apresenta materiais composicionais que nos remetem à escrita de autores como Prokofiev, Debussy e Chopin. A
diversidade e o contraste de registro, textura, dinâmica, andamento, caráter e forma são
evidentes. A peça, em tonalidade de Sol maior, é mais brilhante e virtuosística, apresenta
um caráter mais decidido, contrastando com a natureza introspectiva e contemplativa
dos outros prelúdios, conforme podemos observar no Exemplo 7.1.
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Exemplo 7.1: Prelúdio Nº 7 (c. 1-4). Fonte: Hamond (2005, p.87).
A parte A (c. 1-8) apresenta o tema tético (c. 1-4), uma melodia em terças duplas
na m.d. acompanhada por arpejos na m.e., repetida duas vezes. A primeira transição
(c. 9-15) apresenta arpejos na m.e. e acordes na m.d. com movimento paralelo e cromático, usando uma superposição de acordes dissonantes.20 Este cromatismo conduz,
através de uma marcha harmônica ascendente, ao primeiro ponto culminante da peça
(c. 12), devido aos saltos e à exploração de registros sonoros.
A parte B (c. 28-33) é súbita e vigorosa, caracterizada por saltos e acordes com
dinâmica em fortíssimo e a presença de tercinas. Este trecho nos remete à escrita de
Debussy, mais especificamente ao ritmo de um trecho de Claire de Lune (c. 15), da
Suíte Bergamasque:
Exemplo 7.2: Prelúdio Nº 7 (c. 28-29). Fonte: Hamond (2005, p.89).
Exemplo 7.3: Claire de Lune (c. 15-16), da Suíte Bergamasque, de Debussy. Fonte: Hamond (2005, p.89).
20
Usando a enarmonia: A x Eb, B x E, B x F e C x F#.
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Sugere-se que o intérprete toque claramente os últimos acordes em tercinas, de
modo que estes deem um impulso para o ponto culminante da peça (c. 30): superposição de acordes de quatro sons em dinâmica ff com grandes saltos e alta densidade
sonora. Neste trecho (c. 30-33), o intérprete precisa estar consciente das constantes
mudanças de configuração das mãos para cada acorde tocado, das rápidas mudanças
de registro e, ao mesmo tempo, precisa ter um controle da dinâmica, que segue um
gradual decrescendo.
A transição (c. 34-41) é uma dissolução do material e é dividida em dois momentos. O primeiro é uma passagem descendente, ou melhor, um movimento em cascata
de um acorde quebrado em notas duplas e superposto nas duas mãos, com mudança
na agógica, agora em rubato. O intérprete deve se lembrar de que o rubato conta com
inflexões de andamento, porém deve fazê-lo sem comprometer a continuidade da frase musical. Neste trecho o intérprete necessita alterar rapidamente a configuração das
mãos, o que nos remete a um trecho do Estudo op.10 Nº 3 de Chopin (c. 46-47).
Exemplo 7.4: Prelúdio Nº 7 (c. 34-35). Fonte: Hamond (2005, p.90).
Exemplo 7.5: Estudo op.10 Nº 3 (c. 44), de Chopin.
Fonte: Hamond (2005, p.90).
O segundo momento (c. 38-41) é a execução de arpejos ascendentes com mãos
alternadas, em ré maior, dominante da tonalidade, conduzindo à cadência e à retomada
do tema (c. 42). Apesar de esperarmos o agrupamento de quatro em quatro colcheias,
como acontece num compasso quaternário, a articulação indicada segue a alternância
das mãos, ocorrendo de três em três colcheias e devendo soar desta maneira.
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Exemplo 7.6: Prelúdio Nº 7 (c. 38-41). Fonte: Villani-Côrtes (2015, p.19).
Uma revisão da partitura foi proposta junto ao compositor durante a pesquisa.
Ao realizar a revisão da partitura, Villani-Côrtes adicionou indicações de dinâmica, de
agógica e de toque no texto musical, que esclarecem dúvidas e direcionam o estudo
técnico-interpretativo do pianista. Os exemplos a seguir mostram as alterações:
1) M.M. θ = 126 e dinâmica mf, c. 1, no Exemplo 7.7:
Exemplo 7.7: Prelúdio Nº 7 (c. 1). Fonte: Hamond (2005, p.91).
2) Variação de dinâmica e de agógica, c. 9-16, tenutas, c. 12 e c. 14, ligaduras de
expressão, c. 13, no Exemplo 7.8:
Exemplo 7.8: Prelúdio Nº 7 (c. 9-16). Fonte: Hamond (2005, p.91).
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3) Variação de dinâmica e de tempo, c. 23-25, no Exemplo 7.9:
Exemplo 7.9: Prelúdio Nº 7 (c.23-25). Fonte: Hamond (2005, p.91).
4) Variação de tempo, c. 42, no Exemplo 7.10:
Exemplo 7.10: Prelúdio Nº 7 (c. 42). Fonte: Hamond (2005, p.92).
5) Dinâmica f, c. 48 e c. 50, e indicação de 8ª acima, c. 49, no Exemplo 7.11:
Exemplo 7.11: Prelúdio Nº 7 (c. 48-50). Fonte: Hamond (2005, p.92).
Ao identificar o potencial didático do Prelúdio Nº 7, foi possível observar as seguintes habilidades técnicas desenvolvidas: substituição de dedo na m.d. (c. 1, c. 5, c. 17, c.
42); legato em arpejos na m.e.; notas repetidas (c. 3, c. 7) e acordes repetidos (c. 9-15,
c. 18, c. 22, c. 28-33, c. 44); movimento alternado para execução de arpejos (c. 24-27;
c. 38-41; c. 48-49); saltos de acordes com extensão de uma oitava (c. 20 e 21); abertura
de mão na extensão de 8ª; oitavas; saltos na m.e. de oitavas para acorde (c. 28-29) com
mudança rápida de posição; saltos com deslocamento rápido de acordes e notas terças
repetidas na m.d. e quintas na m.e. (c. 30-33); movimento paralelo das mãos (c. 30-37);
acordes de quatro sons na m.d. e m.e.; abertura entre dedos em acordes de quatro sons
(c. 29); notas duplas nas duas mãos (c. 34-37) com movimento simétrico e paralelo; pedal direito com troca sincopada.
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Prelúdio Nº 8
A qualidade mais marcante deste prelúdio é a presença de um tratamento da harmonia coral. O cromatismo descendente também é apresentado, conferindo um caráter denso à peça. Combinações de situações contrastantes utilizando diferentes registros e dinâmicas contribuem para a configuração da peça, conforme podemos verificar
no Exemplo 8.1.
Exemplo 8.1: Prelúdio Nº 8 (c. 1-6). Fonte: Hamond (2005, p.93).
Interessante é observar que até mesmo neste prelúdio Villani-Côrtes faz citações
sutis (Exemplo 8.2). Especialmente neste caso o elemento cromático nos remete ao segundo tema de Rhapsody in Blue, de George Gershwin (Exemplo 8.3). Há possibilidade
do uso do pedal una corda para c. 25-30.
Exemplo 8.2: Prelúdio Nº 8 (c. 27-30). Fonte: Hamond (2005, p.95).
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Exemplo 8.3: Andantino do Rhapsody in Blue, de Gershwin (New York: New York Music Corp., 1924). Fonte: IMSLP. 21
Na Codeta (c. 31-33) o prelúdio atinge seu máximo em dinâmica e variação da agógica, através das indicações fortíssimo, sfz, rubato, molto expressivo, ampliação da fórmula de compasso, para 7/4 (c. 31-32), e aumento da densidade sonora, com a inclusão
de acordes pedais na região grave e uma mesma linha melódica triplicada em oitavas
diferentes na região aguda do teclado. Todos esses elementos são contrastantes em
relação ao restante do prelúdio e revelam um caráter declamatório, até então não esperado, que finaliza com um acorde na região grave em compasso 3/4 (c. 33). O intérprete
deve ressaltar os sfz (c. 31-33), únicos acentos indicados na série dos prelúdios. Este
trecho exige do pianista um deslocamento rápido das mãos, em movimento paralelo, e
controle de sonoridade através dos diferentes registros. A execução das semicolcheias
deve ser bem incisiva, segundo o compositor, imaginando a peça escrita para orquestra
(VILLANI-CÔRTES, 2004a).
Ao identificar o potencial didático do Prelúdio Nº 8, foi possível observar as
seguintes habilidades técnicas desenvolvidas: acordes de três e quatro sons na m.d.;
legato de acordes em passagem extensa; legato em notas duplas; substituição de dedo;
movimento paralelo das mãos; riqueza de recursos timbrísticos; três planos sonoros;
oitavas; quintas na m.e.; condução de voz intermediária (c. 5, c. 21-30); legato em
passagens escalares diatônicas; saltos entre acordes e oitavas (c. 31-33); mudança de
fórmula de compasso; oitavas como notas presas e dedilhado com extensão entre os
dedos 4 e 5 na m.d. (c. 21-30); ornamentação: apojaturas na m.e. (c. 4; c. 17); agógica
variada: pouquíssimo affretando [sic] e cresc. (c. 5); rall (c. 9), a tempo (c. 10), poco
rubato (c. 12), a tempo (c. 14) cresc e affretando [sic] (c. 20) rall (c. 29) Tempo I e rubato,
molto expressivo (c. 31); pedal direito com troca sincopada.
21
Disponível em: http://imslp.org/imslp.
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
Prelúdio Nº 9 (1956)
As principais características do Prelúdio Nº 9 (1956) são o lirismo, a presença de
síncopes e a imitação melódico-rítmica, conforme mostra Exemplo 9.1:
Exemplo 9.1: Prelúdio Nº 9 (1956) (c. 1-4). Fonte: Hamond (2005, p.104).
Em grande parte, a dinâmica predominante é p em toque legato, o que deve exigir
do intérprete absoluto controle de toque. A mudança de textura (c. 14-15) confere uma
maior dramaticidade e um contraste de material. O intérprete deve mostrar o contraste
súbito entre um trecho (c. 14-16), com dinâmicas ff e o caráter brilhante, e outro seguinte (c. 16-20), que nos remete ao retorno do tema, diluído, com dinâmica p e natureza calma, conforme mostra o Exemplo 11.2. Após o acorde em ff (c. 16), há o retorno
da atmosfera de estabilidade.
Exemplo 9.2: Prelúdio Nº 9 (1956) (c. 14-18). Fonte: Hamond (2005, p.105).
A Coda (c. 21-24) inicia-se com o retorno do tema, mas uma oitava acima, com
o mesmo acompanhamento de acordes repetidos, e apresenta mudanças na agógica,
únicas em todo o prelúdio: poco rall (c. 20), a tempo (c. 21) e rall (c. 23), o que favorece
uma liberdade de condução do discurso musical pelo intérprete.
Ao identificar o potencial didático do Prelúdio Nº 9 (1956), foi possível observar as
seguintes habilidades técnicas desenvolvidas: legato em passagem extensa; possibilidade de substituição de dedo; acordes repetidos e em ritmo sincopado na m.e. (c. 1-11, c.
13, c. 16-22); controle de sonoridade e de timbre; arpejos na m.e. (c. 12; c. 23); mudanças de posição e deslocamentos rápidos: saltos na m.d. (c. 4, c. 8, c. 16-20) e na m.e. (c.
21-22); acordes de três sons nas duas mãos; acordes de quatro sons na m.d.; movimento paralelo das mãos, com saltos e superposição de acordes (c. 14-16); abertura de mão
na extensão de 8ª; pedal direito com troca sincopada.
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
Prelúdio op.2 Nº 922
Este prelúdio apresenta como principais características o uso do ritmo sincopado,
a exploração da harmonia e a presença de cromatismo e de texturas variadas. O prelúdio apresenta uma harmonia que nos remete ao jazz e à bossa nova, com a utilização
da escala de blues e de modalismo. O caráter Rítmico, com simplicidade oferece uma
liberdade de escolha do intérprete quanto ao andamento e à marcação metronômica,
ambos não indicados. Uma boa opção para o intérprete é adotar andamento Moderato
e a M.M. θ = 92. Nota-se nas primeiras notas o centro tonal em Dó, com a utilização
de escala de blues e passagens modais, e no final o centro tonal em Dó é restabelecido
(Exemplo 10.1).
A repetição da nota Dó aliada ao ritmo sincopado e à progressão harmônica (c. 4-5)
é um dos momentos em que podemos reviver elementos da música popular brasileira,
como por exemplo o Samba de uma nota só, de Tom Jobim (que foi gravada em 1960).
Acordes dissonantes em marcha harmônica ascendente e cromática conduzem o
início da Coda (c. 22(2)-30), formada por três frases curtas, em caráter tranquilo, apresentando o padrão: um acorde pedal, em registro grave, seguido de uma linha melódica
dobrada em oitavas.
Exemplo 10.1: Prelúdio op.2 Nº 9 (c. 1-9). Fonte: Hamond (2005, p.97).
Segundo Villani-Côrtes (2004b), esta indicação da dinâmica mf para o acorde é intencional, de modo que a zona de ressonância formada pelo acorde perdure até o final
do prelúdio (Exemplo 10.2).
22
O Prelúdio op.2 Nº 9 foi dedicado a Ulisses de Castro, amigo do compositor e editor do álbum dos Dez prelúdios e cinco interlúdios para
piano solo de Edmundo Villani-Côrtes, publicado pelo Estúdio Dois Produções Culturais. Foi escrito para completar o álbum publicado em 2000
pelo mesmo estúdio, como já foi dito anteriormente.
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do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
Exemplo 10.2: Prelúdio op.2 Nº 9 (c. 28-30). Fonte: Hamond (2005, p.99).
Ao identificar o potencial didático do Prelúdio op.2 Nº 9 (1998), foi possível observar
as seguintes habilidades técnicas desenvolvidas: possibilidade de toque staccato, portato
e non legato para enriquecer a sonoridade; passagem escalar em legato (c. 15-16); abertura de m.d. na extensão de 8ª; presença de tenuta (c. 3, c. 5-9, c. 10, c. 12, c. 21, c. 29);
notas repetidas (c. 4-5; c. 9; c. 17-18); movimento alternado com cruzamento das mãos
alternadas para execução de linha melódica (c. 3); acordes de três sons na m.d.; quintas
na m.e.; movimento paralelo das mãos (c. 24-30); saltos entre acordes e linha melódica (c.
24-30); notação: leitura em quatro pentagramas (c. 24-30); ornamentação: arpejo com
efeito de apojatura (c. 16); pedal direito com troca rítmica para trechos com articulações
e troca sincopada nos trechos em legato; possibilidade do uso de pedal tonal para sustentação de notas longas (c. 24-30) e do una corda para enriquecer o timbre (c. 24-30).
Prelúdio Nº 10
Este prelúdio é o mais conhecido e mais tocado de toda a produção de Villani-Côrtes, pois é a peça de abertura da suíte Cinco miniaturas brasileiras (1977), para flauta
doce e piano, e foi escrita para diversas formações, o que favorece sua divulgação. Naturalmente o andamento de cada versão varia de acordo com as características próprias
dos instrumentos para os quais foi transcrita. Na versão para trio de violino, violoncelo
e piano, um andamento mais lento valoriza as notas longas dos instrumentos de corda,
proporcionando mais expressividade à peça. Porém, as indicações Moderato e M.M. η =
58 são adequadas para uma interpretação pianística, favorecendo a manutenção de um
caráter fluente, conforme podemos verificar no Exemplo 11.1. As características mais
marcantes deste prelúdio são o lirismo, a presença de cromatismo e de uma passagem
escalar modal.
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
Exemplo 11.1: Prelúdio Nº 10 (c. 1-4). Fonte: Hamond (2005, p.100).
O intérprete deve ressaltar e equilibrar toda a riqueza de planos sonoros do prelúdio, controlando a dinâmica e o toque. Um material inteiramente novo e inesperado é
apresentado: uma sequência descendente de notas em ad lib. e outra ascendente, mais
rápida, em movimento alternado das mãos com o caráter etéreo. Este é um momento
único, com caráter de improvisação, em que o intérprete tem a liberdade de escolha de
como vai conduzir a agógica, conforme observamos no Exemplo 11.2.
Exemplo 11.2: Prelúdio Nº 10 (c. 37). Fonte: Hamond (2005, p.102).
A utilização do pedal direito associado com o pedal una corda é uma boa escolha
interpretativa para este trecho. O acúmulo de sons proveniente da sequência das notas
favorece uma zona de ressonância que retrata exatamente o que o compositor solicita: o
caráter etéreo. Apesar de não ser iniciada com nenhum dos temas anteriores, a Coda (c.
53-63) apresenta um material derivado dos mesmos, devido à utilização de arpejos, porém difere em termos melódicos, pois apresenta uma escala modal em lá dórico, um dos
únicos momentos em que o material modal é aplicado, conforme mostra o Exemplo 11.3.
Exemplo 11.3: Prelúdio Nº 10 (c. 53-54). Fonte: Hamond (2005, p.103).
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
Nos últimos compassos, o compositor dá certa liberdade de condução da agógica
ao intérprete através da notação com liberdade (c. 60), finalizando a peça.
Ao identificar o potencial didático do Prelúdio Nº 10, foi possível observar as seguintes habilidades técnicas desenvolvidas: legato em passagem extensa; possibilidade
de substituição de dedo; oitavas na m.e. (c. 1-6); arpejos em legato na m.d. (c. 1-6; c.
13-14) e na m.e.; abertura da mão na extensão de 8ª para m.d. e 10ª na m.e. por sustentação de notas presas (c. 7-22, c. 39-56); notas presas na m.d. e condução de voz (c.
13-14, c. 20-22, c. 45-46); legato em notas duplas na m.d. (c. 22-23; c. 25-27); acordes
de três e quatro sons; acordes com extensão de uma oitava em legato na m.d. (c. 31-36);
movimento alternado nas mãos em passagens escalares (c. 37); ornamentação: arpejo
com efeito de apojatura (c. 15; c. 39-40; c. 47-49; c. 59); notação: escrita em três pentagramas (c. 47-50); acordes de quatro sons (c. 58); pedal direito com troca sincopada
e una corda.
O potencial pedagógico dos onze prelúdios de E. Villani-Côrtes
A abordagem pedagógica de Uszler (1995) se alinha ao presente trabalho por tratar
as potencialidades de um repertório durante o seu estudo técnico-interpretativo, tornando o intérprete consciente dos principais recursos técnicos a serem utilizados até adquirir
uma melhor compreensão da obra através da análise musical. Portanto, o papel do professor de piano está em identificar o potencial de uma obra e conscientizar-se de quais
são as habilidades técnico-interpretativas necessárias para que um aluno possa se expressar com fluência e clareza através de sua performance. A associação do desenvolvimento
técnico-interpretativo com a análise musical da obra é um meio de fazer com que o aluno
tenha mais consciência da obra e compreenda melhor uma peça e consiga responder
musicalmente, através de seu preparo e vivência, o que ele imaginou expressar.
Podemos dizer que os Prelúdios de Villani-Côrtes trabalham as três áreas propostas por Uszler (1995). Algumas das habilidades estão presentes em todos os prelúdios.
Outras áreas são também muito frequentes, mas não ocorrem em todos os prelúdios. A
Tab. 6 mostra a incidência das áreas e subáreas de potencial pedagógico para desenvolvimento técnico-interpretativo em cada um dos prelúdios.
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
Tab. 6: Incidência23 das categorias propostas por Uszler (1995) nos prelúdios para piano de Villani-Côrtes.
Fonte: Adaptado de Hamond (2005, p.108).
Conclusão
Este trabalho veio integrar o Prelúdio Nº 9 (1956), editado pela Irmãos Vitale Editores (São Paulo) em 1977, aos dez prelúdios da publicação Dez prelúdios e cinco interlúdios (2000). Neste artigo, o Prelúdio Nº 9 foi incluído cronologicamente após o Prelúdio
Nº 8 e antecedendo o Prelúdio op.2 Nº 9. Os onze prelúdios podem ser executados
isoladamente ou em grupo, em ordem cronológica ou na escolhida pelo intérprete.
O contato com Edmundo Villani-Côrtes, através de entrevistas realizadas e depoimentos, foi imperativo na medida em que possibilitou o conhecimento da sua formação
musical, da sua trajetória como músico, de seus pensamentos sobre a música e a vida,
da sua produção musical, de suas principais composições para piano e de seu reconhecimento como compositor. As características mais marcantes desses prelúdios são a
diversidade e a liberdade da forma musical, a exploração de mudanças harmônicas e a
presença de atmosferas introspectivas e contemplativas, na maior parte das vezes.
Os prelúdios são textos musicais que refletem o pensamento do compositor e deixam transparecer o conhecimento e a vivência musical do autor como pianista. As peças
são muito bem escritas para o piano, o que torna a obra idiomática para o instrumento.
A escrita dos prelúdios é clara e concisa, com um nível de detalhamento que constantemente oferece ao pianista oportunidades de decisões interpretativas, seja através de
elementos indicados na partitura, que apresentam diversas possibilidades de execução,
23
Legenda: -
sem incidência (cinza)
+
pouca incidência (verde)
++
média incidência (laranja)
+++
muita incidência (vermelho)
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Onze prelúdios para piano solo de Edmundo Villani-Côrtes: uma análise para a compreensão
do potencial didático da obra para o desenvolvimento de habilidades técnico-interpretativas
tais como fraseado e sonoridade, seja através de elementos não escritos, convidando o
pianista a realizar uma interpretação única e individual de cada obra.
A análise musical dos aspectos interpretativos e técnicos (KOCHEVITSKY, 1967;
SCHMALFELDT, 2002; SCHMALFELDT apud CAVAZOTTI; GANDELMANN, 2002) dos prelúdios revelou que esta obra se enquadra nas três áreas de desenvolvimento propostas
por Uszler (1995) para o estudo pianístico de nível intermediário. Porém, ressaltamos
que os Prelúdios Nº 1 e Nº 7 apresentam características mais próximas às de peças de
nível avançado quando comparados aos demais prelúdios. A identificação e a avaliação
das habilidades desenvolvidas mostram que esta obra pode ser utilizada como material
didático para alunos do nível intermediário do estudo pianístico, auxiliando professores
e alunos que buscam escolher um repertório brasileiro ainda pouco conhecido, rico em
aspectos técnicos e interpretativos, e representativo da linguagem do compositor. Este
repertório, de fácil assimilação e compreensão, pode ser utilizado como material didático
para desenvolver habilidades técnicas e interpretativas de alunos do nível intermediário.
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VILLANI-CÔRTES, Edmundo. Depoimento no curso Seminários de Práticas
Interpretativas I. Rio de Janeiro: Unirio, jun./jul. 2003a. (ANEXO 5 de HAMOND, 2005).
VILLANI-CÔRTES, Edmundo. [Entrevista cedida à] Luciana Hamond. São Paulo, 28 e 29
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VILLANI-CÔRTES, Edmundo. [Entrevista cedida à] Luciana Hamond. Rio de Janeiro, 15
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VILLANI-CÔRTES, Edmundo. Cinco miniaturas brasileiras. Flauta doce e piano. São
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VILLANI-CÔRTES, Edmundo. Edmundo Villani-Côrtes: 10 Prelúdios e 5 Interlúdios para
piano. Rio de Janeiro: Musica Brasilis, 2015.
VILLANI-CÔRTES, Edmundo. Prelúdio Nº 3. Piano. São Paulo, Rio de Janeiro: Cultura
Musical, 1980. 1 partitura. 3 p.
VILLANI-CÔRTES, Edmundo. Prelúdio Nº 4. Piano. São Paulo, Rio de Janeiro: Cultura
Musical, 1981. 1 partitura. 3 p.
VILLANI-CÔRTES, Edmundo. Prelúdio Nº 9. Piano. São Paulo, Rio de Janeiro: Irmãos
Vitale, 1977. 1 partitura. 2 p.
ZANON, SONIA REGINA. A obra de câmera para contrabaixo acústico de Edmundo
Villani-Côrtes: contribuições interpretativas a partir de considerações sobre o
idiomatismo do instrumento. 2005. 127 f. Dissertação (Mestrado em Música) –
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
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10.5965/2525530405022020e0002
A DIDÁTICA NA LITERATURA DE TÉCNICAS
ESTENDIDAS DE PRODUÇÃO DE SOM
PARA VIOLINO
Lourenço De Nardin Budó1
ldb807@gmail.com
Submetido em 08/04/2020
Aprovado em 24/06/2020
ORFEU, v.5, n.2, 2020
P. 1 de 23
A DIDÁTICA NA LITERATURA DE TÉCNICAS ESTENDIDAS
DE PRODUÇÃO DE SOM PARA VIOLINO
Resumo
Este artigo é um passo no sentido da
organização do corpus de recursos didáticos para a prática de técnicas estendidas
para violino através de uma investigação
exploratória bibliográfica. O trabalho parte de uma proposta de categorização de
técnicas estendidas, o que permite estudá-las mais detalhadamente, e concentra-se na categoria que foi definida como
“técnicas de produção de som específicas
do violino”. O estudo resulta na constatação de uma considerável quantidade de
obras textuais e musicais. Dentre as obras
textuais, apesar de todas terem alguma relevância, nem todas têm cunho decididamente didático; dentre as obras musicais,
a amostragem trouxe uma quantidade pequena de estudos e peças realmente voltados especificamente para esta categoria
de técnicas.
Abstract
The present article is a step towards
organizing the corpus for extended violin techniques didactic resources, by the
means of an exploratory bibliographic
investigation. It departs from a proposed
categorization of extended techniques,
which enables studying them in more detail, and has been focused in the category
defined as “sound production techniques
specific to the violin”. The study has found
that there is a considerable amount of
textual and musical works. Among textual works, despite all of them having some
relevance, not all of them are decidedly didactic; among the musical ones, the sample has brought a small number of etudes
and pieces that in fact explore this category of techniques.
Keywords: Violin. Extended techniques. Instrument teaching. Didactic litPalavras-chave: Violino; Técnicas es- erature.
tendidas; Técnicas expandidas; Ensino do
instrumento; Literatura didática.
1
Doutor em Música com ênfase em performance do violino pela University of Georgia. Na mesma área, possui Mestrado pela Illinois State
University e bacharelado pela Universidade Federal de Santa Maria. É também formado em Comunicação Social - Habilitação Publicidade e Propaganda pela UFSM. De 2018 a 2019 foi professor da escola de música do Instituto Porto-alegrense de Arte-Educação. Lecionou também no projeto
social Vida com Arte, vinculado à Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2011-2013), e no curso de extensão em música da UFSM (2005-2008).
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A DIDÁTICA NA LITERATURA DE TÉCNICAS ESTENDIDAS
DE PRODUÇÃO DE SOM PARA VIOLINO
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa2 foi impulsionada por um sentimento de dissociação entre ensino
e prática de técnicas estendidas,3 posto que, apesar destas serem recorrentes na atualidade, a maior parte dos estudos e métodos de ensino está centrada no repertório
violinístico dos séculos XVIII e XIX. Marcações como, por exemplo, sul tasto,4 sul ponticello,5 col legno trato,6 col legno battuto,7 pizzicato Bartók,8 overpressure9 e efeitos
percussivos,10 na atualidade, constituem uma linguagem sonora que não deveria ser de
todo estranha aos instrumentistas de cordas. No entanto, métodos, tratados e livros de
estudos que protagonizam os currículos de ensino violinístico dificilmente cobrem de
forma aprofundada esta área da performance, cujo ensino falho pode resultar na execução ineficaz e no desinteresse de violinistas por grande parte do repertório que lhes
é temporalmente mais próximo. Isso ainda pode contribuir para o afastamento entre
compositor e intérprete, criando um ciclo que inviabiliza mais ainda uma escrita que
seja ao mesmo tempo inovadora e eficaz para o instrumento. Por isso, Padovani e Ferraz
(2011) sustentam a necessidade histórica da colaboração entre compositores e instrumentistas e, ao descreverem os processos sonoros dos compositores Berio, Ferneyhough e Lachenmann, ressaltam que
[...] cada vez mais as partituras precisam vir acompanhadas de textos e notas
de performance que descrevem não apenas os recursos de notação utilizados,
mas também as maneiras de se realizar determinadas técnicas instrumentais/
vocais. Por essa mesma razão, torna-se cada vez mais essencial estabelecer um
laço de cooperação entre os compositores e os instrumentistas, marca distintiva
da composição com recursos instrumentais estendidos da segunda metade do
século XX. (PADOVANI; FERRAZ, 2011, p.29).
Este laço de cooperação pode muito bem ser reforçado, do lado do intérprete,
dentro do ensino formal do instrumento através da prática de técnicas presentes no
repertório contemporâneo e do desenvolvimento de uma mentalidade receptiva à ino-
2
O estudo deste tópico foi tangenciado no desenvolvimento da tese de doutorado do presente autor realizado junto à University of
Georgia, sendo aprofundado posteriormente e apresentado aqui na forma de artigo.
3
Na literatura acadêmica brasileira, as expressões “técnica estendida” e “técnica expandida” são utilizadas de forma equivalente. A
palavra “estendida” foi adotada neste artigo, já que a bibliografia mais recente levantada favorece o uso desta.
4
“Sobre o espelho”. Indicação para tocar com o arco sobre o espelho, gerando um som “flautado”, pobre em harmônicos agudos.
5
“Sobre o cavalete”. Indicação para tocar com o arco sobre ou muito próximo ao cavalete, gerando um som distorcido, com a predominância de harmônicos agudos.
6
Indicação para tocar passando a madeira do arco, ao invés da crina, na corda.
7
Indicação para tocar batendo a madeira do arco na corda.
8
Nome derivado da forte associação desta técnica ao compositor Bèla Bartók. Consiste em uma indicação para realizar o pizzicato puxando a corda de modo que esta bata no espelho ao soltar. É também referido como snap pizzicato, principalmente no contexto da língua inglesa.
9
Indicação para tocar com pressão excessiva, distorcendo o som e possivelmente gerando sub-harmônicos.
10
Sons realizados por meio de batidas no instrumento ou da emulação de sons percussivos.
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vação.11 No entanto, o que acontece desde cedo no ensino de instrumento é justamente
a negação da legitimidade dos sons “estendidos” (SPOSITO, 2016),12 assim como a literatura geralmente considerada como referencial básico para o estudo do violino (como
os importantes tratados de Flesch e Galamian, ou Violin Lesson, de Simon Fischer) está
claramente defasada neste quesito. Estudiosos da área, como Sarch (1982), Patricia e
Allen Strange (2001), Tischhauser (2002) e van der Merwe (2005), já apontaram também
para a insuficiência de métodos tradicionais do século XX, descendentes das tradições
franco-belga, russa e estadunidense, na formação do violinista contemporâneo, dada a
emergência de tantos estilos, técnicas e formas de notação musical desde o início daquele século (BUDÓ, 2018, p.4).
Buckles (2003),13 no entanto, argumenta que não existe um vazio na literatura
didática, mas sim na pesquisa. Ele coloca os livros de estudos de Bohuslav Martinů (7
Études rhythmiques – 1932), Eugène Ysaÿe (10 Préludes, Op. 35 – 1952), Paul Hindemith
(Übungen für Geiger – 1967), John Cage (Freeman Etudes – 1981) e Samuel Adler
(Meadowmountetudes – 1996) como referências para capacitar o instrumentista a
executar a música da atualidade. Pode ser adicionada à lista parte do trabalho dos famosos
pedagogos Galamian e Neumann (1966)14 e Rostal (pela sua revisão de Scale System, de
Flesch [1987]15), que também já contribuíram neste sentido incluindo estudos de escalas
que incorporam elementos da escrita contemporânea. Estas obras de fato exploram
muitos aspectos da linguagem musical moderna que afetam a técnica violinística
(intervalos, escalas, arpejos, saltos, ritmos, polirritmos e métrica), no entanto, no que
diz respeito a técnicas de produção de som particulares do violino (como os efeitos
mencionados no primeiro parágrafo), essas obras se mostram bastante incompletas.
Mesmo Buckles, que defende a inexistência de um vazio na literatura didática, conclui
que, dentro de sua amostra de livros de estudos pesquisados, técnicas de produção de
som são incorporadas apenas em Freeman Etudes, de Cage, uma obra apenas acessível
ao instrumentista mais avançado (BUCKLES, 2003, p.204 apud BUDÓ, 2018, p.5).
11
Naturalmente, a escrita musical contemporânea não é apenas fundada em técnica estendida ou sequer precisa ter a inovação como
um fim, além de que, como o fenômeno complexo que é, não pode ser colocada em uma categoria homogênea. Estes pontos são trazidos aqui
simplesmente como elementos presentes neste repertório e que se fazem parte desafiadora da prática violinística atual, no caso de um instrumentista cujo ensino gravitou essencialmente pelos estudos mais tradicionais, associados à música dos séculos XVIII e XIX.
12
Como escreve o autor, “O arco muito próximo ao cavalete (sul ponticello), acima do espelho (sul tasto), quase sem pressão (flautato) ou
com pressão excessiva, distorcendo o som (écrasé), são sonoridades muito comuns no fazer musical de um aluno iniciante. A correção feita pela
maioria dos educadores mostra aos alunos que esse modo de tocar é ‘errado’” (SPOSITO, 2016).
13
“The void is to be found in the present state of violin literature research. Specifically lacking is the recognition that there appears to be
a significant number of contemporary etude books to equip a violinist to successfully perform contemporary music” (Buckles, 2003, p. xii).
Na seção “Algumas Escales e Arpejos não Tradicionais”, os autores descrevem que “as escalas e arpejos presentes nesta seção foram
14
pensadas como um material introdutório de estudo para a música contemporânea.” (GALAMIAN; NEUMANN, 1966, p. 66, tradução minha).
15
Rostal inclui diversos exercícios suplementares pouco comuns em livros tradicionais de escalas e arpejos, incluindo escalas de tons
inteiros, quartos de tom, trítonos e pizzicato de mão esquerda, os quais podem ser encontrados nas páginas 121-42 da edição de 1987.
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DELIMITAÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO E METODOLOGIA
A definição de técnica estendida adotada comumente na literatura parte do que
Padovani e Ferraz (2011, p.11) consideram “modos de tocar um instrumento ou utilizar a
voz que fogem aos padrões estabelecidos principalmente no período clássico-romântico”, ou, de forma mais abrangente, “maneira de tocar ou cantar que explora possibilidades instrumentais, gestuais e sonoras pouco utilizadas em determinado contexto
histórico, estético e cultural”. Tokeshi (2003, p.53) ainda defende que “recursos tradicionais […], quando tratados de forma não convencional, também são objeto de estudo de
técnica expandida”.16 Kubala e Tokeshi ilustram esta ideia relacionado o termo
[…] à técnica instrumental demandada por trechos em que ocorre o emprego de
variedade de recursos [como tremolo, glissando, harmônicos, alternância métrica, ritmos complexos etc.] em simultaneidade ou em curto espaço de tempo,
recursos esses ligados ou não à tradição do instrumento, resultando em escrita
complexa e de dificuldade incomum. (KUBALA; TOKESHI, 2016, p.189).
Nesta área, também, comumente os termos “estendida”, “não convencional” ou
“contemporânea” são utilizados de forma permutável, embora haja técnicas hoje classificadas como “estendidas”, por exemplo, col legno battuto, cuja utilização data dos
primórdios do período barroco.17 Da mesma forma, diferentes instrumentistas podem
considerar determinada técnica como sendo convencional ou não, de acordo com suas
próprias experiências. As execuções de intervalos e acordes que exigem padrões muito
estendidos ou contraídos da mão esquerda, de ritmos e polirritmos complexos, ou até
mesmo de escalas como octatônica, de tons inteiros e acústica, por serem recursos associados à música a partir do século XX (e por trazerem demandas técnicas diferentes
daquelas da música dos séculos XVIII e XIX), podem também ser enquadradas por muitos no espectro das técnicas estendidas.
Sendo este tema, portanto, tão abrangente, no presente trabalho optou-se pela
criação de quatro categorias de técnicas estendidas para possibilitar um estudo mais
detalhado. As categorias propostas aqui são:
1. Técnicas cuja demanda deriva da linguagem rítmica e harmônica característica
da música moderna (as quais envolvem uma maneira de se pensar o aprendizado e a expressão musical de uma forma que não é comumente praticada na música até o período
romântico em termos do uso de intervalos, acordes, escalas, arpejos, dinâmicas, ritmos,
polirritmos e métrica – algo que diz respeito a todos os instrumentos musicais);18
2. Técnicas de produção de som específicas do instrumento19 (que demandam repensar questões fundamentais da execução do violino especificamente, tais como sul
16
O termo “técnica expandida” é usado pela autora como sinônimo de “técnica estendida”, sendo esta a forma mais recorrente na atualidade.
17
Padovani e Ferraz (2011, p.14) apontam, por exemplo, a peça de Tobias Hume para viola da gamba intitulada Harke, Harke, do conjunto
de peças The First Part of Ayres ou Musicall Humors, publicado em 1605, no qual o compositor demanda o uso de técnica análoga a col legno battuto.
18
Pode-se enquadrar aqui também o que Tokeshi (2003, p.53) classifica como recursos tradicionais tratados de forma não convencional.
19
Embora o foco aqui seja o violino, muitas destas técnicas são, na realidade, comuns a todos os instrumentos de cordas friccionadas.
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tasto, sul ponticello, col legno tratto, col legno battuto, pizzicato Bartók. Também é
enquadrada aqui a microtonalidade);20
3. Técnicas que envolvem modificações do instrumento (como scordatura, violino
preparado,21 violinos e arcos estendidos,22 uso de amplificação);
4. Combinação da execução violinística com o uso de efeitos vocais, assobios, objetos/instrumentos suplementares, encenação etc.
Esta classificação permite observar de forma mais específica tipos de técnicas presentes na literatura e, por duas razões, optou-se por priorizar a segunda categoria neste
estudo, sendo elas: 1) ela envolve questões puramente violinísticas, sem a demanda de
recursos especiais; e, 2) em comparação com a primeira categoria (vide trabalhos de
grandes compositores, instrumentistas e pedagogos mencionados anteriormente: Hindemithm, Ysaÿe, Adler, Cage, Martinů, Galamian e Rostal), há menos recursos de caráter
didático e de conhecimento geral que incluam a segunda.
Os objetivos almejados aqui são o de contribuir para o aprofundamento do estudo
de técnicas estendidas e o de promover a união entre prática e ensino das mesmas através da construção de um panorama de recursos textuais e musicais dedicados ao tema.
Em termos específicos, buscou-se: trazer à tona obras textuais e musicais sobre técnicas estendidas para violino; constatar as categorias de técnicas existentes em trabalhos;
analisar o tipo de abordagem dada ao tema, de acordo com a presença ou não de um enfoque didático; identificar que tipos de recursos didáticos são empregados (se houver).
O estudo seguiu um método de pesquisa exploratória bibliográfica no campo das
técnicas estendidas, com ênfase nas técnicas de produção de som. Para tanto, foram
buscadas fontes de cunho acadêmico nas línguas inglesa e portuguesa em catálogos
como GIL-Find Universal Catalog e WorldCat, bem como nos bancos de dados para teses e dissertações ProQuest e BDTD. As fontes encontradas como resultado desta pesquisa foram divididas entre obras textuais (livros, teses e dissertações) e obras musicais,
conforme apresentadas a seguir.
LITERATURA PARA TÉCNICAS ESTENDIDAS DE VIOLINO
Obras textuais
Livros
Um dos volumes mais citados e recorrentes em programas de ensino é o The
contemporary violin: extended performance technique (2001), no qual Patricia e Allen
20
Pode-se argumentar que o uso de microtonalidade deriva da linguagem harmônica do compositor e não é uma questão específica do
violino (pertencendo à categoria 1, portanto); por outro lado, a execução de intervalos como quartos de tom demanda também repensar questões
fundamentais da prática (categoria 2), não em termos de timbre, mas de afinação, diferentemente de outras técnicas classificadas na categoria 1,
as quais utilizam as mesmas notas e intervalos da música clássico-romântica, só que em um contexto diferente.
21
Entende-se por “preparado” o instrumento no qual são adicionados acessórios não convencionais (grampos presos nas cordas, objetos
colocados sobre o tampo etc.) para a modificação de sua sonoridade sem alterar sua construção.
22
Entende-se por “estendido” o instrumento ou arco construídos diferentemente do padrão considerado tradicional na atualidade.
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Strange explanam as mais diversas técnicas com base em repertório de um abundante número de compositores. Parte da série The New Instrumentation,23 este volume é
dividido em oito capítulos e trata dos assuntos: 1) técnicas de arco; 2) dedos das mãos
esquerda e direita; 3) técnicas percussivas; 4) harmônicos; 5) sistemas de afinação; 6)
violino preparado, estendido e efeitos diversos; 7) amplificação e processamento de
sinais; (8) Midi, cordas e computador. Do ponto de vista didático, esta obra tem grande
valor pela inclusão de detalhadas descrições (incluindo sutis variações dentro de uma
determinada técnica), todas ilustradas em contexto a partir de exemplos musicais de
um vasto repertório. Outro ponto positivo é o enfoque voltado primariamente a técnicas de produção de som, categoria visada aqui, assim como a inclusão de uma discografia referente ao repertório discutido no livro. Entretanto, apesar de apresentar boas
recomendações para a execução de muitas das técnicas abordadas, os autores não propõem exercícios, sistemas de estudos e, apesar de haver muitos exemplos musicais das
obras citadas, ilustrações de como executar as técnicas são escassamente utilizadas.
Steinberg (2002) levanta críticas devido à ausência de comentário sobre como várias
técnicas descritas podem afetar adversamente o instrumento e devido ao fato de o volume não trazer um CD para ilustrar o panorama sonoro (embora haja a discografia).
Este autor chega a concluir sugerindo que a obra pode ser mais interessante para compositores e musicólogos do que para instrumentistas (STEINBERG, 2002 p.352). Apesar
disso, esta certamente permanece sendo a principal referência para o estudo de técnicas violinísticas estendidas.
Uma referência mais recente é The techniques of violin playing, de Irvine Arditti e
Robert Platz (2013). Interessantemente, esta obra foi concebida em um formato como
se um violinista (Arditti) estivesse aconselhando o compositor (Platz) dentro do tópico das diversas técnicas do instrumento utilizadas na modernidade. O trabalho não é
limitado a técnicas estendidas, mas, muito devido à vasta experiência de Arditti com a
música contemporânea, inclui uma grande porção destas com exemplos musicais do
repertório. Além de conter uma narrativa de colaboração entre compositor e intérprete,
dada como essencial por Padovani e Ferraz (2011), este volume chama a atenção também por ser acompanhado por um DVD com demonstrações e comentários de Arditti a
respeito de muitas das técnicas abordadas no livro. Apesar de ser uma obra útil para fins
de ensino, esta também não é uma obra sistematizada de forma inteiramente didática,
posto que, como em The contemporary violin, não há a formulação de estudos e exercícios práticos.
Teses e dissertações
Além de críticas aos métodos e sistemas tradicionais de ensino, a pesquisa acadêmica na área já rendeu também o desenvolvimento de novos recursos didáticos. Dentre
alguns nomes, que inclusive já foram citados, podemos destacar três autores de trabalhos de pós-graduação especificamente voltados ao ensino de técnicas estendidas: Sar23
Que contém também obras com um similar enfoque sobre diversos outros instrumentos.
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ch (1982), Tischhauser (2002) e van der Merwe (2005). Em The Twentieth Century violin:
a treatise on contemporary violin technique, Sarch (1982) traz muitos esclarecimentos
sobre o desenvolvimento de uma grande diversidade de técnicas tanto dentro do contexto do repertório violinístico já estabelecido, como através de estudos autorais. Os
estudos em geral atendem a uma técnica ou fundamento específico, no formato de pequenas frases, exercícios técnicos, ou peças curtas/miniaturas. Eles estão dispostos ao
longo do documento, dentro da seção que discute a técnica correspondente utilizada.
São contempladas nesta obra técnicas de execução das quatro categorias estabelecidas, havendo uma grande diversidade de efeitos de produção de som (Fig. 1 e 2).
Fig. 1: Estudo nº 2 para a técnica col legno battuto. “Bater: sobre o espelho, em direção ao cavalete, espelho”.
Fonte: Sarch (1982, p.17, tradução minha).
Fig. 2: Estudo nº 3, para mudanças súbitas de timbre (compassos 10-24), contendo técnicas de produção de som,
como harmônicos, flautando, col legno tratto, col legno battuto, overpressure, além de técnicas associadas à linguagem
harmônica moderna, como escala de tons inteiros e deslocamento de oitava. Fonte: Sarch (1982, p.42).
Em sua tese, intitulada “A survey of the use of extended techniques and their notations in Twentieth Century string quartets written since 1933 by american composers
with a selected annotated bibliography and discography”,24 Tischhauser (2002) discute
24
“Um levantamento sobre o uso de técnicas estendidas a suas notações em quartetos do século XX escritos por compositores estadu-
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o tema dentro de um recorte aparentemente específico (como sugere o título), mas que
inclui mais de 100 compositores. Apesar de não ser um trabalho essencialmente pedagógico em sua concepção, o segundo capítulo (“Extended techniques utilized in the
Twentieth Century string quartets by american composers”) deste documento traz uma
extensa compilação de recursos da notação musical moderna (como, por exemplo, na
Fig. 3) com uma breve discussão a respeito de sua execução do ponto de vista técnico,
servindo como um bom guia prático. Outro ponto interessante é a inclusão de uma bibliografia anotada e discografia do repertório, como o título propõe.
Fig. 3: Algumas das doze diferentes formas de notação para maneiras de se tocar entre o cavalete
e o estandarte do instrumento compiladas pela autora. Fonte: Tischhauser (2002, p.30).25
Já o trabalho de Van der Merwe (2005), New frontiers in the art of violin performance: the contemporary study and pedagogy of extended performance techniques for
the violin, aborda o tópico a partir da análise de um repertório contendo o violino como
parte principal. Ao longo dos três capítulos iniciais, uma grande diversidade de técnicas
é discutida, com a utilização de muitos exemplos musicais, mas sem o desenvolvimento de exercícios técnicos. O quarto capítulo, no entanto, consiste em um compêndio
de oito caprichos para violino solo compostos pela autora, uma significativa contribuição didática embasada na análise do repertório. Cinco deles cobrem técnicas derivadas
da linguagem rítmica e harmônica (categoria 1), sendo elas: harmônicos, mudanças de
métrica, deslocamento de oitava, polirritmos, acordes e cordas duplas. Dos demais, um
deles envolve scordatura (categoria 3), ao passo que outros dois envolvem técnicas de
produção de som específicas do violino (categoria 2), sendo um deles para diversos
efeitos de timbre (Fig. 4) e o outro para microtons (Fig. 5). A autora também propõe um
formato de escala microtonal, incluindo dedilhado e um padrão rítmico para estudo.
nidenses a partir de 1933 com selecionadas bibliografia e discografia anotadas” (TISCHHAUSER, 2002, tradução minha).
25
As explicações de cada símbolo, respectivamente, indicam: “notação comum para se tocar atrás do cavalete”; “tocar atrás do cavalete
nas quatro cordas”; “notação pouco comum para se tocar atrás do cavalete”; outra notação para se tocar atrás do cavalete”.
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Fig. 4: Capricho intitulado Timbre, contendo uma diversidade de técnicas estendidas com uma breve bula
para esclarecer a notação utilizada. Fonte: Van der Merwe (2005, p.171).
Fig. 5: Capricho intitulado Microtones, no qual são explorados quartos de tom, conforme a explicação
dos símbolos acima. Fonte: Van der Merwe (2005, p.179).
Como pode se esperar de trabalhos de autores baseados na Europa e nos Estados
Unidos, como os mencionados até aqui, o foco está geralmente no repertório de compositores provindos ou radicados nos países desse eixo. Mesmo a obra mais inclusiva,
The contemporary violin, analisa obras de uma quantidade esmagadoramente maior de
compositores europeus e estadunidenses, comparada ao número de nomes de outras
regiões. Por outro lado, no Brasil, pesquisas na área foram impulsionadas nas últimas
décadas com o foco no repertório composto por brasileiros. Alguns dos estudos mais
citados incluem o artigo “Técnica expandida para violino e as variações opcionais de
Guerra-Peixe: reflexão sobre parâmetros para interpretação musical” (TOKESHI, 2003)
e o trabalho apresentado em congresso da Anppom “Técnica expandida para violino:
classificação e avaliação de seu emprego na música brasileira” (COPPETI; TOKESHI,
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2005). Interessantemente, o tópico tem sido explorado também em teses e dissertações de diferentes formas nos últimos cinco anos, como visto nos trabalhos de Lôbo
(2016), Rufino (2017), Budó (2018) e Krewer (2019), sendo os três últimos, no entanto,
escritos na língua inglesa.
Em consonância com a já mencionada proposta de aproximação entre intérprete e
compositor de Padovani e Ferraz (2011), o violinista Lôbo (2016) escreveu “Composição
e intérprete: reflexões sobre processo criativo em Caminho Anacoluto II – quasi-Vanitas
de Marcílio Onofre”, dissertação de mestrado na qual justamente descreve a maneira
como colaborou com o compositor, Onofre, na criação da referida peça para violino
e piano. Apesar de não ser parte central da dissertação, foram dedicadas seções para
a discussão da “Técnica Expandida” de uma forma geral (LÔBO, 2016, p.21-26), bem
como, mais especificamente, “O violino e sua expansão técnica em Caminho Anacoluto II” (LÔBO 2016, p.39-45). O trabalho contém uma boa contextualização de técnicas
não tão recorrentes, tais como pizzicato com a unha, pizzicato atrás do cavalete, tonlos,26 bow in the instrument body,27 silent fingering28 e, provavelmente a mais curiosa de
todas, “cuíca”29 (todos os nomes mantidos como utilizados pelo compositor). A Fig. 6
ilustra uma passagem que contém a notação do compositor para algumas das técnicas
discutidas na obra.
Fig. 6: Excerto de “Caminho Anacoluto II”, de Marcílio Onofre, com a utilização de duas
das mencionadas técnicas. Fonte: Lôbo (2016, p.69).
Caminho Anacoluto II, de Onofre, foi também material de estudo de Rufino (2017),
cujo trabalho de doutorado foi intitulado “Styles and extended techniques in 6 works for
violin from Paraíba since 1952”. Apesar de ser textualmente modesta, a obra de Rufino
tem um excelente aspecto: a produção de uma gravação em estúdio de todo o reper26
Do alemão: tonlos = “sem som”. Indicação para passar o arco (possivelmente de forma oblíqua) pelas cordas abafadas com a mão esquerda, de modo a não gerar notas definidas (nem mesmo por harmônicos).
27
Do inglês, “passar o arco no instrumento”. O autor não clarifica, porém, maiores detalhes.
28
Do inglês, “dedilhar silenciosamente”. Bater os dedos da mão esquerda na corda sem utilizar o arco.
29
Esta técnica demanda que um fio de crina seja amarrado na corda sol do instrumento, sendo o som produzido através da fricção dos
dedos indicador e polegar deslizando por este fio, de forma análoga ao processo de produção de som em uma cuíca (LÔBO, 2016, p.33).
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tório estudado, a qual pode ser acessada on-line30 e que, segundo o autor, “representa
o primeiro álbum inteiramente dedicado ao repertório violinístico da Paraíba” (RUFINO,
2017, p.24). A parte escrita do trabalho, assim como em muitos outros casos explorados
aqui, não é fundamentalmente didática e se restringe a uma breve lista com as notações
e descrição das técnicas estendidas utilizadas em duas das obras gravadas: Lágrimas de
Oort, de Ticiano Rocha, para violino solo; e, como já mencionado, a peça de Onofre.
Por não conter técnicas estendidas per se, o restante do repertório foi analisado mais
em termos de métodos composicionais e estilo, na maioria associados ao folclore nordestino brasileiro.
Dois outros trabalhos, Budó (2018) e Krewer (2019), propõem-se diretamente a
sanar algumas lacunas didáticas da literatura. Intitulado “Analysis of uncompiled extended violin techniques with didactic musical and audiovisual examples”, Budó enfoca o
aprendizado de técnicas pouco visadas em compilações do gênero, como técnicas do
tango argentino, do folk norte-americano e da música de concerto brasileira.31 Esta tese
foi concebida através de uma perspectiva didática do ponto de vista do músico classicamente treinado, contendo, além da descrição das técnicas em seu contexto, novas experimentações com elas. São apresentados exemplos musicais, figuras, exercícios (Fig.
7), recursos audiovisuais (acessíveis via link para vídeo disponibilizado no YouTube) e
uma seleção de quatro caprichos autorais utilizando as técnicas discutidas (Fig. 8).
Fig. 7: Exercício para a execução de bow chops, articulação percussiva característica
do bluegrass norte-americano.32 Fonte: Budó (2018, p.58).
30
Através do site oficial da universidade: https://era.library.ualberta.ca/search?facets%5Ball_contributors_sim %5D%5B%5D=Vladimir+Rufno; ou no YouTube, onde todas as faixas foram disponibilizadas pelo canal “Vladimir Rufino” e podem ser facilmente localizadas através
das palavras-chave correspondentes.
31
É também discutido o tema de harmônicos em terça menor nos caprichos de Salvatore Sciarrino, obra que, em contraste com o restante do repertório, é muito mencionada na maioria dos estudos de técnicas estendidas.
32
Vídeo com a demonstração deste exercício disponível em: https://youtu.be/kG1HAQndggc.
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Fig. 8: Capricho explorando possibilidades diversas a partir da técnica “cuíca”. Fonte: Budó (2018, p.90).
Krewer, por outro lado, procurou sanar a ausência de recursos didáticos para alunos intermediários, posto que “a maior parte do material é direcionado para estudantes
avançados ou instrumentistas profissionais” (KREWER, 2019, p.ix). Na tese “Extended
techniques for intermediate violin students”, a autora analisa técnicas recorrentes no
repertório divididas em duas grandes categorias: mão direita e mão esquerda. A partir
desta análise, são descritas formas de se praticar as determinadas técnicas. Alguns exercícios autorais são propostos (Fig. 9), bem como é sugerida a prática através de passagens do repertório (Fig. 10). Diferentemente das demais obras por autores brasileiros,
esta não visa o repertório nacional em especial e atém-se principalmente a exemplares
provindos da Europa.
Fig. 9: Exercício para alternância entre posições de arco e pizzicato. Fonte: Krewer (2019, p.91).
Fig. 10: Excerto do terceiro movimento da Sonata de Karel Husa proposto como exercício para
a prática de quartos de tom. Fonte: Krewer (2019, p.51).
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A DIDÁTICA NA LITERATURA DE TÉCNICAS ESTENDIDAS
DE PRODUÇÃO DE SOM PARA VIOLINO
Constata-se, então, que há uma considerável produção de obras textuais, especialmente nos últimos vinte anos, com alguma contribuição didática, embora nem todas tenham sua concepção centrada no ensino do instrumento, como é o caso de Patricia e Allen Strange (2001), Tischhauser (2002) e Arditti e Platz (2013). Os trabalhos de
Lôbo (2016) e Rufino (2017), apesar de não terem o ensino do instrumento e técnicas
estendidas como objeto principal de estudo (posto que abrangem outros assuntos, sendo técnicas estendidas um subtópico), são, por sua vez, fontes com informações relevantes sobre o tema, bem como trazem destaque ao repertório nacional. Quatro outras
obras incluem a produção de exercícios ou estudos práticos, sendo que Krewer (2019)
atém-se a exercícios técnicos, Van der Merwe a estudos musicais, ao passo que Sarch
(1982) e Budó (2018) incorporam ambos os modelos.
O uso de imagens, historicamente praticado em obras para o ensino do instrumento para fins de ilustrar como executar determinadas técnicas do ponto de vista postural, não é algo recorrente na amostragem analisada aqui. A demonstração sonora, algo
mencionado na contundente crítica de Seinberg (2002) à obra de Patricia e Allen Strange (2001), é algo com que alguns dos autores se preocuparam, trazendo discografias e
(em obras mais recentes) incorporando mídias sonoras ou audiovisuais ao trabalho. O
desenvolvimento tecnológico, principalmente na última década, propicia isto com mais
facilidade, mas ainda não é uma prática comum em trabalhos de cunho acadêmico. A
Tab. 1 apresenta uma análise comparativa dos conteúdos encontrados em cada uma das
obras textuais discutidas anteriormente.
Exemplos do
repertório
Exercícios/
estudos
Ilustrações
para execução
Recursos
auditivos ou
audiovisuais
Discografia
Sarch (1982)
P. Strange e A. Strange (2001)
Tischhauser (2002)
Van der Merwe (2005)
Arditti e Platz (2013)
Lôbo (2016)
Rufino (2017)
Budó (2018)
Krewer (2019)
Tab. 1: Obras textuais conforme a inclusão de elementos de caráter didático. Fonte: Elaborado pelo autor (2020).
Os tipos de técnica e repertório abordados nas obras também variam de acordo
com o autor. Como se pode ver na Tab. 2, as obras textuais tratam técnicas estendidas
de três formas: 1) dentro do âmbito da técnica violinística em geral; 2) como um assunto
em si, tratado de uma forma geral, porém separado da técnica violinística tradicional; 3)
com base na sua utilização dentro de um repertório ou gênero específicos, limitando-se
às técnicas presentes nestes.
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A DIDÁTICA NA LITERATURA DE TÉCNICAS ESTENDIDAS
DE PRODUÇÃO DE SOM PARA VIOLINO
Inclui técnicas
estendidas dentro
do âmbito da técnica
violinística em geral
Trata de uma seleção
Trata de técnicas
específica de técnicas de
estendidas de modo acordo com um repergeral
tório e/ou gênero(s)
selecionado(s)
Sarch (1982)
P. Strange e A. Strange (2001)
Tischhauser (2002)
Van der Merwe (2005)
Arditti e Platz (2013)
Lôbo (2016)
Rufino (2017)
Budó (2018)
Krewer (2019)
Tab. 2: Obras textuais de acordo com os tipos de técnica e repertório abrangidos. Fonte: Elaborado pelo autor (2020).
Existe também uma predominância de trabalhos que utilizam técnicas primariamente da música de concerto de compositores europeus e norte-americanos, com as
exceções de Lôbo (2016) e Rufino (2017), os quais deliberadamente optaram por estudar exemplares do repertório brasileiro de concerto, bem como Budó (2018), que,
além disso, traz um enfoque também nas técnicas do tango argentino e da música folk
norte-americana.
Obras musicais
Dentre o repertório de natureza didática, uma interessante fonte provém de uma
comissão da American String Teacher Association (ASTA) para construir uma ponte entre
literatura tradicional de ensino e música contemporânea, a qual resultou na publicação
16 contemporary violin etudes for study and performance (1982). Editada pelo violinista
Eugene Gratovich, a obra é formada por estudos musicais escritos pelos compositores
Allan Blank, Ralph Shapey, George Flynn e Virko Baley (sendo quatro estudos de cada
compositor). As peças exploram as mais diversas técnicas utilizadas na música contemporânea, indo do relativamente simples ao extremamente complexo.
Os estudos de Blank e Shapey demandam uma habilidade considerável do instrumentista, apesar de serem certamente os mais didáticos e acessíveis. Blank baseou
grande parte do conteúdo técnico de seus quatro estudos em duas obras suas (Music
for solo violin [1961] e Music for solo violin [1972]) (GRATOVICH, 1982, p.4), sendo que
os três primeiros lidam primariamente com alternância entre intervalos e padrões de
mão esquerda, tanto de forma melódica (estudos I e II) quanto harmônica (estudos I
e III), contendo principalmente muitas contrações de mão esquerda. O quarto estudo
incorpora a isto acordes e efeitos variados de articulação e timbre, como harmônicos,
tremolo, sul tasto/ponticello, pizzicato, sendo assim o único deste compositor a incluir
técnicas categorizadas como de produção de som específicas do violino (Fig. 11). O
compositor também inclui um exercício preparatório de alternância de padrões de mão
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A DIDÁTICA NA LITERATURA DE TÉCNICAS ESTENDIDAS
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esquerda (Fig. 12) em preparação ao estudo II, o qual é recomendado por Gratovich
como ponto de partida para a prática de todas as obras do livro.
Fig. 11: Estudo de Blank (1982) intitulado Mixtures, com técnicas variadas. Fonte: Gratovich (1982 p.13).
Fig. 12: Exercício preparatório de alternância de padrões de mão esquerda proposto por Blank (1982).
Fonte: Gratovich (1982 p.10).
Dentre outras habilidades técnicas características da modernidade, os estudos de
Shapey enfatizam intervalos/acordes dissonantes, extensões e especialmente grandes
mudanças de registro, demandando muitas vezes a execução de posições altas em cordas graves (Fig. 13). Para este estudo, Gratovich desenvolveu uma série de exercícios
(Fig. 14) para saltos de mão esquerda e para execução de intervalos/acordes dissonantes e com extensões. Estes quatro estudos enquadram-se, portanto, na categoria de
técnicas violinísticas derivadas da linguagem harmônica e rítmica do compositor, ou
seja, explorando a sonoridade usual do instrumento, mas com combinações de notas e
ritmos não característicos dos estilos dos séculos XVIII e XIX.
Fig. 13: Estudo III de Shapey (1982), compassos 5-8. Fonte: Gratovich (1982 p.21).
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Fig. 14: Alguns dos exercícios preparatórios para saltos de mão esquerda, execução de intervalos/acordes
dissonantes e extensões para a execução dos estudos de Shapey (1982). Fonte: Gratovich (1982 p.18).
Pode-se dizer que os quatro estudos de Flynn, intitulados pelo compositor Four
fantasy-etudes for violin, priorizam respectivamente: I) intervalos melódicos e harmônicos dentre a complexa mistura métrica e rítmica e com incidência de quartos de tom; II)
harmônicos, sendo uma grande quantidade destes em cordas duplas, com a ocorrência
de glissando e sul ponticello; III) acordes quebrados e arpejados, como uma “expansão moderna da técnica de acordes encontrados na Ciaccona de Bach”33 (GRATOVICH,
1982, p.30, tradução minha); IV) caráter improvisatório através de rubato escrito, contendo uma segunda voz que, somada à primeira, resulta em diversos polirritmos e pode
ser executada por outro violino, viola, ou mesmo por uma gravação prévia do mesmo
violinista. De modo geral, pode-se dizer que estes estudos se encontram em um nível
maior de dificuldade tanto pela demanda mais complexa de habilidades técnicas quanto pela duração consideravelmente mais longa deles, dando a este conjunto um caráter
mais concertante do que de estudo. De fato, Flynn descreve que “o valor principal deles
deve ser visto como musical e não somente técnico”34 (GRATOVICH, 1982 p.29, tradução minha) (Fig. 15).
Fig. 15: Estudo III de Flynn (1982). Fonte: Gratovich (1982 p.38).
Na mesma linha de Flynn, Baley demonstra certa preocupação com a valorização
musical de sua obra, escrevendo que esta constitui “uma suíte de estudos e não
exercícios. Eles continuam a tradição dos caprichos de Paganini e não a de estudos
33
Original: “[…] modern day extension of the chord skills found in Bach’s Chaconne” (GRATOVICH, 1982, p.30).
34
Original: “[…] their primary values should be seen as musical, not technical alone” (GRATOVICH, 1982, p.29).
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de Ševčík” (GRATOVICH, 1982 p.54, tradução minha).35 Este conjunto de peças foi
intitulado ...figments e, posteriormente, foi ampliado pelo compositor, formando uma
suíte36 homônima de seis movimentos. Os estudos presentes neste livro são intitulados:
I. Sonant...; II. Kolomyika, a dance...; III. Chorale... (Parastas); IV. Perpetuo mobile. A
intenção primária de Baley nesta obra é a de expandir a performance violinística para
muito além do tradicional, incorporando desde efeitos de produção de som mais
tradicionais, como pizzicato Bartók e sul ponticello, passando por uma gama de formas
de percussão no instrumento e chegando até a utilizar efeitos vocais e assobios. Para tal,
uma longa bula explicativa é apresentada com minúcias a respeito dos diversos efeitos
desejados. Os estudos de Baley demandam um exercício dos mais complexos em termos
de coordenação, afora que a notação pode parecer bastante confusa a princípio devido
ao uso de um sistema com diversas pautas representando diferentes efeitos (ver Fig. 16).
Fig. 16: Partitura do terceiro estudo de Baley (1982), incluindo efeitos vocais nos compassos 1-2
e assobio no terceiro. Fonte: Gratovich (1982 p.69).
Afora os estudos em si, 16 contemporary violin etudes também traz uma variedade de observações realizadas tanto pelos compositores quanto pelo editor que são de
grande valor para o entendimento da prática performática e processos composicio35
Original: “[…] a suite of etudes and not exercises. They continue the tradition of Paganini Caprices and not of Sevcik studies” (GRATOVICH, 1982 p.54).
36
Na suíte, foram adicionados os movimentos III e VI, sendo todos colocados na seguinte disposição: I. sonant...; II. Chorale (Parastas)...; III
Feux Follets...; IV. Kolomyika, a Dance...; V. Perpetuo Mobile...; VI. Passacaglia.
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A DIDÁTICA NA LITERATURA DE TÉCNICAS ESTENDIDAS
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nais da modernidade. Além de exercícios técnicos já mencionados para o preparo de
alguns estudos, Gratovich inclui também um apêndice rico em conselhos e ideias de
como pensar e praticar fundamentos técnicos recorrentes em música do final do século
XX, como treinamento auditivo e rítmico, identificação de padrões cromáticos de mão
esquerda, escalas, arpejos, cordas duplas e coordenação em geral. Esta parte do livro
pode ser até mais interessante ao instrumentista intermediário ou pouco familiarizado
com o repertório contemporâneo do que os estudos em si.
Dentro do repertório didático enquadram-se também Duetti per due violini, de
Luciano Berio (1979-1983). A exemplo dos 44 duetos de Bartók (1933), estes foram
também compostos com um fim educacional em mente, sendo em sua maioria curtos
(muitos com menos de um minuto de duração), e foram colocados de forma progressiva em termos de dificuldade. Cada um dos 34 duetos leva o nome de um compositor,
havendo, segundo Berio, “razões e situações pessoais” por detrás de cada um deles
(BERIO). Grande parte pode ser tranquilamente executada desde um nível intermediário
e alguns são até mesmo adequados para iniciantes. Muitos elementos composicionais
da música do século XX são empregados, sendo que 16 duetos incluem efeitos de produção de som, limitados, no entanto, apenas a sul tasto (nº 1, 13, 15, 18, 30 e 34) e sul.
ponticello (nº 1, 5, 9, 11, 12, 14, 20, 23, 24, 30, 32 e 34), havendo uma rara ocorrência de
col legno (nº 20) (ver Fig. 17).
Fig. 17: Trecho do dueto nº 30 (Massimo), onde se pode- observar o uso das técnicas sul ponticello
e sul tasto na parte de segundo violino. Fonte: Berio (1983, p.51).
Diferentemente do caso das obras musicais de Martinů (1932), Ysaÿe (1952), Hindemith (1967), Cage (1981) e Adler (1996), não se encontram disponíveis muitas gravações das obras discutidas aqui. Foi encontrada apenas uma gravação parcial de 16
contemporary violin etudes, com a execução do próprio editor, Gratovich, no álbum
20th century concert études for solo violin com selo da Titanic Records. Constam neste
registro (pela ordem das faixas) os três primeiros estudos de Flynn, Baley e Shapey, bem
como os estudos 4, 1 e 2 de Blank. A respeito dos duetos de Berio, há diversas gravações (em distintos níveis de qualidade) de seleções de estudos publicadas no YouTube,
no entanto, há uma gravação da série completa de duetos lançada em 2016 como parte
do álbum do violinista Joseph Puglia, intitulado Ladder of escape 14, pela gravadora
Attacca Productions.
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A DIDÁTICA NA LITERATURA DE TÉCNICAS ESTENDIDAS
DE PRODUÇÃO DE SOM PARA VIOLINO
De acordo com as quatro categorias de técnicas estendidas propostas neste estudo (vide a seção “Delimitação do objeto de estudo e metodologia”), pode-se mapear a
abrangência das obras mencionadas aqui de acordo com a Tab. 3.
Categoria 1
Categoria 2
Categoria 3
Categoria 4
*Martinů (1932)
7 Études rhythmiques
*Ysaÿe (1952)
10 Préludes, Op. 35
*Hindemith (1967)
Übungen für Geiger
*Cage (1981)
Freeman Etudes
Blank (1982)
16 Contemporary Violin Etudes (1-4)
Shapey (1982)
16 Contemporary Violin Etudes (5-8)
Flynn (1982)
16 Contemporary Violin Etudes (9-12)
Baley (1982)
16 Contemporary Violin Etudes (13-16)
Berio (1983)
Duetti per due violini
*Adler (1996)
Meadowmountetudes
Tab. 3: Obras de caráter musical e pedagógico mencionadas no texto e as categorias de técnicas principalmente abrangidas por
elas. *Asteriscos marcam obras analisadas previamente por Buckles (2003) e não enfocadas diretamente no presente artigo.
Fonte: Elaborado pelo autor (2020).
Pode ser observado, portanto, que as técnicas derivadas da linguagem rítmica e
harmônica característica da música moderna (categoria 1) não apenas predominam na
literatura em questão, como também formam a única categoria de técnicas estendidas
explorada isoladamente. Isso pode ser o simples reflexo da evolução dos processos
composicionais ao longo do século XX, em que a proliferação da utilização das demais
categorias se deu quando idiomas rítmicos e harmônicos já haviam evoluído para muito
além dos estilos vigentes até o final do século XIX. No entanto, considerando-se o alto
grau de complexidade comum no repertório com técnicas estendidas (algo que em
parte motivou o trabalho de Krewer [2019], por exemplo), cabe questionar se, para fins
didáticos, não seria pertinente o desenvolvimento de obras que explorassem categorias
2, 3 ou 4 também isoladamente, como, por exemplo, peças predominantemente dentro
da linguagem rítmica e harmônica clássico-romântica, porém com a predominância de
efeitos de produção de som estendidos (no caso da categoria 2).
É verdade que as peças didáticas dentro da categoria 2 discutidas aqui cobrem uma
considerável variedade de níveis, no entanto, as obras de menor complexidade exploram uma pequena variedade de técnicas (geralmente sul ponticello e sul tasto – como
no caso dos duetos de Berio), ao passo que, quanto maior a diversidade de técnicas de
produção de som, maior também a complexidade de outros aspectos que envolvem as
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A DIDÁTICA NA LITERATURA DE TÉCNICAS ESTENDIDAS
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demais categorias (como é visível nos estudos de Baley, por exemplo). A Tab. 4 coloca
as obras de autores que contêm técnicas da categoria 2 de acordo com os respectivos
níveis abrangidos.
Iniciante
Intermediário
Avançado
Berio (1983)
Duetti per due violini
Blank (1982)
16 Contemporary Violin Etudes (1-4)
Flynn (1982)
16 Contemporary Violin Etudes (9-12)
Baley (1982)
16 Contemporary Violin Etudes (13-16)
*Cage (1981)
Freeman Etudes
Tab. 4: Autores de obras que abrangem a categoria 2 de acordo com nível de complexidade. *Asteriscos marcam obras analisadas
previamente por Buckles (2003) e não enfocadas diretamente no presente artigo. Fonte: Elaborado pelo autor (2020).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ensino de técnicas estendidas para violino é uma das ferramentas para a familiarização de alunos de instrumento com os idiomas musicais dos séculos XX e XXI e,
consequentemente, para incentivar a aproximação com compositores em atividade na
atualidade. Como foi discutido, já existe uma considerável quantidade de trabalhos com
relevância para o estudo de técnicas estendidas violinísticas, apesar de não se encontrarem dentre as obras mais utilizadas na prática. Isso não quer dizer que não haja lacunas,
já que muitas dessas obras, por exemplo, não dizem respeito a técnicas de produção de
som. Para fins de uma investigação mais detalhada sobre o tema, foram propostas então
categorias de técnicas estendidas, tendo sido colocado um enfoque na categoria de
técnicas de produção de som específicas do violino. A pesquisa identificou como esta
categoria de técnicas tem sido contemplada nas últimas quatro décadas dentro de uma
amostragem de obras textuais (livros, teses e dissertações) e musicais.
As nove obras textuais dentro da amostragem selecionada abordam o tema de diversas formas e, mesmo sendo todas de alguma forma relevantes para o aprendizado e
ensino das técnicas, apenas quatro delas (SARCH, 1982; VAN DER MERWE, 2005; BUDÓ,
2018; KREWER, 2019) têm caráter decididamente didático. O repertório contemplado
na maioria das obras é primariamente por compositores europeus e estadunidenses,
exceto no caso de três obras (LÔBO, 2016; RUFINO, 2017; BUDÓ, 2018) que buscam
especificamente compositores fora deste eixo. Três obras (ARDITTI; PLATZ, 2013; RUFINO, 2017; BUDÓ, 2018) incluem algum tipo de recurso auditivo, visual ou audiovisual, e
duas outras (STRANGE; STRANGE, 2001; TISCHHAUSER, 2003) trazem discografias do
repertório analisado. Dentre as cinco obras musicais didáticas dentro da amostragem
discutida, quatro (CAGE, 1981; BLANK, 1982; FLYNN, 1982; BALEY, 1982) abrangem a categoria de técnicas de produção de som específicas do violino. Dessas quatro, há vários
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A DIDÁTICA NA LITERATURA DE TÉCNICAS ESTENDIDAS
DE PRODUÇÃO DE SOM PARA VIOLINO
níveis abrangidos, sendo observado entretanto que as peças de menor complexidade
incluem uma diversidade muito limitada de técnicas de produção de som (geralmente
sul ponticello, sul tasto e col legno), ao passo que as obras com maior diversidade são
pouco acessíveis a instrumentistas iniciantes e intermediários.
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ORFEU, v.5, n.2, 2020
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10.5965/2525530405022020e0003
Play along ou play alone?: um estudo
sobre presença e interatividade na livre
improvisação musical
Play along or play alone?: studies on presence,
interactivity and free musical
improvisation
Fabio Manzione1
Universidade de São Paulo
fabio.manzione.ribeiro@usp.br
Submetido em 09/03/2020
Aprovado em 03/07/2020
ORFEU, v.5, n.2, 2020
P. 1 de 20
Play along ou play alone?: um estudo sobre presença
e interatividade na livre improvisação musical
Resumo
Este artigo é composto por reflexões
acerca do conceito de produção de presença desenvolvido por Hans Ulrich-Gumbrecht e pela apresentação de procedimentos que visam aproximar o conceito
à prática da Livre Improvisação Musical
(LIM). Para instaurar o processo criativo
associado às concepções de Gumbrecht,
foi desenvolvida uma proposta performativa a ser realizada pela Orquestra Errante, grupo que pesquisa a LIM. Dentre
seus direcionamentos, a proposta sugere
que musicistas improvisem mediadas/os
por gravadores de áudio e pela internet e,
posteriormente, façam relatos sobre oscilações entre efeitos de sentido e presença
que tenham ocorrido durante as improvisações e quais qualidades a presença física
trariam para este tipo de performance. O
estudo buscou, portanto, acrescentar novas ferramentas para a criação sonora em
tempo real e propiciar reflexões a respeito
das relações unívocas estabelecidas entre
suas/seus participantes, seguindo preceitos conceituais apresentados pelo pensamento gumbrechtiano.
Abstract
This article is composed by reflections about the concept of production of
presence developed by Hans Ulrich-Gumbrecht and by the presentation of procedures that aim to approximate the concept
to the practice of Free Musical Improvisation (FMI). To establish the creative process
associated to Gumbrecht's conceptions, a performative proposal was developed to be performed by Orquestra Errante, a group that researches FMI in University
of São Paulo (Brazil). Among its directions,
the proposal suggests that musicians improvise mediated by audio recorders and
internet and then report on oscillations
between sense and presence effects that
have occurred during improvisations and
what qualities physical presence would
bring to this type of performance. The
study sought, therefore, to add new tools
for the creation of sound in real time and
to provide reflections on the univocal relationships established between its participants, following conceptual precepts presented by Gumbrecht`s thought.
Keywords: Free musical improvisaPalavras-chave: Música eletroacústi- tion; production of presence; virtual inca; espaço; morfologia sonora; ambisso- teractivity; performance; interdisciplinary
nia de ordem superior; sistemas imersivos. studies.
1
Fabio Manzione é músico, pesquisador e artista-educador. Doutorando em Música pela Universidade de São Paulo e mestre em Estudos de Jazz pela Universidade de Aveiro (Portugal). Em suas pesquisas busca estabelecer vínculos prático-teóricos entre processos de criação
sonora em tempo real e outras áreas do conhecimento, bem como analisar a função dos sentidos humanos e da corporalidade em performances
que têm o som como fundamento. Como percussionista faz parte de grupos que praticam a Livre Improvisação Musical dentro e fora do âmbito
acadêmico, tais como: Orquestra Errante, Trio Mamomã, Ñembo e Duo Cóz.
Fabio Manzione
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Play along ou play alone?: um estudo sobre presença
e interatividade na livre improvisação musical
Introdução
Este artigo apresenta o relato de uma proposta performativa autoral concebida
para grupos de livre improvisadoras/es. Nele, reflito sobre as experiências elaboradas
entre as/os músicas/os da Orquestra Errante - grupo de estudos em Livre Improvisação
Musical (LIM) que acolheu meus intentos investigativos - a partir dos conceitos elaborados na obra Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir do teórico
alemão Hans Ulrich Grumbrecht.
A Orquestra Errante (OE), fundada em 2009 por Rogério Costa, professor do Departamento de Música da Universidade de São Paulo, desenvolve há anos em seus ensaios semanais o que denomino como uma cultura de propostas. Tais propostas são formadas por estratégias performativas de criação em tempo real oriundas das pesquisas
individuais de suas/seus propositoras/es e propiciam o desenvolvimento de materiais
sonoros que podem vir a ser utilizados em situações contingenciais futuras. Além disso,
podem provocar discussões conceituais realizadas antes ou após as sessões de improvisação musical.
O cultivo destas atividades é, desde a fundação do grupo, algo que compõe os ensaios e oferece às/aos propositoras/es a possibilidade de colocar em prática e à prova
trabalhos autorais que dialoguem com as intenções político-estéticas da OE e, consequentemente, com os preceitos da LIM.
No contexto dos ensaios da OE há também uma tentativa constante de estabelecer uma desierarquização das atribuições de cada integrante, sendo validada assim
uma dinâmica diversa, fluida e, ainda que a tentativa seja utópica, livre de padrões convencionais de organização coletiva. Estas desconstruções de padrões estético-sonoros
buscadas pelo grupo permitem elaborar estudos que não necessitem de predeterminações conceituais associadas aos processos de criação, salvo a ideia de interagir com a/o
outra/o e a intenção de criar música livre de precedentes formais, estilísticos, rítmicos
ou harmônicos2. Por outro lado, há também, em razão desta atitude “desobediente”
por parte do grupo, uma abertura para diferentes tipos de formulações conceituais que
possam vir a provocar a experimentação de modos de atuação sonora distintos dos já
elaborados anteriormente pelas/os participantes da OE.
É importante mencionar que o campo da improvisação musical é bastante vasto e
repleto de formulações conceituais e análises sobre sua prática. Em minhas pesquisas,
trabalho a partir da ideia de que existem quatro maneiras de se conceber e praticar a
improvisação na área da Música, a improvisação idiomática, a improvisação dirigida, a
improvisação direcionada e a improvisação livre3 sendo as duas últimas as que definem
o escopo sobre o qual minha proposta se estabeleceu:
2
Um exemplo disso é o fato do grupo observado estabelecer um ambiente estético apartado do fazer musical que depende da decodificação de códigos visuais para desenvolver seus processos de criação. O posicionamento político-estético da OE, assim como de outros grupos que
praticam e pensam a LIM, coloca em xeque a utilização de partituras tradicionais ou gráficas compostas em momento diferido. Isto, em virtude
das mesmas sugerirem uma série de significados preconcebidos pelo/a compositor/a, conferindo sentido aos gestos corporais da/o performer e
à sua sonoridade antes desta/e imprimir sua própria expressão física do som.
3
As improvisações dirigida, direcionada e livre também podem apresentar momentos em que se configuram gêneros musicais preestabelecidos, embora sem possuir os mesmos fins que a improvisação idiomática.
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e interatividade na livre improvisação musical
1) A improvisação idiomática é uma maneira de se improvisar a partir de um gênero
musical específico, onde se deve seguir padrões estilísticos, formais, harmônicos, melódicos e rítmicos. O choro, a salsa e o jazz são alguns dos exemplos de gêneros musicais
que se utilizam desta espécie de improvisação;
2) A improvisação dirigida é uma prática musical em que não há a necessidade de
se improvisar a partir da estrutura de um gênero musical predeterminado (podendo, eventualmente fazer uso de elementos oriundos de contextos idiomáticos), tendo
um/a condutor/a como figura central que dirija os momentos de entrada de instrumentos ou naipes, as mudanças de intensidade, nuances timbrísticas, etc. Embora não
seja obrigatório improvisar dentro de um estilo ou gênero musical definido durante as
sessões de improvisação dirigida, com o estabelecimento da função do condutor nesta
prática, a dimensão dos momentos de improvisação/criação de seus instrumentistas é
mais reduzida;
3) A improvisação direcionada é uma prática musical em que as/os musicistas podem improvisar sem a necessidade de uma estrutura, gêneros predeterminados ou condutor/a. Ainda assim, devem seguir roteiros e/ou diretrizes relacionais sugeridos antes
da prática pelas/os própria/os musicistas ou por pessoas externas ao grupo executante;
4) A improvisação livre é uma prática musical que segue os preceitos de interação,
de escuta do ambiente, de experimentação individual e coletiva, de reformulação de
padrões técnicos e conceituais vinculados à expressão sonora.
Nos últimos anos, a utilização de procedimentos da comunicação telemática em
sessões de LIM tem sido objeto de estudo de minha pesquisa como músico e membro
da OE, junto da qual concebi uma proposta fazendo uso de gravadores de áudio e computadores conectados à internet para realizar investigações performativas. O tema está
envolvido com a pesquisa que desenvolvo sobre em que proporção os sentidos humanos, que não a escuta, estão imbricados na performance de LIM e como se relacionam
as/os musicistas entre si e com seu público durante a prática de criação musical em
tempo real.
A LIM, como já dito, opera em um ambiente de experimentação de timbres, técnicas e relações sonoras das mais diversas em prol de uma prática que possa ser desprovida de elementos específicos de tradições musicais eruditas ou populares. Mais
precisamente, não necessita se configurar a partir de tonalismos, ostinatos ritmicos preconcebidos, formas ou formações que venham situar o fazer musical dentro de algum
gênero já estabelecido. Ademais, durante as práticas de LIM também “coexistem diferentes energias, atitudes singulares, pensamentos, conexões, histórias pessoais e coletivas” (COSTA, 2016, p.39) que conferem a cada sessão qualidade única, não passível de
ser repetida por conta de sua proposital efemeridade. Em suma, a LIM se dá a partir da
escuta apurada da/o performer sobre si mesmo e em direção ao outro e às experiências
que as relações entre músicas e músicos instauram no decorrer da performance, sendo
estimulado em suas práticas que apenas fatores contingenciais promovam as mutações
sonoras que venham a ocorrer durante as sessões. Além disso,
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Esses processos podem ser realizados de forma totalmente sonora, porém sempre são afetados em algum nível, aberta ou veladamente, por informações não
sonoras, incluindo as qualidades semânticas, espectro-morfológicas, visuais ou
cinestésicas. (NANCE, 2007, p.16 apud ALIEL et al., 2018, p.170).
Neste contexto, optei por desenvolver um estudo baseado nos relatos e experiências do grupo, tendo como fundamento a noção de produção de presença desenvolvida pelo filósofo, historiador e professor de literatura comparada Hans Ulrich Gumbrecht. Este conceito foi trazido como elemento provocador da prática das/os musicistas
que participam, semanalmente4 das sessões de LIM da Orquestra Errante, tendo como
objetivo tensionar a reflexão acerca das oscilações de efeitos de sentido e efeitos de
presença (GUMBRECHT, 2010, p.22) que podem ser estabelecidas durante este tipo de
performance e proporcionar debates sobre a experiência estética associada à presença
física e/ou virtual em práticas artísticas cuja materialidade é o som.
Com isso, configurei um recorte metodológico relacionado à pesquisa empírica e
às vivências singulares de cada pessoa, o qual não poderia ser condicionado por uma
epistemologia puramente hermenêutica5. Ao conceber a proposta, segui portanto, uma
das principais substâncias do pensamento gumbrechtiano, o qual
[...] defende o riskful thinking, aproximadamente pensamento arriscado [...] Segundo Sanford (2000, p. 1), em face desse pensamento, Gumbrecht reconhece
que o papel da academia é ‘manter viva a complexidade sublime’, pelo movimento heurístico, visando ‘[...] perseguir ideias [sic] e realizar pesquisas que não
[produzam] apenas uma ou algumas respostas fáceis, mas geralmente novos
questionamentos’. Nessa perspectiva, de modo geral, sua filosofia abre-se como
possibilidade à diversidade epistemológica (SILVA, 2017, p.506).
Tendo esta concepção como referência, a proposta performativa apresentada às/
aos musicistas da OE configurou-se metodologicamente a partir do pensamento apresentado em uma obra teórica que prioriza o desenvolvimento de uma nova epistemologia, a qual intenciona desestabilizar a noção que temos sobre o sentido nas relações
humanas e com as coisas do mundo6.
Ao arriscar-se na relação interdisciplinar e com uma teoria que tangencia a área
musical, este estudo tem a intenção de compreender a necessidade da concretude da
4
Os encontros da Orquestra Errante acontecem toda quinta-feira das 17h às 20h no Departamento de Música da Universidade de São Paulo.
5
Essa noção é exposta em diversos trechos de Produção de Presença. Para Gumbrecht sua obra assume o compromisso de lutar contra
a diminuição sistemática da presença e contra a centralidade incontestada da interpretação nas disciplinas do que chamamos ‘Artes e Humanidades’ (GUMBRECHT, 2010, p.15). Além disso, o conteúdo do livro pretende se afastar da escola puramente hermenêutica que no discurso
das Humanidades estão protegidos por gestos de intimidação intelectual (GUMBRECHT, 2010, p.80). O autor coloca também que ao tentarmos
encontrar um modo de definir [as] ‘materialidades da comunicação’ e estabelecer quais os instrumentos mais adequados para analisá-las, fomos
obrigados a pensar nas Humanidades, tal como existiam (e ainda hoje, na maioria dos casos, existem), como uma tradição epistemológica que,
ao longo de mais de uma século, nos mantivera à margem de tudo que não podia ser descrito como, nem transformado numa, configuração de
sentido (GUMBRECHT, 2010, p. 120).
6
Segundo Grumbrecht uma das maneiras de se perceber a produção de presença é a partir do impacto que as coisas do mundo causam
em nós: E não desejamos precisamente a presença, não é o nosso desejo de tangibilidade tão intenso, por ser o nosso ambiente cotidiano tão
quase insuperadamente centrado na consciência? Em vez de termos de pensar sempre e sem parar no que mais pode haver, às vezes parecemos
ligados num nível da nossa existência que, pura e simplesmente, quer as coisas do mundo perto da nossa pele (GUMBRECHT, 2010, p.135).
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presença física em processos de criação em tempo real e o impacto dos sons executados em um mesmo espaço acústico, comparando-os à representação bidimensional da
imagem virtual e aos sons remotamente produzidos.
Vale também mencionar que a intenção deste estudo não é discutir a implementação de ferramentas de transmissão sonora ou a difusão de novas tecnologias para
interação artística, mas tentar compreender a expressividade e a comunicação humana elaborada através de aparatos comuns da telemática e problematizar como a atual
naturalização das relações virtuais se propaga nos discursos poéticos ao compararmos
processos de criação musical realizados em ambientes virtuais com atuações musicais
elaboradas simultaneamente em espaços concretos.
Logo, compete ao estudo provocar uma reflexão sobre o que vem a ser a presença7
e as oscilações entre efeitos de sentido e efeitos de presença colocadas por Gumbrecht
a partir das relações intersubjetivas do grupo de livre improvisadoras/es, as/os quais
apresentaram relatos que não se encerram em si mesmos, promovendo a construção
de conhecimento, por vezes, distante das correntes da área musical estrita.
Sobre produção de presença e a concepção da proposta performativa
Segundo Gumbrecht, após o Iluminismo, influenciado pelo pensamento cartesiano, o ser humano passou a relacionar-se com o mundo a partir de uma perspectiva
hermenêutica, baseada no sentido e no significado que podemos dar ao que nos rodeia.
Em sua concepção, o autor explora a ideia de que,
Se atribuirmos um sentido a alguma coisa presente, isto é, formarmos uma ideia
do que essa coisa pode ser em relação a nós mesmos, parece que atenuamos
inevitavelmente o impacto dessa coisa sobre o nosso corpo e os nossos sentidos
(GUMBRECHT, 2010, p.14).
Partindo de análises históricas, culturais e filosóficas, Gumbrecht sugere que concebamos a experiência estética como uma oscilação/tensão (às vezes uma interferência) entre efeitos de presença e efeitos de sentido e propõe que a presença se dê a partir
de relações espaciais e vê a palavra produção com o significado trazer para adiante.
Portanto, coloca os objetos, as coisas do mundo, como mediadores destas relações:
Se ‘producere’ quer dizer literalmente, ‘trazer para adiante’, ‘empurrar para frente’, então a expressão ‘produção de presença’ sublinharia que o efeito de tangibilidade que surge com as materialidades de comunicação é também um efeito
em movimento permanente. (GUMBRECHT, 2010, p.38).
À luz desta concepção sobre a presença, passei a analisar relações performativas
mediadas por dispositivos das novas tecnologias, tais como computadores, plataformas
de comunicação virtual ou gravações de áudio que auxiliam a/o musicista a estudar
7
Neste sentido, a ideia de presença cênica pesquisada há décadas no âmbito das Artes Cênicas e pouco discutida na área da Música se conectaria com a proposta por inserir uma noção corporal e performativa diferente da qual as/os musicistas, em sua maioria, não estão habituadas/os.
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sobre determinados padrões rítmico-harmônicos - como é o caso dos play alongs8 - ,
mas que, ao mesmo tempo a/o impedem a afecção de seu/sua interlocutor/a por este/a
utilizar (ser) uma gravação preconcebida e não estar presente no mesmo espaço físico
que a/o performer que está tocando sobre a gravação.
É importante ressaltar que, nestes tipos de performance, embora haja dispositivos
eletrônicos mediando as relações sonoras, não se pode esquecer que o corpo da/o
performer como um todo é, desde o princípio, o mediador de qualquer relação que se
estabeleça musicalmente e que estamos diante de máquinas ou tecnologias virtuais que
podem servir como amplificação e restabelecimento das conexões do ser humano com
o mundo, como aponta o pesquisador e compositor Fernando Iazzetta:
Deve-se [...], entender o desenvolvimento das máquinas como um modo de se
criar interfaces entre as dimensões do corpo e as dimensões do ambiente. Nesse
sentido, a máquina deixa de fazer uma remissão ao inumano para colocar-se
como conexão do humano com seu ambiente: as máquinas possibilitam a projeção das ações do homem na dimensão do ambiente, amplificando, estendendo,
ou acelerando essas ações (IAZZETTA, 2009, p.82).
No entanto, considerando as “categorias perceptivas e comportamentais voltadas
para atividades como exploração, seleção, foco de atenção e ações e interações com
o mundo” (REYBROUCK apud IAZZETTA, 2009, p.78) instituídas pelos seres humanos,
nem sempre teremos as máquinas como elementos catalisadores de produção de presença no ato performativo.
É possível utilizar como exemplo o problema que envolve situações performativas
como peças de teatro ou concertos musicais que, gravadas e posteriormente apresentadas em vídeo, parecem perder sua potência e/ou seu impacto cênico, sendo quase
que destituídas de suas qualidades vinculadas à presença.
Impulsionado por estas questões, me propus a observar onde e como se instaura
a produção de presença na LIM a partir da proposta performativa a ser executada pela
Orquestra Errante em dois encontros subsequentes realizados entre os meses de maio
e junho de 2018. Durante o processo de pesquisa, observei as comunicações mediadas
pela internet que se fraccionam, por conta de problemas com a latência, softwares ou
hardwares das máquinas, o que, irremediavelmente, nos coloca diante de diálogos intermitentes ou de situações de ausência de comunicação.
A proposta, no entanto, não tinha como objetivo restringir a inventividade e empirismo técnico-sonoro das/os performers, mas aplicar o que tenho chamando de molduras poéticas durante minhas proposições para a OE. Deste modo, desenvolveria um
contexto diferente do ambiente de criação rotineiro do grupo a partir da inserção de
alguns direcionamentos para as sessões de improvisação, em função de uma reflexão
sobre as performances, das relações entre musicistas e de discussões posteriores sobre
a noção de produção de presença.
8
Play alongs que em em português pode ser traduzido como acompanhar, cooperar ou mesmo fazer algo que alguém disse para fazê-lo, são
também gravações de músicas, normalmente do gênero popular, as quais têm sempre um dos instrumentos da versão original suprimido para
que o instrumentista/cantor possa estudá-las, simulando em tempo real a prática com outras/os musicistas.
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Os direcionamentos iniciais da proposta foram sugeridos ao grupo uma semana
antes dos dois encontros em que a executaríamos9 e nos quais conversaríamos sobre os
desdobramentos das sessões de improvisação.
Neste primeiro momento, optei por não explanar sobre as referências e os objetivos da proposta em razão das diretrizes serem bastante simples e porque os procedimentos de minhas pesquisas tentam seguir, na medida do possível, uma metodologia
que se vincula à ideia de experiência segundo o que afirma Jorge Larrossa. O professor
de filosofia da educação a define como tudo “o que nos passa, o que nos acontece, o
que nos toca” (LARROSA, 2014, p.18), defendendo que o simples fato de termos informações a respeito do que vivenciaremos nos distancia do estado de experiência.
Para que melhor se compreenda as discussões a serem elaboradas neste texto,
apresento abaixo as diretrizes da proposta lançada às/aos musicistas que integram10 a
Orquestra Errante:
Parte I (primeira semana)
1 - Formar um duo com outra pessoa do grupo e gravar sozinha/o um solo de, no
máximo, 10 minutos;
2 - Enviar o solo gravado para sua dupla por e-mail, Whatsapp, Wetransfer etc.
durante a semana que antecede o encontro do grupo;
3 - Improvisar, em casa, sobre a gravação recebida (IMPORTANTE: não ouvir o
solo antes de improvisar. Aperte play e saia ouvindo/tocando);
4 - Relatar, durante o encontro semanal do grupo, como foi a experiência.
Parte II (segunda semana)
1 - Durante o encontro semanal do grupo, formar duos, de preferência, diferentes daqueles que se formaram para a primeira parte da proposta;
2 - As/os integrantes do duo devem estar conectados à internet em salas diferen11
tes e improvisar com a/o outra/o por, no máximo, 10 minutos12;
3 - Relatar, após as sessões de todos os duos terem sido elaboradas, como foi a
experiência e que reflexões pôde fazer sobre essa maneira de improvisar.
Para fazer confluir minhas reflexões acerca da presença e o contexto criativo da
OE, desenvolvi a proposta performativa com o objetivo de criar mecanismos que, pre9
A primeira pessoa do plural será muitas vezes conjugada ao longo do texto porque, como membro da Orquestra Errante há três anos,
também participei da proposta criada por mim e por ter me envolvido nas discussões sobre as sessões de improvisação e sobre a teoria desenvolvida por Gumbrecht.
10
Nas duas semanas em que a proposta foi elaborada, estiveram presentes nos encontros 18 musicistas, sendo que todas/os relataram,
em pelo menos um dos encontros, suas experiências para o grupo: Caio Righi, Rogério Costa e César Martini (saxofones), Fabio Martinelli (trombone), Miguel Antar (contrabaixo) Paola Pickerzy e Guilherme Beraldo (violões), Fabio Manzione (bateria e percussão), Cassio Moreira (percussão),
Stênio Biazon e Inês Terra (voz), Marina Mapurunga e Flora Holderbaum (violinos), Nanati Francischini, Denis Abranches e Pedro Sollero (guitarras)
Tiago Azevedo (flauta transversal) e Mariana Carvalho (piano).
11
No momento, dispúnhamos de duas salas do Departamento de Música da Universidade de São Paulo e seus respectivos computadores
e caixas de som.
12
As limitações de tempo da proposta serviram apenas para que fosse possível todas/os improvisarem e relatarem suas experiências
dentro do período de encontro do grupo.
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meditadamente, provocassem a sensação da ausência espacial de instrumentos e instrumentistas no intuito de, em performances presenciais futuras, potencializar a produção de presença e o impacto das coisas do mundo sobre as/os improvisadoras/es.
Ao propor a utilização desses recursos artificiais13 para mediar as performances
de LIM do grupo, também busquei mensurar o que nas relações entre as/os musicistas
advém do âmbito sonoro, o que é visual, o que pertence às condições espaciais onde se
encontram musicistas improvisadoras/es, ou mesmo o que pode estar ligado a outros
sentidos do corpo humano.
Para fomentar as discussões sobre as sessões de LIM formulei cinco perguntas, as
quais expus aos integrantes do grupo ao término da segunda parte da proposta, seguindo a ordem em que elas se encontram a seguir:
1) A utilização de ferramentas amplamente difundidas para o estudo da improvisação idiomática, como é o caso dos play along, funciona para a prática da LIM?
2) A “presença sendo a corporificação de algo” (GUMBRECHT, 2010, p.167), como
chegar ao estado de presença?
3) A improvisação mediada pela internet e/ou por gravadores de áudio nos faz
sentir a falta física do outro?
4) A filtragem sonora e visual produzida por aparelhos eletrônicos/mídias virtuais
nos impede de “corporificarmos” a presença, o impacto que o outro ou as coisas do
mundo nos causa?
5) As mídias virtuais eliminam, amenizam ou restauram a produção de presença?
Relatos individuais e reflexões coletivas14
Após a primeira parte da proposta ter sido elaborada, cada dupla relatou suas dificuldades, expectativas e esforços para improvisar livremente a partir das gravações
recebidas, ressaltando peculiaridades e características de cada sessão. Comento, nos
parágrafos seguintes, algumas citações/situações paradigmáticas dessa experiência e
as avaliações feitas pelas/os integrantes do grupo em seus relatos.
Vale mencionar que nessa primeira parte da proposta as/os integrantes do grupo ainda não tinham tomado conhecimento das perguntas elencadas acima, as quais
foram apresentadas somente após as últimas sessões de improvisação da segunda
parte da proposta.
Inicialmente, durante os relatos das/os musicistas da OE surgiram questões sobre
o funcionamento dos dispositivos de áudio e as dificuldades em lidar com a proposta
durante a semana por conta de compromissos externos ao grupo ou mesmo para se comunicar com as/os parceiras/os de improvisação. Em seguida, passaram a “tomar conta”
dos relatos comentários sobre a formulação de situações hipotéticas anteriores à impro-
13
O termo “artificiais” é utilizado em virtude das sessões de livre improvisação da Orquestra Errante ocorrerem, quase sempre, de forma
presencial.
14
É possível ouvir os relatos e debates sobre a proposta em sua versão integral acessando os links abaixo: https://soundcloud.com/duocoz/relatos-e-reflexoes-coletivas-dia-1 https://soundcloud.com/duocoz/relatos-e-reflexoes-coletivas-dia-2
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visação em si, o que, para além de divergir da proposta e de ter afastado alguns/as dos/as
improvisadores/as do ato de improvisar com a gravação de sua/seu parceira/o, colocou
as/os performers diante de um dilema temporal: pensar a performance em tempo diferido e planejar o que será tocado ou vivenciar em tempo real o que está por vir, permitindo
que os devires da improvisação estabeleçam relações entre os performers?
Estes questionamentos parecem ter ocorrido não somente antes das performances, mas também durante as mesmas, gerando no/a improvisador/a oscilações entre
momentos de pura reflexão sobre o fazer (efeitos de sentido) e momentos de interação
e imersão (efeitos de presença).
Outro aspecto importante a ser destacado é a ideia de que não é possível elaborar
uma performance de LIM a partir de uma gravação, sem a presença em tempo real da/o
outra/o. Esta noção foi colocada por Inês Terra15 e Guilherme Beraldo16 ao fazerem os
relatos de suas sessões com o play along enviado pelas/os parceiras/os. Com essas palavras, inauguram-se na discussão as falas sobre a presença e a ausência do outro durante
as improvisações elaboradas a partir das gravações de áudio, e as/os improvisadoras/
es passam a discorrer sobre “o não poder afetar a/o outra/o”, por estes não estarem no
mesmo espaço físico, sobre o “tocar em cima” da/o outra/o e até mesmo sobre um caráter diretivo da proposta, considerando que as práticas da OE são de livre improvisação.
Nesse sentido, a provocação inicial colocada aos performers parecia estar fazendo
efeito instaurar a ausência para propiciar desejo de presença, gerando um incômodo
útil para o que ocorreria na semana seguinte. Por outro lado, a frase também trouxe à
consciência o fato de que, para contrabalançarmos a ausência do outro, quase sempre
nos colocamos a imaginar os gestos corporais, a posição espacial, os timbres que o outro normalmente faz quando presente. Ou seja, em decorrência da não presença física
de outra/o performer com quem se está improvisando, se recria a imagem e os movimentos da/o outra/o no intuito de improvisar a partir do que pode vir a ser a imagem
daquela/e parceira/o executando um determinado som ou gesto musical, tornando a
performance diante da gravação quase que um ato de adivinhação de sonoridades e de
gestos corporais e musicais.
Uma performance que, pela ausência da/o outra/o se torna reflexiva, em ambos
os sentidos do termo, comprova o fato de que também improvisamos dentro de um
estado de confluência com nossa imaginação e memória, como afirma o pesquisador
e músico Manuel Falleiros:
[...] na improvisação, de maneira geral, a memória e o imaginário são elementos
de importância e envolvidos diretamente na criação, mas eles apenas se tornam
ativos e direcionados para este fim quando requeridos pelo momento da ação
criadora. (FALLEIROS, 2012, p. 50).
Imaginação e memória, normalmente, podem ativar processos mais associados
a aspectos técnicos e sonoros em momentos de criação, entretanto nas sessões ins-
15
Inês Terra é mestra em Música pela Universidade de São Paulo e integra a Orquestra Errante como cantora.
16
Guilherme Beraldo é graduando em Música pela Universidade de São Paulo e integra a Orquestra Errante como violonista.
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tauradas pela proposta, o ato de imaginar esteve, quase sempre ligado à intenção de
perceber os gestos físicos da/o outra/o, enquanto a memória parecia buscar ideia pregressa ou futuras sobre a/o outra/o e quais seriam suas ações em tempo presente. Ou
seja, pareciam se ater mais a relações externas do que internas. A existência deste tipo
de intenção foi relatada por Marina Mapurunga17 e Mariana Carvalho18 em diferentes
momentos das discussões sobre a proposta:
O que eu senti é que no começo não tinha muito espaço para mim, aí eu ficava
‘nossa, gente como foi que ele fez isso?!’ Eu fiquei tentando imaginar como ele
tava fazendo aquele som. Aí eu, ‘gente, isso aqui deve tá editado, não acredito!’
Depois queria até saber se é ou não. Nossa, uma coisa assim atrás da outra, eu
não conseguia, eu entrava, mas eu me sentia meio que intimidada até porque eu
não tava me escutando bem.
Acho que isso de você ficar pensando os lugares que você imagina que a outra
pessoa vai tocar, assim, tipo, por mais que eu tenha feito para o César eu também sabia que podia ser para outras pessoas, sei lá, que eu podia mandar para
outras pessoas, sei lá, então eu também pensei em tocar imaginando que teria
buracos ou coisas para as outras pessoas tocarem.
Za segunda parte da proposta (segunda semana), após as duplas terem improvisado mediadas pelas plataformas de comunicação virtual19, li trechos do livro de Gumbrecht20 e as cinco perguntas relacionadas ao tema para dar início aos relatos e discussões
sobre as recém- executadas sessões de livre improvisação.
Diferentemente da semana anterior, neste dia, a exposição dos relatos/reflexões se
deu de forma aleatória, não seguindo uma ordem linear a partir da organização de execução de cada uma das duplas. Seguindo este critério, as descrições neste trecho não estão
agrupadas exatamente como aconteceram durante as conversas, mas a partir da quantidade de ocorrências de cada tópico discutido e/ou de sua relevância para a pesquisa.
A segunda parte da proposta, em comparação com a primeira, dispunha de uma
nova materialidade, os estímulos visuais emitidos pelas telas dos notebooks presentes
nas duas salas em que ocorreram as sessões de improvisação. Por esse motivo a discussão se iniciou tendo como temáticas a demasiada valorização do sentido da visão na
atualidade, a característica bidimensional da imagem e a tentativa das mídias virtuais de
reproduzirem os fluxos de acontecimento da vida real.
A hipervalorização do sentido da visão nas culturas ocidentalizadas extrapola os
contextos das relações sociais, podendo também estar imbricada a relações estéticas
como performances de LIM. Assim, nossa construção de conhecimento está intimamente atrelada à visão, chegando esta a se sobrepor aos demais sentidos21 humanos e,
17
Marina Mapurunga é doutoranda em Música pela Universidade de São Paulo e integra a Orquestra Errante como cantora e violonista.
18
Mariana Carvalho é graduada em Música pela Universidade de São Paulo e integra a Orquestra Errante como pianista.
19
Neste dia da proposta, utilizamos dois notebooks ligados à caixas de som e à plataforma de comunicação virtual Google Meet/Hangouts.
20
Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir de Hans Ulrich Gumbrecht. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2004.
21
Mesmo entre musicistas e músicos pude verificar discursos impregnados de analogias entre a percepção do que é visual e do que é
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e interatividade na livre improvisação musical
muitas vezes, a servir como principal fonte de apreensão da realidade, como afirma a
antropóloga Silvia Caiuby Novaes:
De todos os sentidos, é à visão que atribuímos um valor privilegiado. A associação entre olhar e conhecimento pode ser percebida em alguns indícios, como o
nome de várias revistas de informação: Veja, Visão, Nouvel Observator, Vu, Look
etc. (NOVAES, 2009, p.38).
[...]
Nesse sentido, uma outra conquista desse privilegiamento da visão é que as imagens que produzimos acabaram por dominar nosso cotidiano, chegando mesmo a substituir a experiência. (NOVAES, 2009, p.40).
Em virtude desta hipervalorização do sentido da visão22, temos cada vez mais ampliada a carga de estímulos gerada por dispositivos de comunicação telemática, como
aparelhos celulares e notebooks. A influência deste contexto comprovou-se nas performances das/os integrantes da OE, demonstrando a necessidade do sentido da visão nas
sessões de LIM realizadas por meio de mídias virtuais, o qual atuou significativamente
sobre a prática de uma expressão artística que tem o som como principal materialidade.
A partir disso, surgiram as questões sobre quais informações ou presenças são transmitidas pela imagem do corpo, seja ela concreta ou virtual, que poderiam interferir no som
que será emitido por quem a vê.
As comparações entre improvisações presenciais e virtuais são inevitáveis, tendo
em vista que é quase impossível dizermos que a presença física do outro não nos traz
algo de impactante, ou que, quando em frente a uma tela temos como dimensionar
perfeitamente os espaços em que a/o outra/o e seu som estão operando. Em frente à
tela que produz apenas imagens em duas dimensões deixamos de poder utilizar nossa
percepção espacial, o que tenho chamado de soslaios do corpo23 e, ao mesmo tempo
de sofrer o “impacto das coisas do mundo” (GUMBRECHT, 2010, p.14) sobre nós. No
caso da improvisação em duplas via internet, os soslaios do corpo de cada performer
deixariam de perceber o som da/o outra/o e do espaço reverberando da mesma forma,
já que cada um/a esteve em espaços diferentes durante suas respectivas improvisações.
sonoro, comprovando uma hegemonia do sentido visual sobre o auditivo mesmo quando nos referimos oralmente sobre a materialidade do fazer
musical. Expressões como “aumentar o Caio (nome de um dos músicos participantes da proposta)”, “projetar o som” e “eu tenho um recurso que
ele não tem do ponto de vista acústico” denotam um discurso impregnado de verbos e termos em que o sentido da visão parece prevalecer sobre
o da escuta, fazendo com que o significado do “ouvir” seja incorporado pelo ato de “ver” o que também acaba por comprovar as transversalidades
entre os sentidos humanos e como as naturalizamos.
22
Os estudos da antropóloga não se limitam à atualidade. O privilegiamento do sentido da visão e sua relação com o conhecimento figuram como um aspectos culturais que vem sendo construídos há secúlos pelas sociedades ocidentalizadas. A própria autora comprova em outro
trecho do mesmo artigo: “Na segunda metade do século XIX, com a invenção das novas tecnologias para reprodução de imagem como fotografia
e, posteriormente, o cinema há uma clara associação entre olhar e conhecimento” (NOVAES, 2009, p.38).
23
A metáfora elaborada durante o processo de criação da proposta faz menção às percepções que se tem do espaço e do outro a partir
da atenção no ambiente e dos reflexos corporais conectados às ações/intenções de quem está fisicamente no mesmo espaço, sem que seja necessário estar virado de frente ou extremamente próximo ao sujeito da ação que está por vir ou que já se iniciou. Soslaios do corpo também pode
ser interpretado como um estímulo aos reflexos corporais que são ativados pela escuta ou pela escuta que é acionada por ações corporais.
Fabio Manzione
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e interatividade na livre improvisação musical
O mesmo ocorreria com a relação a ser estabelecida entre uma/um musicista e o instrumento musical, o gesto físico e o corpo da/o outra/o performer.
Importa também considerar que, apesar da percepção não ser “uma soma de dados visuais, tatéis ou auditivos”24 (MERLEAU-PONTY 1969, p.105 apud NOVAES, 2009,
p. 40) e de percebermos o mundo de maneira não segmentada, em muitas situações, a
hierarquização dos sentidos que existe em nossa sociedade nos faz inconscientemente
direcionar a atenção para sentidos que não necessariamente são os “decodificadores”
das materialidades da expressão artística em questão. O que não se configuraria como
um problema para processos de criação sonora em tempo real, consolidando assim a
relevância do aspecto visual para a performance musical como meio de propagação e
reverberação de devires do corpo e de intenções sonoras.
Por esse ângulo, o caráter mais visual desta segunda parte da proposta corrobora
a ideia de que o efeito de presença se dá necessariamente a partir de uma relação espacial, e não somente temporal, já que, para algumas/uns integrantes da OE improvisar
através da tela de um computador pareceu algo artificial, não permitindo que as interferências acústicas do espaço da/o outra/o nem seus gestos físicos pudessem impactar
diretamente a produção dos sons das/os respectivas/os parceiras/os de sessão. Apesar
disso, as performances de LIM - expressão artística que se desenvolve, necessariamente, a partir do som e sua espacialização - não deixaram de acontecer.
Por outro lado, as/os outras/os integrantes do grupo que acreditam ter se comunicado plenamente através dos sons não viram a necessidade de se sentirem impactadas/
os diretamente/presencialmente por sons não mediados por caixas de som nem pelos gestos corporais tridimensionais da/o performer que estava improvisando em outra
sala. Isto, talvez em virtude da naturalização da difusão sonora por meio de amplificadores e caixas de som e de uma hipervalorização do sentido da visão.
Esse dilema levou-nos também a uma análise da representação do sujeito pelas
mídias virtuais e ao fato de estarmos nos acostumando a perceber as relações humanas via internet como idênticas às reais. A partir dessas colocações, Caio Righi25 citou o
filósofo checo Vilém Flusser (1920-1991), que nos fala sobre a imagem como primeira
tentativa do ser humano de dar sentido a algo externo a si mesmo e da imagem técnica,
aquela produzida pelas câmeras fotográficas e telas de cinema, que por conta de seu
“caráter aparentemente não simbólico, objetivo [...] faz com que seu observador as olhe
como se fossem janelas e não imagens”26 (FLUSSER, 1985, p.10).
Assim, vimos que a tentativa de tornar real aquilo que não é também comprova as
limitações imagética, espacial e sonora do dispositivo que transmite a plataforma de co-
24
A percepção não é uma soma de dados visuais, táteis ou auditivos: percebo de modo indiviso, mediante meu ser total, capto uma estrutura única da coisa, uma maneira única de existir, que fala simultaneamente a todos os meus sentidos. (MERLEAU-PONTY 1969, p.105 apud
NOVAES, 2009, p. 40).
25
Caio Righi é graduado em Artes Visuais pela Universidade de São Paulo e integrou a Orquestra Errante como saxofonista e flautista.
26
“O caráter aparentemente não-simbólico, objetivo, das imagens técnicas faz com que seu observador as olhe como se fossem janelas
e não imagens. O observador confia nas imagens técnicas tanto quanto confia em seus próprios olhos. Quando critica as imagens técnicas (se é
que as critica), não o faz enquanto imagens, mas enquanto visões do mundo. Essa atitude do observador face às imagens técnicas caracteriza a
situação atual, onde tais imagens se preparam para eliminar textos. Algo que apresenta consequências altamente perigosas. A aparente objetividade das imagens técnicas é ilusória, pois na realidade são tão simbólicas quanto o são todas as imagens” (FLUSSER, 1985, p.10).
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e interatividade na livre improvisação musical
municação virtual e nos reporta novamente à ideia de que é possível projetar a presença
do outro e escolher a partir de ideias provenientes de interações sonoras pregressas ou
da imaginação para se improvisar. Esforçamo-nos, portanto, para perceber a imagem
na tela como algo real, mas que ainda deve ser “completado” em razão da falta de presença física da/o performer com quem se está tocando. Com isso, nos submetemos a
idealizar o que está acontecendo “do outro lado”, a considerar a representação como
algo real e a tentar intuir o som/gesto da/o outra/o performer.
Em parte, é possível comprovar essa situação no relato de Stênio Biazon27:
Há uma leitura representativa da coisa no sentido de que eu estou ouvindo esse
som aqui da ‘caixinha’ unidirecional . . . faltam várias frequências, não ocupam
espaço do mesmo jeito. No entanto eu sei, pelo meu costume com gravação e
por eu conhecer a situação que ele é um som mediado, ele é um som acusmático.
Ademais, os sons atravessam esse contexto de uma maneira ainda mais sutil e difícil de avaliar da mesma maneira que a imagem por vários motivos. Em primeiro lugar, a improvisação mediada por caixas de som é uma prática muito comum entre as/
os performers da OE; isto ocorre pois instrumentos não acústicos são utilizados com
frequência pelo grupo, mesmo em ensaios não mediados por plataformas virtuais. Em
segundo lugar, a escuta musical trabalhada no grupo, que busca não se privar de nenhuma qualidade timbrística, seja ela ruidosa ou não, é acostumada a não considerar
a mediação por dispositivos elétricos, como caixas de som/amplificadores, como algo
que prejudicaria a performance ou que diminuiria a atenção da/o performer. Portanto,
esta ferramenta não causaria, em sessões remotas, o desejo de presença do outro.
Um terceiro ponto a ser considerado é uma crença por parte das/os musicistas
de que a utilização da visão é necessária apenas em poucos instantes da performance
musical, o que pode tornar pouco precisa a mensuração do quanto se está imaginando/
projetando da relação com a/o outra/o quando se limita o campo visual durante uma
improvisação mediada por dispositivos de comunicação telemática.
No entanto, em razão dos sons não possuírem, ao menos não em sua origem, um
caráter simbólico preponderante, como a palavra ou a imagem, e permitirem interpretações mais subjetivas sobre suas qualidades, parece ter sido indispensável por parte
das/os musicistas que seus relatos sobre as performances de LIM também fossem baseados em um aspecto sensorial mais objetivo como a visão.
Considerações finaisi
A colheita de depoimentos de cada membro acerca do conceito de produção de
presença e de sua aproximação da prática da LIM ampliou o escopo de minhas análises
e problemáticas e, em algumas situações, ajudou a desconstruir determinadas ideias
sobre o conceito concebido por Gumbrecht quando vinculado a processos de criação
sonora em tempo real.
27
Stênio Biazon é doutorando em Música pela Universidade de São Paulo e integra da Orquestra Errante desde 2011 como cantor.
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e interatividade na livre improvisação musical
No entanto, durante as discussões acerca da presença, não se chegou a um consenso sobre como os dispositivos mediadores - gravadores de áudio e plataformas de
comunicação virtual - capacitam ou incapacitam a percepção das/os performers durante as sessões de livre improvisação. Ademais, talvez tenhamos chegado a tantos impasses durante nossas reflexões em função dos fatores subjetivos presentes em processos artísticos de criação.
Em virtude disso, surgiram outras perguntas sobre o tema: a presença deve ser
mensurada a partir da relação que se estabelece com o outro ou é medida a partir do
que cada um avalia sobre sua presença? É necessário um observador externo para avaliar as situações de um possível estado de presença de cada performer?
O principal impedimento para que estas perguntas não tenham sido respondidas
com propriedade e para que a oscilação entre efeitos de presença e efeitos de sentido
não pudesse ser avaliada de maneira exata e segmentada - considerando os relatos
individuais das/os envolvidas/os - é o fato desta ocorrer de maneira fluida e efêmera
durante as performances de LIM.
Além disso, o fato da música não ser consituída por sons que possuam um significado simbolicamente mais objetivo, por si só, configura-se como um entrave às perguntas trazidas à OE. Como compreender os efeitos de sentido e os efeitos de presença
se raramente há um sentido que não seja subjetivo em música?
Em primeiro lugar, durante uma performance musical, o que poderiamos chamar
de sentido nem sempre está vinculado ao som propriamente dito, mas, sim a memórias que esse som traz, aos gestos que ele desencadeia ou às imagens que possam ser
suscitadas por ele. Isto se deve, em boa parte, pela longa relação que temos com a
percepção hermenêutica das coisas do mundo. Em segundo lugar, no decorrer de performances musicais, o suposto sentido pode estar atrelado a situações que não são
construídas pelo som diretamente - embora possam estar em função dele - como o
gesto corporal de outras pessoas, o olhar da/o outra/o, as condições do espaço (cheiro,
cores, temperatura etc.).
Entretanto, apesar de buscarmos com frequência um sentido no que está ao nosso
redor, é necessário estar alerta para os momentos em que fazemos isto de fato e para as
situações em que permitimos que a busca pelo sentido não atue. Talvez somente desta
forma seja possível compreender ou perceber as oscilações entre efeitos de presença e
efeitos de sentido.
Por outro lado, caso existam elementos nomináveis de um fazer musical mais ligado aos efeitos de presença, é importante saber quais seriam as maneiras de percebê-los.
O “impacto das coisas do mundo” (GUMBRECHT, 2010, p.14) sobre nós não é traduzível
em palavras, mas assumidos pelas afecções, pela porosidade corpórea e pela imersão
dos sentidos em estado a não ser compreendido, mas experienciado.
Seguindo esta lógica, dificilmente seria possível afirmar que não há como atingir
um estado de produção de presença durante sessões de LIM, sejam elas presenciais ou
virtuais. Isto porque ambas podem suscitar oscilações entre efeitos de sentido e efeitos
de presença.
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No entanto, o fato de haver diferentes tipos de separação espacial entre as/os
performers nas duas partes da proposta performativa fez com que algumas/uns sentissem os efeitos de presença alterados por fatores visuais e/ou sonoros e em razão dos
diferentes procedimentos e ferramentas utilizados. Além disso, embora nem todas/os
tenham concordado sobre como a visualização ou a sonoridade emitida pela/o outra/o
por meio dos dispositivos de comunicação telemática afetaram suas performances, ficou evidente que há diferenças entre sessões de improvisação presenciais e virtuais se
considerarmos a influência da espacialização sonora, das condições temporais e do
gesto físico para cada musicista.
Comparando sessões de LIM presenciais anteriores às considerações apresentadas
pelo grupo sobre esta proposta, pude observar que cada tipo de performance pôde fazer
com que as/os musicistas se afetassem/impactassem a partir de materialidades de naturezas distintas, tais como: (1) sons distorcidos/filtrados em razão de sua amplificação e
difusão mecânica ou sons sem equalização realizada por máquinas, (2) sonoridades unidirecionais (caixa de áudio) ou sonoridades multidirecionais (características acústicas do
espaço), (3) visualização frontal/bidimensional da/o outra/o ou vizualização tridimensional da/o outra/o, (4) imaginação de gestos e tentativa de complementar o áudio gravado
e representação do real pelas imagens expostas nas telas dos computadores ou visualização total dos movimentos e intenções corporais e sonoras da/o outra/o performer, (5)
impossibilidade ou possibilidade de utilização dos soslaios do corpo.
Isto posto, é possível dizer que há diferentes produções de presenças para cada
espécie de performance, sejam elas presencias ou virtuais. Neste sentido, a afirmação
“tem algumas coisas que não podem ser tomadas como dadas, por exemplo, presença
não é corporalização, necessariamente”, de Flora Holderbaum28, denota que poderíamos configurar um estado de presença mesmo em sessões virtuais de LIM. Também podemos considerar que, tanto para performers quanto para um possível público, haveria
momentos mais vinculados a um sentido ou interpretações específicas e situações que
se encontram mais conectadas à presença ou às percepções sensoriais como um todo.
Há, no entanto, que ser considerado o número ou as camadas de mediações realizadas nas performances, levando em conta corpo, voz, instrumentos, espaço(s), caixas de som e computadores como elementos que representam essas gradações e que
podem influenciar em uma intenção mais reflexiva (efeitos de sentido), mais oscilante
ou mais vinculada à presença (efeitos de presença). Nesse sentido, talvez possamos dizer que em performances contendo todas/os as/os musicistas em um mesmo espaço
teremos um menor número de mediações do que se improvisarmos por meio de dispositivos como caixas de som e computadores conectados à internet, sendo que, neste
último caso, verificamos duplas ou triplas camadas midiáticas, as quais poderiam gerar
mais desejo de presença por representarem uma quantidade maior de mediações se
comparadas às performances elaboradas em um mesmo tempo-espaço:
28
Flora Holderbaum é doutora em Música pela Universidade de São Paulo e integrou a Orquestra Errante como cantora e violinista.
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e interatividade na livre improvisação musical
O desejo de presença, que invoquei é uma reação a um mundo cotidiano amplamente cartesiano e historicamente específico que, pelo menos às vezes, queremos ultrapassar. Por isso, não é surpreendente nem embaraçoso que nesse
contexto [...] as ferramentas conceituais com que procuramos analisar os vestígios desse desejo de presença, num ambiente carregado de sentido, também
sejam orientadas em parte pelo sentido, em parte pela presença. (GUMBRECHT,
2010, p.140).
Embora a expressão musical faça uso de uma materialidade abstrata suas/seus
performers não têm como desconsiderar completamente os elementos espaciais e
corporais durante um ensaio ou uma apresentação. No entanto, quando se improvisa
mediada/o por dispositivos da comunicação telemática, pode haver uma queda no impacto desses elementos sobre a atuação das/os musicistas.
Apesar disso, há também que se considerar a opinião de performers que veem as
mediações virtuais como algo que não altera de nenhum modo a produção de presença
ou o impacto das coisas do mundo sobre si, como é o caso de Rogério Costa29:
Não é o fato de ter um dispositivo eletrônico mediando a comunicação que faz
com que isso [a produção de presença] mude, porque a presença tem a ver com
a disposição da/o performer com relação a alguma coisa que está acontecendo.
Esta concepção talvez surja devido ao grande estímulo e utilização das tecnologias de comunicação contemporâneas em performances e relações sociais, as quais,
por nos privarem dos elementos da relação presencial, podem vir a potencializar o desejo de estarmos presentes e de nos relacionarmos com intensidade em processos de
criação em tempo real, sendo eles mediados ou não por dispositivos, como gravadores
de áudio ou computadores.
[...] quanto mais perto estamos de cumprir os sonhos de onipresença e quanto
mais definitiva parece ser a subsequente perda dos nossos corpos e da dimensão espacial da nossa existência, maior se torna a possibilidade de reacender
o desejo que nos atrai para as coisas do mundo e nos envolve no espaço dele.
(GUMBRECHT, 2010, p.172).
Relevando as opiniões de musicistas sobre a temática e a proposta performativa
criada como pano de fundo para as discussões travadas em dois encontros da OE, vale
ressaltar que a pretensão desta pesquisa não é chegar a uma conclusão maniqueísta
sobre improvisações mediadas por dispositivos da comunicação telemática e outras
que não se utilizam destas tecnologias, tendo uma como pior ou melhor que a outra.
Como já dito anteriormente, o objetivo deste estudo tem sido buscar as diferenças que
existem entre elas e analisar as ferramentas utilizadas durante suas práticas no intuito
de mensurar os efeitos de presença e efeitos de sentido, assim como quando operam as
produções de presença entre as/os performers.
29
Rogério Costa é professor do Departamento de Música da Universidade de São Paulo e fundador da Orquestra Errante, na qual atua
como saxofonista.
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e interatividade na livre improvisação musical
Desta forma Gumbrecht também coloca em seus apontamentos que suas concepções não devem ser vistas como um manifesto contra a interpretação dos sentidos ou uma
apologia à presença, mas como uma reflexão sobre como temos agido diante das novas
tecnologias e como viemos a descorporificar nossas relações com o mundo atualmente.
Este pequeno livro não pretendia de modo nenhum ser um ‘panfleto contra’ conceitos e contra o sentido em geral, ou contra a compreensão e a interpretação
[...]. Minha contribuição marginal [...] é muito mais a de dizer que essa dimensão
cartesiana não cobre [...] toda a complexidade de nossa existência, embora sejamos levados a acreditar que o faz. (GUMBRECHT, 2010, p. 175).
Considerando a prática da livre improvisação na atualidade e seus desdobramentos performativos, pode-se dizer que o conceito de produção de presença converge
com a noção contingencial elaborada nesse tipo de manifestação artística. Assim, justaposto às performances da Orquestra Errante, incorre em uma reflexão geradora de
propostas afinadas com os preceitos fundamentais da LIM, que por sua vez, se configura
em contextos de intensa relação com o outro e de imersão na experiência sonora.
A pergunta retórica apresentada no título deste artigo, assim como todas as etapas
da proposta realizada junto à OE, suas perguntas e problematizações, tiveram como
referência um pensamento que nos leva a descontruir a lógica hermenêutica das pesquisas disciplinares e demonstraram o vasto campo epistemológico que pode surgir do
diálogo entre a LIM e as concepções de Hans Ulrich Gumbrecht. Sendo assim, não há
aqui a intenção de produzir uma conclusão definitiva ou de construir novas fronteiras
entre áreas do conhecimento, mas a de confabular sobre, e quem sabe defender, a ideia
de uma não segmentação das ações poéticas humanas.
Em suma, este estudo interdisciplinar buscou levantar hipóteses sobre experiências
performativas de LIM em sua aproximação das concepções filosóficas de Gumbrecht,
as quais provocaram debates que envolveram as/os participantes da OE no intuito de
responder os questionamentos de maneira mais abrangente possível. Para além disso,
os relatos apresentados pelas/os integrantes do grupo nem sempre tiveram a intenção
de responder a um questionário em sua configuração mais cartesiana - destrinchando
cada pergunta de maneira organizada e buscando o certo ou o errado de cada resposta. O levantamento aqui apresentado é, portanto, antes de mais nada, um apanhado
de pensamentos arriscados e subjetivos sobre as possibilidades de colocar em prática
conceitos de uma filosofia não preocupada em comprovar-se, mas em provocar-se a
perceber outras formas de compreender o pensamento e a ação humana.
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Referências
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In: KELLER, Damián. LIMA, Maria Helena de (ed.) Aplicações em Música Ubíqua Vol. 7.
São Paulo: Ed. Annpom, 2018. p. 168 - 207. (Série Pesquisa em Música no Brasil)
BAUMANN, Zigmunt. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
COSTA, Rogério. Música Errante: o jogo da improvisação livre. São Paulo: Perspectiva,
2016.
FALLEIROS, Manuel. Palavras sem discurso: estratégias criativas na livre improvisação.
Tese (Doutorado em Processos de Criação Musical) - Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2012.
FLUSSER, Vilém. A filosofia da caixa preta. São Paulo:Hucitec, 1985.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. A Produção de Presença: o que o sentido não consegue
transmitir. Rio de Janeiro: Ed. PUC, 2004.
IAZZETTA, Fernando. Música e Mediação Tecnológica. São Paulo: Perspectiva, 2009.
LAROSSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autêntica,
2014.
McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem.São
Paulo: Cultrix. 1964.
NOVAES, Silvia Caiuby. Imagem e ciências sociais: trajetórias de uma relação difícil. In:
BARBOSA, Andrea et al. (ed.) Imagem-conhecimento: antropologia cinema e outros
diálogos. Campinas: Papirus, 2009.
SILVA, Wellington Amâncio da. Hans Ulrich Gumbrecht Leitor de Martin Heidegger:
concepção de produção de presença. In: Revista Brasileira de Estudos da Presença,
Porto Alegre, v. 7, n. 3, p. 505-522, set./dez. 2017.
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‘Notas de fim’
i
Este artigo, escrito antes do início do período de isolamento social que estamos passando, pode parecer
anacrônico diante das inúmeras mudanças causadas pela pandemia do novo coronavírus (SARS-coV-2). Para além
das questões de saúde pública, as quais não cabem a este artigo relatar, temos sofrido um impacto ainda maior
das novas tecnologias em nosso cotidiano. O tempo aparentemente dilatado, o estresse causado pela realização de
inúmeras vídeoconferências, a não possibilidade de aglomerações humanas e suas consequências para as artes performativas, a reformulação compulsória do ensino escolar e universitário e até uma transformação do vocabulário
oral devido à ressignificação de nosso espaço-tempo são algumas das situações instauradas nos últimos meses que
impuseram a necessidade de reformulações na comunicação entre as pessoas e que, consequentemente, estenderão esta pesquisa.
Os dispositivos elétricos como extensões do corpo humano - como formulou Marshall McLuhan na década de 1960
-, para além de suas capacidades de ampliar aspectos da comunicação humana, trazem consigo suas deficiências
e seus efeitos colaterais. Estas características, por sua vez, podem ser percebidas pelo ser humano em maior ou
menor grau dependendo da situação. Nos últimos meses, a necessidade de estarmos isolados socialmente fez com
que nos tornássemos mais dependentes das máquinas o que, invariavelmente, nos colocou em relação mais próxima
com estas questões.
Considerando um dos seus efeitos da comunicação telemática, o atual momento pode ser visto como o auge da
descorporeização das relações humanas. A noção de tempos líquidos concebida por Zigmunt Baumann há duas
décadas se estabelece hoje com maior intensidade, tornando mais aparente as limitações dos dispositivos que utilizamos para nos comunicar e expressar artísticamente. Isto, apesar da imensa quantidade de novos aplicativos para
celulares e softwares que têm atualizado nossas máquinas na tentativa de solucionar os problemas da comunicação
remota realizada por meio de aparatos eletrônicos.
Por outro lado, a impossibilidade da relação física em um mesmo espaço, ao tornar-se preponderante, fez com que
a intenção presencial e a atenção a/ao outra/o se potencializasse em situações de comunicação virtual sendo ela
artística ou não. Sendo assim, as conjunturas associadas à pandemia do novo coronavírus e ao isolamento social
vivido nos últimos meses me fizeram formular uma infinidade de perguntas que não poderão ser esclarecidas neste
texto em razão da não conclusão dessa situação até o presente e de sua complexidade exigir mais espaço do que o
permitido a este trabalho. Apesar disso, exponho aqui alguns destes questionamentos a fim de complementar as
hipóteses e problematizações apresentadas anteriormente:
(1) Quanto cada improvisação/comunicação telemática absorve de nossa fisicalidade e quanto dessa fisicalidade é
necessária para a interação musical em tempo real? (2) A/O performer livre improvisador/a recuperaria, unicamente
por meio do som, a tatilidade do encontro artístico com a/o outra/o? (3) Possuirmos a capacidade cinestésica é suficiente para “preencher” a ausência física da/o outra/o artista? (4) Como não naturalizar as situações de comunicação
telemática, paradoxalmente adversas e proponentes de novas interfaces à expressão humana?
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10.5965/2525530405022020e0004
Pernambuco “feminina”, mulher fêmea,
sim! A mulher na mazurca do Alto do
Moura: culturas, vivências e músicas1
Marília Santos2
Universidade Federal da Paraíba
marilia_05030@hotmail.com
Submetido em 17/03/2020
Aprovado em 18/07/2020
ORFEU, v.5, n.2, 2020
P. 1 de 34
Pernambuco “feminina”, mulher fêmea, sim! A mulher na
mazurca do Alto do Moura: culturas, vivências e músicas
Abstract
Resumo
A subordinação da mulher é um fenômeno universal, milenar, e é a primeira
forma de opressão da humanidade (Ana
COSTA; Cecília SARDENBERG, 2008). Trabalhos que abordam a relação entre mulher e música, ou música e gênero, ainda
precisam emergir mais, embora perceba-se uma crescente no campo nos últimos
anos. Este artigo apresenta a presença das
mulheres (como criadoras, performers,
musas, mestras) na Mazurca Pé Quente do
Alto do Moura, apontando para a importância dos contextos em que a música está
inserida, assim como a relevância de trabalhos que falam sobre mulher no âmbito
musical. Foram realizadas entrevistas, observações e conversas informais com as/
os integrantes da mazurca. A maior parte
dos dados foi coletada para o “Inventário
do Ofício dos Artesãos e Artesãs do Barro
do Alto do Moura – Caruaru-PE”.
Palavras-chave: Música;
Mazurca; Alto do Moura.
Mulher;
The subordination of women is a universal, ancient phenomenon and is the first
form of oppression of humanity (Ana COSTA; Cecília SARDENBERG, 2008). Studies that address the relationship between
women and music, or music and gender,
still need to emerge more, although there
has been a growing trend in the field in recent years. This paper aims to present the
presence of women (as creators, performers, muses, mestras) in Mazurca Pé Quente
do Alto do Moura, pointing to the importance of the contexts in which music is inserted, as well as of works that talk about
women in the musical field. Interviews,
observations and informal conversations
were carried out with the members of the
mazurka. Most of the data was collected
for the “Inventário do Ofício dos Artesãos
e Artesãs do Barro do Alto do Moura –
Caruaru-PE”.
Keywords: Music; Woman; Mazurka;
Alto do Moura.
1
Dedico esse texto às mazurqueiras do Alto do Moura. Também às minhas avós Maria José Cardoso e Maria de Freitas dos Santos, às
minhas bisavós Antônia Maria da Conceição, Maria Graciana Cardoso, Maria Viana de Freitas e Maria Nazaré de Lima, a minha tia-avó Creusa
Freitas (todas em memória). À minha mãe, Mariza Simplício dos Santos, 50% responsável pelo meu nascimento, minha vida. Sem ela eu não teria
me tornado a mulher feminista que sou hoje. Cada atitude dela contribuiu. À minha irmã Mayara Santos, às minhas tias Miriam Simplício, Marizete
Lopes, Marileide Lopes, Maria do Socorro e Josefa Maria. Todas as tias mães. Que elas tenham um olhar cada vez mais feminista na criação dos/as
seus/suas filhos/as. Dedico a mais cinco mulheres agrestinas: Maria Santos, Vilma Quaresma, Rafaella Ramos, Jane Ramos e Margarida (Guida).
Dedico a todas as mulheres artistas que continuam resistindo a essa sociedade machista. Às pesquisadoras da área de Música, sobretudo àquelas
que são do Nordeste do Brasil. Que nós, mulheres, também reflitamos sobre nossas atitudes diariamente, para não aceitarmos os segundos lugares que nos são dados (como migalhas de recompensa). E, para quando estivermos avaliando, não colocarmos as outras mulheres nesse pódio
que fica sempre atrás do frequentemente, e facilmente, ocupado por homens. Não sejamos meio de opressão nosso e das outras mulheres. Por
fim, mas não menos importante, dedico para todas as mulheres agricultoras, que dividem o trabalho do roçado com seus maridos, e em casa ainda
precisam dar conta dos serviços domésticos e das/dos filhas/os e dos maridos.
2
Mestra em Música/Etnomusicologia (Universidade Federal da Paraíba), graduada em Música (Universidade Federal de Pernambuco) e
em Letras (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru). Na pesquisa em Música tem experiência com músicas de diferentes culturas musicais, sobretudo as pernambucanas. Em Letras, trata principalmente sobre relações de gêneros, mulheres e sexo. Atualmente estuda violoncelo.
Marília Santos
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Introdução
O campo “música e gênero” é algo que vem emergindo nas últimas décadas, com
destaque para os anos de 2010, pelo menos dentro dos programas de pós-graduação
(Camila ZERBINATTI; Isabel NOGUEIRA; Joana PEDRO, 2018)3. Esse é, provavelmente,
um reflexo dos meios culturais e sociais, em que a mulher tem compreendido cada vez
mais o seu lugar como sujeito e o tem reivindicado. Além disso, entendemos que, diante
dos vários silenciamentos em que a mulher é colocada, a música tem sido um deles, seja
no estudo da música para concerto4, seja na chamada música popular5, seja na prática
do fazer musical. Desta forma, pesquisadoras/es, principalmente mulheres, têm utilizado os meios acadêmicos como um lugar de fala, numa tentativa de dessilenciamento
dessa mulher que faz música.
Através dos trabalhos científicos (trabalhos de conclusão de curso, dissertações,
teses, artigos), pesquisadoras/es têm evidenciado a existência da mulher no meio musical. No levantamento realizado por Zerbinatti, Nogueira e Pedro (2018), é possível notar
uma presença considerável de pesquisas, antes dos anos 2000, principalmente, voltadas para Chiquinha Gonzaga e um certo predomínio das mulheres da/na música para
concerto, ou pelo menos com algum tipo de relação com o estudo dessa música. Nos
últimos vinte anos, de acordo com o que foi apresentado por estas autoras, a produção
de trabalhos científicos voltados para a mulher aumentou em quantidade e também
em diversidade. Apesar disso, entendemos que a mulher ainda não recebe o destaque
merecido, não está num patamar de igualdade com o homem, seja na música, seja em
outras situações.
Nas culturas de tradições orais do interior do estado de Pernambuco – um dos estados da região Nordeste do Brasil –, mesmo percebendo o destaque dos homens como
os mestres, notamos o quanto a mulher é fundamental para a construção, manutenção
e difusão de determinadas práticas expressivas, e que frequentemente os homens que
se destacam estão “sustentados”/“alicerçados” por uma ou mais mulheres em suas práticas. De acordo com Costa e Sardenberg, a subordinação da mulher é um fenômeno
universal, milenar e é a primeira forma de opressão da humanidade (Ana COSTA; Cecília
SARDENBERG, 2008, p. 23) e, por isso, a ela vêm sendo negados os vários lugares e espaços, sejam eles sociais, econômicos, políticos, artísticos, e criativos.
Diante disso, compreendemos que é necessário registrar e difundir o que estas mulheres fizeram e estão fazendo, e como elas estão sendo representadas. Aqui, mais especificamente, no âmbito expressivo/artístico/musical, seja por uma questão de criação de
3
Decidimos adotar esse sistema de referências em que, ao citarmos mulheres, na primeira vez o primeiro nome delas irá aparecer.
Baseamo-nos nas regras de referências da revista Estudos Feministas, da Universidade Federal de Santa Catarina, que tem como objetivo tratar
questões sobre gêneros e feminismos. Entendemos que, mesmo não sendo o sistema da revista Orfeu, torna-se apropriado utilizá-lo por questões de inclusão e metodologias feministas.
4
Seria o equivalente à “erudita” ou “clássica”, porém preferimos chamar de música para concerto.
5
Usamos aqui a expressão música popular para nos referirmos a todas as músicas (expressões musicais, músicas da mídia, de tradição
oral, folclóricas, do mundo etc.) que não estão no âmbito do que estamos chamando de música para concerto. Entendendo, obviamente, que as
fronteiras de categorização não estão, ou não deveriam estar, severamente delimitadas.
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consciência, seja para que mais uma vez elas não fiquem silenciadas e esquecidas na/da
história da humanidade, como vem acontecendo o tempo todo conosco. Neste artigo
destacamos as mulheres que compõem a Mazurca Pé Quente do Alto do Moura.
Fazemos uma breve apresentação da cultura em que estas mulheres estão inseridas, com ênfase para a mazurca, e como elas se comportam e se empoderam diante das
várias situações. Trazemos ainda uma breve trajetória de duas das principais integrantes
da Mazurca Pé Quente do Alto do Moura, Dona Hilda e Dona Miúda, e seus envolvimentos com a brincadeira. E, por fim, mostramos como a mulher é cantada nas mazurcas
– colocadas na música, retratando a cultura dos lugares e espaços os quais constroem
e em que vivem – e como ela também ocupa esse lugar/espaço de coquista – “cantora”,
puxadora, “poetisa” – de mazurca para expressar-se e mostrar realidades, inclusive de
violência de gênero.
Foram realizadas entrevistas com componentes da Mazurca Pé Quente do Alto do
Moura (mulheres e homens), várias observações, tanto da prática da mazurca quanto do
contexto geral, além de muitas conversas informais com várias pessoas. Grande parte
das informações foi obtida durante o período em que compus, como pesquisadora/
etnomusicóloga, a equipe multidisciplinar responsável por realizar o “Inventário do Ofício dos Artesãos e Artesãs do Barro do Alto do Moura – Caruaru-PE”, no período de 1
de março de 2017 a 1 de março de 2018. O inventário, aprovado pelo Edital 2015/2016
do Fundo Pernambucano de Incentivo à Cultura (Funcultura), tem como um dos seus
principais objetivos solicitar, ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan), o registro do Alto do Moura como patrimônio imaterial brasileiro.
As entrevistas foram orientadas de acordo com as regras utilizadas pelo Iphan para
a realização de inventários. Na época não houve nenhuma questão direcionada para
a relação de gêneros nas expressões por mim registradas. Por isso, muitos questionamentos que deveriam ser realizados, que poderiam contribuir para uma visão mais
clara e ampla dessas relações, não foram feitos. A escolha das pessoas entrevistadas foi
indicada pelos coordenadores (homens) do projeto. Além disso, meu objetivo, na coleta
de dados, era tratar das relações das expressões com a produção da arte figurativa do
barro. Meses depois de finalizar a coleta, de escrever especificamente sobre a mazurca,
percebi o quanto é necessário dar um destaque às mulheres que a integram.
As observações foram realizadas com o mesmo intuito que as entrevistas. Eu acabei criando uma relação de proximidade, na época, com alguns/as entrevistados/as,
sobretudo com Dona Hilda e Severino Vitalino, a primeira componente da Mazurca Pé
Quente do Alto do Moura. A coleta de dados realizada por mim não foi baseada numa
metodologia participativa ou colaborativa. Entretanto, o projeto, inclusive ainda não
finalizado6, está construído dentro de um âmbito que poderíamos chamar de participativo, pois as artesãs e os artesãos estão envolvidos no processo e opinam sobre o direcionamento do que deve ser feito. O que apresento neste artigo, no entanto, está muito
mais no campo da observação.
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Eu não faço parte desse processo final. Minha função era apenas a de fazer a coleta de dados, registrá-los e enviá-los aos coordenadores.
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Embora este trabalho apresente-se, sobretudo, num formato mais descritivo, compreendemos que se faz necessário expor quem são as mulheres que estão compondo
expressões culturais musicais, como a Mazurca Pé Quente do Alto do Moura, apontando
os trajetos de lutas e (in)visibilidades dessas mulheres, como esclarece Harue Tanaka
(2018). Dentro da pós-graduação, não podemos deixar de citar como essa visibilidade da
mulher na música tem sido protagonizada por ela mesma, com professoras e pesquisadoras como Laila Rosa, Isabel Nogueira, Harue Tanaka, Francisca Helena Marques, Maria
Juliana Linhares, Tânia Neiva, Bibiana Brangagnolo e tantas outras que realizam pesquisas pensando em metodologias feministas e/ou em formas de inclusão da mulher no
meio do estudo acadêmico. É preciso destacar, no entanto, que até 2014, pelo menos,
“muitas das publicações sobre mulheres e música [partiam] de um princípio de abordagem individual [das] autoras musicistas e não […] de uma discussão epistemológica feminista (Laura CUNHA, 2014, p.3366). O que, a nosso ver, em nada empobrece a discussão.
Pelo contrário, aborda as questões numa outra perspectiva, também importante.
Antes de falarmos mais especificamente da mulher na Mazurca Pé Quente do Alto
do Moura, como propusemos, faz-se necessário apresentar um breve histórico de como
as relações de gênero, as “feminilidades” e as “mulheridades” têm se manifestado nos
espaços e locais, apontando aqui mais especificamente para o Nordeste do Brasil.
Pernambuco “feminina”, mulher fêmea, sim! A mulher no Nordeste
do Brasil
Ao observar a história, nota-se a constância, nos registros, da presença do homem nos grandes feitos, nas criações e performances. Há muitos milênios as diferentes
sociedades sofrem com a opressão do gênero “masculino” em relação ao “feminino”.
Para a mulher – e consequentemente para outras pessoas de gêneros diferentes ou não
definidos, mas que têm comportamentos fora de padrões “masculinos” – é imposto um
lugar de silêncio. Casar, parir, cuidar da prole e do marido, por exemplo, são atitudes
transformadas em obrigações sociais e culturalmente “naturais” à mulher. Inclusive, expressões como “tocar como homem” e “compor como homem” são frequentemente
utilizadas para dizer como se deve fazer bem as coisas.
De uma forma ou de outra, a mulher sempre lutou por si, mesmo que muitas vezes
aceitando, por falta de uma consciência “mais feminista” – consequência do meio, da
criação em que está inserida –, os padrões machistas. Porém, de acordo com Pinto, é
a partir da Revolução Francesa, no século XVII, que grupos de mulheres começam a se
organizar para lutar por seus direitos, por sua cidadania. No final do século XIX e início
do século XX, as lutas das mulheres passaram a focar no direito de votar e de serem votadas. É através do Movimento Sufragista, que teve início na Europa, que são encontrados os primeiros indícios de um movimento feminista organizado. E é por meio da luta
por direitos políticos que o movimento surge no Brasil na primeira metade do século XX
(Céli PINTO, 2003, p.13) e tem se desdobrado de diversas formas, buscando, inclusive,
atender às necessidades e particularidades de cada grupo específico de mulheres – a
partir de diferenças étnicas, econômicas, regionais, sexuais e outras mais –, influencian-
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do, inclusive, comportamentos de empoderamento em diversos espaços e lugares que
não se assumem necessariamente feministas.
No Nordeste do Brasil, a luta por igualdade de gêneros, como aponta Ferreira, é
parecida com o que aconteceu no Sul e no Sudeste do país, com grupos de mulheres
que procuravam pensar e impor para a sociedade seu lugar de sujeito. De acordo com a
mesma autora, no estado de Pernambuco houve a criação de vários grupos feministas
durante a década de oitenta, como o Centro de Mulheres do Cabo, Cais do Parto, Viva
Mulher, grupos ligados à Universidade Federal de Pernambuco, à Federação de Pernambuco e à Fundação Joaquim Nabuco (Mary FERREIRA, 2011, p.3-4).
Mas a realidade no Nordeste tem suas particularidades. Percebemos, tanto pelos
apontamentos feitos pela autora quanto a partir de uma vivência própria entre interior e
capital, que os movimentos que surgiram, e que continuam aparecendo de forma mais
enfática, ainda estão situados na região metropolitana do Recife ou em áreas próximas a
esta. A mulher do agreste e do sertão de Pernambuco, e aqui falando mais especificamente daquela de cultura rural, normalmente tem menos acesso – por diversos fatores que
não pretendemos discutir aqui – às instituições intelectuais, sobretudo em décadas atrás.
Nos interiores do Nordeste, muito frequentemente marcado pela seca, pela vida
sofrida, pela falta de assistência política condizente com o necessário, negando, inclusive, o direito à saúde e à educação decentes para muitas pessoas, nem todas as mulheres tiveram/têm acesso a discussões sobre consciência de gênero. Mesmo já havendo
um movimento considerável de agricultoras que tem crescido no campo político do
Brasil desde a década de oitenta, como afirmam Scott, Cordeiro e Menezes, apesar de
a presença das mulheres nos sindicatos e associações rurais ser um fato e de haver no
Nordeste e no Norte do país mulheres que, dentro desse contexto rural, têm se reunido
para discutir direitos sexuais, à saúde, sobre geração de renda (Parry SCOTT; Rosineide
CORDEIRO; Marilda MENEZES, 2010), esse movimento ainda não conseguiu atingir todos os âmbitos, lugares e espaços necessários para uma igualdade de gênero.
Perguntamo-nos então: será que a mulher que luta para trabalhar, para ganhar
igual ao homem, tem igualdade dentro de casa ou tem que continuar fazendo as tarefas
domésticas enquanto o(s) seu(s) irmão(s) homem(ns) só bagunça(m) a casa, come(m),
dorme(m) e/ou estuda(m)? Tem que continuar tomando conta das/os filhas/os sozinha?
Tem que colocar a comida no prato do marido, mesmo trabalhando e ganhando igual
ou mais do que ele? Será que as mulheres da Mazurca Pé Quente do Alto do Moura têm
o destaque merecido ou estão apagadas por trás da figura de um ou mais homens? Será
que, mesmo sendo sindicalistas, fazendo parte de associações, sendo coordenadoras
de grupos musicais, estas mulheres – e a sociedade em geral – estão pensando seu
lugar epistemológico de forma igualitária? Ou estamos sendo enganadas mais uma vez
pelo sistema?
De qualquer forma, a mulher vai encontrando maneiras de se fortalecer, vai criando lugares de fala. A mulher do interior do Nordeste, mais especificamente de Pernambuco, as que conheci, mulheres das quais descendo, minhas bisavós, Antônia da Conceição, Maria Graciana, Maria Nazaré, Maria Viana, minhas avós, Maria de Freitas, Maria
Cardoso – todas agricultoras, e a última filha de caboclo –, minha mãe, Mariza Santos
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– criada na agricultura e professora que, para exercer sua função de docente, tinha que
andar quilômetros a pé, muitas vezes me carregando nos braços, atravessando riachos
e açudes –, e tantas outras mulheres, envolvidas com diversas atividades, mulheres da
música, da arte, das diferentes expressões, nunca se permitiram ser anuladas. Estas mulheres são e sempre foram sinônimo de resistência.
Além dos problemas econômicos, preconceitos, criou-se uma ideia de que a mulher nordestina, sobretudo aquela dos interiores agrestinos e sertanejos, que sofre com
as grandes secas, muitas vezes agricultora, tem uma força sobre-humana. Djamila Ribeiro (2018, p. 20) ao falar sobre a mulher negra, explica que esta é frequentemente tratada como se tivesse uma força além do que se pode esperar de um ser humano. Muitas
mulheres do Nordeste do Brasil, negras ou não, são tratadas da mesma forma. Estas mulheres têm essa resistência porque precisam enfrentar a realidade. E isto, como enfatiza
Ribeiro (2018, p.20), é mais uma forma de morrer, de matar. A Caatinga7 não perde as
suas folhas na seca porque quer, mas porque é a única forma de continuar sobrevivendo.
No entanto, as “ideias”, “classificações”, são utilizadas de acordo com o que convém. Quando a mulher é sobrecarregada, “abandonada”, a força sobre-humana é romantizada. A sociedade machista e opressora enfatiza que a “fragilidade” é sinônimo de
fraqueza. Contudo, quando a força é algo que o homem já utiliza para alcançar objetivos, para se fazer ser/existir, quando a força é vista como humana, esta é frequentemente tratada como algo não inerente à mulher. Ainda de acordo com Ribeiro (2018,
p.80), a força da mulher é muitas vezes colocada dentro de um padrão masculino, como
se força e mulher não combinassem. No Nordeste, logo transforma-se na mulher-macho8. Força e fragilidade são características humanas. E não somente humanas.
Essa mulher nordestina ainda está inserida numa identidade regional. Identidade
baseada principalmente em características – estereotipadas – dos interiores agrestinos
e sertanejos. Consequência, em parte, da “criação do Nordeste”, como região geográfica, política, social, econômica, cultural, artística e epistemológica, iniciada a partir da
década de vinte do século passado (ALBUQUERQUE JR., 2011).
No imaginário brasileiro, o perfil das mulheres trabalhadoras rurais nordestinas
costuma ser tingido com tons de submissão, ignorância, passividade e infelicidade. Uma visão machista, heteronormativa, racista e classicista, fortemente
sustentada pelos meios de comunicação de massa – controlados por uma elite branca interessada em sustentar essa imagem e garantir que essas mulheres
sejam excluídas e invisibilizadas. Essa ideia de que o meio rural é atrasado em
relação ao urbano é uma herança eurocêntrica e homogeniza da forma mais pobre as reais identidades e vivências das trabalhadoras rurais. Diversas, resistentes,
ousadas, as mulheres trabalhadoras rurais nordestinas têm um longo histórico de
enfrentamento e criatividade, amadurecimento politicamente através da participação em diversos espaços e transformando coletivamente suas vidas com práticas pedagógicas decoloniais. (Gabriela ARAÚJO; Maria SANTANA, 2017, p.1-2).
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Único bioma exclusivamente brasileiro, do tupi: mata branca. Ocupa toda a região Nordeste do Brasil e parte de alguns estados de
outras regiões. Por conta do clima, quase todas as plantas perdem as folhas – uma estratégia para não perder água – durante os períodos mais
quentes e secos, ficando a vegetação então com um aspecto seco e esbranquiçado, meio cinza, como se estivesse morta. Com as poucas chuvas,
a mata se enverdece novamente.
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Não vamos discutir a homofobia que está implícita nas opressões “binárias” homem x mulher.
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Estas características continuam sendo utilizadas em diversos espaços, inclusive
artísticos/musicais. Perguntamos então: grupos artísticos que realizam performances
com peneiras e enxadas para representar a mulher agricultora, que usam aventais para
simular as lavadeiras que lavam roupas na beira dos rios, riachos, açudes e barreiros, não
estão afirmando um outro tipo de opressão em relação a esta mulher? Será que as pessoas que fazem arte “imitando” certos tipos de mulheres nordestinas se preocuparam
em, pelo menos, ir conhecer a vida delas? Quem está protagonizando esta mulher? Ela
mesma ou outras pessoas que não sabem nem estão interessadas em saber o que ela
faz, quer, passa, sente?
Já as mulheres que constituem a Mazurca Pé Quente do Alto do Moura têm na
mazurca uma continuação da sua própria cultura, da sua história, de maneira que mazurcar, para elas, é uma parte da própria vida. Essas mulheres têm suas ancestralidades na
vida do campo, na agricultura, nas caboclas, indígenas, negras, brancas (pobres principalmente). Não podemos negar, entretanto, a ancestralidade advinda dos colonizadores através de imposições, casamentos e estupros. Afinal de contas, o que somos senão
filhas/os de um grande estupro colonial? É nesse entremeio de identidades “femininas”,
de “mulheridades”, de gêneros, que um tipo de mulher nordestina, a agricultura, a artesã
do interior árido de Pernambuco, vai se impondo e criando cada vez mais consciência
sobre sua importância, seu lugar social, econômico, político, artístico e sua situação de
sujeito e ser humano.
Antes de falarmos das mestras, músicas e musas, vamos contextualizar a Mazurca
Pé Quente do Alto do Moura.
A Mazurca Pé Quente e o Alto do Moura
O Alto do Moura faz parte do município de Caruaru, cidade do agreste de Pernambuco. Encontra-se fora dos limites da cidade, estando a 8 km do seu centro, aproximadamente. O bairro é reconhecido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) como o maior centro de arte figurativa das Américas
(Lúcia GASPAR, 2020), característica identitária do lugar.
De acordo com Gaspar, já antes do século XVI, pelo menos, havia produção de
cerâmica de barro no local geográfico onde hoje é o Alto do Moura, que era habitado
por índios Kariris. A atividade era realizada somente por pessoas do sexo feminino. No
século XX a produção de utensílios com barro passou a ser também fonte de renda,
influenciada pela Feira de Caruaru, na qual as pessoas poderiam vender os objetos que
faziam. Apesar disso, as famílias eram agricultoras (GASPAR, 2020).
Atualmente o Alto do Moura é conhecido por conta da sua grande produção de
arte figurativa do barro. Algo que se difundiu principalmente através de Mestre Vitalino
– Vitalino Pereira dos Santos (1909-1963) – que, de acordo com um dos seus filhos, Severino Vitalino – Severino Pereira dos Santos (1940-2019) –, começou a ter contato com
o barro com uma mulher: sua mãe, que fazia utensílios de barro para vender na feira.
Junto com ela, observando-a e com interesse em brincar, Mestre Vitalino foi amassando
seus primeiros bois de barro, que, com o passar dos anos, se tornariam arte (SEVERINO
VITALINO, 2018) e levariam o nome do Alto do Moura e de Caruaru para o mundo.
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Além do Mestre Vitalino, Mestre Galdino – Manoel Galdino de Freitas (1929-1996)
– também foi importante para a difusão e criação de uma arte figurativa do barro inovadora. Atualmente o Alto do Moura tem centenas de artesãs e artesãos registradas/os.
Dentre elas/es Marliete Rodrigues é uma das que mais se destaca. Originária de uma
família na qual as gerações anteriores também trabalhavam com barro, ela desenvolveu
uma arte autêntica, sendo, na região, a pessoa que faz os menores bonecos9 de barro,
com centímetros e com todos os mínimos elementos possíveis, desde a bolinha dos
olhos até os detalhes das roupas. Basta dar uma volta nas principais ruas do Alto do
Moura para perceber o quanto a presença da mulher é enfática na produção da arte
figurativa do barro e como está envolvida em diversas outras atividades, inclusive nas
várias expressões artísticas/musicais.
Algo interessante sobre esta região é que mesmo as pessoas que não pertencem,
de nascimento, ao Alto do Moura, sentem-se inspiradas, incentivadas a desenvolver diversas expressões. Além disso, passam a identificar-se com as várias culturas do local.
Existe uma grande influência do meio em todos os sentidos e fazer arte no Alto do
Moura está muito ligado com a própria localidade, que é construída pelas pessoas que
nela habitam. De acordo com Bauman, “pertencimento” e “identidade” não são sólidos.
São “negociáveis e revogáveis” e são definidos de acordo com as decisões tomadas pelos indivíduos, pelo lugar em que escolhem estar ou que lhes são impostos (BAUMAN,
2005, p.17).
Segundo Asken, as fronteiras nacionais são lugares determinantes para a produção, manutenção, delimitação e reafirmação do Estado. Desta maneira, entendemos
que fronteiras são lugares de agudas diferenças culturais, nos quais as identidades já
existentes tendem a se fortificar mais (Kelly ASKEN, 2006, p.3). Assim, as pessoas, entre
fronteiras, sejam elas de quaisquer naturezas (gênero, sexo, sexualidade, local, espaço,
grupos sociais, etnias, classes econômicas), tendem a buscar elementos das suas vidas,
do cotidiano ou de quaisquer eventos com os quais se identifiquem para usá-los como
símbolos de suas identidades.
Neste sentido, as pessoas do Alto do Moura utilizam-se das manifestações que existem no local para se identificar através delas e empregá-las como suas. E, embora a arte
figurativa do barro seja o que mais tem destaque, é possível encontrar vários outros tipos
de expressões ligadas ao barro e à vida das artesãs, dos artesãos e das/os demais moradoras/es do local. Quase todas as expressões realizadas são compostas por música.
Dentre as várias expressões artísticas que existem atualmente no Alto do Moura,
podemos destacar o reisado, a paixão de Cristo, o bacamarte, a poesia, o maracatu, o
repente, o pífano, a sanfona, a embolada e a mazurca. Na maioria das atividades citadas,
a presença da mulher é significativa, às vezes até maior do que a do homem, como no
caso da mazurca.
É possível encontrar no agreste de Pernambuco grupos de mazurcas em cidades
como Agrestina e Caruaru. A maneira de mazurcar e de se organizar nos grupos, de
9
Boneco é o que se considera arte, boneca, artesanato. Não pretendemos discutir isto aqui, mas é notável a existência da relação de
gênero construída através desta nomenclatura, que é usada “naturalmente” no Alto do Moura.
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acordo com Sales (2015), muda de um lugar para o outro10. Em Agrestina, por exemplo,
as/os mazurqueiras/os dançam soltas/os, enquanto, em Caruaru, de mãos dadas e em
pares (SALES, 2015, p.47), às vezes em roda, sem pares, pois a quantidade de mulheres
que participa atualmente é superior à dos homens (Fig. 1).
Fig. 1: Mazurca Pé Quente do Alto do Moura apresentando-se no Alto do Moura durante as Festas Juninas, no dia de São João.
Fotografia: Marília Santos em 24/6/2018.
A mazurca é uma dança de roda que tem como característica seu ritmo marcado
pela batida dos pés no chão, pisada ou trupé. A cantoria é puxada por uma pessoa que
normalmente fica no meio da roda, puxador/a, também chamada(o) de coquista. Sales
(2015, p.23) explica que as letras cantadas nas mazurcas normalmente fazem menção
à cultura do lugar onde cada uma delas se encontra inserida. E isso envolve as relações
de gêneros também.
O grupo de mazurca existente no município de Caruaru fica localizado no bairro
Alto do Moura e está nomeado como Mazurca Pé Quente do Alto do Moura (Fig. 2). Teve
sua origem em 2003, a partir da necessidade de resgatar e preservar expressões que
fizeram/fazem parte da cultura e da história das pessoas, sobretudo das que vivem no
local. Com o incentivo do padre Everaldo Fernandes da Silva, um grupo de moradores
do bairro – artesãs e artesãos, e muitas/os delas/es agricultoras/es também – fez o resgate da mazurca, criando esse grupo e assumindo o compromisso de passá-la para as
gerações seguintes (CÍCERO ARTESÃO, 2018; DONA HILDA, 2018; DONA MIÚDA, 2018;
MANOEL ANTÔNIO, 2018; SEU DÃO, 2018).
Componentes da mazurca do Alto do Moura explicam que diferente das mazurcas
que aconteciam no século passado, sobretudo em sua primeira metade, a Pé Quente
foi criada com o propósito de dar continuidade a esta expressão cultural que está se
tornando cada vez mais rara. No início do século XX, a mazurca era, como as pesso-
10
No dia 9 de maio de 2019, em Recife, presenciei uma apresentação da mazurca da cidade de Agrestina, durante o Seminário Forró e
Patrimônio Cultural, e pude notar essas diferenças. A mazurca de Agrestina me pareceu trazer maiores semelhanças com o coco, tanto em algumas batidas quanto na dança. Além disso, os puxadores, assim como as pessoas que estavam tocando, ficavam do lado da roda, enquanto as/os
mazurqueira/(os faziam a pisada.
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as entrevistadas por nós colocam, basicamente a dança, o divertimento, a brincadeira,
que compunha as festas e comemorações que aconteciam nas comunidades das zonas
rurais do agreste de Pernambuco. Se tinha uma missa, era a mazurca; no Natal, era a
mazurca; no São João, a mazurca. “Ninguém sabia o que era forró”. Com o passar dos
anos, com o surgimento de novas maneiras de se divertir, cantar, tocar, dançar, as pessoas foram parando de mazurcar (CÍCERO ARTESÃO, 2018; DONA HILDA, 2018; DONA
MIÚDA, 2018; MANOEL ANTÔNIO, 2018; SEU DÃO, 2018).
Fig. 2: Mazurca Pé Quente do Alto do Moura na Associação dos Artesãos em Barro e Moradores do Alto do Moura (ABMAM).
Fotografia enviada por Dona Hilda em 25/6/2019.
Quando falam na mazurca, as/os integrantes, assim como as/os espectadoras/es,
não pensam exatamente em uma definição sobre a mesma, se é música, se é dança. Às
vezes dizem uma coisa, outras vezes dizem outra. Talvez brincadeira seja a melhor forma de defini-la, embora muitas pessoas prefiram colocá-la como dança, como apontamos nos parágrafos anteriores. Fato é que ela está repleta de elementos artísticos e
culturais. E então, quando pensamos na sua música – e em música no geral –, temos
que considerar também os elementos “extramusicais”. Diferenciar o que é musical e o
que é extramusical é complexo.
A questão do que é “musical” e do que é “extramusical” permanece problemática, […], e permanece por resolver as questões sobre a medida em que as performances são consequência de regras fixas ou sua causa. A maioria dos estudos
contextuais da música vem enfocando a influência que o contexto tem sobre
a performance e a busca de influências extramusicais em sua prática. (SEEGER,
2015, p.173).
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Essa questão do que é “musical” e “extramusical” talvez não tenha, em certa medida, uma resolução clara, bem definida, por assim dizer, como muitas/os pesquisadoras/
es anseiam, pois há elementos que estão tão intrinsecamente ligados que não dá para
encontrar suas fronteiras. E estas se desfazem e se refazem constantemente. Talvez
saber onde ficam estes limites nem seja tão relevante. O mais importante nesse caso
é saber que o entendimento sobre as diversas músicas depende da compreensão dos
seus contextos e que estes também as constituem. E então definir de qual ponto será
iniciado o estudo. Aqui a apresentação musical vai partir do entendimento, dos lugares
e espaços que as mulheres ocupam dentro da Mazurca Pé Quente do Alto do Moura.
Mestras, músicas e musas: as mulheres na Mazurca Pé Quente
“Das ideias sobre a origem e a composição da música provém uma indicação importante do que seja a música, e de como ela se relaciona com outros aspectos da vida e
do cosmos de uma comunidade” (SEEGER, 2015, p.115). No contexto apresentado aqui,
ela não é o elemento, mas, sim, um dos que integra um todo maior, no qual a Mazurca
Pé Quente do Alto do Moura está inserida. A mazurca é composta por música, letra e
dança, mas as definições da mazurca estão baseadas também nos elementos simbólicos criados em torno dessas três coisas – música, letra e dança.
Apresentamos uma breve descrição da vida de duas mazurqueiras importantes para
a existência e continuidade da Pé Quente: Dona Hilda e Dona Miúda. Em seguida mostraremos como a figura da mulher aparece nas mazurcas (as loas), sendo tratada como
musa (ou não) e também utilizando o lugar do eu poético para se fazer ser/existir e resistir, manifestando quem ela é, cantando sobre sua cultura e até realizando denúncias.
As mestras mazurqueiras
Dona Hilda – Hildacir Maria dos Santos Felix (Fig. 3) – nasceu no dia 10 de setembro de 1959, na cidade de Caruaru. Residiu no bairro do Alto do Moura até os três anos
de idade, quando se mudou, com sua família, para a capital do estado, Recife. Aos dezessete anos, já casada, voltou a morar no Alto do Moura, lugar no qual vive até hoje.
Foi também depois de casada que passou a trabalhar como artesã, com a necessidade
de aumentar a renda familiar (DONA HILDA, 2018).
Dona Hilda, filha de artesão e neta de rezador e curador11, aprendeu a mazurcar
observando as pessoas mais velhas, que mazurcavam nas festas e demais atividades que
faziam com essa brincadeira. Embora tenha passado a infância e início da adolescência
em Recife, ela nunca perdeu contato com o Alto do Moura, pois sempre viajava para o
bairro em suas férias ou em outros momentos (DONA HILDA, 2018).
11
Rezadores/as são pessoas que benzem outras pessoas. Os curadores são homens capazes de curar coisas como as consequências
venenosas de mordidas de cobras, por exemplo. Isso é o que acreditam muitas das pessoas que estão inseridas nas culturas aqui apresentadas.
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Fig. 3: Dona Hilda no Teatro Nova Jerusalém para os ensaios da Paixão de Cristo de 2020. Fotografia enviada
por ela em 8/2/2020.
Ela conta que
Antigamente as mazurcas eram mais animadas, porque todo mundo brincava,
pois era a única diversão que tinha aqui. Hoje em dia está muito difícil, porque os
jovens não querem participar, e as pessoas que eram da mazurca mesmo já estão ficando de idade. Muitas delas não podem participar mais. Então o grupo de
mazurca está ficando cada vez mais resumido. […]. Hoje em dia, quando convidamos os jovens para participar, eles falam logo: “Essa dança da mazurca é coisa
de velho”. Então eles não querem mais participar assim da mazurca. Só quando
nós nos apresentamos em algum lugar a convite, as pessoas que estão nos assistindo, muitos turistas aqui no Alto do Moura, então as pessoas participam,
tornando o grupo, nesses respectivos momentos, grande, aquela roda enorme.
Do grupo mesmo é que está meio resumido por conta do que foi explicado anteriormente. (DONA HILDA, 2018).
Antigamente as pessoas brincavam de mazurca […]. Todas as festas que tinha,
aniversário, quando eu era criança, nos sítios, aqui [Alto do Moura], sempre
o pessoal ia mazurcar. Nós saíamos para os sítios a pé pra mazurcar. Agora a
mazurca está diferente, porque antigamente não era com uma roupa própria.
Normalmente as pessoas chegavam pra mazurcar. Hoje não. Hoje, quando chegamos em um lugar, as pessoas já sabem que chegamos pra mazurcar, porque
estamos uniformizados. Quando nós nos apresentamos, reservamos um tempo
para as pessoas tirarem fotos, para saberem que o grupo da mazurca convida as
pessoas para entrar na brincadeira. (DONA HILDA, 2018).
Dona Hilda começou a mazurcar oficialmente, “junto com os mais velhos”, como
explica, por volta dos doze, treze anos de idade. Antes de fazer parte dos grupos de
mazurca, de poder mazurcar, como diz, ela observava as mazurcas que chegavam no
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Alto do Moura, com as/os integrantes que passavam a noite inteira mazurcando e tomando vinho. E, ao observar e repetir os passos, a pisada, ela aprendeu a mazurcar.
“Chegava no grupo, assim nas casas que passava a noite. Antigamente passava a noite
toda mazurcando, tomando vinho. Então eu ficava observando e aprendi, porque é fácil” (DONA HILDA, 2018) (Fig. 4).
Fig. 4: Mazurca Pé Quente do Alto do Moura com turistas que se juntaram para brincar.
Fotografia: Marília Santos em 24/6/2018.
“A gente tá mazurcando, aí entra aquelas pessoas que não sabem, aí termina aprendendo, porque vai mazurcando com a gente, vai olhando o trupé, aí termina aprendendo a mazurcar” (DONA MIÚDA, 2018).
Diferentemente de boa parte das artesãs e dos artesãos que habitam ou têm alguma ligação direta com o Alto do Moura, Dona Hilda conta que não modela a mazurca
no barro – a não ser que a encomendem, mas não é uma de suas especialidades. Para
ela, o artesanato do barro e a mazurca são coisas totalmente diferentes. O primeiro é
trabalho, enquanto a segunda é festa, diversão. A mazurca tem um grande significado
em sua vida (DONA HILDA, 2018).
A mazurca pra mim significa muito, porque, se não fosse o meu problema de
saúde, eu acho que ficaria até morrer na mazurca. Porque quando eu penso em
sair, por questão de saúde, me bate uma tristeza, porque a mazurca é minha diversão. Eu também penso no grupo em si, porque muitos falam que se eu desistir
eles também desistirão. Então eu ainda vou me mantendo na mazurca por conta
disso. Eu só gostaria de sair um dia em que outro grupo ficasse no lugar desse
para não acabar. (DONA HILDA, 2018).
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Dona Hilda também faz parte da Associação dos Artesãos em Barro e Moradores
do Alto do Moura (ABMAM), a qual ela integra a diretoria, junto com outros membros.
Além disso, está envolvida com a paixão de Cristo, que é realizada anualmente, durante
a Semana Santa, no bairro, e do reisado, o qual ela também coordena junto com Cícero Artesão. Esse ano está como figurante da Paixão de Cristo da Nova Jerusalém (Fig.
3)12. Dona Hilda e Cícero Artesão são, entre artesãs e artesãos, umas das pessoas que
acabam assumindo mais as coordenações dos grupos, por conta do interesses que têm
em manter as manifestações vivas e também pela habilidade de liderança que possuem.
Para Dona Hilda, mazurcar é uma maneira de preservar a cultura que a maioria das
pessoas jovens já não tem muito interesse em realizar. Isso faz com que ela se preocupe
muito. Para a entrevistada, o ideal seria que pessoas mais jovens fossem substituindo as
mais velhas, que já não conseguem mazurcar, para dar continuidade à brincadeira. Com
esse intuito, os componentes procuram formas de ensinar a mazurca para as crianças e
incentivar pessoas mais jovens a participar da atividade. Dona Hilda nunca ensinou ou
aprendeu mazurca dentro dos padrões sistematizados de ensino/aprendizagem disseminados por instituições escolares. Para ela, há ensino todas as vezes que o grupo se
apresenta. No final das apresentações da Pé Quente costumam convidar as pessoas
para mazurcar junto com o grupo (Fig. 4). Para a entrevistada, este é o momento em
que as/os mazurqueiras/os ensinam. Embora já exista um grupo de crianças que está
mazurcando no Alto do Moura, de acordo com Dona Hilda, elas ainda são muito pequenas para mazurcar nas apresentações (DONA HILDA, 2018).
Quando a gente começa a mazurcar, então chegam aquelas crianças, mas são
muito pequenas ainda. Elas chegam, gostam de mazurcar. Então pensamos em
fazer um grupo com as crianças para dar continuidade, porque o grupo de hoje
já tem várias pessoas que não têm mais condição de continuar mazurcando. Eu
mesma já não tenho mais. Eu tenho duas hérnias de disco, um desvio. Eu não tenho condição de participar. Só que, quando nós somos convidados para mazurcar, eu vou somente para apresentar o grupo. Mas, quando chegamos lá, que
tem poucas pessoas no grupo, eu acabo tendo que mazurcar. Os mais antigos
são, por exemplo, Miúda, que também está ficando sem condição de mazurcar.
Tem Suzana, que também fala do esforço que tem que fazer para mazurcar. Nós
gostaríamos de chamar os jovens para dar continuidade para não acabar, porque, se eles não participarem..., vai acabar, se depender somente do grupo de
agora. (DONA HILDA, 2018).
Dona Hilda conta que não há pagamentos para as/os mazurqueiras/os. Às vezes
recebem algum cachê, que, pelo valor, é muito mais simbólico. Muitas vezes recebem
apenas um lanche pela apresentação. Dona Hilda mazurca por amor, porque sente prazer, se sente feliz e faz da mazurca algo que é parte de si mesma, do seu pertencimento. “Se tem festa nas igrejas, nós somos convidados, se vem jornalistas, é nós que
convidam. Então nós participamos porque gostamos mesmo. É uma questão de amor”
(DONA HILDA, 2018) (Fig. 5).
Dona Miúda – Josefa Maria Ferreira (Fig. 6) –, artesã, nasceu no município de Ca12
Seria apresentada no início de abril, vésperas da Páscoa, como é de costume. Porém foi adiada, no momento, para setembro, por conta
da pandemia causada pela Covid-19.
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ruaru – não sabe se na cidade ou na zona rural – em 12 de agosto de 1954. Desde que
nasceu vive no Alto do Moura. Diz que tem este apelido, Miúda, não sabe por qual motivo, mas acredita que é porque era muito pequenina quando nasceu. Sua relação com
a mazurca vem do berço, pois seu pai, Manoel Vitalino13, conhecido por Nego, era coquista de mazurca (DONA MIÚDA, 2018).
Fig. 5: Mazurca Pé Quente do Alto do Moura. Da esquerda para direita, Dona Hilda é a 5ª pessoa, e Dona Miúda a 10ª. O homem
do meio, com chapéu, é Cícero Artesão. Fotografia: Marília Santos em 24/6/2018.
Fig. 6: Dona Miúda. Em sua residência, no Alto do Moura, com uma peça de barro feita por ela. Fotografia: Marília Santos
em 6/2/2018.
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Dona Miúda explica que não há relação sanguínea entre os Vitalinos da sua família e da do Mestre Vitalino.
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Dona Miúda é uma das puxadoras da mazurca do Alto do Moura. No CD Mazurca
Pé Quente do Alto do Moura (2009), das treze faixas, ela puxa três, dividindo esse espaço com homens e com outras mulheres, como Dona Emídia, que faleceu em 2018,
e Suzana – mulheres fundamentais para a continuidade da Mazurca Pé Quente do Alto
do Moura e para a mazurca enquanto expressão musical, artística e cultural do Brasil,
explica a entrevistada (DONA MIÚDA, 2018) (Fig. 7).
Fig. 7: Dona Miúda puxando a mazurca, mas sem entrar no meio da roda (destacada com um círculo amarelo). Fotografia: Marília
Santos em 24/6/2018.
Ela explica que desde muito criança já era levada por seu pai para as mazurcas.
Então não foi difícil para ela aprender a mazurcar. Com dez anos já mazurcava “na roda
dos grandes”, enquanto seu pai puxava as mazurcas cantando as loas e tocando o maraco14. “Eu [Dona Miúda] fui crescendo com ele [o pai] tirando mazurca, e eu acompanhando, acompanhando. Foi devido ao meu pai que eu sempre brinquei. Com uns dez
anos eu já brincava mazurca.” Para ela, o trupé, ou pisada, que diz ser de origem indígena, representa a força da mazurca, a resistência daquelas pessoas que estão fazendo
parte da brincadeira (DONA MIÚDA, 2018).
A gente é a força do trupé. […]. Ele, meu Deus, eu não sei dizer [sobre a origem
do trupé], inídia, inígea, indígena. Eles diz que é essa [a origem do trupé]. […]. É a
força da gente. É de nós bater, com força, sabe? Nós tem aquela alegria, de nós
bater com força. […]. É pra o povo ver que nós está batendo bem com força. […].
Com alegria. (DONA MIÚDA, 2018).
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Espécie de ganzá utilizado durante a performance da mazurca. É o único instrumento musical utilizado pela Mazurca Pé Quente do Alto
do Moura, embora para a gravação do CD tenham sido colocados outros instrumentos, tocados por pessoas convidadas. O maraco, segundo as
pessoas entrevistadas, é de origem indígena, e antes era feio com cabaças. Atualmente é feito com um tipo de metal.
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Por conta de todas/os as/os integrantes serem católicas/os, consideram a mazurca uma prática religiosa. Quando eu pergunto se é uma prática religiosa, Dona Miúda
responde: “É. Todo mundo é católico. É!” (DONA MIÚDA, 2018).
Relata que, quando era criança, durante algumas mazurcas as pessoas jogavam
pimenta no chão. A intenção era fazer a pimenta subir junto com a poeira que surgia
da pisada. Desta maneira, os olhos e os narizes das/os mazurqueiras/os começavam a
arder, e a brincadeira acabava. Pois a mazurca era algo realizado durante a noite inteira
até o dia amanhecer e, muitas vezes, chegava um momento em que muitas/os estavam
cansadas/os da festa e queriam acabar com ela. A pimenta era a melhor forma. No dia
seguinte, conta a entrevistada, os narizes e os olhos ainda amanheciam ardendo (DONA
MIÚDA, 2018).
Aí nos tava mazurcando, num foi... eu participei muito pouco, né? [da mazurca
na época em que jogavam pimenta]. Agora dos antigos mesmo... Aí os outros
chegava, ou que não queria mazurcar, ou eles não deixava, não sei. Aí eles ia
e jogava pimenta. Aí quando no trupé, que eles tava batendo... é, no cimento mesmo, assim, ou na terra. Aí eles pisava, pronto! Aí subia aquele ardor. […].
Todo mundo corria. Não brincava mais, porque não aguentava. […]. No outro dia
manhecia com os nariz tudo... […]. E não fazia nada, acabava. […]. Porque quem
jogava não se apresentava, não. Se escondia. (DONA MIÚDA, 2018).
Sales (2015) diz que, para continuar a festa, as pessoas jogavam garapa – uma mistura de água com açúcar – no chão. Quando pergunto sobre a garapa, Dona Miúda enfatiza: “Pois eu acho que era bem fácil assim, porque eu, eu mesmo já foi bem mais pra
frente. Agora os antigos mesmo, eu acho que eles fazia essas coisas mesmo, porque eles
queria continuar, que num acabava, não, que era a noite toda” (DONA MIÚDA, 2018).
A mazurca, no século XX, celebrava os acontecimentos, as festas, “as pessoas diziam assim: vamos mazurcar? E então um grupo se juntava e começavam a pisada”
(DONA MIÚDA, 2018).
Nós brinca aqui no Alto do Moura. Agora quando as pessoa convida a gente...
Nós já foi pra Serra Talhada... […]. É, a Mazurca Pé Quente. É... nós brincava só
aqui mesmo [com a mazurca antiga, anterior a Pé Quente], porque era o que
tinha. Porque não tinha outras festas. Nós brincava do jeito que nós tava aqui.
Não tinha esse negócio de roupa especial. […]. Tinha uns que dizia assim: “Vamo
mazurcar?” E juntava assim muita gente. Tudo normal, com a roupa assim. […].
Só o São João que nós já fazia aquela roupinha assim […], que eram uns tamancos, que agora nós brinca com essas sandalhinha de artesanato. Mas eram uns
tamancos, que fazia bem muita zuada. […]. Pra fazer o trupé mesmo no chão.
(DONA MIÚDA, 2018).
Para Dona Miúda é uma alegria mazurcar, mostrar para o povo a cultura dela e das
demais pessoas que compõem esta expressão. Sua preocupação é a mesma que das/os
demais mazurqueiras/os: o medo de que um dia a mazurca deixe de existir, pois cada
vez o grupo fica menor por conta dos vários motivos que levam as/os integrantes, já
com idades avançadas, a sair. As pessoas mais jovens têm outros interesses. “Assim, eu
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acho uma alegria. Tô com aquela alegria de brincar e mostrar aos povo as cultura da
gente. Agora só que tá assim, poucas pessoas. Muita gente é de idade. Os jovens ainda
não se ligaram que está assim, porque tem outras coisas” (DONA MIÚDA, 2018).
Porém existe um grupo no Alto do Moura com pessoas que fazem um trabalho
com as crianças, e, dentre o que realizam, falam da cultura local, o que inclui a mazurca.
Dona Miúda conta que as crianças são incentivadas a ouvir o CD da Mazurca Pé Quente e a mazurcar junto. Porém somente ouvindo não é possível aprender a mazurcar, é
necessário observar a pisada, o trupé. Por isso ela foi convidada para mostrar para essas
crianças como se faz, pois é importante que haja a observação (DONA MIÚDA, 2018).
Sobre isso, a entrevistada coloca o seguinte:
Assim nós vamo brincar e cada qual que quer entrar, sabe? Pra aprender... ali
eles brinca com a gente. Tem umas crianças aí no clube, que tem uma moça que
ensina a eles, esse negócio de cultura, né? Que é o maracatu, essas coisas. Aí
nós tem o CD, que é... […]. Aí ela vem e brinca com eles. Até um dia ela disse que
era pro eu ir pra dar uma ensinadinha a eles no pé, sabe? Porque eles não sabe
ainda. Pra eu bater pra eles ver como é que bate, porque só o CD... [faz um gesto indicativo de que somente o CD não é suficiente para aprender a mazurcar].
(DONA MIÚDA, 2018).
Dona Miúda mazurca por amor, porque, além de se sentir feliz, é como se fosse
uma maneira de perpetuar a própria vida, a sua história individual através de uma história coletiva. “A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos
por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É
por meio dos significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa
experiência e àquilo que somos” (Kathyn WOODWARD, 2000, p. 17).
A Fundação de Cultura da cidade de Caruaru às vezes ajuda com algum recurso
financeiro, mas a mazurca não é meio de vida para nenhum/a integrante. O desejo em
mazurcar é o que as/os incentiva a continuar (DONA MIÚDA, 2018).
Mesmo abordando de forma bastante breve a vida de cada uma dessas mulheres,
percebe-se que não é possível desvinculá-las do que fazem/são. A Mazurca Pé Quente
do Alto do Moura não é, para elas, apenas uma atividade que realizam, é parte da vida
delas, é parte delas.
As loas (mazurcas)
Nas loas15, ou mazurcas, assim chamadas as letras das mazurcas, a mulher é cantada, mas nem sempre como uma musa. E ela também canta, de musa se faz mestra,
inclusive assumindo o eu poético de algumas loas.
As mulheres na Mazurca Pé Quente do Alto do Moura, além de mazurqueiras, também são coquitas, como apresentamos Dona Miúda, e coordenadoras, como é o caso
de Dona Hilda. Ao fazer parte da brincadeira, ocupando diversas funções, a mulher não
15
Loas são as letras das músicas. Não fica claro, entre as/os próprias/os integrantes, se a loa é apenas a letra ou a letra com a melodia.
A elas também dão o nome de mazurca.
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é apenas um mero objeto de inspiração, como é comum que seja em muitas canções,
ela é mestra, produtora e criadora, mantenedora da mazurca do Alto do Moura.
Apresentaremos aqui algumas letras de mazurcas que estão no CD Mazurca Pé
Quente do Alto do Moura (2009) (Fig. 8). O CD está dividido em 15 faixas, de modo que
algumas delas têm uma, duas ou até mesmo três loas diferentes. Apenas duas das músicas têm autorias conhecidas: “Somos do Alto do Moura”, faixa 6, de Lauro Ezequiel, e
“Anda a roda”, faixa 7, que é um improviso de Manoel Aboiador (MAZURCA PÉ QUENTE
DO ALTO DO MOURA, 2009). As demais músicas são de domínio público. Todavia, as/
os entrevistadas/os fazem questão de afirmar que elas foram compostas por pessoas da
região e que foram passadas de uma geração para a outra, de mazurca em mazurca, e
acabaram esquecendo quem as compôs (CÍCERO ARTESÃO, 2018; DONA HILDA, 2018;
DONA MIÚDA, 2018; MANOEL ANTÔNIO, 2018; SEU DÃO, 2018).
Fig. 8: Capa do CD Mazurca Pé Quente do Alto do Moura.
Não podemos deixar de comentar aqui sobre o domínio público dessas canções, o
que se mostra como traços do colonialismo, que se aproveita do conhecimento emergente criado coletivamente pelos povos colonizados. Para Hafstein (2013, p.22 e 25-26),
esse ideal romantizado de autoria (única e assinada) está diretamente relacionado com o
capitalismo. Em culturas de tradição oral, como a da mazurca do Alto do Moura, a criação é frequentemente realizada coletivamente ou individualmente, mas para o uso coletivo, sem a preocupação de afirmar uma autoria. A própria comunidade é a autora. E isso
não deveria ser compreendido como pertencendo a todos, como um domínio público16.
As músicas que compõem o CD, de acordo com Dona Hilda, foram selecionadas
por Lauro – que na época da gravação era o puxador, ou chamador, oficial da Pé Quente –, Dona Emídia e a jornalista Raquel Santana (DONA HILDA, 2020), que fez parte da
16
A preocupação em assinar a autoria das músicas é algo mais recente para as pessoas que compõem a mazurca no Alto do Moura, até
porque autoria também está relacionada a questões financeiras. Desta maneira, as pessoas não sabem ao certo quem são as/os autoras/es da
maioria das letras, mas afirmam que é de pessoas que viveram no Alto do Moura. Essa falta de um registro da autoria faz com que as músicas
sejam colocadas no domínio público. Porém, a nosso ver, o domínio público tira a autoria da comunidade.
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produção executiva do CD. Este teve na produção e direção musical Herbert Lucena,
no projeto gráfico Valeria Rey Soto e nas fotografias Raquel Santana e Gabriela Araújo
(MAZURCA PÉ QUENTE DO ALTO DO MOURA, 2009). É importante enfatizar que a gravação do CD foi dirigida por pessoas que não são da comunidade e que há intervenções
para que o disco tenha um formato mais comercial. Claro, tudo de acordo com as/os
integrantes da mazurca.
As músicas não têm exatamente indicação se é uma mulher ou um homem que
está falando através do eu poético. Entretanto, convivendo com a comunidade nos últimos anos, vivendo a menos de 10 quilômetros do bairro, sendo eu de uma família de
agricultoras/es rurais da região próxima, posso afirmar, sem excesso de arbitrariedade,
que as relações que são construídas, e consequentemente expostas, giram em torno de
costumes e culturas que enxergam ainda o gênero em sua forma binária e heterossexual. Não é que não haja conhecimento dos demais gêneros e sexualidades. Talvez não
haja aceitação ativa, lugar fora do silenciamento. Então, consideraremos aqui, para a
discussão das letras das mazurcas, o gênero binário e a sexualidade hétero.
É importante destacar que o eu poético faz muita diferença. Destacamos: no CD, a
maioria das loas com o eu poético “homem” é puxada por pessoas do sexo masculino,
enquanto as com o eu poético “mulher” são puxadas por pessoas do sexo feminino.
Sobre quem puxa cada mazurca, Dona Hilda diz o seguinte: “Mazurca não tem negócio
de escolher mulher, homem, não. Quando um tá cansado, aí pede pra o outro ajudar. Aí
agora é assim, né? Cícero vai, puxa a mazurca, aí quando ele já tá cansado ele já passa
pra Miúda. É assim. Num tem escolha assim. Nem tempo, não” (DONA HILDA, 2020).
Embora não haja essa preocupação com o eu poético na hora de puxar a mazurca,
ele mostra como as falas (de homens e mulheres) transcendem a eles/as mesmos/as,
deixando de pertencer a uma pessoa e passando a ser de uma cultura. Vejamos agora
algumas das mazurcas do CD.
“Eu já cheguei”
Eu já cheguei pra nós vadiar
Hoje nós vadeia até o sol raiar
Nós vadeia nós namora até o sol raiar
Minha mãe não quer que eu vá
Na casa do meu amor
Vou perguntar a mamãe
Pra que ela se casou
Cobra verde não me morda
Que eu não trouxe curador
Nos braços de quem eu amo
Eu morro mas não sinto dor
Sete e sete são quatorze
Três vezes sete é vinte e um
Tenho sete namorados
E só faço conta de um
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Adeus casa de farinha
Terreiro de amarração
Adeus menino bonito
Prenda do meu coração
Já te quis não quero mais
Já te dei o desengano
Para mi tu já morreu
Quarta-feira fez um ano
Tás beba língua danada
Tás danada pra errar
Vou te cortar um pedaço
Pra não me atrapalhar.
(MAZURCA PÉ QUENTE DO ALTO DO MOURA, 2009, faixa 9).
Essa mazurca é puxada por Suzana. Percebe-se nessa letra uma liberdade da mulher que sai para namorar, algo que ainda é bastante criticado na sociedade machista.
Mesmo que um homem puxe essa mazurca, o que ela diz, canta, vai atingir, de alguma
forma, quem mazurca e quem ouve a letra.
Em “Morena eu vou soltar balão”, puxada por Josué, identificamos um eu poético
possivelmente “masculino”.
Morena eu vou soltar balão, morena eu vou soltar balão
Ô laborar feito labora
Vamo ver se vai ou vai
Mas eu tenho raiva da morte
Que a morte matou meu pai
Ai se o homem mata e vai preso
A morte mata e não vai
Oi toda a vida ouvi dizer
Mas o erro já vem de atrás
Cana pitu, fulô da fruta
O gerente da usina mora no Tibelião
Desilusão, cabocla do Murici
Morena não sou daqui, sou da usina Ribeirão
Eu vou-me embora dessa terra
Brevemente eu voltarei
Ei três oitavas têm Natal
Mais trinta dias tem um mês
[…].
(MAZURCA PÉ QUENTE DO ALTO DO MOURA, 2009, faixa 14).
O eu poético, que diz não pertencer a essa terra, ameaça a morena, que parece
querer ir embora. Essa relação do homem que vai embora também é comumente percebida na realidade de pessoas da zona rural do Nordeste através de algo que acontece
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há quase um século: a migração para outros lugares, cidades, estados e regiões, por
conta de fatores climáticos e econômicos.
De acordo com Silva e Maria Menezes (2010, p.179), diversas pesquisas mostram
que essa situação em que homens da região Nordeste migram para outras regiões, sobretudo para o Sudeste, ainda é uma realidade. Embora o autor e a autora estejam focando uma situação de um município do estado da Paraíba, trazem questões que podem ser aplicadas dentro do contexto de muitas pessoas do interior de Pernambuco.
Também discutem sobre as diversas relações que existem entre os gêneros (homem e
mulher), apontando que, mesmo quando as mulheres migram junto, as relações ainda
são diferentes entre os dois gêneros (SILVA; MENEZES, 2010, p.288-290).
A migração também acaba levando ao fim de muitos relacionamentos. E, como
nem sempre as duas partes deixam de querer ao mesmo tempo, há músicas em que o
eu poético mostra-se com raiva da mulher que não o quer mais, como podemos ver em
“Eu vou tomar banho”.
Eu vou tomar banho, vou me banhar
Eu vou ver aquela ingrata que chorou pra se acabar
Meu automóvel que vem do Rio de Janeiro
Rodando muito ligeiro tora pó e bota pó
Menina nova tu me tira do engano
Moça com dezoito anos não sai mais do caritó.
(MAZURCA PÉ QUENTE DO ALTO DO MOURA, 2009, faixa 13).
Na mazurca puxada por Lauro, percebemos um estereótipo que foi criado em relação à mulher por conta de toda uma história construída com relações de poder. Primeiro o homem não aceita que a mulher não tenha esperado por ele para sempre. Depois o
eu poético fala de um automóvel, como se agora ele tivesse uma vida financeira melhor
e isso fosse o suficiente para ter (sim, como um objeto!) a mulher que deseja – comportamento consequente de uma história de opressão, em que a mulher, não podendo
trabalhar, dependia somente do homem, primeiro do pai, depois do marido –, sem considerar que essa mulher não está necessariamente interessada em sua situação financeira. Ela pode (querer) trabalhar e construir ela mesma a sua vida econômica, basta que
lhe sejam dadas oportunidades.
Ainda percebemos nesta canção a ameaça do caritó17, que é uma construção que
faz/obriga a mulher a acreditar que ela só será feliz e completa se estiver casada (com
um homem) e que, caso não consiga se casar (com um homem), estará desgraçada para
a vida toda. Falando de canção, Greimas e Courtés (2011, p.91) afirmam que músicas
como estas – com letra – são capazes de tornar o que foi cantado nelas algo que se repete social e culturalmente. Por isso também vemos como importantes e significativas
as músicas com o eu poético “feminino”, mesmo que na hora da execução não haja uma
17
É uma expressão utilizada para as pessoas que não se casam. Usada basicamente para/com mulheres. A sociedade não costuma se
importar com os homens que não se casam, a não ser quando eles se casam com outros homens ou com mais de uma pessoa.
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preocupação se será puxada por uma mulher ou por um homem. A mensagem, o que a
loa diz e de quem é a voz que ela representa são importantes.
Em “Anda a roda”, esse possível homem, que saiu para ganhar dinheiro com sua
cantoria, está voltando para uma mulher que ele aparentemente “quer bem”. Nessa loa
a mulher aparece muito mais como uma figura simbólica, que o eu poético utiliza para
contar sua jornada, do que propriamente como uma musa.
Anda a roda, Maria José, mas agora eu voltei de novo
E pra um salão familiar
Mas se for pra cantar eu canto
Pra o povo apreciar
Mas cantava, cantei, cantando,
E agora eu vou cantar
É, Maceió, Rio de Janeiro, fusível fogo ligeiro,
São Paulo, Minas Gerais, um sapo rela, um rela
Rico e a gangrena quer me dar
Mas me chamaram pra cantar
Mas pensava que eu não sabia
Mas que eu sou como um caboclo
É quatro é muito é cinco é pouco
Vejo a terra dá pipoco e vejo o mar se balançar
Você de lá e eu de cá e eu sou feito na poesia
E na vida material
Eu dizendo assim pra tu
Tu sois gente especiá
Que eu sou Mané Severino, que eu sou um caba tinindo
E canto pra me lascar
Quem tá dizendo sou eu
E os colega especiá
Mas dentro de Caruaru eu tô vestido e não tô nu
E inté a barra quebrar
Responde o coco animado
Que agora eu vou cantar
[…].
(MAZURCA PÉ QUENTE DO ALTO DO MOURA, 2009, faixa 7).
Nessa mazurca, puxada por Manoel Aboiador, a mulher também é utilizada como
uma espectadora para o homem “se (a)mostrar”, como falamos por aqui. Ele cria nela
uma plateia para ser admirado. A performance musical não é apenas a transmissão de
algo. Mas ela é capaz reorganizar e manipular experiências do seu meio (STOKES, 1997,
p.97). Quando o homem se coloca como agente, toda a sociedade – o que inclui todos
os sujeitos que a compõem, ou seja, a mulher também – consequentemente será levada a difundir comportamentos que afirmem isto e que vão se repetir. Por isso insistimos
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em enfatizar a importância do eu poético, mesmo que não haja preocupação em quem
vai puxar a música.
Vejamos agora “Morena eu sou de Rebeirão”:
Morena eu sou de Rebeirão
De Rebeirão morena eu sou (resposta)
Cabelo cadê cabeça
Cabeça cadê o laço
Morena cadê o abraço
Doente cadê a dor
Que eu vivo nesse mundo
Sem carinho e sem amor
Morena eu sou de Rebeirão
[…]
Quando a campa faz tim tim
Toco toco lançadeira
No açougue a molequeira
O preto tira capim
Mas as moça faz afinim
O velho tava caduco
Caiu do banco fez tufo
Cacete bateu no gato
O gato gritou miau
Sou cantor do Ceará
E hoje eu tô em Pernambuco
Morena eu sou de Rebeirão.
(MAZURCA PÉ QUENTE DO ALTO DO MOURA, 2009, faixa 1).
As artesãs e os artesãos do Alto do Moura são, em sua maioria, agricultoras/es,
provavelmente boa parte descendentes de indígenas. Por isso, é comum que a pele
de algumas das pessoas não seja “branca”. Morena, que aparece com um significado
aparentemente bom, de elogio, também acaba sendo utilizado para mulheres negras,
dentro de um contexto de um país racista, numa lógica preconceituosa em que ser negra/o é “feio”, é “errado”. A musa aqui não é uma pessoa idolatrada e inalcançável, mas
uma mulher comum, real. Mais uma vez a imagem da mulher é utilizada para o homem
se enaltecer. “Morena eu sou de Rebeirão” foi puxada por Josué para a gravação do CD.
Contudo, a mulher também sabe se utilizar desses mecanismos, tanto para dizer
o que sente, o que quer e o que não quer, como para fazer denúncias, mesmo que de
maneira singela, como acontece em “Lê, lê, lê limoeiro”, puxada por Miúda.
Lê, lê, lê, limoeiro, eu vou-me embora dessa terra
Ai como eu já disse que vou
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Ai que eu aqui não sou querida
Ai lá na minha terra eu sou
Ô carta vai e carta vem
E só se vê carta no ar
E todo mundo tá chegando
E só meu bem não quer chegar
Ô caboclo vermelho que vem da maré
Traz um saco nas costas, alpercata no pé
Eu não gosto do homem que dá na mulher
Quando dá de cacete é de ponta de pé
A minha mãe me chamou feia
Ai de bonita que ela é
Mas ela é o pé da rosa
E eu sou a rosa do pé
Mas menino que estás na porta
Ai me dá água pra eu beber
E não é sede não é nada
Mas é vontade de eu te ver
Mas essa noite eu não dormi
E nem meus olhos viram o sono
Ai somente imaginar
Que meu amor tem outro dono.
(MAZURCA PÉ QUENTE DO ALTO DO MOURA, 2009, faixa 2, grifo nosso).
Nesta mazurca gostaríamos de destacar algo que nos chamou bastante atenção,
que é quando o eu poético esclarece que não gosta de homem violento, que bate na
mulher. Provavelmente cantando uma realidade comum, descrevendo, inclusive, que
esse tipo de violência acontece com chutes e com a utilização de objetos, como pedaços de madeira, ferro etc., que normalmente são chamados de cacetes. Não necessariamente uma realidade vivida pelas componentes da atual mazurca do Alto do Moura,
mas a realidade de algumas mulheres da região. A música torna-se um lugar de fala para
a mulher que não tem certos espaços dentro da sociedade. E também um lugar em que,
através da arte, fala-se de coisas que normalmente a sociedade quer silenciar. E este
lugar modifica a performance musical, ao mesmo tempo em que esta é transformada
pelo meio. São processos que acontecem simultaneamente.
Ao se cantar e/ou ouvir coisas como estas, as pessoas, homens, mulheres e demais
gêneros, passam a ficar mais atentas a esse tipo de situação. E mulheres podem começar a entender que não devem ficar caladas ao apanhar, ao mesmo tempo, homens
podem perceber que já não podem maltratar mulheres sem serem descobertos.
Essas questões de violência têm sido cada vez mais temas de debates e abordagens investigativas dentro do campo da Música, com uma preocupação bem enfática da
Etnomusicologia, como aponta Mendonça (2016). As novas epistemologias, metodolo-
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gias e preocupações levaram as duas maiores associações de Etnomusicologia, a Society for Ethnomusicology (SEM) e o International Council for Traditional Music (ICTM), a se
encontrarem em 2015 para discutir as novas questões (MENDONÇA, 2016, p.717), que
também envolvem violência. Mas esses textos/discussões/eventos, que acabamos de
citar, assim como as discussões que presenciamos, não trazem algo enfático em relação à mulher, não falam muito, ou quase nada, das pesquisadoras (mulheres) que estão
fazendo trabalhos significativos e importantes dentro desse âmbito, como a Laila Rosa,
por exemplo, que, além de ter pesquisas voltadas para as mulheres, tem textos como
“Música y violência: narrativas de lo divino y feminicidio” (2018), que focam justamente
a violência que as mulheres sofrem. O silenciamento das mulheres, nosso, acontece em
todos os espaços e lugares, desde as mestras “esquecidas”, exploradas, até os lugares e
espaços de discussão acadêmica. Quando deixaremos de receber migalhas daquilo que
nos pertence18?
E essa violência em relação à mulher nem sempre é uma violência física. O próprio
silenciamento, negação de espaços, lugares, oportunidades, é uma violência (grave!).
A não aceitação do homem em relação à sua própria vida, de ser (ou não ser) quem
e o que ele quer, muitas vezes, ou quase sempre, transforma-se em uma violência contra outras pessoas, e frequentemente essas outras pessoas são mulheres, “suas” mulheres, esposas, filhas, como podemos observar no cotidiano. Nem precisamos de dados
para isto. Basta um olhar um pouco atento.
É comum, por exemplo, em regiões rurais dos interiores de Pernambuco, com problemas econômicos, que muitos homens, por não terem conquistado o que queriam,
ou por outros motivos, tenham reações agressivas dentro de casa, onde “mandam”, justamente por serem “o homem da casa”. Percebe-se nessas regiões o grande consumo
de bebidas alcoólicas também. Frequentemente encontramos casos de homens que
usam a desculpa da embriaguez como motivo das suas atitudes violentas, sejam elas
físicas ou psicológicas. As mulheres, por medo, ou por outros motivos, se fazem acreditar nessas mentiras (ou realmente acreditam) e acabam enxergando-as como verdades,
tornando-se também sujeitos da própria repressão e da opressão alheia, começando
muitas vezes dentro de casa, com suas próprias filhas. O grande efeito colateral do machismo é ter tornado as oprimidas arma para sua própria opressão.
Para Blacking (2000, p.5), o fazer musical está conectado com os sentimentos e
com as experiências que acontecem com as pessoas em sociedade. Então seus padrões
estão relacionados com celebrações inconscientes, com denúncias, com preconceitos
e com “consciências” socioculturais que são construídas pelos diversos grupos.
Para finalizar, não podemos deixar de apontar que, pelo menos no CD, quando a
música – mazurca ou loa – traz uma visão geral sobre a cultura da comunidade, ela é
entoada por homens. “Somos do Alto do Moura” (Fig. 9), puxada por Lauro, é praticamente o atual “hino” da Mazurca Pé Quente do Alto do Moura.
18
E assim os homens continuam à frente dos grandes feitos. Prova disso são as citações deste texto. Não tenho como ser coerente com
o que discuto sobre música sem citar pessoas como Seeger, Blacking e outros mais. E não gostaria de deixar de citá-los. Apenas desejo que nós
mulheres tenhamos oportunidades iguais para chegarmos nos espaços e lugares de acordo com o que somos, e não vivermos num silenciamento
que nos mata dia após dia, que nos impede de transcendermos enquanto pessoas, enquanto conhecimento, enquanto arte e tantas outras coisas.
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Somos do Alto do Moura
Da terra do artesão
Somos do Alto do Moura
Da terra do artesão
Ensinou a trabalhar
O gato maracajá
Figuras de lampião
Depois veio José Caboclo
Fazendo até procissão
Somos do Alto do Moura.
(MAZURCA PÉ QUENTE DO ALTO DO MOURA, 2009, faixa 6).
Fig. 9: Trecho de “Somos do Alto do Moura”. O diapasão encontra-se um pouco abaixo da afinação universal, 440 Hz.Transcrição:
Lucas Oliveira Moura de Arruda.
É de se esperar que Lauro tenha realizado a gravação dessa mazurca, visto que é
de sua autoria. Porém, mesmo após seu falecimento, durante as apresentações por nós
observadas, “Somos do Alto do Moura” sempre foi puxada por Cícero Artesão. Além
disso, como pode ser observado na letra, as figuras lembradas são somente masculinas.
Em outro trecho de “Morena eu vou soltar balão”, percebemos ainda a relação das
pessoas que fazem a Mazurca Pé Quente do Alto do Moura com o cristianismo.
Morena eu vou soltar balão, morena eu vou soltar balão
Ô laborar feito labora
Vamo ver se vai ou vai
Mas eu tenho raiva da morte
Que a morte matou meu pai
[…]
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E vou-me embora e tu fica
E esse teu ficar me mata
Ai para te levar não posso
Para te deixar faz falta
[…]
Oi vailei-me a Virgem Marinha
Esposa de São José
Ai moço cravado na cruz
Mas foi Jesus de Nazaré
Oi saiu a sopa no mel
Mas cuidado meu companheiro
É São Paulo, minhas Gerais
É Maceió, Rio de Janeiro.
(MAZURCA PÉ QUENTE DO ALTO DO MOURA, 2009, faixa 14).
Todas/os as/os integrantes da Mazurca Pé Quente do Alto do Moura são católicas(os) e realizam suas atividades ligadas a crenças e festejos dessa religião, inclusive
aquelas relacionadas com as Festas Juninas. A música “tende sempre a reconstruir os
elos de continuidade renovando a cada obra os laços que ligam o sujeito aos seus valores” (GREIMAS; COURTÉS, 2011, p.93). E foi justamente essa relação religiosa, cristã
apostólica romana, que permitiu que as/os moradoras/es reativassem as atividades da
Mazurca no Alto do Moura, pois o incentivo surgiu exatamente de uma figura religiosa,
um pároco. Na prática da religião católica no Alto do Moura, podemos perceber uma
presença significativa das mulheres, em maior quantidade e mais presente, inclusive, do
que a dos homens. As mesmas mulheres que estão envolvidas com a arte figurativa do
barro e com a mazurca. Compreendendo as relações em que elas estão envolvidas e
que também constroem, podemos de fato ter um entendimento amplo dessa expressão
musical que é a Mazurca Pé Quente do Alto do Moura.
Devemos mencionar que, das/os integrantes da Mazurca Pé Quente do Alto do
Moura, com quem tivemos contato, nem mulheres nem homens falaram de “machismos” e preferências masculinas na brincadeira. As colocações aqui feitas estão baseadas nesse olhar “de fora” também. Além do mais, sobre as letras das mazurcas, elas
transcendem o grupo de mazurca do Alto do Moura e as mulheres que o compõe.
As mulheres da Mazurca Pé Quente do Alto do Moura são musas, não somente elas
em si mesmas, mas nas ancestralidades de outras mulheres que transcendem o corpo,
o individual e o tempo; são performers, atuando de forma enfática, na performance da
mazurca, na coordenação, na hora de puxar as loas; são criadoras – e aqui não pensamos em criação apenas como o processo de compor uma música – quando fazem a
mazurca ser, garantindo a existência e manutenção da brincadeira; são mestras, com
todos seus saberes e ensinamentos, com suas grandezas. Grandezas uterinas.
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Algumas considerações
Os estudos da etnomusicologia, como mostram Carole Pegg, Helen Myers, Bohlman e Stokes (2019), têm buscado, cada vez mais, ampliar esse olhar e analisar a música
a partir de sua cultura. Então detalhes como o motivo do apelido de Dona Miúda, a relação dessas mulheres da mazurca com a arte figurativa do barro, aspectos da vida pessoal delas e tantas outras coisas se fazem extremamente importantes para a compreensão
do todo e/ou para o entendimento de parte deste. Esse tipo de abordagem feito por
nós pode deixar a desejar no aprofundamento de aspectos específicos – a mazurca, as
mestras, as musas, as letras –, mas permite uma visão geral e mais completa do todo.
Perde-se de um lado, contudo, ganha-se de um outro. É uma questão de escolhas, em
que sempre haverá perdas e ganhos.
Entendemos que a observação da performance e da representatividade da mulher
na Mazurca Pé Quente do Alto do Moura, assim como detalhes da vida de algumas das
mulheres que compõem o grupo e a breve análise das letras das loas que fazem parte do CD Mazurca Pé Quente do Alto do Moura, nos levariam a uma compreensão de
quais lugares e espaços a mulher ocupa nessa mazurca. Percebendo que não se trata
de um caminho de via única e que todas as partes se influenciam, apresentar a mazurca
também é uma tentativa de dessilenciar a mulher. Não somente a da mazurca, a artista.
Mas todas. O propósito desse texto foi fazer uma apresentação mais geral dessa mulher
e da Mazurca Pé Quente do Alto do Moura, sem análises mais detalhadas. Esperamos
que o presente artigo possa contribuir para ampliar um pouco mais os olhares para as
mazurqueiras do Alto do Moura e para que todas/os passemos a pensar cada vez mais
sobre esses lugares e espaços que são criados diariamente para e por nós mulheres,
sobretudo na e através da música19.
19
Uma nota de grito: nas pesquisas e publicações acadêmicas busca-se sempre prezar pela neutralidade. Há mesmo neutralidade nas
pesquisas nas áreas de Humanas e Ciências Sociais? Pergunto-me se há neutralidade em algum lugar/espaço. Essa tal neutralidade, se existe, só
faz sentido se aplicada onde sujeitos/as (acho que devemos começar a utilizar a palavra no “feminino” também) são tratadas/os com igualdade
de direitos e deveres, no papel (leis) e na prática. Quando isso não acontece, a chamada neutralidade vai apenas reforçar os domínios já existentes
e silenciar ainda mais as/os oprimidas/os. Como pesquisadora/etnomusicóloga, entendo que há procedimentos que devem ser seguidos para a
efetivação de uma boa pesquisa e uma boa publicação. E não pretendo sair por aí contra eles. Não! Porém, também entendo que, se mantivermos
a “neutralidade” (todas as regras, todos os padrões etc.), não mudaremos o sistema. Acredito que, nesse contexto machista em que vivemos,
publicações de trabalhos que venham descrever práticas de mulheres são válidas. E muito! Os homens foram inseridos na história, e, aqui mais
especificamente, na história da música, enquanto as mulheres foram silenciadas, esquecidas. Numa sociedade machista, em que a mulher ainda é
vista como menos capaz do que o homem, em que a maioria das bandas é formada por homens (não precisamos de dados para sabermos disso),
em que mulheres precisam desistir de aulas porque os professores dão em cima delas, perdem trabalho porque não quiseram transar com o músico/homem que estava organizando, não podemos JAMAIS ser neutras. Como mulher eu não quero e não vou manter a neutralidade. Que sejamos
mais feministas a cada dia e lembremos, todas/os, que o feminismo não é uma luta de mulheres contra homens, mas de todas as pessoas contra
o machismo. Machismo que mata, de maneira metafórica e física, todos os dias, a curto e a longo prazo. E silenciar é mais uma forma de matar.
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10.5965/2525530405022020e0005
Três gravações de campo na
cidade do Rio de Janeiro
Alexandre Sperandéo Fenerich1
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
alexandre.fenerich@unirio.br
Submetido em 03/04/2020
Aprovado em 18/07/2020
ORFEU, v.5, n.2, 2020
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Três gravações de campo na cidade do Rio de Janeiro
Resumo
O artigo apresenta três caminhadas
para escuta e captação fotográfica e fonográfica pelo autor por uma região da cidade
do Rio de Janeiro, além de uma análise poética do material obtido. A fim de embasar
a análise, faz uma revisão teórica que busca
entrelaçar conceitos ligados ao deslocamento urbano e à escuta. A partir da tese de
Steven Feld (2015), que parte da premissa
de que o som é objeto de conhecimento de
tecidos sociais, o sonoro pode se manifestar como foco da investigação dos lugares
visitados que, pelas suas características urbanas, podem ser entendidos, no contexto
da cidade contemporânea, como espaços
negativos (SANTOS, 1994) ou espaços opacos (CARERI, 2017) – conceitos que terão
repercussões nas três narrativas descritivo-analíticas. O material obtido procura inter-relacionar os registros textuais e fotográficos com o sonoro, a fim de contextualizar
sua escuta. Apesar de uma das incursões
resultar em uma instalação sonora, o material sonoro e visual obtido nas incursões
é anterior a uma realização artística no
formato obra, sendo que tanto sua escuta
quanto as análises que seguem neste texto
constituem parte de um processo composicional em curso ou, ao menos, uma metodologia para criação sonoro-musical a
partir de gravações de campo.
Abstract
This paper presents three walks
whose intention were either the listening
of a region of Rio de Janeiro as well as its
photographic and phonographic takings,
therefore making a poetic analysis of the
material. In order to support the analysis,
a bibliographic revision relating concepts
from urban mobility and listening is made.
Taking the thesis of Steven Feld (2015) as
starting point, in which the sound is understood as an object for the social tissue’s
knowledge, the sonority of the visited
places is taken as focus for the discussion.
Those places can be understood, by their
urban characteristics in the context of the
contemporary city, as negative spaces (Milton Santos, 1994) or opaque spaces (Francesco Careri, 2017) – and those concepts
will have significant repercussions on the
incursions´s narratives. The obtained material intends to interrelate the textual and
photographic registers with the sounded
register in order to contextualize its listening. In spite of one of the incursions has
resulted on a sound installation, the material is previous any artistic realization in
a work format and either its analysis as its
listening are part of a current compositional process or, at least, of a sound/musical creation from field recordings.
Keywords: Field recording; listenPalavras-chave: Gravação de campo; ing; urban walks; negative spaces; opaque
escuta; caminhadas urbanas; espaço ne- spaces.
gativo; espaço opaco.
Compositor e sound designer. Doutor em Musicologia pela USP. Professor adjunto do Instituto Villa-Lobos e do Programa de Pós-Graduação
em Música da UNIRIO. Atualmente é professor visitante na Universität der Kunst, Berlim, com bolsa Capes-Humboldt. Trabalha com composição
musical sobre mídias digitais, com foco em “live eletronics”, espacialização aural e performances audiovisuais ao vivo. Participou de projetos internacionais como compositor e “sound designer” na Alemanha, Portugal e Brasil, além de diversos festivais de música e artes digitais.
https://orcid.org/0000-0003-2868-2499
1
Alexandre Sperandéo Fenerich
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Três gravações de campo na cidade do Rio de Janeiro
1. Introdução
Este artigo trata da investigação estética de uma região da cidade do Rio de Janeiro através de visitas a pé para captações sonoras com microfones binaurais2. O texto
convoca um momento do processo criativo anterior à realização de um trabalho artístico. Embora tenha gerado uma obra em específico – a instalação Jebebiracica, da qual
trataremos adiante –, os resultados materiais são extratos sonoros sem edições publicados em um site, aos quais nos reportaremos oportunamente, além de ensaios textuais
que se prestam a criar no ouvinte um contexto, como o que ora apresentamos. Nossa
proposta se coloca, desse modo, como reflexão acerca do material já coletado, mas
também parte do processo de criação de trabalhos artísticos ainda em desenvolvimento
ou na qualidade de porvir.
Como habitante recente da região abordada, a Praça da Bandeira – área que permeia todo o antigo Aterro do Mangue, que compreende do Centro à Zona Norte da
cidade –, fiz três “expedições” para escuta e captações fotográficas e fonográficas no
seu entorno, em 27 de abril e 5 de setembro de 2018 e entre janeiro e março de 2019.
Nestas incursões, a fim de realizar um itinerário possível de ser alcançado a pé, procurei coletar elementos visuais e sonoros que guiassem minha memória e preenchessem
minha imaginação com personagens e trajetórias. Neste exercício a-turístico, eu, que
não sou nascido no Rio de Janeiro, desejei traçar uma experiência que não se baseasse
no exotismo, mas no próprio lugar onde vivo, ao qual ainda não pertenço, mas que é,
entretanto, a minha vizinhança.
Nosso texto pretende, assim, dar conta destas incursões em três “narrativas de
viagem”. Tentei resgatar os personagens e elementos das redondezas a partir de pistas
visuais e sonoras deixadas pela paisagem e pelos passantes a despeito do implacável
silenciamento e desaparecimento de populações e paisagens vividos há séculos pela
cidade. Esses processos ressoam em profundas mudanças sociais e políticas, além do
aspecto atual dos muitos rios que compõem a região. Trata-se sobretudo de uma investigação sônica, mas tanto os elementos fotográficos quanto os textuais são essenciais
para a formulação de um contexto para a imaginação do ouvinte. Neste artigo, portanto, além de discussões sobre o método, serão apresentadas três narrativas que, junto
com as imagens visuais, serão complementares à escuta do material em áudio.
Com respeito a este material, a opção pelo uso de microfones binaurais foi feita
por duas razões. A primeira é que estes são dispositivos discretos que, disfarçados de
fones de ouvido, não tornam evidente o ato da gravação, e, desta forma, não criam nos
passantes, que não se sabem gravados, um estranhamento que impediria a tentativa de
captar uma “espontânea” sonoridade das ruas. Um outro aspecto é que a representação
feita por tais microfones dá a ilusão da minha própria escuta – ou de uma escuta em
primeira pessoa –, pois estabelece uma estereofonia baseada nas dimensões da minha cabeça, visto estarem instalados em minhas orelhas. Assim, todos os movimentos
2
Não é objeto deste trabalho analisar nem as características técnicas da captação binaural nem seus modelos psicoacústicos. Para uma
breve introdução, ver La Burthe (2017). Para mais detalhes concernentes a aspectos psicoacústicos, ver Gilkey e Anderson (2014).
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corporais – de modo algum planejados durante minhas incursões – foram registrados
pelas gravações, e a minha presença física realizada pelos passos, respiração, diálogos e
erros de gravação foi preservada pelo áudio.
Sob a perspectiva das poéticas ligadas ao som, a caminhada como meio para a
criação sonora tem sido abordada pela música eletroacústica praticamente desde sua
origem. O primeiro trabalho de grande fôlego da música concreta, a Symphonie pour
un Homme Seul, de 1950, é uma investigação híbrida cênico-musical (FENERICH, 2012)
sobre “o homem e seu grito solitário” na multidão (SCHAEFFER, 1952), sendo que nela se
escutam tanto o sons dos passos do personagem-título quanto buzinas e sons vertiginosos que remetem a uma deambulação urbana. Por outro lado, os trabalhos do compositor francês Luc Ferrari Presque Rien nº 1 e nº 2 (1970 e 1977 – CAUX, 2002), marcos
na ruptura com os preceitos iniciais da música concreta que a aproximam de uma ideia
de música pura (KIM-COHEN, 2009), constituem modelos para a presente investigação.
A segunda peça, que nos interessa particularmente, demonstra como vestígios do próprio autor aparecem tanto ao andar quanto em comentários sobre os sons captados,
de modo que a cena apresentada faz parte da própria realização da peça. Com isso, a
peça traz para a escuta a imagem da presença do autor-personagem no espaço em que
foi feita a captação, além da apreensão de que a investigação deste espaço se realizou
tanto pela escuta atenta dos seus sons quanto por uma deambulação. Além disso, ao
apresentar registros sonoros cuja edição visa “entrar na própria sociedade” (CAUX; FERRARI, 1992), Ferrari busca “abrir o domínio da música experimental para não especialistas” (DROTT, 2009).
A prática de realizar caminhadas silenciosas a fim de escutar o ambiente foi sistematizada e denominada soundwalks pela compositora alemã Hildegard Westerkamp,
que desde os anos setenta propõe passeios coletivos em percursos predeterminados
por ela, em geral em locais silenciosos e calmos, com o objetivo de “incrementar uma
consciência geral sobre o ambiente acústico” (WESTERKAMP, 2006). Por incluir o espectador nos passeios, ela enfatiza sua participação no espaço a ser escutado, já que
este passa a compô-lo pela sua própria presença.
Signatários das poéticas artísticas dos anos sessenta, as obras de Ferrari e Westerkamp são, no nosso entendimento, balizas importantes para se compreender as
produções contemporâneas. Em seus trabalhos percebe-se um movimento de escape
das questões “intrinsecamente musicais” em que elementos estritamente formais são a
base da realização e da comunicação musical. Parafraseando Foster (2014, p.173), estes
trabalhos ampliam o enquadramento musical para o campo da cultura, pois abrem a
fruição estética para além da obra musical circunscrita por “valores musicais”, pensada
como a articulação de motivos ou formas abstratas. As abordagens de Ferrari ampliam
a fruição para a apreensão de uma cena – o que faz também o trabalho de Schaeffer e
Henry supracitado, embora não explicitamente. As abordagens de Westerkamp ampliam
literalmente o espaço da fruição musical, antes restrito a salas de concerto. Finalmente,
Ferrari e Westerkamp desviam o escopo musical confinado a um campo exclusivamente
sonoro para preocupações sociais ou ecológicas.
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Explorações seminais que congregam a caminhada e a escuta, estes trabalhos
inauguram o gênero soundwalk, realizado por artistas/compositoras, como a alemã
Christina Kubisc3 e a canadense Janet Cardiff4. Entretanto, o escopo desta geração inicial ligada às práticas artísticas dos anos sessenta, demasiado amplo, visava colocar as
questões básicas relativas à ruptura com a realização e fruição musical anterior: sua
própria forma é seu conteúdo. Mas, uma vez instaurado o gênero, investigações mais
específicas de determinados lugares, físicos ou sociais, passam a ser realizadas: o foco
se desloca da forma em si para o conteúdo, uma vez que a forma já é apreendida por
artistas e pelo público. A obra passa a ser dispositivo de investigação da relação entre o
músico ou artista – muitas vezes confundido com um etnógrafo – e o lugar que visita
ou do qual capta os sons.
Este papel do artista como etnógrafo é analisado por Foster, que aponta algumas
dificuldades intrínsecas a certas poéticas contemporâneas que buscam no outro etnográfico um modelo ou lugar de questionamento das instituições e da moral burguesa
(FOSTER, 2014, p.161). Para o autor, muitas vezes essa “alterização do eu” através da
comparação de seus desejos com esse outro é mera “autorrestauração narcisista” (FOSTER, 2014, p.168). No entanto, tal olhar no espelho só faz sentido quando há um outro a
quem comparar. Mas, quando as investigações são realizadas na própria cidade em que
se vive, por exemplo, não há propriamente alteridade, e a descoberta se dá no aprofundamento lento e contínuo do cotidiano. Neste processo, nos interessa observar o intervalo entre o sujeito que visita e os lugares representados, e sua escuta estará impressa
pelos trajetos e pela seleção dada pela mirada do microfone e da edição.
Além disso, a disseminação desta prática se acentua pela maior acessibilidade a gravadores portáteis e a sistemas de captação binaural, o que permitiu que músicos e artistas
de todo o mundo pudessem realizá-la. Neste sentido, cabe perguntar se haveria diferença
entre as estratégias de soundwalk feitas por artistas ao norte ou ao sul globais quanto à
forma de fazê-lo ou mesmo sobre os lugares representados. Suas intenções coincidiriam?
A artista mexicana Amanda Gutierrez aponta uma resposta: para ela, o personagem do flâneur só pode ser um homem branco e europeu caminhando na Europa, visto
que uma mulher latino-americana no México (como é o seu caso) dificilmente teria a
disponibilidade ou a segurança para fazê-lo, e isso implica uma postura corporal na
cidade completamente diferente entre um e outro sujeitos, que decorre em diversas representações do espaço (GUTIERREZ, 2018, p.324). Uma vez que os modelos instaurados pelo gênero soundwalk (mediado ou não por tecnologias de gravação) foram feitos
pelos artistas acima enumerados, todos europeus, esperamos esmiuçar um modo de
autorrepresentação que deles diverge, propondo também uma reflexão crítica acerca
desta provável diferença.
Pois as experiências que apresentarei aqui não são meras apresentações das caminhadas em si, mas uma investigação de um espaço social através da caminhada e da
gravação (tal é o método do trabalho). Resulta em uma representação parcial dada pela
3
Em Electrical Walks, por exemplo. Disponível em: http://www.christinakubisch.de/en/works/electrical_walks.
4
A canadense possui uma série de trabalhos relativos ao tema. Cf. The Walk Book (2005).
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presença nunca naturalizada nos espaços visitados, visto que crio um intervalo social
com os lugares que visito. Assim, o material é posteriormente escutado e editado na
direção do sentido que a experiência deu quando confrontada com as ideias e teorias
prévias. Além disso, os áudios apresentados aqui – exceto no caso da terceira narrativa
– não são ainda trabalhos sonoros, mas material em estado semioriginal, no qual apenas edição prévia foi feita. Serão talvez trabalhos no futuro, mas isto não é importante,
já que gostaria de discutir neste artigo tanto a incursão em uma mesma região – e portanto aspectos deste lugar dados por sucessivas escutas – quanto o modo de fazê-la.
O texto que segue terá três momentos distintos. O próximo trecho tratará da caminhada como método para a criação musical. Constitui, portanto, uma base teórica
para entendê-la. O momento seguinte refere-se a quatro narrativas relativas às três visitas. Finalmente, como conclusão, aproximarei as narrativas com as reflexões teóricas
já apresentadas.
2. A caminhada e a escuta como métodos para a criação musical
A caminhada, em oposição a outros modos de deslocamento, caracteriza-se
como experiência contínua do espaço que pressupõe um transcorrer ao mesmo tempo
lento e intensivo. O geógrafo brasileiro Milton Santos debruça-se sobre as qualidades
dos homens lentos, como denomina os sujeitos que detêm este modo de se situar nos
espaços urbanos, a caminhada. Para Santos, estes não podem esquadrinhar a cidade
na velocidade vertiginosa dos meios de transporte contemporâneos ou das trocas de
informações e capitais que as tecnologias digitais proporcionam. Em oposição aos homens lentos, “envoltos nas teias de uma racionalidade invasora de todos os arcanos da
vida” (SANTOS, 1997, p.85), se movimentam os que podem transcorrê-la no andamento
exigido pela economia globalizada do mundo contemporâneo. Para Santos, os homens
velozes “acabam por ver pouco da Cidade e do Mundo”, sendo que “sua comunhão com
as imagens, frequentemente prefabricadas, é sua perdição” (SANTOS, 1997, p.85). Já os
homens lentos, por não poderem acompanhar a velocidade das imagens oferecidas
pela mídia ou pelo capital, “acabam descobrindo fabulações” (SANTOS, 1997, p.85) nos
seus percursos cotidianos povoados de encontros com o novo.
Tomada como mote para a criação sonora ou musical, a caminhada coloca o corpo em outra condição em comparação ao modelo tradicional das práticas e escutas
musicais e sonoras. Põe os sentidos em alerta para o espaço exterior, sendo diretamente implicados no lugar físico e social em que se inserem: a escuta é voltada para fora, e
não para os próprios sons daquele que os produz. Situa-se no tecido da vida social. Os
ouvintes de trabalhos que exploram gravações de percursos são levados a moverem-se
com a escuta apresentada, tendo seu próprio corpo implicado na ação de escutar. Este
processo de identificação é similar ao que se dá, por exemplo, na escuta acusmática
de sons instrumentais, na qual, sem ver o gesto que gerou os sons, os imaginamos por
“anos de treinamento audiovisual (inconsciente)” (SMALLEY, 1999, p.77) – decorrente de
nossa experiência de escuta normal da realização musical.
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Para a apreensão de fenômenos sociais, o som é uma forma privilegiada de conhecimento. Feld (2015, p. 14) afirma que sua fisicalidade é “tão instantânea e forçosamente presente à experiência quanto a quem experiencia”. Para o etnomusicólogo, a
escuta convoca um “saber em ação”, para além de especulações metafísicas sobre uma
“verdade em abstrato” (FELD, 2015, p. 14). Ela congrega o contexto da produção sonora
com uma coparticipação do observador-ouvinte no ambiente, implicando-o no fenômeno natural ou social, já que partilha o espaço com os emissores do som: “a emissão
sonora e a escuta alimentam um ao outro”5 (FELD, 2015, p.14, tradução nossa). Para o
filósofo Jean-Luc Nancy (2007), por sua vez, o sonoro, em oposição ao visual, que para
ele possui maior isomorfismo com o conceito, “supera a forma” ao “não dissolvê-la, mas
ampliá-la, fornecê-la uma amplitude, uma densidade e uma vibração ou uma ondulação cujo contorno é apenas aproximado” (NANCY, 2007, p. 2). O som traria, portanto,
corporeidade e um senso de copertencimento ao contexto de sua produção. A escuta
é, assim, como a caminhada, uma prática intensiva e contínua.
A pesquisa sonora por via de caminhadas urbanas busca apreender o movimento
lento como um processo e estado físico oposto à onipresença da velocidade, valor e
modo de vida privilegiado nas cidades contemporâneas. Privilegia-se a lentidão dos pés
em oposição à troca instantânea de capitais e informação na era pós-digital. A cidade
contemporânea é planejada e remodelada não para caminhantes, mas para ser percorrida por carros, ônibus, trens ou metrô. Nesta cidade, caminhar é perder o tempo que
poderia ser gasto produzindo ou consumindo – o consumo como corolário do lazer:
“velocidade exacerbada que não tem nem busca nem sentido” e que “serve à competitividade desabrida, coisa que ninguém sabe para o que realmente serve, de um ponto de
vista moral ou social” (SANTOS, 2001, p.2). Nesta concepção de cidade não se caminha,
pois “caminhar significa enfrentar muitos medos: medo da cidade, medo do espaço
público, medo de ultrapassar barreiras muitas vezes inexistentes e medo dos outros
cidadãos, quase sempre percebidos como inimigos potenciais” (CARERI, 2013, p.170).
Vencer os medos; caminhar é recuperar a velocidade do percurso contínuo (SOLNIT, 2016), sendo atividade intensa nos detalhes oferecidos aos sentidos, se compararmos com a monotonia da viagem rodoviária ou metroviária. Caminhar é uma estratégia
de criação artística que resgata uma experiência plana da cidade, para além da contemplação distanciada de uma urbe-cartão postal, como por exemplo em certo projeto do
Rio de Janeiro, emblemático nas obras de pura espetacularização do Porto Maravilha e
da remodelação da Praça Mauá. É uma prática de errância a qual “se afirma como possibilidade de experiência urbana, uma possibilidade de crítica, resistência ou insurgência
contra a ideia de empobrecimento, perda ou destruição da experiência” (BERENSTEIN,
2014, p.27). Experiência da cidade que se perde na cidade racionalizada pelas lógicas do
turismo, do consumo ou da técnica. Propõe-se assim um confronto com uma outra cidade, diferente daquela de nossos percursos habituais, a fim de extenuar a experiência,
levando-a a um limite possível – o qual é, aliás, geográfico, visto que se impõe na experimentação dos percursos num território como o Rio de Janeiro: de fato, os medos aqui
5
“Reflexive feedback of sounding and listening”
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são oriundos muitas vezes de ameaças reais, pois há zonas limítrofes que não podem
ser ultrapassadas sem permissão ou guia, sob risco da própria vida.
A escolha geral dos percursos é, assim, essencial para a pesquisa. Onde nos resta,
então, caminhar? Nem os espaços formatados pelo capital nem os que oferecem perigo fatal: ambos são bem demarcados em sua racionalidade. Buscaremos, por isso, para
usar as palavras do geógrafo Milton Santos, espaços opacos, ou seja, opostos ao que
ele também chama de “áreas luminosas”, onde há “a naturalidade do objeto técnico –
uma mecânica repetitiva, um sistema de gestos sem surpresa” (SANTOS, 1994, p.83).
Os espaços opacos, para o geógrafo, são “espaços do aproximativo”, “espaços inorgânicos, abertos”, “espaços da lentidão, e não da vertigem”, em oposição aos “espaços
da exatidão, racionalizados e racionalizadores” (SANTOS, 1994, p.83). Em outro autor,
o arquiteto italiano Francesco Careri, encontramos ecos dos conceitos de Santos, que
nos provocam:
Áreas esquecidas que formam o negativo da cidade contemporânea […]. Lugares
difíceis de serem compreendidos e, consequentemente, de serem projetados
[…] pelo fato de não possuírem uma localização presente, de não conhecerem a
linguagem do contemporâneo. (CARERI, 2017, p.15).
Nesse sentido, estes são os espaços onde transitam ou moram os “homens lentos”,
que percorrem e esquadrinham a cidade com dificuldade (SANTOS, 1994, p.84), para
quem as imagens produzidas pelo capitalismo contemporâneo “são miragens” (SANTOS, 1994, p.84). Circulam pela urbe muitas vezes a pé ou gastam longos períodos no
precário sistema de transporte público. São os trabalhadores ou habitantes das ruas:
garis, vendedores ambulantes, prostitutas, ou ainda os moradores de rua ou os loucos. Coabitam a cidade em outra temporalidade social e técnica (SANTOS, 2001, p.2) e
possuem uma vivência do espaço urbano distinta da minha, que o percorro de modo
sedentário e veloz. Colocar-me na mesma condição de escuta de uma cidade cruzada
por diversos obstáculos físicos e temporalidades foi a metodologia adotada nas três caminhadas de escuta. Nelas, o gesto contínuo da experiência da caminhada se aproxima
de uma experiência da escuta.
As três “expedições” foram realizadas na baía Jebebiracica, antigo nome tupinambá para a enorme área onde atualmente se situa a Zona Norte do Rio de Janeiro e que
compreende os rios Maracanã (que é também um nome tupinambá), Trapicheiros, Joana e Comprido. Esta área foi um mangue com muitos outros pequenos rios, mas a
paisagem original foi completamente transformada no século XIX, quando todos os rios
foram canalizados e algumas avenidas foram criadas. Passarei a narrar a seguir cada
uma das três expedições.
3. 27 de abril de 2018: Praça da Bandeira, rua Ceará e Quinta da Boa
Vista
Parti da Praça da Bandeira – um bairro entre a Tijuca, uma região mais rica, e áreas
mais arcaicas da cidade, como o antigo bairro imperial, São Cristóvão, e o Morro da Man-
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gueira. Cruzei a rampa de pedestres sobre a Radial Oeste, uma avenida contemporânea
quase exclusivamente dedicada a carros e ônibus, e entrei na rua Ceará. Daí caminhei
até a avenida Pedro II e virei à esquerda, chegando aos arredores da Quinta da Boa Vista.
Este é um parque que compreende o zoológico e o antigo palácio imperial, transformado em museu (Museu Nacional da Quinta da Boa Vista) e em alguns departamentos da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em 8 de setembro de 2018, o complexo
foi totalmente destruído por um enorme e inexplicável incêndio. Esta primeira narrativa
trata do itinerário já descrito, e também se refere constantemente a um áudio postado no link https://soundcloud.com/user-472241268/rio-mangue-soundwalking, o qual
sugiro que o leitor escute à medida em que eu for mencionando pontos específicos.
Fig. 1: Praça da Bandeira. Fotografia de Augusto Malta (1906). Fonte: FBN (Fundação Biblioteca Nacional, on-line).
Fig. 2: Praça da Bandeira. Fotografia do autor tirada da rampa de pedestres da Praça da Bandeira, Rio de Janeiro (2018).
A rua Ceará foi meu principal itinerário. É talvez o trecho socialmente mais frágil da
região e já foi uma zona de prostituição, hoje em decadência. Entretanto meu percurso
foi muito mais extenso: caminhei pelo antigo aterro do enorme mangue (São Diego),
um tipo de vegetação que, até o início do século XIX, podia ser encontrado da praia de
Santa Luzia até a do Caju, que não existem mais.
Fig. 3: Mangues de São Diogo. Desenho de Thomas Ender, sem data (século XIX). Fonte: FBN (on-line).
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Encontrei aí grandes terrenos vazios de um sistema ferroviário desativado, avenidas intransponíveis a pedestres, viadutos sobre regiões inteiras e canais de concreto
que guardam águas mortas que antes foram rios (alguns com papel central no desenvolvimento da cidade, como o Maracanã) e que agora são esgoto a céu aberto que desemboca na Baía de Guanabara. Também me deparei com lojinhas precárias e residências improvisadas entre pontes ferroviárias de ferro fundido, que remontam ao início
do século XX6. Os primeiros números da rua Ceará são uma área esquecida da cidade,
como que fora do tempo.
Fig. 4 a 7: Cruzamento entre a Radial Oeste e a rua Ceará. Fonte: Fotografias do autor (2018).
Andando por ali, novos sons e personagens apareceram. Tão logo me esqueci do
trânsito pesado da Radial Oeste, escutei um pregão gravado do vendedor de ovos, persistente, anunciado por um megafone em uma Kombi. “Quarenta ovos, dez reais! O
patrão ficou maluco!”, dizia a gravação7. Mais tarde, em 10’18” (marca 4 do link acima),
um motor de motocicleta com muito volume é escutado. Aquela área é povoada por
oficinas em meio a casas muito pobres; por ali lembro-me de uma velha senhora com
6
Um trem passa aí sobre minha cabeça e pode ser escutado em 7’24”, marca 1 no link já mencionado, em uma passagem saturada.
7
O pregão pode ser escutado em 9’14” no link acima.
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seu neto passando por mim. Ela conduzia silenciosamente o garoto para a escola. Sua
face era sem expressão, autômata.
À medida que me aproximava do centro da zona de prostituição, fui chamado por
um velho senhor negro muito elegante. “Como é que é, fotógrafo?”, disse-me. Conversamos um pouco. Ele tirou minha atenção de uma briga entre dois moradores de rua,
levando-me também a evitar a rua de prostituição.
Fig. 8 e 9: Vendedor de ovos. Imagem 9: Briga de moradores de rua entre as oficinas de motocicletas e hotéis.
Fonte: Fotografias do autor (2018).
Embora soubesse que se encontrava por ali, não me deparei com a zona de meretrício das proximidades da rua Ceará, a Vila Mimosa. Mas, tão logo a abandonei, encontrei duas prostitutas, agora em uma avenida com tráfego (a Pedro II). Elas estavam
trabalhando, e minha presença foi notada. Silenciosamente, fui intimidado pelos seus
olhares. Temendo qualquer animosidade, tomei distância. A hostilidade derivava de uma
desconfiança, pois ali eu era um caminhante inesperado. Eu, um homem branco, era um
cliente em potencial e deveria, talvez, estar de carro.
3.1 A região do mangue
Nas primeiras três décadas do século passado, a região do mangue foi uma zona
de prostituição, mas também uma área cosmopolita de coabitação. Antigos escravos,
imigrantes italianos e poloneses – todos muito pobres – escolheram viver nestes arredores do porto, encontrando trabalho e moradias baratas.
Parte da área do mangue foi conhecida como Pequena África; no início do século
XX, a Praça Onze, próxima à Praça da Bandeira, foi o ponto inicial das recém-inauguradas escolas de samba, durante o carnaval. Na Fig. 10 vê-se um grande número de
personagens em suas fantasias de carnaval em 1937: travestis, um mosqueteiro, uma
garota portando um estandarte da República, outra com uma faixa dizendo “Jornal do
Brasil”, dois oficiais, um cacique, um homem galante... Não vestem fantasias suntuosas
e nem parecem ricos. Com exceção da rainha, ao centro, são um tanto circunspectos
para uma festa de carnaval.
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Fig. 10: Carnaval na Praça XI (1937). Fonte: FBN (on-line).
No prefácio ao livro de gravuras do artista modernista Lasar Segall, Mangue, de
1947 – uma sequência de imagens produzidas a partir da zona de prostituição dos arredores da Praça Onze –, a última queda de uma região já decadente foi assim descrita
pelo poeta Manuel Bandeira:
E então vieram as restrições policiais. Os choros desapareceram. A tristeza foi
infiltrada pelos bandolins dos cegos. E finalmente o tiro de misericórdia: o fechamento dos bordéis, a dispersão das mulheres, com alguns suicídios patéticos
por veneno ou fogo... (BANDEIRA, 1993 [1947], p.478).
A Praça Onze, junto com 525 edifícios, foi destruída para que fosse erguida a avenida
Presidente Vargas (ABREU, 1987, p.113), uma típica via para automóveis cuja construção
se iniciou nos anos 1940. Mas, persistindo, a frágil população daquela área ainda permanece, escapando de ser dizimada ou removida. Voltando à memória das minhas caminhadas, percebi nitidamente que muito da melancolia que ali senti talvez estivesse ligada ao
desaparecimento da vivacidade dos tempos antigos da época do nascimento do samba.
Embora ainda não consiga nomeá-la, aparece em mim uma memória que, estranhamente, me pertence e que vem de um passado profundo. Como no poema “Parada de Lucas”,
de Bandeira, as águas subterrâneas do mangue podem ser o escape da superfície dura das
ruas, um reservatório de liberdade ou alegria contra a brutalidade contemporânea:
Ah, se o trem parasse
Minha alma incendida
Pediria à noite
Dois seios intactos.
Parada do Lucas
O trem não parou.
Alexandre Sperandéo Fenerich
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Ah, se o trem parasse
Eu iria aos mangues
Dormir na escureza
Das águas defuntas.
(Canção da Parada de Lucas. BANDEIRA, 1993 [1944]).
O tédio da senhora que levava o neto pelo braço é similar aos rostos que observamos nas gravuras de Segall, ilustrativas das prostitutas e seus clientes nos bordéis. O tédio também é visível na fotografia do carnaval de 1937. É a mesma expressão dos rostos
das prostitutas na avenida Pedro II. Este peso, porém, se equilibra hoje contra um ethos
que ainda não localizei, mas que sei que é presente. É de uma certa alegria. E então, ambos os aspectos, tédio e alegria, convivem de uma forma que não consigo definir. Mas,
para entender esta contradição, talvez eu esteja buscando nos lugares errados. Talvez a
escuta das minhas gravações ilumine este aspecto que gostaria de alcançar em uma palavra perdida no contínuo dos sons ou em uma vaga memória. Voltemos às gravações.
Fig. 11 e 12: Mulheres do mangue com fonógrafo; Casal do mangue com persiana I. Xilogravuras (SEGALL, 1929).
Fonte: MLS (Museu Lasar Segall, on-line).
3.2. Sonoridades do Aterro do Mangue
O som dos arredores da área do mangue é enquadrado por um fluxo contínuo de
automóveis, pois a região é cruzada por enormes avenidas. Os rios de carros estão em
todo lugar em minhas gravações e são por vezes tão densos que dificilmente se distingue um automóvel de outro. Mas também o som dos trens sacolejando nos trilhos de
ferro está presente. No Rio de Janeiro, esse é o meio de transporte público mais precário, usado pelos segmentos mais pobres da sociedade – o qual compõe também a
maioria dos passantes da rua Ceará e arredores: vendedores ambulantes, anotadores do
jogo do bicho, garis, prostitutas, vendedores de pão, de coco, de ovos... Como em tem-
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pos mais antigos, todo tipo de trabalhadores das ruas: “homens lentos”, como se refere
a eles o geógrafo Milton Santos. Homens e mulheres que, no capitalismo contemporâneo, não correm pela cidade com a velocidade com a qual o capital é trocado; pessoas
cujo caminhar é parte da experiência cotidiana. Ao escutar a gravação, pode-se notar os
jargões dos vendedores, os passos, golpes ou outros sons gerados pelas ferramentas de
outros trabalhadores. Como um lugar esquecido por sucessivas camadas de urbanização, seriam estas vozes ecos do passado? Os pregões dos vendedores se assemelhariam
aos que imaginamos nas gravuras de Debret, que representam a sociedade escravista
do Rio de Janeiro do século XIX?
Fig. 13: Les rafraichissemens de l’après dîner sur la Place du Palais. Fig. 14: Marchand de fleurs a la porte d’une église.
Litografias (DEBRET, 1835). Fonte: FBN (on-line).
Imagem 15: Carregador. Imagem 16: vendedor de bebidas. Fotografias do autor (2018).
No entanto, em meio a muitos signos de trabalho ou movimento, um evento chamou minha atenção entre tantos outros no fluxo contínuo das gravações. É muito curto: após um longo som de serra, na pausa de seu trabalho, um operário assobiou uma
brevíssima melodia de alguns segundos.
Não me lembro de seu rosto, mas seu desenho é para mim uma longa respiração8.
8
O evento ocorre de 27’ a 28’05” - marca 5 do áudio já mencionado
Alexandre Sperandéo Fenerich
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3.3 Recanto
Mas há um outro lugar de descanso. Tomemos a gravação de 27 de abril de 2018 e
verifiquemos como um todo se evidencia numa forma. Seu trecho central é muito mais
silencioso: nenhum automóvel é escutado, além de ser possível perceber os pássaros,
e até mesmo os meus passos9. Nesse ponto entrei na Quinta da Boa Vista, a única área
verde em a toda região do mangue. Era uma sexta-feira de manhã e o parque estava
quieto, quase sem ninguém, a não ser um ou outro morador de rua que usava os bancos para dormir, e gatos, naturalmente. Tive uma sensação de alívio ao entrar nessa
bolha de silêncio.
Fig. 17 e 18: Quinta da Boa Vista. Fonte: Fotografias do autor (2018).
4. 5 de setembro de 2018: Quinta da Boa Vista
Sempre com microfones binaurais, retornei alguns meses depois à Quinta da Boa
Vista. A visita deu-se três dias após o incêndio que destruiu completamente o Museu Nacional e dois dias antes do feriado da Independência. Estávamos a dois meses das eleições
presidenciais, e o futuro candidato vitorioso seria esfaqueado em um atentado no dia
seguinte. O acontecido o ajudaria a vencer o pleito. Os ânimos do país estavam acirrados.
O clima era cinzento, com nuvens pesadas naquela manhã de quarta-feira de primavera. Cheguei às dez da manhã e havia algumas pessoas correndo ou caminhando
com cachorros. Do passado, a calma acenava ao futuro terríveis eventos.
Dentro do parque notei uma forte presença militar, talvez pelo museu incendiado
ter sido declarado tardiamente interesse nacional. Eu sabia que naquela hora se iniciava
uma assembleia universitária para entender os próximos passos a tomar frente à catástrofe. Esta aconteceria em frente às ruínas.
Evitei caminhar naquela direção intentando escapar do burburinho da política, mas
foi inevitável. Três mulheres na direção oposta chamaram minha atenção. Sobre o coreto oitocentista, elas rezavam e caminhavam em círculos, como as Três Graças Gregas.
9
Ocorre entre 38’ e 46’ do arquivo de áudio supracitado.
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Elas chamavam para que o Espírito Santo de Deus limpasse aquele lugar, aquele estado
e aquele país. “Tudo o que chamam destruição eu chamo construção, meu Deus!”, dizia
uma delas. “Senhor, salve essa nação, Pai!”
Ao fundo, o som de máquinas podia ser escutado – uma serra elétrica.
Já que era véspera do feriado da Independência, a cavalaria do exército, que tem
um quartel nas proximidades, passava pelo parque, ensaiando a parada militar do dia
seguinte. Na gravação ela é sucedida da minha aproximação até as Graças10.
Imagens 29 e 20: As três Graças Cristãs.
Finalmente, me dirigi até a assembleia universitária e o prédio em ruínas, mas este
trecho da gravação para mim é o menos interessante. Há o registro das falas dos dirigentes universitários e das conversas do público, mas sua prosódia, o conteúdo do que
diziam e os timbres de suas vozes eram estereotipados e desinteressantes. O interesse
estava no silêncio entre as palavras: nos olhares atentos dos policiais, soldados do exército e agentes da Polícia Federal que nos cercavam.
Até o dia de hoje nenhuma instituição ou pessoa foi responsabilizada pela destruição do antigo Palácio Imperial. Mas a presença da cavalaria, as vozes das peregrinas, a
serra elétrica e o clima com densas nuvens eram talvez o prenúncio de um futuro pesado, que ali se anunciava.
5. Janeiro a março de 2019: a Baía de Jebebiracica
A última das minhas investigações de escuta e captura sonora na região do Mangue se deu sob um outro viés: de janeiro a março de 2019 interessei-me pelos rios que,
aqui ou ali, se pode vislumbrar e que formam a baía de Jebebiracica. As gravações sonoras e as fotografias formaram o material para a instalação “Jebebiracica”, apresentada
na exposição Rios do Rio, em 2019, no Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro. A
instalação consistia em uma difusão sonora em quatro canais e uma série de projeções
de fotografias em slide, que, mais tarde, foi substituída por uma exibição dos negativos
em uma mesa de luz. Além disso, havia um miniprojetor com uma fotografia estereoscópica do Canal do Mangue – hoje avenida Presidente Vargas –, realizada no século
10
Este caminhar pode ser escutado aqui em https://soundcloud.com/user-472241268/tres-gracas-cavalos.
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XIX pelo fotógrafo Revert Henrique Klumb, e por fim uma narrativa em áudio sobre o
processo de criação, tocada por um fone de ouvido11.
As incursões buscavam documentar os rios da baía e seus arredores. Fiz duas visitas em lugares distintos: no piscinão da Praça Varnhagen, na Zona Norte do Rio de
Janeiro, e um retorno às redondezas da rua Ceará. Passemos às descrições.
5.1 O piscinão da Praça Varnhagem
Em 6 de janeiro de 2019, visitei, com dois ajudantes, este enorme espaço na Tijuca,
que consiste em dois poços de quinze metros de profundidade e diâmetro para a contenção das cheias do rio Maracanã, a ele contíguo. Entramos ali por uma portinhola, ao
rés do chão, como uma escotilha, e descemos por uma escada de metal cujo som, aos
passos, reverberava no volume imenso do espaço. Naquele dia, um fio d’água cobria o
fundo do poço salpicado de bolhas, dando aos olhos a textura de uma língua de peixe:
um daqueles gigantes amazônicos cujo nome não me recordo, talvez um pirarucu.
A luz do sol entrava por uma grande abertura na linha da rua, uma grade serrilhada
que permitia também a entrada da água das enxurradas que se formavam em dias de
tempestade, quando a avenida Maracanã se transformava nas margens do rio que nomeia também o bairro e o estádio. Um leve cheiro fétido de folhas podres se impregnava nas narinas e caía um gotejar constante de águas claras que, explicou-nos um engenheiro que trabalhava ali, vinha da drenagem do lençol freático. Esta água, limpíssima,
misturava-se ao esgoto do fundo, que recebia tudo.
As paredes de concreto eram tingidas de ocre-ferrugem destas águas e pareceu-me que um dia os vergalhões de ferro que sustentam o cimento irão se esfacelar e desaparecer, sendo que a decadência daquele monumento negativo já teria sido planejada
desde sua fundação.
Caminhamos por passarelas de metal, com seus guarda-corpos amarelos, até que
avistei uma galeria lateral cujo teto ia se afunilando até reduzir-se à altura de uma criança. Ali, tivemos que andar abaixados. Ao longe vimos um rastro de luz horizontal. Dirigimo-nos até ele, subindo algumas plataformas em escadinhas de escotilha. Foi quando
descobrimos, um pouco abaixo do último nível que tínhamos alcançado, o canal de
concreto que, como uma armadura de pedra, restringia o curso do rio Maracanã. Acima
dele enxergávamos os carros parados no trânsito matinal. Entre nós e o rio havia uma
grade que, como fomos informados, fora instalada para impedir que o poço se prestasse
à moradia de miseráveis que ali se abrigaram na sua inauguração. Foram surpreendidos,
nos contou o engenheiro, na primeira cheia do rio: um homem teria morrido afogado.
O som do trânsito e de nossos passos era tingido por uma longuíssima reverberação grave que trazia matizes ainda mais sombrios à caverna de concreto. Nas águas
arrastava-se um constante redemoinho que dava a impressão de que nelas havia algum
estranho animal, resquício abissal de vida em condições tão insalubres. O engenheiro,
aliás, informou-nos que vivem ali peixes, sapos e pequenos répteis.
11
A redução em estéreo do áudio projetado na instalação pode ser escutada em: https://soundcloud.com/user-472241268/jebebiracica.
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Fig. 21 e 22: O interior do piscinão da Praça Varnhagen. Fonte: Fotografia em slides pelo autor (2019).
5.2 De volta à rua Ceará
Em uma outra incursão, um ajudante e eu caminhamos em um percurso que foi do
início da rua Ceará, passando pela Vila Mimosa e pela avenida Francisco Eugênio, para,
por fim, chegarmos à avenida Francisco Bicalho até a rodoviária. Nosso objetivo era o
de seguir a pé e pela superfície o suposto trajeto do rio Joana, visível apenas na esquina
da rua Ceará com a Radial Oeste, até o Maracanã (na Francisco Eugênio), que desemboca no Canal do Mangue e este no mar, ali perto da rodoviária.
No valão que se vê na rua Ceará há um entroncamento de pontes ferroviárias de
aço fundido em que se lê EFCB e uma data, 1905. Paramos um pouco por ali e observamos o lamaçal que corre lentamente, cujo cheiro de cerveja rescinde embaixo das pontes. Em intervalos irregulares passam os trens e o metrô, causando um estrondo imenso
e curto, aparição desproporcional à calmaria assustadora e decadente de sucatas de
televisores empilhados e um ou outro passante: um trabalhador e muitos moradores de
rua, todos silenciosos.
A ponte sobre o canal forma um arco, suas águas refletindo as ogivas art noveau,
testemunho de tempos melhores. Vimos garças futucando as águas podres e ficamos
imaginando que tipo de vida haveria ali. Depois de mergulharmos o microfone subaquático e captarmos o som dessas águas, fomos embora meio desolados.
Passamos os viadutos e dobramos a primeira rua à esquerda, colada ao rio, que
dali não pode mais ser visto: um muro alto o encobre no lado direito. No esquerdo
alternam-se cortiços e lugares de recolhimento de ferro-velho e lixo. Vimos crianças,
velhos e homens de bermuda sentados nas soleiras das portas. A antiga região do Mangue alaga até hoje, e, portanto, há um forte cheiro de esgoto e umidade ao longo desta
pequena rua esquecida por todos.
Ela acaba uma quadra à frente. Dobramos à esquerda e entramos sem querer na
rua da Vila Mimosa – zona de prostituição ainda em atividade. Os prostíbulos, pelo que
sei, foram transferidos da Cidade Nova para lá nos anos 1980 para a construção da Prefeitura e de outros prédios administrativos – daí o apelido Piranhão da atual sede do
governo municipal carioca. Com os anos, a Vila Mimosa vem vivendo um lento desaparecimento. Mas passamos por ali à tarde de um dia de semana e mesmo assim encon-
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tramos clientes e moças vestidas para os programas: algumas de biquíni e microshort,
o traje mais comum.
Os prédios são um misto de boteco e moradia. Televisores para fora, uma ou
outra jukebox e churrasquinhos na rua – tudo dá a aparência de um movimento que
nunca dorme.
A Vila Mimosa termina na rua Ceará. Fomos indo nela até nos depararmos com um
enorme terreno baldio. Entramos. Nele era possível ver, onipresente, o Pico da Tijuca,
um matagal imponente, e, do lado esquerdo, um casarão que parecia habitado, embora
quase em ruínas. Na caminhada anterior, o senhor elegante que passava por ali me informou ser a antiga sede do ramal ferroviário Francisco de Sá, desativado há mais de 40
anos. A ruína, o espaço para os vagões, tudo isso ainda estava presente, nem restaurado
nem demolido: um vazio bem no meio da cidade – área urbana em que a natureza ainda
tem a possibilidade de evoluir. Estávamos a poucos metros da rodoviária, uma área de
grande concentração de automóveis, mas nesse lugar pairava um silêncio total em que
não se escutavam nem vozes nem máquinas: apenas o farfalhar do vento na vegetação.
Saímos dali e seguimos até a Francisco Eugênio, avenida pela qual vagueia lentamente
o rio Maracanã. No meio do canal vejo um galho enfincado ao chão. Outra garça bica
não sei o que entre o cano de esgoto e o fio d’água. O quartel da PM, de arquitetura
neogótica, é refletido pelo rio. Traz os ares de histórias de cavalaria em meio aos carros
Uno e Corsinha dos policiais. Ninguém passa por ali; nenhum transeunte se aventura
por essa via que acaba em viadutos e canais e começa na zona de prostituição; apenas
um ou outro automóvel a percorre.
Fig. 23 e 24: Casa em ruínas e a paisagem do Pico da Tijuca. Fonte: Fotografias em slides pelo autor (2019).
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Fig. 25 e 26: O antigo quartel da Polícia Militar. Fonte: Fotografias em slides pelo autor (2019).
6. Conclusões
A caminhada e a gravação realizadas em 27 de abril de 2018 revelam para mim
sentimentos opostos com relação à região em que vivo. Sinto a melancolia entre as
pessoas de hoje e de outros tempos. Sua fonte talvez se relacione com o passado do Rio
de Janeiro: o sistema escravista e os processos brutais e periódicos de modernização
que ultrapassam e soterram culturas, a natureza, antigas arquiteturas e modos de vida.
A paisagem de hoje é uma área abandonada da cidade – região esquecida que, entretanto, carrega fortes símbolos para sua identidade.
Por outro lado, a presença de pessoas nas ruas traz as suas vozes e os sons de
seu trabalho; de tempos em tempos, uma escuta atenta pode resgatar sopros de vida,
espaços de descanso e segmentos sonoros de outras épocas. O chacoalhar do antigo
sistema ferroviário, o pregão dos vendedores e mesmo o tom de voz das pessoas são
signos relacionados a uma persistência do passado. Pela sua própria existência, eles são
o sinônimo de uma vitória e de um escárnio contra a modernidade.
O antigo palácio imperial e seus arredores, visitado antes e depois de sua destruição, é ao mesmo tempo ponto de descanso e confluência de alguns símbolos ligados
à nacionalidade, religião e cultura, mas os modos de atualização destes ícones são os
de uma decadência física e cívica. Cada um destes modos em decadência é clara e simultaneamente audível na minha segunda visita, como camadas de uma polifonia. A
coexistência das Três Graças Cristãs com a cavalaria e os estereotipados discursos dos
acadêmicos (oprimidos pela forte presença militar) são, arrisco dizer, signos premonitórios das mudanças na democracia brasileira, tal como percebo agora, passado mais de
um ano da sua gravação – mas acredito que a intensidade de tal confluência de signos
é algo ainda a ser entendido no futuro.
Finalmente, as visitas na baía de Jebebiracica mostraram-me o absurdo do sistema
de águas atual, que transformou todos os rios em esgoto fechado ou aberto. O método
de contenção das águas durante a sua expansão devido às chuvas consiste em enormes e imponentes construções negativas, recônditas e subterrâneas, que apresentam
uma realidade paralela com relação à superfície. Sua sonoridade é inaudita em qualquer
espaço da cidade, tanto pelas águas perenes quanto pela alta reverberação de fontes
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sonoras que estão no nível do chão. É também um cenário quase irreal, com animais
subaquáticos imaginários só visíveis e audíveis por eventos discretos e misteriosos.
A caminhada pelas ruas da região da rua Ceará é, em muitos aspectos, o encontro
com espaços negativos ou opacos, como Careri ou Santos poderiam tê-los denominado. A enorme casa e o terreno baldio da estação de trem abandonada, e mesmo a
configuração geral das ruas, com seus poucos passantes, tudo isso são elementos de
um espaço opaco da cidade. Apesar de ser localizada em uma área central, a região é
esquecida pelo capital e pela modernidade. Entretanto, estes espaços possuem a beleza de uma ruína, eco de antigos tempos de prosperidade que podem ser percebidos
através de traços de refinamento arquitetural. Os prédios antigos sem uso e sem uma
relevância patrimonial evidente não foram demolidos, e uma nova cidade ali não tem
horizonte futuro. Os homens e as mulheres lentas, que passam por esta arquitetura e
por esta paisagem extremamente poluída em suas jornadas cotidianas, preservam estes espaços vivos e em uso, mas em outro ritmo e outra temporalidade com relação ao
resto da cidade.
A experiência de andar, escutar e gravar a região em que vivo criou em mim uma
forte ligação, visto que me lembrar das caminhadas por via das gravações e das fotografias é uma forma de ampliar a memória dos detalhes e camadas não percebidas durante
a caminhada em si. É uma forma, portanto, de aprofundar uma experiência já vivida.
Assim, o argumento de Feld de que o som é uma forma de conhecimento tornou-se
mais evidente para mim após as três visitas: o entendimento da minha região se dá
agora em outro nível de acuidade, e só pela reescuta pude analisar o que havia notado
nas caminhadas. A estratégia de gravações binaurais revelou uma paisagem sonora não
usual, distante de pontos turísticos ou de espaços modernos, tais como as áreas mais
ricas ou mais pobres, todas com uma lógica muito racional. É uma outra cidade, opaca
no sentido que dá Careri, que se mostrou para mim: muitos dos lugares visitados são
ausentes do constante tráfego que homogeneíza as sonoridades urbanas. Ao mesmo
tempo, pude escutar a presença de pessoas cujo modo de vida se dá pelo caminhar,
o qual se mostra pelos seus pregões, assobios, chamados ou interjeições, e que estão
ligados tanto ao seu modo de se movimentar quanto à sua atividade: espaço negativo
que se mostra para a escuta e se abre para o detalhe e para o particular.
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10.5965/2525530405022020e0006
DIÁLOGOS DESCLASSIFICADOS
Música e corpo-arquivo na construção
de um saber inacabado
primeiros passos
DECLASSIFIED DIALOGUES
Music and archive-body in the construction
of an unfinished knowledge
(first steps)
Erickinson Bezerra de Lima1
Universidade de Aveiro
erickinson.bezerra@ua.pt
Klênio Barros2
Universidade de Aveiro
kleniojbarros@ua.pt
Submetido em 10/05/2020
Aprovado em 22/07/2020
ORFEU, v.5, n.2, 2020
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DIÁLOGOS DESCLASSIFICADOS
Música e corpo-arquivo na construção de um saber inacabado
primeiros passos
Resumo
O presente estudo parte do reconhecimento da crescente importância da
noção de corpo-arquivo para a compreensão das práticas performativas, mais especificamente, quando aplicadas à música.
Esta proposta de reflexão tem ganhado
forma devido à expansão de um processo de classificação estrutural presente no
cotidiano das nossas sociedades e que nos
torna cegos de outras realidades possíveis.
Nesse contexto, formulamos um pensamento crítico sob essa lógica ao mesmo
tempo em que destacamos certas inquietações importantes para os performers e
que interessam aos musicólogos. O objetivo central é perspectivar a aplicação
do conceito de corpo-arquivo no domínio dos estudos musicais. Partindo de um
conjunto de aproximações, o artigo, por
um lado, apresenta e desenvolve as maneiras através das quais é possível, a partir da
desclassificação, levar a cabo essa aplicação. Sobre outra perspectiva, este trabalho
procura analisar as maneiras pelas quais os
próprios músicos destacam esse processo
face às suas experiências performativasi.
Abstract
The present study is part of the growing recognition of the importance of the
archive-body for the understanding of
the more specific performance practices
when applied to Music. This proposal for
reflection has been taking shape due to
the expansion of a structural classification process present in the daily life of our
societies and which has become a reason
for other possible realities. In this context,
we formulate critical thinking under this
logic while highlighting certain questions
that are important for artists and that are
of interest to musicologists. The main objective is to allow the application of the
concept of body-file in the field of musical
studies. Starting from a set of approaches, the article, on the one hand, presents
and develops as ways in which it is possible, from the disqualification, to carry out
this application. From another perspective,
this work can analyze how the musicians
highlighted in this process face as their
performative experiences.
Keywords: Music; Archive-Body;
Classification/Declassification; ConstrucPalavras-chave: Música; corpo-ar- tion of Knowledge.
quivo;
classificação/desclassificação;
construção de saberes.
Regente norte-rio-grandense e atuante nas vertentes artísticas e acadêmicas do estado (RN). É doutor e mestre pela Universidade de
Aveiro (Portugal) em Regência Orquestral, pós-graduado em Regência com ênfase em Música Contemporânea e Música de Câmara e licenciado
em Música pela UFRN. Desenvolveu atividade docente na área de Regência na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
1
Técnico em Música (2005), bacharel em Música (2009) e pós-graduado em Música (2011) – Práticas Interpretativas do Século XX e
XXI (UFRN/Brasil). É mestre em Música (2014), pela Universidade de Aveiro (Portugal). Atualmente, é doutorando em Música da Universidade
de Aveiro, no ramo da etnomusicologia. Desenvolveu atividade como docente de trombone, tuba e bombardino na Universidade Federal do Rio
Grande do Norte.
2
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Klênio Barros
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DIÁLOGOS DESCLASSIFICADOS
Música e corpo-arquivo na construção de um saber inacabado
primeiros passos
1. A gênesis das inquietações
Não há melhor tarefa para um estudioso inquieto do que desconstruir certezas.
Isso porque a maior perturbação para um estudioso é o medo de não ser livre. Seremos
claros. Há leituras que são capazes de nos arrebatar de tal modo que certas ideias nos
surgem com tremendo ímpeto no plano intelectual. Ideias que, mesmo por um período curto de tempo, nos fazem levitar, que, já numa primeira aproximação, deixam
qualquer um a sorrir. É como se, por instantes, talvez, tirássemos os pés do chão. Elas
“solucionam” ou, pelo menos, “parecem solucionar” imediatamente tantas inquietações
fundamentais que parecem assegurar também a resolução mais ou menos duradoura
de todos os questionamentos essenciais e/ou esclarecer todos os pontos obscuros. O
que quer que possa ser ou ter sido, ela serve, num presente que transborda, como um
espectro para nos afugentar de certos modos de pensar e nos encaminhar para outros.
E, como os modos de pensar de que estamos sendo afastados nos parecem mais convincentes do que aqueles para os quais somos lançados, nós gostaríamos de fazer algo
a esse respeito.
A música, como fenômeno ou como domínio conceptual, nos parece um bom
exemplo para pensar essas questões, especialmente quando, no interior das suas práticas, o exercício da contradição movimenta uma espécie de terremoto em nosso sistema lógico. Ademais, grande parte do fenômeno que designamos por música não tem
uma existência física no sentido em que não a podemos segurar, fixar ou concretizar
(SARDO, 2018, p.9).
Logo, surgem questionamentos na ordem das contingências: seria a música uma
realidade fugida? Se ela nos foge, de que forma podemos guardá-la? Como situar em
nível teórico as situações efêmeras intrínsecas à prática da música e que toca intimamente corações, histórias pessoais e culturais? Quando pensamos em guardar essas
práticas, onde é que as guardamos? E, se guardamos, o que efetivamente guardamos?
Vamos por partes.
Num primeiro instante, algumas ideias conceptuais nos seduzem pela avidez de
alguma nova forma de ciência, ou o epicentro em termos conceituais em torno do qual
pode ser construído um horizonte de análise abrangente e promissor. De acordo com a
filosofia de Susanne Langer (1996), a moda repentina de tal ideia, que exclui praticamente outras possibilidades semânticas por um momento, tem a ver com o fato de todas as
mentes sensíveis e/ou ativas se voltarem logo para explorá-la. De imediato, tendemos a
fazer uso delas em cada conexão, enxergamo-la em tudo que vemos, experimentamos
cada extensão possível de seu significado preciso, e assim por diante.
Não obstante, ao nos aproximarmos intimamente dessa nova ideia, isto é, após
ela se tornar parte do nosso repositório geral de conceitos teóricos, diz Clifford Geertz
(2008, p.3), “nossas expectativas são levadas a um maior equilíbrio quanto às suas reais
utilizações, e termina [então] a sua popularidade excessiva”. Alguns devotos, que permanecem com os olhos vendados, continuam em sua opinião anterior sobre ela. De
outra forma, pensadores menos apegados e extremamente preocupados em descobrir
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Música e corpo-arquivo na construção de um saber inacabado
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– referimo-nos àqueles que se autopercebem como socialmente encaminhados para
“fora do lugar comum” –, após algum tempo de reflexividade, fixam-se nos problemas
que a ideia gerou efetivamente.
O impulso primeiro é buscar aplicá-la ou ampliar a sua compreensão a partir do diálogo com a “vizinhança”. Se a transposição é realmente frutífera, num primeiro instante,
assumimo-la como duradoura no nosso arsenal intelectual. Todavia, depois de algum
tempo, não terá mais a competência de aplicação que um dia já teve (GEERTZ, 2008),
porque, segundo a filosofia sartriana (2005), por maior que seja a força de coerção, o
“Outro”, na forma de pensar e de agir, pode se manifestar a qualquer momento. É preciso então desclassificar lógicas cerradas, quebrar hierarquias, instalar pluralismo lógico
(GUTIÉRREZ, 2007, 2018), promover uma ecologia de saberes, descolonizar o império
cognitivo (dominante) que se organiza à nossa volta e que nos faz “cegos” (de uma outra
realidade possível), aprender “com” e “a partir do” Sul metafórico (SANTOS; MENDES,
2017), deixar a porta aberta, seguir os actantes3 (LATOUR, 2012), percorrer pelas teias de
significados que eles teceram e ver como eles próprios resolvem esses problemas.
Da forma como entendemos, não há nada distinto da realidade a que se possa
atribuir um sentido previamente dado. Pelo contrário, tudo pode acontecer, porque as
realidades (socialmente construídas) são dinâmicas e, como tal, permanecem em aberto (BERGER; LUCKMANN, 2010), à procura de sentido. Nos termos de Silvia Cusicanqui 4
precisamos de “conceitos encarnados” capazes de propor uma “teoria enraizada” – isto
é, que tem a sua raiz na pluralidade das experiências e que não nega a sua história/genealogia própria para a compreensão do mundo. Para Langer (1996), a transformação
simbólica é uma atividade essencial da mente humana. Por conseguinte, o poder criativo e articulador dos símbolos é o motor principal que move e/ou toca profundamente
nossos mestres5 nos mais diversos campos do conhecimento e da vida.
Ora, não sabemos efetivamente se esse processo ocorre com todos os conceitos
relevantes no âmbito das Ciências Sociais e Humanas. No entanto, esse padrão se confirma no caso do conceito de corpo-arquivo, quando aplicado à música.
O conceito de corpo-arquivo que este estudo seguirá está intimamente ligado ao
pensamento de Daniel Tércio, no sentido em que ele nos oferece ferramentas particulares para pensar, no que diz respeito à música, a problemática do “arquivar performances”. Para Tércio, o fundamental está em “perceber como é que as acumulações que vão
sucedendo numa lógica de arquivo se rebatem sobre um corpo presente” (TÉRCIO, 2017,
p.106). Por conseguinte, a noção de corpo-arquivo se traduz num corpo capaz de construir uma certa historiografia autoral e única, porém, móvel. Por essas e outras razões, a
proposta de Daniel Tércio, que advoga o corpo como arquivo, se tornou muito importante para as nossas preocupações no domínio dos estudos em performance musical.
3
De acordo com Bruno Latour (1999), é preferível fazer uso do termo actantes em vez de atores. Aos nossos olhos, este termo é relevante porque faz referência à heterogeneidade dos indivíduos que atuam como mediadores e que produzem efeitos nas redes de associações.
4
Historias... (2018).
5
Para efeito do que temos vindo a argumentar, concebemos o “saber” como algo que porta todo e qualquer ser humano. Nesse sentido,
nossos avós ou nossos pais, por exemplo, são tão mestres quanto pode ser um autor famoso da Filosofia.
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De forma insubmissa – que tende a ser livre – e inquietante, o seu pensamento convoca
a desclassificação do corpo, uma operação que nos oferece um terreno absolutamente
fértil para pensar o modo como tratamos e nos relacionamos com as músicas.
Se, por um lado, entendemos amplamente a “música via corpo” como uma realização performativa que está cativa do seu acontecimento e cuja existência possui
um caráter intermitente e ambivalente, por outro lado, quando pensamos em “arquivo
via música”, somos encaminhados, historicamente, às diversas tentativas de capturar a
música com a utilização de variados instrumentos de registro ou de fixação da mesma
(a notação musical, a gravação em áudio ou audiovisual) (SARDO, 2018). Todavia, essas
operações descortinam uma contradição particular: tentamos guardar a música como
forma de fixar conhecimento – numa tentativa de torná-la, de alguma forma, substancial, concreta, objetificada –, mas, por outro lado, concordamos que o seu caráter
móvel e fluido através dos intérpretes (corpo sensível à performance) é condição para a
sua existência. Propomos como hipótese que as práticas musicais associadas à música
popular espelham as mesmas experiências de instabilidade que o próprio corpo-arquivo tem como processo de construção de um saber inacabado.
Não obstante, a música é uma das áreas do saber que mais tem estado sujeita à
violência da classificação. O desconforto é flagrante quando, ao escrever sobre música,
não sabemos como devemos efetivamente nomeá-la (SARDO, 2018); ou quando nos
deparamos com músicas de culturas distantes, onde as notas – os sons musicais – não
obedecem a uma vibração absoluta de 440 Hz; ou quando a indústria da música multiplica cada vez mais categorias musicais “rotuladas” para consumo; outras classificações
lhe conferem atributos de nacionalidade (música brasileira, música flamenca, música
uruguaia, música chilena etc.) ou regionalidade (música nordestina, música gaúcha,
música potiguar). Noutros casos, é igualmente perturbador perceber que, para alguns
ouvidos, Hermeto Pascoal representa um músico popular brasileiro, embora, para outros, seja um músico de jazz, para outros soa até como música contemporânea, e assim
por diante. O fato é que todos esses exemplos refletem um itinerário de classificação,
ou melhor, nos termos de Garcia Gutiérrez (2018), “de violência classificatória”.
Aquilo que queremos partilhar aqui é, no fundo, resultado de um trabalho profundamente empírico, nomeadamente, das conversas que temos diariamente com os
músicos e das reflexões que nós fazemos dentro e fora dos palcos.
Somos filhos de uma geração que se formou enfrentando desafios diversos e tendo que lidar, cada vez mais, com a mudança repentina das coisas, como nenhuma outra
sociedade historicamente precisou. Cada vez que subimos no palco para atuar com outros músicos, aprendemos a (re)definir as coisas com as quais trabalhamos e/ou sobre
as quais falamos, e uma das coisas que fazemos muito é tentar definir o que efetivamente a música comunica ou pode comunicar.
Confirmamos, então, que o estudo em arquivos convencionais pode ser, em alguma medida, relevante, porém não consegue dar conta de examinar uma parcela significativa do discurso musical – aquela que mais nos interessa. Referimo-nos aos processos
sociais provenientes das interações e das formas dinâmicas de arquivar saberes. Estes
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não se podem encontrar visíveis em arquivos tradicionais, tal como nas partituras, por
exemplo. A reflexão sobre isso permitiu-nos enquadrar a música dentro da paisagem
de um corpo sensível à arte e permanentemente incompleto por natureza. Daí o nosso
interesse no conceito de corpo-arquivo, capaz de fazer emergir um conhecimento-outro – para usar a expressão de Garcia Gutiérrez (2007).
1.1. Espedaçando: a lógica da desclassificação
Se seguirmos as ideias de Gutiérrez, acedemos ao mundo e nos relacionamos com
ele através de uma atitude classificatória – algo do qual não conseguimos fugir completamente. Embora não contestemos a sua força criadora, a lógica da classificação
parece-nos ter chegado ao ponto em que confunde muito mais do que esclarece. Algumas das significações que os próprios performers constroem dentro da sua experiência pessoal é disso um bom exemplo. A tendência é se preocupar, cada vez mais,
em limitar, especificar, enfocar e conter significados, como se eles fossem válidos para
tudo ou preexistissem independentemente do contexto, isto é, de estarem enquadrados num paradigma específico de aplicação. É justamente essa redução dos conceitos
a uma dimensão justa/unívoca (quase que inquebrável) que nos encaminha a (re)pensar
a aplicação do conceito de corpo-arquivo no âmbito dos estudos musicais ligados à
performance, em suas diferentes formas e direções.
Antes de tudo, primeiramente, o que se pode compreender efetivamente por “classificação”? E por que temos a classificação? Talvez porque temos a “desclassificação”.
E, se temos a desclassificação, em que contexto aparece essa lógica? Qual a sua especificidade teórica e analítica?
A inspiração conceptual parte do domínio dos estudos em Epistemografia6, opondo-a a Epistemologia. Se a Epistemologia [ocidental], que atende a lógica da classificação, é
comumente vinculada ao conhecimento ordenado verticalmente e elitista — porque termina por ignorar grande parte do conhecimento socialmente produzido — a Epistemografia — por sua vez, propõe uma lógica de organização do conhecimento de forma horizontal, interativa e que pode fazer emergir aquilo que está oculto ou excluído (GUTIÉRREZ,
2007, 2014). Para apresentar essa concepção, centramo-nos nas propostas do professor
espanhol García Gutiérrez (2006, 2007, 2018), que convoca a tese da “desclassificação”.
Ao longo da história, a lógica dominante impôs dogmas e múltiplas repressões, absolutamente redundantes, em relação às formas humanas de autopercepção do mundo
que habitamos. Uma dessas opressões sistemáticas – reiterada em cada tratado, em
cada teoria, em cada afirmação inquestionável e cotidiana – aparece, através de uma
autorreflexão crítica, especialmente quando nos vemos obrigados a aceitar um governo/controle de uma lógica dominante, única ou universal e que, se analisarmos bem,
nega uma condição fundamental da nossa existência, que é a diversidade humana (GUTIÉRREZ, 2007).
6
Este campo procura estudar a forma como os conhecimentos se encontram organizados (GUTIÉRREZ, 2014).
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Segundo Gutiérrez (2007), a classificação, como realidade objetiva (formação de
conceitos duros e suas hierarquias), parte de uma lógica única, convencional, coercitiva
e, como tal, é, na maioria das vezes, opressora e absolutamente contrária à diversidade. A
percepção de Gutiérrez tem a ver com o fato de entender que o ato de classificar tem um
paradoxo perverso: “ocultar conhecimento”. A aposta é justamente na desclassificação,
que implica o aparecimento do que está oculto/submerso, como diria Gutiérrez (2007),
daquilo que está confinado às favelas do conhecimento7. Logo, a desclassificação configura um sistema aberto, que instala pluralismo lógico e é abordado desde uma perspectiva paraconsistente (mais à frente veremos o que isto significa e as suas implicações).
Surge, então, essa ideia de que várias lógicas – o que Gutiérrez (2007) chamou de
conhecimento-outro – se contrapõem aos processos de constituição de uma verdade
única que dominou o pensamento conservador/tradicional durante muito tempo na
história ocidental e que ainda hoje impõe as fronteiras do que é possível e do que não é
possível realizar em nossas sociedades. Ora, essa abertura para a emergência de várias
lógicas possíveis é o que Garcia Gutiérrez designou por “pluralismo lógico”.
Posto isso, a principal estratégia para fazer emergir um “conhecimento-outro”, desclassificado, seria valer-se das “contradições”. Ou seja, a prática das contradições seria
uma alternativa possível de orientar o pensamento num movimento contrário com relação
àquilo que é imposto violentamente. O conceito de contradição, durante muito tempo, foi
entendido no Ocidente como algo completamente desconectado do mundo exterior. Digamos que ela se dava num plano interior/subjetivo e tinha que ser resolvida intimamente.
É neste sentido que reduzir a compreensão de “corpo” ao seu significado biológico e manter estático o pensamento remitente ao que compreendemos sobre “arquivo” consistiriam,
como exemplo na presente abordagem, em uma violência epistemológica.
De outra forma, progressivamente, muitos pensadores começam a perceber efetivamente que cada afirmação/classificação é, no fundo, paraconsistente, ou seja, é
constituída intimamente por várias lógicas simultâneas e até contrapostas8. As contradições são, hoje, cada vez mais, utilizadas na construção do pensamento crítico, indispensável para a transformação da(s) realidade(s). Muitos estudiosos, sociólogos e antropólogos, como Boaventura de Sousa Santos e José Manuel Mendes (2018), Bruno
Latour (2012), García Gutiérrez (2007), dentre outros, utilizam esse conceito como uma
ferramenta poderosa para desconstruir situações de opressão, de violência epistemológica e de hierarquias fortemente organizadas. Em síntese, as contradições nos mostram
que nada é definitivo. Por essa razão, elas estão intimamente ligadas ao movimento e/
ou à ideia dos fluxos.
No caso do conceito de paraconsistência, este vem justamente trazer esperança
às contradições (GUTIÉRREZ, 2007). Partimos da ideia de que cada classificação – cada
entidade única – é, na verdade, paraconsistente. Ou seja, não possui uma consistência
efetiva para se manter como uma unidade inquebrável. Hoje, sabemos que cada fe-
7
Ver Cientificamente Favelados (GUTIÉRREZ, 2006).
8
No tópico que trata sobre a narrativa dos músicos veremos como as paraconsistências se expressam
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nômeno está cativo do seu acontecimento e das particularidades próprias da situação
específica desse acontecimento. É o caso do conceito de corpo-arquivo, quando aplicado à música.
2. Corpo-arquivo: uma abordagem musicológica
A viagem do corpo e tudo o que vai com o corpo
(primeira aproximação)
Ao longo do tempo, as práticas musicais acompanharam a migração da humanidade (CÔRTE-REAL, 2010) numa viagem para outros portos. O movimento dos indivíduos e tudo o que estes levam consigo resultou em processos de inclusões, aceitações
sociais, reinvenção cultural e jogos de identificação – daí que o binômio música e migração sugere a metáfora da “viagem”. É nesta viagem que os indivíduos, para além dos
pertences físicos que carregam, transportam também, no próprio corpo, uma constelação de saberes (BARROS, 2016, p.79-80).
Na literatura, muitos dos estudos migratórios relacionados à música (SARDO, 2010;
MARTÍNEZ, 2010; RIBEIRO, 2010; CÔRTE-REAL, 2010) têm demonstrado que todo movimento de pessoas implica também o movimento das músicas que praticam em seu
lugar de origem, dado que a música é um dos comportamentos humanos mais portáveis. Podemos levá-la conosco para onde formos, porque “levamo-la dentro do corpo”.
A música que está incorporada podemos levá-la a qualquer lugar.
Esta reflexão sintetiza um pensamento que se distancia de um corpo definido às margens da medicina, composto de membros e órgãos, não limitado às ações convencionais
para sua existência. Um corpo que perpassa o que lhe é comum e se estrutura perante a
arte, notadamente, a música, como elemento sensível de conectividade com o mundo.
A essência de um corpo: somos um corpo-arquivo dentro da música
(segunda aproximação)
O corpo tem sido alvo de diferentes sentidos e formas de significar. Não é possível
considerar a produção artística na ausência de um corpo. Isso porque ele está no centro
da produção artística. Derrida (2001) colocou a seguinte questão: o que acontece com
o arquivo quando ele se insere no próprio corpo?
Digamos que a noção de arquivo é largamente compreendida como uma instância
ou lugar de acesso a um fato – presente ou passado. Existe uma ideia comum de que
o arquivo é algo que pode ser cuidado, que pode ser (ou não) reproduzido, mas que,
sobretudo, pode ser acedido. Do ponto de vista das práticas musicais, sabemos que a
performance se faz por corpos e em corpos. Ou seja, realiza-se completamente nesse
momento de contato corpo a corpo – envolvendo músicos, não músicos, audiência,
produtores culturais, comunidades que acompanham as performances etc. Quando a
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realidade performativa cessa, entre músicos e não músicos, a performance fica guardada também em corpos9.
Dentre as várias formas de pensar os arquivos ou o processo de arquivamento de
performances, aquelas que mais facilmente se encaixam nos moldes aos quais as bibliotecas estão habituadas são as mais parciais, uma vez que o arquivo vivo das performances musicais, aquele que permite não só a lembrança, mas também a recuperação dos
conteúdos mais sensíveis — da criação, verdadeiramente — é o próprio corpo.
O performer, ao aprender e treinar e fazer e repetir performances, toma-a para
si. No entanto, seu corpo não está como uma tela em branco, porque ele é memória
e, como tal, é uma espécie de “corpo território”, que consegue articular a plenitude do
corpo enquanto sua interface de vivência e contato com o mundo.
A dança dos corpos: o repertório das ações
(Terceira aproximação)
Se torna pertinente o pensamento de Newton: “para toda ação há uma reação”. A
atividade performativa está atravessada por três dimensões: um passado que remete a um
arsenal de ações outrora incorporadas; um tempo presente que envolve a abertura para
uma realidade possível em rumo a um tempo futuro resultante de uma intenção criativa,
porém, inacabada. Em suma, a própria ação performativa consiste como catalisador que
provoca a ação necessária de evocação dos elementos necessários à sua realização.
Numa situação concreta de performance, diferentemente da situação de estudo
individual, o performer experimenta, de forma particular, o lugar onde seu discurso toca
intimamente as pessoas. Isto é, numa performance ao vivo, o convívio musical e social
perante a diversidade de gerações de músicos e públicos, proporciona a emersão de
linguagens inovadoras que se rebatem no corpo enquanto arquivo.
Seguindo essa mesma linha, o repertório de ações incorporadas envolve um pensamento social específico: o diálogo entre o eu e o(s) outro(s). Nesse diálogo, vários
significados são incorporados. São discursos que provocam ou potencializam provocações musicais que atingem o corpo como arquivo. Este é estimulado a produzir respostas no momento presente que o toca. Quer dizer, a noção de repertório de ações, neste
caso, pode ser compreendida como uma dança dos elementos fundados na experiência
de musicar (SMALL, 1998) dos músicos e nas representações que os permitem dizer
algo singular na música e entrar em sintonia com os outros (influenciando diretamente
as formas pelas quais os músicos revisitam o corpo como arquivo, comunicam algo na
música e constroem significados). E essa parece ser a chave principal para que o corpo
seja revisitado e reinventado no momento da performance.
O constructo do modelo conceptual de análise
(quarta aproximação)
9
Esta concepção se confirma na percepção dos músicos, como veremos no tópico 3, que trata da análise das suas narrativas. De acordo
com os músicos, os significados ficam guardados como memória, podendo gerar novos acontecimentos.
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O modelo conceptual de análise que este estudo seguirá parte de dois estímulos
específicos: um deles corresponde às narrativas dos músicos colaboradores e o outro
surge a propósito da leitura de uma literatura sensível a essas narrativas10.
Este estudo contou com a participação de oito músicos/performers colaboradores, que responderam a um conjunto de questionamentos de forma dissertativa. Apesar
de partirmos de um repto inicial, que aponta para um conjunto de questionamentos
fundamentais, a intenção primeira foi deixar os colaboradores livres para se moverem
na construção de uma narrativa. Optamos por trabalhar com músicos que possuíssem
experiência musical no âmbito das práticas associadas à música popular, por acreditar
na liberdade comumente creditada a esse tipo de prática, reconhecida pelos próprios
músicos. Nesse domínio performativo particular, espera-se que os performers imprimam e/ou ponham cá para fora algo de novo para acrescentar à música, sobretudo
quando tocam em conjunto, o que complexifica os modos através dos quais estes operam os processos de arquivamento e revisitação de um corpo enquanto arquivo.
Sob esta ótica, pode-se estruturar o seguinte modelo ilustrativo:
Figura 1 - Núcleo ilustrativo do modelo conceptual de análise. Fonte: Elaborada pelos autores
Da forma como enxergamos, cada uma dessas narrativas está atravessada por experiências e saberes sensíveis, o que resultou num complexo trabalho de interpretação
e análise. Isto significa que das narrativas pessoais emergem vários significados, e estes,
por sua vez, revelam elementos importantes para a explicação das ações e/ou criações
10
Na verdade, as narrativas e os feedbacks que pouco a pouco fomos tendo dos músicos nos encaminharam rumo ao contato com essa
literatura.
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dos performers no que se refere à percepção que eles têm do corpo como arquivo.
Contudo, inspirados em parte nos trabalhos do sociólogo peruano Danilo Martuccelli
(2007, 2012), quando nos pusemos reflexivos com relação ao trabalho hermenêutico
das narrativas, chegamos à conclusão de que nesse trabalho de interpretação existe
sempre um “salto interpretativo”11 necessário. Como diria Clifford Geertz (2008), “interpretar o que acontece” é o cerne do que nos propomos fazer na pesquisa acadêmica.
Parece consensual a ideia de que o corpus teórico é produzido desde conteúdos
empíricos. Todavia, por vezes, podemos encontrar correntes de pensamentos que se
movimentam num sentido de eliminar o salto interpretativo através do qual cada um de
nós conceptualiza, a partir do material produzido, o sumo principal para o trabalho de
análise (por exemplo: se uns saltam muito pouco, outros saltam demasiado, e assim por
diante). Então tudo está na natureza deste salto. No nosso caso, a intuição primeira foi
valorizar o caráter do que chamamos aqui de “salto interpretativo”. Ou seja, a extração
dos significados a partir da análise das narrativas. Aos nossos olhos, não é na neutralidade que se constrói o saber. É preciso interpretar o mundo.
3. Quando a banda toca: a narrativa dos músicos
Da forma como decidimos trabalhar empiricamente com a problemática do “arquivar performances”, buscamos extrair das narrativas dos músicos as percepções de
como é que as acumulações que vão sucedendo numa lógica de arquivo se rebatem
sobre um corpo presente, tendo em conta as suas experiências no domínio das práticas
performativas em música popular. As narrativas seguem linhas polifônicas de pensamento, com zonas de contato onde os significados ora se encontram, ora divergem.
Retomamos as inquietações de partida, diluindo-as em três questionamentos que
nos guiam no inquieto tentame analítico sobre suas respostas, expondo-as em três partes:
• Primeira inquietação: quando pensamos em guardar essas práticas, onde é que
as guardamos? E, se guardamos, o que efetivamente guardamos?
• Segunda inquietação: considerando o efêmero da performance musical, de que
forma a experiência vivenciada neste ato pode se converter em um conjunto de significados arquivados em um corpo?
• Terceira inquietação: de que modo estes saberes sensíveis podem ser revisitados? E, ao serem revisitados, como podem ser selecionados frente à situação de performance musical?
3.1 Primeira inquietação
Face às teias de significados que atravessam as narrativas, uma percepção inicial
nos salta aos olhos: a heterogeneidade do pensar e agir em contexto de performance.
Noutros termos de sentido, visualizamos uma via de mão dupla ou até contraditória.
11
A convergência de pensamento entre Martuccelli (2007, 2012) e Clifford Geertz (2008) exprime que o “salto interpretativo” pode ser compreendido, nas linhas da presente abordagem, como um olhar intuitivo sobre a análise das narrativas exprimidas pelos colaboradores de uma pesquisa.
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Uma delas aponta para um corpo-memória dinâmico que é ativado pelos afetos no momento presente em que o performer se encontra lançado. De outra forma, a segunda
faz emergir uma concepção de corpo-mecânico racional e biológico.
Os actantes se movimentam em várias direções, como forma de penetrar o corpo
como arquivo. Em primeiro lugar, do ponto de vista dos músicos, o que está em jogo
nesse processo de arquivar performances parece estar dividido por uma linha imaginária que corta as dimensões do consciente e do inconsciente. Para Antônio Oliveira
(2020), “Pensamos em guardar essas práticas ou seriam incorporadas como memória-hábito? Se há uma questão na memória crucial é a questão do afeto […]. O afeto é o
motor das lembranças” (OLIVEIRA, 2020). Essa visão sensível do corpo é corroborada
por outros colaboradores. Sintetizando as perspectivas, a chave principal para o arquivamento de performances se traduz “naquilo que […] nos tocou. Guardamos aquilo que
nos inquietou, nos surpreendeu, nos impressionou, [ou até] aquilo que nos emocionou”
(SOUSA, 2020).
Ao ir juntando os retalhos dispersos nessa teia de relações, apreendemos uma coisa:
numa situação de performance musical, tudo depende do momento em que o performer
se encontra lançado. E, nesse momento, como dizem os músicos, estamos acumulando aprendizados. Mas não acumulamos e/ou guardamos de qualquer forma. Guardamos
aquilo que realmente importa para nós. Isto é, aquilo que nos toca, que nos comove e que
nos move rumo a novas criações. Algo decisivo não só para a revisitação do que guardamos, mas também para a apreciação do que efetivamente guardamos, está na noção do
que Fausto Pizzol (2020) chamou de “mapas mentais”, uma espécie de cartografia imaginária que ele associa “[…] a imagens e textos [metafóricos]” (PIZZOL, 2020).
Largadas nesse emaranhado de campos de automodelagem e representações de
si, aparecem, por sua vez, outras experiências, mais especificamente uma concepção
de corpo-mecânico e/ou racional, num sentido biológico. Isso porque são múltiplas as
dimensões do trabalho musical. Na sua própria voz: “Eu só guardo aquilo que procuro pôr em prática na minha performance” (GOMES, 2020). Ou, de modo semelhante:
“Guardamos os movimentos físicos de uma determinada passagem e o conhecimento
das notas e dificuldades de passagens mais difíceis” (PINHO, 2020).
De uma forma ou de outra, as diferentes possibilidades de resposta para essa primeira inquietação parecem estar sujeitas ao status que, enquanto performers, estamos
dispostos a conceder à música como cultura. Esta é a expressão da ideia de que esse distanciamento consiste numa ausência de afetividade posta em prática numa dada situação
de atuação – seja ela numa sala de estudo individual ou numa situação de performance
com audiência. Nestas situações, parece incidir uma aflição que negligencia emoções e
as aberturas do presente, insistindo, pelo menos no momento em que estão a fazer música, numa imersão nas considerações previamente programadas para acontecer.
Por outro lado, quando pensamos onde guardamos a música e o que efetivamente
guardamos, a característica mais marcante expressada nas narrativas aponta para um
significado que não permite ruptura significativa entre aquilo que “tencionamos mecanicamente fazer” e a dimensão “humana do fazer”. Estas não se sobrepõem umas às
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outras. Elas dialogam entre si e são profundamente agregadoras de outras vozes possíveis – ou seja, permitem sempre pôr outras vozes na conversa –, podendo ser ativadas
ou não numa situação de performance.
A complexidade dos discursos atinge o limite quando o processo impõe, dia após
dia, o esforço da autopromoção – tão comum nos dias atuais –, desafiando, por consequência, combinar unicamente duas atitudes fundamentais em relação à realidade: o
engajamento e a autoanálise. Na prática, “todo o processo de aprendizagem na preparação de uma performance é uma tentativa desenfreada de perfeição, [quer dizer, de]
‘arquivar’/estabilizar a melhor versão já estudada de determinada obra” (SILVA, 2020).
O performer, por vezes, armazena “[…] padrões de execução musical em decorrência
do estímulo à repetição, o que contribui no desenvolvimento da memória sinestésica”
(SILVA, 2020).
3.2 Segunda inquietação
Quando tentamos resumir o que de mais importante pode caracterizar a existência
da música, chegamos à conclusão de que trabalhamos com algo que efetivamente não
sabemos muito bem precisar o que é. Temos que assumir isso. Digamos que a música
seja “qualquer coisa” que “acontece”, e, para “acontecer”, é preciso fazer música. O fato
é que a música, como fenômeno, não só possui uma existência extremamente sensível
no sentido de que nos foge como realidade, como também arrasta um caráter eminentemente temporal. Quer dizer, jamais poderá repetir-se exatamente. Entretanto, pode
proveitosamente gerar novos acontecimentos, promover interlocuções e diferentes jogos de identificação. Dito isso, a grande questão é saber como tal experiência pode ser
comunicada em uma performance que, por consequência, gera significados a serem ou
não arquivados em um corpo.
Na contribuição franca e direta que deram os nossos colaboradores a este repto,
tão diversa entre elas no tom e na aspiração, as narrativas transitam em jogos que envolvem estímulos, acasos e afetos, emoções, padrões de coativação12 e mecanicidade.
Essa trama de relações, bifurca-se entre um passado incorporado e um presente completamente aberto e incerto, no qual os significados podem ser ressignificados.
Quando falamos das nossas experiências passadas somos guiados pelo filtro das
emoções, “o que faz com que transformemos […] a nossa experiência” (OLIVEIRA, 2020).
Então, o estímulo fundamental está justamente nas emoções. Para Oliveira (2020), os
saberes ficam retidos na nossa memória a partir desses estímulos. Quanto a sua seleção,
frente a situação de performance, adviria do que ele chamou de “processo criativo de
reutilização mnemônica” (OLIVEIRA, 2020). A elaboração desses suportes de memória
tende a ser diversa, ainda mais no que toca a prática da música, onde qualquer reflexão
sobre a prática está assente num complexo jogo de imaginação, de (des)classificação e
de paradoxos.
12
No tocante à Coactivação, esta diz respeito ao estudo intenso de uma obra, no qual os performers desenvolvem um ‘piloto automático’ de estudo. ver Jorge Correia (2002).
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Para Elielsom Gomes, “se a performance pode se converter em um conjunto de
significados, se trouxer aquilo que eu tenho como propósito na performance a reflexão” (GOMES, 2020). Na concepção de outros, o que fica arquivado em um corpo é, no
fundo, fruto de algo muito mais amplo. Ou seja, o que fica retido é “o processo no qual
passamos quando nos dedicamos a aprender uma música para peformá-la” (BARROS,
2020 — Sublinhado nosso).
Para encurtar o caminho e ser bem claro, “o indivíduo acessa em si mesmo, todos
os processos de aprendizagem no qual viveu ao longo da carreira, para aplicar […] em
uma performance” (BARROS, 2020). Do ponto de vista da tradição eurocêntrica, cada
performance é objetificada para se tornar concreta, e torna-se concreta a partir do momento em que se consegue executá-la. Ou, pelo menos, aquilo que o performer acredita ter conseguido executar.
Em síntese, de acordo com os marcos simbólicos extraídos das narrativas, o conjunto de significados arquivados em um corpo vai sempre depender da vivência musical do indivíduo. Se, para uns, isso “vai refletir desde o processo da aprendizagem da
performance [considerando os padrões de repetição (SILVA, 2020, PINHO 2020) até o
seu momento real de [concretização] […]” (BARROS, 2020), para outros, “vai depender
da conexão entre a performance e o corpo, onde as memórias do corpo e os impactos
sensitivos causados pela performance serão os conectores desta ação” (SOUSA, 2020).
3.3 Terceira inquietação
Face as inquietações anteriormente expostas, e sendo a classificação vista como feedbacks genéricos à maneira como nossa percepção das coisas é afetada pelo momento
presente em que nos encontramos lançados, toda a discussão entra mais em foco.
De acordo com as narrativas em análise, entender como saberes sensíveis podem ser
revisitados, e como podem ser selecionados frente a uma dada situação de performance
musical, vai depender, num primeiro momento, do modo como cada um conceptualiza/
significa, no interior das suas próprias vivências individuais, o fenômeno performativo.
Por um lado, assumimos a performance como uma experiência eminentemente
temporal. Isto é, devemos sim ter como objetivo o comprometimento de reviver, no
momento da execução, a narrativa emocional, como uma habilidade de reagir aos impulsos e estímulos ocasionados no momento em que a performance musical acontece,
num processo criativo. Mas, por outro lado, tendemos validar o ato performativo também como uma espécie de reprodução automática do que foi memorizado e estudado
individualmente. Para Barros (2020):
Tudo é revisitado conforme […] as transformações vivenciadas, [estas] sugerem
aprendizados singulares e empíricos do fazer musical e são selecionados de
acordo com a experiência de performance que cada indivíduo tem. É neste momento que entramos em fluxo: é quando selecionamos naturalmente […] [ou] de
maneira automatizada, os nossos arquivos através da nossa experiência musical.
[…] Um ato de pura criação, de pura improvisação, entretanto, tudo de modo
consciente (BARROS, 2020).
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O paradoxo aqui é flagrante. Digamos que o momento da performance é o “presente” que estamos experimentando. Se “eu sei o que estou experimentando”, então “eu
não estou experimentando” efetivamente a criação. Vamos reformular a ideia. Partindo
do entendimento de que o momento da performance é único, em termos de composição ou invenção musical, se eu souber o que é “aquilo” que estou inventando, já não
estou mais inventando este “aquilo”. Esta concepção supõe que o indivíduo se encontra
atravessado por diferentes mecanismos de aspiração.
Uma outra estratégia possível para revisitar os saberes arquivados pode ser “vivenciando momentos semelhantes aos quais foram desenvolvidos” (MORAIS, 2020;
GOMES, 2020). A cor, o sabor, o que soa, como soa “o momento” (passado) dentro do
mesmo momento (presente), embora tenha consciência de que não existem momentos
iguais. Nalguns casos, sentimos que é preciso olhar para o momento (aquele que está
guardado) que está fora do momento (aquele que estamos a viver no presente performativo). É nesse entre dois [passado e presente] que ocorre a reflexividade, onde o performer faz escolhas e atualiza a herança de aprendizados que carrega consigo.
Boa parte das interpretações apontam para o fato de que é através da prática instrumental diária que o indivíduo consolida processos de armazenamento de saberes.
Estes são revisitados frente a uma situação real de performance (SILVA, 2020), na medida em que são recriados. No âmbito da música popular, especialmente “em contextos
de improvisação, […] uma parte dos saberes [também] advém de uma certa automação
combinada ao aspeto criativo da memória” (OLIVEIRA, 2020).
Não obstante, muitos dos colaboradores admitem “nunca ter refletido sobre como
[…] [podem] revisitar este tipo de saber” (PIZZOL, 2020), embora reconheçam também
que arquivam diariamente infindáveis conteúdos, evidenciando que esta pode ser uma
operação um tanto inconsciente.
Nada sintetiza tão bem estas narrativas quanto as ideias de Correia (2005), quando
afirma que nossas performances não são motivadas apenas pelo conhecimento [ocidental] que se pode ter sobre a música. Para Correia (2005), “[...] é tudo o que possa estimular
a nossa reação afetiva com a música” (CORREIA, 2005, p. 04). Quer dizer, reações emocionais/afetivas ao conteúdo das notas de programa, o contexto histórico ou, se quisermos, até o estilo da obra. E não só. “Memórias emocionais de experiências passadas
disparadas por associação livre a qualquer momento durante a performance musical;
reações miméticas e emocionais aos movimentos e ações dos performers [...]” (Correia,
2005: 04). Tudo isso está, de alguma forma, embutido no que chamamos aqui de corpo-arquivo, num sofisticado jogo entre classificação, desclassificação, reclassificação.
Em suma, aparece latente nas narrativas dos músicos a concepção de que a repetição das ações mecânicas e desenvolvimento de automatismos são importantes, mas não
podem ofuscar a produção de reações e estímulos, que podem ocorrer através da relação que o performer exerce em tempo real tanto com o “terreno-corpo-arquivo” quanto
com o “terreno” enquanto cenário presente da performance (as relações com o público e
com os acontecimentos à sua volta), permitindo que algo de novo brote na atuação.
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4 Será o pensamento final?
Não há coisa em si — previamente dada — que pensamos meramente existir, como
a música, mas o pavor simbólico dela enquanto um saber estático (inquebrável), que
julgamos infundado. Infundado porque as consequências simbólicas e intelectuais que
comumente se supõe a partir de uma lógica dominante decorrem de uma operação
classificatória. Na verdade, não decorrem dela, mas sim das “recompensas” prometidas
àqueles que se mantêm em lugar seguro. Acreditamos que esse discurso é ilusório.
Para encurtar o caminho e ser mais claro, não defendemos a classificação. Entendemo-la como uma violência epistemológica. A nossa proposta é justamente na desclassificação, uma operação capaz de fazer emergir aquilo que se encontra oculto (um
conhecimento-outro). Foi nesse sentido que tentamos refletir aqui sobre as práticas
musicais e as formas através das quais nos relacionamos com elas como performers.
Para isso, utilizamos a noção de corpo-arquivo não só como forma de pensar a aplicação do conceito no domínio da Música, mas sobretudo de perspetivar a prática da
música em si como a construção de um saber inacabado.
A areia movediça conceptual para a qual pode conduzir uma espécie de teorização
enraizada sobre corpo-arquivo é evidente naquela que, aos nossos olhos, ainda é uma
das melhores aproximações gerais ao que a música pode expressar e/ou comunicar: a
narrativa individual dos próprios músicos.
As narrativas analisadas neste artigo definem o corpo-arquivo como: o legado social que o músico adquire das suas experiências ou dos grupos dos quais faz parte;
uma forma de guardar vivências; uma espécie de comportamento apreendido e armazenado; um conjunto de saberes para, de forma consciente ou inconsciente, serem
ajustados conforme o momento da atuação; e etc. Diante dessa difusão de impressões,
mesmo a noção de corpo-arquivo um tanto comprimido e não totalmente padronizado, que seja ao menos coerente e que tenha um argumento mais ou menos definido a
propor, representa uma evolução.
O conceito de corpo-arquivo que nós defendemos é essencialmente hermenêutico.
Acreditamos que os músicos são atores sociais atrelados a redes de significados que eles
foram tecendo ao longo das suas trajetórias individuais. O corpo-arquivo são essas redes
e a sua análise. Não num sentido classificatório, com leis rígidas e significados previamente estipulados, mas como algo impreterivelmente desclassificado, a procura de sentido.
A classificação é profundamente sedutora — talvez, um mal irremediável. Aquilo
que ela quer que nos preocupemos nos torna cegos de outras realidades possíveis. Corremos perigo! O perigo de que nossa percepção crítica se conforme diante das realidades. O perigo de que nosso intelecto seja encolhido ou reduzido a uma lógica dominante, aquela mais conveniente “para mim” ou “para você” num dado momento. O perigo
de que nossas simpatias sejam restringidas pelas escolhas internalizadas e valorizadas
pela nossa sociedade, e assim por diante.
Não, esse não será um pensamento final! A análise do corpo-arquivo é (ou, pelo
menos deveria ser) um desvendar dos significados, um exame dos rastros deixados pe-
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las ações, um rascunho de conclusões explanatórias baseado nas mais plausíveis suposições e não a descoberta do “todo significado”. É uma cartografia da sua paisagem
transitória e que não cabe no corpo — embora encontre lá abrigo seguro para morar e
se reinventar —, porque é fruto de um saber inacabado.
Referências
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Entrevistas13:
OLIVEIRA, Antonio Henrique de. [Entrevista cedida a Erickinson Bezerra e Klênio
Barros] 2020. Rio de Janeiro (RJ).
MORAIS, Ricardo Félix de. [Entrevista cedida a Erickinson Bezerra e Klênio Barros]
2020. Natal (RN).
PIZZOL, Fausto Lessa Fernandes. [Entrevista cedida a Erickinson Bezerra e Klênio
Barros] 2020. Aveiro (PT).
GOMES, Elielson da Silva. [Entrevista cedida a Erickinson Bezerra e Klênio Barros] 2020.
Aveiro (PT).
PINHO, Ivo Amorim. [Entrevista cedida a Erickinson Bezerra e Klênio Barros] 2020.
Ovar (PT).
SOUSA, Iury Matias de. [Entrevista cedida a Erickinson Bezerra e Klênio Barros] 2020.
Aveiro (PT).
SILVA, Pedro Augusto da. [Entrevista cedida a Erickinson Bezerra e Klênio Barros] 2020.
Natal (RN).
BARROS, Samuel. [Entrevista cedida a Erickinson Bezerra e Klênio Barros] 2020. Aveiro
(PT).
13
Todos os respondentes do questionamento virtual permitiram a publicação e a menção de seus nomes reais no corpus desta abordagem.
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Link para acesso às respostas:
https://drive.google.com/open?id=1N2D-YY5EPMI5ZsF5smilXQOXnc7uV_kn
‘Notas de fim’
i
Eblima dedica este artigo à S. G. M. R., como forma de expressar eterna gratidão.
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10.5965/2525530405022020e0007
Propuestas pedagógicas y estéticas de El
Sistema: Un estudio de caso del SOJ
Aesthetic and pedagogical proposals of El Sistema:
A case study of SOJ
Viviana Carolina Jaramillo Alemán1
Investigadora independiente
vcarolyna@hotmail.com
Submetido em 31/05/2020
Aprovado em 22/07/2020
ORFEU, v.5, n.2, 2020
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Propuestas pedagógicas y estéticas deEl Sistema:
Un estudio de caso del SOJ
Resumen
El Sistema Nacional de Coros y Orquestas Juveniles e Infantiles de Venezuela
se ha convertido en el programa orquestal
direccionado a niños y jóvenes más reproducido a nivel mundial. Se realizó una
aproximación a este a través del Sistema
de Orquestas Juveniles e Infantiles de Jujuy (SOJ), uno de los proyectos orquestales distribuidos a nivel mundial que tiene
correspondencia con el primero. A través
de un estudio de caso se realiza un análisis del discurso oficial de ambos proyectos
orquestales y de las prácticas del SOJ observadas, reflexionando sobre el contenido de los objetivos y las alegadas rupturas
que los Sistemas proponen en el ámbito
pedagógico. Sin embargo, las propuestas
del ámbito estético no se muestran compatibles con las rupturas pedagógicas intentadas. El análisis muestra la estrecha
relación de la pedagogía con los aspectos
estéticos de los Sistemas. Finalmente se
concluye que las alegadas rupturas pedagógicas se aproximan más a la retórica y
no son consonantes con las prácticas. De
manera más amplia, además, se interpreta
la mundialización de El Sistema y sus sentidos en la construcción histórica de la orquesta sinfónica y de la educación musical.
Summary
The National System of Youth and
Children’s Orchestras and Choirs of Venezuela has become the most reproduced
worldwide orchestral program aimed at
children and youth. An approach to this
was made through the System of Youth
and Children’s Orchestras of Jujuy (SOJ),
one of the orchestral projects distributed
worldwide that corresponds to the first
one. Through a case study, an analysis is
made of the official discourse of both orchestral projects and of the SOJ practices
observed, reflecting on the content of the
objectives and the alleged breaks that the
Systems propose in the pedagogical field.
However, the proposals in the aesthetic
field are not compatible with the attempted pedagogical breaks. The analysis shows
the close relationship of pedagogy with
the aesthetic aspects of the Systems. Finally, it is concluded that the alleged pedagogical breaks are closer to rhetoric and
are not consonant with practices. Furthermore, the globalization of El Sistema and
its meanings is interpreted more broadly in
the historical construction of the symphony orchestra and musical education.
Keywords: Symphony Orchestra, El
Sistema, repertoire, musical pedagogy.
Palabras clave: Orquesta Sinfónica, El
Sistema, repertorio, pedagógica musical.
1
Graduada en música con énfasis en investigación por la Universidad Federal de la Integración Latinoamericana - UNILA. Máster e
Estudios Latinoamericanos por el Programa de Posgrado Interdisciplinar en Estudios Latinoamericanos de la misma institución. Actualmente
investigadora independiente. Actúa, principalmente, en el área de música y sociedad. Ha publicado sobre El Sistema desde las varias perspectivas
que la institución permite en su internacionalización hacia el sur del continente americano en iniciativas argentinas de las provincias de Misiones
y Jujuy.
Viviana Carolina Jaramillo Alemán
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Propuestas pedagógicas y estéticas deEl Sistema:
Un estudio de caso del SOJ
Introducción
El Sistema de Orquestas Infantiles y Juveniles de Jujuy - SOJ es un proyecto orquestal distribuido en la provincia de Jujuy – Argentina. Se fundó en el 2009 sobre la
Orquesta Juvenil de Jujuy creada en el 2000 por su hasta ahora director, Sergio Jurado.
Según el Proyecto de Ley de creación del SOJ, en el año 2015 el proyecto alcanzó 23
orquestas. El SOJ es uno de los tantos proyectos orquestales distribuidos a nivel mundial que tienen correspondencia con el famoso Sistema de Coros y Orquestas Juveniles
e Infantiles de Venezuela, más conocido como El Sistema - siendo la Orquesta Sinfónica
Simón Bolívar de Venezuela su orquesta más representativa.
El performance de las orquestas sinfónicas del SOJ divide al repertorio en dos tradiciones musicales distintas, una que se aproxima a la música de concierto con las obras
estandarizadas por El Sistema y otra que se aproxima a la música local de la cultura popular de la provincia de Jujuy que se relaciona con el mundo andino. Ambos repertorios
en ocasiones tienen pesos equitativos pero el SOJ le puede conceder predominancia a
uno o a otro. Sin embargo, el repertorio local/popular se ha tornado la marca representativa de sus orquestas. El concierto de la Orquesta Juvenil del SOJ, en el festival ‘Iguazú
en Concierto’ del año 2013 (se recomienda al lector apreciar un concierto del SOJ)2,
muestra el inesperado cambio de repertorio, con esto se observan modificaciones en la
disposición e interpretación de la orquesta. No se trata de un bis, ya que toma una gran
porción del concierto.
La correspondencia con El Sistema no se asienta en la extensión de estos proyectos orquestales. Aspectos del SOJ como la ejecución del proyecto en red, la autodenominación como “Sistema” y la trayectoria de Sergio Jurado, quien recibió capacitaciones por parte de El Sistema para gerenciar proyectos orquestales, fortalecen ese vínculo
(ALEMÁN, 2018). Lo mismo sucede con la organización discursiva de su autorretrato. El
SOJ y El Sistema muestran semejanzas narrativas cuando afirman que entre sus objetivos principales se encuentra el alcance de “excelencia” musical/académica. Además,
les otorgan importancia a sus quehaceres musicales como posibilitadores de objetivos
sociales3. Ambos proyectos, entonces, ostentan un ámbito estético y un ámbito social,
que aparentemente tienen una importancia ecuánime.
Sin embargo, si el SOJ adopta las propuestas de El Sistema a nivel discursivo ¿Cuáles son los motivos por los que hay aspectos diferentes en su performance? ¿Qué sucede en la exportación de El Sistema a otras realidades? ¿En qué ámbito y con qué objeto
se insieren las características particulares del repertorio?
Se sabe que El Sistema posee una aceptación mundial que, en gran parte, se debe
a la construcción de un poderoso discurso (BAKER, 2018). por lo que los proyectos orquestales que se asocian pueden gozar de los beneficios que esta positiva reputación
les transfiere. Dicho poderoso discurso muchas veces se asienta en el uso de lemas y
2
El siguiente link direccionará al lector al video del concierto del SOJ. Disponible en: <https://www.youtube.com/watch?v=YKlWdZo40jI>
Acceso en: 29 abr de 2020
3
Sobre estos objetivos se profundizará en el subtítulo del Sistema de Orquestas Infantiles y Juveniles de Jujuy.
Viviana Carolina Jaramillo Alemán
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Un estudio de caso del SOJ
expresiones que resuenan a través de importantes interlocutores de la música, como
directores de orquesta, músicos y líderes institucionales. Esta aceptación es también
percibida por los innúmeros reconocimientos que El Sistema ha recibido por parte, inclusive, de instituciones de alto escrutinio crítico como Harvard University, London University’s Institute of Education, New England Conservatory4, entre otros. (BAKER, 2018).
La narrativa y su construcción se torna entonces un aspecto necesario de análisis
de las propuestas de los Sistemas. Sin embargo, pese a la popularidad de este fenómeno en el campo de la música, los estudios académicos sobre El Sistema son escasos.
Aunque, en los últimos años, se proveen muestras de una descompensación entre el
discurso y la práctica (ALEMÁN, 2015), se han realizado estudios que analizan problemas pedagógicos de este Sistema orquestal (DOBSON, 2016), se ha investigado sobre
el impacto social de las artes que El Sistema propone (BAKER, 2016), e, incluso, se han
realizado estudios socio-políticos sobre esta institución (LOGAN, 2016).
Este artículo, que se insiere en esta agenda de investigación, se propone realizar
un análisis de la relación de los discursos en torno a El Sistema y al SOJ, en cuanto localizado como parte del proceso de mundialización de El Sistema, con las prácticas
estéticas y pedagógicas de ambos. En función de realizar esta propuesta se recolectaron datos oficiales, estudios académicos, artículos periodísticos, fuentes documentales,
entre otros. Sin embargo, para la ocasión del SOJ se ha realizado un trabajo de campo
en sus instalaciones dado la carencia de documentación sobre este Sistema5. Se recolectaron datos a partir de la observación participante y de entrevistas al director del SOJ,
Sergio Jurado, a personal administrativo del SOJ y a estudiantes. El análisis partirá de la
presentación de elementos del discurso oficial de El Sistema y se mostrará un pequeño
panorama de estudios académicos realizados sobre este fenómeno en los últimos años.
En la secuencia, se hará un contraste con el material obtenido en el trabajo de campo y
se analizarán los objetivos referentes a la excelencia musical propuestos por los Sistemas a la luz de los conceptos, sentidos y alcances de la orquesta sinfónica, repertorio y
enseñanza. Finalmente, reflexionando sobre el contenido de los objetivos y las alegadas
rupturas que ambos Sistemas6 proponen, de manera más amplia, se procura interpretar
la mundialización de El Sistema y sus sentidos en la construcción histórica de la orquesta sinfónica y de la educación musical.
Narrativas en torno a El Sistema
El Sistema, se ha convertido en el programa orquestal direccionado a niños/as y
jóvenes más reproducido a nivel mundial. Fundado en 1975 por José Antonio Abreu,
4
Baker resalta el apoyo de universidades, ya que al ser estas instituciones cuna del escrutinio crítico tienen mayor grado de credibilidad
en su aproximación a El Sistema.
5
El trabajo de campo tuvo lugar en Salvador de Jujuy, donde se encuentra la sede del SOJ. Durante un período de 10 días previos a la
realización de un performance en el Iguazú en Concierto, más el acompañamiento como espectadora en los conciertos del SOJ en el Festival
(mayo del 2017).
6
Se utilizará el término ‘Sistemas’ para referirse a El Sistema y al SOJ.
Viviana Carolina Jaramillo Alemán
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Un estudio de caso del SOJ
consiguió el apoyo del Estado venezolano en 1979 para desarrollar su trabajo a nivel
nacional, como sistema nacional de educación de música a niños y jóvenes del país a
través de orquestas. En la actualidad, según datos oficiales7, alcanza 1’012 077 inscritos,
posee más de 1722 orquestas y tiene presencia en más de setenta países. Esta “obra
social y cultural del Estado venezolano”8 ha conseguido diseñar, fortalecer, impulsar y
mantener internacionalmente, una retórica oficial que se sustenta en la propuesta de
‘acción social por la música’9. Retórica que es percibida como una “narrativa poderosa y
elogiosa”10 por Baker (2018), e incluso, como “un éxito sobre todo a nivel de propaganda”11 por Logan (2016).
Los mencionados autores académicos son parte de la escasa bibliografía crítica
sobre El Sistema que hace unos cinco años empezó a engrosar. Escasa considerando
que El Sistema ha venido funcionado por 45 años y que su internacionalización se dio
mayormente entre los años ‘90 y los 200012. La contribución del investigador especializado en música latinoamericana, Geoffrey Baker, a la bibliografía sobre El Sistema
suman análisis de una etnografía realizada en El Sistema durante un año entre 2010 –
2011, un libro, artículos académicos, artículos de periódico y una especie de biblioteca
virtual13 en la que se incluye bibliografía propia y de otros autores que aportan al estudio
crítico de este fenómeno.
La importancia de hacer esta referencia a la bibliografía sobre El Sistema se debe
a que existe mucha información reproductora de su “discurso oficial”14 (ALEMÁN, 2015)
al margen de la rigurosidad científica. Dichas fuentes, denominadas como discurso
apologético por Alemán (2015) y posiciones celebratorias por Wald (2016), incluyen
documentales, libros, artículos de periódicos y medios digitales, entrevistas y otros, Y,
proporcionan un panorama de análisis del vínculo de estas fuentes con el proyecto orquestal. Entre la producción complaciente al discurso oficial de El Sistema, se incluyen
producciones académicas, aunque en menor proporción.15
7
Disponible en: <https://fundamusical.org.ve/> Acceso en: 29 de abr. 2020
8
Disponible en: <https://fundamusical.org.ve/que-es-el-sistema/> Acceso en: 29 de abr. 2020
9
Uno de los mayores lemas de El Sistema que le da el nombre a uno de los programas estructurales de este: Acción Social por la Música
que objetiva: “Mejorar las condiciones de vida de los niños, niñas y adolescentes del país, especialmente de los más desfavorecidos, por medio de
la expansión eficiente y eficaz del Sistema Nacional de Orquestas y Coros Juveniles e Infantiles de Venezuela, […]” Disponible en: <https://fundamusical.org.ve/apoyobid/objetivos-y-financiamiento/> Acceso en: 29 de abr. 2020
10
En el original: “A powerful and eulogistic narrative has evolved around this state-funded scheme. [El Sistema]” (BAKER, 2019, p.1).
11
En el original: “The Sistema model of social action is a success above all at the level of propaganda.” (LOGAN, 2016, p. 58).
12
Sin embargo, existen textos críticos anteriores a esta onda, como: “A propósito del sistema nacional de orquestas juveniles e infantiles, música y políticas educacionales” del musicólogo, compositor y educador Coriún Aharonián (2004), en el que se pone en tela de duda ideas
difundidas por El Sistema, como por ejemplo, la que se refiere a la orquesta sinfónica como un espacio comunitario, pues el autor afirma que la
orquesta sinfónica se maneja bajo jerarquías, finalmente en su texto afirma que al contrario de lo expresado por El Sistema, éste refleja un trato
autoritario.
13
Para más informaciones, visite: <https://geoffbakermusic.wordpress.com/el-sistema-the-system/el-sistema-key-resources/>
14
La página web oficial de El Sistema se torna una de las fuentes más directas del discurso oficial.
15
Análisis más amplios sobre la apología y la crítica de El Sistema se pueden encontrar en (ALEMÁN, 2016) (BAKER, 2018).
Viviana Carolina Jaramillo Alemán
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Dicho discurso oficial y producciones apologéticas y/o propagandísticas que le
hacen eco se apoyan en el levantamiento de lemas como el ya mencionado: “acción
social por la música”, que se torna uno de los más representativos de su discurso oficial
que combina los dos más amplios ámbitos que se perciben en El Sistema: estético/pedagógico y social. Otro lema relevante de este proyecto orquestal es: “tocar y luchar”16
y también combina dichos aspectos, pero suele ser utilizado al referirse a los alcances
cuantitativos de El Sistema.
Sin embargo, además es posible encontrar expresiones sin el ahondamiento necesario de sus usos, procesos, metodologías, evaluaciones y/o resultados. Haciendo una
revisión de la página oficial de El Sistema17, de los libros de Borzacchini (2004, 2010)18
y de otras fuentes apologéticas fácilmente se las vislumbra. Sobre el carácter de acción
social se reúnen frases como: “reducción de la pobreza”19, “rescate de la niñez y juventud
venezolana” (MÉNDEZ, 2016, p. 47) y “recuperación de los grupos más vulnerables del
país” (BORZACCHINI, 2011, p.112, traducción nuestra); otras sobre la trasmisión valores
supuestamente intrínsecos al aprendizaje de música orquestal como: “desarrollo de una
cultura de paz” (PNUD, 2015, p. 14), “transmitir no sólo conocimientos musicales […],
sino también un conjunto de valores de solidaridad, tolerancia y respeto” (PNUD, 2015,
p. 19); y otras referentes al valor de ‘innovación’ de El Sistema, como afirma Félix Petit
cuando trata sobre la excelencia musical en el libro de Borzacchini: “Lo que funciona
aquí es el método para aprender el instrumento, que es cien por ciento innovador, ya
que rompe con los parámetros de conservatorio ortodoxo tradicional, y además de eso,
descubrimos cómo aprender el instrumento tocando y haciendo música.” (PETIT apud
BORZACCHINI, 2011, p. 153, traducción nuestra)20; además, se lo ha calificado como: “el
milagro musical venezolano” o “un proyecto orquestal revolucionario” (RATTLE, 2004)21.
La referencia de revolucionario tuvo impacto cuando el director de orquesta inglés, Simon Rattle se refirió a El Sistema con este calificativo. José Antonio Abreu pasó
a ecoar su uso y sus voceros también le dieron resonancia. Este término, al igual que
expresiones de cambio, transformación e innovación no tienen un único direccionamiento. Generalmente es usado para connotar el carácter nacionalista del proyecto
orquestal en el sentido de una ‘democratización del arte’ y el encuentro de los ámbitos
social y estético de El Sistema, como es posible observar en la manifestación de Abreu:
16
El director Alberto Arvelo usa este lema en el documental sobre El Sistema: “Tocar y luchar fenómeno de las orquestas en Venezuela”
Disponible en: <https://youtu.be/oIGUXapsI-I> Acceso en: 20 may de 2017.
17
Disponible en: <https://fundamusical.org.ve/> Acceso en: 10 may. de 2020
18
Se considera a los trabajos de la comunicadora Chefi Borzacchini, dos productos editoriales amplios sobre El Sistema, dentro del discurso apologético ya que su contenido se entrega a la propaganda de este proyecto orquestal. Sus trabajos son editados por Bancaribe, uno de los
colaborados aliados de El Sistema, por lo que no es difícil entender su condescendencia.
19
Disponible en: <https://fundamusical.org.ve/que-es-el-sistema/> Acceso en: 29 de abr. 2020.
20
En el original: What works the miracle here is the method for learning the instrument, which is one hundred percent innovative as it
breaks with the parameters of the traditional, orthodox conservatory, and besides that, we made the discovery of how to learn the instrument by
playing and making music. (PETIT apud BORZACCHINI, 2011, p. 153).
21
En: DOCUMENTAL TOCAR Y LUCHAR FENÓMENO DE LAS ORQUESTAS EN VENEZUELA. Disponible en: <https://youtu.be/oIGUXapsI-I>
Acceso en: 20 may de 2017.
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Un estudio de caso del SOJ
“Y lo importante aquí es que, si las otras formas de arte adoptaran el mismo esquema,
entonces, sin duda, el arte se convertiría en un elemento fundamental, Medios estratégicos, únicos y revolucionarios para transformar todo el país.22 (ABREU apud BORZACCHINI, 2011, p.60). Sin embargo, estas nociones de innovación y transformación
también tienen un sentido más amplio que abarca todos los ámbitos de El Sistema,
como es posible notar en la siguiente afirmación de Eduardo Méndez, director ejecutivo
de Fundamusical Bolívar23, en entrevista cuando trata sobre la internacionalización del
proyecto orquestal:
Algunos países de Latinoamérica y Europa fueron los primeros testigos de esta
transformación musical. Nuestras orquestas y coros son admirados en los países que visitan por su ímpetu y por su fuerza, y porque representan un cambio
contundente en la manera de abordar la música. […]actualmente existen experiencias inspiradas en El Sistema en más de 54 países del mundo, quienes han
comenzado a sembrar la semilla de nuestro modelo pedagógico, social y musical. (MENDEZ apud ROMERO, 2016, p. 49, grifo nuestro)
Aunque, es posible visualizar que El Sistema propone de forma más clara una ruptura pedagógica, el siguiente subtítulo del libro de Borzacchini muestra este sentido: “La
mayor revolución social y educacional de Venezuela” (BORZACCHINI, 2011, p. 106); y en
el siguiente pasaje de su libro: “[…] en su propuesta verdaderamente revolucionaria, que,
si tiene éxito, tiraría por la ventana todo lo impuesto, hasta ahora, en los conservatorios y
orquestas del país, en sus conciertos, y en sus escenarios.24” (BORZACCHINI, 2011, p. 50)
Baker (2018), en un artículo que trata sobre el fortalecimiento de la retórica de
inclusión y transformación social a través de la música popularizada por El Sistema,
desmenuza el proceso mediante el cual dicha idea y expresiones antes mencionadas se
fueron cimentando y fortaleciendo cada vez más, construyendo lo que él llama de “mito
global” de El Sistema, pues es manejado por medios nacionales e internacionales, participantes de El Sistema, público consumidor, la academia, entre otros. El autor (2018)
hace un panorama histórico de este proyecto orquestal y organiza la construcción del
“mito” en cuatro fases.
1. Creación del mito: Los medios de comunicación tienen un gran peso en esta
fase, especialmente en la época del segundo gobierno de Carlos Andrés Pérez en la que
el fundador de El Sistema, José Antonio Abreu tenía los cargos de ministro de cultura y
presidente del Consejo Nacional de Cultura, pues tenía una poderosa posición con respecto a la prensa (1989-1994). Baker (2018) hace un paneo de esta época y expone la
importancia de la figura de Abreu que, entonces, logró tornar favorables las opiniones
de los periodistas críticos de su trabajo. Además, fue en este período que Baker (2018)
localiza una transformación en el discurso que anteriormente, no incluía la acción social:
22
En el original: “And what’s important here is that, if the other art forms were to adopt the same scheme, then, undoubtedly, art would
become a fundamental, strategic, unique and revolutionary means of transforming the entire country.” (ABREU apud BORZACCHINI, 2011, p.60).
23
Órgano rector de El Sistema.
24
En el original: […] in his truly revolutionary proposal, which, if successful, would throw out the window everything imposed, thus far, in
the country’s conservatories and orchestras, at its concerts, and on its stages. (BORZACCHINI, 2011, p.50).
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El “giro social” discursivo de El Sistema a mediados de la década de 1990 fue una
respuesta táctica a los desarrollos económicos y políticos en Venezuela y parte
de una estrategia para buscar nuevas fuentes de financiamiento. (BAKER, 2018,
p. 167, traducción nuestra)
De esta forma, El Sistema manejaría el mismo lenguaje que la ideología política a
implementar por el entonces nuevo presidente Hugo Chávez (BAKER, 2016). Así, se dio
una priorización de lo social sobre lo musical. Sin embargo, en el análisis de los reportes del BID25 de 1997 (BAKER; FREGA, 2016)26 se determina que las evidencias prácticas
de la acción social son cuestionables en varios niveles. A modo de ejemplo, a través de
fuentes documentales y entrevistas anónimas a participantes y exparticipantes de El Sistema realizados por Baker en entre 2010 y 2011 se conoció que la mayor parte de presupuesto de El Sistema es destinado a sus orquestas centrales, como lo es la Orquesta
Sinfónica Juvenil Simón Bolívar de Venezuela, mientras que orquestas de provincias son
postergadas (BAKER, 2016).
2. Diseminando el mito: “El debut de la Orquesta Sinfónica Juvenil Simón Bolívar
de Venezuela en los “Proms” de Londres en 2007. […] fue el catalizador principal para
la aparición de El Sistema como un fenómeno global” (BAKER, 2018, p. 169, traducción
nuestra). Con este evento se suscitó el interés de los medios internacionales que se dejaron cautivar por la apariencia y por la propaganda, cayendo en el error de no corroborar el discurso con la práctica, aun cuando tenían la oportunidad de visitar Venezuela27
(BAKER, 2018). A esta altura de la diseminación del ‘mito’, El Sistema ya contaba con el
apoyo de figuras públicas y de peso del mundo de la música clásica, de instituciones
de educación musical y de educación superior reconocidas mundialmente y de medios
de comunicación nacionales e internacionales. Con el fortalecimiento de la narrativa
de El Sistema, Baker (2018) nota un sentido de conveniencia en algunos locutores; por
ejemplo, en la industria de la música clásica que, con propuestas como la de El Sistema,
vio una oportunidad de volver a llenar salas de conciertos y atraer nuevas audiencias
en un momento en el que la música clásica se estaba ultrapasando; bien lo expresa Sue
Knussen (2013), en los años ‘80 y ’90, estrategias para renovar a la orquesta sinfónica
se intensificaron en las orquestas profesionales de US y UK, en estos años la mayoría de
orquestas de estos países fundaron departamentos de educación con el avistamiento
de futuras nuevas audiencias.
3. Consolidando el mito: Baker (2018) nota una gran dificultad en la creación de
un contra discurso de El Sistema. Y, probablemente sea por el peso de las manifestaciones de apoyo al proyecto orquestal que el BID haya insistido en confirmar el “impacto
positivo de El Sistema” (BAKER, 2018), pese a toda la evidencia de la vaguedad de esta
25
Banco Interamericano de Desarrollo, principal financiador de El Sistema después del Estado venezolano.
26
Los reportes del BID contenían cuatro evaluaciones externas sobre las gestiones de El Sistema. Este fue mantenido en sigilo para Baker
hasta el 2016. Sin embargo, el reporte no es de dominio público. Es parte del acervo personal de Ana Lucía Frega, educadora musical que también
fue consultora del BID para evaluar una solicitud de crédito de El Sistema en el año 1996 (BAKER; FREGA, 2016).
27
Sin embargo, el investigador (2018) los excusa en cierto grado, ya que considera que El Sistema posee “una operación de relaciones
públicas bien preparada y bien financiada [,] más característica de una corporación multinacional que un programa de educación musical.” (BAKER,
2018, p. 169, traducción nuestra).
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proposición. Sus informes no han detallado el proceso y/o resultados de la inclusión
social, de la trasmisión de valores supuestamente intrínsecos al aprendizaje de música
orquestal, ni del valor ‘innovador’ del método educativo. Estos estudios, se han limitado
a difundir datos cuantitativos referente a la cantidad de participantes organizados por el
nivel socioeconómico; sin embargo, los datos no están dilucidados28 (ALEMÁN, 2018).
La importancia de los reportes del BID se debe a que estos servirían como respaldo para
que el banco se torne el principal financiador de El Sistema, a través de la realización
de un préstamo en dos fases de 8 y 150 millones de dólares, los cuales se tornaron decisivos en la consolidación de El Sistema (BAKER; FREGA, 2016). Así mismo, el respaldo
del Programa de las Naciones Unidas para el Desarrollo – PNUD, otra institución internacional, favorece al fortalecimiento del discurso propagado por El Sistema mediante
investigaciones favorecedoras. El PNUD contribuye en la gestión de El Sistema por más
de 18 años y, entre abril y agosto del 2015, realizó una investigación en las diferentes
reparticiones de El Sistema en Venezuela. Sin embargo, el estudio se realizó en conjunto
con delegados de El Sistema. Como resultado se elaboró el “Cuaderno de Desarrollo
Humano” denominado: “Prácticas Ejemplares en Inclusión Social y Cultura de Paz del
Sistema Nacional de Orquestas y Coros Juveniles e Infantiles de Venezuela” (PNUD,
2015). Su propio título anuncia una elogiosa defensa.
4. Finalmente, persistencia del mito: En esta fase, los medios de comunicación
también juegan un papel importante, así como la cada vez más dilatada apología, pues
a pesar del surgimiento de la crítica académica y de las evidencias de que El Sistema no
practica su discurso, principal y preocupantemente, en lo referente a la direccionalidad
de sus recursos a los más pobres, los medios de comunicación han contrariado dichas
evidencias en el intento de encubrirlas (BAKER, 2018). Se ha velado, incluso, la posición
política de sus principales representantes que, después de la muerte de Hugo Chávez
en el año 2013 y la crisis económica – política por la que atraviesa Venezuela desde ese
mismo año se mantuvieron neutrales. Neutralidad que ha sido fuertemente criticada
por varios sectores sociales.
En el anterior panorama, la consolidación de este discurso va tomando peso con
la conformación de la apología a la que se le suman influyentes figuras, lo que permite
entender su rápida y amplia aceptación a nivel mundial. No obstante, el discurso de El
Sistema se muestra problemático en su tendencia a reproducir nociones comúnmente
admitidas en el campo de la música pero que no han sido necesariamente verificadas
metodológicamente. Se tornan aún más peligrosas las propuestas de innovación/transformación/revolución de El Sistema, ya que van más allá de lemas y expresiones, y en el
caso de la pedagogía, por ejemplo, proponen una ruptura clara de la educación tradicional conservatorial.
28
Los reportes del BID son problemáticos. Baker (2016; 2018) manifiesta que en el año 1996 se realizaron dos evaluaciones externas que
no reflejaban análisis críticos de El Sistema, por lo que se realizaron en 1997 nuevamente dos evaluaciones externas que sí mostraron problemas
graves en el funcionamiento del proyecto orquestal. Sin embargo, el BID decidió publicar las primeras y seguir adelante con el préstamo a El Sistema.
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Un estudio de caso del SOJ
Sistema de Orquestas Infantiles y Juveniles de Jujuy
En su expansión mundial, la propuesta de El Sistema fue acogida por Argentina,
tanto desde iniciativas privadas como desde iniciativas del gobierno nacional y de gobiernos provinciales. Sin embargo, apenas dos proyectos orquestales formalizaron las
relaciones con El Sistema: El Sistema de Orquestas Infantiles y Juveniles de Argentina,
conocido como SOIJAr y el Sistema de Orquestas Infantiles y Juveniles de Jujuy, conocido como SOJ29. Tanto, el SOIJAr como el SOJ existían como proyectos orquestales
antes de su transformación en Sistemas30. El SOIJAr se presenta como El Sistema ‘nacional/oficial’ de Argentina, mientras que del SOJ, como fue mencionado en la introducción de este escrito, aunque no se encontró evidencia documental de una relación
oficial con El Sistema, posee aspectos que confirman este vínculo. Sin embargo, cuando
se trata del ámbito de inclusión social El Sistema y el SOJ no presentan consonancia.
Mientras El Sistema propone: “[…] una metodología segura para salvar y rescatar a
millones de niños, niñas y jóvenes en todo el mundo. Salvarlos y rescatarlos de las perversidades del ocio, las drogas, la apatía, la criminalidad, entre otros males de nuestras
sociedades contemporáneas.” (ABREU apud PNUD, 2015, p.8), el SOJ no muestra ninguna evidencia de objetivar inclusión social. Inclusive, el ámbito social del SOJ resulta
incierto. En entrevista, Jurado manifiesta: “el objetivo principal del proyecto orquestal
es la excelencia académica y también queremos que los chicos se diviertan, generar
buenas personas, inculcar valores a los chicos.”31 En esta manifestación se vislumbra
una matización de que podría existir algún interés social, pero no del tipo de inclusión.
La secretaria del SOJ desde hacía aproximadamente 5 años, Fabiana Isabel Flores, ratificó que el SOJ no persigue objetivos sociales. Sin embargo, cuando el SOJ es presentado en televisión, en festivales y en algunos conciertos, esta característica viene
a tono. En el año 2015, por ejemplo, Sergio Jurado participó en el concurso televisivo
“Abanderados de la Argentina Solidaria” representando al proyecto social del SOJ, el
cual fue presentado en la página web de Abanderados, como un proyecto con el objetivo de: “brindar una educación artístico-musical de excelencia, y ser un espacio de
contención e inclusión social de niños, adolescentes y jóvenes.”32. Ya en el proyecto de
Ley para la creación del SOJ se manifiesta que este se insiere en el “contexto global de
una política de participación, integración, prevención y capacitación.” Y uno de sus objetivos es: “Desarrollar acciones tendientes a fortalecer el Sistema, como instrumento
para la promoción de valores tales como el arraigo, la contención social, la integración,
el crecimiento espiritual”.
29
Los mismos llegaron a ser un sólo Sistema de Orquestas. Sin embargo, existió una separación que los dejó independientes. Según
Sergio Jurado (2017), director del Sistema de Orquestas Infantiles y Juveniles de Jujuy, “existieron diferencias de intereses” entre los representantes de los proyectos orquestales, lo que imposibilitó también la inclusión de las redes de orquestas que existen en las veinticuatro provincias
argentinas.
30
La Orquesta – Escuela de Chascomús fundada en 1998 se transforma en el SOIJAr en el año 2004 (ALEMÁN, 2015). Por su vez, la
Orquesta Infantojuvenil de Jujuy fundada en el año 2000, pasa a ser el SOJ en el año 2009.
31
JURADO, S. Sergio Jurado: depoimento [may. 2017]. Entrevistadora: Viviana C. J. Alemán. Jujuy, 2017
32
Disponible en: <http://www.premioabanderados.com.ar/abanderado/93> Acceso en: 20 jun de 2020.
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Un estudio de caso del SOJ
Los sentidos sociales del SOJ que resultan intercambiables muestran un intento
de comunicación entre sus objetivos con los de El Sistema, que le otorga a la inclusión
social un nivel de importancia igualable al del objetivo estético de alcanzar la excelencia
musical. Desde lo que Baker (2018) llama de ‘creación del mito’ el aspecto de inclusión
social de El Sistema se fortaleció con ayuda los medios de comunicación y voceros apologéticos que resaltaron este tema. Sin embargo, es importante aclarar que, al igual que
sucede con El Sistema, la búsqueda de financiamiento tiene incidencia en la adopción
de retóricas sociales. (ALEMÁN, 2015), (BAKER, 2016).
Así, ambos proyectos orquestales convergen, a nivel discursivo, en la combinación
entre un ámbito estético (que presenta a la música como un objeto artístico de apreciación) y una función extra – musical (que coloca a la música como un instrumento para
alcanzar objetivos sociales). Sin embargo, la alegada ruptura pedagógica y transformación musical en un sentido más amplio de El Sistema suponen cuestiones que parten de
la consideración del mayor objetivo del ámbito estético de sus programas: alcanzar la
excelencia musical. Desde la observación más superficial de El Sistema y del SOJ, para
expresarse musicalmente se opta por la orquesta sinfónica, uno de los productos más
ortodoxos de la música europea que se ha conservado durante siglos, además, los Sistemas dan tratamiento al repertorio del canon33 de la música europea. En este sentido
¿Cuáles son las incidencias de transformaciones propuestas por El Sistema en el dispositivo, orquesta sinfónica, y repertorio con el que se expresan? Y por su vez, ¿Cuáles son
las incidencias de la orquesta sinfónica y del repertorio seleccionado en las transformaciones propuestas por El Sistema?
A continuación, se confrontarán a los objetivos del ámbito estético, sobre alcanzar
la excelencia académica y transformar la pedagogía, presentes en los discursos oficial y
apologético de los Sistemas con lo observado en la aplicación del estudio de campo y
el material documental y bibliográfico de los programas. La aplicación de la propuesta
de El Sistema por el SOJ es interesante porque presenta un contenido particular desde
el punto de vista del repertorio34 y del dispositivo de expresión musical.
Educación en los Sistemas
Como manifestado anteriormente, en el subtítulo ‘Narrativas en torno a El Sistema’, las nociones de innovación/revolución/transformación vehiculadas en sus discursos oficiales y posiciones apologéticas es amplia, como es el caso del siguiente ejemplo
que José Antonio Abreu proporciona:
Hacia finales del siglo XVIII, Europa dio un salto con la revolución industrial que creó
y catapultó a grandes potencias del mundo moderno. Ahora es nuestra vez para
encender una gran revolución humanística y creativa a través del arte en América
Latina y el Caribe, en todo el mundo. Podemos hacer Ese gran cambio. Aquí está
33
En la historia de la música existían obras exitosas, es decir, con respuestas favorables del público, sobre las cuales la historiografía de
la música se construye y, a la vez, se reafirma, construyendo así el canon (DAHLHAUS, 1997).
34
Antes de iniciar con la exposición del SOJ, es recomendable haber observado un performance de una de sus orquestas.
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nuestra experiencia y nuestra voluntad de alcanzar la paz a través de la música.
(ABREU apud BORZACCHINI, 2011, p.63, traducción nuestra, grifo nuestro)35
No se encontró documentación, que respalde las aplicaciones de dicha “revolución humanística y creativa”. Así tampoco mayor profundidad de sus alcances. No obstante, cuando se trata de la pedagogía de los Sistemas, esta noción suele denotar una
propuesta más objetiva. Se vislumbra que la noción de innovación va de la mano del
término ‘integral’ y/o del término ‘humanístico o humanista’. El informe del PNUD provee un ejemplo de ello: “se rescatan las percepciones sobre el enfoque de educación
integral y humanista que impulsa El Sistema […]” (PNUD, 2015); otro ejemplo se da en la
manifestación sobre el enfoque integral de la pedagogía de El Sistema del Director de
Formación y Desarrollo de Fundamusical Bolívar, Andrés González:
La piedra angular del modelo pedagógico es el enfoque integral del proceso de
enseñanza, con el apoyo de maestros formados en la metodología de El Sistema,
centrada en la práctica colectiva de la música y orientada al logro de resultados, metas, reconocimiento y desarrollo creativo de niñas, niños y jóvenes. En
el marco de dicho proceso destacan los elementos clave de la autoestima, la interacción continua en la producción de conciertos, el seguimiento permanente
de maestros y directores, la práctica virtuosa del instrumento y la búsqueda de la
excelencia que, al conjugarse, generan un entorno excepcional para el aprendizaje colectivo diario. (GONZÁLEZ apud PNUD, 2015, p. 33, grifo nuestro)
González, además de mencionar un enforque “integral”, afirma la existencia de una
metodología de El Sistema que no se encuentra detallada en los medios oficiales, pero
de la que se encontraron algunas propuestas. Así, los Sistemas, efectivamente, proponen
innovaciones pedagógicas. La noción de “educación musical integral” utilizada por El
Sistema, se refiere a la trasmisión de valores y, de alguna forma, a una enseñanza lúdica,
es decir da prioridad a la figura del estudiante. Sin embargo, esta noción no es novedosa
pues no surge con la iniciativa de El Sistema. A partir de los años 30 del siglo XX, se crea
un movimiento de nuevos modelos de educación musical que se reconocieron en las
tendencias de las transformaciones de la educación general escolar de finales del siglo
XIX que, a su vez, se dieron en respuesta a la priorización del objeto de conocimiento
sobre el sujeto, el estudiante. (GAINZA, 2003). Se trata de los “métodos activos” o “métodos nuevos” que “proponían motivar y movilizar, de diversas maneras, al educando”
(GAINZA, 2003), siendo Émile Jaques-Dalcroze (1865-1950) la figura pionera de éstos.
Los Sistemas que discursan sobre la importancia de la educación integral/humanística
no dan sustento de los métodos para lograr esta propuesta y tampoco se comunican
con modelos educativos no tradicionales que tengan estos mismos objetivos.
Por otra parte, El Sistema muestra una inconformidad con la pedagogía del conservatorio, como es posible notar a continuación: “[…] transformar el concepto de con-
35
En el original: “Towards the end of the 18th century, Europe took a leap with the industrial revolution that created and catapulted forward the great powers of the modern world. Now it’s our turn to ignite a great humanistic and creative revolution through art in Latin America and
the Caribbean, in the entire world. We can make that great change. Here are our experience and our will to achieve peace through music’. (ABREU
apud BORZACCHINI, 2011, p.63).
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servatorio, no solo desde un punto de vista teórico y organizativo, sino también en relación con su misión y función.36” (BORZACCHINI, 2011, p. 244, traducción nuestra)37. Sin
embargo, los Sistemas termina acercándose al modelo de educación criticado.
Según Jurado, el repertorio canónico posibilita la organización de la metodología
de enseñanza musical que El Sistema recomienda. A esto los Sistemas denominan “Secuencial Repertorial” es una especie de método de enseñanza que clasifica al repertorio
académico según las dificultades técnicas que ofrecen, para atender las necesidades y
objetivos de las orquestas. Tanto el SOJ como El Sistema justifican la elección de su repertorio europeo a causa del método educativo. Argumento bastante próximo al de los
conservatorios de música que han institucionalizado este repertorio (MUSUMECI, 1998).
Se observaron clases, talleres parciales, ensayos generales y presentaciones de la
orquesta juvenil del SOJ en el intento de entender la forma de enseñanza. En las clases
(que son generalmente grupales), talleres y ensayos generales, ocurren procesos de
imitación al profesor, corrección de la precisión en el instrumento y automatización de
pasajes musicales; tal como Verhagen, Panigada y Morales (2016) manifiestan que funciona la metodología del Secuencial Repertorial en El Sistema. Sin embargo, el modelo
conservatorial, según Musumeci (1998) ha venido manteniendo dichas características
desde el siglo XIX. Tanto la imitación como la repetición de fragmentos musicales para
internalizarlos tienen una perspectiva mecanicista “orientada tradicionalmente a la reproducción de modelos de ejecución paradigmáticos” (MUSUMECI, 1998, p. 148).
Otra característica de la enseñanza que acerca a los Sistemas al modelo conservatorial es la importancia que se le atribuye a la lecto-escritura en función de la optimización técnica del instrumento (KINGSBURY, 1998). Jurado (2017) expresa que es en
este sentido que funciona la comunicación entre las materias impartidas en el SOJ: “los
participantes del SOJ reciben clases de instrumento, pero también de lecto-escritura38
para un mejor dominio del instrumento”39
Tal es el papel central de la técnica instrumental en los Sistemas que la búsqueda de la excelencia musical se promueve como uno de los objetivos principales. Este
está ligado a la elección y reproducción del canon de la música orquestal occidental,
conservando y legitimando obras musicales específicas que se suman a la exaltación
de estos repertorios. Lo que conlleva a que, así como en el conservatorio, los Sistemas
se orientan principalmente a la formación de lo que denomina Musumeci (1998) como
“virtuoso solista” o “talentoso” como lo llama Kingsbury (1998).
El Grove’s Dictionary Of Music and Musicians define al virtuoso como un performer habilidoso con la capacidad de perfeccionar sus habilidades técnicas y expresivas
a punto de distinguirse por ello en el medio musical de su época. En la historia de la
música erudita músicos como Paganini y Liszt fueron reconocidos como virtuosos del
36
En el original: “[…] transforming the concept of the conservatory, not only from the theoretical and organizational viewpoints, but also
with regard to its mission and function.” (BORZACCHINI, 2011, p. 244)
37
Más ejemplos de esta noción se encuentran en el subtítulo anterior sobre las narrativas en torno a El Sistema.
38
En el tiempo de la realización de trabajo de campo no se participó en clases de solfeo.
39
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Un estudio de caso del SOJ
violín y el piano, respectivamente (GROVE, 1980). “El virtuosismo se mantiene como un
valor presente en el campo de la música, lo que conlleva a la certeza de que un músico
de alto nivel tendría como meta ser un virtuoso.” (ALEMÁN, 2018). Según Alemán (2018),
los destacados músicos de El Sistema que han recibido reconocimiento a nivel mundial,
por ejemplo, son considerados virtuosos de nuestro tiempo, pues son performers con
técnicas impecables.
Si por un lado no se observó la innovación alegada con los elementos que aproxima a los Sistemas a la metodología de educación del conservatorio, por otro, se observó
novedad en la trasmisión de una metodología conservatorial a través de: “aprendizaje
grupal” y “enseñanza - aprendizaje en cascada”. Para la efectividad de estas, es necesaria
la organización de los estudiantes por edades y niveles de técnica instrumental. El caso
del SOJ ilustra la novedad del aprendizaje grupal. Jurado (2017)40 manifiesta que, para
que la educación grupal funcionase, en el 200941 tuvo que reorganizar al naciente SOJ.
Se dividió a los participantes por edades. Después de esta división se realizó una clasificación por niveles, quedando una orquesta infantil y otra juvenil. Por su vez, la enseñanza
– aprendizaje en cascada propuesta por los Sistemas funciona cuando se les brinda la
oportunidad a los estudiantes más avanzados de enseñar a los estudiantes menos avanzados, promoviendo la formación de los docentes de los Sistemas en la práctica.
Los Sistemas, cuando se trata de métodos de enseñanza, pone en práctica: al
aprendizaje grupal, probablemente circunstancial de la enseñanza dentro de orquestas
sinfónicas; y a la enseñanza en cascada, también circunstancial y estratégica, considerando que el Sistema es un programa de alcance nacional en el que la cantidad de
participantes no sería abastecido por profesores externos, por lo que la idea de creación
de un sistema de enseñanza-aprendizaje circular dentro de El Sistema resuelve la necesidad de contratar profesores externos. Que estos métodos sean circunstanciales no
desmerece las transformaciones. Sin embargo, el discurso afirma rupturas pedagógicas
en cuanto al modelo de enseñanza tradicional que en la práctica no suceden. Por lo que
es cuestionable la pertinencia en otorgarle el sentido de innovador a este aspecto.
Los objetivos de innovación pedagógica propuestas por el Sistema tendrían incidencia en el objetivo de alcanzar excelencia musical, así como en otros elementos del
ámbito estético. Y estos, a su vez, tendrían incidencia en la pedagogía de El Sistema. Por
esto, la profundización del ámbito estético de los Sistemas ayuda en la compresión de
las elecciones pedagógicas de El Sistema.
Orquesta sinfónica moderna y repertorio canónico
La valorización de las prácticas sinfónicas de la tradición de la música europea
presente en los Sistemas tiende, al contrario de alejarlos del modelo de enseñanza conservatorial, reforzar una proximidad al conservatorio, puesto que este tiene objetivos
40
JURADO, S. Sergio Jurado: depoimento [may. 2017]. Entrevistadora: Viviana C. J. Alemán. Jujuy, 2017
41
Fecha en la que la Orquesta Juvenil de Jujuy pasa a ser parte del Sistema de orquestras de Jujuy.
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consonantes con la orquesta sinfónica referentes a la preservación del repertorio canónico de la música europea. Desde la institución de la orquesta sinfónica moderna,
esta se conserva con un repertorio estático que contribuye a la idea de ‘museo vivo’. La
conservación de estas prácticas adoptadas por El Sistema ha generado críticas por parte
de Aharonián (2004), Baker (2016, 2018), Bull (2016).
La historia de la orquesta sinfónica data de finales del siglo XVIII e inicios del siglo
XIX. Sin embargo, en el siglo XVII este dispositivo musical ya mostraba su incipiente
forma, como un cuerpo de instrumentistas estrechamente ligado a la música operística
(CARTER; LEVI, 2003). Según Carter y Levi (2003) la historiografía de la orquesta tiene
resistencia en aceptar este dato, en el intento de desvincularse de la ópera que se observó negativamente por ser una música de carácter comercial. (CARTER; LEVI, 2003).
Carter y Levi (2003) consideran al año de 1800 como un abridor de aguas en la
historia de la orquesta sinfónica, pues los procesos de transformación que sufrió a partir
de esta fecha, conformaron los elementos que se conservan hasta la actualidad.
Con todo, a comienzos de los 1670 el término ‘orquesta’ como un cuerpo de instrumentistas fue usado en Italia y Francia, ya en Alemania e Inglaterra a inicios del siglo
consecutivo y, para mediados del siglo XVIII, ya existían numerosas orquestas en Europa
y se popularizaban cada vez más. Las orquestas antes de 1800 eran ensambles privados,
pertenecientes a un patrón noble, a iglesias o a teatros. No obstante, a finales del siglo XVIII empezaban a independizarse formando su propia corporación (CARTER; LEVI,
2003). Debido a esto, formas de escrita pudieron ser desarrolladas como el concierto y
la sinfonía42
Después de 1800, la orquesta, que pasó del ámbito privado al ámbito público, se
amplió con la adición de vientos madera, vientos metal y percusión. Así también, la
figura del director de orquesta se fue constituyendo. El director pasó de ser un instrumentista (herencia de la orquesta barroca, que sobrevivió al clasicismo), generalmente
el tecladista del bajo continuo, a que tomen este cargo los propios compositores de las
obras y finalmente llegó al intérprete de las obras, quien poseía autonomía para mostrar
su virtuosismo a través de la orquesta. (CARTER; LEVI, 2003).
En el siglo XIX, la orquesta sinfónica pasó por un proceso de estandarización en
la mayoría de orquestas europeas, debido a la mayor circulación de repertorios. Estos
giraban en torno a valores idealistas que priorizaban las obras clásicas. El primer repertorio orquestal organizado con dichas obras se consolidó a finales de 1820 con el
Conciert Spirituel (serie de conciertos vienesa). (WEBER, 1999). En la misma época, la
Philharmonic Society de Londres (1813) y la Gesellschaft der Musikfreunde (Sociedad de
Amigos de la Música) de Viena (1814) establecieron un conjunto de principios también
en torno de los clásicos. En este punto, las orquestas mayores e independientes como,
por ejemplo, la Boston Symphony Orchestra (1881) y la Berlin Philharmonic Orchestra
(1882) eran tomadas como modelos. Con estos modelos se estandarizaron aspectos
como el tamaño, el repertorio y en donde performaba: grandes centros musicales y
42
Mozart y Haydn marcaron con sus obras el momento en el que la sinfonía se convierte en un “alto arte”.
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salas de concierto. Los instrumentos musicales también se acondicionaron a las necesidades de la orquesta moderna (CARTER; LEVI, 2003).
Así, la orquesta sinfónica se consolida en Europa respondiendo a necesidades del
orden artístico. Sin embargo, el panorama cambia cuando, a mediados del siglo XIX, se
la exporta a América. Migrantes europeos fundaron, por ejemplo, la New York Philharmonic Society en 1842 y la Boston Synphony Orchestra en 1881. Carter y Levi (2003)
observan que la implementación de orquetas fuera de Europa posee una función civilizatoria a las poblaciones colonizadas: “la creación de una nueva orquesta se convierte
en materia de orgullo cívico e, inclusive, obligación. Es un caso no solo de demostración
de las artes, pero es también de la noción de que artes sirven para una función civilizatoria.” (CARTER; LEVI, 2003, p. 8, traducción nuestra). De hecho, el carácter civilizatorio
de la música viene desde la época de la colonia cuando los maestros de capilla evangelizaban a través de la enseñanza de música a los nativos (MONROY, 2006).
Como replicador de El Sistema, el SOJ, que para el año 2016 contaba con veintitrés
orquestas en cuatro localidades dentro de la provincia de Jujuy: San Salvador de Jujuy,
Purmamarca, Maimara y Palpala43, también adopta a la orqueta sinfónica y sus prácticas
para su expresión musical, por lo menos eso es mostrado en la primera parte del programa de concierto de la Orquesta Juvenil del SOJ. En este segmento se considera dicha
tradición musical que obedece al canon de la música occidental y que El Sistema adopta.
Con respecto a esta tradición, Jurado (2017) expresa la dificultad que sufrió cuando introdujo a la orquesta sinfónica en Jujuy, una provincia del interior de Argentina
que hasta antes de la fundación de la Orquesta Juvenil de Jujuy (en el año 2000) no se
sabía de es este cuerpo musical. Jurado entonces tuvo que insistir ante la recepción
desconfiada de la población: “fue muy resistido […] porque la gente es muy arraigada a
sus raíces. Nos decían ¿Para qué? ¿Con qué necesidad plantear estos instrumentos acá?
[…] Esos instrumentos de [orquesta] no eran aceptados.”44 Indagada sobre esta cuestión,
una estudiante del SOJ, Adriana Santos, realizó la siguiente reflexión sobre los instrumentos relacionados a la cultura tradicional:
vas a […] Tilcara, vas a Pucamarca, todo mundo sabe tocar los instrumentos,
sabe tocar charango, entonces es algo natural. Lo mismo sucede con la anata.
La anata es un instrumento que, en realidad, digamos, no necesita preparación
para tocar, me refiero a una preparación académica, si no que cualquiera lo puede hacer. Aquí la anata es un instrumento que se utiliza en los carnavales […] y
en cada comparsa acá tienen su grupo de anateros pero no necesariamente son
músicos, sabes, son gente del lugar que tienen trabajo, que tienen carrera… tocan simplemente por tocar.45
43
Sin embargo, “en el año 2017 se administran únicamente la orquesta infantil y la orquesta juvenil del SOJ. Esta última es también denominada como el Sistema de Orquestas Infantiles y Juveniles de Jujuy, es decir, hay una difuminación en lo que se refiere a la institución, la escuela
de música y la orquesta más representativa del sistema en sí” (ALEMÁN, 2018). Aunque, mantienen contacto con por lo menos la mitad de las
orquestas que pertenecían al SOJ. En este trabajo se referirá a la orquesta principal del SOJ como Orquesta Juvenil del SOJ para evitar confusiones.
44
JURADO, S. Sergio Jurado: depoimento [may. 2017]. Entrevistadora: Viviana C. J. Alemán. Jujuy, 2017.
45
SANTOS, A. Sergio Jurado: depoimento [may. 2017]. Entrevistadora: Viviana C. J. Alemán. Jujuy, 2017. (Nombre ficticio).
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La desconfianza provocada en la población puede partir de la valorización de la
cultura popular local que convive con la música de una manera más modesta, pero también podría partir del miedo a lo diferente, la relación de los jujeños con los instrumentos de la cultura popular local es bastante próxima y cotidiana, diferente del rito formal
que la música de concierto guarda.
Baker manifiesta que la orquesta sinfónica: “no es más que un modelo, y uno colonial, que fija a la música europea […] y sus procesos pedagógicos como los más elevados en la jerarquía, sobre expresiones musicales […] de tantas otras tradiciones ricas”
(BAKER. 2016, p. 12, traducción nuestra). Por su vez, el musicólogo, compositor y educador uruguayo Coriún Aharonián acusa de anacrónico al uso del repertorio adoptado
por las orquestas de El Sistema, debido a la manutención de repertorio de siglos pasados y que no se da la oportunidad de estudio a repertorios contemporáneos.
Con el panorama de la orquesta sinfónica fue posible observar que esta dio predominancia al canon de la música de concierto de los siglos XVIII y XIX. En ambos Sistemas es
posible observar una supervaloración de la orquesta y del repertorio consagrado por ella,
pues les confiere un status basado en la valorización de la cultura europea. Entonces ¿Por
qué el SOJ, que aprecia la música local, se aleja tanto de ella en la elección de la orquesta sinfónica? Cabe destacar que ambos Sistemas, pese a fundar otro tipo de ensambles
instrumentales y corales, a estos no se les otorga la misma relevancia que a las orquestas.
Existe una noción común de Carter y Levi (2013), Baker (2018) y Aharonián (2014) de que
las instituciones musicales que valorizan prácticas vinculadas a la música de concierto
pueden transmitir valores civilizatorios, así como mantener estructuras coloniales.
La conservación de instituciones como el conservatorio y la orquesta sinfónica
es fundamental en la manutención del repertorio canónico de la música europea. Los
Sistemas se suman a esta conservación y aunque podrían realizar rupturas pedagógicas
moderadas en relación a la educación musical tradicional, con lo objetivos de excelencia musical y la priorización de la orquesta sinfónica y del repertorio canónico no son
compatibles los sentidos de integralidad y educación humanista por ellas propuesta.
Características particulares en el repertorio del SOJ
Como es perceptible en el performance del SOJ, este se divide en una primera
parte que respeta a la tradición canónica de la música europea y una segunda parte que
respeta a una tradición musical de cultura popular local. El texto y el contexto de la orquesta sinfónica sufre una grande transformación cuando esta segunda parte entra en
escena. Aquí es posible encontrar un aspecto notoriamente innovador, pues, el cambio
de repertorio produce modificaciones en el programa de concierto, en la conformación
instrumental de la orquesta y en lo que conlleva a la preparación de estos repertorios.
Alemán (2018) proporciona el programa de concierto del SOJ del Festival Iguazú
en Concierto del año 2017: “1) Sinfonía No4 (IV movimiento) de P. I. Tchaikovsky, 2)
Anata de Miraflores de Raúl Olarte, 3) una selección de carnavalitos y, por último 4) Sicus de Sacatripa.” (ALEMÁN, 2018, p. 94). Jurado (2017) argumenta que la innovación
de fusionar estas tradiciones musicales se debe al esfuerzo por “encontrar el detalle, lo
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que estaba prohibido”46, con esto, es posible vislumbrar la rigidez de las instituciones de
conservación. En el año 2015 se presenta el proyecto de ley de creación del SOJ y manifiesta que el uso del repertorio de la cultura local objetiva: “buscar permanentemente
promover y consolidar el sentido de identidad y pertenencia cultural” de los participantes y del público (NOCETI, 2014, p. 5). Jurado y algunos estudiantes del SOJ manifiestan
que la diferencia en el repertorio se debió también al “gusto” por esta música tanto del
director, estudiantes y el público local.
“El sentido de buena aceptación del público” y “la construcción y consolidación de
un sentido de identidad-pertenencia” (ALEMÁN, 2018, p. 92) son los dos amplios motivadores de la inclusión del repertorio de la cultura popular local al programa de concierto del SOJ. Se observó a través de entrevistas a los participantes que declaraban el
‘gusto’ por el performance del repertorio local, que está vinculado a la memoria afectiva
de los participantes. En la transición del primer tipo de repertorio al segundo los músicos, incluso, cambian su postura que venía inexpresiva (de un ambiente más formal) a
una más relajada.
La música de la cultura local que el SOJ interpreta, pertenece a la tradición andina,
pero a la que en los años 1950 logró amplia difusión en Argentina por la industria musical. En estos años, grupos musicales de folclor argentinos viajaron a Europa y a otros
países de América, y grupos de Chile y de Bolivia pasaron a imitar la interpretación argentina de la música andina. Se estandarizaron así, las formaciones instrumentales, formas musicales y hasta elementos de la indumentaria (como la utilización de ponchos).
(GONZÁLEZ, 2012). La consolidación de la música andina terminó por reemplazar a los
personajes de esta cultura y de sus “funcionalidades de origen” (GONZÁLEZ, p. 176). Sin
embargo, en algunas poblaciones menos intervenidas por la cultura occidental, la música de los pueblos andinos aún es utilizada en rituales cotidianos. La industrialización
de la música andina de los años 1950 creó un nuevo marco en lo que se entiende por
música andina (GONZÁLEZ, 2012). Hijo de esta reconstrucción de la música andina es,
por ejemplo, el cantautor Edmundo Porteño Zaldívar, compositor de la popular canción
andino-argentina: El Humahuaqueño, un carnavalito que también está presente en el
repertorio del SOJ. Aunque esta pieza sea interpretada con orquesta sinfónica, el cambio de instrumentos, la adición de los bailarines y los cantos incitan a que el público reaccione de manera a acompañarlos, ya sea con palmas, cantos o bailes. La recepción le
da un predominio al género musical sobre los elementos extraños a esta tradición (otros
instrumentos de orquesta, director de orquesta y, muchas veces, el auditorio).
El SOJ organiza sus performances de forma particular por lo que cada una es distinta. Sin embargo, los dos tipos de repertorios siempre tienen presencia. Las presentaciones que realizan en el Iguazú en Concierto, por ejemplo, generalmente acentúan
el espectáculo visual. En las participaciones del SOJ en el Iguazú en Concierto del año
2015, 2016 y 2017 se observó, en la transición de repertorios, la sustitución de instrumentos sinfónicos por instrumentos tradicionales de la música andina, cantos, palmas,
coreografías de los instrumentistas y la suma de bailarines y personajes del mundo andi46
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no al performance como en un intento de acentuar la comunicación de este repertorio
con la ritualidad propia de la cultura popular andina. O probablemente, el sentido de
buena aceptación del público sea por darle un realce a su espectáculo. Por su vez, el
público acompaña con las palmas o tarareando, ya sea por identificación o por lo festivo
que se torna esta novedosa actuación.
La identificación vincula a los participantes con un público que comparte los mismos valores culturales, por lo menos, en cuanto a la percepción de códigos estéticos,
pero cuando se traslada a un ambiente extraño, en el que no se comparten los mismos valores, esta función se puede transformar en la búsqueda del espectáculo. (ALEMÁN, 2018)
Con respecto a esta transición de repertorios del SOJ, se observa una ruptura, pues
el programa de concierto también es un elemento conservado por la tradición musical
europea desde finales del siglo XVIII e inicios del Siglo XIX. Cuando el movimiento de
intelectuales de Inglaterra y Francia (y posteriormente de toda Europa) denominado
‘Idealismo Musical’ promovió la separación de la vida musical, entre música seria, música menos seria o ligera y música comercial (WEBER, 1999). Separación que se apoyó en
los principios de la música absoluta47 y en reacción a la comercialización de conciertos
y óperas que iban en contra de estos. Los idealistas consideraban que la música seria estaba ligada a la idea de que su contemplación eleva al oyente a una dimensión trascendente y lo aleja del entretenimiento. El programa de concierto según Weber (1999) pasó
a dar lugar solamente a dicha música seria, lo que suscitó la consagración del canon.
lo que genera subsecuentemente la reforma en la actividad de los conciertos. El canon
conserva obras reconocidas de los siglos XVIII y XIX.
La iniciativa del SOJ de adoptar la música de la cultura popular local como parte
del repertorio, hospeda aspectos que conciernen al punto de vista estético. Sin embargo, la identificación cultural que promueve este repertorio popular podría responder a
una perspectiva social y relacionarse con una nueva función extra-musical.
Finalmente, un aspecto importante de la transición de repertorios que realiza el
SOJ responde a la preparación del referente a la cultura popular local. La transición en
el performance es radical, por tanto, los métodos de estudio para lograr una la interpretación acorde, se entiende, también deben transformarse. Se observó y se supo por
medio de averiguaciones a participantes del SOJ y a algunos maestros que el repertorio
popular local se practica días previos al concierto. Cuando se determina el repertorio
según el evento.
La preparación de estos repertorios es realmente diferente. Ya que en las clases
de instrumento no eran parte del programa de estudios y era en los ensayos generales
cuando se intentaban resolver problemas técnicos de los instrumentos de la cultura andina. En la preparación del performance para Iguazú en Concierto del 2017, uno de los
instrumentos que sería utilizado en la interpretación de la música popular era una flauta andina llamada “anata”. Una gran parte de la orquesta tendría que tocar la anata en
47
El mayor exponente de la estética de la música es Eduard Hanslick (1973), quien en rechazo a la corriente idea de que la finalidad de
la música era causar efectos sobre los sentimientos de los oyentes, promovió la creación de una estética propia de la música que se basaba en la
idea de que la belleza de la música radica en los sonidos y en su combinación artística, a lo que llamó de ‘formas sonoras en movimiento’.
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unísono en un momento determinado, sin embargo, no todos sabían ejecutarla. Jurado
(2017) manifestó que los instrumentos andinos son usados únicamente para las presentaciones y no existe un método de enseñanza para estos pero que, en algunos casos, lo
aprenden por técnicas de imitación. Entonces, cuando se manifiesta que el SOJ tiene
como uno de sus grandes objetivos alcanzar la excelencia artística no se considera que
el repertorio popular local sea el que contribuya a este fin. En el SOJ es el repertorio
canónico el que posibilita la excelencia musical, este se torna más importante desde el
punto de vista artístico que el repertorio andino.
Los Sistemas, finalmente, no demuestran aspectos importantes de innovación en
la educación que era la propuesta más clara, ni en algún aspecto estético. La búsqueda
de la excelencia musical de los programas orquestales, se dan por vías del repertorio del
canon europeo y de la orquesta sinfónica que valorizan intérpretes excepcionales por lo
que el direccionamiento pedagógico tiene necesariamente que ser compatible con los
demás aspectos y objetivos estéticos que se proponen.
Consideraciones Finales
En los últimos años se ha estimulado la creación de proyectos orquestales infantiles y juveniles que no siempre se vinculan con El Sistema, aunque puede ser en parte
motivado por la popularidad alcanzada por este. Así, es posible que nos encontremos
frente a una reactivación de la orquesta sinfónica. Desde que se los Sistemas colaboran con las estrategias de este cuerpo musical que a mediados del siglo XX según Sue
Knussen (2013) entró en crisis por la decaída del consumo de la música académica.
Cada vez menos era posible llenar las salas de concierto. Desde entonces se han maniobrado para reactivar el interés por este cuerpo musical (KNUSSEN, 2013). Para los
1980 y 1990 crecieron significativamente departamentos de educación musical en las
orquestas profesionales en US y UK como una manera de garantizar la existencia de
futuras audiencias. (KNUSSEN, 2013). ¿Será posible, entonces, que las instituciones de
conservación de la música que se venían preservando intactas a través de los siglos sean
capases de adaptarse significativamente para su sobrevivencia?
El Sistema tienen de lado a grandes figuras del campo de la música, a instituciones de educación musical y de educación superior a nivel mundial, lo que fortalece la
“percepción positiva de El Sistema” (BAKER, 2018) cada vez más. Debido a los lemas y
expresiones que surgen en los reconocimientos elogiosos, estos se reproducen y fortalecen de forma imprecisa, por lo que es necesario tomar cuidado con las nociones de
lo que se dice. Las expresiones de innovación, por ejemplo, usadas en el discurso oficial
de El Sistema de la apología, resultan bastante amplias, pero la real propuesta se limita
a la pedagogía, aunque no se cumpla de todo.
En la expansión internacional, el SOJ muestra que existe bastante autonomía en
cuanto a la puesta en práctica de las propuestas de El Sistema. Esta autonomía probablemente parta de la amplitud, y en casos, imprecisión de los sentidos de las mismas,
contrario a lo que ocurre con el Secuencial Repertorial, por ejemplo, sobre el que Jurado recibió capacitaciones de El Sistema y que es aplicado y defendido por el SOJ.
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Es cuestionable la pertinencia en otorgarle el sentido de innovador a los Sistemas
en cualquier aspecto del ámbito pedagógico. Ya que no existen rupturas substanciales
entre los Sistemas con el modelo de enseñanza típico del conservatorio. El método
educativo utilizado por los conservatorios es bastante próximo al tipo de educación
impartida en ambos Sistemas.
No se encuentra comunicación alguna con metodologías que critican el modelo
conservatorial. Y, considerando que los Sistemas dan prioridad a la orquesta sinfónica,
el mayor dispositivo que ha resguardado a la música de concierto y le dan relevancia al
repertorio compuesto por obras del canon de la música europea, el uso de la pedagogía tradicional de la música se torna conveniente. Tampoco es posible una noción que
amplía el sentido de transformación/innovación al ámbito estético.
Resulta interesante que los Sistemas que adoptan elementos de la ortodoxia de la
música europea, tanto con el cuerpo musical empleado, cuanto, con el repertorio y la
metodología, insistan en una promoción novedad. Sin embargo, no creemos imposible
la aplicación de rupturas pedagógicas desde que sea consonante con el propio objetivo
de alcanzar la excelencia académica. Por ahora, la propuesta de innovación pedagógica
de El Sistema está más próxima a la retórica que a la práctica.
Las rupturas del SOJ demuestran cómo el dispositivo, el repertorio, la interpretación
y la pedagogía se relacionan, ya que cuando interpretan el repertorio popular local de la
tradición andina, las rupturas pasan del repertorio y recorren, la interpretación, la disposición de los músicos e inclusive la forma previa en la que se preparan estos repertorios.
Por otra parte, la tradición musical de la cultura popular local del SOJ termina
repercutiendo en la estructura de la orquesta, es disonante con el repertorio que se ha
consolidado en las orquestas de El Sistema y muestra repertorio diferente en el “producto final” presentado al público. Considerando que este último es una carta de presentación, la noción de ruptura, aunque en otros ámbitos, parece más dócil cuando se
trata del SOJ que cuando se trata de El Sistema. Sin embargo, el análisis mostró que las
rupturas del SOJ se revelan únicamente en el performance.
En el análisis de las particularidades del SOJ, la excelencia musical por ellos reclamada, se basa principalmente en el ámbito de la técnica instrumental que, a su vez, se
debe al repertorio consagrado en la historia de la música europea como canónico. Así,
la excelencia musical reposa en un valor universalista, como la única capaz de lograr dicha excelencia. Sus menciones a la música “universal” refiriéndose a la música del canon
europeo también se apegan a este valor. Netto (2014) explica que la idea de la universalidad (que viene de la herencia epistemológica de la filosofía) tiene como punto central
el que ésta “sea válida para todos los elementos del todo”. Se remite al siglo XVI, cuando
se creía que los cantos gregorianos “buscaban acompañar el ritmo del cosmos” (NETTO,
2014, p.59). Así, la música europea que se desarrollaría a partir del siglo XVI, fundada
en el canto gregoriano, mantendría dicha universalidad. La idea de la universalidad de
la música, traída por Netto, es una idea que se mantiene presente en instituciones de
estudio de música como conservatorios e institutos de música e, inclusive, en el argot
cotidiano de los directores de orquesta y músicos profesionales, Los Sistemas también
la reivindican. Sin embargo, la alta carga ideológica que ella posee es importante de ser
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Propuestas pedagógicas y estéticas deEl Sistema:
Un estudio de caso del SOJ
develada. Este dato es importante ya que el SOJ del repertorio del canon de la música
europea, como extensión de El Sistema, mantiene las propuestas y nociones de este.
Cuando se ahondó en el repertorio que respecta a la cultura popular local del SOJ,
se notó una falta de atención en la ejecución de los instrumentos andinos, así también
al poco estudio dedicado a las obras de este repertorio. Aspectos que se podrían justificar en que la elección del repertorio andino no se debe a su valor estético, sino a una
función extra-musical de identidad y pertenencia o por lo que la afición al espectáculo
produce. Sin embargo, esa ‘falta de atención’ puede ser entendida también como una
muestra cultural que no viene de academias y que responde al uso cotidiano de la música en la cultura andina.
Surgieron cuestiones que debido al recorte propuesto las presentaremos como
recomendaciones para trabajos posteriores. Con respecto al repertorio andino, es posible ahondar en los estudios sobre identidad y/o la función de un dispositivo de presentación de la música de concierto como es la orquesta en un ámbito latinoamericano,
que traería discusiones interesantes sobre la orquestación de la música no europea. Por
su vez, investigaciones sobre ¿cuál es el papel actual de la orquesta sinfónica? Da otra
perspectiva al estudio de los Sistemas de orquestas.
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O ENSINO DAS ARTES NA
EDUCAÇÃO BÁSICA FRENTE AOS
ORDENAMENTOS VIGENTES
ARTS EDUCATION IN THE FACE OF CURRENT
REGULATIONS
Sonia Regina Albano de Lima1
IA- UNESP e FUNADESP
soniaalbano@uol.com.br
Submetido em 19/04/2020
Aprovado em 20/08/2020
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O ENSINO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO BÁSICA
FRENTE AOS ORDENAMENTOS VIGENTES
Resumo
O artigo 36 da Lei de Educação Brasileira (LDB nº 9.394/96) e seus parágrafos
8º, 9º e 11 permitem às escolas de ensino
médio brasileiras criarem itinerários formativos voltados para o ensino artístico
sob diferentes arranjos curriculares. Esses
itinerários podem ser realizados na própria
instituição ou em parcerias, integrando o
ensino técnico e profissional voltado para
as artes ao ensino básico, a partir de projetos educacionais ou por meio de convênios com instituições de ensino de artes.
Essas iniciativas possibilitam ao estudante do ensino médio cumprir as disciplinas
previstas no conteúdo curricular obrigatório e, conjuntamente, realizar uma formação complementar em artes que será integrada ao seu currículo, conforme previsto
nos artigos 26 e 35A da LDB nº 9.394/96.
Este texto é complementar a outros produzidos pela autora aqui enumerados.
Abstract
The section 36 of the Brazilian Education Law (LDB 9394/96) and its 8th, 9th
and 11th paragraphs allowed Brazilian
high schools to create formative itineraries aiming artistic education under different curricular arrangements. Those initiatives could allow high school students
to follow an artistic career, while fulfilling
the mandatory elementary curriculum
and studying part of it in diversified part
of the curriculum a diverse way, as provided in sections 26 and 35A of the Brazilian Education Law (LDB n. 9394/96). This
text is a complement to others published
by this author.
Keywords: Brazilian education law;
high school; formative itineraries; diversified part of the curriculum; artistic education.
Palavras-chave: LDB nº 9.394/96; ensino médio; itinerários formativos; parte diversificada do currículo; formação artística.
Doutora em Comunicação e Semiótica (ARTES) PUC-SP; Bacharel em Direito (USP); Bacharel em Instrumento (FMCG); Licenciatura
Curta (Instituto de São Paulo); Pós-Doutorado pelo GEPI- PUCSP; Professora do Mestrado e Doutorado de Música do IA_UNESP; Coordenadora
do Grupo de Pesquisa n. 28 da FUNADESP; Membro do GEPI- PUCSO.
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O ENSINO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO BÁSICA
FRENTE AOS ORDENAMENTOS VIGENTES
A legislação vigente direcionada ao ensino das artes na educação
básica
A Lei nº 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, que é uma conversão da Medida Provisória nº 746, de 22 de setembro de 2016, foi criada visando alterar e revogar algumas das
leis já existentes e instituir a política de fomento à implementação de escolas de ensino
médio em tempo integral. No que diz respeito à educação, esta lei alterou alguns dos
artigos da LDB nº 9.394/96, e a Lei nº 11.149, de 20 de junho de 2007, que regulamenta
o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos
profissionais da Educação (Fundeb), também revogou a Lei nº 11.161/05, voltada para o
ensino da língua espanhola.
No texto que se segue vamos relatar as modificações que esta lei introduziu na
LDB nº 9.394/96 com relação ao ensino das artes, considerando-se como complementar ao currículo obrigatório a parte diversificada que lhe é complementar, conforme
articulado no artigo 26 § 2º e 6º e inclusão do artigo 35 A, § 1º e 2º, que passam a vigorar
com a seguinte redação:
Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino
médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada,
exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos.
§ 2º - O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá
componente curricular obrigatório da educação básica;
§ 6º - As artes visuais, a dança, a música e o teatro são as linguagens que constituirão o componente curricular de que trata o § 2º deste artigo.
Art. 35 A. A Base Nacional Comum Curricular definirá direitos e objetivos de
aprendizagem do ensino médio, conforme diretrizes do Conselho Nacional de
Educação, nas seguintes áreas do conhecimento:
I - linguagens e suas tecnologias;
II - matemática e suas tecnologias;
III - ciências da natureza e suas tecnologias;
IV - ciências humanas e sociais aplicadas.
§ 1º - A parte diversificada dos currículos de que trata o caput do art. 26, definida
em cada sistema de ensino, deverá estar harmonizada à Base Nacional Comum
Curricular e ser articulada a partir do contexto histórico, econômico, social, ambiental e cultural.
§ 2º - A Base Nacional Comum Curricular referente ao ensino médio incluirá
obrigatoriamente estudos e práticas de educação física, arte, sociologia e filosofia. (BRASIL, 1996, grifos nossos).
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FRENTE AOS ORDENAMENTOS VIGENTES
Assim exposto, o texto a seguir pretende discutir como o ensino das artes está
sendo ou pode ser realizado nas escolas da educação básica, considerando-se que,
mesmo sendo um ensino obrigatório, os artigos citados acima não regulamentam a forma como as Artes são integradas no conteúdo curricular da educação básica via parte
diversificada, caso não façam parte do conteúdo curricular obrigatório.
O caput do art. 26 da LDB nº 9394/96 prevê, além de uma base comum curricular,
uma outra, complementar e diversificada, consideradas as características regionais e
locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), homologada em 14 de dezembro de
2018 pelo ministro da Educação Rossieli Soares, é um documento de caráter normativo
que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os
alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da educação básica, de
modo a terem assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE). Tem como meta
difundir uma educação brasileira que vise à formação humana integral, à construção de
uma sociedade justa, democrática e inclusiva (BRASIL, 2018, Apresentação)2.
Sua criação objetivou superar a fragmentação das políticas educacionais, promover o fortalecimento do regime de colaboração entre as três esferas de governo e balizar a qualidade da educação. Este documento estabelece dez competências gerais
para a educação básica, permeando conhecimentos científicos, artísticos, culturais, e o
desenvolvimento pessoal e social. Duas dessas competências reportam-se diretamente
à aprendizagem artística:
3. Valorizar e fruir as diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às
mundiais, e também participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural.
4. Utilizar diferentes linguagens – verbal (oral ou visual-motora, como Libras,
e escrita), corporal, visual, sonora e digital –, bem como conhecimentos das
linguagens artística, matemática e científica, para se expressar e partilhar informações, experiências, ideias e sentimentos em diferentes contextos e produzir
sentidos que levem ao entendimento mútuo. (BRASIL, 2018, p.11).
As Artes, neste ordenamento, estão inseridas na área de conhecimento denominada Linguagens e suas tecnologias, com objetivos, unidades temáticas, habilidades e
competências voltadas para as Artes Visuais, a Dança, a Música e o Teatro, corroborando o enunciado do § 6º, art. 26 da LDB nº 9394/96 e reafirmando a polivalência como
modalidade pedagógica de ensino artístico. Essas linguagens tanto articulam saberes
referentes aos produtos e fenômenos artísticos como envolvem as práticas de criar, ler,
produzir, construir, exteriorizar e refletir sobre formas artísticas.
2
Relato do ministro da Educação, Rossieli Soares: “É com alegria que entregamos ao Brasil a versão final homologada da Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) com a inclusão da etapa do Ensino Médio, e, assim, atingimos o objetivo de uma Base para toda a Educação Básica
brasileira. A aprendizagem de qualidade é uma meta que o País deve perseguir incansavelmente, e a BNCC é uma peça central nessa direção,
em especial para o Ensino Médio, no qual os índices de aprendizagem, repetência e abandono são bastante preocupantes”. Disponível em: http://
basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 24 mar. 2020
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FRENTE AOS ORDENAMENTOS VIGENTES
No Ensino Fundamental, o componente curricular Arte está centrado nas seguintes linguagens: as Artes visuais, a Dança, a Música e o Teatro. Essas linguagens articulam saberes referentes a produtos e fenômenos artísticos e envolvem
as práticas de criar, ler, produzir, construir, exteriorizar e refletir sobre formas
artísticas. A sensibilidade, a intuição, o pensamento, as emoções e as subjetividades se manifestam como formas de expressão no processo de aprendizagem
em Arte […]. A aprendizagem de Arte precisa alcançar a experiência e a vivência
artística como prática social, permitindo que os alunos sejam protagonistas e
criadores. (BRASIL, 2018, p.195).
O documento propõe que a abordagem das linguagens articule seis dimensões do
conhecimento artístico que, de forma indissociável e simultânea, caracterizam a singularidade da experiência artística. Tais dimensões perpassam os conhecimentos das
Artes Visuais, da Dança, da Música e do Teatro e as aprendizagens dos alunos em cada
contexto social e cultural. Não são eixos temáticos ou categorias, mas linhas maleáveis
que se interpenetram, constituindo a especificidade da construção do conhecimento
em Arte na escola. Não há nenhuma hierarquia entre essas dimensões, tampouco uma
ordem para se trabalhar cada uma delas no campo pedagógico. As dimensões veiculadas são: criação, crítica, estesia, expressão, fruição e reflexão (BRASIL, 2018, p.194-195).
A BNCC e a implantação de um ensino artístico interdisciplinar e a
parte diversificada do currículo
Tal relato deixa clara a implantação de um ensino artístico que permeia uma prática
pedagógica interdisciplinar, uma vez que vê as artes interligadas aos contextos educativos, socioculturais, políticos, estéticos, filosóficos e econômicos, ampliando as fronteiras entre as linguagens, superando a visão compartimentada e estanque do ensino das
artes, reforçando a necessidade de o componente curricular Arte promover um diálogo
entre essas linguagens, um diálogo com a literatura e ainda, possibilitar o contato e a
reflexão com as formas estéticas híbridas.
Cunha e Lima (2020a, 2020b) discutem e analisam mais intensamente estas questões. Não obstante, Lima (2020) complementa essas discussões ao retratar as diferentes
missões pedagógicas do ensino musical brasileiro (LIMA, 2020, p.9-22).
Ainda que a BNCC articule cada linguagem separadamente, a proposta de ensino
dessas linguagens não está centrada na aprendizagem técnica e isolada de cada uma
das artes, mas na integração destes contextos, estendendo-se ainda para uma quinta
unidade temática – as artes integradas. A inserção das Artes integradas reflete a importância que esse documento concedeu à produção artística de estética híbrida, que tem
se difundido na contemporaneidade: “[…] uma última unidade temática, Artes integradas, explora as relações e articulações entre as diferentes linguagens e suas práticas,
inclusive aquelas possibilitadas pelo uso das novas tecnologias de informação e comunicação” (BRASIL, 2018, p.199).
Pereira e Souza (2016) relatam que a intenção política de disponibilizar uma base
nacional comum capaz de idealizar um currículo nacional que seja comum e homogêneo para todas as escolas da educação básica mais uma vez aponta para o poder cen-
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tralizador das políticas públicas no tocante às questões curriculares. Entretanto, contar
com o termo “parte diversificada”, permitindo complementar o currículo obrigatório
dessas escolas com questões envolvendo aspectos relevantes da cultura, parece, à primeira vista, uma tendência política de flexibilização da ação hegemônica do Estado. De
certa maneira, ela pode se transformar em um dispositivo pedagógico capaz de enriquecer a base comum curricular, permitindo adequar os currículos e práticas educativas à realidade institucional, trazer para a escola temas de relevância social e cultural,
contextualizados com a realidade dos alunos e da comunidade escolar como um todo.
J. J Domingues et al. (2000) também acreditam que a parte diversificada do currículo pode atribuir às escolas uma identidade própria e manifestar a vocação de cada
uma delas, desde que agregadas à base nacional comum. Segundo estimativa de Ramos e
Aquino (2015), 25% da carga horária dos currículos escolares podem ser veiculados como
parte diversificada, fato que propicia aos alunos do ensino médio a possibilidade de intensificar ou dar início ao ensino das Artes para posteriormente ingressar nos cursos superiores destinados ao aprendizado das Artes, seja nas licenciaturas, seja nos bacharelados.
O texto de Pereira e Souza (2016), entre outros objetivos, busca analisar como o
termo parte diversificada do currículo se desenvolve e de que maneira os textos políticos se reportam a ele. Os autores consideram que o termo se consolida em uma política
que apresenta um espaço narrativo capaz de produzir práticas curriculares com base na
cultura local, por meio de ações políticas cotidianas em interlocução com políticas educacionais que são interpretadas e traduzidas no contexto da prática. A parte diversificada do currículo não sintetiza conhecimentos, mas está interligada a uma base nacional
comum, estando, portanto, à borda do fazer curricular dos sujeitos da escola (PEREIRA;
SOUSA, 2016, p.452-453).
Conforme expresso pelos autores, o termo já havia sido contemplado na Resolução CNE/CEB nº 04/2010, artigo 15, § 1º, como complementar à base nacional comum,
pois permitia o estudo das características regionais e locais da sociedade, da cultura, da
economia e da comunidade escolar, perpassando todos os tempos e espaços curriculares constituintes do ensino fundamental e do ensino médio. O § 1º desta Resolução
revelava que a parte diversificada do currículo comum poderia ser organizada em temas gerais, na forma de eixos temáticos, selecionados colegiadamente pelos sistemas
educativos ou pela unidade escolar (BRASIL, 2010).
Para eles, a parte diversificada do currículo deveria ocorrer de forma dialógica, de
acordo com a realidade de cada escola, de maneira a atender não só à cultura local, mas
às escolhas, às experiências e aos conhecimentos a serem ofertados aos estudantes, ao
longo do processo de escolarização. Tal possibilidade traria para as escolas maior autonomia na elaboração de suas propostas curriculares e a liberdade de referendar parte
da cultura de uma determinada região. Eles entendem que, se esta parte diversificada
não ocupar um espaço significativo nas práticas curriculares das escolas e não tomar a
cultura local como elemento central, será destituída de valor pedagógico; portanto, é
pertinente que as escolas promovam um diálogo mais intenso entre o conhecimento e
a cultura e que pensem o currículo como uma produção cultural.
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FRENTE AOS ORDENAMENTOS VIGENTES
A parte diversificada dos currículos é uma política que se insere na base nacional
comum, sendo também normativa e precária no sentido de garantir que as instituições escolares “implementem” suas próprias propostas curriculares tomando
a cultura como elemento central. Ao se perceber que a parte diversificada quase
não tem espaço nas práticas curriculares, constatamos que a mesma não passa
de um discurso redundante e vazio em torno da construção de um currículo
nacional e comum. (PEREIRA; SOUSA, 2016, p.456).
Esta argumentação é relevante quando direcionada aos estudos e práticas artísticas, principalmente se levarmos em conta que as áreas de conhecimento indicadas nos
incisos I a IV do artigo 35 A da LDB nº 9.394/96 e a redação do § 2º deste artigo deixam
mais ou menos evidente que o ensino das Artes integrará a parte diversificada do currículo em um percentual equivalente a 25%, dependendo da região onde isso possa se
concretizar e dificilmente será parte do currículo obrigatório dessas escolas. Trata-se de
um percentual pequeno, mas que, em razão do ensino artístico na educação básica ser
obrigatório, ele poderá se concretizar a partir dessa abertura.
Contudo, é preciso relatar que, se considerarmos que a parte diversificada do currículo é complementar à base comum e que poderá ser organizada em temas ou eixos
temáticos, há que se presumir que o ensino artístico não encontrará muito espaço em
regiões menos favorecidas do país, pois assuntos e questões mais emergentes serão
priorizados. Mesmo sendo obrigatório nas escolas de educação básica, seja como disciplina, seja como atividade artística, a política educacional do país ainda privilegia bem
mais intensamente a formação de um indivíduo para o mundo do trabalho, dirimindo a
importância de uma formação artística desses alunos.
Também deve se considerar o contingente mínimo de professores de Arte que
atuam no país. Muitas regiões contam com professores de Arte na educação básica formados em outras áreas e que, por conta da obrigatoriedade deste ensino, dão aulas de
Arte apenas para cumprir as determinações legais destinadas à educação básica. Diante
desses argumentos, presume-se que o ensino das Artes ocupará um lugar de pouca
projeção no currículo escolar no ensino fundamental e menos ainda no ensino médio,
mesmo que integrado à parte diversificada do currículo.
Embora o § 7º do artigo 35A da LDB nº 9.394/96 tenha determinado que os currículos do ensino médio devem considerar a formação integral do aluno, de maneira a
adotar um trabalho voltado para a construção de seu projeto de vida e para sua formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais, fica evidente que a formação
artística, mesmo que obrigatória, não ocupará o patamar alcançado pelas demais linguagens se não houver um empenho institucional, seja da parte dos gestores, dos coordenadores de cursos ou do corpo docente. Ele também poderá não integrar a parte
diversificada do currículo e disseminado em práticas artísticas esporádicas e nas festas
comemorativas em razão de temáticas mais relevantes a determinadas regiões do país.
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O ENSINO DAS ARTES NA EDUCAÇÃO BÁSICA
FRENTE AOS ORDENAMENTOS VIGENTES
Os equívocos do ensino polivalente das Artes na educação básica
em contraposição a uma formação docente unicista
A afirmativa acima exposta se consolida na leitura do inciso II do artigo 35 da LDB
destinado ao ensino médio, que traz como finalidade a preparação básica para o trabalho
e a cidadania do educando, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade às novas
condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores (BRASIL, 1996). Por sua vez, o
artigo 22 e o § 2º do artigo 1º da LDB nº 9.394/96 reafirmam essa tendência: “A educação
escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social” (BRASIL, 1996).
É clara a preocupação do legislador em privilegiar uma formação curricular bem
mais voltada para o mundo do trabalho do que para o ensino das Artes, considerando-se que esta formação artística é desejada por uma parcela mínima da sociedade, ainda
que a Arte, de modo geral, auxilie em grande parte o desenvolvimento integral dos indivíduos e seja uma parte importante da cultura de um país.
A própria BNCC, ao se reportar ao ensino das artes no ensino fundamental, deixa
clara a difusão de uma proposta pedagógica que privilegia mais atentamente as práticas
artísticas, e não tanto o aprendizado das quatro linguagens.
Ao longo do ensino fundamental, os alunos devem expandir seu repertório e
ampliar sua autonomia nas práticas artísticas, por meio da reflexão sensível,
imaginativa e crítica sobre os conteúdos artísticos e seus elementos constitutivos e também sobre as experiências de pesquisa, invenção e criação. Para tanto,
é preciso reconhecer a diversidade de saberes, experiências e práticas artísticas
como modos legítimos de pensar, de experienciar e de fruir a Arte, o que coloca
em evidência o caráter social e político dessas práticas. (BRASIL, 2018, p.196,
grifos nossos).
Em outro momento, a BNCC relata que as habilidades artísticas serão organizadas
com o intuito de permitir que os sistemas e as redes de ensino, as escolas e os professores organizem seus currículos e suas propostas pedagógicas nesta área com a devida adequação aos seus contextos, sem pensar numa programação sequencial e linear
desta programação curricular: “A progressão das aprendizagens não está proposta de
forma linear, rígida ou cumulativa com relação a cada linguagem ou objeto de conhecimento, mas propõe um movimento no qual cada nova experiência se relaciona com as
anteriores e as posteriores na aprendizagem de Arte” (BRASIL, 2018, p.197).
Um tanto equivocada essa normatização, porque, ao mesmo tempo que propaga um ensinamento polivalente das linguagens artísticas de forma não linear e rígida,
propõe que as experiências artísticas sigam uma inter-relação temporal, umas com as
outras, pressupondo um ensino contínuo dessas práticas, o que se configura bastante
ilusório em nosso país, considerando-se a impossibilidade de um ensino artístico seguir
da educação infantil para os anos iniciais e finais do ensino fundamental, com continuidade para o ensino médio.
Também as competências artísticas especificadas neste documento destinadas ao
ensino fundamental me parecem um tanto complexas para serem repassadas aos alu-
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FRENTE AOS ORDENAMENTOS VIGENTES
nos, ainda mais se considerarmos que estas instituições escolares não seguem uma
programação artística curricular seriada; via de regra, não possuem um planejamento
curricular adequado e contemplam uma carga horária mínima para o repasse desses
conhecimentos. Em grande parte dessas escolas, esse conhecimento é transmitido via
atividades artísticas esporádicas, sem grandes preocupações cognitivas. Inúmeros artigos publicados apontam para essas incongruências.
Para exemplificar a complexidade das propostas apresentadas por esse ordenamento, vejamos o que diz o item II da BNCC com respeito ao ensino das Artes nos anos iniciais
do ensino fundamental: “Compreender as relações entre as linguagens da Arte e suas
práticas integradas, inclusive aquelas possibilitadas pelo uso das novas tecnologias de
informação e comunicação, pelo cinema e pelo audiovisual, nas condições particulares
de produção, na prática de cada linguagem e nas suas articulações” (BRASIL, 2018, p.197).
A leitura dos demais itens demonstra o quanto os ordenamentos voltados para a
educação artística se encontram distanciados de uma realidade sociocultural, que, em
grande parte, traz para a educação básica um aluno com um conhecimento cultural
bem diferente daquele idealizado por esses legisladores.
Outra questão a ser considerada reporta-se ao ensino artístico centrado na polivalência, termo advindo da Lei nº 5.692/71, que priorizou, entre outras medidas, o ensino
das diversas linguagens artísticas (artes visuais, dança, teatro e música) nas escolas de
educação básica. A partir dessa orientação, no passado foram criadas as licenciaturas em
Educação Artística, que objetivavam repassar para o docente o conhecimento de todas
as linguagens artísticas em um só curso. Se a princípio essa formação pareceu adequada,
no decorrer dos anos ela se manifestou insuficiente, pois os docentes advindos desses
cursos não conseguiam repassar aos seus alunos os conhecimentos básicos de cada
uma dessas linguagens em condições igualitárias, predominando o ensino das artes visuais. Ficou provado ao longo dos anos que essas licenciaturas habilitavam docentes não
capacitados para ensinar todas as linguagens artísticas exigidas pelos ordenamentos e
que o conhecimento artístico obtido nesses cursos beirava a superficialidade.
Nesse sentido, as licenciaturas em Educação Artística foram substituídas pelas licenciaturas em Arte, capazes de habilitar o docente em uma das quatro linguagens
indicadas na LDB nº 9.394/96. Entretanto, ao adentrar em sala de aula, este professor,
habilitado em uma única linguagem artística, teria de repassar aos seus alunos os conhecimentos referentes às quatro linguagens, conhecimentos esses que não lhe foram
ofertados em sua formação.
Se as licenciaturas em Arte possibilitaram uma compreensão mais sólida de uma
determinada linguagem artística, não adequaram este professor para uma atuação pedagógica polivalente, o que faz concluir a incongruência existente entre a formação docente adquirida e a sua atuação em sala de aula – uma formação tecnicista incompatível
com uma atuação polivalente e interdisciplinar que prioriza outra forma de ensinar Arte.
Outro problema, como exposto mais acima, está focado na descontinuidade do
ensino artístico nos diversos níveis da educação básica e na falta de professores de Arte
habilitados em cursos superiores para atuar na educação básica. Em alguns estados e
cidades brasileiras, muitas vezes este ensino é realizado por professores de outras áre-
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as de conhecimento, devido à falta de um profissional habilitado para essa função. Tal
problemática exige a reformulação curricular das licenciaturas, que deverão capacitar
docentes para o ensino das Artes na educação básica sob uma perspectiva polivalente e interdisciplinar, como rezam os ordenamentos da área, relativizando-se o sentido
pejorativo atribuído ao termo polivalência e conferindo-lhe um sentido mais interdisciplinar, como o enunciado nos artigos de Cunha e Lima (2020), bem como instituindo
uma formação artística para esses alunos, que se estenda a todos os níveis dos ensinos
fundamental e médio, de forma continuada.
Medidas dessa natureza trarão ao ensino artístico maior importância, já que a Arte foi
reconhecida pela LDB nº 9.394/96 como uma das áreas de conhecimento, portanto, de
alguma forma ela deve incorporar a matriz curricular dos cursos de educação básica, seja
no currículo obrigatório ou sob condições implantadas na parte diversificada do currículo.
Possíveis soluções legais para a propagação do ensino artístico na
educação básica
Uma solução possível para inserir as Artes nessas escolas encontra-se no artigo 36
da LDB nº 9.394/96, onde os itinerários formativos do ensino artístico poderão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância
local e a possibilidade dos sistemas de ensino.
O § 8º do artigo 36 deste ordenamento permite ao aluno que o aluno obtenha,
na própria instituição ou em parceira com outras instituições, a formação técnica e
profissional a que se reporta o inciso V deste artigo, desde que tal oferta seja aprovada
previamente pelo Conselho Estadual de Educação e homologada pelo secretário estadual de Educação e certificada pelos sistemas de ensino. O § 9º desse dispositivo legal
prevê que essas instituições de ensino emitam certificados com validade nacional, habilitando, dessa forma, o concluinte do ensino médio a prosseguir seus estudos em nível
superior ou em outros cursos ou formações para os quais a conclusão do ensino médio
seja etapa obrigatória.
Para o cumprimento das exigências curriculares implantadas para o ensino médio,
o § 11 deste dispositivo legal também prevê que os sistemas de ensino poderão reconhecer competências e firmar convênios com instituições de educação a distância com
notório reconhecimento, mediante as seguintes formas de comprovação: I - demonstração prática; II - experiência de trabalho supervisionado ou outra experiência adquirida fora do ambiente escolar; III - atividades de educação técnica oferecidas em outras
instituições de ensino credenciadas; IV - cursos oferecidos por centros ou programas
ocupacionais; V - estudos realizados em instituições de ensino nacionais ou estrangeiras; VI - cursos realizados por meio de educação a distância ou educação presencial
mediada por tecnologias. Neste último item, observa-se a importância que os ordenamentos têm conferido aos processos de ensino a distância e de que forma a tecnologia
cada vez mais está presente na educação brasileira.
Uma possibilidade permitida pela própria lei parece ser capaz de contribuir para
que o ensino artístico seja integrado à educação básica com certa eficiência, a saber: 1)
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a criação de projetos educativos comprometidos com essa modalidade de ensino que
correrão à parte da carga curricular obrigatória e que poderão se constituir em uma
parte diversificada; e 2) a criação de convênios com instituições de ensino técnico e
instituições de ensino artístico não formal que desenvolvam estudos específicos em
cada uma dessas linguagens.
Essas duas medidas não só poderão ser introduzidas nas escolas de educação básica; de forma indireta, poderão aumentar a procura e o ingresso desses alunos nos
cursos de Licenciatura em Artes, que receberão alunos mais bem preparados. Possibilitarão, ainda, ao estudante do ensino médio que pretenda seguir uma carreira artística,
uma formação mais sólida, e permitirão, aos estudantes da educação básica, iniciar uma
formação que se estenderá por toda sua vida, se assim ele quiser. Tais medidas trariam
para os cursos de Licenciatura em Artes um aluno capaz de desenvolver sua formação
de maneira mais adequada e ampliariam as possibilidades de um aprendizado artístico
que contribuiria mais acertadamente no desenvolvimento integral dos indivíduos, atendendo ao que dispõem os ordenamentos acima referendados.
Obviamente esta tarefa ficaria a cargo das instituições e docentes da educação básica e dos cursos superiores, no sentido de promover este intercâmbio. Muitas universidades públicas têm incorporado, em seus cursos superiores, escolas de ensino de Artes,
visando introduzir em seu corpo discente um aluno mais habilitado para exercer essa
profissão. Essas medidas poderiam ser realizadas na própria instituição ou em parcerias
firmadas com escolas técnicas de ensino de Arte.
É importante mencionar que as alterações dos artigos da LDB nº 9.394/96 acima relatadas trazem a possibilidade de o ensino artístico estar integrado à educação básica via
parte diversificada do currículo, correndo em paralelo ao conteúdo curricular obrigatório, seja na instituição ou fora dela. Atividades e vivências artísticas nas escolas de ensino
fundamental e médio ou mesmo o ensino das Artes realizado em centros específicos ao
aprendizado das linguagens artísticas trariam um diferencial considerável ao ensino artístico, uma vez que na educação básica ele é bem distinto daquele realizado em espaços
e instituições diretamente focados na capacitação de jovens para este aprendizado.
Inúmeras publicações têm criticado o modo como se processa o ensino das Artes
nas escolas de educação básica, seja pela escassez de horário destinada a esta disciplina, seja pela descontinuidade de conteúdos e propostas de ações docentes veiculadas
desde o ensino infantil até o ensino médio, ou pela falta de uma formação básica para
que esse conhecimento se prolifere como indispensável ao desenvolvimento humano,
não só sob um viés cognitivo, mas também psicológico, físico e estético.
Na cidade de São Paulo, no que diz respeito ao ensino musical, parcerias significativas poderiam ser realizadas com escolas de ensino não formal de música ligadas à
Prefeitura e ao Estado, entre elas, a Escola Municipal de Música de São Paulo (EMMSP),
a Escola Municipal de Iniciação Artística (Emia), a Escola de Música do Estado de São
Paulo (Emesp), sem esquecer a Escola Técnica Estadual de Artes (Etec). Parte do ensino
integral destinado à educação básica poderia ser realizada nesses centros de estudo,
que oferecem condições infraestruturais e assistência pedagógica bem mais específicas
e direcionadas para esse aprendizado.
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Essa atitude não descarta a hipótese de que esse mesmo trabalho possa ser realizado na própria instituição de ensino, através de projetos interdisciplinares voltados para
esse aprendizado. O trabalho interdisciplinar realizado pela educadora Caroline Cao
Ponso (2008), em torno de experiências realizadas com a música em uma escola de educação infantil, na cidade de Porto Alegre, com alunos cuja faixa etária varia de um ano
e meio a seis anos, é um exemplo dessa atuação docente. Nessa ação foram realizadas
pontes e redes interdisciplinares com outras áreas de conhecimento. As ações docentes
foram conduzidas por projetos pedagógicos delineados pela escola e pelos docentes,
interligando a música com a literatura infantil, com o desenho, com a matemática e com
a mídia. Conforme expressa Ponso: “[…] como professora de música, procurei demonstrar as pontes que surgiram entre as aulas de música e os projetos de investigação que
ocorreram dentro de um ano de trabalho. Busquei evidenciar a inter-relação entre a música e as temáticas abordadas e de que forma elas se ampararam” (2008, p.76).
Outra medida benéfica seria a implantação de licenciaturas interdisciplinares de
Arte, que adotariam outras possibilidades de formação de professores de Arte mais coerentes com a perspectiva pedagógica polivalente e interdisciplinar proposta pela BNCC
e demais ordenamentos da área. Algumas delas já estão funcionando em alguns estados
brasileiros e parecem cumprir bem esse objetivo.
Esses cursos buscam integrar todas as linguagens artísticas em um só contexto,
sem dar ênfase a nenhuma delas, e oferecem uma formação artístico-pedagógica focada na educação básica. Seus professores comportam diferentes habilitações nas diversas linguagens artísticas e oferecem um conhecimento artístico sequencialmente
organizado, coerente, articulando vivência, expressão e compreensão dos saberes das
manifestações artísticas, na convergência de linguagens em processos criativos e poéticas da arte contemporânea. Eles ainda oferecem uma formação docente qualificada de
acordo com a realidade escolar e o conhecimento dos fundamentos de metodologias
das diferentes linguagens artísticas. Eles se propõem a formar um docente de arte capaz
de ensinar e transitar pelas diferentes linguagens artísticas, confluindo-as e integrando-as. Estas graduações não oferecem habilitação específica nem complementar com
ênfase em uma das linguagens artísticas, pelo contrário, elas oferecem uma formação
interdisciplinar com abordagem equânime entre as linguagens artísticas, proporcionando uma formação docente mais ampla, abrangendo tanto os conteúdos das artes visuais, da dança, do teatro, como o da música.
Não é possível afirmar que essas propostas e a missão pedagógica dessas licenciaturas poderão, em um futuro próximo, se diferenciar das projetadas no passado, nos
cursos de Educação Artística. O tempo poderá comprovar a eficácia desses cursos, o
fato é que já estão surgindo concursos públicos em regiões que têm abrigado alguns
docentes portadores dessas licenciaturas.
Os alunos dos estágios supervisionados obrigatórios nos cursos de Licenciatura
em Artes também poderiam ser de grande valia para as escolas de educação básica. A
Coordenação Pedagógica, em parceria com esses estagiários, poderia criar projetos interessantes para que esse ensino se propagasse, principalmente em centros ou regiões
em que há escasso número de professores de Arte, auxiliando esses futuros docentes
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a reconhecer os desafios que sua carreira oferecerá, no sentido de agregar trabalho e
escola, teoria e prática.
Considerações finais
Entendo que todas as possibilidades de ensino artístico aqui propagadas devem
ser mantidas, pois percorrem destinos, missões e funções pedagógicas diferenciadas. A
educação básica, a educação superior, o ensino profissionalizante em Artes e até mesmo o ensino artístico não formal devem ser preservados, já que cada uma dessas formações tem objetivos e missões pedagógicas relevantes para a área. Contudo, os dispositivos legais voltados para a educação básica necessitam ser atendidos; nesse sentido, a
parte diversificada do currículo e as propostas acima veiculadas podem trazer para este
ensino uma abertura mais adequada e eficaz.
A temática aqui relatada é bastante complexa e não poderia ser narrada em um
único artigo. Muitos artigos já publicados por mim estão centrados na discussão desses
questionamentos. Neste artigo foram referendados mais enfaticamente os textos legais
voltados para o ensino das Artes na educação básica, bem como algumas das vivências
que obtive no gerenciamento e no exercício da docência em uma escola de música
direcionada para o ensino técnico de música em uma instituição de ensino superior
por cerca de mais de três décadas. Trata-se, portanto, de um texto não voltado para
discussões iminentemente teóricas, mas um artigo que busca tratar desta temática sob
um viés prático e vivenciado.
Referências
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dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário
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ccivil_03/Leis/L9394.htm. Acesso em: 10 mar. 2020.
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orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem
desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica. 3. rev. Brasília:
MEC, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_
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CEB, 2010.
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Acesso em: 23 mar. 2020.
Sonia Regina Albano de Lima
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FRENTE AOS ORDENAMENTOS VIGENTES
Sonia Regina Albano de Lima é doutora em Comunicação e Semiótica - Artes (PUC-SP), pós-doutora em Interdisciplinaridade e Educação pelo Gepi/PUC-SP; pós-doutora em Música pelo IA/Unesp; bacharela em Instrumento - Piano (FMCG); bacharela
em Direito (USP). Desde 2005 atua no Programa de Mestrado e Doutorado em Música
do IA/Unesp. Possui livros, coletâneas, artigos e pesquisas envolvendo interdisciplinaridade, música, performance e educação musical. Foi Presidente da Anppom no período
de 2015 a 2019.
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TIMELINES EM “COISA Nº 5”
DE MOACIR SANTOS
TIMELINES IN “COISA Nº 5”
BY MOACIR SANTOS
Fábio Marinho1
Universidade Federal da Bahia
fabiolimamgomes@gmail.com
Submetido em 31/05/2020
Aprovado em 26/08/2020
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TIMELINES EM “COISA Nº 5” DE MOACIR SANTOS
Resumo
Este artigo apresenta parte da pesquisa de conclusão de curso sobre a presença de timelines em três peças do álbum
“Coisas” (1965), de Moacir Santos, defendida na FAP/UNESPAR, em 2019. O estudo
tem como foco o aspecto rítmico, destacando a verticalidade das composições, as
texturas polirrítmicas e os contrastes entre
as ideias musicais articuladas por Moacir
Santos. Este trabalho debruça-se sobre a
peça “Coisa nº 5” e demonstra a influência marcante da música de matriz africana
por meio das timelines, tendo como base
a gravação original e o livro de partituras
“Coisas: Cancioneiro Moacir Santos”. Dessa forma, as análises demonstram que as
timelines identificadas são customizadas,
criando combinações com a função de
orientar a estrutura rítmica da peça.
Abstract
This paper is part of the undergraduate research on the use of timelines in
three pieces of the album “Coisas” (1965),
by Brazilian composer Moacir Santos, presented at FAP/UNESPAR (Curitiba, Brazil),
in 2019. The present study is based on
the rhythmic aspect, drawing attention to
the vertical perspective of the pieces, the
polyrhythmic textures and the contrasts
between the musical ideas articulated by
Moacir Santos. The aim is to demonstrate,
especially in “Coisa nº 5”, the strong influence of African matrix through timelines,
based on the original recording and the
score book “Coisas: cancioneiro Moacir
Santos”. Thus, the analyses show that the
identified timelines are customized, creating combinations with the function of
guiding the rhythmic structure of the piece.
Palavras-chave: Moacir Santos. Coisa
Keywords: Moacir Santos. Coisa Nº 5.
nº 5. Timeline. Análise Musical.
Timeline. Musical Analysis.
Bacharel em Música Popular (UNESPAR/2019), Bacharel em Humanidades (UFBA/2013) e possui Qualificação Profissional em Música Baiana
(FUNCEB/2012). Atualmente, é aluno especial do PPGMUS/UFBA na área de Composição.
1
Fábio Marinho
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Introdução
A obra de Moacir Santos (1926–2006) se apresenta de forma complexa e desafiadora, sendo gradualmente valorizada pela comunidade musical e pelo público em geral nas últimas décadas. Com uma carreira multifacetada, o músico despertou variados
olhares acadêmicos e diversas pesquisas foram feitas em nível de pós graduação, principalmente após o seu falecimento (FRANÇA, 2007; DIAS, 2010; VICENTE, 2012; BONETTI, 2014). O álbum “Coisas” (1965) é a sua produção fonográfica de maior relevância e
foi a única lançada no Brasil, pois a partir daí o compositor desenvolveu sua trajetória
nos Estados Unidos. Este artigo deriva-se de uma pesquisa mais ampla em formato de
monografia (_____) a qual objetivou-se analisar a presença de timelines em três faixas
do referido álbum2. Aqui, busca-se uma análise mais criteriosa sobre o aspecto rítmico
na terceira faixa: a peça “Coisa nº 5”, que posteriormente teve uma versão com letra intitulada “Nanã” e acabou sendo muito difundida. Dessa forma, a maior motivação deste
estudo é entender como os elementos rítmicos são organizados na estrutura composicional por meio das timelines. Essa ferramenta possibilita um aprofundamento analítico
da peça, dando foco na sua relação com outros elementos musicais, sobretudo a melodia, uma vez que são notáveis os traços da música de matriz africana em todo o álbum
“Coisas”. Por sinal, a música popular brasileira é baseada, em grande parte, na música de
origem africana (SANDRONI, 2001) e, por isso, as timelines estão presentes na maioria
do seu repertório constituindo a estrutura sonora (OLIVEIRA PINTO, 1999-2001).
De acordo com a literatura, os conceitos embrionários de timeline advêm de reflexões acadêmicas baseadas nas experiências de pesquisadores ao se debruçarem sobre
a música da costa ocidental africana e sua complexidade rítmica (JONES, 1959; NKETIA,
1963; KUBIK, 1972; AROM, 1991)3. Assim, essas concepções de timeline foram elaboradas visando o entendimento estrutural e analítico ao invés de serem um suporte ou
técnica para a execução musical. Ou seja, os instrumentistas presentes nas gravações e/
ou performances (incluindo a dança, além da música) observadas pelos pesquisadores
não tinham em mente as timelines, assim como não pensaram em rítmica aditiva, polirritmia, hemíola e síncope (AGAWU, 2006; FREITAS, 2010). Esses e outros termos são
conceitos musicológicos de herança europeia, que tiveram suas elaborações partindo
do princípio de que a estrutura musical, e todos os seus elementos (harmonia, melodia,
ritmo, forma etc.), encontram regularidade no repertório tradicional da Europa. O autor
desta investigação está ciente das questões que a análise estrutural de uma peça com
elementos musicais de matriz africana pode suscitar, e por isso há uma abordagem crítica com relação à teoria musical de cunho eurocêntrico.
O debate teórico apresentado na primeira parte do texto contribuirá para uma
noção abrangente do conceito de timeline, não se restringindo ao viés estruturalista
2
A monografia foi apresentada como trabalho de conclusão do curso de Bacharelado em Música Popular (FAP/UNESPAR – Campus de
Curitiba II), orientada pelo Prof. Dr. Luciano Chagas Lima.
3
Conforme será visto mais adiante, Nketia (1963) foi o primeiro a utilizar o termo timeline. Porém, Jones (1959) utilizou o termo “african signature tune” para se referir a determinados padrões rítmicos que posteriormente foram denominados de timeline, a exemplo do standard pattern – objeto
central do artigo Structural Analysis or Cultural Analysis? Competing Perspectives on the “Standard Pattern” of West African Rhythm (2006), de Agawu.
Fábio Marinho
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e musicológico, considerando aspectos sociais, históricos e culturais (AGAWU, 2006;
MENEZES, 2018). Portanto, a timeline, na condição conceitual problematizada, foi eleita
como ferramenta metodológica de análise, ainda que não haja vestígios encontrados
de qualquer depoimento sobre o conhecimento da ideia geral de timeline por parte do
compositor. Esse ponto leva à questão da intencionalidade na análise musical: Moacir
Santos sabia o que era timeline e, de fato, utilizou-a em composições de forma consciente? Se não, ainda assim é possível desenvolver o conceito de timeline aplicando
na análise de estrutura rítmica? Entende-se que mesmo quando há depoimento de intencionalidade, o pensamento analítico pode trilhar outros caminhos interpretativos,
enfraquecendo a ideia de que a intenção do compositor orienta a uma essência na peça
musical a ser explicada e revelada por meio da análise. Em How We Get Out of Analysis,
and How to Get Back In Again (2005), Agawu argumenta, embasando-se no pensamento analítico de Theodor Adorno (1903-1969)4:
O analista não deve ser distraído pela questão da intencionalidade, como fazem
os céticos ao se perguntarem se o compositor estava consciente das relações
desenterradas pelo analista. A análise não é mera descrição, nem é limitada por
uma consideração de todos ou da totalidade; poderia, com a mesma legitimidade, preocupar-se com partes ou fragmentos. E cada análise deve produzir um
resultado exclusivo para o trabalho; deve trazer à tona o problema, ou – como
diríamos hoje, talvez – a problemática única de cada obra (AGAWU, 2005, p. 272,
tradução nossa)5.
Por outro lado, a intenção do compositor em criar a trilha musical para uma procissão de negros no contexto sócio histórico da escravidão, inserida em longa metragem
servindo de base para a gravação do álbum “Coisas”, é usada como dado importante na
análise, pois é possível fazer conexões com a influência da música de matriz africana na
peça6. Assim, a proposta analítica articulada neste trabalho leva em consideração esse
mote para investigar como Moacir Santos estruturou a rítmica por meio das timelines
em “Coisa nº 5”. O que se faz neste artigo é uma análise com foco no aspecto rítmico,
mas também incorporando elementos de ordem melódica, enfocando na parte A, que
possam auxiliar em uma melhor compreensão da peça. Com isso, priorizou-se a verticalidade da composição, os contrastes entre as ideias musicais articuladas por Moacir
Santos e as texturas polirrítmicas7. Antes disso, há um breve resumo biográfico do compositor, uma ampla discussão conceitual sobre timeline e uma contextualização do ál-
4
Theodor Ludwig Wiesengrund-Adorno foi um sociólogo, filósofo, musicólogo e compositor alemão do século XX que pertenceu à Escola
de Frankfurt, versando sobre indústria cultural e música popular.
5
Original: “The analyst must not be distracted by question of intentionality, as when sceptics wonder whether the composer was conscious of relationships unearthed by the analyst. Analysis is not mere description, nor is it bound by a consideration of wholes or of totality; it could
just as legitimately concern itself with parts or fragments. And each analysis must produce a result unique to the work; it must bring out the
problem, or - as we would say today, perhaps - the unique problematic of each work”.
6
O longa metragem referido é “Ganga Zumba” (1964), de Carlos Diegues, e será abordado posteriormente junto com o depoimento de
Moacir Santos sobre a intenção.
7
O termo verticalidade refere-se à uma visão das interações rítmicas presentes na peça, do topo da partitura até o último instrumento
na grade. Por isso, as análises possuem como um dos critérios a perspectiva, ou o olhar, vertical sobre as ideias composicionais.
Fábio Marinho
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bum “Coisas”, elucidando aspectos que nortearam o processo composicional. Em 2005,
Mário Adnet e José Nogueira realizaram um importante trabalho de reconstrução das
partituras originais do álbum “Coisas”, as quais desapareceram com o fim do selo Forma, resultando na publicação do livro de partituras “Coisas: cancioneiro Moacir Santos”
(2005), material que é fonte de consulta.
Moacir Santos
Moacir José dos Santos nasceu em 1926 entre os municípios de Serra Talhada (antiga Vila Bela), Flores, São José do Belmonte e Bom Nome, no sertão pernambucano. De
acordo com a pesquisa biográfica realizada por Dias (2010), até os 16 anos, aproximadamente, o músico não possuía um documento que comprovasse sua data de nascimento. Foi batizado na Capela de Santo Antônio do município de Bom Nome com o nome
de “Muacy”. Negro, órfão da mãe aos 3 anos de idade e com um pai ausente, Moacir
foi cursar o ginásio no município de Flores, a 340 km de Recife. Já como integrante da
Banda Municipal, Moacir recebeu o seu primeiro cachê tocando trompa nas festividades
religiosas. O período entre os 11 e 14 anos de idade foi considerado por ele como a fase
áurea de sua vida, quando tocou em vários eventos nas cidades vizinhas. Sua intuição o
levava a “apanhar sua estrela” – termo usado pelo músico em depoimento - algo semelhante a uma estrela guia que norteia os caminhos de uma pessoa em busca de realização pessoal, sentido de vida, vocação (DIAS, 2010, p. 42).
Durante a juventude, Moacir Santos percorreu várias cidades brasileiras exercendo
atividades musicais, passando pelos estados da Bahia, Paraíba, Ceará, São Paulo e Rio de
Janeiro. Na cidade do Rio de Janeiro foi onde o compositor passou a maior parte do seu
tempo trabalhando com música, tendo como destaque o emprego na Rádio Nacional
como arranjador, e posteriormente como maestro. Em 1967, dois anos após a gravação
do álbum “Coisas”, Moacir Santos muda-se para os Estados Unidos, onde foi trabalhar
com trilhas musicais para filmes na Califórnia e gravou mais quatro álbuns: “Maestro”
(Blue Note/1972), “Saudade” (Blue Note/1974), “Carnival of Spirits” (Blue Note/1975) e
“Opus 3 nº 1” (Discovery Records/1979).
Em 1998, os músicos cariocas Mario Adnet e Zé Nogueira começaram o projeto
“Ouro Negro”, que se concretizou a partir do lançamento do CD duplo em 2001, através do selo MP,B e distribuído pela Universal, sob patrocínio da Petrobras. O repertório
inclui músicas de toda a carreira do compositor pernambucano, inclusive as “Coisas”,
com exceção da “Coisa nº 3”. Impossibilitado de tocar por conta de problemas de saúde, Moacir voltou ao Brasil e acompanhou as gravações do CD, fato que foi muito importante na condução dos ensaios. As partituras das “Coisas”, que se perderam após o
fechamento do selo Forma, foram reescritas por Mario Adnet e Zé Nogueira e revisadas
pelo compositor (DIAS, 2010, p. 154). Anos depois, os músicos cariocas se dedicaram à
gravação do CD “Choros e Alegria”, lançado pelo selo Biscoito Fino, em 2005. O álbum
reúne choros antigos do jovem Moacir juntamente com músicas não gravadas compostas na época em que morava na cidade de Pasadena. A dupla Mario Adnet e Zé Nogueira
Fábio Marinho
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também lançou o “Cancioneiro Moacir Santos” (Jobim Music, 2005), que possui três
volumes com partituras do “Ouro Negro”, das “Coisas” e do álbum “Choros e Alegria”. A
publicação de todos esses trabalhos foi crucial para a revalorização da obra do compositor em solo brasileiro.
Com a saúde cada vez mais debilitada, Moacir Santos faleceu no dia 6 de agosto
de 2006, na cidade de Pasadena, estado da Califórnia, nos Estados Unidos. Noticiado na
imprensa nacional e internacional, seu falecimento foi de grande perda para a comunidade musical: a estrela de “Muacy” foi brilhar em outro lugar.
Timeline
O termo timeline foi incialmente usado pelo etnomusicólogo ganense Joseph
Hanson Kwabena Nketia (1921-2019) na década de 1960, quando estudava a rítmica
musical da costa ocidental africana, significando um “ponto de referência constante
pelo qual a estrutura da frase de uma música, bem como a organização métrica linear
das frases são guiadas” (NKETIA, 1963, tradução nossa)8. A expressão obteve grande
repercussão no estudo da música africana (KUBIK, 1972; AROM, 1991; AGAWU, 2006;
AGAWU, 2016) e da música afro brasileira (OLIVEIRA PINTO, 1999-2001; SANDRONI,
2001; LEITE, 2017; RIBEIRO, 2017; MENEZES, 2018), e com isso a literatura demonstra
uma variedade de conceitos sobre timeline. Esta seção objetiva expor algumas formulações conceituais e debater os pontos relevantes a serem observados na análise. O
etnomusicólogo africano Kofi Agawu, também nascido em Gana, propõe uma definição
de timeline em palestra organizada pela Library of Congress, nos Estados Unidos9. Intitulada Rhythmic Imagination in African Music, a palestra apresenta os pontos centrais
do livro The African Imagination in Music (2016), de sua própria autoria. Na minutagem
36’57”, Agawu diz:
A timeline é um padrão rítmico de curta duração que é repetido na forma de
um ostinato, através de uma batida de percussão específica (...). Normalmente
atreladas ao uso de sinos, baquetas ou pedra, as timelines, muitas vezes, projetam uma forma distinta e até memorável. Embora existam padrões percussivos
de pulsação imutável, a maioria das timelines exibe pelo menos dois valores de
modo contrastantes, um longo e um curto. Isso, a propósito, é outro sinal do impulso minimalista que é difundido na criatividade africana. Embora a função dos
padrões timeline seja comparada, às vezes, com a de um metrônomo, há uma
diferença significativa. Diferindo do metrônomo, que demarca o tempo e com
isso ajuda a localizar a ‘parede de ataques sem acento’, as timelines esculpem o
tempo, elas são parte integrante da música. Cada timeline é, em princípio, estruturalmente dependente de uma fundação metronômica anterior (AGAWU, 2017,
informação verbal, tradução nossa)10.
8
Original: “A constant point of reference by which the phrase structure of a song as well as the linear metrical organization of phrases
are guided”.
9
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uyRG9T7CGt8&t=2619s. Acesso em: 30 mar. 2019.
10
Original: “A timeline is a rhythmic pattern of modest lenght that is repeated in a manner of austinato throughout a particular dance
drumming (...). Normally entrusted to the bell or custonet or sticks or stone, timelines often project a distinct perhaps even memorable shape. Although there are bells and sticks patterns made up of unchanging pulsation, the majority of timelines display at least two contrasting node values,
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Percebe-se nesta definição de Agawu as seguintes características da timeline: a)
padrão rítmico de curta duração, em forma de ostinato, tocado por instrumentos percussivos11; b) pulsação constante com dois valores de duração contrastantes; c) possui
função distinta daquela do metrônomo, uma vez que integra a música ao invés de ajudar
a localizar o tempo de maneira externa à música. Em seguida, serão apresentados alguns
conceitos formulados por pesquisadores brasileiros acompanhados de discussões.
Oliveira Pinto (1999-2001) busca sistematizar as estruturas sonoras da música afro
brasileira, que possui como alicerce a música de matriz africana. Segundo o autor, as
tradições musicais africanas se alastraram pelo continente americano originando, em
combinação com as tradições musicais dos povos originários, uma vasta lista de gêneros populares afro americanos, na qual o blues, a rumba, o reggae, o jazz, o son cubano, a milonga, a salsa e o tango estão presentes. Com enfoque nas estruturas sonoras,
Oliveira Pinto, após os resultados de pesquisa da musicologia africana em convergência
com as pesquisas feitas no Brasil, relata: “encontramos estruturas sonoras que perduraram durante sua história (no Brasil) e que marcam as músicas afro-brasileiras” (OLIVEIRA PINTO, 1999-2001, p.91). Uma destas estruturas sonoras é a timeline, que o autor
traduz como “linha rítmica” e nos apresenta exemplos da sua inserção no samba e no
candomblé, duas importantes manifestações da música afro brasileira. Segundo ele, “os
time-line-pattern estão inseridos em uma grande variedade de repertórios de música
brasileira e funcionam como linha rítmica de orientação para as demais partes da música na sua sequência temporal” (OLIVEIRA PINTO, 1999-2001, p.95).
Menezes (2018), ao investigar como se deu a influência da música africana no Brasil, considera a formação do sistema atlântico escravista na colonização do país como
alicerce desse entendimento, em que a diáspora africana envolveu a convivência forçada de povos distintos. A historicidade é um elemento fundamental para a compreensão desse fenômeno, e por isso é preciso combater as tendências de descolamento da
análise musical, em geral, com relação à contextualização social, cultural e histórica de
perspectiva crítica. Entendendo esse processo, o autor trata da formação do samba urbano carioca, especificamente sobre seus padrões rítmicos, a partir da coexistência de
diferentes práticas musicais ali existentes no período colonial projetada no século XX.
Por isso, não há como tratar de timeline sem mencionar esse passado e sem considerar
questões culturais africanas, tais como a tradição, a oralidade e a dança.
Embora a timeline se mantenha como elemento estruturante da música afro brasileira, Oliveira Pinto constata que “no Brasil houve uma ressignificação do time-line¬
africano em relação ao seu novo meio musical (...). Há momentos em que certas batidas
do time-line são suprimidas, como se pode verificar com frequência na MPB” (OLIVEIRA
PINTO, 1999-2001, p.97). Neste caso, o autor se refere aos momentos, principalmente
a long and a short. This, by the way, is another sign of the minimalist impulse that is widespread in african creativity. Although the function of
timeline patterns is sometimes likened to that of a metronome, there is a significant difference. Unlike metronomes wich mark time and thus help
to locate patterns against a wall of accentless strikes, timelines carve time, they are integral to the music. Each individual timeline is in principle
structurally dependent on prior metronomic foundation”.
11
Ostinato é uma palavra italiana que significa obstinado, em tradução literal para o português. Como termo musical, traz a ideia de
repetição de uma frase rítmica e/ou melódica.
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na prática do samba, em que a timeline não é tocada exclusiva e integralmente por um
determinado instrumento, sendo distribuída através das diferentes partes instrumentais
e funcionando como referência interna para os músicos. Segundo ele, o fato de o padrão rítmico da timeline não estar sendo “marcado com a batida de um tamborim, não
significa que a fórmula não esteja presente no fazer musical. É mentalizada pelos músicos e inerente às diferentes sequências instrumentais do conjunto” (OLIVEIRA PINTO,
1999-2001, p.99).12
Sandroni (2001), por sua vez, traduz o termo timeline como “linha-guia” e elabora
o seguinte conceito:
Em muitos repertórios musicais da África Negra, ‘linhas-guia’ representadas por
palmas, ou por instrumentos de percussão de timbre agudo e penetrante (como
idiofones metálicos do tipo do nosso agogô), funcionam como uma espécie de
metrônomo, um orientador sonoro que possibilita a coordenação geral em meio
a polirritmias de estonteante complexidade. O fato é que essas ‘linhas-guia’ têm
especial predileção por fórmulas assimétricas como as mencionadas, que são,
então, repetidas em ostinato estrito, do início ao fim de certas peças (SANDRONI, 2001, p.31).
Desta maneira, de acordo com Sandroni a timeline: a) é produzida por instrumentos de percussão de timbre agudo; b) assemelha-se ao metrônomo, funcionando como
um orientador sonoro13; c) possui, em sua maioria, fórmulas assimétricas executadas
em longas repetições. No que concerne à semelhança com o metrônomo como um
orientador sonoro, o autor traz a ideia de “ostinato variado”, termo criado pelo etnomusicólogo franco-israelense Simha Arom. Sandroni afirma que “(...) a fórmula rítmica
assimétrica ora é repetida, ora variada através de improvisações do músico responsável
pela ‘linha-guia’. Estas variações em muitos casos obedecem ao princípio da subdivisão,
ou seja, a decomposição de valores menores (...)” (SANDRONI, 2001, p.25). Assim, a timeline, embora seja geralmente executada da mesma maneira em toda a música (ostinato estrito), não é sempre reproduzida de forma regular, podendo incorporar variações
(ostinato variado).
Já com relação às fórmulas assimétricas executadas em longas repetições, o autor
apresenta as expressões “cometricidade”, “contrametricidade” e “síncope” para explicar
as fórmulas assimétricas das timelines. As expressões “cometricidade” e “contrametricidade” são usadas por Simha Arom e por Mieczyslaw Kolinski (1901-1981), e o termo
“síncope” advém do sistema de notação musical europeu do século XIX. Essas expressões foram criadas para designar o tipo da articulação rítmica associada à métrica da
musicalidade europeia. Ou seja, se a articulação é irregular à métrica, ela é contramétrica. Sandroni afirma: “uma articulação rítmica será dita cométrica quando ocorrer na primeira, terceira, quinta ou sétima semicolcheia do 2/4; será dita contramétrica quando
ocorrer nas posições restantes, à condição de não ser seguida por nova articulação na
12
A internalização da timeline pelos músicos será melhor tratada adiante através de Leite (2017).
13
A semelhança da timeline com o metrônomo pode ser lida na citação anterior de Agawu (2017) e também será abordada em detalhe
mais adiante nas reflexões de Ribeiro (2017).
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posição seguinte” (SANDRONI, 2001, p.26-27). Para Sandroni, a “síncope” surgiu quando os compositores europeus do século XIX quiseram representar em suas partituras os
ritmos africanos que ouviam, grosso modo14. Porém, esses ritmos misturam as divisões
rítmicas binária e ternária enquanto a concepção rítmica europeia (de tradição clássico-romântica) é baseada na separação dessas divisões. Como o sistema de notação
utilizado pelos compositores não prevê a coexistência de grupos rítmicos binários e
ternários, esses ritmos foram considerados irregulares e compostos por “síncopes”, por
meio do recurso das ligaduras (SANDRONI, 2001, p.26). Ele explica:
Nossa teoria musical clássica prevê dois tipos de compasso, os simples e os
compostos. Nos compassos simples, as unidades de tempo são binárias. Por
exemplo, nos compassos 2/4, 3/4 e 4/4, a unidades de tempo são as semínimas, que, dividindo-se sempre por dois, serão equivalentes a duas colcheias ou
quatro semicolcheias etc. (Os casos em que semínimas são divididas do modo
ternário constituem exceções à regra, são chamados de ‘quiálteras’ e exigem
sinalização especial). Por outro lado, nos compassos compostos, como o 6/8
ou o 9/8, as unidades de tempo são ternárias e são representadas por semínimas pontuadas (divididas portanto em três colcheias). Mas o fato é que não
há compassos que misturem de modo sistemático agrupamentos de duas e de
três pulsações, como semínimas e semínimas pontuadas. É precisamente esta
mistura que vai desempenhar um papel muito importante nas músicas da África
subsaariana (SANDRONI, 2001, p.24).
Dito isto, a assimetria presente nas timelines a que Sandroni se refere, advém do
termo “imparidade rítmica” cunhado por Simha Arom. Ao estudar a música africana,
Arom (1991) constatou que a combinação dos agrupamentos binários e ternários resultava sempre em um período rítmico par na soma, porém com sua estrutura interna
ímpar, ou seja, assimétrica (SANDRONI, 2001, p.24).
Fig. 1 – Assimetria na timeline (tresillo).
14
Para aprofundamento sobre a síncope e sua história conceitual, recomenda-se a leitura de Freitas (2010). Em artigo, o autor faz uma
criteriosa análise histórica da síncope na tradição europeia, relacionada ao tratamento melódico/harmônico, antes de problematizar a síncope
como uma espécie de DNA rítmico da música brasileira.
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Fig. 2 – Assimetria na timeline. Período rítmico par em sua soma, com 8 pulsações internas, porém, apresenta
disposição interna ímpar: 3 + 3 + 2.
Letieres Leite (2017)15 buscou justificar a importância da timeline na música de matriz africana ao escrever sobre a aplicação do seu “Método Universo Percussivo Baiano”
(UPB) na primeira turma do Laboratório Musical Rumpilezzinho16. Para se referir à timeline, ele adota o termo em espanhol “clave”, oriundo do sistema musical cubano, e que
literalmente significa “chave” em português, sugerindo um elemento responsável pela
conexão com a estrutura rítmica da música, podendo “abrir portas” – a propósito, o
termo “clave” também pode ser traduzido como truque, macete ou segredo em sentido
figurado. Segundo Leite:
CLAVES – AS CHAVES RÍTMICAS: Também conhecidas como ‘linhas-guia’, ‘time-line’, ‘padrão rítmico’, ‘toque’ (nas religiões afro-brasileiras). Ao longo deste relato, seguirei adotando a denominação ‘clave’, pelo fato de ter me ‘iniciado’ com
músicos cubanos nesta matéria. Em suma, ‘clave’ pode ser entendida como a
menor porção rítmica que define não só um ritmo, como aponta para a sua localização geográfica, sua origem e percurso étnico e histórico (LEITE, 2017, p.18).
Seu interesse na complexidade rítmica da música brasileira o levou a concluir, através das suas pesquisas, que a perspectiva musical europeia (modelo dominante nas instituições de ensino) não é suficiente para explicar as peculiaridades da cultura musical
nacional (LEITE, 2017, p.17). Considerando a música brasileira estruturada pelos elementos da música africana, principalmente no que tange às suas organizações rítmicas,
Leite converge com as ideias de Oliveira Pinto e Sandroni, já explicitadas anteriormente.
Ao afirmar que a clave é o segredo, ele diz: “percebi que nossa música (brasileira) era
constituída e estruturada da mesma forma que a música cubana, inclusive pelas influências comuns de matrizes africanas, e que as claves se mantinham, mas mudavam apenas
seus acompanhamentos (...)” (LEITE, 2017, p.22).
Dessa forma, Leite (2017) ressalta a importância da timeline através do processo
denominado “clave consciente”, originado em Cuba, aprendido com o maestro Alfredo
De La Fé (1954) no período que morou e estudou em Viena, Áustria17. O processo da
15
Criador, maestro, compositor, arranjador e multi-instrumentista da Orkestra Rumpilezz, grupo instrumental baiano de música matricial
africana formado por percussão e sopros. Em 2019, a orquestra gravou um álbum de releituras das “Coisas”, de Moacir Santos.
16
Projeto de formação musical de jovens idealizado por Letieres Leite na cidade de Salvador (BA), em 2014. Foi vencedor do edital do
programa Natura Musical do respectivo ano e desenvolve atividades de prática em conjunto, arranjo, composição e história da música afro baiana.
O diminutivo refere-se à Orkestra Rumpilezz, sugerindo uma orquestra mirim.
17
Alfredo Manuel De La Fé, violinista de origem cubana radicado em Nova Iorque. É considerado o responsável por destacar e inovar a
forma de tocar o violino no gênero da salsa e da música latina.
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“clave consciente” envolve uma conexão entre o arranjo e a execução instrumental de
um determinado conjunto musical. Segundo Leite, essa coesão é que deixa as músicas
“amarradas”, por meio de muito rigor rítmico visando interiorizar a timeline. O termo
“amarrar” se refere ao entrosamento dos instrumentistas, que reflete a organização e
a qualidade do arranjo. Já o termo “consciente” envolve o entendimento da clave por
parte dos instrumentistas, na medida em que o corpo processa a informação rítmica de
forma satisfatória e coerente. A transmissão oral da clave possibilita que o músico receba a informação por outro caminho, que não o do processo racional da leitura musical
através de uma partitura. As claves são transmitidas e recebidas por outros sistemas de
cognição, proporcionando um entendimento pelo corpo, uma “apropriação corporal”
(LEITE, 2017, p.43).
Ao versar sobre a rítmica aditiva, Ribeiro (2017) discute seus componentes fundamentais: pulso, ritmo, polimetria, polirritmia, hemíola, periodicidade, timeline, entre
outros. A notação musical europeia pode gerar incoerências ao tentar organizar a música de matriz africana, uma vez que esta é baseada no conceito aditivo de rítmica e não
possui acentos regulares. Um exemplo é o uso equivocado de fórmulas de compasso
ocidentais, que acabam gerando acentuações inexistentes. Pelo fato da timeline apresentar, necessariamente, uma estrutura interna assimétrica, sua representação relaciona-se mais com uma concepção aditiva do que divisiva. A soma de dois grupos rítmicos
irregulares remonta à adição. Constata-se que o ritmo, pela lógica aditiva, necessita de
uma periodicidade para existir, na qual se materializa pela acentuação do pulso. Dessa
forma, a construção das timelines se dá pelas acentuações das pulsações de menor valor (elementares):
Fig. 3 – Formação da timeline por meio de acentuações em compasso ternário simples.
Fig. 4 – Efeito rítmico das acentuações.
Chega-se ao conceito de timeline elaborado por Ribeiro:
Timeline ou linha guia é o termo empregado para representar uma linha rítmica
curta, distinta, de ciclo simples, executada por palmas ou por um instrumento de
percussão de timbre agudo que serve como referência temporal em meio a out-
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ras linhas rítmicas simultâneas. (...) As timelines caracterizam-se por serem cíclicas e por não admitirem variações. Podem ser chamadas também de bell pattern, topos, clave, referência de fraseado ou linha temporal e podem ser tocadas,
por exemplo, por um agogô ou um par de claves. Representam uma camada da
textura rítmica que se forma por tambores, chocalhos, palmas de vozes que dão
suporte ou criam contraste durante uma performance (RIBEIRO, 2017, p.104).
Uma das principais características da musicalidade afro americana, ela salienta
que a timeline “não se trata apenas de um período musical básico estabelecido por um
instrumento, mas uma estrutura rítmica moldada que influencia todos os aspectos da
música e da dança” (RIBEIRO, 2017, p.104). Essa estrutura rítmica se assemelha a um ostinato, de modo que é executada por meio de uma frase curta com periodicidade invariável, podendo existir duas ou mais através de contraponto. Assim, cada timeline pode se
movimentar de forma independente, originando o cross rhythm, que é o cruzamento de
padrões rítmicos distintos. Ribeiro afirma que “as timelines caracterizam-se por serem
cíclicas e por não admitirem variações” (AROM, 1991 apud RIBEIRO, 2017, p.104) e neste
ponto converge com a ideia de um metrônomo. Porém, elas podem ser executadas em
qualquer lugar do ciclo:
Uma vez iniciado o ciclo, ele se repete imutável ao longo da peça. Tal limitação
é uma das razões pela qual alguns estudos fazem uma analogia entre a timeline
como função de metrônomo. Esta analogia não é muito feliz, pois o metrônomo
mensura o tempo com unidades repetitivas isócronas e amorfas enquanto que
a timeline molda o dimensionamento temporal por séries rítmicas geradas por
imparidades de 5 pulsos (2 + 3), 7 pulsos (2 + 2 + 3) ou 9 pulsos (2 + 2 + 2 + 3),
dispostas em uma ordenação plena de significado (RIBEIRO, 2017, p.109).
A definição dada por Agawu apresentada anteriormente aponta justamente para
esta diferença com relação ao metrônomo. Para o autor, o ponto principal está no fato
de o metrônomo marcar o tempo ao invés de esculpi-lo, enquanto a timeline usa um
ritmo esculpido para marcar o tempo (AGAWU, 2006, p. 7). Desse jeito, “mais que uma
pontuação metronômica de tempo: (a timeline) é uma fórmula rítmica/semântica assimétrica que sustenta o tempo de uma música polirrítmica complexa” (RIBEIRO, 2017,
p.109). Agregando o pensamento de Leite (2017), a timeline não precisa ser tocada por
algum instrumento no contexto da música afro brasileira, uma vez que a melodia e o
suporte rítmico/harmônico de acompanhamento já estão in clave, devido à consciência
de clave mencionada anteriormente18. É algo similar ao que Freitas (2010), ao problematizar o conceito de síncope, atribui a um modo de expressão musical que não envolve
uma questão exclusiva da composição. Segundo ele, “é um componente de interpretação e performance, um tipo de pronúncia ou sotaque que atua também (...) no tecido
rítmico dos ‘acompanhamentos’ destas melodias” (FREITAS, 2010, p. 141).
18
O termo in clave significa estar dentro da clave, ou seja, executar frases musicais inseridas na articulação proposta por uma determinada timeline. Assim, a música já vai estar in clave se for executada com a consciência de clave, sem necessariamente haver um instrumentista
tocando a timeline de forma estrita.
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Álbum “Coisas”
Foi no cenário plural e culturalmente agitado do Rio de Janeiro da década de 1960
que Moacir Santos organizou as suas “coisas” e lançou seu primeiro LP, em 1965, pelo
selo Forma19. Fora de catálogo durante décadas, o álbum ganhou versão remasterizada
em CD, como afirma Dias: “Mario Adnet e Zé Nogueira, associados ao produtor João
Linhares, coordenaram, em 2004, a reedição do LP Coisas em CD remasterizado a partir
da fita original, de 1965, e lançado pela Universal” (DIAS, 2010, p.161). Em 2013, a gravadora Polysom relançou o LP “Coisas” em vinil de 180 gramas, pela coleção Clássicos em
Vinil. O álbum, com suas dez faixas, é um marco na música instrumental brasileira por
conta de sua forte singularidade sonora (FRANÇA, 2007; DIAS, 2010; VICENTE, 2012;
BONETTI, 2014). Por possuir grande admiração e encanto pela música de concerto,
Moacir Santos quis nomear suas músicas seguindo a tradição clássica do opus, termo
latino que significa “obra”. Porém, ao invés de chamá-las de “Opus nº 1”, “Opus nº 2”,
preferiu “Coisa nº 1”, “Coisa n° 2” etc. França (2007) teve a oportunidade de entrevistar o
compositor em abril de 2006. Sobre o título “Coisas”, o compositor comenta:
(...) eu, quando na minha vida de estudos, fiquei muito entusiasmado com a erudição, o clássico... eu fiquei agarrado com a palavra opus. Quando eu cheguei na
gravação, a convite do Baden, no estúdio, o moço desceu da ... técnica e disse:
maestro, qual é o nome dessa... aí eu disse: isso é uma coisa. Por que? Porque eu
gostaria de dizer opus 5, number tal, mas é uma coisa muito elevada para mim.
Pelo menos naquela ocasião, naquela época... Mas eu sei que eu estou muito
mais maduro, em vez de opus qualquer, no popular, jazz. Mas eu ainda não posso
dizer opus, não, porque eu sempre fui admirador do clássico também, a música
erudita, quer dizer, desenvolvimento e etc... então é uma coisa: Coisa nº 1, Coisa
nº 2... (FRANÇA, 2007, p.142-143).
De acordo com Bonetti (2014)20, parte do disco origina-se da trilha sonora composta por Santos para os filmes “Ganga Zumba” e “O Beijo”, de Carlos Diegues e Flávio Tambellini, respectivamente, ambos lançados em 1964. Segundo o pesquisador, as
“Coisas” de número 4, 5 e 9 são desdobramentos da trilha sonora em “Ganga Zumba”
enquanto as “Coisas” de número 2 e 8 tiveram origem na trilha de “O Beijo”. Sobre a
trilha sonora de “Ganga Zumba”, Dias (2010) explica a sua importância para o processo
composicional das “Coisas” (1965):
A trilha sonora de Ganga Zumba antecipou sonoridade que se tornaria a marca
característica de Moacir Santos a partir do lançamento do seminal LP Coisas, em
1965, pelo selo Forma. Constam na trilha, além do tema de abertura ‘Nanã’, os
que posteriormente conhecidos como ‘Coisa nº 4’, ‘Coisa nº 9’ e ‘Mãe Iracema’,
19
Fundado por Wadih Gebara e Roberto Quartin no Rio de Janeiro, o selo Forma voltava-se à produção e difusão de artistas de pouca
projeção no cenário nacional, em oposição às grandes gravadoras Philips, Odeon, RCA e CBS.
20
Lucas Zangirolami Bonetti é criador e produtor do projeto “Trilhas Musicais de Moacir Santos” (Itaú Cultural/FAPESP), que visa sistematizar, analisar e divulgar as trilhas sonoras compostas por Moacir Santos ao longo de sua carreira em plataforma digital. As transcrições musicais
contam com revisão do pianista André Mehmari e inclui depoimentos de Andrea Ernest Dias, Ney Carrasco, Paulo Tiné, Mario Adnet, Moacir Santos Jr., Zé Nogueira, Wynton Marsalis, entre outros. Disponível em: http://www.trilhasmoacirsantos.com.br/.
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em instrumentações que variam do tratamento a capella às combinações tímbricas de piccolo, flauta, clarinete, clarone, fagote, saxofone, trombone e percussão, em que predomina a utilização de atabaques e tímpanos. Ganga Zumba
funcionou como uma espécie de laboratório para o LP Coisas (grifo meu) (DIAS,
2010, p.107).
Essas e outras “coisas” já vinham sendo anotadas por Santos em um caderno, chamado por Dias de caderno “Pré-Coisas”. Observa-se na lista abaixo (Fig. 5) que cada “Coisa”
possui um padrão rítmico aplicado à melodia que funciona como mote da composição.
Fig. 5 – Manuscrito de Moacir Santos no caderno “Pré-Coisas”. Fonte: Dias (2010).
Esses padrões são oriundos dos “Ritmos MS” juntamente com a influência da diversidade de ritmos afro brasileiros que nortearam o processo composicional de Moacir
Santos no álbum “Coisas”. Os “Ritmos MS” foram criados pelo músico, com a denominação aludindo às suas iniciais, como um recurso pedagógico e composicional, como será
visto mais adiante. Segundo Dias, “trata-se de pequenos padrões rítmicos que, combinados entre si, resultam na criação de motivos ou temas melódicos” (DIAS, 2010, p.77).
Fig. 6 – Exercícios de combinação dos “Ritmos MS”. Fonte: Dias (2010).
O crítico musical Sérgio Porto (1923-1968), em matéria para o jornal Última Hora,
sinaliza para as timelines, ainda que de forma menos técnica, ao tratar da repetição que
os instrumentos percussivos executam no primeiro LP do músico pernambucano: “o
tom afro das músicas de Moacir é incontestável e sua maneira de fazer de qualquer instrumento, um instrumento de percussão, às vezes de forma exaustiva (grifo meu) (...)”.
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Portanto, as timelines constituem uma ferramenta essencial para a análise das “Coisas”
de Moacir Santos, principalmente no que se refere à questão rítmica, que será discutida
em detalhe a seguir.
Análise
As composições do álbum “Coisas” encontram fundamento em alguns exercícios
rítmicos que o músico pernambucano criava para seus alunos na década de 1960, no
Rio de Janeiro. Moacir Santos ensinou pontos importantes da teoria musical a Baden
Powell, por exemplo, e parte desses ensinamentos resultou nos “Afro-sambas”, que são
um “conjunto de temas modais compostos por Baden Powell a partir dos exercícios de
composição sobre os modos gregos que Moacir aplicava em seus cursos, segundo depoimento do violonista” (DIAS, 2010, p.75)21. Os “Ritmos MS” faziam parte da estrutura
rítmica que Santos ensinava aos seus alunos e o uso que atribuía à combinação desses
ritmos pode ser remetido aos conceitos de timeline. A partir de uma motivação composicional, os “Ritmos MS” serviam como orientação rítmica na música, sejam executados
por instrumentos melódicos, harmônicos ou percussivos.
Dias (2010) identificou, com auxílio de percussionistas, os ritmos que podem ser
associados às composições do álbum “Coisas” e as de número 4, 5 e 9 foram remetidas
ao toque de candomblé denominado alujá. No entanto, Lühning (1990), ao se aprofundar na música do candomblé, afirma que o alujá é um ritmo solístico que tem como
base uma timeline de 12 pulsações iguais22, a qual é identificada por Cardoso (2006)
como vassi (Fig. 7)23. Agawu (2006) debruça-se sobre esse padrão rítmico, denominado
standard pattern pelos pesquisadores, elegendo-o como a principal timeline executada
na costa ocidental africana e que, consequentemente, foi objeto de análise na maioria
das pesquisas já feitas sobre o tema.
Fig. 7 – Timeline (Vassi).
Essa figuração rítmica remete-se à ideia geral de timeline, pois é executada por
um instrumento percussivo agudo (agogô) de maneira cíclica e repetitiva, orientando as
variações dos atabaques do candomblé: o rum, rumpi e lé. No entanto, nota-se que o
21
Composto por Baden Powell e Vinícius de Moraes, “Os Afro-sambas” (1966) é um álbum com forte sonoridade de matriz africana,
principalmente no que se refere à música de candomblé, atrelada ao samba.
22
Termo usado por Kubik (1972) para se referir às menores porções rítmicas de uma frase. Na notação utilizada (fig. 7), cada pulsação é
representada por uma colcheia, necessitando de 12 colcheias para preencher o ciclo da timeline.
23
Segundo Lühning (1990, p. 120), a timeline identificado por Cardoso (2006, p. 260) como vassi, é uma fórmula de organização rítmica
que compõe a base de vários ritmos solísticos além do vassi, como a avaninha e o ibí, e é a responsável por acompanhar a maioria das cantigas do
candomblé.
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compositor fez uma customização rítmica, visto que as timelines foram criadas por ele
mesmo, ainda que faça alusão a esse padrão rítmico. Vicente e Dias comentam:
Das dez Coisas de Moacir Santos, a nº 1 e nº 10, assim como várias de suas composições têm como referência o toque ijexá para a construção da levada da seção rítmica, em uma concepção não estritamente ligada à linha-guia. As gravações de Coisas (1965) são possivelmente as primeiras a proporem e estilizarem
este ritmo dentro no mercado fonográfico brasileiro, que se tornou constante ao
longo da produção de Moacir Santos (VICENTE, 2012, p.88).
No plano rítmico, fica clara a opção de Moacir Santos por estilizar os padrões da
cultura musical afro-brasileira, dando ao conjunto de Coisas uma caracterização
única na sonoridade instrumental dos anos 60, alcançada tanto pela associação
da instrumentação usual das bandas de música e big-bands jazzísticas à percussão típica dessa tradição cultural (atabaques, agogôs, afoxés, etc.) quanto pelo
tratamento polirrítmico dispensado ao contraponto (DIAS, 2010, p.14).
No mesmo sentido, França (2007) aponta para a criação da timeline em “Coisa nº
5”, quando discute a suposta referência do “jongo da Serrinha” na composição:
Enfatizamos, no entanto, que não se pode afirmar que a levada utilizada por
Moacir Santos seja retirada da levada do jongo da Serrinha, mas, somente, que
são semelhantes. Acreditamos que não haja uma levada única, original, da qual
Santos retirou material para uma estilização (grifo meu) e sim que, sendo Moacir
Santos um músico profissional atuante desde a infância em diversas cidades do
país, que cultivava a música afro-brasileira (...), o material utilizado para a criação
de uma nova levada (grifo meu) vinha do seu arcabouço musical adquirido por
sua vivência (...) (FRANÇA, 2007, p.117).
Coisa Nº 5
Conforme mencionado anteriormente, a “Coisa nº 5” possui origem no filme “Ganga Zumba” (1964), de Carlos Diegues. No entanto, na gravação do disco “Coisas” observa-se que ela agrega os seguintes elementos: a seção introdutória aparece no “tema
de procissão a Palmares” e as partes A e B, juntamente com a Coda, estão contidas no
“tema principal”24. Nas aparições do filme, os dois temas possuem, ao todo, a seguinte
instrumentação: voz, piccolo, flauta de bambu, clarinete, clarone, trompete, trombone,
agogô e atabaque (BONETTI, 2014). Já na versão para o álbum “Coisas”, os instrumentos são: flauta, trompete, sax alto, sax tenor, sax barítono, trompa, trombone, trombone
baixo, guitarra, contrabaixo acústico e percussão (ADNET; NOGUEIRA, 2005). Posteriormente, a “Coisa nº 5” teve uma versão com letra de Mário Telles que foi intitulada “Nanã”
e lançada no álbum “The Maestro” (1972), sem a seção introdutória:
24
Estas denominações temáticas foram dadas por Bonetti (2014).
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Fica claro que Moacir, para compor a versão da “Coisa nº 5” presente no álbum
Coisas, utilizou o material composicional de dois fragmentos diferentes de sua
trilha para Ganga Zumba. A introdução foi desenvolvida por meio do “tema da
procissão a Palmares” e o corpo principal da música a partir do “tema principal”.
Já a composição de “Nanã”, presente no disco The Maestro de 1972, só se baseia
no “tema principal” (BONETTI, 2014, p.283).
Moacir Santos escreve no encarte do CD “Ouro Negro”: “Fico muito feliz de vocês terem gravado a versão original, porque foi assim que ouvi e assim que fiz. É uma
grande procissão” (SANTOS, 2001, p.17). Em depoimento nas gravações do DVD “Ouro
Negro” (2005), o músico comenta que a música foi pensada a partir de uma procissão
de negros25. Nessa mesma ocasião, é ressaltado o caráter binário da composição, quando Zé Nogueira e Moacir Santos cantam a melodia da parte A e marcam o tempo com
as mãos. No “Caderno Pré-Coisas”, a anotação para a trilha de “Ganga Zumba” revela
o compasso binário simples (2/4) na melodia principal e o compasso binário composto
(6/8) na parte intitulada “ritmo”.
Fig. 8 – Anotações para a trilha sonora de “Ganga Zumba” (1965). Fonte: Dias (2010).
Entretanto, no livro de partituras “Coisas: Cancioneiro Moacir Santos” (2005), que
contou com revisão do próprio compositor, a música está escrita toda em compasso
binário composto (6/8), por isso, esta configuração será mantida na presente análise.
De acordo com Bonetti, “essa ambiguidade se dá pois ao se sobrepor os planos rítmicos
simples e composto o compositor (ou transcritor) pode escolher se basear em qualquer
um deles, utilizando quiálteras para encaixar a rítmica diferente” (BONETTI, 2014, p.65).
Na metade da seção introdutória, é revelada a sonoridade resultante da combinação entre melodia principal (flauta, trompete, sax alto e sax tenor), miolo (trompa e
trombone), ostinato (sax barítono, trombone baixo e contrabaixo) e percussões.
25
Depoimento contido em trecho extraído do DVD “Ouro Negro”, em que Moacir Santos conversa com Mário Adnet e José Nogueira. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gVeE7WZG_IY. Acesso em: 23 out, 2019.
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Fig. 9 – “Coisa nº 5” redução da textura da seção introdutória.
O miolo executa duínas (quiálteras de dois tempos em compasso composto) em
contraste com a divisão do ostinato.
Fig. 10 – “Coisa nº 5” hemíola na seção introdutória.
Moacir Santos comenta em entrevista a França: “Tem uma coisa chamada hemíola.
(...) eu uso muito hemíola, o dois para três” (FRANÇA, 2007, p.141). Trata-se de um fenômeno rítmico em que há uma coexistência de dois e três pulsos no mesmo intervalo de
tempo ou, como afirmam Cooper e Meyer, “no qual a oposição de três grupos tocados
contra dois grupos de três (2+2+2/3+3) é resolvido depois de seis tempos” (COOPER;
MEYER, 1960 apud VICENTE, 2012, p.93). Sobre a “Coisa nº 5”, Dias ressalta que “o plano
rítmico é todo estruturado na perspectiva polirrítmica, justapondo agrupamentos binários a ternários (grifo meu), (...) uma das características do mundo sonoro afro-ocidental” (DIAS, 2010, p.213). Finalmente, Ribeiro comenta:
Uma vez que um compasso 3/4 e o compasso 6/8 têm o mesmo número de
colcheias, é possível mudar o agrupamento binário de três colcheias para um
agrupamento ternário de duas colcheias. Esta troca entre binários e ternários
no mesmo nível métrico, chamada ocidentalmente de hemíola (grifo meu) (...)
(RIBEIRO, 2017, p.98).
A marcação feita pelo ostinato e pelo agogô apontam para a formação de uma
timeline na introdução da música. Conforme mencionado anteriormente, pelo fato de
ser um instrumento percussivo de timbre agudo que possui linha rítmica cíclica repetida
ao longo da música, o padrão rítmico do agogô é priorizado nesta parte como orientador rítmico.
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Fig. 11 – “Coisa nº 5” timeline na seção introdutória.
No final da seção introdutória, o Ritmo MS 1 (colcheia + duas semicolcheias – Fig.
6) está presente na caixa clara. Em 6/8, este ritmo gera um efeito de hemíola, pois é articulado três vezes em dois tempos.
Fig. 12 – “Coisa nº 5” Ritmo MS 1 na caixa clara (compassos 20 e 21).
Reescrevendo esse trecho em 3/4, o Ritmo MS 1 torna-se mais evidente.
Fig. 13 – “Coisa nº 5” Ritmo MS 1 em 3/4.
Mais adiante, entretanto, a acentuação executada pela caixa clara remete ao Ritmo
MS 2 (duas semicolcheias + colcheia, ou seja, uma inversão do Ritmo MS 1).
Fig. 14 – “Coisa nº 5” Ritmo MS 2 e timeline na caixa clara (compassos 22 e 23).
Esta unidade é repetida quatro vezes, finalizando com um quinto ataque do rulo
no segundo compasso. É importante atentar para a seguinte observação: em dois compassos binários compostos (somando quatro tempos no total), com a subdivisão de três
colcheias em cada tempo, há cinco acentuações na execução da caixa, sendo que a
última rompe com a regularidade dos motivos. Esse padrão rítmico se mantém durante
quase toda a música e pode ser considerado uma timeline, pois, além de ser executado
por um instrumento percussivo agudo, tem uma irregularidade interna. Assim, ele tam-
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bém pode ser encarado como orientador rítmico na composição, sobretudo porque o
último ataque na caixa contraria a duração regular dos anteriores. Fazendo uma redução
do padrão rítmico da Figura 17 com base nas acentuações, obtém-se a seguinte timeline:
Fig. 15 – “Coisa nº 5” redução da timeline (compassos 22 e 23).
A parte A, enfoque desta análise, é formada por uma frase melódica de oito compassos com um desenho periódico, ou seja, uma ideia básica de dois compassos seguida por uma ideia contrastante, executada pelo sax barítono e trombone.
Fig. 16 – “Coisa nº 5” melodia principal - parte A.
Em uma primeira versão, a “Coisa nº 5” foi escrita em 2/4, como se pode comprovar nos esboços contidos no “Caderno Pré-Coisas” do compositor (ver Fig. 5). Com a
finalidade de comparar a escrita das duas versões, as figuras abaixo mostram o trecho
inicial da melodia no “tema principal” e na parte A da “Coisa nº 5” em 2/4 e 6/8, respectivamente26. Além das fórmulas de compasso, é importante também perceber as
diferenças rítmicas entre as duas frases melódicas ocasionadas por diferentes padrões
rítmicos no acompanhamento, que funcionam como um molde que esculpe a melodia
(AGAWU, 2006; AGAWU, 2017).
Fig. 17 – “Coisa nº 5” tema principal em 2/4.
26
As melodias das Figuras 17 e 18 encontram-se uma oitava abaixo em comparação à melodia presente na Figura 16.
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Fig. 18 – “Coisa nº 5” tema principal em 6/8.
A melodia principal da parte A (Fig. 16) é moldada pela interação do miolo com o
ostinato na seção rítmica, presente na figura abaixo. Desta vez o miolo é executado pelo
trompete, saxofones alto e tenor, trompa e guitarra (que condensa as quatro vozes dos
sopros) enquanto o ostinato é composto somente pelo trombone baixo e contrabaixo.
Esta ideia possui uma unidade de dois compassos que é repetida cinco vezes.
Fig. 19 – “Coisa nº 5” interação entre miolo e ostinato.
Para esclarecer, observa-se que a primeira parte da melodia (Fig. 18), composta
pelas primeiras 9 notas, já revela o molde firmado pela interação acima (Fig. 19). A figura
abaixo reúne o curto trecho da melodia principal e seu acompanhamento (miolo + ostinato)27. Com isso, contata-se que o acompanhamento funciona como uma timeline, na
medida em que esculpe a melodia.
Fig. 20 – “Coisa nº 5” início da melodia principal e acompanhamento
Em uma visão vertical, constata-se que os padrões rítmicos da Figura 19 se complementam. É possível relacionar aquela figuração com o mojo, que é “uma nova estilização rítmica de concepção pessoal, (...) levada criada pelo compositor (Moacir Santos)
que se tornou conhecida no meio musical” (FRANÇA, 2007, p.90)28. Segundo Dias, ao
27
Para facilitar a visualização na Fig. 20, o acompanhamento está escrito na clave de sol e a parte do ostinato (graves) está uma oitava acima.
28
Na cultura afro americana, mojo é um pequeno objeto ou bolsa que representa magia, feitiço ou amuleto. Geralmente, é utilizado na
prática do hoodoo ou voodoo.
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criar “um jogo contrapontístico entre graves e agudos (grifo meu), o compositor faz
com que os instrumentos melódicos e harmônicos também participem da ideia percussiva que constitui o mojo” (DIAS, 2010, p.175). Certamente, o mojo é um traço marcante
da sonoridade de Santos. Em entrevista a França, ele conta sobre a sua criação:
E: Sobre a fase dos Estados Unidos, o Sr. criou um ritmo que é chamado de
Mojo...
M: Eu cheguei lá nos Estados eu vi um ritmo... então eu criei o Mojo, eu inventei
essa palavra: Mojo [...] vindo do negro americano.
E: O Sr. criou esse ritmo porque os músicos americanos tinham dificuldade de
tocar samba?
M: Não, criei por vaidade mesmo, porque ouvi uma expressão negroide, da África. O negro foi espalhado pelo mundo inteiro. Então, naturalmente, o negro
americano veio da África. Ele é diferente, anda diferente. Então eu inventei uma
coisa diferente também, como um negro brasileiro, semi-americano (FRANÇA,
2007, p.144).
Em uma redução incluindo o miolo e o ostinato em uma mesma pauta, percebe-se
mais claramente a relação com o mojo através de duas alturas: uma grave (ostinato) e
outra aguda (miolo). Vale ressaltar que o exemplo abaixo representa uma das várias figurações possíveis do mojo.
Fig. 21 – “Coisa nº 5” mojo.
Na figura abaixo, verifica-se que a redução da timeline da caixa clara (Fig. 18) está
presente no mojo através das acentuações. Assim, de certa maneira o mojo pode ser
visto como uma variação desta timeline reduzida.
Fig. 22 – “Coisa nº 5” timeline x mojo.
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A figura abaixo mostra as interações e os contrastes entre o miolo, o ostinato e a
caixa clara na parte A. Dessa maneira, observa-se de forma vertical momentos de complementariedade e de sobreposição na textura do acompanhamento elaborado pelo
compositor, servindo de base para a melodia principal na parte A em “Coisa nº 5”.
Fig. 23 – “Coisa nº 5” seção rítmica.
Considerações Finais
Este trabalho teve como objetivo principal analisar o aspecto rítmico em “Coisa
nº 5”, de Moacir Santos, tendo com base a timeline como ferramenta metodológica.
Procurou-se demonstrar como a música de matriz africana, especificamente da costa
ocidental, está presente na obra de Moacir Santos por meio de sua estrutura rítmica.
Através de uma ampla discussão sobre timeline, suas definições e implicações, este artigo propôs contextualizar e problematizar a formulação conceitual elaborada por um
viés unicamente estrutural, que não considera as questões sociais, históricas e culturais
que envolvem as timelines e, por conseguinte, as práticas musicais do oeste africano.
Assim, foi possível constatar a pluralidade nos conceitos, descartando uma visão definitiva sobre timeline, que se encontram em um processo de construção marcado por
discordâncias e disputas. Assim como a timeline, outros conceitos elaborados pela musicologia de herança europeia foram concebidos pela lógica da regularidade supostamente encontrada no repertório tradicional da Europa. Diante disso, a questão passa a
ser cultural também, pois manifestações musicais não europeias são classificadas como
irregulares, fugitivas do padrão (AGAWU, 2006; FREITAS, 2010; LEITE, 2017; MENEZES,
2018). O texto da primeira parte deste trabalho foi calcado numa abordagem crítica ao
eurocentrismo presente na temática.
Em seguida, houve um aprofundamento analítico na relação das timelines presentes no acompanhamento com a melodia principal em “Coisa nº 5”, enfocando a parte A
da peça. O olhar vertical sob as linhas instrumentais foi fundamental para a percepção
dos contrastes musicais articulados pelo compositor e das texturas polirrítmicas. Foi
interessante notar, especificamente, como Moacir Santos engendrou duas esferas de
interação rítmica na peça analisada. A primeira é composta pela melodia principal e
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seu acompanhamento executado por toda a seção rítmica. Nela, foram observadas as
questões principais a serem comprovadas nesta pesquisa, relativas à estruturação rítmica da peça, em que o acompanhamento exerce o papel de timeline ao moldar, basear
e/ou esculpir a melodia (Fig. 20). Já a segunda esfera de interação acontece dentro da
seção rítmica, ou seja, é formada por suas relações internas entre o miolo, ostinato e
caixa (Fig. 23). Em resumo, a melodia principal é esculpida por um acompanhamento
já esculpido internamente. Em um primeiro momento de audição, o ouvinte tende a
perceber a seção rítmica de forma fragmentada, sem assimilar suas relações internas, e
posteriormente o entendimento mais amplo começa a ser feito.
É nesse sentido que esta investigação aponta para resultados concernentes à customização feita por Moacir Santos em “Coisa nº 5” ao criar as esferas de interação descritas acima em seu processo composicional, construindo uma sólida estrutura rítmica,
principalmente na parte A. As análises indicam que a customização dos padrões rítmicos pode ser atribuída ao papel que as timelines cumprem na música da costa ocidental
africana, na medida em que orienta a estrutura rítmica, principalmente no que se refere
à relação da melodia principal com o seu acompanhamento.
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Fábio Marinho
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Coisa nº 5
Moacir Santos
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10.5965/2525530405022020e0010
Equivalência de itens, semântica
e operacional da “Escala de
Musicabilidade: Formas de Atividade,
Estágios e Qualidades de Engajamento”
Item, semantic and operational equivalence of the
“Musicing: Forms of Activity, Stages and Qualities
of Engagement Scale”
Aline Moreira Brandão André1
Universidade Federal de Minas Gerais
aline.musicasax@gmail.com
Cristiano Mauro Assis Gomes2
Universidade Federal de Minas Gerais
cristianomaurogomes@gmail.com
Cybelle Maria Veiga Loureiro3
Universidade Federal de Minas Gerais
cybelleveigaloureiro@gmail.com
Submetido em 25/05/2020
Aprovado em 09/09/2020
Aline M. B. André é doutoranda em Música na Universidade Federal de Minas Gerais, tem mestrado em Música (2017) e bacharelado em Música - Musicoterapia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2014). Participou de pesquisas nos seguintes temas: protocolo
de atendimento, transtorno do espectro do autismo, patologias neurológicas, musicoterapia improvisacional, musicoterapia neurológica e
Escalas Nordoff Robbins.
1
Cristiano M. A. Gomes tem doutorado em Educação - UFMG, Pós-Doutorado em Psicologia Educacional, Universidade do Minho,
Portugal. É Professor do Departamento de Psicologia da UFMG, Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (UFMG e do Programa de Pós-Graduação em Neurociências (UFMG). Coordenador do Laboratório de Investigação da Arquitetura Cognitiva (LAICO). Bolsista de
Produtividade nível 2, CNPq.
2
Cybelle M. V. Loureiro tem bacharelado em Música; Graduação em Musicoterapia – Iowa University-EUA; Mestrado em Música
–EM-UFMG; Doutorado em Medicina – FM-UFMG e é Coordenadora da Habilitação-Musicoterapia ESMU-UFMG, Professora da Pós-graduação em Música da ESMU-UFMG e Neurociências – ICB-UFMG.
3
ORFEU, v.5, n.2, 2020
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Equivalência de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade:
Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”
Resumo
Na década de 1960, os pesquisadores
Nordoff e Robbins começaram a desenvolver escalas para avaliação em atendimentos
musicoterapêuticos. Dentre elas, a “Escala
de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”. Esta
escala foi desenvolvida para avaliar as “sutilezas” presentes na produção musical de
um paciente em um atendimento musicoterapêutico. No Brasil, é grande a necessidade de instrumentos de medida validados
para nosso idioma. A fim de contribuir com
a validação no contexto musicoterapêutico
brasileiro, objetivamos avaliar a tradução
desta escala e seu respectivo manual explicativo. Como metodologia, realizamos
3 etapas do Modelo Universalista de Validação desenvolvido por Herdman, Fox-Hushby e Badia (1998) denominadas equivalência de itens, equivalência semântica
e equivalência operacional. Participaram
desse estudo 6 tradutores na etapa inicial
e 9 avaliadores no processo de avaliação
da tradução. Foram utilizados como instrumentos, a “Escala de Musicabilidade:
Formas de Atividade, Estágios e Qualidades
de Engajamento” e seu respectivo manual
explicativo. Foi elaborada para este estudo
uma Ficha para análise das traduções e um
Questionário de Análise da Equivalência de
Itens, Semântica e Operacional. De acordo
com a análise das respostas coletadas dos
avaliadores, a tradução dessa escala apresenta linguagem compreensível, seus itens
são pertinentes para o contexto brasileiro
e podem contribuir para futuras pesquisas
em musicoterapia e em música.
Abstract
In the 1960s, the researchers Nordoff
and Robbins started develop scales in
order to assess music therapy services.
Among them the “Musicing: Forms of Activity, Stages and Qualities of Engagement Scale”. This scale was developed to
evaluate subtleties present in the musical
production from a patient taking part on
music therapy service. In Brazil, there is a
great demand for validated measurement
instruments in Brazilian language. In order
to contribute to the validation in the Brazilian music therapy context, this work aims
to evaluate the translation of this scale and
its respective explanatory manual. As a
methodology, we performed 3 steps from
the Universalist Validation Model developed by Herdman, Fox-Hushby and Badia
(1998), named item equivalence, semantic
equivalence and operational equivalence.
Six translators participated in this study
in the initial stage and 9 evaluators in the
translation perused the process. “Musicing: Forms of Activity, Stages and Qualities
of Engagement Scale” and its respective
explanatory manual were used as instruments. For this study, a Form for the analysis of the Translations and a Questionnaire
for Analysis of the Items, Semantics and
Operational Equivalences were prepared.
According to the analysis of the responses
collected from the evaluators, the translation of this scale has understandable language, their items are relevant to the Brazilian context and may contribute to future
research in music and music therapy.
Keywords: Field recording; listenPalavras-chave: Escala de Musicabili- ing; urban walks; negative spaces; opaque
dade: Formas de Atividade, Estágios e Qua- spaces.
lidades de Engajamento; Musicoterapia;
Tradução.
Aline Moreira Brandão André, Cristiano Mauro Assis Gomes,
Cybelle Maria Veiga Loureiro
ORFEU, v.5, n.2, 2020
P. 2 de 22
Equivalência de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade:
Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”
Introdução
Desde seu surgimento, a Musicoterapia tem se consolidado como uma profissão
multidisciplinar que transita nas áreas da música, da pesquisa, da educação e da saúde.
Diversos autores como Baker e Roth (2004), Barcellos (1992), Bruscia (2000), Loureiro
(2006; 2009), Thaut e Hoemberg (2014) e Wheeler (2015), descrevem os efeitos positivos
da prática musicoterapêutica em várias faixas etárias e condições de saúde. Em conjunto com o crescimento da profissão, começaram a ser desenvolvidos modos de avaliar o
paciente e o desenvolvimento clínico. Inicialmente, grande parte dos meios de avaliação
consistiam em relatórios descritivos considerando o que ocorria nas sessões. Contudo,
com o passar dos anos foram desenvolvidos instrumentos de avaliação capazes de proporcionar uma avaliação mais objetiva e algum tipo de análise estatística. Atualmente,
estudos têm realizado uma análise detalhada de dados extraídos de uma única experiência com um paciente ou de uma sessão de Musicoterapia (WOSCH; WIGRAM, 2007).
Zmitrowiczab e Moura (2018), ao realizarem um estudo de revisão sobre os instrumentos de avaliação existentes em Musicoterapia, descreveram que encontraram ao
todo 55 instrumentos, mas somente 9 destes foram estudados no contexto brasileiro.
Atualmente no Brasil, mais duas pesquisas de validação foram concluídas (FREIRE, 2019;
ROSÁRIO, 2019) e uma está em andamento (FERREIRA; TUPINÁ; LOUREIRO, 2018). Diversos autores como Gattino (2012), Rosário (2019), Sampaio (2015), Silva (2012) e Zmitrowiczab e Moura (2018) afirmam que existe uma necessidade de validação de mais
instrumentos de avaliação em Musicoterapia no contexto brasileiro, considerando que
a avaliação é um processo fundamental da prática clínica na qual o terapeuta deve observar o paciente em experiências musicais para identificar problemas clínicos, problemas emocionais, expectativas, anseios, entre outras questões.
Em nosso atual estudo pretendemos contribuir para a validação de instrumentos
de avaliação no contexto musicoterapêutico do Brasil traduzindo para o português brasileiro uma escala desenvolvida a partir de estudos que se iniciaram na década de 1960
nos Estados Unidos denominada “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”.
Nordoff e Robbins (2007) relatam que desenvolveram 3 escalas através de pesquisas realizadas na Universidade da Pensilvânia. Inicialmente elas foram elaboradas para
avaliação de crianças com autismo, mas posteriormente foram atualizadas e passaram
a ser utilizadas para avaliação de pessoas com diversas condições. A primeira escala desenvolvida é denominada “Escala de Relação Criança Terapeuta na Experiência Musical
Coativa” (The Child-Therapist Relationship in Coactive Musical Experience). Essa escala
está sendo estudada para fins de validação no contexto brasileiro por André, Gomes e
Loureiro (2019). A segunda escala tem o nome de “Escala de Comunicabilidade Musical”
(Musical Communicativeness). A mesma foi traduzida e validada para o contexto brasileiro em uma pesquisa de mestrado realizada por André (2017). A terceira escala, foco
de nosso estudo atual, é denominada “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade,
Estágios e Qualidades de Engajamento” (Musicing: Forms Of Activity, Stages And Qualities Of Engagement).
Aline Moreira Brandão André, Cristiano Mauro Assis Gomes,
Cybelle Maria Veiga Loureiro
ORFEU, v.5, n.2, 2020
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Equivalência de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade:
Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”
André, Gomes e Loureiro (2020), ao realizarem uma revisão sobre a “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”, descrevem
que a mesma tem sido utilizada para avaliar pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) e demais condições médicas (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2014).
Além disso, esta escala ela é citada em diversas publicações em inglês (CRIPPS; TSIRIS;
SPIRO, 2016; NORDOFF; ROBBINS, 2007; SPIRO; TSIRIS; CRIPPS, 2017; CARPENTE; AIGEN, 2019) e em português (ANDRÉ, 2017; ANDRÉ; GOMES; LOUREIRO, 2016, 2017,
2019; SILVA, 2017; ZMITROWICZAB; MOURA, 2018).
A “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento” foi desenvolvida para avaliar as “sutilezas” presentes na produção musical de
um paciente em um atendimento musicoterapêutico. Nordoff e Robbins (2007) afirmam
que nessa escala, cada classificação de uma resposta combina diretamente o registro do
nível de complexidade de sua forma musical com uma avaliação do estágio ou qualidade
do engajamento expresso nela. Em outras palavras, o que uma criança faz musicalmente
é avaliado junto com a forma como ela o faz. Por isso, nessa escala é avaliado a variação
de batida que um paciente faz em um instrumento, as formas rítmicas que o mesmo utilizou, os componentes expressivos e a forma melódica com que vocalizou.
Segundo os autores Nordoff e Robbins (2007) a “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento” foi elaborada considerando
a diversidade da interatividade musical criança-terapeuta na musicoterapia improvisacional. Perceberam, com o tempo, que essa diversidade exigia um instrumento de avaliação capaz de abranger um amplo escopo da atividade musical e da relação funcional
do comportamento. Além disso, eles afirmam que as complexidades e sutilezas das respostas das crianças necessitam de um instrumento de avaliação sensível e que tivesse
graduações, como por exemplo as alterações de batimentos por minuto (bpm) visto na
escala. Os autores relatam que as duas principais categorias nas quais as respostas musicais de uma criança em terapia ocorrem são: atividade rítmica instrumental e canto.
Segundo eles, em nenhuma delas o significado clínico de uma resposta pode ser determinado apenas pelo seu caráter estrutural. O grau de ativação ou engajamento expresso nela deve ser reconhecido como tendo pelo menos igual importância. Todas as respostas musicais são multidimensionais. A própria música tem suas principais dimensões
de estrutura e expressão. A sua dimensão estrutural subdivide-se nos componentes da
batida básica, ritmo, forma rítmica e complexidade melódica; sua dimensão expressiva
se manifesta em seus vários componentes expressivos, como o accelerando, fermata,
diminuendo, rubato, etc. Dentro dessas dimensões da música, a resposta de cada criança assume suas próprias dimensões pessoais. Para os autores, dependendo do caráter
da atividade musical, uma gama de processos psicológicos e físicos podem ser ativados
como: “consciência, percepção, atenção, ideação, concentração, memória, desenvolvimento da coordenação e flexibilidade corporal ou vocal, responsividade emocional,
diferenciação emocional, integração receptivo-expressiva, intencionalidade e autoexpressão”. Individualmente e variadamente, esses processos se combinam em resposta
musical e, portanto, devem ser considerados na avaliação de sua significância clínica.
Aline Moreira Brandão André, Cristiano Mauro Assis Gomes,
Cybelle Maria Veiga Loureiro
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Equivalência de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade:
Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”
Este artigo tem como objetivo apresentar a tradução da “Escala de Musicabilidade:
Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”, realizando também as
equivalências de itens, semântica e operacional da mesma para o contexto brasileiro.
O mesmo é parte integrante de uma pesquisa realizada no Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal de Minas Gerais. Este projeto foi registrado
no Comitê de Ética e Pesquisa da universidade sob o número 04167218.2.0000.5149.
Adotamos como metodologia para verificação de indícios de validade desta escala para
o contexto brasileiro, o Modelo Universalista de Validação apresentado por Herdman,
Fox-RushbY e Badia (1998) que prevê a verificação de seis equivalências: conceitual, de
itens, semântica, operacional, de mensuração e funcional.
Metodologia:
Participantes. Fizeram parte desse estudo 6 tradutores e 9 avaliadores.
Todos os tradutores têm experiência em pesquisa e conhecimento de inglês e português. Dentre eles, 2 têm formação em Letras, 2 têm formação em música e 2 têm
formação em Musicoterapia. Com relação ao gênero, 4 são do sexo feminino e 2 são do
sexo masculino.
Os 9 avaliadores são musicoterapeutas que possuem prática de pesquisa e experiência clínica. O tempo de experiência clínica entre eles varia entre 2 a 25 anos. Com
relação ao gênero, 7 avaliadores são do sexo feminino e 3 são do sexo masculino.
Instrumentos. Foram elaborados para este estudo dois instrumentos: um para
análise das traduções e outro para análise semântica dos itens e do formato de apresentação da escala. São eles: a ficha para análise das traduções e um questionário aplicado aos avaliadores. Tais instrumentos foram desenvolvidos com base nos questionários
utilizados para avaliação das equivalências de itens, semântica e operacional da “Escala
de Comunicabilidade Musical”, descritos nos estudos de André (2017) e André; Gomes
e Loureiro (2017). Acreditamos que uma pesquisa que mantém a mesma metodologia
nos possibilitou ter o mesmo rigor científico nos resultados para as duas escalas no
contexto brasileiro.
Além desses instrumentos, também utilizamos a “Escala de Musicabilidade: Formas
de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento” em inglês e o manual explicativo
original desta escala com seus respectivos áudios. A escala e o manual podem ser encontrados no capítulo 18 do livro Creative Music Therapy: Guide to Fostering Clinical
Musicianship, escrito pelos autores Nordoff, e Robbins (2007). Juntamente com o manual, também podem ser encontrados áudios complementares ao texto. Esses áudios
são exemplos clínicos da aplicação da escala e contêm trechos de atendimentos musicoterapêuticos.
A fim de facilitar a verificação das traducões, desenvolvemos uma ficha de análise. Nela estão descritas cinco questões discursivas que permitem que o tradutor avaliador opine sobre as traduções e possíveis modificações para melhor entendimento
do texto (Tab. 1).
Aline Moreira Brandão André, Cristiano Mauro Assis Gomes,
Cybelle Maria Veiga Loureiro
ORFEU, v.5, n.2, 2020
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Equivalência de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade:
Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”
Ficha para Análise das Traduções
1- Ao ler o texto original, a tradução para o português e a retradução para o inglês, você considera que
os três textos apresentam os mesmos conceitos e conteúdos semanticamente? Justifique sua resposta.
2- Existe algum trecho que poderia ser melhor explicado em português para maior entendimento da
Escala? Justifique sua resposta.
3- Você sugere a troca de alguma palavra no texto ou na “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”?
4- De 0 a 10, como você avaliaria a tradução e a versão em português do texto e da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”? Justifique sua resposta.
5- Você considera que algumas partes do texto devem ser retiradas quando o capítulo for divulgado
e publicado?
Tab. 1: Ficha para Análise das Traduções contendo 5 questões descritivas para arguições.
O Questionário de Análise para Equivalências de Itens, Semântica e Operacional aplicado aos avaliadores foi elaborado com 14 questões de múltipla escolha.
Abaixo de cada uma das questões, o examinador tinha a possibilidade de justificar sua
resposta (Tab. 2).
Questionário de Análise para Equivalências de Itens, Semântica e Operacional
1- Nome:
2- Levando em consideração sua experiência profissional no contexto brasileiro, como você avalia
de modo geral os itens da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de
Engajamento”?
• Não pertinente
• Parcialmente pertinente
• Totalmente pertinente
3- Como você avalia o domínio Coatividade instrumental na “Escala de Musicabilidade: Formas de
Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”?
• Não pertinente
• Parcialmente pertinente
• Totalmente pertinente
4- Como você avalia o domínio Canto na “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e
Qualidades de Engajamento”?
• Não pertinente
• Parcialmente pertinente
• Totalmente pertinente
5- Como você avalia a as classificações de andamento, formas rítmicas, componentes expressivos e
formas melódicas na “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”?
• Não pertinente
• Parcialmente pertinente
• Totalmente pertinente
Aline Moreira Brandão André, Cristiano Mauro Assis Gomes,
Cybelle Maria Veiga Loureiro
ORFEU, v.5, n.2, 2020
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Equivalência de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade:
Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”
Questionário de Análise para Equivalências de Itens, Semântica e Operacional
6- Como você avalia a linguagem do manual da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”?
• Incompreensível
• Parcialmente compreensível
• Totalmente compreensível
7- Como você avalia a linguagem utilizada na “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios
e Qualidades de Engajamento”?
• Incompreensível
• Parcialmente compreensível
• Totalmente compreensível
8- Você considera que a “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de
Engajamento” pode contribuir para a musicoterapia no contexto clínico brasileiro?
• Não
• Sim
9- Você considera que a “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de
Engajamento” pode contribuir para outras pesquisas brasileiras?
• Não
• Sim
10- Você considera a validação da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento” relevante para a musicoterapia no Brasil?
• Não
• Sim
11- Você considera que a “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de
Engajamento” pode auxiliar na avaliação de pessoas com atraso do desenvolvimento, também denominado transtornos do neurodesenvolvimento?
• Não
• Sim
12- Você considera que a “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de
Engajamento” pode auxiliar na avaliação de pessoas com outras condições médicas?
• Não
• Sim
13- Você considera que a “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de
Engajamento” pode auxiliar na avaliação de pessoas saudáveis?
• Não
• Sim
14- Você acha a formatação da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades
de Engajamento” adequada?
• Não
• Sim
Tab. 2: Questionário de Análise para Equivalências de Itens, Semântica e Operacional. O mesmo também pode ser acessado no
seguinte link: https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSfAVrWX2Gg-6h9HxWfvxvQktYtpCY3bFeRmY-EgUAd4Csh5Hg/viewform
Aline Moreira Brandão André, Cristiano Mauro Assis Gomes,
Cybelle Maria Veiga Loureiro
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Equivalência de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade:
Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”
Coleta de dados. A coleta de dados ocorreu a partir da tradução da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento” em conjunto
com seu manual explicativo e aplicação de questionários.
O processo de tradução da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento” ocorreu por pares e em 3 etapas. A primeira etapa
consistiu em traduzir o manual e a escala do inglês para o português. Nessa etapa, participaram 2 tradutores. Na segunda etapa ocorreu a retradução do texto em português
para o inglês por outros 2 tradutores. Os tradutores convidados para a segunda etapa
não tiveram acesso à versão original do texto. Finalmente na terceira etapa, outros 2
tradutores foram convidados para analisar e comparar o texto original, a versão em português e a retradução para o inglês com a finalidade de avaliar, de forma imparcial, se
o texto apresentava as mesmas informações e se precisava ou não de modificações na
escrita. Uma ficha para análise foi entregue aos tradutores da terceira etapa para que os
mesmos justificassem sua opinião referente à avaliação dos textos.
Posteriormente ao processo de tradução, 9 avaliadores foram convidados a ler o
texto e preencher um questionário com 14 questões para avaliar a semântica, a relevância
dos itens da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento” para o contexto brasileiro e o melhor formato de apresentação da mesma. O
questionário foi elaborado na plataforma Google e foi enviado por e-mail aos avaliadores.
Análise de dados. As traduções foram analisadas a partir das comparações com o
texto original. Após avaliar as traduções, uma versão em português foi analisada pelos
avaliadores para verificar a semântica, os itens e o melhor formato de apresentação da
escala. Os dados dos tradutores e avaliadores foram armazenados na planilha eletrônica
Microsoft Excel 2019. Ao analisar estes dados, de acordo com o Modelo Universalista
de Validação desenvolvido por Herdman, Fox-Hushby e Badia (1998), foi possível investigar as equivalências de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade:
Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”. As investigações sobre as
equivalências realizadas neste estudo, com base no Modelo Universalista de Validação,
podem ser melhor explicadas da seguinte forma:
Equivalência semântica: Consistiu na avaliação da linguagem utilizada levando em
consideração as adaptações culturais. Nessa etapa, foi verificado se a palavra utilizada
para tradução definia o melhor significado ou se deveria ser substituída por outra palavra para maior interpretação da escala.
Equivalência de itens: Consistiu na análise pelos avaliadores, da pertinência de
cada item da escala, levando em consideração as diferenças culturais.
Equivalência operacional: Consistiu na análise dos avaliadores sobre qual seria o
melhor formato para apresentação da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade,
Estágios e Qualidades de Engajamento”.
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Cybelle Maria Veiga Loureiro
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Equivalência de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade:
Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”
Resultados
Após verificação de cada texto traduzido, não foi encontrada nenhuma falha que
alterasse o sentido original da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios
e Qualidades de Engajamento” e de seu respectivo manual. Os colaboradores responsáveis pela avaliação das traduções deram nota 9 para as mesmas. Segundo eles, algumas
palavras poderiam gerar certa confusão na versão em português devido a escolha de
palavras na frase original em inglês. Os mesmos descreveram que no texto original, os
autores usam repetidas vezes a palavra “it” na mesma frase. Como essa é uma palavra
usada para vários contextos, dificulta a tradução para o português porque parece complexo entender em alguns trechos o que o autor queria realmente descrever com essa
palavra, sem precisar perguntar pessoalmente ao mesmo. Os tradutores sugeriram que
o texto fosse lido por diversos musicoterapeutas para que os mesmos identificassemo
que consideram adequado para o contexto musicoterapêutico brasileiro
De um modo geral, a tradução foi considerada bem elaborada. Com relação a Escala em si, o texto foi considerado adequado para o contexto brasileiro. As três versões,
original, traduzida para o português e retraduzida para o inglês da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”, foram dispostas em
um quadro para melhor visualização (Tab. 3).
Comparação entre versão original, tradução e retradução da “Escala de Musicabilidade: Formas de
Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”
Original
Título
Domínio
1
2
3
Traduzido
Retraduzido
Musicing: Forms of Activity, Stages and Qualities of
Engagement
Musicabilidade: Formas de
Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento
Musicability: forms of
activity, stages and qualities of engagement
Instrumental Coactivity
Coatividade instrumental
Instrumental coactivity
(1) Basic beat tempo range
(1) Batida básica
Variação do andamento
Basic beat
Variation in tempo
Very fast 240
Muito rápido 240
Very fast 240
Fast 150
Rápido 150
Fast 150
Moderate 95
Moderado 95
Moderate 95
Slow 60
Lento 60
Slow 60
Very slow
Muito lento
Very slow
(2) Rhythmic forms
Formas rítmicas
Rhythmic forms
Complex
Complexo
Complex
Advenced
Avançado
Advenced
Intermediate
Intermediário
Intermediate
Simple
Simples
Simple
Rudimentary
Rudimentar
Rudimentary
(3) Expresive Components
Componentes expressivos
Expresive Components
Tremolo
Trêmulo
Tremolo
Dynamic contrast
Contraste Dinâmico
Dynamic contrast
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4
P/Dim
P/Dim
P/Dim
Accent Punctuation
Acento Pontuação
Accent Punctuation
P/Cres
F/Cresc
F/Cresc
Sound of instrument
Som do Instrumento
Sound of instrument
Accel
Accel
Accel
Rit
Rit
Rit
Tempo contrast
Contraste do andamento
Contrast of tempo
Fermata
Fermata
Fermata
Rubato
Rubato
Rubato
Singing
Canto
Singing
Melodic form
Forma melódica
Melodic form
Aria-like improvising
Improvisação parecida com
uma ária
Aria-like improvisation
Complex melodies
Melodias complexas
Complex melodies
Simple Melodies
Melodias simples
Simple Melodies
Melodic Phrases
Frases melódicas
Melodic Phrases
Simple Tonal Forms
Formas tonais simples
Simple tonal shapes
T/R related sounds
Sons Relacionados T/R
Related T / R Sounds
Tab. 3: Comparação entre versão original, tradução e retradução da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e
Qualidades de Engajamento”.
Com relação aos dados provenientes do questionário aplicado aos 9 musicoterapeutas avaliadores, referente à análise das equivalências de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de
Engajamento”, também encontramos resultados satisfatórios.
Na questão 1 foram perguntados os nomes dos avaliadores.
Na questão 2, ao serem perguntados sobre como avaliavam os itens presentes na
escala para o contexto brasileiro, 5 avaliadores (55,6%) consideraram totalmente pertinente, 3 avaliadores (33,3%) consideraram parcialmente pertinente e 1 avaliador (11,1%)
considerou não pertinente. Os avaliadores que consideraram os itens totalmente pertinentes relataram que na opinião deles os itens da escala descrevem com detalhes
as importantes observações que o musicoterapeuta pode ter sobre a expressão musical e a musicalidade da criança. Segundo eles, a escala consegue abranger as diferentes formas de expressão vistas em atendimentos musicoterapêuticos corriqueiros. Os
avaliadores que consideraram a escala parcialmente pertinente relataram que, em sua
opinião, os itens da escala são bastante complexos, havendo a necessidade de uma
formação complementar e específica para que o musicoterapeuta possa aplicá-los. O
que considerou os itens da escala não pertinente relatou que no Brasil nem todos os
consultórios musicoterapêuticos possuem piano e diversos instrumentos para facilitar
a utilização da escala e além disso, a formação musical do musicoterapeuta pode variar
dependendo de onde estudou.
Na questão 3, ao serem perguntados como avaliam o domínio Coatividade instrumental na “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de
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Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”
Engajamento”, 5 avaliadores (55.6 %) consideraram totalmente pertinente e 4 avaliadores
(44,4%) consideraram parcialmente pertinente. Os que consideraram totalmente pertinente relataram que através desse domínio seria possível identificar em qual estágio da
terapia o paciente está e quais são as dificuldades tanto cognitivas quanto motoras do
mesmo, o que permite estabelecer novos objetivos ou permanecer com os mesmos a
partir da descrição de como o paciente se encontra. Os que consideraram parcialmente
pertinente relataram que alguns subníveis desse domínio são interessantes, como a forma
de analisar os componentes na estrutura rítmica e dos componentes expressivos mas
acreditam que as subclassificações desses domínios não são muito fáceis de entender.
Na questão 4, quando perguntados sobre o domínio Canto na “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”, 7 avaliadores
(77,8%) consideraram totalmente pertinente, 1 avaliador (11,1%) considerou parcialmente pertinente e 1 avaliador (11,1%) considerou não pertinente. Os que consideraram totalmente pertinente acreditam que é possível perceber com a prática clínica que as
formas melódicas e o canto, gradualmente, tendem a alcançar formas mais elaboradas e complexas de expressão e habilidade. Os avaliadores acreditam que a graduação dos níveis das formas melódicas compatível à prática clínica juntamente com o ato
de definir e graduar estes aspectos é fundamental para que a classe musicoterapêutica tenha acesso à um instrumento de avaliação contundente, objetivo e padronizado.
Além disso, segundo eles. através do canto é possível identificar como se encontrar
a criança pois, de acordo com o engajamento da criança no canto, seja ele espontâneo ou estimulado, é possível identificar como a criança se encontra dentro da sessão,
principalmente no contexto emocional, mas também nos contextos físico e mental. O
avaliador que considerou o domínio canto parcialmente pertinente acredita que uma
classificação em 3 níveis: básico, intermediário e elaborado poderia funcionar melhor.
O avaliador que considerou esse domínio não pertinente acredita que alguns subníveis
seriam desnecessários, tais como verificar se a criança cantou um trecho de uma ária,
pois, para realizar esse tipo de identificação, é necessário que o musicoterapeuta saiba
bem classificar esses conceitos da linguagem técnica musical erudita, uma vez que as
árias não são todas iguais.
Na questão 5, quando perguntados sobre as classificações de andamento, formas
rítmicas, componentes expressivos e formas melódicas na “Escala de Musicabilidade:
Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”, 6 avaliadores (66,7%)
consideraram totalmente pertinente e 3 avaliadores (33,3%) consideraram parcialmente
pertinente. Os avaliadores que consideraram essas classificações totalmente pertinentes
relataram que é extremamente importante que se tenha classificações de cada aspecto
avaliado para que haja detalhamento, esclarecimento e padronização dos componentes avaliados característicos das dimensões estruturais e expressivas, além daqueles que
permeiam as formas melódicas e o canto, em seus níveis de desenvolvimento expressivo e de habilidade. Além disso, considerando que se leva em conta as dificuldades
individuais de cada criança, e que mesmo ela não realizando a atividade proposta pelo
musicoterapeuta como o esperado, o comportamento dela é avaliado. Ainda segundo
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Equivalência de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade:
Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”
os avaliadores, a descrição seguindo uma sequência gradativa torna fácil a avaliação e
é interessante inclusive para uma avaliação comparativa do paciente com ele mesmo
no futuro. Os avaliadores que consideraram essa classificação parcialmente pertinente
relataram que as classificações são muito detalhadas, sendo difíceis de serem avaliadas.
Segundo eles, talvez as classificações rudimentar e simples ou avançada e complexa
poderiam ser agrupadas para facilitar a avaliação.
Na questão 6, quando perguntados sobre a linguagem do manual da “Escala de
Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”, 4 avaliadores (44,4%) consideraram totalmente compreensível e 5 avaliadores (55,6%) consideraram parcialmente compreensível. Os que consideraram totalmente compreensível relataram que o manual está muito bem escrito, com termos claros, de fácil entendimento
e com ótimas descrições e exemplos. Os que consideraram parcialmente compreensível relataram que a escala é bem especifica em muitas etapas para musicoterapeutas e
também pode ser considerada relevante para outros profissionais da música. Contudo,
em alguns trechos a leitura fica densa e alguns termos podem não ser compreensíveis
e não ter relevância para outras terapias. Segundo eles, poderia ser utilizada uma linguagem mais clara.
Na questão 7, ao serem perguntados sobre a linguagem utilizada na “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”, 7 avaliadores
(77,8%) consideraram totalmente compreensível e 2 avaliadores (22,2%) consideraram
parcialmente compreensível. Segundo os avaliadores que consideraram a linguagem
totalmente compreensível, a escala apresenta de forma objetiva todos os componentes
avaliados, sejam eles expressivos, estruturais ou do canto e forma melódica. Segundo
os avaliadores que consideraram a escala parcialmente compreensível, as abreviaturas,
especialmente nos componentes expressivos, podem dificultar no preenchimento dos
dados na hora da avaliação. Segundo eles, seria melhor utilizar as palavras sem as abreviaturas sugeridas pelos autores.
Nas questões de 8 a 10, quando perguntados se a “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento” pode contribuir para a musicoterapia no contexto clínico, na prática de pesquisa e se há relevância da mesma
no contexto geral brasileiro, todos os avaliadores relataram que sim. Eles descreveram
que no atual cenário da Musicoterapia nacional todos os esforços são válidos para que
a profissão ganhe o seu lugar de merecimento. Produções importantes como estas
demonstram o quanto a profissão é complexa, importante e como pode ser de grande
utilidade no tratamento das mais diversas síndromes e patologias existentes. A Escala é
um instrumento específico de avaliação, considerando aspectos musicais das respostas
dadas pela criança, além do estágio e qualidade de engajamento expresso por ela. Do
ponto de vista científico, as escalas e estudos específicos, aumentam a credibilidade de
prática e campo do saber, possibilita desdobramentos de outras pesquisas e a aplicabilidade na clínica musicoterapêutica, além de maior valorização, congruência e diferenciação do profissional musicoterapeuta. Ainda segundo os avaliadores, esta escala
ajuda o musicoterapeuta (e ajudará inclusive o musicoterapeuta brasileiro) a observar
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Equivalência de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade:
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nuances musicais do paciente, importantes na experiência musical em Musicoterapia e
que são difíceis de se observar em outras escalas.
Nas questões de 11 a 13, quando perguntados se a “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento” pode auxiliar na avaliação de
pessoas com transtornos do neurodesenvolvimento, pessoas saudáveis ou pessoas com
outras condições médicas, todos os avaliadores responderam que sim. Segundo eles, a
atividade musical nos Transtornos do Neurodesenvolvimento também se dá através de
respostas musicais e do canto, com componentes expressivos, estágios e engajamento
particulares. Com isso, a escala em questão poderia auxiliar na avaliação desta população também. Além disso, tornando como base as respostas que possam ser consideradas como esperadas para cada idade ou condição, a escala pode ser utilizada como
meio de verificação e apontamento de condições médicas pois, todos os domínios são
observados em todas as atividades propostas para as pessoas em acompanhamento. É
importante sempre reforçar que os domínios são observados dentro das condições de
cada pessoa. Além de auxiliar na avaliação de pessoas com outras condições médicas, a
escala pode auxiliar na avaliação de aspectos específicos como ganho de auto-estima,
auto-confiança, tópicos importantes para a promoção de bem estar e qualidade de vida.
Alguns avaliadores relataram ainda que consideram ampla a aplicabilidade da Escala em
processos musicoterapêuticos onde o terapeuta fornecerá as bases para acolher, manter, validar e estimular as respostas musicais expressivas e o engajamento do paciente,
estreitando através disso o contato musical de modo significativo.
Na questão 14, quando perguntados sobre o formato original da escala, 7 avaliadores (77,8%) consideraram adequado e 2 avaliadores (22,2%) consideraram não adequado. Os que consideraram o formato original adequado descreveram que a formatação
da escala original é de fácil preenchimento. Os que consideraram não adequado relataram que poderiam ser excluido alguns quadrados para melhor visualização.
Como a maior parte dos avaliadores considera adequado o formato original, optamos por mantê-lo, realizando apenas pequenas alterações sugeridas, como retirar alguns quadrados não preenchidos para facilitar o entendimento. Os quadrados não preenchidos não alteram o sentido da escala, pois foram desenvolvidos para que a escala
fosse aplicada em vários atendimentos. Na Tabela 4 é possível observar o formato da
“Escala de Musicabiilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”.
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Equivalência de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade:
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“Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”
Formulários de Avaliação
Criança:___________
Terapeuta:_____
Data de Nascimento:__/__/__
Avaliador:__________
Data:__/__/__
Sessão:__/__/__
Data da Avaliação:__/__/__
(4) Forma Melódica
Canto
Sessão:
Improvisação parecida com uma ária
Melodias complexas
Melodias simples
Frases melódicas
Formas tonais simples
Sons Relacionados T/R
(3) Componentes Expressivos
Contraste Dinâmico
P/Dim
Acento Pontuação
F/Cresc
Som do Instrumento
Accel
Rit
Contraste do andamento
Fermata
(2) Formas rítmicas
Rubato
(1) Batida básica
Variação de andamento
Coatividade instrumental
Trêmulo
Complexo
Avançado
Intermediário
Simples
Rudimentar
Muito rápido 240
Rápido 150
Moderado 95
Lento 60
Muito lento
Tab. 4: “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento” questão 14.
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Equivalência de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade:
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Para classificar a qualidade de resposta do paciente, originalmente são realizadas marcações com siglas. Por exemplo, se o paciente emite sons vocais na sessão, o
musicoterapeuta pode verificar se o mesmo é um som relacionado com algo no atendimento, se é um som tonal, se é uma frase melódica, se é uma melodia simples ou
complexa ou se é um trecho de canção improvisada parecida com uma ária. Após identificar como é esse som emitido vocalmente, o musicoterapeuta pode registrar a fórmula de compasso no quadrado a frente na escala ou pode identificar como o paciente
estava se comportando quando emitiu o som. As possibilidades para o canto descritas
pelos autores são: Ativo não-responsivo (Responsively Active - A), Nascente (Nascent
- N), Tornando-se engajado (Becoming Engaged - B), Assertivo de Forma Autoexpressiva (Self-Expressively Assertive - S) e Musicalmente Expressivo-Perceptivo (Musically
Expressively Perceptive - M). No manual da escala estão descritos os significados das
siglas e das palavras. Na Tabela 5 é possível observar as siglas originais e as respectivas
palavras traduzidas.
Lista de referência rápida de símbolos de classificação
Transtornos do Batimento Determinados por Condição
Perseverativo (P)
Compulsivo (C)
Reativo (R)
Não direcionado/inconsciente (U)
Os estágios de desenvolvimento da atividade/experiência
Incipiente (I)
Encontrando (F)
Estabelecendo (E)
As qualidades de responsividade manifestadas em componentes expressivos ou canto
Ativo não-responsivo (A)
Nascente (N)
Tornando-se engajado (B)
Assertivo de Forma Autoexpressiva (S)
Musicalmente Expressivo-Perceptivo (M)
Tab. 5: Abreviaturas e palavras utilizadas para avaliação na “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”.
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Na Tabela 6 é possível visualizar melhor a percentual de cada uma das respostas
assinaladas pelos avaliadores.
Resposta do Questionário de Análise para Equivalências de Itens, Semântica e Operacional
1- Nome:
2- Levando em consideração sua experiência profissional no contexto brasileiro, como você avalia
de modo geral os itens da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de
Engajamento”?
• Não pertinente (11,1%)
• Parcialmente pertinente (33,3%)
• Totalmente pertinente (55,6%)
3- Como você avalia o domínio Coatividade instrumental na “Escala de Musicabilidade: Formas de
Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”?
• Parcialmente pertinente (44,4%)
• Totalmente pertinente (55,6%)
4- Como você avalia o domínio Canto na “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e
Qualidades de Engajamento”?
• Não pertinente (11,1%)
• Parcialmente pertinente (11,1%)
• Totalmente pertinente (77,8%)
5- Como você avalia a as classificações de andamento, formas rítmicas, componentes expressivos e
formas melódicas na “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”?
• Parcialmente pertinente (33,3%)
• Totalmente pertinente (66,7%)
6- Como você avalia a linguagem do manual da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”?
• Parcialmente compreensível (55,5%)
• Totalmente compreensível (44,4%)
7- Como você avalia a linguagem utilizada na “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios
e Qualidades de Engajamento”?
• Parcialmente compreensível (22,2%)
• Totalmente compreensível (77,8%)
8- Você considera que a “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de
Engajamento” pode contribuir para a musicoterapia no contexto clínico brasileiro?
• Sim (100%)
9- Você considera que a “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de
Engajamento” pode contribuir para outras pesquisas brasileiras?
• Sim (100%)
10- Você considera a validação da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento” relevante para a musicoterapia no Brasil?
• Sim (100%)
11- Você considera que a “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de
Engajamento” pode auxiliar na avaliação de pessoas com atraso do desenvolvimento, também denominado transtornos do neurodesenvolvimento?
• Sim (100%)
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Equivalência de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade:
Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”
12- Você considera que a “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de
Engajamento” pode auxiliar na avaliação de pessoas com outras condições médicas?
• Sim (100%)
13- Você considera que a “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de
Engajamento” pode auxiliar na avaliação de pessoas saudáveis?
• Sim (100%)
14- Você acha a formatação da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades
de Engajamento” adequada?
• Não (22,2%)
• Sim (77,8%)
Tab. 6: Resposta do Questionário de Análise para Equivalências de Itens, Semântica e Operacional da “Escala de Musicabilidade:
Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”.
Considerações:
Diversos autores como André (2017), André; Gomes e Loureiro (2019), Gattino et al.
(2016), Gattino; Walter e Faccini (2010), Sampaio (2015) e Rosário (2015, 2019), relatam
que no Brasil existem poucos instrumentos de avaliação que tenham sido estudados
com objetivos de verificação de indícios de validade. O estudo atual com a “Escala de
Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento” contribui
para que mais instrumentos de avaliação estejam disponíveis para o uso musicoterapêutico no contexto brasileiro.
Através da análise das respostas dos avaliadores, é possível afirmar que a “Escala de
Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento” pode ser
considerada adequada em relação a semântica, itens e formato para o contexto musicoterapêutico brasileiro.
A maior parte dos avaliadores considera que a escala pode ser aplicada por um
musicoterapeuta, mas é necessária uma leitura do manual para melhor entendimento dos conceitos inseridos. Embora alguns poucos avaliadores considerem que alguns
musicoterapeutas possam não ter facilidade em lidar com alguns contextos musicais
e não tenham no Brasil uma grande variedade de instrumentos musicais em todos os
consultórios, acreditamos que a escala não depende de instrumentos musicais específicos para sua utilização. Com relação a formação do musicoterapeuta para lidar com
conceitos musicais, como por exemplo conseguir definir caso um paciente cante um
trecho de uma ária, acreditamos que embora não exista uma homogeneidade curricular, todos os cursos buscam capacitar o musicoterapeuta em questões teórico-musicais. Diversos autores, como Andre et al. (2015), Benenzon (1988), Bruscia (2000),
Chagas e Pedro (2015), Cunha e Volpi (2008), Davis, Gfeller e Thaut (2008), Ruud (1990),
Szweda (2015) e Thaut e Hoemberg (2014), relatam que o musicoterapeuta deve ter formação tanto em conhecimentos teórico-musicais quanto na prática instrumental. Com
relação a linguagem do manual explicativo da “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”, o mesmo seguiu a lógica e fluência do
texto original em inglês. Possivelmente, por estar em uma linguagem literal houve certa
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Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”
dificuldade de alguns avaliadores no entendimento de alguns pontos do texto original.
Contudo, é importante ressaltar que embora alguns avaliadores tenham considerado o
texto do manual parcialmente pertinente, nenhum dos avaliadores considerou o texto
não pertinente. Poderia ser interessante desenvolver uma versão mais curta em pesquisas futuras, a fim de possibilitar entendimento mais claro.
Com relação a sugestão dos avaliadores de retirar as siglas no manual, consideramos não ser possível, pois é importante que as mesmas continuem conforme são no
idioma original. No entanto, consideramos que o avaliador pode optar por escrever a
palavra inteira.
Embora o texto do manual não seja considerado totalmente claro, o texto da escala, foi considerado totalmente compreensível por maioria dos avaliadores, conforme
vemos na resposta da questão 7. O texto da escala apresenta termos bastante utilizados
na teoria musical como por exemplo: fermata, rubato, entre outros. Com relação ao
formato da escala, o mesmo foi considerado adequado pelos avaliadores.
Todos os avaliadores concordam que além da escala ser relevante para a Musicoterapia brasileira e para futuras pesquisas, a mesma poderia ser utilizada para avaliação
em diversas condições. Nordoff e Robbins (2007), autores dessa escala, descrevem que
ela foi utilizada com êxito em diversas populações, como crianças com esquizofrenia
infantil, transtorno emocional grave, lesão cerebral, deficiência visual, paralisia cerebral,
deficiência mental grave e deficiência de aprendizado com complicações de afasia.
A “Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento” foi elaborada considerando princípios universais da música. Autores como
Freire (2019), Kirkland (2013), Loureiro (2006) e Szweda (2015) relatam que a música
está presente de maneira inata em todos indivíduos, independente de desafios, atrasos
e deficiências que ele possa apresentar. Contudo, o modo como os indivíduos reagem
a música pode demonstrar fatores culturais, emocionais e o seu estado de saúde (LOUREIRO, 2018; RUUD, 1991; THAUT, 2005).
Na Musicoterapia, diversos estudos estão sendo realizados mundialmente a fim de
verificar meios de definir, quantificar e qualificar a musicalidade no atendimento clínico. Wosch e Wigram (2007) afirmam que é muito importante para a prática clínica ter
a capacidade de perceber conscientemente e analisar criticamente a terapia, de forma
a reagir adequadamente à pequenas mudanças sutis sociais, musicais, e comportamentais que podem ocorrer no contexto terapêutico. Para isso seria necessário realizar uma
análise detalhada especificando mudanças mínimas que podem ocorrer nas interações
entre o indivíduo, a música e o terapeuta.
Em próximos estudos, realizaremos análises estatísticas através da utilização da
“Escala de Musicabilidade: Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento” na avaliação de comportamentos de pacientes que foram atendidos em sessões de
Musicoterapia. Através da aplicabilidade da escala, seguindo o Modelo Universalista de
Validação desenvolvido por Herdman, Fox-Hushby e Badia (1998), será possível verificar
se a mesma apresentará as demais equivalências esperadas: equivalência de mensuração e equivalência funcional. Acreditamos que a “Escala de Musicabilidade: Formas de
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Equivalência de itens, semântica e operacional da “Escala de Musicabilidade:
Formas de Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento”
Atividade, Estágios e Qualidades de Engajamento” poderá contribuir consideravelmente
com a avaliação musicoterapêutica no contexto brasileiro, pois a mesma descreve aspectos musicais presentes em muitos atendimentos de Musicoterapia.
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JPMB: qualificação da performance no
contexto da educação musical comunitária
em cidades interioranas de Alagoas
JPMB: qualification of performance in the context of
community music education in inner cities of Alagoas
Marcos dos Santos Moreira1
Universidade Federal de Alagoas
moreiraufal@gmail.com
Submetido em 27/07/2020
Aprovado em 16/09/2020
ORFEU, v.5, n.2, 2020
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JPMB: qualificação da performance no contexto da educação
musical comunitária em cidades interioranas de Alagoas
Resumo
Abstract
Este artigo relata o movimento de
educação comunitária gratuita promovido
pela Universidade Federal de Alagoas no
projeto denominado JPMB (Jornada Pedagógica para Músicos de Banda), através
do Grupo de Pesquisa Cemupe (Centro
de Musicologia de Penedo), no estado de
Alagoas. Esta ação de extensão, além de
percorrer alguns municípios interioranos,
carateriza-se hoje como um processo de
aprendizado coletivo e social por meio do
ensino musical. Faz uma abordagem de
como a academia pode se mobilizar para
debater sobre música e políticas públicas
sobre a educação musical no interior de
Alagoas, no Nordeste, e as parcerias com
governos municipais, estaduais e federal
juntamente com a iniciativa privada e instituições de ensino de outros países.
This article reports the free community education movement promoted by
the Federal University of Alagoas in the
project called JPMB - Pedagogical conferences for fanfare musicians, through the
Research Group CEMUPE - Penedo Musicology Center in the State of Alagoas. This
extension program also covers some municipalities in the interior of the state, and
it characterizes itself today as a process
of collective and social learning through
musical teaching. It approaches how the
academy can mobilize to debate music
and public policies on music education
in the interior of Alagoas, in the northeast
and partnerships with municipal, state and
federal governments together with the
private sector and educational institutions
with others countries.
Palavras-chave: Educação musical
comunitária; musicologia social; políticas
públicas.
Keywords: Community music education; social musicology; public policies.
1
Doutor em Educação Musical pela Universidade Federal da Bahia, professor Adjunto da Universidade Federal de Alagoas. Também é
vinculado como pesquisador ao Instituto Piaget de Viseu, em Portugal, e é coordenador do Festival Internacional de Música de Penedo (AL).
Marcos dos Santos Moreira
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musical comunitária em cidades interioranas de Alagoas
INTRODUÇÃO
Desde 2008, inserido nas ações de extensão do curso de Música na Universidade
Federal de Alagoas, com a criação do Grupo de Pesquisa Metodologia e Concepção Social do Ensino Coletivo Instrumental, iniciou-se um levantamento pedagógico e musicológico das bandas filarmônicas de Alagoas. Em 2018 sua nomenclatura foi alterada para
Cemupe (Centro de Musicologia de Penedo), mantendo a mesma característica de suas
linhas de pesquisa de 2009. Instituem-se vários eventos decorrentes, que se seguem:
• Colóquio de Música Popular, evento que discutia a atuação dos músicos na cidade de Maceió e debates sobre a profissionalização desse cotidiano;
• Revista eletrônica Musifal, aberta não só aos professores, mas aos alunos de Graduação em Música do país;
• Continuidade dos Seminários de Pesquisa, a princípio criados pela professora
Regina Cajazeira, como efetiva da Ufal;
• MAPT (Musicalização Através do Piano e do Teclado). Inicialmente, uma compilação autorizada do projeto implementado na UFBA na década de 1990, no qual fiz toda
a minha formação acadêmica, denominado Oficinas de Piano em Grupo, do qual fui
monitor durante seis anos na minha Graduação em Música.2
Em 2009 outro movimento denominado JPMB (Jornada Pedagógica para Músicos
de Banda) fora criado, cuja ideia inicialmente era implantar uma relação entre a academia, os alunos de bandas de música ou não e os egressos e ingressantes no curso de
Licenciatura em Música da Ufal, bem como o público externo em geral.
Houve a busca sobre a reflexão da então recém-promulgada Lei nº 11.769, a ponte
entre o ensino universitário – com suas grades pedagógicas, muitas vezes engessadas
sob o ponto de vista do que se aplicava na prática instrumental, fora das esferas da
graduação – e a comunidade musical. Desde o ano de 2009, foi verificado que o curso
de Graduação em Música da Ufal, pelo diminuto quadro docente e estrutura física, no
limite do seu funcionamento, talvez necessitasse de projetos que pudessem mostrar ao
meio acadêmico e à sociedade alagoana sua função relevante, educacional e artística,
além do fomento cognitivo ao desenvolvimento profissional no ato da docência escolar.
Entre 2010 e 2013, durante a realização do doutorado pelo então coordenador do
projeto entre Brasil e Portugal, obteve-se a oportunidade de desenvolver parceria institucional entre a Ufal e o Instituto Piaget, na cidade de Viseu. Assim, com a instauração
do grupo de pesquisa da Ufal, por questões estratégicas, a JPMB alterou a nomenclatura para Cemupe (Centro de Musicologia de Penedo),3 registrada na base de dados do
Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, tendo quatro linhas bem-definidas:
2
Tal modelo de projeto de extensão, denominado na época de Imit e Oficinas de Piano em Grupo, foi criado na década de 1990 por Alda
Oliveira, baseado nos estudos de Maria de Lourdes Junqueira Gonçalves, da Unirio, em 1980. Este projeto foi coordenado na UFBA pela Prof.ª Dra.
Diana Santiago.
3
Com o deslocamento do projeto para a cidade de Penedo, o Grupo metodologia e Concepção Social passa a se denominar Cemupe, com
o apoio e parcerias com as instituições públicas deste município.
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1- a preservação das instituições filarmônicas e seus contextos sociais e pedagógicos;
2- a inserção científica da Ufal nestes grupos, no sentido de apoio, registro e publicações;
3- ratificações das temáticas propostas do grupo de pesquisa, como a relação cultural das bandas com as nossas etnias e cultura, bem como a influência portuguesa;
4- a afirmação de gênero em grupos tradicionais e o contexto feminino nas bandas de música.
Desde então, a internacionalização deste projeto, com vários desdobramentos de
intercâmbios luso-brasileiros e a ampliação da JPMB, deslocando-se do câmpus Maceió para as cidades interioranas de Alagoas, era um dos pilares para se criar um festival
de porte internacional, com os mesmos moldes de outros festivais similares do país, a
exemplo do Civebra, no Distrito Federal; Campos do Jordão, em São Paulo; Eleazar de
Carvalho, em Fortaleza, entre outros. Entretanto, nossa proposta era oferecer à comunidade um evento totalmente gratuito, sem taxas ou pré-avaliações.
A interiorização era um caminho sem retorno no sentido da propagação do que
o grupo de pesquisa estava realizando dentro dos programas de pesquisa e extensão
da Ufal, e isto só foi possível de fato a partir de 2014,4 quando os setores logísticos da
reitoria compartilharam a ideia. No caso da JPMB, o movimento no referido ano teve
a oportunidade de expandir-se para os polos da Ufal,5 por serem próximos de dezenas
de cidades de Alagoas com diversificados grupos musicais e principalmente bandas de
música que no Nordeste também são denominadas filarmônicas. Muitos desses integrantes de bandas faziam anualmente os testes de aptidão para o curso de Licenciatura
em Música da Ufal – dezenas eram aprovados. Era necessário, portanto, levar a música
e seu idioma acadêmico, não como imposição, evidentemente, mas como algo que somasse e despertasse o interesse deste público fora do eixo capital-região metropolitana
maceioense sobre o nível superior e a profissionalização. Tendo isso em vista, realizamos oficinas instrumentais que alcançassem um número maior de participantes, já que
o perfil da JPMB se baseava na democratização do ensino gratuito na perspectiva de
educação de extensão majoritariamente comunitária.
A responsabilidade que nos convocou para um projeto ou programa, dentro dessas diretrizes das linhas do grupo, nos fez acreditar numa musicologia social, engajada
nos princípios de uma educação libertária “freireana”, que não estivesse apenas vinculada à música em seu papel específico e acadêmico, mas dialogando com seus pares,
nas áreas das humanidades. Locke (2015), no texto “Musicology and/as social concern:
imagining the relevant musicologist”, já abordava tal diálogo com outras áreas, considerando o papel do pesquisador em música e sua prática social.
Eu diria: sim. Músicos (incluindo pesquisadores musicais), como quaisquer outros indivíduos, precisam aprender a assumir um papel ativo no desenvolvimento
de uma sociedade mais justa, ao invés de cuidar, sempre silenciosamente, do
seu ou do nosso jardim. Pode ser encorajador, ao considerarmos este problema
de enveredar para além da música, com a finalidade de efetuar mudanças no
4
Nos anos de 2012 e 2013, a JPMB não foi realizada integralmente.
5
Além do câmpus principal, A. C. Simões, em Maceió, a Ufal tem os câmpus Arapiraca e Santana do Ipanema.
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mundo como um todo, lembrar que não somos os primeiros da área de música
a fazer isto. (LOCKE, 2015, p.44).
Autores como Kerman (1985), Kramer (1992) e Rosand (1995) defendem a linha
humanística e plural na direção da musicologia social. Tal pensamento fez com que
nos aproximássemos de alguns conceitos referentes à New Musicology no contexto
das análises concomitantes aos pares nas ciências humanas deste enfoque comunitário e corroborando no estudo musicológico possível, inserido no diálogo da educação,
história e sociologia, por exemplo. Dessa forma, possibilitou a afirmação no contexto
comunidade e música nos dados realizados pelo Cemupe em alusão à JPMB. No Brasil,
autores como Neto e Tramontina (2001, p.7) esclarecem:
A partir, sobretudo, da década de 1980, alguns musicólogos ingleses e norteamericanos, propondo um entendimento hermenêutico da música e da própria
disciplina, começaram a atentar para as falácias e restrições decorrentes das
premissas historiográficas e de seu papel canonizador, bem como do afunilamento do termo musicologia. A esta tendência crítica, deu-se o nome de New
Musicology. Buscando um conceito multidisciplinar que considerasse a música
como, primeiramente, agente de representação cultural capaz de tornar manifesto os mecanismos de crise e de mudança nos sistema culturais e ideológicos
e, também, como produtora de significados que vão além do puramente musical, a New Musicology questionou a prática tradicional da disciplina e sua herança epistemológica iluminista e positivista.
Ratificando a recorrência para as áreas afins, como apoio referencial teórico nos
textos produzidos e apresentados nos congressos e ações da JPMB, esta musicologia
social se une à educação musical, por entender nestas ações a crescente participação
de núcleos sociomusicais que já praticam um sistema educacional musical.
Em relação às bandas, a JPMB, ainda que encontrasse resistência no diálogo das
metodologias propostas e oferecidas devido ao rígido e incrédulo pensamento de muitas direções administrativas e pedagógicas destes grupos, em termos quantitativos atingia praticamente boa parte desta busca pelos participantes do intercâmbio cognitivo
musical e os debates da pesquisa propostos pela JPMB.
A estrutura filosófica das ações na JPMB, em relação à oportunização coletiva e
citando Gadotti (2012) sobre a educação comunitária, nos alerta sobre o viés da educação popular, que tem por filosofia não esconder a relação política em seu caráter social.
É o que acontece com a educação popular, a educação social e a educação comunitária. Elas se situam no mesmo campo de significação pedagógica, o campo democrático e popular. Contudo, apesar desta afinidade ideológica, como
são educações históricas, elas também podem ter conotações diferentes. E isso
não se constituiu em deficiência, mas em riqueza. Um mosaico de experiências,
teorias e práticas compõem esse campo. (GADOTTI, 2012, p.5).
Assim, a universidade pública e a parceria dos agentes, com apoio também da iniciativa privada (com os representantes do mercado da música do setor industrial de
instrumentos musicais), foram as metas da articulação da JPMB em sua partícula do
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musical comunitária em cidades interioranas de Alagoas
ideal de uma educação musical ampla deste conceito, cumprindo seu papel socioeducacional e o exercício da cidadania na prática.
Pensamos, assim, tratar o movimento na relação da realidade interiorana, muitas vezes, no caso das filarmônicas e partícipes de movimentos musicais diversos nestes municípios, sem o acesso à ampliação pedagógica e formação profissional in loco,
oportunizando, sem descartar toda a experiência dos mestres locais, a possibilidade do
diálogo. Não queremos afirmar, portanto, que se tratava de uma invasão ao meio estabelecido nestas sociedades musicais, mas do acréscimo de um universo real profissional
que estes alunos músicos pudessem alcançar: o respeito à tradição e, principalmente,
à “identidade do indivíduo”, como afirmava Paulo Freire sobre a questão da liberdade
como agente da educação.
[…] as sociedades a que se nega o diálogo-comunicação e, em seu lugar, se lhes
oferecem “comunicados”, resultantes de compulsão ou “doação”, se fazem preponderante “mudas”. O mutismo não é propriamente inexistência de resposta.
É resposta a que falta teor marcadamente crítico. Não há realmente, como se
possa pensar em dialogação com a estrutura do grande domínio, com o tipo de
economia que o caracterizava, marcadamente autárquico. A dialogação implica
uma mentalidade que não floresce em áreas fechadas, autarquizadas. Estas, pelo
contrário, constituem-se num clima ideal para o antidiálogo. Para a verticalização das imposições. (FREIRE, 1980, p.69).
A universidade no Brasil, provedora da educação pública, sendo a extensão e importante esfera da formação das pessoas, nos contextos constitucionais das políticas
públicas para educação, se atrela na sua extensão ao acesso a camadas ainda não concludentes dos níveis de ensino anterior (educação básica fundamental e ensino médio).
Vimos este projeto como uma abertura ou “cartão de visita” do que o ensino superior
poderá contribuir na especificidade da área nos tempos posteriores destes agentes. Assim como o público da comunidade, pensamos que:
As classes populares reivindicam escola pública, mas não querem apenas a extensão da escola burocrática e elitista do Estado. Querem que essa escola acolha
também os seus saberes e sonhos e seja radicalmente democrática. Querem discutir a função social dessa escola, colocando em questão os seus conteúdos e
sua gestão. Esse novo movimento não nega o papel do Estado como o principal
articulador das políticas sociais. (GADOTTI, 2012, p.5).
Portanto um dos fatores desta interiorização se baseou no diagnóstico e no perfil
do público-alvo, além de questões didáticas da inclusão da extensão nos municípios,
debatidas nos foruns anteriores e o diálogo entre os grupos filarmônicos; se a distância física das mesmas comprometia o acesso ao ensino qualificado; como este diálogo
ocorria; o acesso a aulas e palestras por docentes de renome nacional e internacional
dialogando de fato com a academia, e se tais motivos citados era possível tal ação.
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JPMB: qualificação da performance no contexto da educação
musical comunitária em cidades interioranas de Alagoas
O MODELO, A METODOLOGIA E OS RESULTADOS
Para uma melhor compreensão do público-alvo, o então grupo de pesquisa Metodologia e Concepção Social do Ensino Coletivo Instrumental se baseou em questões
do movimento do ensino musical nas cidades interioranas; no acesso dos alunos de
música às plataformas digitais, ainda sobre performance instrumental; no contato dos
mesmos com oficinas instrumentais didáticas ou com docentes da área de performance
em encontros e congressos oferecidos pela Ufal ou outras instituições; na análise estrutural das sedes das sociedades musicais e o acesso gratuito com ajuda estatal ou com
parceria público-privado.
Tais questões foram baseadas no modelo de análise acima de Moscarola (1990,
p.105), abordadas na minha tese de 2013 sobre a formulação de questionários e entrevistas para esta formulação de perguntas, de hipóteses em grupos, que estão atreladas
a outras questões externas do ambiente. Ou seja, realizamos um diagnóstico para obter
justificativas mais exatas da implantação desta extensão no interior de Alagoas.
Fig 1: Modelo de Moscarola (1990)
Assim, o grupo de pesquisa poderia, de alguma forma, criar as hipóteses já relatadas anteriormente para que a ação comunitária obtivesse um diagnóstico de referência,
para depois montar a logística da ação do projeto e estabelecer o número crescente
destes alunos fora do ambiente – filarmônico ou não –, preservando sempre a “identidade do indivíduo”, como cita Paulo Freire, e a identidade cultural local nas oficinas
propostas pelos nossos professores convidados. Freitas destaca estas ações:
Moscarola desenvolve interessante abordagem a respeito do questionário e de
sua elaboração, definindo primeiro como todo o grande macroambiente que
cerca e define o contexto: cultura e modo de vida, economia, técnicas, sociedade, organizações, locais, geografia; depois se aproxima mais com aspectos
de marketing, como comunicação e publicidade... Faz uma triangulação dos
métodos de observação ao conteúdo, associando o tema ao significado de observação (identidade, comportamentos e valores), à natureza do objeto (fatos,
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musical comunitária em cidades interioranas de Alagoas
comportamentos, opiniões) e aos meios (ou métodos de observação, ou seja,
observação direta, entrevista fechada, entrevista semiaberta ou entrevista aberta). Sua ênfase é, ainda, a de que há diversas maneiras de abordar o tema. (FREITAS, 2000, p.4).
Toda ação comunitária também provém das parcerias entre essas políticas públicas
que promovem estas possibilidades através de ONGs ou outros formatos gerados pelas
próprias sociedades musicais e que assim podem gerir as metas da JPMB neste contexto.6
O perfil dos atendidos
Foram detectados basicamente quatro perfis de estudantes de música nas enquetes resultantes das edições do projeto JPMB, incluindo as edições interioranas:
1- estudantes de graduação ou de cursos técnicos vizinhos a Alagoas, sendo as
universidades federais e os institutos federais, em sua maioria;
2- estudantes de outras áreas, mas que têm na música um segundo objeto de estudo em seus contextos cotidianos;
3- alunos de escolas públicas de diversos estados que participam de projetos de
música ou que são de grupos musicais compostos nestas unidades de ensino, geralmente atrelados às atividades de disciplinas artísticas nas esferas municipais e estaduais;
4- grupo com perfil mais próximo da identidade do projeto, que é o contexto
filarmônico.
Geralmente os inscritos são alunos que percorrem as aulas no formato da tradição bandística. O período de formação dos integrantes de sociedades musicais nestas
bandas de música dura em média um ano, abordando primeiramente teoria musical
e, logo após, o aprendizado instrumental. Ou seja, temos um público com níveis diferentes, sendo necessário equilibrar o nível das turmas instrumentais oferecidas. Como
exemplo, destacamos o processo de registro coordenado e realizado em parceria com
a JPMB, pelo professor José Luann Veiga em sua plataforma Ecim (Espaço de Compreensão e Invenção Musical),7 desde a edição de 2015, que é sempre atualizado a cada
evento. O gráfico a seguir, baseado na enquete on-line disponível na página de inscrição,8 demonstra os dados anuais dos perfis dos inscritos e sua relação com o conhecimento musical.
6
Nestes anos de pesquisa, destacamos ações em sociedades musicais que transformaram suas sedes em escolas com cronogramas
e avaliações próprias de ensino, oferecendo gratuitamente cursos e promovendo encontros em suas sedes. São exemplos a Sociedade Musical
Curica (Pernambuco), a Sociedade Musical Cruzeta (Rio Grande do Norte), a Fundação Música e Vida de São Caetano (Pernambuco), entre outras
em Alagoas e outros municípios nordestinos.
7
Plataforma gerida nas ações do Cemupe, responsável pela salvaguarda dos dados do projeto e parceiro da JPMB.
8
Disponível em: www.ecimusical.com/jpmb.
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Gráfico 1: Dados da plataforma ECIM.2015
Para estes alunos interessados, a JPMB é a oportunidade de obter caminhos pedagógicos para outras metodologias de celeridade na habilidade performática, já que o
corpo docente deste também é oriundo de filarmônicas e projetos sociomusicais, em
sua grande maioria.
É bastante salutar que as oficinas oferecidas pelos docentes convidados tenham
caráter pedagógico livre em sua estrutura individual em cada atividade; apenas sugerimos que estivesse de acordo com o perfil do alunado participante. A alternância de
docentes também oferece uma gama de possibilidades dos caminhos da prática. Nestes
anos, foram oferecidas as seguintes atividades:
• Oficinas de instrumentos: clarinete, saxofone, trompete, tuba, bombardino, trompa, fagote, oboé, trombone, violão, violino, cravo, piano;
• Oficinas especiais: Prática de Regência Banda, Práticas de Grupo de Câmara, Oficinas de Arranjo e Orquestração, Vivências de Educação Musical, Introdução à Musicologia;
• Fóruns de musicologia, Fóruns de Maestro de Bandas, Fóruns de Educação e Música, Fóruns de Cultura e o subprojeto JPMB nas Escolas.9
• Concertos nos espaços públicos, prédios coloniais e turísticos locais e praças;
• Apresentações de comunicações e artigos propostos na revista Musifal.
A JPMP conta com um corpo organizacional que envolve alunos da Graduação em
Música da Ufal, voluntários e bolsistas; professores e técnicos do curso de Graduação
em Música, Turismo e História; além do apoio das esferas administrativas da universidade, como a Propep (Pró-Reitoria de Pesquisa), a Proex (Pró-reitoria de Extensão Universitária), a Proinst (Pró-Reitoria Estudantil), a Ascom (Assessoria de Comunicação) e a
CAC (Coordenação de Assuntos Culturais).
No quadro a seguir serão expostos os anos e as ações para o melhor entendimento
do processo histórico e estrutural da JPMB entre 2009 e 2019. Em negrito o ano e as
cidades do interior de Alagoas beneficiadas com o projeto.
9
As JPMB realizadas em 2018 e 2019 consistiram em levar de forma didática grupos musicais participantes às instituições de ensino
regular municipais e estaduais como formação de plateia.
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Ano
Cidade (AL)
Local
Ações pedagógicas
2009
Maceió
Auditório do Espaço Palestra sobre o métoCultural da Ufal
do Da Capo
Número de certificados10 /
Perfil
90 certificados
Perfil dos participantes:
Graduados em Música, integrantes de filarmônicas,
professores das sociedades
musicais e da Ufal
2009
Maceió
Auditório do Espaço Palestra sobre o métoCultural da Ufal
do Da Capo e oficinas
de trompa
120 certificados
Participantes: Graduados
em Música, integrantes de
filarmônicas, professores
das sociedades musicais e
da Ufal
2010
Maceió
Auditório do Espaço Lançamento do DVD do 130 certificados
Cultural da Ufal
professor Bohumil Med
Participantes: Graduados
em Música, integrantes de
filarmônicas, professores
das sociedades musicais e
da Ufal
2010
Maceió
Auditório do Espaço Modelo Festival definiCultural da Ufal
tivo: Palestras, lançamento de livros, oficinas
instrumentais, bandas
de música de outros
estados
150 certificados
Auditório do Espaço Modelo Festival definiCultural da Ufal
tivo: Palestras, lançamento de livros, oficinas
instrumentais, bandas
de música de outros
estados
221 certificados
Escola de Artes
230 certificados
2013
2014
10
Maceió
Arapiraca
Modelo Festival definitivo na cidade do interior. Palestras, lançamento de livros, oficinas
instrumentais, bandas
de música de outros
estados
Participantes: Graduados
em Música e integrantes de
filarmônicas, professores
das sociedades musicais e
da Ufal
Participantes: Graduados
em Música, integrantes de
filarmônicas, professores
das sociedades musicais e
da Ufal
Participantes:11 Integrantes
de filarmônicas, professores das sociedades musicais e da Ufal, pesquisadores de outros estados e
países
Números coletados nas inscrições gratuitas realizadas.
11
Notou-se a diminuição de alunos de graduação. O argumento era a falta de estrutura financeira para o deslocamento e hospedagem
no interior, apesar de o projeto oferecer alojamento em parceria com escolas públicas locais.
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2015
2016
2017
Arapiraca
Marechal
Deodoro
Marechal
Deodoro
Escola de Artes
Vários prédios
coloniais
Vários prédios
coloniais13
Modelo Festival
definitivo na cidade
do interior. Palestras,
lançamento de livros,
oficinas instrumentais,
bandas de música de
outros estados
253 certificados
Parceria com o
Sesc e a junção
com a plataforma
Ecim (Espaço de
Compreeensão e
Invenção Musical),12
patrocínio por edital da
Fundação de Amparo
a Pesquisa de Alagoas
(Fapeal), apoio do Edital
Paep-Capes nesta
edição
355 certificados
ECIM (Espaço de Compreeensão e Invenção
Musical/CNPq), patrocínio por edital da
Fundação de Amparo
a Pesquisa de Alagoas
(Fapeal)
450 certificados
Participantes Integrantes
de filarmônicas, Professores das sociedades musicais e da Ufal, pesquisadores de outros estados e
países
Participantes: Integrantes
de filarmônicas, professores das sociedades musicais e da Ufal, pesquisadores de outros estados e
países.
Inscrições on-line, possibilitando um aumento
considerável de participantes. Inserção dos fóruns de
cultura e de maestros
Participantes: Integrantes
de filarmônicas, professores das sociedades musicais e da Ufal, pesquisadores de outros
estados e países.
Consolidação dos fóruns
propostos.
12
A certificação on-line passa a ser registrada nos dados do Ecim em parceria com o Grupo de Pesquisa. A certificação chancelada pelo
CNPq nos permitiu oficializar os dados nos registros Procep e Proex da Universidade Federal de Alagoas.
13
Marechal Deodoro e Penedo são cidades tombadas pelo Patrimônio Histórico Nacional, e o Iphan permite, com as respectivas autorizações, que os prédios restaurados sejam utilizados para ações culturais e pedagógicas.
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musical comunitária em cidades interioranas de Alagoas
2018
Penedo
Vários prédios
coloniais
Chancela da Secretaria
de Cultura e da Secretaria de Educação de
Penedo, patrocínio por
edital da Fundação de
Amparo a Pesquisa de
Alagoas (Fapeal)
750 certificados
Mudança de nomenclatura para JPMB-Festival
Internacional de Música de
Penedo.
Inserção de fóruns de
educação e a JPMB nas
escolas em parceria com a
Semed local.
Participantes: Integrantes
de filarmônicas, professores das sociedades musicais e da Ufal, pesquisadores de outros estados e
países.
2019
Penedo
Vários prédios
coloniais
Patrocínio por edital da
Fundação de Amparo
a Pesquisa de Alagoas
(Fapeal)
850 certificados
Participantes: Integrantes
de filarmônicas, professores das sociedades musicais e da Ufal, pesquisadores de outros estados e
países.
Quadro 1: Edições da JPMB entre 2009 e 2019 e respectivas ações. Fonte: Elaborado pelo autor.
Descrição das edições
A JPMB teve algumas transformações ao longo desses anos de existência. Abaixo
uma sinopse dessas ações:
1ª JPMB: Ainda em caráter experimental, surge em forma de palestra-curso sobre
o ensino coletivo, em 2009;
2ª JPMB: A jornada de 2009 lança a revista eletrônica Musifal, que propõe a divulgação de artigos científicos sobre professores e compositores alagoanos (1ª edição de
capa: Hekel Tavares). Divulgação pelo convidado da edição e método Da Capo;
3ª JPMB: Realizada em 2010, incluindo lançamento do DVD sobre teoria musical
do renomado professor Bohumil Med. Institui-se o modelo festival com a possibilidade
de oficinas de instrumento (naipes) e de debate da inserção de projetos nas escolas públicas. Maior participação das redes municipal e estadual de ensino. Tem como objetivo
unir projetos de ensino musical luso-brasileiros, ganhando caráter internacional com a
assinatura do convênio entre o Instituto Piaget (Portugal) e a Ufal. Palestras das parcerias de ensino entre os dois países; parceria para edição de livros entre a Sociedade Musical Curica de Pernambuco e o grupo de pesquisa na Ufal. Participação da Sociedade
Musical Curica;
4ª JPMB: Realizada em 2013, em Maceió. A junção com o II Encontro de Claronistas possibilitou a definitiva internacionalização da Jornada. Foram lançados três livros
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em parceria com a Filarmônica Curica e e houve a participação de quatro professores
internacionais”;
5ª JPMB: Realizada em 2014, em Arapiraca. Faz uma junção com os concertos de
música antiga. Correalização com o Ecim e o Sesc, além da criação do Fórum de Maestros com a Febamfal, a federação de bandas do estado.
6ª JPMB: Realizada em 2015, em Arapiraca, com a presença dos renomados Siqueira Lima e Kleber Dessoles representando instituições alagoanas, além da presença
de Alexandre Andrade e Gilvando Pereira.
7º JPMB: Realizada em 2016. Ampliação da participação portuguesa, com oficinas
internacionais de flauta e regência, ministradas por Alexandre Andrade e Arnaldo Antonio Costa, respectivamente, uma palestra de Rui Paiva. Pela primeira vez, a JPMB ocupa
espaços em prédios históricos restaurados pelo Iphan para suas atividades.
8ª JPMB: Realizada em 2017, em Marechal Deodoro. Inclusão de ações de musicologia, atividade acadêmica nacional com o II Congresso da ABMUS (Associação Brasileira de Musicologia), com a presença de toda a diretoria. Houve Eventos paralelos,
como os concertos solenes e o lançamento do terceiro volume da revista Musifal, com
a publicação de artigos e atas do I Fórum de Maestros.
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musical comunitária em cidades interioranas de Alagoas
Fig. 2: Lista dos artigos publicados na VII JPMB edição III da Musifal.14
A 9ª e a 10ª edições em Penedo e a educação comunitária efetivada
Em 2018, a convite da Secretaria de Cultura de Penedo e do comércio local em
reuniões com a Secretaria de Turismo e Desenvolvimento, mudamos o projeto para a
cidade. A parceria do estado (município e governo do estado) e o apoio financeiro possibilitaram um maior número de oficinas e melhor logística dos grupos filarmônicos de
outros municípios.
14
Artigos previamente selecionados da Musifal, a revista eletrônica do curso de Música, fundada dentro do grupos de pesquisa. Nesta
edição também foi sede do II Congresso da ABMUS (Associação Brasileira de Musicologia).
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JPMB: qualificação da performance no contexto da educação
musical comunitária em cidades interioranas de Alagoas
Naquele momento, o estado estava representado pela Universidade, pelas secretarias de Cultura do estado e do município, pela Secretaria Municipal de Educação e
pela Prefeitura Municipal de Penedo.
O orçamento do Projeto JPMB foi dobrado e a sua nomenclatura foi alterada para
JPMB: Festival Internacional de Música de Penedo. Definitivamente, o corpo docente e
as oficinas foram ampliadas.
Nos dois anos de ações na cidade ribeirinha do São Francisco, entre 2018 e 2019,
quase dois mil participantes se cadastraram na plataforma. Todo o processo do Ecim foi
on-line, e o certificado foi emitido imediatamente após a atividade. Nenhuma certificação foi impressa, contribuindo também com a preservação ambiental.
Mais de 1.500 pessoas assistiram aos concertos e às apresentações na praça, e o
número de artistas e filarmônicas teve crescimento constante. Como nas outras edições, nesses anos também contamos com artistas de renome internacional, inclusive
em maior número. Foram 50 convidados, 10 filarmônicas, 15 grupos de câmara e solistas, 26 oficinas ofertadas e 300 alunos das redes municipal e estadual de ensino atendidos com aulas de formação de plateia no JPMB nas escolas (tema de outros textos por
vir) e representantes dos municípios e estados brasileiros registrados nas certificações,15
a exemplo de São Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Goiás, Rio Grande do Norte, Sergipe, Alagoas e Ceará.
Professor convidado
Origem
José Alípio Martins
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia 2009, 2013, 2016 e 2018
Joel da Silva Barbosa
Universidade Federal da Bahia
2009 a 2019
Flávio Ferreira da Silva
Universidade Federal de Alagoas
2013 a 2019
Celso Benedito
Universidade Federal da Bahia
2013, 2018 e 2019
Bohumil Med
Universidade de Brasilia
2010
Alexandre Alberto Andrade Instituto Piaget (Portugal)
Ano de atuação no projeto
2013 a 2019
Gilvando Pereira
Universidade Federal do Rio Grande do Norte 2013, 2017 e 2018
Henri Bok
Bufett Grupon (Holanda)
Paolo De Gaspari
Bufett Grupon (Itália)
2013
Humberto Dantas
Sociedade Musical Cruzeta
2015
Maira Kandler
Universidade Estadual de Santa Catarina
2015
Kleber Dessoles Marques
Escola Técnica de Artes Alagoas
2015 a 2019
Clistenes André Lisboa
Conservatório de Música
2015
Humberto Dantas
Sociedade Musical Cruzeta
2015
Almir Medeiros
Instituto Federal de Alagoas
2016
Marco Toledo
Universidade Federal de Ceará
2016
Rui Paiva Correia
Ministério da Cultura de Portugal
2016
Arnaldo Antonio Costa
Conservatório do Minho (Portugal)
2015, 2016 e 2018
Alberto Kattar
Universidade Federal do Rio de Janeiro
2016
Luciano Alves
Yamaha Instrumentos Musicais (Rio de Janeiro) 2016
Frederico Meireles Dantas
Universidade Federal da Bahia
15
2013
2016
Dados retirados pela identificação dos participantes nas certificações do Ecim.
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musical comunitária em cidades interioranas de Alagoas
Davisson Lima
Conservatório de Música de Sergipe
2016
Gilmar Tavares
Barkley Brazil (São Paulo)
2016 a 2019
Elias Coutinho
Barkley Brazil (Pará)
2016
Elaine Maria da Silva
Secretaria de Educação Municipal de São Paulo 2016 a 2019
Maglione Santos
Escola de Música Toca do Mago (Alagoas)
2016
Cibele Sabioni
Conservatório de Tatuí (São Paulo)
2017
Dario Sotelo
Conservatório de Tatuí (São Paulo)
2017
Iris Vieira
Universidade Federal da Paraíba
2017
Mary Angela Biason
Secretaria de Cultura de Campinas (São Paulo) 2017 a 2019
Manoel Vieira Junior
Universidade de Laval (Canadá)
2017 e 2018
Luciana Câmara
Universidade Federal de Pernambuco
2017
Jardel Souza
Conservatório Musical de Pernambuco
2017 e 2018
Aurélio Souza
Secretaria Estadual de Educação de Goiás
2017 e 2018
Anor Luciano Junior
Universidade Federal de Minas Gerais
2018
Renato Costa Pinto
OSBA - Orquestra Sinfônica da Bahia
2018
Fábio Plácido
Universidade Estadual do Amazonas
2018
Flavio Ferreira da Silva
Universidade Federal de Alagoas
2013 a 2019
João Paulo Oliveira
Universidade Federal do Rio Grande do Norte 2017
Diósnio Machado Neto
Universidade de São Paulo
2016 a 2019
David John Cranmer
Universidade Nova de Lisboa (Portugal)
2017 e 2019
Débora Borges
Universidade Federal de Alagoas
2017
Eduardo Lopes
Universidade de Évora (Portugal)
2018 e 2019
Lilian Pereira
EscolaTécnica de Artes (Alagoas)
2018 e 2019
Fernando Binder
Secretaria de Educação de São Paulo
2018
Samuel Pompeo
Barkley Brazil (São Paulo)
2018 e 2019
Ana Guiomar Souza
Universidade Federal de Goiás
2019
Alexandre Raine
Funarte (Rio de Janeiro)
2018 e 2019
Antonio Eduardo
Universidade Caólica de Santos (São Paulo)
2018 e 2019
Ziliane Teixeira
Universidade Federal de Alagoas
2018 e 2019
Heloisa Leone
Colégio Marista (Salvador, Bahia)
2019
Wellington Mendes
Universidade Federal da Bahia
2019
Cristina Tourinho
Universidade Federal da Bahia
2019
Daniel Oliveira
Dadário Instrumentos (São Paulo)
2019
Mozart Vieira
Fundação Musica e Vida (Pernambuco)
2019
Lélio Alves
Universidade Federal da Bahia
2019
Eugenio Graça
Roriz-Sescc/ Rio Grande do Nortec/ Portugal 2019
José Mauricio Brandão
Universidade Federal da Bahia
2019
Jairo Tadeu Brandão
Universidade Federal da Bahia
2019
Fernando Lacerda
Universidade Federal do Pará
2019
José Eduardo Xavier
Universidade Federal de Alagoas
2019
Alfredo Moura
Universidade Federal da Bahia
2019
Quadro 2: Professores e grupos convidados em todos os anos da JPMB. Fonte: Elaborado pelo autor.
16
16
A equipe pedagógica da Ufal não consta na lista, apenas os professores das oficinas e os palestrantes.
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JPMB: qualificação da performance no contexto da educação
musical comunitária em cidades interioranas de Alagoas
Conclusões
A JPMB tem sido nesses anos o maior festival de música para estudantes da área
e pesquisadores afins. Transpor e transformar além dos câmpus ratifica e fortalece o
posicionamento do papel da JPMB e da Universidade. A junção do poder público com a
iniciativa privada e a consolidação de apoios de fomento à pesquisa mostram que nada
se demonstra nos caminhos educacionais desconectados. É um sistema que deve ser
aprimorado, mas que é possível. Nesses 10 anos, vimos o árduo dissabor das dificuldades burocráticas e como estes entraves muitas vezes tornam-se desmotivadores.
Em contrapartida, os resultados satisfatórios oferecidos, nesta oportunidade de
extensão e pesquisa, superam todos estes obstáculos. De acordo com os próprios professores, mesmo aqueles renomados e com reconhecida experiência no meio acadêmico, a prática docente transforma suas visões de mundo. O contato com a cultura
nordestina; o diálogo com alunos de diversos caminhos; a conscientização da democratização do acesso gratuito do ensino musical neste escopo e, por último, a vivência
da performance por todos os envolvidos, seja na ação ou como meros espectadores,
engrandecem a nossa perspectiva de continuidade da JPMB.
Neste ano de 2020, devido às medidas de isolamento social, em concordância
com a Organização Mundial da Saúde no combate à Covid-19, as ações da JPMB continuam por meio dos seus canais das redes sociais sem perder a característica formativa
através da programação on-line.
O festival proposto nesta extensão afirma portanto que o diálogo diacrônico e
plural entre a universidade e a comunidade faz o meio acadêmico ratificar em sua conjuntura o papel educacional e a interdisciplinaridade com as áreas afins, além do campo
científico musical inserido no seu contexto artístico - pedagógico. Assim, a musicologia
social e a educação musical como precursora dos estudos da música neste modelo
apresentado em Alagoas, em sua prática não só performática propriamente dita, mas de
um movimento em prol da diversidade e da autonomia do indivíduo, cumprindo o seu
papel do movimento profissional da música na sua realidade regional.
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1988. Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
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Marcos dos Santos Moreira
ORFEU, v.5, n.2, 2020
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musical comunitária em cidades interioranas de Alagoas
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Marcos dos Santos Moreira
ORFEU, v.5, n.2, 2020
P. 18 de 18
10.5965/2525530405022020e0012
Desintegração de vozes, reintegração
de posses: apontamentos sobre a polca
purahei jahe’o como narrativa de aspectos
sócio-históricos da cultura paraguaia
Miguel Díaz Antar1
Universidade de São Paulo (USP)
miguedz5@gmail.com
Yonara Dantas de Oliveira2
Universidade de São Paulo (USP)
yoyodantas@gmail.com
Submetido em 09/06/2020
Aprovado em 24/10/2020
ORFEU, v.5, n.2, 2020
P. 1 de 27
Desintegração de vozes, reintegração de posses: apontamentos sobre a polca purahei
jahe’o como narrativa de aspectos sócio-históricos da cultura paraguaia
Resumo
No presente artigo discutimos como a música popular paraguaia, em especial as
do tipo polca purahei jahe’o, pode ser acionada como material fundamental para uma
pesquisa sócio-histórica a respeito da cultura paraguaia. No presente estudo selecionamos a polca Propiedad Privada como material de análise e dela depreendemos dois
aspectos: (i) a situação da mulher na cultura paraguaia e (ii) a questão fundiária. Ambos aspectos se apresentam na letra da música a partir de uma certa ambiguidade de
sentido. Não se pode afirmar, com certeza, se a letra se refere a um ou outro tema. A
potência da canção, sob nossa perspectiva, reside justamente nessa capilaridade que
permite tratar de ambos assuntos. E desses dois aspectos, que parecem díspares, vamos descortinando parte importante da história paraguaia e elementos característicos
de sua cultura. Infelizmente, vemos desvelada também a reiteração de uma violência
social que mantém os/as oprimidos/as em condição de subserviência e pobreza.
Palavras-chave: Purahei jahe’o, música paraguaia, matriarcado, nacionalismo, música e sociedade.
Abstract
In this article we discuss how Paraguayan popular music, especially those of the
purahei jahe'o polka type, can be used as fundamental material. We selected the song
Propiedad Privada as material for analysis and we deduced two aspects from it: (i) the
situation of women in Paraguayan culture and (ii) land dispute. Both aspects appear
in the lyrics of the song from a certain ambiguity of meaning. It cannot be said with
certainty whether the lyrics refer to one or the other subject. The power of the song,
from our perspective, lies precisely in that capillarity that allows the two themes to be
connected. And from these two aspects that seem disparate, we are discovering an
important part of Paraguayan history and the characteristic elements of its culture. Unfortunately, we also see the reiteration of social violence that keeps the oppressed in a
condition of servility and poverty.
Keywords: Purahei jahe’o, Paraguayan music, matriarchy, nationalism, music and
society.
Resumen
En este artículo discutimos cómo la música popular paraguaya, especialmente las
del tipo polca purahei jahe’o, puede ser accionada como material fundamental para
una investigación socio histórica sobre la cultura paraguaya. Para el presente estudio
seleccionamos la canción Propiedad Privada como material para análisis y dedujimos
dos aspectos de ella: (i) la situación de la mujer en la cultura paraguaya y (ii) disputa
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Desintegração de vozes, reintegração de posses: apontamentos sobre a polca purahei
jahe’o como narrativa de aspectos sócio-históricos da cultura paraguaia
de la tierra. Ambos aspectos aparecen en la letra de la canción a partir de una cierta
ambigüedad de significado. No se puede decir con certeza si la letra se refiere a uno u
otro tema. La potencia de la canción, desde nuestra perspectiva, radica precisamente
en esa capilaridad que permite conectar ambos temas. Y a partir de estos dos aspectos
que parecen dispares, observamos una parte importante de la historia paraguaya y los
elementos característicos de su cultura. Desafortunadamente, también vemos la reiteración de la violencia social que mantiene a los/as oprimidos/as en una condición de
servilismo y pobreza.
Palabras clave: Purahei jahe’o, música paraguaya, matriarcado, nacionalismo, música y sociedad.
1
Doutorando do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes. Participa do Núcleo de Pesquisas em Sonologia – NuSom
USP. Agência de fomento: FAPESP (processo n°2017/09285-9). Formou-se em música no Ateneo Paraguayo. Integra os grupos Ôctôctô, Joaju,
DuoCoz, Camerata Profana, Filarmônica de Pasárgada e KairosPania Cia. Cênico Sonora. Membro da Orquestra Errante, coletivo experimental que
se dedica à prática da improvisação contemporânea e faz parte do projeto NuSom - Núcleo de Pesquisa em Sonologia, da ECA-USP. Desenvolve
pesquisas artísticas na relação entre composição e improvisação musical contemporâneas. Como instrumentista tem participado de diversos
festivais em países como Alemanha, Argentina, Bolívia, Brasil, Estados Unidos, Inglaterra, Luxemburgo, Paraguay, Portugal e Uruguay.
2
Pesquisadora com formação interdisciplinar, está atualmente desenvolvendo o pós-doutorado na ECA/USP. Graduada, mestre e doutora em Psicologia. Atriz formada pelo Teatro Escola Célia Helena. Dentre seus trabalhos artísticos, destacam-se a direção de performances na
Kairospania Cia Cênico-Sonora (Transposições, 2016; Suíte [en]quadrada, 2017; Des a a vel, 2017; A Síria não é aqui, 2017 e Delfina, 2018), atuação na peça “O Dragão Dourado” e atuação e direção da peça “Barbazul”, ambas da Trupe à Grega (antes denominado Coletivo Quartocê). Atua,
dirige e produz espetáculos de teatro e de música na cidade de São Paulo. É professora na Escola Superior de Artes Célia Helena, onde também já
atuou como coordenadora de cursos de pós-graduação em artes. Participa dos Laboratório de Livre Improvisação Orquestra Errante e do Núcleo
de Pesquisas em Sonologia da USP – NuSom.
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Desintegração de vozes, reintegração de posses: apontamentos sobre a polca purahei
jahe’o como narrativa de aspectos sócio-históricos da cultura paraguaia
Introdução
A música popular latino-americana é um vetor de afetos. Ela concentra e traduz
experiências políticas, econômicas e sociais que marcam profundamente a vida de populações das mais diversas classes sociais. Ela, por sua própria natureza calcada na palavra, dialoga com uma tradição de cultura popular ancorada na transmissão oral – as
letras das canções são meios narrativos para contação de histórias, experiências e sentimentos. E, ainda precisamente por sua oralidade, exige uma análise musical que vá mais
além do material composicional, e considere o seu contexto sócio-histórico. Ter em
vista essas especificidades, na opinião do pesquisador Evandro Higa (2013), minimiza “o
risco inevitável de cair nas armadilhas do anacronismo de uma musicologia já superada”
e que, sob esse prisma, pode acabar por reforçar “repertórios e ambientes musicais dominados por concepções elitistas e preconceituosas” (HIGA, 2013, p.12).
O presente estudo toma como referência essa perspectiva para pensar a música popular paraguaia, entendendo-a como parte fundamental do amplo panorama da
música popular latino-americana. Escolhemos uma polca popular paraguaia como material de análise e procuramos ressaltar tanto os elementos musicais inerentes à obra
em questão como as possíveis interferências culturais que podem ser depreendidas
do próprio material. A partir da análise de elementos sociais e culturais ali impressos,
observamos valores sócio-históricos impregnados nesse repertório e que, por vezes,
passam desapercebidos na cultura paraguaia, ofuscados pela repetição e naturalização
dos discursos. E elevamos a música popular a material privilegiado de pesquisa, contrapondo-nos, portanto, a visões elitistas sobre tal repertório – que tende a menosprezá-lo. Como Higa (2013) afirma, a música popular se encontra “em um contexto de lutas
simbólicas complexas, não há como abrir os ouvidos para essa música e fechar os olhos
para as redes de significação que a configuram” (HIGA, 2013, p.16). É dessa forma que
observamos elementos tais como nacionalismo, heroísmo, elogios à mulher, romanticismo, machismo, misoginia, xenofobia, violência social etc. se misturam no caldeirão
de polcas e guarânias que formam a música tradicional popular do Paraguai.
A música que selecionamos como material de análise é a polca Propiedad Privada,
do músico paraguaio Cecilio Mareco Pereira (1943 - ), uma composição amplamente
difundida e gravada no Paraguai. Como já citado, a partir dessa música depreendemos
reflexões sobre aspectos sócio-históricos presentes na cultura paraguaia. Especificamente dois aspectos que atravessam a cultura paraguaia: (i) a questão de gênero e (ii)
a questão fundiária. Ambos se encontram impressos como faces complementares de
uma ambiguidade impressa na letra da canção e oferecem um bom pano de fundo para
pensarmos a cultura e a sociedade paraguaias – tanto naquilo que a une à experiência
latino-americana, como naquilo que a torna singular.
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Desintegração de vozes, reintegração de posses: apontamentos sobre a polca purahei
jahe’o como narrativa de aspectos sócio-históricos da cultura paraguaia
1 – Sobre a polca Propiedad Privada: entre a posse de terras e a objetificação de mulheres
A canção, letra e música, Propiedad Privada pertence ao conjunto de composições
da música folclórica tradicional e popular do Paraguai. Seu autor – Cecilio Mareco Pereira – é um músico paraguaio nascido na Cidade de Ybycui em 1943. Desde criança,
Cecilio teve contato com o ambiente musical graças a seu pai e seus tios, que eram
músicos. Ainda adolescente, por volta de 1955, Cecilio mudou-se para cidade fronteiriça de Posadas, na Argentina. O novo endereço ficava na mesma rua que o prédio da
emissora “LT4 Rádio Missiones”, destacada na época por abrigar conjuntos musicais
folclóricos nacionais e internacionais para apresentações ao vivo na rádio. Em pouco
tempo, Cecilio passou a frequentar as apresentações in loco, e logo a integrar grupos
de música tradicional paraguaia, destacando-se como letrista de novas composições.
Na década de 1970, integrou o conjunto “A lo Valleté”, que gravou dois LPs no
selo Cerro Corá e outro no selo Vapor Cué. Com este conjunto teve bons momentos pois tiveram várias atuações por todo o território paraguaio e outros
países, entre os quais parte da república da Argentina, Brasil e Bolívia, lugares
onde “A lo Vallete” fez grande sucesso com o estilo de música que interpretavam.
Depois disso outro grupo foi criado e desta vez com o nome “Grupo Electrónico
93” e tiveram 14 dos temas de maior sucesso gravados. E assim foi triunfando
com seus diferentes temas que foram, são e seguem sendo gravadas até hoje em
dia (PORTAL GUARANI, online, s/d – tradução nossa3).
Depois de morar muitos anos no exterior, Cecilio voltou para o Paraguai e se aposentou4. Para o presente trabalho procuramos contato com ele, o que não foi viabilizado por motivos de saúde.
Apesar da importância do trabalho de compositores de música popular tradicional,
como Cecilio Mareco Pereira, tendo em vista que reinterpretações e regravações de
músicas tradicionais populares são bastantes comuns nos grupos paraguaios, a questão
de registro e nomeação da autoria das músicas ainda é bastante falha. Nem sempre estão inseridas nas capas dos discos informações importantes como a origem das músicas
gravadas, os locais e datas do processo de gravação – isso se observa tanto nos antigos
discos de vinil como nos mais recentes CDs. É o que se observa com a polca Propiedad
Privada. Atualmente é possível encontrar muitas gravações da polca, mas poucas fazem
referência ao seu autor, Cecilio Mareco Pereira. Assim, com o objetivo de confirmar a
autoria da polca Propiedad Privada entramos em contato com a instituição paraguaia
3
No original: “En la década del 70 formó el conjunto ‘A lo Valleté’ con el que grabó dos LP en el sello Cerro Corá y otro en el sello Vapor Cué. Con
este conjunto pasó buenos momentos ya que tenían varias actuaciones por todo el territorio paraguayo y otros países, entre ellos parte de la república de
Argentina, Brasil y Bolivia en donde ‘A lo Vallete’ tuvo gran éxito con el estilo de música que interpretaban. Ya después otro grupo fue creado y esta vez con
el nombre de ‘Grupo Electrónico 93’ en donde 14 de los temas de mayor éxito fueron grabados. Y así fue triunfando con sus diferentes temas que fueron,
son y siguen siendo grabados hasta hoy en día” (PORTAL GUARANI, online, s/d).
4
Cecilio Mareco Pereira passou a receber pensión graciable do governo paraguaio, através da Ley Nº2820, de 3 de novembro de 2005.
Disponível em: https://www.bacn.gov.py/leyes-paraguayas/1908/ley-n-2820-concede-pension-graciable-al-senor-cecilio-marecos-pereira-gran-exponente-del-folklore-nacional (acesso em outubro 2020).
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Desintegração de vozes, reintegração de posses: apontamentos sobre a polca purahei
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APA - Autores Paraguayos Asociados - que confirmou Cecilio como autor da polca e
acrescentou que a música foi registrada na instituição no dia 4 de novembro de 2011.
Aqui se reforça um ponto importante a respeito da música paraguaia: existe pouca
preocupação com uma documentação sistemática das obras musicais - tanto por parte
dos/as artistas como por parte da própria instituição responsável pela documentação.
Além da já citada despreocupação de artistas em nomear compositores das canções
gravadas, bem como das datas e locais de gravação de seus álbuns, mesmo na instituição responsável pela documentação – a APA - não há registro, por exemplo, da data de
composição da obra. Assim, a data de registro (realizada por vezes muitos anos depois
que a música foi composta) se torna a única referência temporal da música e pode se
confundir com a data de composição - o que dificulta o trabalho de potenciais pesquisadores e pode levar a confusões no registro da história da música popular paraguaia. Mais
do que apontar para uma má-fé dos/as artistas que gravaram as músicas e da instituição
responsável por essa documentação, tal falha nos parece que revela uma certa displicência a respeito da necessidade de documentação dos processos criativos em música.
Revela, ainda, a necessidade de fortalecimento desse tipo de produção acadêmica.
A pesquisa sobre música do Paraguai tem se intensificado nos últimos anos, sendo
o trabalho do Prof. Dr. Evando Higa (pesquisador brasileiro que publicou um dos primeiros trabalhos acadêmicos sobre música paraguaia) um dos marcos fundamentais de referência. Ele abre caminho e se soma a outros marcos importantes, como a criação, em
meados de 2010, do curso público de Graduação em Música em Asunción, Paraguay5 - o
que faz com que seja necessário um maior rigor no processo de documentação com vistas a viabilizar o trabalho de pesquisadores em música e, como consequência, uma maior
capacidade dos artistas paraguaios de nomear e de ter acesso à sua própria história.
Como já mencionamos, a polca Propiedad Privada conta com muitas gravações.
Uma das versões mais emblemáticas e que obteve bastante sucesso de público foi registrada no segundo disco do grupo “Odilio Román y Los Románticos Vol.2”, lançado no início da década de 20006. Ou seja, mais de dez anos antes do registro de autoria da música
por Cecilio na APA. No disco a que tivemos acesso – fazendo coro à lacuna de documentação citada - não se indicam informações a respeito da autoria ou da data de gravação.
Odilio Román (1969-2019) - foi um representante do gênero polca paraguaia sendo autor de várias músicas de sucesso no passado recente, além de intérprete de músicas consagradas. Nasceu em setembro de 1969 na cidade de San Pedro del Paraná a
80 km de Encarnación - cidade fronteiriça do Paraguai com a Argentina - e a 306 km
da capital Asunción. Com o grupo “Odilio Román y Los Románticos” obteve grande
destaque no cenário musical do Paraguai, participando em diversos festivais folclóricos
e fiestas patronales, muito comuns no interior do país. O grupo gravou 29 álbuns e realizou algumas turnês internacionais pela Europa.
5
A data precisa de início do curso de graduação em música é incerta. No site da Facultad de Arquitectura, Diseño y Arte da Universidad
Nacional de Asunción não é possível encontrar tal informação. Considera-se 2010 como parâmetro a partir da conversa com pesquisadores e
professores vinculados a essa instituição.
6
Tomamos o cuidado de sempre, tanto quanto possível, destacar informações sobre data e autoria das obras citadas. Esse tema da falta
de referências está presente também em outro artigo que produzimos, qual seja, “Apontamentos sobre narrativa oral, identidade, machismos e
feminismos no compuesto Mateo Gamarra” (ANTAR; OLIVEIRA, 2019), listado nas referências ao final desse artigo.
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Desintegração de vozes, reintegração de posses: apontamentos sobre a polca purahei
jahe’o como narrativa de aspectos sócio-históricos da cultura paraguaia
O falecimento de Odilio em agosto de 2019, em consequência de uma doença hepática, foi muito sentido no país e obteve ampla cobertura dos meios de comunicação7.
Coincidentemente no dia de seu falecimento, domingo 4 de agosto de 2019, estávamos
retornando de Asunción para São Paulo em uma viagem de carro. Durante todo o caminho em território paraguaio ouvimos nas distintas rádios locais homenagens e dedicatórias ao artista acabara de partir. Também foram tocadas reiteradas vezes as músicas
gravadas por Odilio e Los Románticos, entre elas, Propiedad Privada.
O repertório do grupo Odilio Román y Los Románticos se caracterizava pelo forte
uso do idioma guarani, predominante no interior do país (em contraposição à capital,
Asunción, onde se utiliza mais comumente o espanhol e o jopará, mistura entre espanhol e guarani). A estética do grupo pode ser considerada uma versão contemporânea
do purahei jahe’o (canto lamentoso, canto choroso), gênero da polca paraguaia que
ganha destaque no país a partir da década de 1970 e que se caracteriza pelo vínculo
das letras com a vida rural. Pesquisadores como Szarán (1999) e Pereira (2011) apontam que o termo jahe’o (lamentoso, choroso) surgiu com uma conotação pejorativa,
remetendo ao modo pelo qual músicos/musicistas urbanos criticavam as canções do
interior do país, cuja temática geralmente gira em torno das histórias do campo, luta
social e desenganos amorosos. Cabe destacar que o gênero purahei jahe’o surge nas
últimas décadas da ditadura militar no Paraguai (1954-1989), momento em que despontam com maior organização as lutas pelos direitos humanos e pela reforma agrária
nos movimentos camponeses.
No contexto de polcas purahei jahe’o ganha destaque a sonoridade proposta pelo
grupo liderado por Odilio, que lança mão de guitarra elétrica, teclado, baixo elétrico e
bateria eletrônica em substituição da instrumentação tradicional dos primeiros grupos
do gênero que utilizavam violão, harpa paraguaia, acordeón e contrabaixo. A relação
entre música e tecnologia, os diversos grupos e as diversas estéticas sonoras de música
paraguaia a partir de instrumentos elétricos, as instrumentações híbridas (instrumentos
acústicos + instrumentos elétricos), a influência de estéticas importadas, são alguns dos
pontos que ainda precisam ser estudados no que se refere a instrumentação na música
tradicional popular do Paraguai nas últimas décadas do século XX. Neste trabalho nos
dedicamos apenas a proposta do grupo de Odilio que explora, a partir da sonoridade
com instrumentos elétricos, um repertório característico do purahei jahe’o. O amplo alcance de público diz respeito a simpatia estética e a reverberação do conteúdo das letras.
A gravação da polca Propiedad Privada por Odilio y Los Románticos no início dos
anos 2000 é sem dúvida uma das principais referências da música e retoma reinvindicações que ecoam na música popular paraguaia há muito tempo. As narrativas associadas
ao contexto rural, com sua sonoridade típica de instrumentos acústicos (violão e harpa
paraguaia), são revisitadas com a roupagem da instrumentação elétrica e amplamente
difundidas no interior do Paraguai. O problema da distribuição de terra no Paraguai e a
situação da mulher no contexto de países latino-americanos e no Paraguai especificamente, são dois grandes problemas sociais e ecoam em diversas músicas tradicionais
e populares do Paraguai, desde as primeiras décadas do século XX, como Chokokue
7
Consultar referências bibliográficas online, ao fim deste trabalho.
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Purahei (1938) e Ha mboriahu (1943), como veremos adiante. Essas questões também
podem ser refletidas a partir da letra da polca Propiedad Privada.
Na letra da polca Propiedad Privada, observa-se um caráter duplo, uma engenhosa
ambiguidade entre disputa de terra e mulher como objeto de posse. Sugere-se a audição8 e a leitura da letra sob uma perspectiva e, na sequência, sob a outra. Observe:
Versão original
Português (tradução nossa)
Verso 1
Propiedad Privada ningo
raka’e che la ahaihúva
Aikuaámiýre che mba’e
roguáicha amokunu’u
Chupépe ahaihúva
amojerovia iporãve háicha
Mamoiko imo’ata
ijaratee oguerekoha
Verso 1
Propriedade Privada era
a quem eu amava
E sem saber, como se fosse minha
eu a mimava
E por amá-la tanto
a tratava com carinho (como a mais linda)
Sem imaginar sequer
que tinha dono
Coro
Mba’éiko ajapóta
Mamóiko aháta
Che yvoty ahaihúva
Oúmi hagua
Koka’aruetévo
aha’aroitéva
aikuaa porãva
mba’e ajeno ha
Refrão
O que farei?
Onde irei?
Para que a flor que amo
volte a mim
E quando cai a tarde
em vão espero
pois sei muito bem
que de outro ela é
Verso 2
Ko’anga aikuaáma mba’epa
ovale Propiedad Privada
Aimo’avyetére pe ahaihuetéva
che aiguepe’a
Che año apyta ajeplaguea
kutyre’y míchã
Mba’érepa péicha
ahendavy’ai añekonsola
Verso 2
Agora sei muito bem quanto
vale uma Propriedade Privada
quando eu menos esperava
fui abandonado
Fiquei só, queixando-me
como órfão
Por que isso aconteceu comigo?
estou triste e sem consolo
Coro
Refrão
Verso 3
Agüi añeha’a tama’e
porãpe che raperáre
anive haguáma Propiedad
Privada peajoikéve
Porque ambyasy añarrepenti
che rembiapo kuére
Na cheko’aveima já
aperdetéva ahaihúva che
Verso 3
De agora em diante terei
muita atenção em meu caminho
para que nunca mais volte
a entrar em Propriedade Privada
Porque estou muito triste e
arrependido de minhas ações
Pois já não tenho
perdi aquela que amo
Coro
Refrão
8
O clipe original da música se encontra disponível no site youtube no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=3WVpgGiHBtQ
(acesso em outubro 2020)
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À primeira vista, a letra parece referir-se a uma mulher. No entanto, ela cabe perfeitamente para pensar a posse de terras. Ao se manter ambígua, mantem-se também,
em certo sentido, irônica. A potência da canção é justamente essa capilaridade que
permite conectar ambos assuntos. Seria essa ambiguidade precisamente uma crítica
social disfarçada de música de amor? Sob a leitura de uma música de amor, trata de
uma relação amorosa calcada na ideia de posse, com a mulher representada como objeto. Se como canção amorosa, a polca Propiedad Privada se destaca pela objetificação
da mulher, como canção que trata da terra, pode ser vista como registro das precárias
condições agrárias do país. Adiante trataremos dessas duas possíveis chaves de leitura
que a letra da canção suscita.
2 – A força da música folclórica e popular no Paraguai
Os dois gêneros de música paraguaia mais famosos são a polca paraguaia e a
guarânia. Ambos compartilham da polirritmia que caracteriza a música paraguaia. Esta
acontece na sobreposição da melodia em compasso binário com uma seção rítmica
em compasso ternário. Embora a pulsação sempre tenha como referência a semínima
pontuada (que em 6/8 corresponde a dois pulsos por compasso), a execução de três
semínimas no baixo amalgama uma sonoridade que intercala dois pulsos contra três
e três pulsos contra dois, numa “alternância diacrônica de ritmos binários e ternários”
(HIGA, 2010, p.163). A partir desses encontros emerge outra característica importante
que é designada pelo pesquisador Max Boettner como o “sincopado paraguaio”.
Boettner (...) se refere ao sincopado paraguayo existente na melodia quando esta
se adianta ou atrasa sobre o ritmo do acompanhamento e afirma que nunca se
tem a sensação de sincopas propriamente ditas, mas sim a ‘sensação de uma
despreocupación languida, de una dejadez encantadora’” (HIGA, 2010, p.163 –
grifo no original).
Além do sincopado paraguaio característico de ritmos ternários e binários, na música tradicional popular do Paraguai ficam evidentes outros dois elementos: o idioma
guarani e o sistema tonal. Para o pesquisador Gonzalo Ortiz (2018), entre 1811 (ano da
independência) e 1972 (ano da primeira composição pós-tonal Dos piezas para piano9,
de Luis Szarán), a música no Paraguai foi eminentemente folclórica10. Nessa perspectiva
9
“O ano de 1972 marca o início da música contemporânea para piano no Paraguai com as Dos Piezas para piano de Luis Szarán, Adagio
e Allegro. O Adagio combina a sonoridade de acordes atonais com efeitos como notas presas, é uma peça que exige muita concentração do intérprete no ataque e na pedalização para garantir a duração das notas e acordes longos. O Allegro é uma peça de carácter humorístico onde a ideia
de surpresa resulta dos acordes abruptamente interrompidos e respostas musicais inesperadas” (ORTIZ, 2018, p.62 – grifo no original).
10
De modo geral, as manifestações da cultura popular que caracterizam a identidade social de um povo são nomeadas como folclore. A
palavra foi amplamente adotada a partir da proposta do pesquisador Willian John Thoms, em 1846, para referir-se aos conhecimentos e saberes
do povo. Para o pesquisador Alberto Ikeda (2013), o termo folclore sofre um desgaste semântico por conta de estudos que descontextualizavam
particularidades culturais das suas funções e sentidos profundos na sociedade onde se preservam, provocando visões distorcidas e preconceituosas que operam apenas com interesses estéticos ou de entretenimento. “Tais enfoques provocaram nas pessoas visão negativa a respeito desses
fatos, como se fossem expressões curiosas, rústicas, anedóticas, exóticas diante da vida moderna, vinculados aos ignorantes e à pobreza” (IKEDA,
2013, p.186).
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Desintegração de vozes, reintegração de posses: apontamentos sobre a polca purahei
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musical, os vários períodos de semi-isolamento11 (geográfico, político e idiomático) vivenciados pelo país favoreceram a consolidação de particularidades sonoras e a quase
nula interferência de referências externas. Assim, durante muito tempo, a música popular paraguaia, urbana e rural, foi a própria música folclórica do país.
Sobre o idioma utilizado nas letras das músicas, destaca-se que a grande maioria
das polcas e guarânias foram compostas no idioma guarani ou em jopará. Vale ressaltar que o jopará é muito utilizado na comunicação no dia a dia, no cotidiano das pessoas. E por meio das letras se constitui e se consolida muito do imaginário acerca da
cultura paraguaia, profundamente fundado na transmissão oral. É nesse sentido que
pesquisadores como Evandro Higa (2010) e Eduardo Chamorro (2013) apontam para a
importância das narrativas presentes e transmitidas nessas músicas. Nelas, se destaca
a construção do imaginário coletivo com base no heroísmo do seu povo nas grandes
guerras, a exaltação da figura da mulher, o amor e a entrega pela pátria – motivos frequentes nas letras.
Sobre essa perspectiva musical, o pesquisador Gonzalo Ortiz (2018) faz o seguinte resumo:
Desde 1811, momento em que o Paraguai deixa de ser colônia espanhola e vira
país soberano, até 1972, ano da primeira peça pós-tonal para piano, a música
no país foi eminentemente folclórica. A música era para festas, destinada à dança, servia para incentivar o patriotismo (principalmente nas duas grandes guerras [internacionais] que enfrentou o país) e para render homenagem a pessoas
proeminentes. A totalidade da música no Paraguai foi, por muito tempo, o seu
folclore. Aí se reconhecem dois ritmos principais: a polca e a guarânia; a instrumentação desses ritmos era violão e harpa paraguaia. A canção se desenvolveu
junto com essas duas bases, rítmica e instrumental, sendo a língua guarani um
forte diferencial (ORTIZ, 2018, p.15).
Embora tenham sido inauguradas algumas instituições de ensino musical12 nas primeiras décadas após a Guerra da Tríplice Aliança13 (1864 - 1870), durante quase todo o
11
O Paraguai passou por períodos de maior e menor grau de isolamento. Sua condição de país mediterrâneo somada a algumas políticas de estado, promoveram uma falsa visão de isolamento total por parte dos críticos, em especial durante o período de governo do Dr. Francia
entre 1814 e 1840. O pesquisador Creydt (2010) denuncia esta falsa perspectiva assinalando políticas de comercio da época com países como
Inglaterra, Brasil, Argentina e Uruguai. As cláusulas e condições exigidas pelo Paraguai, que não agradaram a elite de comerciantes, foram os
principais motivos das interpretações distorcidas, pois essas cláusulas apontavam “acabar com a situação de dependência, herdada da colônia,
desenvolvendo as forças produtivas sobre uma base independente” (CREYDT, 2010, p.90 - tradução nossa). O pesquisador Richard White (1989)
acrescenta que o Dr. Francia se opunha ao intercambio comerciar exterior como uma atividade exclusiva dos proprietários dos meios de produção
e comercio, pois, “já não conduzido por e para a oligarquia - era regulamentado pelo estado para beneficiar a nação inteira, ou seja, ao povo paraguaio (WHITE, 1989, p.180 - tradução nossa).
Após o período de governo do Dr. Francia ocorre outro momento de semi-isolamento do país imerso na pior de suas guerras, a da Tríplice Aliança
(1864-1870) e o período posterior de reconstrução. Todavia, conflitos internos (20 golpes de estado, 1 assassinato presidencial, 2 triunviratos, 1
nova guerra internacional e 1 guerra civil) levaram o Paraguai a ter entre 1870 e 1954, cinquenta e dois presidentes. O ditador Alfredo Stroessner
assume em 1954 através de mais um golpe militar e fica no poder até 1989. Durante seus 35 anos de terror o país sofre o enclausuramento
cultural imposto e controlado pelo regime.
12
O Ateneo Paraguayo foi fundado em 1883. O Instituto Paraguayo foi fundado em 1895. Em 1913 de inaugura o Gimnasio Paraguayo. A
partir de 1933 as duas últimas se juntam ao Ateneo Paraguayo e formam uma só instituição de ensino, em funcionamento até hoje. Ainda cabe
destacar a criação da Escuela de los Aprendices Músicos Militares, fundada por volta de 1820, nos primeiros anos de governo do Dr. Francia, e que
promoveu “o florescimento das Bandas de músicos e da música nos tempos dos López (PEREIRA, 2011, p.47 - tradução nossa).
13
A Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870) também é nomeada por diversas/os pesquisadoras/es como Guerra Grande, Guerra del 70’,
Guerra Guazú e/ou Guerra do Paraguai.
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século XX a música folclórica e música popular se confundiram numa mesma prática.
Nesse sentido, a constante presença desse repertório na cultura não compactua com
a ideia de um folclore petrificado, como afirmam alguns estudos. A transmissão de experiências fortemente calcada na oralidade faz com que, a cada nova interpretação de
uma mesma música, constantes transformações sejam incorporadas ao material a partir
das experiências e experimentações de cada artista. É o que indica o pesquisador Juan
Orrego Salas:
(...) sempre existirá um índice de diferenciação proveniente da pessoa e da sua
forma individual de assimilar o aporte ambiental. Nesse sentido, cada artista é
então fonte geradora da sua própria tradição. A tradição é continuidade e é mudança. Envolve um ato de adesão ao passado e, simultaneamente, um outro de
reinterpretação e adaptação às pulsações transformadoras da vida (SALAS apud
TORRES, 1988, p.60 - tradução nossa14).
É dessa forma que a música folclórica do Paraguai se mantém viva e potente. Novas composições são incorporadas ao repertório, mas sobretudo, não raro (re)interpreta-se o remanescente de canções épicas que contam as glórias das batalhas e exaltam
seus heróis e heroínas – que formam uma parte muito importante desse repertório que
continua sendo fortemente cultivado até hoje no país.
Essas características marcantes da cultura paraguaia não podem ser desvinculadas
da história do país e seus vizinhos, de maneira que muitas das manifestações culturais
são resultado dessas, por vezes conflituosas, relações. A pesquisadora Gaya Makaran
aponta que “o nacionalismo paraguaio, criador de mitos nacionais que sobrevivem até
nossos dias, aparece pela primeira vez durante a Guerra da Tríplice Aliança (1864-1870),
um acontecimento traumático e crucial para a sociedade paraguaia” (MAKARAN, 2013,
p.44 - tradução nossa15). Essa guerra é tida como um dos momentos mais críticos da
história do Paraguai que na ocasião perdeu entre 70% e 90% da sua população masculina. Como indica a pesquisadora, o discurso nacionalista ganha suma importância
a partir desse momento, e precisamente surge aí a elevação da figura feminina como
heroína nacional:
(...) transformando-o num novo começo mítico da nação, sacrificada e purificada pelo fogo do combate e ressuscitada das cinzas por suas mulheres. É lá onde
se enraízam as principais figuras simbólicas da mulher paraguaia (...) (MAKARAN,
2013, p.53 - tradução nossa16).
14
No original: (...) siempre existirá un índice de diferenciación proveniente de la persona y de la forma individual de asimilar el aporte ambiental.
En ese sentido, cada artista es entonces fuente generadora de su propia tradición. La tradición es continuidad y es cambio. Envuelve un acto de adhesión
al pasado y, simultáneamente, uno de reinterpretación y adaptación a las pulsaciones cambiantes de la vida (SALAS apud TORRES, 1988, p.60).
15
No original: El nacionalismo paraguayo, creador de los mitos nacionales que han sobrevivido hasta nuestros días, aparece por primera vez
durante la Guerra de la Triple Alianza, un acontecimiento traumático y crucial para la sociedad paraguaya (MAKARAN, 2013, p.44).
16
No original: (…) convirtiéndolo en un nuevo inicio mítico de la nación, sacrificada y purificada por el fuego del combate y resucitada de las cenizas por sus mujeres. Es allá donde se enraízan las principales figuras simbólicas de la mujer paraguaya (…) (MAKARAN, 2013, p.53).
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jahe’o como narrativa de aspectos sócio-históricos da cultura paraguaia
Os relatos sobre os horrores da guerra e as narrativas sobre a sua superação consolidam a imagem da mulher paraguaia como reconstrutora e defensora do país e a
partir dessa imagem se alimenta o mito sobre o sistema matriarcal no Paraguai. A importância da figura feminina como base da cultura paraguaia é uma das faces da música
Propiedad Privada e sobre esse aspecto trataremos a seguir.
3 - A mulher reconstrutora do país? Música e discursos sobrepondo-se às ações
Propriedade Privada era
a quem eu amava
E sem saber, como se fosse minha
eu a mimava
E por amá-la tanto
a tratava com carinho (como a mais linda)
sem imaginar sequer
que tinha dono
Não dá para negar que a Guerra da Tríplice Aliança foi uma catástrofe para o Paraguai e impôs para a mulher a condição de restauradora da pátria. O âmbito musical
reitera essa posição da mulher, sendo muito elogiada e exaltada como a guardiã da
cultura, do idioma e da nação, em inúmeras polcas e guarânias que relatam o heroísmo
e entrega das mulheres.
Nesse contexto, se destaca a posição da mulher/mãe como cabeça da casa e como
a heroína que levanta a família e o país em contraste com a ausência, voluntária ou não,
do homem. É o que diz, por exemplo, a música Mujer Paraguaya17 de Manuel Frutos
Pane (1906-1990): “quando seu marido vai para a guerra, ela é a alma que resguarda
bem a sua casa, ela é a alma da sua terra, ela é a alma luminosa da sua raça”. Também
são representativas as músicas Residenta altiva, de Rafael Paeta (1946- 1997) com o
grupo Los Indianos; A la residenta, de Juan Manuel Marcos (1950 - ) e Carlos Noguera
(1950 - ), e muitas outras.
Contudo, ao indagarmos com mais cuidado sobre os valores impressos nos discursos naturalizados pelo repertório tradicional popular do país, procuramos observar
o que se esconde por trás desse discurso oficial: a mulher paraguaia encontra mesmo o
respeito e reconhecimento que merece? Será a cultura paraguaia um oásis em meio ao
patriarcado predominante nos demais países latino-americanos? A pesquisadora Makaran (2013) aponta a respeito:
As referências ao Paraguai como um “país de mulheres” se referem mais à quantidade delas do que a sua posição social, e menos ainda a um domínio político
feminino. Do mesmo modo, a palavra “matriarcado” não corresponde ao verdadeiro significado do termo: poder, governo das mulheres, mas se refere a uma
vantagem demográfica e como consequência à onipresença feminina. Ao evo-
17
A música Mujer Paraguaya, interpretada pelo tenor paraguaio Javier de Francesco, pode ser ouvida no youtube em: https://www.youtube.com/watch?v=uHd5RCR8uTo (acesso em abril 2020).
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car o mito do matriarcado, o discurso nacionalista encobre o triste fato de que
as mulheres foram reconstrutoras sem poder, monopolizado pelos homens (...)
O único papel que tinha reservado para elas o país de pós-guerra, ou ironia profundamente patriarcal, era serem cidadãs de segunda [categoria] sem direitos
políticos, servas da pátria e da família que com sacrifício e abnegação levantam
o país dirigido por homens (MAKARAN, 2013, p.59 - tradução nossa18).
Apesar de atualmente observarmos a ocupação de mulheres19 em cargos públicos
e movimentos femininos empenhados em tentar reverter essa situação, a participação
das mulheres em cargos decisórios continua enfrentando obstáculos. Segundo a pesquisadora Mary Monte de López (2020), “a luta por expor agressões, desigualdades e
estereótipos se intensificou nos últimos anos, no entanto, este trabalho de conscientização não parece suficiente para que as injustiças percam força” (LÓPEZ apud CUEVAS,
2020, online – tradução nossa20). E, assim, infelizmente, a referência a mulher como
objeto de posse na canção Propiedad Privada não é tão despropositada – a mulher
como objeto, não como sujeito: “Mamoikoimo’ata / ijaratee oguerekoha” (sem imaginar
sequer / que tinha dono).
Também é digno de nota que as mulheres do Paraguai tenham sido as últimas do
continente a conquistar o direito a voto21, somente em 1961, em plena ditadura militar.
Exatamente durante o longo e cruel governo do ditador Alfredo Stroessner (1912-2006),
que governou durante 35 anos, entre 1954 e 1989, se desenvolveu a fase militar mais
violenta, repressiva e autoritária do nacionalismo paraguaio. Nesse cenário, o direito a
voto feminino foi uma conquista importante na luta de resistência ao regime. No entanto, tratou-se de uma conquista simbólica, sem efeito real. Tanto o voto masculino como
o feminino só se tornaram efetivos após a abertura democrática, em 1989, depois de 35
anos de ditadura militar e a triste consolidação da corrupção estrutural do governo e a
naturalização de discursos opressores na cultura popular.
Dentre as figuras femininas de destaque na história e cultura paraguaias é impossível não se lembrar de Elisa Lynch (1833-1886). Ela concentra em sua trajetória muito
das contradições observadas no que se refere ao tratamento dado à mulher.
18
No original: Las referencias a Paraguay como “un país de mujeres” aluden más bien a la cantidad de éstas y no a su posición social, ni mucho
menos a un dominio político femenino. De igual manera, la palabra “matriarcado” no corresponde al verdadero significado del término: poder, gobierno de
las mujeres, sino que se refiere más bien a una ventaja demográfica y como consecuencia a la omnipresencia femenina. Al evocar el mito del matriarcado, el
discurso nacionalista encubre el triste hecho de que las mujeres fueron reconstructoras sin poder, monopolizado éste por los hombres (…) El único papel que
tenía reservado para ellas el país de posguerra, o ironía profundamente patriarcal, era el de las ciudadanas de segunda sin derechos políticos, de sirvientas
de la patria y familia que con su sacrificio y abnegación levantan el país dirigido por hombres (MAKARAN, 2013, p.59).
19
Como exemplos de mulheres em cargos do governo paraguaio temos Soledad Núnez, Ministra da Secretaria Nacional de la Vivienda, e
Magali Cáceres, Ministra de la Juventud – ambas no Governo de Horácio Cartes (2013-2018).
20
No original: “La lucha por exponer agresiones, desigualdades y estereotipos se intensificó en los últimos años; sin embargo, esta labor de
concientización no parece suficiente para que las injusticias pierdan fuerza” (LÓPEZ apud CUEVAS, 2020, online).
21
Promulgada pela lei N°704 em julho de 1961. Pode ser acessada no site da Biblioteca y Archivo Central del Congreso de la Nación no link:
http://www.bacn.gov.py/leyes-paraguayas/252/ley-n-704-derechos-politicos-de-la-mujer (acesso abril 2020).
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3.1 – Elisa Lynch – a figura feminina em meio a guerra
A consolidação do regime militar no Paraguai se apoiou no nacionalismo Lopizta,
por meio do resgate da figura do marechal Francisco Solano López (1827 – 1870) como
símbolo máximo da entrega e patriotismo. Apesar de parecer uma estratégia original do
regime militar para consolidar politicamente seu poderio, o resgate da figura de López
no imaginário paraguaio é anterior. A partir das primeiras décadas do século XX se iniciou um movimento de revisão -histórica pelo grupo de intelectuais conhecido como
“Generación del 900” – que dentre outras coisas, foram os responsáveis pela revisão
histórica de López e da Guerra da Tríplice Aliança. O ditador Stroessner se aproveitou
desse movimento para encobrir seu regime sob a cortina da “boa ditadura” e do “patriotismo heroico” e, com isso, consolidar seu poder (LAMBERT, 2013). Além da figura
do marechal, o regime também apostou na reabilitação da figura de sua companheira
Elisa Alicia Lynch.
Elisa Alisa Lynch nasceu em 3 de junho de 1835 na ilha de Cork, Irlanda. Os jovens
Francisco e Elisa se conheceram em Paris nos primeiros anos da década de 1850 durante uma viagem diplomática à Europa do então filho do presidente do Paraguai. Apesar
de sua condição de mulher divorciada, algo raro à época, López decide trazê-la ao
Paraguai para que seja sua companheira. A união do casal sempre esteve em evidência,
sendo alvo de críticas e maledicências. Apesar disso, tiveram sete filhos e se mantiveram
lado a lado durante a guerra. E se tornaram personagens bastante atacadas no período
que se seguiu.
Segundo a pesquisadora Natalia Neres da Silva (2015), tanto Lopez quanto Lynch
foram duramente atacados com o final da guerra. No entanto, tendo sobrevivido, ela
teve que lidar com as consequências: “além de ser expulsa do país, ela também teve a
grande maioria dos seus bens confiscada, se tornou protagonista de biografias maledicentes e foi mencionada de forma pejorativa em relatos de oficiais militares, além de ter
sido alvo de charges e publicações em diversos jornais” (DA SILVA, 2015, p.1-2).
Obviamente, o Brasil, país vencedor, não perdeu a oportunidade de ridicularizar
seus opositores. E ambos foram alvo da imprensa. O pesquisador Mauro César Silveira afirma que nos jornais de aqui: “enquanto Solano López era mais alvejado no seu
controvertido caráter, a deformação da imagem da irlandesa Elisa Alicia Lynch atingia
sobretudo sua fisionomia, profundamente alterada nas caricaturas publicadas na imprensa da Corte. Nos desenhos, a companheira do Mariscal aparecia com traços físicos
defeituosos e um proeminente nariz (...)” (SILVEIRA, 2015. p.128). As deformações, no
entanto, não se concentravam apenas nas caricaturas. “Nas legendas - e nos textos
maiores, como os editoriais -, era descrita como a ‘perdição’ de López, que mandava
dentro e fora de casa, e a responsável pela “megalomania” do chefe de governo do Paraguai. O coronel Centurión refere, sem muita convicção, a capacidade persuasiva de
Madame Lynch, como era mais conhecida (...)” (SILVEIRA, 2015. p.128). Lynch também
foi acusada de cometer atos perversos, ter se apropriado de joias de outras mulheres,
enviando-as para o exterior ou enterrando-as na selva.
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Embora a relação entre Francisco e Elisa tenha sido alvo de controvérsias, muitas
delas infundadas e arbitrárias, é certo que eles estiveram juntos até o trágico final do
marechal em 1 de março de 1870, quando ele foi assassinado em Cerro Corá.
E, como dito anteriormente, a história de ambos foi apropriada e utilizada como
argumento de reiteração dos propósitos ditatoriais de Stroessner.
Stroessner se apoiou enormemente na recuperação da personagem, e se apresentou como herdeiro político de López, o grande símbolo do nacionalismo sob
o qual o regime se assentou (...). Esse nacionalismo lopizta se impôs com farto apoio de instituições estatais, através da perseguição do pensamento crítico
nas universidades, pela censura à imprensa e por meio de grande propaganda
ideológica (...). Em relação especificamente à Elisa Lynch, um dos passos mais
interessantes do ditador foi o translado dos seus restos mortais, que até então
se encontravam na França, para o cemitério “La Recoleta” de Assunção, em 1961.
Na sepultura onde os restos mortais de Elisa foram depositados, foi construída
uma grande estátua, na qual a personagem é representada de forma altiva, frente aos túmulos de Solano López e Panchito, seu filho primogênito que morreu
junto ao pai em Cerro Corá, ambos enterrados por suas próprias mãos (...) (DA
SILVA, 2015, p.5).
Elisa Alicia Lynch faleceu em Paris em 25 de julho de 1886, um dia depois da data de
aniversário de nascimento de Francisco Solano López. Embora na atualidade seja considerada heroína nacional, o depósito dos seus restos mortais no Oratório de la Virgen
Nuestra Señora Santa María de la Asunción e Panteón Nacional de los Héroes22 - mausoléu das pessoas mais importantes da história paraguaia -, como era o plano original
de Strossner, nunca foi efetivado. Houve forte oposição e influência da Igreja Católica
que argumentou que Elisa foi uma mulher divorciada e que nunca se formalizou o casamento com o marechal. Por conta disso, argumentava a igreja, seus restos mortais não
poderiam descansar dentro do oratório e mausoléu. Em 1970 seus restos mortais foram
transferidos do cemitério “La Recoleta” para o Museo Histórico del Departamento de
Defensa, em Assunção, onde permanecem até hoje. Permanecem também os pedidos
para que sejam finalmente colocados ao lado do marechal no Panteón. Argumenta-se
a seu favor que, além de heroína nacional e companheira do marechal, foi partícipe dos
momentos mais emblemáticos dessa trágica guerra. Considerando sua importância, é
constrangedor que nenhuma polca ou guarânia seja dedicada a ela.
Assim como no caso particular de Elisa Lynch, outras manifestações semelhantes
de apagamento da mulher e discursos contraditórios são observadas nas ações nacionalistas empreendidas no Paraguai. A partir da Lei N°498 de 1974, decretada pelo go-
22
Inspirado nos monumentos franceses le Panthéon e Hôtel National des Invalides, o Panteón Nacional de los Héroes e também Oratório
de la Virgen Nuestra Señora Santa Maria de la Asunción está localizado em Assunção, Paraguai. Sua construção iniciou em 1863 e era para ser originalmente um oratório, porém teve os trabalhos interrompidos durante a Guerra da Tríplice Aliança. Os trabalhos voltaram somente em 1929
sendo inaugurado em 1936, já como oratório e mausoléu. Nele descansam os restos das pessoas mais importantes da história do Paraguai como
1° presidente constitucional Don Carlos Antônio López (1790 – 1862) e seu filho, o marechal Francisco Solano López; os restos de um soldado
anônimo (homenagem aos soldados paraguaios); crianças mártires da batalha de Acosta Ñu; além de políticos e presidentes militares tais como o
Dr. Eligio Ayala (1879 - 1930); o Dr. Eusebio Ayala (1875 – 1942); o General José E. Díaz (1833 – 1867); o Dr. Bernardino Caballero (1839 – 1912);
o tenente Adolfo Rojas Silva (1906 – 1927); o tenente e poeta Emiliano R. Fernandez (1894 – 1949); o marechal José Félix Estigarribia (1888 –
1940) e de sua esposa Julia Miranda Cueto (? - 1940), única mulher neste lugar.
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verno de Stroessner, cada 24 de fevereiro se comemora o dia da mulher paraguaia. Esse
dia foi escolhido em homenagem a mulheres que, nessa data, em 1867, se reuniram em
Assunção para a Primera Asamblea de Mujeres Americanas, e decidiram doar suas joias
em auxílio as demandas da guerra contra a Tríplice Aliança. A pesquisadora Mary Monte
de López (2020) indica que finalizada a guerra, Elisa Lynch voltou para Assunção feita
prisioneira dos aliados. Como se não lhe bastassem a tristeza por ter visto morrer seu
marido e filho – que ela enterrou com as próprias mãos – e ter sido feita prisioneira, ao
chegar em Asunción muitas dessas mulheres da alta sociedade se reuniram para lhe
reclamar a devolução das joias.
Ainda de acordo com a pesquisadora essa data não rende homenagem as verdadeiras mulheres que se entregaram pela causa do país.
(...) Sem desmerecer os propósitos das damas asuncenas, foram as mulheres do
campo que verdadeiramente sustentaram a guerra. Isto é, graças a elas intermináveis caravanas de carroças descarregavam constantemente, nos lugares
assinalados, os frutos das chácaras trabalhadas com esmero e admirável patriotismo (...) Quando acabou a guerra, que encheu de luto o país, nenhuma dessas
mulheres se apresentou para reclamar que devolvessem sua doação ou que lhe
pagassem pelo que fizeram. Tinham consciência de ter cumprido com seu dever
para além do possível. Todavia, para o dia da mulher paraguaia é mais importante a doação de joias - logo reclamadas - do que o sacrifício desinteressado
nas chácaras? Sacrifício que salvou da morte por fome muitos combatentes (de
LÓPEZ apud DELVALLE, 2020, online - tradução nossa23).
No entanto, essas mulheres anônimas são consideradas e homenageadas no repertório musical popular. Em grande parte do repertório de músicas folclóricas do Paraguai a mulher paraguaia é representada como heroína e reconstrutora do país. Citadas
como aquelas que lutaram lado a lado com os soldados. Símbolo de sacrifício e entrega pela pátria. Mulher abnegada. Mulher injustiçada. Mãe incansável, sempre a serviço
da família. Imagens formadas talvez com boa intenção, mas que foram utilizadas para
imprimir à marca d’água uma cultura machista e, por que não, militar. Entre elogios
e discursos “rimbombantes” (retumbantes/ostentosos), parafraseando a pesquisadora
Marakan (2013), se escondem o caráter perverso do discurso nacionalista e os modelos
de feminidade assinados pelos homens, “categorias estereotipadas que contêm o abuso, a discriminação e a opressão da mulher” (MAKARAN, 2013, p.70 - tradução nossa24).
Sobre essas contradições, Makaran afirma:
Paraguai é um dos países latino-americanos que mais atenção tem dedicado ao
papel das mulheres na sua história, cujo discurso nacionalista se articulou em
23
No original: (…) Sin desmeritar los propósitos de las damas asuncenas, estaban las mujeres del campo que han sido las que verdaderamente
sostuvieron la guerra. Es que, gracias a ellas, interminables caravanas de carretas descargaban constantemente, en los sitios asignados, los frutos de las
capueras trabajadas con extraño y admirable patriotismo (…) Cuando se acabó la guerra, que llenó de luto el país, ni una de esas mujeres se presentó a
pedir que le devolviesen el obsequio o le pagasen por ello. Tenía conciencia de haber cumplido con su deber más allá de lo posible. ¿Y para el día de la mujer
paraguaya es más importante la donación de joyas - luego reclamadas - que el sacrificio desinteresado en las capueras? Sacrificio que salvó de morir de
hambre a muchos combatientes (de LÓPEZ apud DELVALLE, 2020, online). Acesso em abril de 2020, no link: https://www.abc.com.py/edicion-impresa/opinion/2020/02/23/dia-de-la-mujer-paraguaya/
24
No original: “categorías estereotipadas que encierran el abuso, la discriminación y la opresión de la mujer” (MAKARAN, 2013, p.70).
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torno das figuras femininas até o ponto de converter a atual [figura feminina]
paraguaia em conduto simbólico da nacionalidade como tal (...). O reconhecimento simbólico não vai, no entanto, acompanhado do reconhecimento de
fato, a sociedade paraguaia é profundamente machista e paternalista (MAKARAN,
2013, p.71 - tradução nossa25).
Infelizmente, é o que se observa em diversas canções, cujo repertório enfatiza o
papel da mulher como objeto a serviço do homem, como um bem a ser conquistado –
cujos desejos e vontades não são levados em consideração. “Propiedad Privada ningo
raka’e che la ahaihuva” (Propriedade privada era a quem eu amava), diz a canção. Se não
há o homem, ela é tida como guerreira e autônoma. Mas ao seu lado, é mera coadjuvante. E ainda que o discurso poético musical aponte para a exaltação da mulher paraguaia,
na prática não se verifica a efetividade de tal discurso.
4 - Mulher-flor e terra mãe, distribuições desequilibradas
Agora sei muito bem quanto
vale uma Propriedade Privada
quando eu menos esperava
fui abandonado
Fiquei só, queixando-me
como órfão
Por que isso aconteceu comigo?
estou triste e sem consolo
Sim, a imagem da mulher foi elevada à condição de heroína e de símbolo nacional,
como se observa no resgate da figura histórica de Elisa Lynch e nas recorrentes referências às mulheres como seio do nacionalismo paraguaio. No entanto, a grande maioria
das mulheres que auxiliaram nos momentos mais emblemáticos da história paraguaia,
se encontram expropriadas de condições dignas de subsistência. É o que nos alerta
Makaran (2013): “a maioria das mulheres que vivem em zonas rurais, inclusive as indígenas, vivem em condições de pobreza extrema por causa da concentração de terra e
ampliação da agroindústria (MAKARAN, 2013, p.64 – tradução nossa26). Se analisamos
essa situação em termos estatísticos, observamos que dos/as proprietários/as de terra
paraguaia, apenas 9,4% são mulheres (Makaran, 2013).
A distribuição de terras no Paraguai é problemática em relação às mulheres e aos
pobres em geral. Outros dados estatísticos nos ajudam a entender a situação fundiária
paraguaia. Ainda segundo Makaran (2013), cerca de 120 mil famílias, que representam
29,7% da população rural do país, não possuem terra própria, e cerca de 300 mil famílias
se consideram sem-terra ou com terra insuficiente. Isso dá ao Paraguai a liderança de
25
No original: Paraguay es uno de los países latinoamericanos que más atención ha prestado al papel de las mujeres en su historia, cuyo discurso
nacionalista se ha articulado alrededor de las figuras femeninas hasta el punto de convertir a la actual paraguaya en conducto simbólico de la nacionalidad
como tal. (…) El reconocimiento simbólico no va, sin embargo, acompañado del reconocimiento fáctico, la sociedad paraguaya es profundamente machista
y paternalista (MAKARAN, 2013, p.71).
26
No original: la mayoría de las mujeres rurales, incluidas las indígenas, vive en condiciones de pobreza extrema a causa de la concentración de
la tierra y la extensión de la agroindustria (MAKARAN, 2013, p.64)
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um ranking nada lisonjeiro. Segundo a pesquisadora Regina Kretschmer (2018), na atualidade o Paraguai conta com a distribuição de terras mais desigual do mundo: “2,6% dos
proprietários concentram 85,5% das terras, enquanto 91,4% da população camponesa
dispõem apenas de 6% da superfície agrícola” (KRETSCHMER, 2018, p.110).
Desde o fim da Guerra da Tríplice Aliança a disputa por terra é uma questão pungente no país. A grande revolução popular realizada durante o governo do Dr. Francia (1776 – 1840), que libertou os/as camponeses dos laços da dependência colonial
e garantiu uma reforma agrária igualitária com 98% do território paraguaio a serviço
do povo - como apontam pesquisadores como White (1989), Horst (2007), Kretschmer
(2018) e Galeano (2018) -, foi completamente destruída depois da guerra e nunca mais
foi refeita. “Em 1900, setenta e cinco indivíduos eram proprietários da metade do território, forçando os colonos camponeses e indígenas a saírem de suas propriedades. Foi
então quanto a maior parte das terras indígenas no Chaco passaram a ser propriedade
privada” (HORST, 2007, p.30 - tradução nossa27). Após constantes revoltas camponesas,
em 17 de fevereiro de 1936 ocorre o golpe militar que ficou conhecido como Revolución Febrerista, cujo governo instituído assumiu a reforma agrária como uma de suas
principais bandeiras. No entanto, esse governo teve pouco tempo e nenhuma condição
de levar adiante seu intento:
Após 18 meses, o governo febrerista é derrotado e se inicia um período de contra reforma agrária que será aprofundado pela ditadura Stroessner (1954-1989),
intensificando a lógica de concentração e de estrangeirização das terras, ao
mesmo tempo em que, assessorado pela política da Aliança para o Progresso,
obtinha cooptação e a legitimação do regime, mediante a adoção de um programa de colonização que visava assentar camponeses em regiões de fronteira
agrícola e promover a modernização capitalista na agricultura. Esta modernização se deu desde o Brasil em direção ao Paraguai, agricultores brasileiros com
incentivo do governo paraguaio, instalaram seus cultivos, especialmente da soja,
com base em uma matriz tecnológica baseada no monocultivo, com o uso intensivo de mecanização e de agrotóxicos (MATHEUS, 2016, p.3).
As reivindicações por justiça são evidentes nas polcas da época. É o que se observa em trechos de canções, tais como28: “Ei!.. Yvypóra cherekópe oîme che kéra yvoty /
27
No original: Para 1900, setenta y cinco individuos eran propietarios de la mitad del territorio, forzando a los colonos campesinos e indígenas a
desalojar sus propiedades. Fue entonces cuando la mayor parte de las tierras indígenas en el Chaco pasaron a ser propiedad privada (HORST, 2007, p.30).
28
Um ponto importante a ser observado, comum às músicas que citamos, é o fato de que foram todas escritas e interpretadas por homens. Novamente encontramos uma lacuna, pois embora existam muitas mulheres autoras e intérpretes de música paraguaia - e exista também
um forte movimento de feminino nas artes atualmente - é com muito esforço que elas conseguem ser reconhecidas como protagonistas artísticas. Um exemplo de iniciativa para reverter essa situação é a Fiesta Sonora, um festival musical realizado unicamente por mulheres e que teve
a primeira e segunda edição em fevereiro e novembro de 2019. Segundo o depoimento de Rocío Robledo, uma das organizadoras, a percepção
da falta de espaço em festivais musicais para projetos artísticos de mulheres e a reivindicação desses lugares resultou em algumas respostas
bastante agressivas, inclusive dos próprios colegas músicos. “Me asusté de la violencia y virulencia con la que me contestó mucha gente. Por
un lado, muchas chicas se identificaron y apoyaron lo que yo planteaba, pero, por otro, sentí muchísimo odio de mucha gente que me mandaba
a la cocina” (ROBLEDO apud CARNERI, online, 2019). A histórica falta de consideração para com as mulheres protagonistas artísticas também
pode ser observada na literatura dedicada à música paraguaia. Por exemplo, no livro Semblanzas Biograficas de Creadores e Intérpretes Populares
Paraguayos (1992) do pesquisador Miguel Angel Rodriguez, se encontram 61 referências diretas a nomes masculinos no índice, contra apenas 5
referências a mulheres, sendo que numa delas em vez de citar o nome da artista lemos somente “Reminiscencias de dúos femininos y masculinos.
Carta de Marino Barrientos”. Outro exemplo é o Diccionario de la Música en el Paraguay (1999) do pesquisador Luis Szaran, onde se encontram 424
referências diretas a nomes masculinos contra 56 referências a artistas mulheres. Já no livro Ñande Purajhéi – Cancionero Popular Guaraní (2011),
de Sergio Dacak e Rubén Riveros, encontramos 99 composições de homens contra apenas 6 composições de mulheres.
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jahe’o como narrativa de aspectos sócio-históricos da cultura paraguaia
Ei!.. Ha che páype ahavi’û añañuã ipoty kuru” (Ei!.. Sou o homem da terra que acaricia
um sonho em flor / Ei!.. E acordado a projeto para vê-la desbotar),“Hi’ante tekove oisambyhýva ñane retã raperã vokoike hesaho ñanderehe chokokue tyre’yeta” (Gostaria
que quem guie os destinos da pátria, um dia contemple as dificuldades que sofremos
no campo em miserável orfandade), exclamam os primeiros versos da polca Chokokue
Purahei (canto do camponês), de Francisco Alvarenga (1903 - 1957) e Mauricio Cardozo
Ocampo (1907 - 1982), composta por volta de 1938.
Ou seja, a lembrança da revolução popular que outorgou ao povo paraguaio sua
independência continua a ecoar nas polcas jahe’o. Porém, na prática, de forma similar
a figura da mulher - heroína no imaginário e desprezada na realidade -, são negadas as
condições concretas para que camponeses, camponesas e mulheres em geral conquistem condições mínimas de subsistência. Ha omanórõ ni yvyguýpe mboriahúgui nahendai
(e ao morrer, nem debaixo da terra o pobre encontra um lugar para si) denuncia a polca
Ha mboriahu composta em 1943 por Teodoro Salvador Mongelós29 (1914 - 1966), que
morreu no exílio. Ou mesmo na nossa canção de referência: “Ko’anga aikuaáma mba’epa
ivale Propiedad Privada / Aimo’avyetere pe ahaihueteva che aiguepe’a” (Agora sei muito
bem quanto vale uma Propriedade Privada / quando eu menos esperava fui abandonado).
Mas, não faltam iniciativas dos/as camponeses, em especial das mulheres, com
o objetivo de mudar essa situação. Observa-se o fortalecimento de organizações, articuladas em movimentos de resistência dentre as quais se destaca a Organización de
Mujeres Campesinas e Indígenas Conamuri, criada em outubro de 1999. No entanto, em
termos políticos, os governos pós-ditadura pouco avançaram no sentido de realizarem
mudanças efetivas a favor dos/as menos favorecidos/as quanto a questão fundiária.
Diante do avanço dos grandes latifúndios o refrão “Mba’eikoajapota / mamoikoahata”
(Que farei? / onde irei?), da polca de Cecilio Mareco Pereira continua latente. Longe de
estar solucionada e pacificada, a luta pelo direito a terra segue pungente e cada vez
mais acirrada.
5 – O compuesto de Lucía Agüero sobre o Massacre de Curuguaty
De agora em diante terei
muita atenção em meu caminho
para que nunca mais volte
a entrar em Propriedade Privada
Porque estou muito triste e
arrependido de minhas ações
Pois já não tenho
perdi aquela que amo
No dia 15 de junho de 2012, um contingente de mais de 300 policiais e membros
do Grupo de Operaciones Especiales (GEO) se dirigiram a Curuguaty, Paraguai, a fim
29
Teodoro Salvador Mongelós (1914 – 1966) ficou conhecido como o Poeta dos humildes, sendo autor das letras de canções com forte
conteúdo social. Em 1955 exerceu a presidência da Asociación Paraguaya de Artistas Nativos. Durante a ditadura de Alfredo Stroessner (1954 1989) foi exilado do país, vindo morar em São Paulo, Brasil. Seus restos mortais só puderam ser repatriados em 1994.
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de executar uma ordem de reintegração de posse a favor da firma Campos Morombi
S.A.. O favorecido e suposto proprietário das terras era o empresário, ex-senador e ex-presidente do Partido Colorado, Blas N. Riquelme (1929 - 2012). A confusa operação
resultou na morte de 17 pessoas (11 camponeses e 6 policiais) e ficou conhecida como
Massacre de Curuguaty.
As famílias dos camponeses (em torno de 70 pessoas) que ocuparam essa porção
de terras conhecidas como Marina Kue30 reclamavam que essas terras eram frutos das
chamadas tierras malhabidas (terras ilícitas). É assim que se denominam as terras que
foram confiscadas durante a ditadura de Stroessner supostamente a favor de camponeses para realizar a tão esperada reforma agrária, mas que acabaram sendo destinadas a
parentes, amigos e correligionários do ditador, como Riquelme.
A briga era antiga. Em outras ocasiões, o Estado já havia se posicionado a favor do
poderoso empresário em questões referentes a disputa de terras. Em 1985, por exemplo, Riquelme teria forçado a saída de comunidades indígenas Guarani Mbya de terras
da sua fazenda La Golondrina, de “apenas” 75.000 hectares! O pesquisador Horst (2007)
denuncia com detalhes a violência exercida:
(...) No dia seguinte, Riquelme em pessoa, acompanhado de ‘testas de ferro’ armados a cavalo, os rodearam para o despejo final. Primeiramente, vários peões
golpearam aos homens mbya e violaram várias das mulheres. Com tratores demoliram as casas dos aldeões e prenderam-lhes fogo. Os indígenas fugiram apavorados para o bosque adjacente (HORST, 2007, p.260-261 - tradução nossa31).
O pesquisador Horst (2007) também denuncia outras ofensivas contra grupos mbya
que ocuparam terras “pertencentes” a empresa Campos Morombí, de propriedade de Riquelme. O empresário nunca foi julgado por tais crimes. Ele faleceu em setembro de 2012
ostentando o título de um dos dez homens mais ricos do país. Alguns meses antes de sua
morte, em junho, aconteceu aquele trágico incidente, no qual os camponeses que ocuparam uma parte de uma das suas fazendas na localidade de Curuguaty foram assassinados.
O massacre gerou também sérias consequências políticas. Uma semana depois,
em 22 de junho de 2012, o presidente Fernando Lugo (1951 - ) foi destituído do cargo
em um processo de impeachment que durou apenas cinco dias, somado a um julgamento de 24 horas, procedimento qualificado como irregular por organismos como
UNASUR e MERCOSUR. Acabava ali a única vitória política de um partido diferente do
Partido Colorado em muitos anos. O Partido Colorado, desde sua fundação32 (salvo os
30
Marina Kue é uma propriedade de um pouco mais de 1700 hectares na localidade de Curuguaty. O nome em guarani que significa Antiga Marinha, dado pelos camponeses do lugar, faz referência ao antigo Destacamento Naval Agropecuario da Armada Nacional. O informe de Direitos
Humanos sobre o caso Marina Kue indica que “la ocupación por parte de dicho destacamento fue ininterrumpida desde finales de 1967 hasta
finales de 1999” (VIDALLET, 2013, p.114).
31
No original: Al día siguiente, Riquelme en persona, acompañado de testaferros armados a caballo, los rodearon para el desahucio final. En
primer lugar, varios peones golpearon a los hombres mbyá y violaron a varias de las mujeres. Con tractores demolieron las casas de los pobladores y les
prendieron fuego. Los indígenas huyeron despavoridos hacia el bosque adyacente (HORST, 2007, p.260-261).
32
O Partido Colorado foi fundado em 1887. Um dos seus fundadores foi o general Bernardino Caballero (1839 – 1912) que foi combatente na Guerra da Tríplice Aliança. Independente que quem é o próximo postulante ao posto mais alto do país, nas propagandas eleitorais sempre se
apela ao passado glorioso e heroico que o partido “representa”.
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períodos de 1904 a 1946, e 2008 a 2012) é o partido que governa o país. A retomada
do poder pelo Partido Colorado após poucos meses de um governo interino também
gerou desconfiança quanto ao teor político por trás da desastrosa operação de restituição de posse.
Além disso, tomando como base o testemunho de 84 policiais sobre a operação,
em julho de 2016, o tribunal de Asunción condenou onze camponeses a penas entre 4
a 30 anos de prisão. Durante esse processo não se ouviu o testemunho de nenhum/a
camponês nem se realizaram procedimentos de perícia criminalística no local do massacre. Tampouco se realizaram autopsias nos corpos dos policiais mortos para recolher
as balas e comprovar de onde partiram os disparos. Suspeita-se que a polícia tenha atirado em camponeses e policiais, a fim de imputar aos camponeses uma violência que
teria, por fim, justificado os assassinatos.
Em resposta, organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas
(ONU) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) denunciaram o Estado Paraguaio por violações no processo de garantias judiciais e acesso à justiça. Em julho de
2018 as condenações contra os/as camponeses foram anuladas.
Entre as pesquisas que abordam esse trágico episódio no Paraguai, destacamos
as registradas no livro La Masacre de Curuguaty (2013) de Julio Benegas Vidallet e no
documentário Fuera de Campo (2014) dirigido por Hugo Giménez com produção de
Tekoha Audiovisual para o IV DOCTV Latinoamérica. Neles encontramos o testemunho
de Lucia Agüero, sobrevivente do massacre que, no momento dos disparos, correu a
procura de abrigo para ela e para duas crianças. Nas palavras de Vidallet:
O que terá quebrado definitivamente nessa mulher? Que se terá quebrado definitivamente nessa criança de três anos que viveu as rajadas dos fuzis de metralhadora, estrondos de escopetas e rifles, o vôo baixo daquele helicóptero de
observação, os estampidos das granadas jogadas desde o alto, a perseguição e
as execuções (VIDALLET, 2013, p.80 - tradução nossa33).
Por meio de um compuesto, antiga forma musical paraguaia que relata fatos verídicos, Lúcia Agüero descreve aquele dia e denuncia o modo como foram tratados os
camponeses mortos e o processo jurídico que lhes foi imposto. Compuesto é um gênero musical paraguaio que se caracteriza pela crônica narrativa que relata fatos que
causaram comoção na sociedade paraguaia. Os compuestos mais antigos que se tem
referência datam da primeira década do século XX e são considerados um importante
meio de transmissão de acontecimentos marcantes na sociedade. Eles são cantados
nos diversos ritmos paraguaios com polca, guarânia e rasguido doble.
Tanto a polca jahe’o como o compuesto são formas musicais de registro de narrativas populares, a diferença está na poética do primeiro e no realismo do segundo. Ou
seja, o compuesto se aproxima mais de uma crônica narrativa, preocupando-se em descrever dia, local, nome de pessoas, com vistas a perenizar informações sobre o relato.
33
No original: Qué se habrá quebrado definitivamente en esa mujer. Qué se habrá quebrado definitivamente en ese chico de tres años que vivió
las ráfagas de los fusiles ametralladores y las pistolas ametralladoras, los estruendos de escopetas y rifles, el vuelo rasante de aquel helicóptero de observación, las estampidas de las granadas tiradas desde arriba, la persecución y las ejecuciones (VIDALLET, 2013, p.80).
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O compuesto cantado a cappella por Lucia Agüero, que relata o acontecido em
Curuguaty, é apresentado no documentário Fuera de Campo (2014), no minuto 44, e se
encontra disponível na internet com acesso livre na plataforma vimeo no seguinte link:
https://vimeo.com/125523406
A seguir transcrevemos seu relato, em jopara.
Versão original
Português (tradução nossa)
Verso 1
Upépe ningo oikóma hete vece desalojo,
policía mbaretépe umi carpero pe omoiama
Upégui oñeformá entre setenta unido
iderecho odefendemivo hasta omanovareaha
Verso 1
Lá houveram vários atos de despejo
os policiais com sua força os camponeses expulsaram
Depois disso se uniram entre setenta pessoas
para defender seus direitos até a morte
Verso 2
El vierne el 15 de junio, en el año 2012,
osêjeima la orden desalojo oikohaguâ
Carperokuéra ojeprepara ha oavisa policiápe:
romanombáta ko’ape historia opytã haguã
Verso 2
Na sexta-feira, 15 de junho, no ano 2012,
Se emitiu uma nova ordem de despejo
Os camponeses se prepararam e deram aviso a polícia:
Aqui vamos morrer todos para que fique na história
Verso 3
A la siete de la mañana policía ja oallanáma
Comisário Lovera oarteáma mâapa jefe oporandu
Che ha’e he’i Pindu osêvo oimongetávo
Avelino Espinola he’ipávo hesêma oñembokapu
Verso 3
As sete da manhã a polícia irrompeu no lugar,
o comissário Lovera perguntou quem era o chefe
sou eu, respondeu Pindú, indo para conversar,
apenas falou seu nome - Avelino Espínola - e começaram
a atirar nele
Verso 4
Pastotýre isarambi odispara la pyaevéva
ha umi itapykuéva yvatégui ojejapi
Helikóterope oî policía con metralleta
ha umi odisparaséva cobardemente ojejapi
Verso 4
Na pastagem se dispersaram, correndo os mais ágeis,
já os atrasados, desde o alto atiravam neles
No helicóptero estavam policiais com metralhadores
os que tentaram correr, covardemente foram fuzilados
Verso 5
Ambulancia ogueroja policía muerto ha erido
campesino katu erido pastotýre ojeehekuta
Ule húme ojelelia oñemombo ojoári
hopital Paraguaýpe pasillope inemba
Verso 5
A ambulância fazia o traslado de policiais mortos e feridos,
já os camponeses feridos foram executados na pastagem
Em sacos pretos foram colocados e amontoados um em
cima do outro nos corredores do hospital de Assuncão,
os corpos já tinham cheiro
Verso 6
Culpable ojehecha ha’eha parlamentário,
senador há dipudado estáncia járape oladea
Policia ojeignora há ojefelicita opytávo
campesino sobreviviente imputado opytapa
Verso 6
Viu-se que os culpados foram os parlamentares,
os senadores e deputados saíram em favor do dono da
fazenda
A polícia saiu impune e foi felicitada,
os camponeses sobreviventes foram todos indiciados
Verso 7
Apevéntema amombe’u...
Verso 7
Até aqui vou contar...
(corte súbito)
(corte súbito)
O relato descreve a violência com que os camponeses foram tratados, sem qualquer chance de defesa. E ressalta a forma como o Estado paraguaio tem tratado a questão fundiária sob a perspectiva camponesa.
Lucia diz que “até aqui vou contar”, e interrompe de súbito a música. O choro a faz
interromper. Choro de revolta e de tristeza impresso naquilo que foi composto e também
naquilo que sai espontaneamente na interpretação. E assim encontramos a música como
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meio fundamental de registro de narrativas e de transmissão de histórias que seguem reivindicando melhores condições de vida das paraguaias e paraguaios camponeses.
Os versos de Propiedad Privada retornam aqui, em diálogo com esse estado de
coisas. “Porque ambyasy añarrepenti cherembiapokuere / Na cheko’aveima já / aperdeteva ahaihuvache” (Porque estou muito triste e arrependido de minhas ações / Pois já
não tenho / perdi aquela que amo). Aquela que eu amo pode ser tanto a desejada terra,
fundamento para se obter as condições mínimas de subsistência, como pode se referir
a tantos e tantas camponeses e indígenas, assassinados/as em ações de reintegração de
posse que mais se parecem a atividades de execução sumária dos pobres que ousam se
contrapor aos ricos e poderosos. O arrependimento citado pode ter relação direta com
o custo pago em vidas pelas tentativas de obter alguma justiça social.
5 - Considerações finais
A polca Propiedad Privada, de Cecilio Mareco Pereira - exemplar do gênero purahei jahe’o e cuja gravação com sonoridade “eletrônica” realizada pelo grupo Odilio
Román y Los Románticos fez grande sucesso no Paraguai nos anos 2000 , traz latente a
situação social do interior do Paraguai - situação que se estende desde o fim da Guerra
da Tríplice Aliança, em 1870, até os dias atuais. Dois aspectos complementares se fazem
presentes na letra da música: a situação da mulher como objeto de desejo e de posse
do homem, e as disputas fundiárias no país.
Do ponto de vista da mulher, o que se observa é uma imbricada relação entre a
mulher e o nacionalismo na cultura paraguaia. No entanto, apesar da elevação da mulher como símbolo do protagonismo na luta e resistência paraguaia, o que temos na
prática cotidiana é a configuração de uma mulher inferiorizada e expropriada das condições de subsistência. Isso é um aspecto contraditório a respeito do tratamento dado
à mulher de forma especial, considerando sua importância na narrativa nacional.
Do ponto de vista das disputas por terra, a questão da pobreza e da violência social também ganham destaque. Se o Paraguai do século XIX vivenciou, sob a gestão de
Dr. Francia, uma tentativa de distribuição um pouco mais justa da terra e dos recursos –
esse sonho foi completamente dizimado com a Guerra da Tríplice Fronteira e permanece como utopia não realizada na história subsequente. A terra paraguaia não pertence
ao camponês que nela trabalha. E aqueles que lutam por condições mais igualitárias de
sobrevivência tem pagado, muitas vezes com a própria vida, por sua ousadia em se opor
aos grandes latifundiários. A música popular paraguaia segue ocupando uma função
social de registro e transmissão de histórias, sonhos e desejos dos/as camponeses.
Desde aqueles mais pretensamente singelos, como os relativos à desenganos amorosos, como aqueles mais engajados, relativos à pobreza e expropriação - tais narrativas,
seguem resistindo no cancioneiro paraguaio, resistem no imaginário desse povo. E, ao
existir, resistem como desejo e luta por uma vida digna.
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ADAPTAÇÃO E VALIDAÇÃO SEMÂNTICADO
THINKING STYLES INVENTORY – REVISED II
(TSI-R2) PARA AS LICENCIATURAS
EM MÚSICA NO BRASIL
ADAPTATION AND SEMANTIC VALIDATION OF THE
THINKING STYLES INVENTORY - REVISED II (TSI-R2) FOR
LICENCIATE MUSIC DEGREE IN BRAZIL
Sérgio Inácio Torres1
Universidade Estadual Paulista - UNESP
sergio.torres@unesp.br
Graziela Bortz2
Universidade Estadual Paulista - UNESP
graziela.bortz@unesp.br
Katya Luciane de Oliveira3
Universidade Estadual de Londrina - UEL
katya@uel.br
Submetido em 18/09/2020
Aprovado em 16/11/2020
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Resumo
Nesta pesquisa, adaptamos e buscamos validação semântica do Inventário de
Estilos de Pensamento-Revisado 2 (STERNBERG; WAGNER; ZHANG, 2007) – o TSI-R2 –, a fim de medir diferentes estágios
e meios que são utilizados para solucionar
problemas, executar tarefas ou projetos e
tomar decisões, tendo como objetivos específicos: a) adaptar o instrumento para a
área de Música; b) avaliar o instrumento
adaptado por juízes das áreas envolvidas; e
c) investigar a compreensão pelo público-alvo. Metodologicamente, são os procedimentos necessários segundo as normas
da International Test Commission (2010),
a saber: a concordância pelos juízes das
áreas de Linguística, Música e Cognição
musical, e a confiança com evidência robusta do entendimento pelo público-alvo. Os resultados de validação semântica
mostram que o TSI-R2 pode ser utilizado
com licenciandos em Música, pois tem seu
construto preservado a despeito da eliminação de alguns itens durante a pesquisa.
Abstract
In this research, we adapted and
sought semantic validation of the Revised
Thinking Styles Inventory 2 (STERNBERG;
WAGNER; ZHANG, 2007) – TSI-R2 – in order to measure different stages and means
that are used to solve problems, execute
tasks or projects and make decisions, having as specific objectives: a) adapting the
instrument to the area of Music; b) evaluating the instrument adapted by judges
from the areas involved; c) investigating
understanding by target Audience. Methodologically, they are the procedures that
are in accordance with the standards of
the International Test Commission (2010),
namely: agreement by the judges of the
areas of Linguistics, Music and Musical
cognition, and the confidence with robust evidence of the understanding from
the target audience. The results of semantic validation show that the TSI-R2 can be
used with graduates in Licenciate Music
Degreee, as it has its construct preserved
despite the elimination of some items
during the research.
Palavras-chave: evidências de validade; avaliação musical; cognição musical;
Keywords: evidence of validity; mupsicometria.
sical evaluation; musical cognition; psychometry.
1
Doutorando em Música pela UNESP, Mestre em Música, Bacharel em Música. Pianista e professor.
2
Professora de análise, teoria e percepção musical do Instituto de Artes da Unesp. Realiza pesquisa financiada pela Fapesp em políticas
públicas sobre o impacto do Programa Guri Santa Marcelina em estruturas cerebrais, habilidades cognitivas e sociais em crianças na Grande São
Paulo, colaborando com pesquisadores das áreas de psiquiatria, psicologia, estatística e educação musical. Foi trompista (OSPA e Theatro Municipal
de São Paulo) e coordenadora pedagógica da Emesp-Tom Jobim.
3
Psicóloga com mestrado em Psicologia na área de concentração avaliação psicológica no contexto escolar e educacional, pelo Programa
de Pós-graduação Stricto Sensu da Universidade São Francisco. Doutora em Psicologia, Desenvolvimento Humano e Educação pela Faculdade de
Educação da Universidade Estadual de Campinas. Pós-doutorado em Avaliação Psicológica pelo Programa de Pós-graduação Stricto Sensu da
Universidade São Francisco. É Professora Associada do Departamento de Psicologia e Psicanálise/PPSIC, do Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu em Psicologia (na função de coordenadora) e do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Estadual de Londrina.
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REVISED II (TSI-R2) PARA AS LICENCIATURAS EM MÚSICA NO BRASIL
INTRODUÇÃO
O escopo desta pesquisa tem seu recorte voltado para a avaliação musical por
meio do viés cognitivo. Em Música, a avaliação é um dos temas mais discutidos na atualidade em razão de duas vertentes: de um lado, estão aqueles que rejeitam as mensurações, os testes de avaliação, alegando que são excludentes e renegam a subjetividade
da prática musical; de outro, os que veem pelo prisma oposto – as avaliações aplicadas
por meio de testes padronizados têm sido amplamente difundidas desde a década de
1960 e foram consolidadas principalmente nos Estados Unidos (MENEZES, 2010). Assim,
nessa pesquisa trataremos da avaliação, concernente à sua necessidade de instrumentalização na área da Música. Para fortalecer esse fio condutor, Costa e Barbosa (2015)
sustentam que:
A ausência de critérios objetivos pode tornar a avaliação do fazer musical numa
tarefa demasiado subjetiva ou até arbitrária com evidentes prejuízos para o processo de ensino-aprendizagem. Esta subjetividade, mais presente no reconhecimento das qualidades musicais do que na definição das mesmas, faz com que
os julgamentos daqueles que avaliam a performance musical dos alunos sejam
muitas vezes inconsistentes. (p. 235)
Nessa busca de compreensão, podemos abordar objetivamente a pesquisa sobre
a avaliação musical pelo viés cognitivo, uma contribuição pertinente que, para a área
da Música, é original no Brasil. É possível, por meio dos processos avaliatórios, analisar o progresso do aluno e motivá-lo, assim como ajudar a melhorar as estratégias
dos professores e coletar dados para uso em pesquisas, gerando conhecimento para
orientar outras situações de avaliação baseadas em sistemas semelhantes (TOURINHO;
OLIVEIRA, 2003).
Esta pesquisa representa resultados parciais, uma das etapas concluídas de um doutorado em andamento, no qual empregaremos o Inventário de Estilos de Pensamento-Revisado 2 - TSI-R24 (STERNBERG; WAGNER; ZHANG, 2007). Com base nele, desenvolveremos um novo instrumento para avaliação em Música, de acordo com os estilos dos
licenciandos. Nesta primeira etapa, adaptamos o referido inventário e percorremos uma
trajetória de validação semântica necessária às demais etapas do processo. O TSI-R2 é
um teste que, quando adotado, mostra os “estilos intelectuais” do aluno. Aplicaremos
essa escala de estilos preexistente para estudar os processos cognitivos que ocorrem nas
fases anteriores à prática musical dos graduandos em licenciatura em Música, ou seja, as
preferências utilizadas na fase anterior à leitura musical à primeira vista. A pergunta norteadora foi: Como é possível adaptar o TSI-R2 para a Cognição Musical?
O objetivo geral foi buscar validação semântica de um instrumento da psicologia cognitiva para a cognição musical. Já os objetivos específicos foram adaptar o
instrumento para a área de Música – especificamente, para discentes de licenciatura
4
Sigla oriunda do título original, Thinking Styles Inventory-Revised II.
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Katya Luciane de Oliveira
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em Música5 – e submeter o instrumento adaptado à avaliação de juízes das áreas. Na
próxima seção, abordaremos três assuntos fundamentais à contextualização teórica
dos Estilos de Pensamento: a teoria do autogoverno mental; o modelo tríplice; e os
instrumentos de medida.
ESTILOS INTELECTUAIS
No âmbito dos estilos intelectuais, a literatura, alicerçada nos referenciais da Psicologia Cognitiva, inclui vários artigos de revisão, os quais procuram abordar a ausência
de uma teoria consensual sobre o tema e avançar nesse campo. Na tentativa de encontrar alguma estrutura e promover a coesão, Cassidy (2004) selecionou 23 modelos
dentre os estilos existentes, para compreensão, oferecendo estruturas conceituais explícitas, no intuito de criar uma taxonomia que permita distinguir os modelos colocados
no contexto mais amplo da teoria dos estilos, possibilitando interpretação e integração
adequadas. Em estudo posterior, o autor considera que
Independentemente das diferenças de ênfase, em última análise, cada uma das
revisões compartilha o objetivo comum de abordar questões relativas a fragilidade conceitual, os instrumentos de concepção e a avaliação de construção de
maneira confiável e válida. (2012, p. 73).
O campo dos estilos intelectuais enfrentou muitas dificuldades para o avanço das
pesquisas nessa área. Vários autores tentaram identificar os obstáculos encontrados
para o desenvolvimento de estilos, em momentos específicos: Miller, 1987; Riding e
Cheema, 1991; Sternberg, 2001; Zhang e Sternberg, 2006; e Zhang, Sternberg e Rayner,
2012. Por meio de suas pesquisas, “foram descobertos três desafios principais: falta de
identidade; existência de três grandes controvérsias relacionadas à natureza dos estilos;
e confusões causadas por várias revisões críticas de campo”, segundo Zhang; Sternberg;
Rayner (2012, p. 2). Sternberg (2001) destaca que
[...] um dos principais fatores que contribuíram para seu declínio na pesquisa
em questão durante a década de 1970 foi que algumas teorias iniciais propuseram estilos que não podiam ser mostrados como construções “puras”. Esses
estilos não eram claramente distinguíveis de habilidades ou traços de personalidade. Como resultado, a investigação de estilos foi facilmente assimilada pela
pesquisa das habilidades ou da personalidade, visto que uma área distinta de
pesquisa sobre estilos não parecia mais necessária. (apud ZHANG; STERNBERG;
RAYNER, 2012, p. 2).
Assim, seu construto tem voltado sob diferentes formas, porque há algo nos estilos
intelectuais que não pode ser totalmente explicado pelo conceito de inteligência nem
pelo de personalidade. No entanto, Zhang, Sternberg e Rayner (2012, p. 4) consideram
5
De acordo com Gomes (2016), os discentes em licenciatura em música no Brasil além de suas atividades acadêmicas, são professores de aulas particulares e de escolas especializadas de música, trabalham em espaços informais, projetos, igrejas e na rede privada de ensino,
principalmente em turma(s) de educação infantil. Além disso, atuam como instrumentistas, cantores, compositores, arranjadores, regentes e
organizadores de eventos.
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de grande relevância chegar a uma compreensão dos papéis dos estilos intelectuais,
visto que grande parte da literatura publicada sobre o tema se concentra no contexto
educacional. Segundo eles, em síntese,
[...] o campo tem lutado por sua identidade em razão: (1) da dificuldade de distinguir estilos de habilidades e personalidade; (2) da falta de linguagem e estrutura conceitual específicas; e (3) da falta de contato entre a literatura de estilos
e outros corpos mais gerais da literatura. Essas dificuldades têm apresentado
vantagens e desvantagens.
Por outro lado, esses autores constataram que, apesar de terem significado um entrave ao desenvolvimento esperado no campo de estilos, essas dificuldades trouxeram
um fator positivo: o aumento das pesquisas na área, que contribuiu em especial para o
avanço em relação a elas, entre outros progressos nesse campo.
Para Sternberg (1997, p. 79), os estilos não são as habilidades, e sim as preferências
no uso delas. Assim como as habilidades, eles são tão importantes para a qualidade do
trabalho que realizamos quanto para a nossa satisfação com esse trabalho. O perigo
em não reconhecer essa diferença está em não perceber que as pessoas são multidimensionais estilisticamente; além disso, os estilos variam não apenas de acordo com
as tarefas, mas também conforme as situações, e diferem na intensidade de suas preferências (ZHANG; STERNBERG, 2009). Por esse motivo, tanto na educação quanto no
trabalho, se indivíduos brilhantes são forçados a trabalhar em um estilo que não lhes
convém, podem ter um desempenho abaixo de suas capacidades reais.
Na teoria da diferenciação psicológica de Witkin et al. (1962), em que se baseiam
os 13 estilos de pensamento da teoria de autogoverno mental de Sternberg, dois modelos se sobressaem: os dependentes e os independentes de campo (ZHANG; STERNBERG; RAYNER, 2012, p. 6). Observamos, assim, que é possível questionar a eficácia e
a suscetibilidade à testagem de uns em relação a outros.
Zhang e Sternberg (2005) afirmam que a expressão “estilos intelectuais” abrange
todos os construtos e termos pesquisados ao longo da história de pesquisas sobre o
assunto, os quais podem aparecer com ou sem a palavra raiz “estilos” e referem-se
a preferências das pessoas de processar informações e lidar com tarefas. Os autores
(2009c, p. 63) apontam, ainda, que diferentes estudiosos têm os próprios termos de
estilo preferidos, tanto em seus escritos quanto nas palestras que realizam, incluindo
“estilo cognitivo”, “estilo de aprendizado”, “estilo de pensamento”, “estilo de mente”,
“modo de pensar” ou “estilo de ensino”. No entanto, muitos pesquisadores nessa linha
concordam que as construções do conceito são englobadas pelo termo proposto inicialmente por Zhang e Sternberg (2005) em seu “Modelo tríplice de estilos intelectuais”.
De acordo com Fan e Zhang:
Como as diferenças individuais no desempenho humano são variáveis, o construto
de estilo, definido como a preferência das pessoas por processar informações e lidar
com tarefas (ZHANG; STERNBERG, 2005), atraiu um número considerável de pesquisadores e profissionais. No entanto, esse campo ficou fragmentado (COFFIELD, MOSELEY,
HALL; ECCLESTONE, 2004), com várias construções de estilo que se sobrepõem e são
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distintas umas das outras. Muitos estudiosos perceberam a necessidade de integrar as
teorias de estilo existentes para avançar no desenvolvimento da pesquisa no assunto
(RAYNER, 2011; RIDING, 2000). Entre esses esforços de integração, surgiu o modelo tríplice de estilos intelectuais (ZHANG; STERNBERG, 2005), cujo termo é usado de maneira abrangente, representando várias construções de estilos existentes, tais como estilos
cognitivos, estilos de aprendizado, estilos de personalidade e estilos de pensamento.
Essas construções remetem principalmente a três tradições: a de cognição/habilidade
(dependência/independência de campo), de Witkin et al., 1962); a de atividade/aprendizagem, de Biggs (1978); a de personalidade, de Myers (1962), Myers e McCaulley (1988).
(2014, p. 204).
É Sternberg, segundo Zhang, Sternberg e Rayner (2012, p. 14), quem oferece o
modelo de estilos de pensamento superior6 em relação a todos os já propostos, visto
que seu modelo engloba as três tradições no estudo. Com base nisso, os autores afirmam que “os estilos são cognitivos em sua preferência, pois assimilam as informações
por processos cognitivos7 (estilo judicial, estilo global etc.)”, além de corresponderem a
preferências no uso de habilidades. E ponderam, ainda:
No entanto, como os estilos têm desempenho típico e não desempenho máximo,
assemelham-se à tradição centrada na personalidade e representam a tradição
centrada na atividade, visto que podem ser medidos nesses contextos. Essa articulação da natureza dos estilos de pensamento, no âmbito das três tradições de
estilo, reconhece claramente sua relação com as habilidades e a personalidade.
Sternberg (1997, p. 79) discutiu as distinções entre estilos e habilidades e apresentou dados empíricos e uma lista de 15 “princípios de estilos de pensamento”. Além
disso, ele afirmou que “os estilos não são, em média, bons ou ruins – é uma questão de
adequação” (p. 97) e, sugerindo que eles têm valor no mesmo contexto, argumentou
que são pelo menos parcialmente socializados e ensináveis (apud ZHANG; STERNBERG;
RAYNER, 2012).
Já Mandelman e Grigorenko (2012, p. 89) consideram que “o estilo intelectual é
um construto fundamentado nos referenciais sobre inteligência e personalidade”, por
isso indicam a conexão entre ambos:
Nos indivíduos, a conexão entre inteligência e personalidade surge e se desdobra”, ambas possibilitando combinações únicas em qualquer situação. Assim,
os estilos são um tipo de fenômeno psicológico, que encapsula a dinâmica das
interações entre inteligência e personalidade em situações particulares.
6
O termo superior se deve à abrangência e à inovação na abordagem de Sternberg, alicerçado por suas pesquisas e as de outros autores
que são referência da área de estilos.
7
Podemos citar, como exemplo de processo cognitivo, a memória que está ligada à percepção e à aprendizagem, uma vez que esses
componentes do processo cognitivo interagem com o biológico, podendo até produzir mudanças no cérebro. (Sternberg, 2008).
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TEORIA DO AUTOGOVERNO MENTAL
Segundo apontam os estudos voltados à área de estilos, temos não apenas um estilo de pensamento, e sim um perfil de estilos. Isso significa que pessoas praticamente
idênticas em suas habilidades podem possuir estilos muito diversos. Desse modo, “[...] a
compreensão dos estilos intelectuais pode contribuir para o entendimento do porquê
de algumas atividades, em detrimento de outras, mostrarem-se perfeitas para certas
pessoas” (STERNBERG, 1997, p. 19), bem como de algumas pessoas se inclinarem a certas atividades e outras não.
Com o objetivo de superar as deficiências inerentes às dimensões estilísticas então
existentes, Sternberg (1988, 1994, 1997) criou a “teoria do autogoverno mental”, na qual
sistematiza em 13 estilos o pensamento dos seres humanos. Considere-se que:
Ao contrário de outros modelos bipolares de estilos intelectuais (dependência/
independência de campo, abordagens de aprendizagem profunda/superficial),
essa teoria delineia um perfil estilístico humano multifacetado e abrange as três
tradições (relativas à cognição, personalidade e atividade) da pesquisa nesse
campo. (FAN; ZHANG; HONG, 2019, p. 2).
Segundo Sternberg (1997, p. 19 e 20), a teoria do autogoverno mental está ligada,
basicamente, às muitas maneiras com que são governadas as sociedades existentes no
mundo, as quais não se dão por obra do acaso ou por alguma coincidência, mas, sim,
como um reflexo do modo como gerenciamos nossas atividades e utilizamos nossas
habilidades – ou seja, são um espelho da mente humana, refletindo o que se passa nela:
[...] assim como as sociedades, precisamos nos governar; temos de decidir sobre
prioridades, alocar recursos e responder às mudanças no mundo. Afinal, da mesma maneira como persistem os obstáculos a serem superados em um governo,
existem barreiras a serem transpostas em nós mesmos.
Para isso, precisamos organizar nosso pensamento; e é nesse sentido que se delineia a teoria do autogoverno mental, visto que, segundo Emir (2013, p. 338), ela representa uma maneira alternativa de alcançar esse objetivo ao sistematizar os estilos de
pensamento, os quais influenciam nas atividades domésticas, na escola, no trabalho e
na sociedade em muitas situações. Nas palavras do autor:
Os indivíduos têm os próprios estilos de pensamento e cada um possui um jeito
peculiar de se sentir à vontade ao lidar com os eventos que estão acontecendo. Esses estilos podem ser moldados pelas condições e situações em que as
pessoas se encontram; [...] eles estão intimamente relacionados e condicionados ao ambiente social, dependendo da cultura e do tempo. Conforme essas
circunstâncias, portanto, os estilos podem ser desenvolvidos e alterados. [...] os
estilos de pensamento não podem ser considerados bons ou ruins. No entanto,
ao considerá-los no campo educacional, alguns podem ser vistos como muito
mais eficazes do que outros na aprendizagem dos alunos.
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Assim, pela perspectiva estilística, é preciso haver flexibilidade tanto de professores como de alunos na abordagem do processo de ensino-aprendizagem; destacamos
que “Os professores precisam fornecer às crianças configurações individuais e de grupo,
para que elas possam se sentir confortáveis durante o estudo e desafiadas no restante
do tempo” (STERNBERG, 1997, p. 26).
Inicialmente, as diferentes preferências para o uso de habilidades foram interpretadas e denominadas como estilos de pensamento. Assim, o modelo de Sternberg tem
caráter inovador em relação a todos os outros existentes sobre estilos individuais, pois,
além de sua abrangência e de outras características relevantes, que já abordamos, sua
teoria especifica 13 estilos de pensamento, que se enquadram em 5 dimensões do autogoverno mental. São elas: (a) funções, (b) formas, (c) níveis, (d) escopos e (e) tendências
(STERNBERG, 1997; ZHANG; STERNBERG, 2005).
a) Funções
Emir (2013 p. 338) aponta que ocorrem três funções (três estilos básicos de pensamento) no autogoverno mental dos seres humanos. São elas os pensamentos legislativo, executivo e judicial. Para Sternberg (1997, p. 27):
Os governos podem ser organizados de muitas maneiras diferentes, mas todos
eles precisam realizar pelo menos três funções: eles precisam legislar; executar a
legislação que aprovam; julgar se a legislação é consistente com seus princípios
e, se for o caso, se as pessoas estão agindo de acordo com a legislação.
Além disso, as pessoas de determinado estilo podem, concomitantemente, apresentar outras características estilísticas, como é o caso dos profissionais citados a seguir nas descrições.
No estilo de pensamento legislativo,
o indivíduo tem prazer em envolver-se na realização de trabalhos que exigem
estratégias criativas – isto é, gosta de ver ou fazer as coisas de maneira inovadora. Esse estilo está focado em criatividade, planejamento, design e modelagem,
e é característico do sujeito que aprecia conceber maneiras de executar suas
atividades e criar regras próprias, além de preferir problemas que não sejam preconcebidos. (ZHANG; STERNBERG, 2009, p. 66).
Segundo Sternberg (1997, p. 19), as pessoas do estilo legislativo têm como atividades preferidas as que demandam criatividade, como inventar coisas novas, “escrever
trabalhos criativos, elaborar projetos que apresentem alguma inovação, criar negócios
ou sistemas educacionais – por exemplo, escritores, cientistas, artistas, escultores e arquitetos. Para o autor (2006), o sujeito legislativo “é inclinado à criatividade, porque as
pessoas criativas precisam não apenas da capacidade de apresentar novas ideias, mas
também do desejo de realizar”.
Já no estilo de pensamento executivo, o interesse e a preocupação do indivíduo
voltam-se para a implementação de tarefas com diretrizes definidas, “principalmente
em trabalhos que exigem alguns princípios orientadores em boa ordem” (EMIR, 2013 p.
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338), fazendo as coisas de maneira claramente especificada para ele. No dizer de Sternberg (1997, p. 20):
Os sujeitos executivos gostam de seguir regras e preferem problemas preconcebidos, em que possam preencher lacunas nas estruturas existentes. Apreciam
problemas matemáticos com uso de regras e, também, o trabalho com base em
ideias de outras pessoas. Algumas das profissões que se enquadram nesse perfil
são: advogado, policial, soldado, professor, pesquisador aplicado e assistente
administrativo. Pessoas com esse estilo tendem a ser valorizadas tanto na escola
quanto nos negócios, porque “os executivos” fazem o que lhes é solicitado e,
muitas vezes, com satisfação.
Obtêm sua satisfação ao concluir o que lhe é proposto, o que denota um padrão de
gostos e desgostos essencialmente opostos ao das pessoas legislativas, que geralmente
obtêm sua satisfação em propor. Porém, os dois tipos de pessoas se complementam,
embora os sujeitos com estilo executivo dirijam-se a ocupações bem diferentes daquelas para as quais os legislativos são atraídos, o que leva a se pressupor muito sucesso
para equipes legislativo-executivas (STERNBERG, 1997, p. 36).
Quanto ao sujeito com estilo de pensamento judicial, sua atenção está em avaliar
as outras pessoas e aquilo que elas produzem em suas atividades (ZHANG; STERNBERG,
2009a, p. 66); ou seja, ele leva em consideração os resultados das ações de outras pessoas e concentra-se em avaliá-los, julgá-los e compará-los.
Para Sternberg (1997, p. 21), pessoas do estilo judicial gostam de analisar regras,
procedimentos e problemas com ideias preexistentes. Elas gostam de atividades como
“escrever críticas, opinar, julgar as pessoas em seu trabalho e avaliar programas. Algumas de suas ocupações são juiz, crítico, avaliador, consultor, diretor de recursos humanos, monitor de contratos e analista de sistemas”. O autor aponta, ainda, que:
[...] “se professores, eles tendem a gostar mais de avaliar seus alunos do que de
os ensinar. As pessoas judiciais também preferem problemas nos quais podem
analisar ideias. Gostam de avaliar estrutura e conteúdo; assim, são propensas a
julgar tanto os procedimentos para contratar pessoas quanto os candidatos a serem contratados. Eles, portanto, desempenham função importante para garantir
que as propostas das pessoas mais legislativas sejam, de fato, adequadas (p. 39).
b) Formas
Como no governo de países, o autogoverno mental de um ser humano pode assumir quatro estilos básicos de pensamento, que participam do processamento das informações nessa dimensão – as formas. Estas podem ser distinguidas como: monárquica,
hierárquica, oligárquica e anárquica (EMIR, 2013; STERNBERG, 1997).
Na forma monárquica, segundo Emir, “o indivíduo tem prazer em participar das
obras, tarefas nas quais se concentra em determinado momento, realizando uma coisa
de cada vez, o que demostra um comportamento perfeccionista” (2013, p. 338). O autor
ressalta que as crianças monárquicas tendem a querer fazer algo diferente quando, na
escola, encontram alguma dificuldade; nessa situação, elas costumam ficar dispersi-
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vas em vez de participar da aula. Nesse contexto educacional, Sternberg (1997, p. 48)
aponta que os professores tendem a reforçar a interação com os alunos que identificam
como monárquicos; no mesmo estudo, o autor afirma também que as pessoas com
estilo predominantemente monárquico “podem ser decisivas e, ocasionalmente, em
demasia. Se um sujeito monárquico não consegue ver como algo se relaciona com seu
assunto preferido, tende a se desinteressar”. Estudos de outros autores (ZHANG; STERNBERG, 2009; FAN; ZHANG, 2014b) apontam para a mesma direção, ao afirmarem que
pessoas monárquicas geralmente são motivadas por um único objetivo ou necessidade
por vez e tendem a ser motivadas pelo que são obstinadas, por isso tentam resolver os
problemas e com rapidez.
Já na forma hierárquica, de acordo com Emir (2013, p. 338), o indivíduo tende
a realizar várias tarefas e determina prioridades. Em consonância, Sternberg (1997, p.
23) considera que as pessoas com esse estilo de pensamento ordenam seus objetivos,
pois, à luz de que nem todos podem ser cumpridos – ou pelo menos não de maneira
satisfatória –, entendem como necessário estipular os que têm prioridade; por essa
característica, esses indivíduos costumam se encaixar bem nas organizações. Sternberg
ressalta também que:
“[...] as pessoas hierárquicas costumam ser sistemáticas e organizadas em suas soluções para os problemas, bem como na tomada de decisões” [...] “A natureza dos
estilos de pensamento é tão característica no estilo hierárquico, que esses sujeitos
muitas vezes se tornam indecisos, porque é preciso gastar o tempo organizando
as prioridades, mas também garantindo que elas sejam cumpridas” (p. 51 e 52).
Quanto à forma oligárquica, esta diz respeito a pessoas que se dedicam a muitos
objetivos simultaneamente e não gostam de determinar precisamente as prioridades.
Como elas costumam ser motivadas por vários propósitos, que muitas vezes concorrem
entre si, tendem a vê-los com o mesmo grau de importância e, por isso, concentram-se
em todos ao mesmo tempo (EMIR, 2013).
Além disso, são pessoas com “dificuldade para decidir a qual meta dar prioridade,
por isso podem ter problemas com recursos como resultado; e, na escassez destes,
mesmo que sejam capazes de realizar um excelente trabalho, nem sempre é o que
acontece” (STERNBERG, 1997, p. 53). Como as pessoas oligárquicas não aceitam essa
situação naturalmente, é possível necessitarem de orientação no estabelecimento de
prioridades, pois, conforme aponta Sternberg, funcionários e estudantes oligárquicos
costumam sofrer “porque têm demandas concomitantes e, por exemplo, se têm projetos de curto e longo prazo, tendem a se dedicar a um conjunto de projetos e negligenciar outro” (p. 55).
Outra forma, ainda, refere-se ao estilo de pensamento anárquico8. Esse estilo é o
do indivíduo que gosta de trabalhar em tarefas que não requerem regras predefinidas
nem muita concentração, tampouco ansiedade. As pessoas anárquicas escolhem tra-
8
Embora a definição do estilo anárquico pareça um tanto simplista no que diz respeito à origem histórica e política do termo, esta é a
maneira pela qual os teóricos de estilos o descrevem.
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balhos que lhes proporcionem conforto e flexibilidade (EMIR, 2013). Sobre elas, aponta
Sternberg (1997, p. 58):
São sujeitos que costumam ser motivados por uma variedade de necessidades e
objetivos, e tendem a ser não sistemáticos tanto quanto antissistemáticos; como
resultado, é comum não serem bem-vindos na maioria dos ambientes organizacionais. Além disso, eles são propensos a adotar uma abordagem aleatória e
simplista dos problemas para não estabelecer prioridades, pois não possuem
regras sobre as quais possam se basear.
As pessoas anárquicas parecem ser motivadas por um conjunto de necessidades e
objetivos que podem ser difíceis de resolver tanto para elas como para os outros. Assim,
tendem a rejeitar sistemas, especialmente os rígidos, e a refutar qualquer sociedade que
as coloque “confinadas”. Contudo, podem ter muito a oferecer se puderem canalizar
seu empenho de maneira eficaz, e para isso muitas vezes precisam de auxílio. Sternberg
(1997, p. 24) alerta que:
O problema para o professor, pai ou empregador é ajudar a pessoa anárquica a
aproveitar seu potencial de criatividade e alcançar a autodisciplina e organização necessárias para qualquer tipo de contribuição criativa. Se esse esforço de
aproveitamento funcionar, a pessoa anárquica pode acabar tendo sucesso em
domínios onde outros tendem a falhar.
Portanto, as pessoas com estilo de pensamento anárquico, como qualquer outra pessoa, têm uma contribuição a fazer em uma sociedade complexa e em constante mudança.
c) Níveis
Nesta dimensão, dois estilos básicos de pensamento pertencem ao autogoverno
mental dos seres humanos – o local e o global. No primeiro, “o indivíduo tem prazer
em participar das obras que exigem a concentração nos detalhes; no segundo, ele está
mais inclinado a dar atenção às ideias teóricas, ao desenho geral de um problema e ao
todo de uma ideia” (ZHANG; STERNBERG, 2006, p. 113). Para Sternberg (1997, p. 24), as
pessoas de estilo local apreciam problemas concretos, em contraste com as de estilo
global, que dão preferência a questões abstratos e amplas, pois elas ignoram ou não
gostam de detalhes. Desse modo, Sternberg ressalta que, se dois sujeitos estão próximos dos extremos – um com estilo global intenso e outro localista extremado –, “eles
podem encontrar dificuldades caso trabalhem juntos, não porque não precisam um do
outro, mas pelo fato de não conseguirem se comunicar bem” (p. 65).
d) Escopos
Com relação aos escopos, mais uma das dimensões do autogoverno mental, existem dois: o interno, que diz respeito a indivíduos que gostam de tarefas nas quais podem trabalhar de maneira independente; e o externo, cujas pessoas tem a tendência inversa, visto que apreciam oportunizar o desenvolvimento das relações pessoais e fazer
parte dos trabalhos (EMIR, 2013, p. 338).
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Sobre os indivíduos com escopo interno, Sternberg (1997. p. 70) considera que, por
serem propensos à introversão, eles gostam mais de trabalhar sozinhos; algumas vezes,
nas palavras do autor, “essas pessoas são socialmente menos conscientes; elas não têm
consciência interpessoal, pois não se concentram nisso”. Dessa maneira, crianças com
escopo interno podem ficar ansiosas em um ambiente de grupo.
Já as pessoas de estilo externo, de modo oposto, tendem a ser extrovertidas e socialmente ativas, conscientes do que está acontecendo com os outros. Assim, as crianças externas preferem trabalhar em grupo e, provavelmente, aprendem melhor quando estão com outras pessoas (STERNBERG, 1997; STERNBERG; ZHANG, 2006; ZHANG;
STERNBERG, 2009).
e) Tendências
Os estilos de pensamento concernentes à dimensão de inclinações e tendências
são o liberal e o conservador.
As pessoas com estilo de pensamento conservador preferem executar tarefas
atentas a regras e procedimentos preexistentes (ZHANG: STERNBERG, 2009c, p. 67);
além disso, tendem a minimizar mudanças, a evitar circunstâncias ambíguas sempre
que possível e a se ater a situações familiares no trabalho e na vida profissional.
De modo oposto, os indivíduos com estilo de pensamento liberal gostam de se envolver em tarefas que apresentem novidade, pois possuem a mente aberta. São sujeitos
que buscam maximizar mudanças e não evitam trabalhos que levam a ambiguidades,
pois têm neles prazer (STERNBERG, 1997; STERNBERG; ZHANG, 2006; ZHANG; STERNBERG, 2009c).
MODELO TRÍPLICE
De acordo com as investigações empíricas sobre os estilos de pensamento propostos na teoria do autogoverno mental, Sternberg (1988, 1997) propõe um modelo
tríplice (ZHANG; STERNBERG, 2005, 2006), ou seja, que classifica as construções de
estilo existentes em três: Tipo I, Tipo II e Tipo III.
Os indivíduos dos estilos intelectuais do Tipo I (legislativo, judicial, global, hierárquico e liberal) preferem tarefas que apresentam menos estrutura, exigindo deles maior
complexibilidade na assimilação cognitiva das informações (ZHANG; STERNBERG,
2009c, p. 64). Esses indivíduos têm tolerância ao contexto não estruturado e são propensos à autonomia, por isso apreciam atividades sem conformidade com normas preexistentes, que permitem originalidade e altos níveis de liberdade para fazerem as coisas da maneira que quiserem. Tais preferências correspondem às que costumam ser
expressas por indivíduos altamente criativos. Ainda caracterizam o tipo I: a abordagem
de aprendizado profundo; a independência do campo; o estilo reflexivo; e o estilo liberal (ZHANG; STERNBERG, 2009; FAN; ZHANG, 2014b).
Já as pessoas com estilos intelectuais do Tipo II (executivo, local, monárquico e
conservador) costumam dar preferência a atividades estruturadas, para a execução das
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quais podem processar informações de modo mais simples e utilizar métodos tradicionais, com forte senso de respeito à autoridade (ZHANG; STERNBERG, 2009c, p. 64);
normalmente essas tarefas são apresentadas pela simplicidade cognitiva necessária e
pelo alto grau de estrutura envolvido. Essas preferências são consistentes com aquelas
frequentemente observadas em pessoas com menor potencial criativo, que preferem
um contexto estruturado e obedecer a normas e instruções (aprendizado de superfície,
dependência de campo, estilo impulsivo e estilo conservador).
Com relação aos estilos de pensamento do Tipo III (anárquico, oligárquico, interno e externo), é possível que apresentem características de ambos os tipos anteriores,
conforme a necessidade estilística de uma circunstância, contexto ou atividade (FAN,
2012, p. 239). Podem, ainda, mostrar as propriedades dos estilos externo e interno, dependendo do assunto que será abordado e da necessidade do trabalho a ser realizado
(ZHANG; STERNBERG, 2009; FAN; ZHANG, 2014b).
Quanto à maleabilidade, especificamente, de acordo com Zhang e Sternberg (2009,
p. 70), cujas pesquisas situam-se em sua maioria nos contextos americano e chinês, o
modelo tríplice postula que várias construções de estilo compartilham variações em
comum. Em estudos mais adiante, Zhang, Sternberg e Rayner (2012, p. 13) assim distinguem os estilos dos Tipos I, II e III: os estilos do Tipo I são propensos a valores mais
maleáveis, que costumam estar intensamente ligados a atributos humanos desejáveis,
por isso a maior parte dos programas de treinamento buscam desenvolver pessoas com
esses estilos, que geralmente se relacionam positivamente entre si; em contrapartida,
os indivíduos do Tipo II tendem a valores menos maleáveis, os quais são comumente
associados a qualidades indesejáveis, sendo por isso indivíduos evitados nos programas
de treinamento,9 embora também se relacionem bem entre si; e, quanto às pessoas
com estilos do Tipo III, elas tendem a apresentar valores dos dois tipos anteriores, ou
seja, são mais ou menos maleáveis, de acordo com à demanda estilística da situação –
em razão de seu alto nível de contingência em casos, as os indivíduos com estilos do
Tipo III são mais maleáveis do que os dois outros tipos. Os indivíduos dos estilos do Tipo
I, em geral, relacionam-se positivamente entre si, assim como os dos estilos do Tipo II.
Inicialmente, Grigorenko e Sternberg (1997) investigaram o papel dos estilos de
pensamento no desempenho acadêmico estadunidense; Um total de 199 alunos participou desse estudo da universidade de Yale. Como resultado, os pesquisadores concluíram que é muito significativa a contribuição dos estilos de pensamento para que
se possa pressupor o desempenho acadêmico (FAN; ZHANG; HONG, 2019, p. 12). Nas
Filipinas, as análises, que contaram com a participação de 429 estudantes universitários,
bem como seus resultados, foram discutidas por Bernardo, Zhang e Callueng (2002),
tendo por base a cultura do país, e mostraram-se consistentes com as bases teóricas
dos estilos de pensamento, além de totalmente relacionadas com o desempenho aca9
Segundo Sternberg, o sistema educacional tende a encorajar nas pessoas o estilo executivo. Isso porque na escola os alunos, de modo
geral costumam lidar com problemas já estruturados e por vezes até são punidos se tentam ir além do que lhes é solicitado, o que tem sido motivo
de crítica já há algum tempo: “Esta tem sido uma crítica feita a sistemas educacionais de distintos países, embora mais recentemente se observe
um movimento no sentido de promover uma cultura de aprendizagem que privilegie também o exercício de resolução de problemas sem uma
estrutura predeterminada” (ALENCAR; FLEITH, 2003, p. 3).
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dêmico na perspectiva do sistema filipino de ensino. Já Cano-Garcia e Hughes (2000)
examinaram se os estilos de aprendizagem dos estudantes universitários e os estilos de
pensamento estavam inter-relacionados e se poderiam predizer o desempenho acadêmico. Com 210 estudantes universitários participantes, os resultados da análise indicaram que o desempenho acadêmico dos alunos estava relacionado a seus estilos de
pensamento. A relação entre os estilos de pensamento de Sternberg e as abordagens de
aprendizagem no modelo de Biggs foi investigada por Zhang (2000, p. 841):
Os participantes foram dois grupos independentes de estudantes universitários
estadunidenses (N1 = 67, N2 = 65), os quais responderam ao Inventário de Estilos de Pensamento (TSI) e ao Questionário do Processo de Estudo. Verificou-se que os dois inventários geralmente estavam correlacionados de maneiras
previsíveis, o que confirmou o resultado obtido em um estudo inicial de duas
populações chinesas.
Essa investigação de Zhang examinou a natureza das relações entre as duas teorias
e contou com a participação de estudantes universitários de Hong Kong (n = 854) e de
Nanjing, China (n = 215), que completaram o Questionário do Processo de Estudo (BIGGS, 1992) e o TSI (STERNBERG; WAGNER, 1992). Os resultados indicaram que ambos
os inventários eram confiáveis e válidos, no âmbito de suas respectivas teorias, entre os
estudantes universitários de Hong Kong e Nanjing. Alguns desses estudos (Zhang, 2004)
indicaram que as contribuições dos estilos de pensamento estão além das habilidades
de autoavaliação dos alunos e outras pesquisas que discutiremos mais adiante. Assim,
segundo Fan (2016, p. 64),
[...] esse modelo tríplice de estilos intelectuais proposto por Zhang e Sternberg
(2005) é integrador e baseia-se em uma série de construções de estilos, que
possuem fundamentos teóricos robustos e evidências empíricas de apoio. Essas
construções de estilo incluem as abordagens de aprendizagem: de dependência/independência, de Biggs (1978); de campo, de Witkin (1962); de estilos de reflexão/impulsividade, de Kagan, Rosman, Day, Albert e Philips (1964); de estilos
de pensamento, de Sternberg (1997); e outras seis construções.
Em contraponto com teorias de estilo que se fixavam ou em ambientes acadêmicos (enfoque de aprendizado de Biggs, por exemplo) ou em ambientes não acadêmicos (MYERS; BRIGGS, 1962), a abordagem de Fan (2016, p. 64) afirma, ainda, que tanto
em ambientes acadêmicos como não acadêmicos a teoria de pensamento é altamente
aplicável, sendo esse o ponto de partida para que o modelo tríplice se estabelecesse.
Posteriormente, Zhang e Sternberg (2006) argumentaram de várias perspectivas, afirmando que os estilos de pensamento são carregados de valores e que os do Tipo I são,
em geral, mais desejáveis do que os do Tipo II (ZHANG; STERNBERG; RAYNER, 2012 p.
7). Muitos estudos foram revisados para demonstrar a maior maleabilidade dos estilos
de pensamento do Tipo I, visto que associados a atributos positivos do ser humano
(FAN, 2016, p. 64). Em relação aos estudos disponíveis, nos Estilos de Alunos foram testados os estilos de pensamento, por exemplo, em relação a seus níveis de autoestima
(ZHANG; STERNBERG, 2009a).
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Em um estudo que envolveu 794 estudantes universitários de Hong Kong, Zhang
e Sternberg (2009c, p. 70), os pesquisadores analisaram a relação entre autoestima e
estilos de pensamento e concluíram que “os níveis mais altos de autoestima estavam:
de maneira expressiva, no caso positivo, relacionados aos estilos de pensamento I; e,
no negativo, moderadamente, vinculados aos estilos do Tipo II”. Zhang e Postiglione
(2001, p. 1.333), utilizando uma amostra independente de 694 estudantes universitários
da mesma cidade, obtiveram resultados surpreendentemente parecidos ao abordaram
a questão sobre os estilos de pensamento Tipo I estarem ou não relacionados a traços
de personalidade geralmente considerados mais desejáveis.
Três estudos investigaram as relações entre os estilos de pensamento e as cinco
grandes dimensões da personalidade – Fatores NEO-Five10. Em um deles, 408 estudantes universitários de Xangai, na China continental, responderam ao TSI e ao Inventário
de Cinco Fatores da NEO, e se pode verificar que
[...] os estilos de pensamento e as dimensões da personalidade encontram correspondência – os estilos de pensamento mais geradores de criatividade e mais
complexos estavam relacionados às dimensões da personalidade “extroversão”
e “abertura”, e os estilos de pensamento simplistas eram mais favoráveis às normas, ao neuroticismo (ZHANG; STERNBERG, 2009c, p. 70)
Em outra pesquisa (ZHANG, 2002c), os estudos anteriores na literatura foram revisados e evidências empíricas foram encontradas; participaram dessa pesquisa 267 universitários de Pequim, República Popular da China. Seus resultados confirmaram que
estilos de pensamento e traços de personalidade encontram correspondência estatística, mas com limitações: “primeiro, os estilos de pensamento dão uma contribuição
única para a compreensão das diferenças individuais humanas; segundo, a necessidade
de medir estilos de pensamento, além de traços de personalidade, depende de quem
usa os inventários e para quais fins” (p. 445). Houve outro estudo, ainda, em Hong Kong,
com 154 estudantes universitários (idade média de 20 anos); os participantes responderam ao TSI, com base na teoria de autogoverno mental, de Sternberg, e no Inventário de
Cinco Fatores da NEO (COSTA; MCCARE, 1992). Como resultado:
Embora tenham sido identificadas relações significativas entre estilos de pensamento específicos e certos traços de personalidade, é prematuro afirmar que
uma medida de personalidade pode ser usada para medir estilos de pensamento; porém, as consistências internas de cada construto se mantiveram. (ZHANG;
HUANG, 2001, p. 465)
Esses estudos indicaram, portanto, que os estilos de pensamento Tipo I estavam
associados a traços de personalidade adaptados, como abertura e consciência, en10
“Por meio do modelo dos cinco fatores, que envolve uma representação dimensional das diferenças interpessoais relacionadas à personalidade, é possível categorizar em cinco grandes grupos as tendências comportamentais, emocionais e cognitivas das pessoas: Neuroticismo
(N), Extroversão (E), Abertura à Experiência (O), Amabilidade (A) e Conscienciosidade (C). Essa categorização tem sido considerada por diversas
culturas e traduzidas para diversos idiomas. O que fundamenta grande consenso em relação à estrutura dos traços de personalidade em adultos
e estabelece a utilidade desse modelo como guia nas investigações e como ferramenta de descrição da personalidade na idade adulta”. (PEDROSO-LIMA et al., 2014, p. 1).
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quanto os estilos Tipo II estavam relacionados ao neuroticismo, traço de personalidade
frequentemente considerado indesejável porque pode favorecer algumas patologias.
Desde a publicação do livro de Zhang e Sternberg (2006) sobre a natureza dos
estilos intelectuais, novas evidências empíricas têm aparecido na literatura, sugerindo
consistentemente que indivíduos com estilos de pensamento do Tipo I são mais adaptáveis do que os do Tipo II. Essas evidências podem ser encontradas em estudos de
alunos, de professores, e de ambos em interação.
INSTRUMENTOS DE MEDIDA
Na ciência, a mensuração é importante, pois é difícil demonstrar que um construto
existe se ele não pode ser medido. Já na educação, ela é significativa para diagnóstico
ou previsão. O problema, porém, na educação e em outras áreas, é que muitas vezes a
medição precede a teoria em vez de segui-la. É imprescindível que, para formular um
modelo teórico, as medidas sejam oriundas de observações feitas com profundidade,
caso contrário, valores podem ser atribuídos sem a devida correlação com os traços
observados. Ou seja, a estatística pode fornecer números não representativos de uma
realidade pesquisada; psicometricamente, isso significa dar mais valor à Estatística do
que à Psicologia.
Conforme Pasquali (2009, p. 25), ter como legítimo o ato de passar a representar
numericamente os procedimentos em substituição à observação, às operações empíricas, é o principal problema da medida, visto que essa representação se dá por meio de
alguma escala de medida (ordinal, intervalar etc.). Tipicamente,
[...] toda e qualquer medida vem acompanhada de erros; por consequência, o
número que descreve um fenômeno empírico deve vir com algum indicador do
erro provável, o qual será analisado com base nas teorias estatísticas para determinar se o valor encontrado e o que descreve o atributo empírico estão dentro
dos limites de aceitabilidade de medida.[...] O uso do número na descrição dos
fenômenos naturais (isto é, a medida) somente se justifica se puder responder
afirmativamente a estas duas questões: 1) É legítimo utilizar o número para descrever os fenômenos da ciência? 2) É útil ou vantajoso utilizar o número para
descrever os fenômenos da ciência. (p. 26).
O autor pontua, ainda, que, já que a medida atribui números às propriedades que
as coisas apresentam, “segundo certas regras, ela deve garantir que as operações empíricas salvem os axiomas dos números” (p. 30).
A teoria do autogoverno mental foi operacionalizada por meio de vários instrumentos, entre eles o Inventário de Estilos de Pensamento - TSI (STERNBERG; WAGNER, 1992) e suas principais versões revisadas, o TSI-R (STERNBERG; WAGNER; ZHANG,
2003) e o TSI-R2 (STERNBERG, WAGNER; ZHANG, 2007).
Como uma dimensão básica é independente das outras dimensões do estilo de
pensar dominante no indivíduo, não existe uma pontuação total do inventário. Assim,
ele “consiste em submedidas dos estilos Legislativo, Executivo, Judiciário, Monárquico,
Oligárquico, Hierárquico, Anárquico, Holístico, Local, Interno, Externo, Liberal e Con-
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servador” (EMIR, 2013, p. 338). Para medir esses 13 estilos, o inventário original (1992)
foi composto por 104 questões, organizadas sob as 5 dimensões básicas, com 8 elementos sendo mensurados. Já o TSI-R2 (2007), última de suas versões, é um teste de
autorrelato composto por 65 questões (posteriormente classificadas em três tipos), no
qual cada um dos 13 estilos de pensamento é avaliado por 5 afirmações, sendo elas relativas ao modo de realizar tarefas; cada uma delas classifica os participantes em uma
escala Likert que vai de 1 a 7 pontos, na qual 1 indica que a afirmação não descreve de
jeito nenhuma a maneira como eles realizam as tarefas e 7 denota que ela caracteriza
extremamente bem o modo como normalmente as realizam:
(1) de jeito nenhum, (2) não muito bem, (3) um pouco, (4) bem de alguma forma, (5)
bem, (6) muito bem, (7) extremamente bem.
Essa versão é a mais geral e tem sido usada com variadas populações, além de ter
sido validada em muitos estudos, conduzidos em diferentes culturas, a saber:
[...] estudantes, professores, pais e outros adultos de diversas áreas profissionais” [...] nos Estados Unidos (GRIGORENKO; STERNBERG, 1997), na Espanha
(CANO-GARCIA; HUGHES, 2000); na China continental (ZHANG; SACHS, 1997);
na Coreia (PARK, PARK; CHOE, 2005); na Noruega (FJELL; WALHOVD, 2004); na
Turquia (FER, 2005); e no Reino Unido (ZHANG; HIGGINS, 2008) (ZHANG; STERNBERG, 2009b, p. 68).
No estudo de Fer (2005), o coeficiente alfa de Cronbach11 da medida apresentou 0,90 em todas as 104 substâncias, e os valores das submedidas esteve entre 0,62
e 0,9012. Sünbül (2004) calculou os coeficientes de confiabilidade13 alfa de Cronbach
das submedidas entre 0,709 e 0,854; nessa pesquisa, o coeficiente confiável total de
Cronbach Alpha media 0,92, e as subdimensões da confiabilidade do alfa de Cronbach
da medida variavam entre 0,61-0,91. Ao observar esses resultados, podemos dizer que
a medida é confiável.
Segundo Romera (2018, p. 399), “o TSI-R2 está entre as ferramentas mais conceituadas para explorar e classificar estilos de pensamento na educação. Mediante esse
11
Em 1951, Lee J. Cronbach apresentou o coeficiente alfa como ferramenta para estimar o quão confiável é um questionário aplicado em
pesquisa, do seguinte modo: “O alfa ( ) mede a correlação entre respostas em um questionário por meio da análise do perfil das respostas dadas
pelos respondentes. Trata-se de uma correlação média entre perguntas. Dado que todos os itens de um questionário utilizam a mesma escala de
medição, o coeficiente alfa é calculado com base na variância dos itens individuais e na variância da soma dos itens de cada avaliador.” (HORA, H.;
TORRES, G.; ARICA, 2010, p. 89).
12
Geralmente a consistência interna utilizando o coeficiente de confiabilidade alfa de Cronbach considera que o intervalo ideal de valores
alfa esteja entre 0,7 e 0,9.
13
“A confiabilidade – ou fidedignidade – é a capacidade de reproduzir um resultado de modo consistente no tempo e no espaço, ou por
meio de observadores diferentes, indicando aspectos sobre coerência, precisão, estabilidade, equivalência e homogeneidade. Trata-se de um dos
critérios principais de qualidade de um instrumento. A confiabilidade refere-se, principalmente, a estabilidade, consistência interna e equivalência de uma medida. É importante ressaltar que a confiabilidade não é uma propriedade fixa de um questionário. Pelo contrário, a confiabilidade
depende da função do instrumento, da população em que é administrado, das circunstâncias, do contexto; ou seja, o mesmo instrumento pode
não ser considerado confiável segundo diferentes condições. Estimativas de confiabilidade são afetadas por diversos aspectos do ambiente de
avaliação (avaliadores, características da amostra, tipo de instrumento, método de administração) e pelo método estatístico utilizado. Portanto,
os resultados de uma pesquisa utilizando instrumentos de medida só podem ser interpretados quando as condições de avaliação e a abordagem
estatística são apresentadas de maneira clara. A confiabilidade refere-se a quão estável, consistente ou preciso é um instrumento. A escolha dos
testes estatísticos usados para avaliar a confiabilidade pode variar, dependendo do que se pretende medir.” (SOUZA; ALEXANDRE; GUIRARDELLO,
2017, p. 650).
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instrumento, os estilos especificados configuram cinco dimensões”. Ele produz um arquivo de estilos para cada indivíduo, em vez de identificar um único estilo. Após o processamento e a análise, é possível obter um panorama bastante amplo, embora plástico,
por serem os estilos passíveis de transformação ao longo da vida, o que pode dar pistas
para resolução de problemas ao sinalizar possibilidades de adaptações a situações em
que ocorrem dificuldades de aprendizado, por exemplo, ou de relacionamentos interpessoais em determinados grupos de estudo e trabalho.
Suas versões anteriores – o TSI (STERNBERG; WAGNER, 1992) e o TSI-R (STERNBERG, WAGNER; ZHANG, 2003) – apresentaram confiabilidade e validade14 aceitáveis
em estudos aplicados em diferentes culturas (ZHANG; HIGGINS, 2008; ZHANG; STERNBERG, 2006), exceto para a escala anárquica, com confiabilidade relativamente baixa.
Com a consistência interna da escala anárquica aprimorada, a versão mais recente (o
TSI-R2) do inventário foi aplicada no contexto chinês (ZHANG, 2009, 2010). Os coeficientes da consistência interna em suas 13 escalas foram demonstrados e verificou-se
que os de quatro escalas estavam abaixo de 0,70, mas ainda perto desse número (variando de 0,67 a 0,69). De acordo com o limite mínimo de consistência interna e dado
o pequeno número de itens (cinco itens) em cada escala, esses dados são considerados
aceitáveis (FAN; ZHANG, 2014b).
No estudo de Fan (2016), em razão da língua materna dos participantes (estudantes da China), foi adotada a versão chinesa do TSI-R2, que passou pelo procedimento de
tradução dos originais e retrotradução15, e apresenta confiabilidade e validade suportadas em estudos anteriores (ZHANG, 2009, 2010). Nesse estudo observou-se que:
[...] os coeficientes alfas de Cronbach das 13 subescalas variaram de 0,63 a 0,86.
As análises posteriores sugeriram que, em cada subescala, um item poderia ser
excluído para aumentar a confiabilidade. Isso porque 9 das 13 subescalas apresentaram cada uma um item com cargas fatoriais baixas na Análise Fatorial Confirmatória (AFC) e 4 delas, um item em cada com cargas fatoriais abaixo de 0,60
– e a exclusão desses quatro itens menosprezados influenciou os coeficientes
alfa de Cronbach (0,01-0,02). Assim, com base no princípio da parcimônia16, os
13 itens (1 em cada uma das 13 subescalas) foram excluídos. As estimativas da
consistência interna das 13 subescalas simplificadas foram de 0,64 a 0,88. O AFC
também mostrou que os dados se encaixam bem no modelo de 13 fatores dos
estilos de pensamento. (FAN, 2016, p. 67).
14
“A validade refere-se ao fato de um instrumento medir exatamente o que se propõe a medir. Ressalta-se que a validade não é uma
característica do instrumento e deve ser determinada com relação a uma questão particular, uma vez que se refere a uma população definida.”
(SOUZA; ALEXANDRE; GUIRARDELLO, 2017, p. 652).
15
“No que preconiza a International Test Comission - ITC (2010), estão descritas etapas para que se realize a adaptação de instrumentos para contextos diferentes, quais sejam, a tradução do instrumento para o contexto nacional, a retrotradução para a língua original” (Oliveira,
Santos e Inácio, 2018 p.124), entre outros procedimentos, como a avaliação do instrumento pelo público-alvo, o estudo piloto e a análise da
estabilidade da estrutura.” (OLIVEIRA; SANTOS; INÁCIO, 2018).
16
“O princípio da parcimônia é um elemento basilar da metodologia científica que pressupõe a simplicidade, o uso de premissas ou
hipóteses estritamente necessárias para a explicação de um fenômeno ou teoria. Dessa eliminação de conceitos supérfluos, resultam diretrizes
operacionais que não só simplificam o processo de estruturação do conhecimento científico, permitindo obter conclusões pertinentes, como
também aperfeiçoam o método de diagnóstico – por exemplo, na prática da clínica médica.” (FERREIRA, 2010).
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Para Cassidy (2012, p. 74 apud CURRY, 2006), “É fundamental que as propriedades
psicométricas das medidas de estilo sejam aceitáveis, ou no mínimo consideradas, e
que suas limitações sejam reconhecidas no contexto particular do estudo”.
Razavi (2001, p. 5) adverte que a aplicação incorreta da avaliação do autorrelato
representa perigo. Com relação ao assunto, Cassidy (2012, p. 74) afirma:
[...] a extensa revisão sistemática de Coffield et al. (2004) de várias medidas familiares e influentes de estilo fornecem um recurso valioso no contexto da medição
de estilo, pois se centra na revisão e na avaliação detalhadas das propriedades
psicométricas dos 13 fatores selecionados. Nela foi examinada a confiabilidade e
a validade deles por meio dos principais índices psicométricos de confiabilidade:
teste-reteste, consistência interna, validade de construção e validade preditiva.
Sobre o teste-reteste, trata-se do “cálculo da correlação entre os escores de um
mesmo sujeito, no mesmo teste, em duas ocasiões diferentes; ou seja, aplica-se o teste
em um sujeito e, tempos depois, reaplica-se, a fim de comparar os dois testes e ver se
eles apontaram os mesmos escores” (ANASTASI; URBINA, 2000, p. 84). Já a consistência
interna, segundo esses autores, baseia-se na correlação entre diferentes itens de um
teste, com a proposta de aferir se o mesmo construto geral produz resultados semelhantes. Quanto à validade preditiva, trata-se de um aspecto da validade que busca relações entre o desempenho em um teste e outros fatores, independentemente de serem
observáveis no comportamento, de modo que se possa estabelecer a probabilidade de
ocorrência deste em razão dos resultados do teste.
De acordo com Vianna (1983, p. 36):
A constatação da validade de construto resulta do acúmulo, por diferentes meios,
de várias provas, que precisam ser analisadas em todos os seus detalhes, a fim de
constatar, entre outros aspectos, quais as variáveis com as quais os escores do
teste se correlacionam, quais os tipos de itens que integram o teste, o grau de
estabilidade dos escores sob condições as mais variadas e o grau de homogeneidade do teste, com vistas a ter elementos que possam esclarecer o significado
do instrumento.
Portanto, a chamada verificação da validade de construto é importante sempre
que um instrumento deva ser interpretado ao proporcionar medidas de um atributo ou
uma qualidade que, presumivelmente, as pessoas possuem.
METODOLOGIA, ANÁLISE E RESULTADOS
O processo de adaptação de um instrumento já existente, em detrimento da
elaboração de um novo instrumento, específico para a população-alvo, possui
vantagens consideráveis. Ao adaptar um instrumento, o pesquisador é capaz de
comparar dados obtidos em diferentes amostras, de diferentes contextos, permitindo uma maior equidade na avaliação, uma vez que se trata de uma mesma
medida, que avalia o construto a partir de uma mesma perspectiva teórica e
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metodológica. Entende-se que a utilização de instrumentos adaptados permite uma maior capacidade de generalização e permite, também, a investigação
de diferenças entre uma crescente população diversificada (BORSA; BANDEIRA,
2012, p. 423).
Com o propósito de atender ao objetivo de buscar evidências da validade de adaptação e semântica do Inventário de Estilos de Pensamento-Revisado 2 - TSI-R2 (STERNBERG, WAGNER; ZHANG, 2007) para a cognição musical com alunos licenciandos em
música, a seguir, temos a metodologia utilizada, assim como a análise e o resultado dos
dados. Quando se adapta um instrumento psicométrico a um determinado contexto, é
importante seguir algumas etapas, a fim de que ele continue a mensurar os itens para
os quais foi construído e, ainda, seja relevante à área para a qual foi adaptado (BORSA;
BANDEIRA, 2012). Neste estudo, relataremos como o TSI-R2 está sendo adaptado para
a cognição musical no Brasil.
O estudo de Oliveira, Santos e Inácio (2018) traduziu, adaptou e analisou evidências de validade do conteúdo do TSI-R2 para o contexto brasileiro, disponibilizando ao
país uma medida de estilos intelectuais utilizada em âmbito mundial. Com base nesse
instrumento traduzido, no presente estudo adaptamos o instrumento para a cognição
musical – público-alvo, licenciandos em música –, buscando uma validação dessa proposta referente a seu conteúdo semântico para a área, no Brasil.
Em primeiro lugar, adaptamos parte das 65 questões do inventário – 37 delas –, incluindo perguntas e vocábulos usuais da prática e do estudo da música, a saber: repertório/obra musical, performance, execução, estilo/gênero musical. As demais questões
do inventário, em número de 28, não sofreram alterações porque consideramos a apresentação original da sentença como representativa para a área. Para o início do processo de validação semântica, enviamos o instrumento original e o adaptado para três
juízes com idade entre 35 e 49 anos, graduados em Letras e com mestrado e doutorado
em Linguagem, independentes, professores universitários atuantes, a fim de que eles
pudessem efetuar dois julgamentos: primeiro, se as sentenças alteradas preservavam a
estrutura da questão original e, segundo, se possuíam algum erro da língua portuguesa.
Mediante essa avaliação por juízes es¬pecialistas linguistas, alguns itens do TSI-R2 adaptado sofreram adequações em sua formulação, como demonstramos no
exemplo a seguir.
Item 18:
Eu me importo mais com a ideia geral de uma tarefa que tenho que fazer do que
sobre os detalhes da mesma. – Item original
Eu me importo mais com a ideia geral de uma performance que tenho que fazer
do que sobre os detalhes da mesma. – Item adaptado
Eu me importo mais com a ideia geral de uma performance que tenho de fazer
do que com os detalhes dela. – Item após julgamento dos linguistas
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Em seguida, para avaliação do conteúdo dos itens nas dimensões representativas
deles, submetemos o material a cinco juízes da área da Música, sendo estes doutores,
com idade entre 32 e 57 anos, com formação em Música na graduação e mestrado e
doutorado também em Música ou áreas afins, independentes, professores universitários de diferentes universidades nos cursos de Música, especialistas das subáreas da
música – Performance, Educação Musical e Percepção constituíram juízes da representatividade do construto para a área da Música em geral. Para todos os juízes da área da
Música, apresentamos o instrumento com a seguinte introdução:
Por gentileza, analise se as questões a seguir têm sentido para os discentes da área de Música
no ensino superior, assinalando se concorda ou não.
( ) Sim, concordo. ( ) Não concordo.
Por meio das devolutivas dos juízes, elaboramos o Apêndice A - “Tabela 1 - Índice de concordância entre os juízes da Música”. Conforme a Tabela 1, das 65 questões
submetidas à criteriosa avaliação dos juízes, em relação à concordância entre eles: 24
obtiveram 100%; 34 alcançaram 80%; 5 chegaram a 60%; e apenas 1 item obteve 40%.
Nessa etapa, cada juiz adotou uma postura diversa ao olhar o instrumento, como é possível observar na tabela 1 – a título de exemplo, o Juiz 1 concordou com todos os itens
adaptados e, por outro lado, o Juiz 2 não concordou com 20 itens. Concluída essa etapa, foram descartadas as questões com menos de 80% de concordância entre os juízes,
conforme prevê a literatura (PRIMI et al., 2009). Desse modo, para a análise do próximo
júri, descartamos os itens 24, 30, 51, 54, 58.
Na etapa seguinte, o instrumento foi enviado a três juízes com idade entre 33 e 41
anos, graduados em Música (um com mestrado e doutorado em Psicologia e dois com
mestrado e doutorado em Música na linha de Cognição Musical), independentes, professores de cursos de graduação em Música de universidades distintas e pesquisadores
na área de Cognição Musical, sendo dois deles docentes em programas de pós-graduação stricto sensu de diferentes universidades.
No que preconiza a International Test Comission - ITC (2010), essa etapa é primordial, pois nela o construto é analisado por especialistas na área para a qual foi adaptado. Esses juízes foram convidados a balizar os itens quanto à representatividade para a
Cognição Musical, marcando se concordam ou discordam com os itens propostos da
mesma maneira que os juízes da Música procederam, mas sob uma ótica mais específica – a da cognição musical. É importante salientar que enviamos o construto para os
experts somente com o texto adaptado, diferentemente do ocorrido na avaliação dos
linguistas e doutores em Música, que tinham o instrumento original e o adaptado; isso
aproximou o leitor da versão final.
Por meio das devolutivas desses juízes, elaboramos o Apêndice B - “Tabela 2 - Índice de concordância entre os juízes da Cognição Musical”. De acordo com a Tabela
2, das 60 questões analisadas, 15 obtiveram 100% de concordância entre os juízes, 29
alcançaram 67% de concordância e, 15 delas, 33%. Ao observar esses números, pode-
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mos notar que, ao passar pelo critério dos juízes da área proposta para a adaptação, o
rigor no julgamento foi maior, provavelmente pela especificidade da área. Nesse caso, é
importante colocarmos que, como os juízes da Cognição Musical eram em número de
três, o limiar de possível corte foi de 67% de concordância entre eles, diferentemente do
ocorrido na avaliação dos primeiros juízes, doutores em Música (em número de cinco),
em que o percentual de 80% foi o limiar para um possível descarte de item. Assim, após
essa etapa, foram descartadas as questões com menos de 67% de concordância. Portanto, conforme a Tabela 2, para a próxima fase foram excluídos os itens: 01, 06, 07, 16,
20, 35, 40, 44, 48, 52, 59 e 62.
Na fase seguinte de verificação, enviamos o instrumento a cinco alunos de Licenciatura em Música, sendo um do quarto ano, dois do segundo, três do terceiro e um do
primeiro ano – todos eles estudantes de instituição participante da pesquisa, de acordo
com aprovação pelo Comitê de Ética responsável. Esses graduandos receberam o instrumento sem os itens excluídos nas fases antecedentes, sendo então 47 itens a avaliar,
com a seguinte orientação:
Peço, por gentileza, que você leia cada questão e, caso não compreenda alguma(s) delas,
marque-a(s) com um x. Eu não estou questionando se você é a favor ou contra, mas se você
compreendeu a sentença. Não precisa responder no texto, só assinale com x aquelas que
você não entendeu.
Com a devolutiva dos alunos, compusemos o Apêndice C “Tabela 3 – Índice de
Entendimento de Graduandos em Música”. Conforme a Tabela 3, das 48 questões analisadas, no que diz respeito ao entendimento entre os estudantes: 38 obtiveram 100%;
6 alcançaram 80%, 2 chegaram a 60% e 1 obteve 20%. Após essa etapa, descartamos
as questões com menos de 80% de entendimento. Portanto, para futura realização de
um estudo-piloto, a fim de evidenciar a validade no contexto brasileiro, descartamos os
itens 21, 36 e 59. De modo geral, os graduandos demonstraram entender o que estava
sendo perguntado no item e não fizeram questionamentos quando receberam o instrumento ou na devolução deles. Na sequência, apresentamos um quadro exemplificando
cada estilo com um item adaptado.
ESTILO INTELECTUAL
EXEMPLO DE ITEM DO INSTRUMENTO
LEGISLATIVO
Quando encontro um problema em um novo repertório,
utilizo as minhas ideias e estratégias para resolvê-lo.
EXECUTIVO
Sou cuidadoso(a) em usar um modo adequado para resolver qualquer problema em novo repertório.
JUDICIAL
Eu gosto de verificar e avaliar diferentes pontos de vista
(sobre algo).
GLOBAL
Eu me importo mais com a ideia geral de uma performance que preciso fazer do que com os detalhes dela.
LIBERAL
Eu prefiro desafios novos a ideias antigas, gosto de buscar
formas diferentes e melhores de fazer coisas.
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CONSERVADOR
Eu gosto de obras musicais nas quais eu posso seguir padrões definidos.
HIERÁRQUICO
Eu gosto de listar as coisas mais importantes que preciso
fazer antes de começar a fazê-las.
MONÁRQUICO
Se há diversas músicas importantes para tocar, eu foco na
obra musical mais importante para mim e ignoro o resto.
OLIGÁRQUICO
Ao discutir ou escrever sobre um estilo/gênero musical, eu
fico com os pontos de vista aceitos por meus colegas.
ANÁRQUICO
Eu tendo a dar atenção a todas as performances nas quais
estou envolvido.
INTERNO
Eu gosto de controlar todas as fases do estudo da performance sem ter que consultar outras pessoas.
EXTERNO
Eu gosto de participar de atividades musicais nas quais posso interagir com outras pessoas como parte de uma equipe.
Quadro de exemplos de itens por estilo.
Construir um instrumento novo seria um processo mais oneroso do que adaptar
um já existente. Outra vantagem da adaptação é a possibilidade de comparar dados
obtidos com outras amostras, de diferentes contextos, fornecendo maior amplitude ao
estudo (BORSA, 2012; OLIVEIRA; SANTOS, 2018). Desse modo:
A opção pelo estudo do TSI-R2 se deve ao fato de sua vantagem em mensurar
tanto os estilos intelectuais quanto os estilos de aprendizagem, visto que segundo a Theory of Mental Self-Government os estilos de aprendizagem estariam
contemplados dentro da dimensão maior dos estilos intelectuais, isso porque o
termo “estilos intelectuais” tem sido considerado o mais completo teoricamente, sendo utilizado como um termo “guarda-chuva” que engloba as demais terminologias anteriormente empregadas, dentre elas, os estilos de aprendizagem.
(OLIVEIRA; SANTOS, 2018, p. 128).
Submetemos o instrumento adaptado à avaliação dos juízes especialistas em três
etapas e, posteriormente, em uma quarta etapa, a graduandos pertencentes ao público-alvo. Em todas as fases, os juízes especialistas receberam o inventário por e-mail.
Acerca da compreensão linguística do construto, submetemos o texto integral traduzido para o português (OLIVEIRA; SANTOS, 2018) e, no mesmo material, escrevemos as
adaptações dos itens que sofreram alguma alteração. Nessa fase, o linguista pôde emitir
opiniões e corrigir erros nas sentenças propostas. Diferentemente, nas duas etapas seguintes, os juízes das áreas de Música e da Cognição Musical preencheram o formulário
apenas concordando ou discordando de cada item. Após esses procedimentos, aplicamos o instrumento a um grupo de cinco alunos, graduandos de Licenciatura em Música,
de uma mesma instituição de todos os anos do seu curso.
Para efetivar a análise dos dados do julgamento dos juízes especialistas, empregamos a estimativa do índice de concordância (IC) obtida entre os avaliadores independentes. Assim, como critério para que o item fosse considerado satisfa¬tório, adotamos
o percentual de concordância de 80% para as avaliações com cinco juízes e de 67% para
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três juízes, como critério para estabelecermos a pertinência do item com base em Primi,
Muniz e Nunes (2009).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após passar por adaptação e um criterioso processo de validação semântica, foi
possível submetermos o TSI-R2, efetivamente, a um processo de validação para a Cognição Musical com discentes licenciandos em Música, visto que seu construto foi preservado mesmo com a eliminação de itens durante a pesquisa. Os objetivos propostos
foram alcançados, pois comprovamos que o TSR-2 adaptado à área de Música está
metodologicamente coerente com as normas internacionais de adaptação e validação
de instrumentos.
Estamos propondo a adaptação do THINKING STYLES INVENTORY – REVISED II
(TSI-R2) para o ensino superior em Música, especificamente para as licenciaturas, porque a grande parte dos alunos das graduações em Música no Brasil é de licenciandos.
Salientamos que o instrumento original já foi testado no ensino superior em alguns
países, com contextos diferentes. Dessa forma, como se trata de um instrumento originalmente validado e com evidências de validade no Brasil para o ensino superior, depreende-se que poderá ser aplicado com estudantes de qualquer série da graduação.
Esse inventário serve para mostrar as preferências dos estudantes no processamento das informações independente da área, a qualquer momento. Certamente que, de
acordo com os referenciais, conforme a maturação do estudante, poderá ter resultados
diferentes ao longo dos anos. Em Música, nós não temos instrumentos válidos para
avaliar ou auxiliar na avaliação de nossos estudantes nas licenciaturas. Baseando-nos
nos estilos de pensamento dos estudantes, poderemos traçar, no futuro, linhas com
bases cognitivas para avaliações dos estudantes segundo seus estilos. Além disso, será
possível planejar tanto as aulas e as atividades quanto as avaliações de acordo com o
perfil de cada grupo. Esta proposta fornece suporte ao docente em Música, que muitas
vezes emprega elementos subjetivos exclusivamente na concepção de sua avaliação;
ao discente, oferece uma possibilidade de ser avaliado de maneira mais personalizada.
Por meio dos estilos, que, como já tratamos neste texto, não são bons ou ruins, um leque se abre para entendermos o perfil de nossos alunos, não pelos meios dicotômicos
com os quais geralmente as instituições e alguns professores balizam suas percepções
dos alunos, mas pela utilização de um instrumento próprio, amplo e direcionado.
Ao consideramos que o discente sabe como se organizam seus processos para o
aprendizado, podemos pensar em estratégias melhores. Assim, será melhor seu desempenho do conteúdo que está sendo apresentado – tanto nos estilos em que ele tenha
maior pontuação e possa se privilegiar nessa forma de procedimento, quanto nos itens
em que ele obtém menor pontuação, visto que estes poderão ser otimizados para que
se alcance um melhor modo de trabalhar. Por exemplo: temos o trabalho individual fortemente utilizado no estilo interno e o trabalho em grupo como preferência característica do estilo externo. No que tange ao aluno com estilo interno, este tende a responder
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muito pouco em atividades em grupo; porém, se esse sujeito tem esse conhecimento
sobre seu modo de agir, pode enfatizar suas peculiaridades de executar tarefas sozinho,
além de buscar desenvolver práticas e estratégias para suas atividades em grupo. Assim,
o conhecimento dos estilos intelectuais de um determinado segmento ou de um sujeito não é um instrumento para rotular o indivíduo ou determinar a categoria em que
se encaixa, simplesmente, mas para auxiliá-lo em sua vida escolar e profissional. Precisamos considerar que estamos tratando de pessoas em processo de aprendizado. Essa
perspectiva vai impactar os alunos, os professores e a própria direção acadêmica. Sabemos que o licenciando é um professor em formação, concluímos que ele é um futuro
educador musical, que de posse desse cabedal de conhecimento de estilos, poderá agir
de maneira mais eficaz. Além disso, mesmo enquanto alunos de licenciatura, se forem
submetidos a um levantamento de estilos no primeiro ano do curso, os discentes certamente terão uma percepção mais refinada de si mesmos em razão do entendimento e
talvez prática desses estilos – ou seja, haverá uma profícua aprendizagem que, de acordo com o perfil que ele apresenta para aprender, otimiza ou/e privilegia o estudante e
futuro educador musical.
Nesta pesquisa, visamos à busca de evidências de validade de conteúdo e semântica para que o instrumento em questão fosse aplicado na amostra total, que trará contribuições mais robustas por meio das análises fatoriais confirmatórias e exploratórias,
de modo que, ao apresentar a versão final do instrumento para a área de Música, talvez
excluiremos algumas informações conforme a análise. Cabe destacarmos que o presente estudo se trata de uma etapa preliminar e que a coleta com a amostra mais representativa está em andamento com discentes de universidades brasileiras.
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APÊNDICE A - “Tabela 1 - Índice de concordância entre os juízes da Música”
Tabela 1 - Índice de concordância entre os juízes da Música (*)
ESTILO
Item
Legislativo
Executivo
Judicial
Global
Local
Liberal
Conservador
Sérgio Inácio Torres, Graziela Bortz
Katya Luciane de Oliveira
J1
J2
J3
J4
J5
% de Concordância
5
C
NC
C
C
C
80
10
C
C
C
NC
C
80
14
C
C
C
C
C
100
32
C
C
C
C
C
100
49
C
C
C
C
C
100
8
C
C
C
C
C
100
11
C
C
C
C
NC
100
12
C
C
C
C
C
100
31
C
C
C
C
C
100
39
C
NC
C
C
C
80
20
C
C
C
C
C
100
23
C
C
C
C
C
100
42
C
C
C
C
C
100
51
C
NC
NC
C
C
60
57
C
C
C
C
C
100
7
C
NC
C
C
C
80
18
C
C
C
NC
C
80
38
C
C
NC
C
C
80
48
C
NC
C
C
C
80
61
C
NC
C
C
C
80
1
C
C
C
C
C
100
6
C
C
C
C
C
100
24
C
NC
NC
C
C
60
44
C
NC
C
C
C
80
62
C
C
C
C
NC
80
45
C
NC
C
C
C
80
53
C
C
C
C
NC
80
58
C
NC
NC
C
C
60
64
C
C
C
C
C
100
65
C
C
C
NC
C
80
22
C
C
NC
C
C
80
26
C
C
C
C
C
100
28
C
NC
C
C
C
80
36
C
NC
C
C
C
80
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REVISED II (TSI-R2) PARA AS LICENCIATURAS EM MÚSICA NO BRASIL
ESTILO
Item
Hierárquico
Monárquico
Oligárquico
Anárquico
Interno
Externo
J1
J2
J3
J4
J5
% de Concordância
4
C
C
C
C
C
100
1
C
C
C
C
C
100
33
C
C
NC
C
C
80
25
C
NC
C
C
C
80
56
C
C
NC
C
C
80
2
C
C
C
C
C
100
43
C
C
NC
C
C
80
50
C
C
C
C
C
100
54
C
C
C
NC
NC
60
60
C
C
C
C
NC
80
27
C
C
C
C
C
100
29
C
NC
C
C
C
80
30
C
NC
NC
NC
C
40
52
C
C
NC
C
C
80
59
C
C
C
C
C
100
16
C
C
NC
C
C
80
21
C
NC
C
C
C
80
35
C
C
NC
C
C
80
40
C
C
NC
C
C
80
47
C
NC
C
C
C
80
9
C
NC
C
C
C
80
15
C
C
C
C
C
100
37
C
C
NC
C
C
80
55
C
NC
C
C
C
80
63
C
C
C
NC
C
80
3
C
C
C
C
C
100
17
C
C
C
NC
C
80
34
C
C
C
C
C
100
41
C
NC
C
C
C
80
46
C
C
C
C
C
100
(*) C = Concorda; NC = Não concorda.
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APÊNDICE B – Tabela 2 - Índice de concordância entre os juízes da Cognição Musical (*)
Tabela 2 - Índice de concordância entre os juízes da Cognição Musical (*)
ESTILO
Legislativo
Executivo
Judicial
Item
J1
J2
J3
% de Concordância
5
C
NC
C
67
10
NC
C
C
67
14
C
C
C
100
32
C
C
C
100
49
C
C
C
100
8
C
C
C
100
11
NC
C
C
67
12
C
NC
C
67
31
NC
C
C
67
39
C
C
C
100
20
NC
NC
C
33
23
NC
C
C
67
42
NC
C
C
67
57
C
NC
C
67
7
NC
NC
C
33
18
C
C
C
100
38
NC
C
C
67
48
NC
NC
C
33
61
NC
C
C
67
1
NC
NC
C
33
6
NC
NC
C
33
44
NC
NC
C
33
62
NC
NC
C
33
45
NC
C
C
67
53
C
C
C
100
64
NC
C
C
67
65
NC
C
C
67
22
NC
C
C
67
26
C
C
C
100
28
NC
C
C
67
36
NC
C
C
67
51
Global
Local
24
Liberal
58
Conservador
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ESTILO
Hierárquico
Monárquico
Item
J1
J2
J3
% de Concordância
4
NC
C
C
67
1
NC
NC
C
33
33
C
C
C
100
25
NC
C
C
67
56
NC
C
C
67
2
NC
C
C
67
43
NC
C
C
67
50
C
C
C
100
60
NC
C
C
67
27
C
C
C
100
29
NC
C
C
67
54
Oligárquico
30
Anárquico
Interno
Externo
52
NC
NC
C
33
59
NC
NC
C
33
16
NC
NC
C
33
21
NC
C
C
67
35
C
NC
NC
33
40
C
NC
C
67
47
NC
NC
C
33
9
C
NC
C
67
15
C
C
C
100
37
C
C
C
100
55
NC
C
C
33
63
C
C
C
100
3
C
NC
C
67
17
C
NC
C
67
34
C
C
C
100
41
C
C
C
100
46
NC
C
C
67
(*) C = Concorda; NC = Não concorda.
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ADAPTAÇÃO E VALIDAÇÃO SEMÂNTICA DO THINKING STYLES INVENTORY –
REVISED II (TSI-R2) PARA AS LICENCIATURAS EM MÚSICA NO BRASIL
APÊNDICE C – Tabela 3 – Índice de entendimento de graduandos em Música (*)
Tabela 3 – Índice de entendimento de graduandos em Música (*)
ESTILO
Legislativo
Executivo
Judicial
Item
Equivalente
A1
A2
A3
A4
A5
% de Entendimento
5
4
E
E
E
E
E
100
10
7
E
E
E
E
E
100
14
11
E
E
E
E
E
100
32
25
E
E
E
E
E
100
49
38
E
E
E
E
E
100
8
5
E
E
E
E
E
100
11
8
E
E
E
E
E
100
12
9
E
NE
E
E
E
80
31
24
E
E
E
E
E
100
39
31
NE
E
E
E
E
80
23
18
E
E
E
E
E
100
42
34
E
E
E
E
E
100
43
E
E
E
E
E
100
18
14
NE
E
E
E
E
80
38
30
NE
E
E
E
E
80
46
E
NE
E
E
E
80
45
36
E
E
E
E
E
100
53
40
E
E
E
E
E
100
64
48
E
E
E
E
E
100
65
49
E
E
E
E
E
100
22
17
E
E
E
E
E
100
26
20
E
E
E
E
E
100
20
51
57
Global
7
48
61
Local
1
6
24
44
62
Liberal
58
Conservador
28
22
E
E
E
E
E
100
36
28
NE
NE
E
E
E
60
Sérgio Inácio Torres, Graziela Bortz
Katya Luciane de Oliveira
ORFEU, v.5, n.2, 2020
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ADAPTAÇÃO E VALIDAÇÃO SEMÂNTICA DO THINKING STYLES INVENTORY –
REVISED II (TSI-R2) PARA AS LICENCIATURAS EM MÚSICA NO BRASIL
ESTILO
Hierárquico
Item
Equivalente
A1
A2
A3
A4
A5
% de Entendimento
4
3
E
E
E
E
E
100
33
26
E
E
E
E
E
100
25
19
E
E
E
E
E
100
56
42
E
E
E
E
E
100
2
1
E
E
E
E
E
100
43
35
E
E
E
E
E
100
50
39
E
E
E
E
E
100
60
45
E
E
E
E
E
100
27
21
E
E
E
E
E
100
29
23
E
E
E
E
E
100
59
44
NE
NE
E
E
E
60
21
16
NE
NE
NE
E
NE
20
32
E
E
E
E
E
100
9
6
E
E
E
E
E
100
15
12
E
E
E
E
E
100
37
29
E
E
E
E
E
100
55
41
E
E
E
E
E
100
63
47
NE
E
E
E
E
80
1
Monárquico
54
Oligárquico
30
52
Anárquico
35
40
47
Interno
Externo
3
2
E
E
E
E
E
100
17
13
E
E
E
E
E
100
34
27
E
E
E
E
E
100
41
33
E
E
E
E
E
100
46
37
E
E
E
E
E
100
(*) E = Entendeu; NE = Não entendeu.
Sérgio Inácio Torres, Graziela Bortz
Katya Luciane de Oliveira
ORFEU, v.5, n.2, 2020
P. 39 de 39
10.5965/2525530405022020e0014
A música sacra no reinado de
Leopoldo I (1658-1705)1
Sacred music in Leopold I’s reign
Caio Amadatsu Griman2
Universidade Estadual Paulista - UNESP
caiogriman@gmail.com
Dorotéa Machado Kerr3
Universidade Estadual Paulista - UNESP
dorotea.kerr@unesp.br
Submetido em 03/10/2020
Aprovado em 07/12/2020
ORFEU, v.5, n.2, 2020
P. 1 de 19
10.5965/2525530405022020e0014
Resumo
Quando Leopoldo I foi coroado imperador do Sacro Império Romano-Germânico, em 1658, a maior parte da Europa
ainda estava em processo de recuperação econômica decorrente da chamada
“crise geral do século XVII”. Dentro deste contexto, coube a Leopoldo e aos demais membros da Casa de Habsburgo a
tarefa de reorganização e de solidificação
do absolutismo na Áustria. Para tal fim, o
imperador encontrou na música sacra
uma ferramenta eficaz de convencimento,
propaganda e exibição do poder imperial.
Neste trabalho procuramos demonstrar o
papel das produções musicais ligadas às
atividades da Contrarreforma no reinado
de Leopoldo I. Inicialmente, discorremos
acerca da criação religiosa de Leopoldo,
assim como sobre seu interesse particular
pela música e pela composição. Em seguida, examinamos a influência da imperatriz
viúva Leonor de Gonzaga-Nevers (madrasta de Leopoldo I) para o desenvolvimento
da música austríaca, principalmente em
relação à sua participação no estabelecimento do sepulcro em Viena.
Abstract
When Leopoldo I was crowned emperor of the Holy Roman Empire in 1658,
most of Europe was still in the process of
economic recovery due to the so-called
“general crisis of the 17th century”. Therefore, Leopoldo and the other members of
the House of Habsburg were tasked with
the reorganization and solidification of
absolutism in the Austrian domains. To this
end, the emperor found in sacred music
an effective tool for convincing, advertising and displaying imperial power. This
article aims to show the role of musical
productions linked to the activities of the
Counter-Reformation in Leopoldo I's reign.
Initially, will be examined Leopoldo's religious education, as well as his particular
interest in music and composition. There
follows a discussion about the influence of
the widowed empress Leonora de Gonzaga-Nevers (Leopoldo I's stepmother) in the
development of Austrian music, mainly in
relation to her participation in the establishment of the sepulcro in Vienna.
Keywords: Sacred music; Counter
Reformation; Leopold I; Vienna; Austria.
Palavras-chave: Música sacra; Contrarreforma; Leopoldo I; Viena; Áustria.
1
Este trabalho foi realizado com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - Fapesp (processo nº
2019/12280-4). As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da Fapesp.
2
Graduando no curso de Bacharelado em Composição na Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e desenvolve o
supra citado projeto de iniciação de científica sob orientação de Dorotéa Machado Kerr, Professora Adjunta (Livre-docente II) do Instituto de Artes
da UNESP, Departamento de Música.
3
Professora Adjunta do Instituto de Artes da UNESP, Departamento de Música. Livre-docente II em Instrumento Órgão e História da
Música pela Universidade Estadual Paulista UNESP. Doutorado em Música/Órgão pela Indiana University (1989), Estados Unidos. Na UNESP foi
Coordenadora do Programa de Pós-graduação em Música do IA/UNESP de 2002-2007, Presidente da Comissão de Pesquisa do Instituto de Artes
da UNESP e Membro do Comitê Central PIBIC/CNPq da UNESP. Foi presidente da Associação Brasileira de Organistas 2015-2018. Foi bolsista PQ2
do CNPQ de 2010 a 2013; e de 2013 a 2016.
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A música sacra no reinado de Leopoldo I (1658-1705)
Introdução
O século XVI foi marcado por inúmeras transformações que alteraram profundamente o desenvolvimento da Europa. O advento do protestantismo, em especial, acabou
gerando grandes tensões em praticamente todo o continente. Dentro deste contexto,
os membros da Casa de Habsburgo, tanto em seu ramo espanhol quanto austríaco, tornaram-se alguns dos principais agentes da Contrarreforma. Durante a primeira metade
do século XVI, por exemplo, o imperador Carlos V – único monarca a ter governado
simultaneamente a Espanha e o Sacro Império Romano-Germânico – esteve envolvido
em inúmeros conflitos militares contra os protestantes alemães, destacadamente na
Guerra dos Camponeses (1524-1525) e na Guerra de Esmalcalda (1546-1547).
Entretanto, apesar de todas estas tensões, os principais monarcas do século XVI,
como Maximiliano II do Sacro Império Romano-Germânico, Henrique III da França e
Filipe II da Espanha, conseguiram contornar esses problemas e manter um crescimento econômico constante até, pelo menos, o início da Guerra dos Trinta Anos, em 1618.
Assim sendo, ainda que as disputas entre os adeptos da Reforma e da Contrarreforma
continuassem intensificando o ambiente bélico existente, a estabilidade econômica
pôde assegurar, por um longo período, uma tranquilidade política para a maior parte
das monarquias europeias, proporcionando, como consequência, a possibilidade de
alargamento do Estado absolutista.
Dentro deste contexto, muitos teóricos políticos católicos passaram a ser alguns
dos mais importantes apologistas do poder absolutista. Segundo Weaver,
A fervorosa recatolicização não serviu apenas à Igreja; também estava intimamente relacionada ao crescimento do absolutismo político e à consolidação da
autoridade central da dinastia [de Habsburgo]. […] todos os teóricos políticos
católicos dos séculos XVI e XVII, pelos quais os Habsburgos foram fortemente
influenciados, concordaram que a lealdade política dos súditos poderia ser assegurada com mais eficácia se todos seguissem uma única fé cristã; a coexistência
de múltiplas confissões em um único reino, argumentou-se, semearia nada além
de discórdia e rebelião. (WEAVER, 2006, p.365).4
O jesuíta alemão Adam Contzen (1571-1635), por exemplo, ganhou notoriedade
ao defender, em sua obra Politicorum libri decem, a existência de um governo forte
como única esperança de combate real ao caos político e religioso da época. Segundo
Robert Bireley (1990, p.138), “o Politicorum libri decem logo se tornou uma influente
referência para os Estados católicos, especialmente na Europa Central, uma posição
que a obra manteria até o início do século XVIII”.5
4
Original: “The fervent re-Catholicization did not serve only the Church; it was also intimately related to the growth of political absolutism and the consolidation of the dynasty’s central authority. [...] Catholic political theorists of the sixteenth and seventeenth centuries, by
whom the Habsburgs were strongly influenced, all agreed that the political allegiance of one’s subjects could be assured most effectively if they
all adhered to a single Christian faith; the coexistence of multiple confessions in a single realm, it was argued, could sow nothing but discord and
rebellion” (WEAVER, 2006, p.365). Tradução nossa, como todas as traduções ao longo deste texto.
5
Original: “The Ten books soon became an influential blueprint for a Catholic state, especially in Central Europe, a position it would hold
into the early eighteenth century” (BIRELEY, 1990, p.138).
Caio Amadatsu Griman
Dorotéa Machado Kerr
ORFEU, v.5, n.2, 2020
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A música sacra no reinado de Leopoldo I (1658-1705)
A compreensão de pensadores como Adam Contzen de que a piedade e as virtudes católicas eram bases fundamentais para o sucesso de um monarca logo tornou-se
um dos pilares centrais do pensamento político da Monarquia de Habsburgo. Isto pois
a Casa Imperial acreditava ser a dinastia católica par excellence e que, portanto, tinha a
responsabilidade especial de defender, tanto no âmbito militar quanto no teológico, o
verdadeiro cristianismo contra as heresias dos príncipes protestantes.
É neste ambiente político e religioso que o termo pietas austriaca passou a ser amplamente utilizado por autores como Didaco da Lequile, Johann Ludwig Schönleben
e Adlbert Czerwenka em referência à piedade pessoal dos monarcas do Sacro Império
Romano-Germânico. De acordo com Anna Coreth, “o significado especial desse termo
se baseava na convicção de que Deus dera à casa da Áustria uma certa missão para o
império e a igreja, por causa dos méritos religiosos de seus ancestrais, ou, mais particularmente, do grande ancestral Rudolfo de Habsburgo” (CORETH, 2004, p.xxii).6
Todavia, a maioria destes debates teológicos dificilmente alcançava a maior parte
da população, pois, mesmo entre os poucos nobres letrados, apenas uma minoria restrita realmente conhecia latim suficientemente para compreender textos mais complexos.
Desse modo, os membros da Casa de Habsburgo e os demais agentes da Contrarreforma encontraram na patronagem de obras de arte um meio mais eficaz para divulgação
extensiva de suas principais concepções políticas e religiosas. Em grande medida, “os
Habsburgos foram mais capazes de fortalecer sua autoridade através da promoção de
uma cultura cortesã especial dominada pela fé católica” (WEAVER, 2016, p.3).7
Ainda que as produções culturais medievais e renascentistas também estivessem
intimamente relacionadas à patronagem da nobreza e da Igreja, é possível dizer que,
após o advento da Reforma Protestante e, em seguida, da realização do Concílio de
Trento, esta relação foi profundamente modificada. Se por um lado os reformados passaram a rejeitar o culto às imagens, os católicos, ao reafirmarem a antiga relação entre
arte e fé, ampliaram de modo significativo o papel dos artistas nas cortes e nas igrejas
por toda a Europa. Porém, ao mesmo tempo, os artistas do período também perderam
grande parte da autonomia para a realização de suas obras, pois a Igreja e os patronos
passaram a interferir mais intimamente em possíveis polêmicas teológicas, assim como
em decisões estéticas.
Esta relação entre arte, Contrarreforma e política pode ser observada, por exemplo,
no quadro “Ato de devoção de Rudolfo I de Habsburgo” (Fig. 1), elaborado em 1625 pelo
pintor flamengo Peter Paul Rubens (1577-1640). Por meio desta pintura, Rubens narra
o momento em que Rudolfo I – primeiro Habsburgo a ser coroado imperador – presenteia com seu cavalo, por reverência à eucaristia, um padre que estava viajando a pé
enquanto carregava a hóstia. De acordo com Anna Coreth, os eclesiásticos e os teóricos
6
Original: “the special meaning of this term was based on the conviction that God had given the house of Austria a certain mission for
the empire and the church, because of the religious merits of its ancestors, or, more particularly, of the great ancestor Rudolph of Habsburg” (CORETH, 2004, p.xxii).
7
Original: “the Habsburgs were best able to strengthen their authority through the promotion of a distinctive court culture dominated
by the Catholic faith” (WEAVER, 2016, p.3).
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A música sacra no reinado de Leopoldo I (1658-1705)
políticos germânicos do período barroco acreditavam que esta aliança histórica entre a
dinastia Habsburgo e a pietas eucharistica (entendida aqui como “fé na eucaristia”) era
uma das principais fontes de poder dos imperadores austríacos. Desse modo, por ser
considerado um dos principais eventos da história da Casa de Habsburgo, esse episódio
passou a ser amplamente retratado por diversos artistas ao longo de todo o século XVII.
Fig. 1: RUBENS, Peter Paul; WILDENS Jan. Ato de devoção de Rudolfo I de Habsburgo. c. 1625.
Pintura, óleo sobre tela, 199 x 286 cm. Museo del Prado, Madrid.
Apesar da importância inegável da pintura para a difusão dos princípios da Contrarreforma, nos territórios germânicos a música sacra acabou se tornando a principal
forma de produção artística tanto entre luteranos quanto católicos. Esta preferência pela
música pode ser observada, por exemplo, na recusa do reitor do Colégio de Viena, padre
Nicolau Lanoy, a interromper as atividades musicais da instituição, a despeito das inúmeras advertências de Ignacio Loyola (1441-1556). Em uma carta de 1554, Loyola ordenou:
[…] que se cesse imediatamente de cantar as missas e matinas e se adapte ao
nosso procedimento, ou pelo menos, se não lhe parecer conveniente que isso
ocorra subitamente, que isso seja feito aos poucos, de modo que em três meses
e aos mais tardar seis meses, isso tenha sido cumprido. (LOYOLA, 1554 apud
HOLLER, 2016, p.144).
Todavia, a prática musical no Colégio de Viena, assim como em outras instituições
jesuíticas espalhadas pela Áustria e Alemanha, continuou regularmente até a expulsão
dos jesuítas em 1782 (em consequência de uma série de reformas drásticas no intuito
de remodelar a Monarquia de Habsburgo em conformidade com os ideais iluministas).
De acordo com Pamela Potter,
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A música sacra no reinado de Leopoldo I (1658-1705)
A ideia de um Estado-nação alemão teve de superar uma longa história de fragmentação política e diferenças regionais, enquanto a música representava uma
forma de expressão artística que todos os alemães podiam partilhar. Em todas as
regiões de fala alemã, a aristocracia e o mecenato estatal mantiveram, por muito tempo, pródigas instituições musicais, alavancando a carreira de alguns dos
mais influentes compositores, maestros e intérpretes. (POTTER, 2015, p.xviii).
Ademais, a música sacra, diferentemente de outras produções seculares, como a
ópera, possuía um potencial menor de gerar grandes polêmicas. Segundo Andrew Weaver,
Muitas outras mídias, especialmente as mais efêmeras, como gravuras e medalhas, também poderiam assumir vários significados, dependendo do contexto
em que foram recebidas. A música sacra, no entanto, tinha um contexto narrativo, assim como seus sistemas simbólicos, seguro dentro da liturgia estabelecida
há muito tempo pela Igreja Católica. (WEAVER, 2016, p.41).8
Outra vantagem no uso da música sacra era a possibilidade de alcançar um grande
número de pessoas das mais diferentes origens por meio de uma única peça. Isto pois,
enquanto um plebeu iletrado podia experienciar uma determinada performance de maneira puramente passiva, um nobre cortesão que conhecesse bem o latim e tivesse a
capacidade de reconhecer os mais variados dispositivos composicionais aplicados na
peça poderia ter uma escuta muito mais ativa, compreendendo uma gama muito maior
de significação dentro da obra.
Desse modo, na virada do século XVI para o século XVII, foi possível observar um
crescimento contínuo das atividades musicais ligadas à Casa de Habsburgo e à Igreja
católica. Entretanto, após a eclosão da Guerra dos Trinta Anos, a Europa entrou em um
período de aproximadamente quarenta anos marcado por uma grave crise econômica e
por grandes mudanças socioculturais. Segundo Lawrence Bennett, “As restrições financeiras impostas pela Guerra dos Trinta Anos impediram os Habsburgos de reproduzir o
esplendor das óperas às quais as princesas de Mântua estavam acostumadas” (BENNETT,
2013, p.27).9 De modo semelhante, ainda que o imperador Fernando III tenha conseguido manter os músicos empregados na capela imperial durante a maior parte da guerra,
quando Viena foi sitiada pelas tropas suecas, em 1645, o número de musicistas teve de
ser reduzido de noventa para trinta.10
Quando o crescimento econômico foi retomado, a partir da década de 1660, a
Europa estava totalmente transformada: a França havia superado a Espanha como principal potência política; a monarquia havia sido derrubada e, em seguida, restaurada na
Inglaterra (ainda que com os poderes reais drasticamente reduzidos); e a possibilidade
8
Original: “Many other media, especially more ephemeral ones such as engravings and medals, could also take on a variety of meanings
depending on the context in which they were received. Sacred music, however, had a secure narrative context within the long-established liturgy
of the Catholic Church and its equally long-established symbolic systems. […] imperial composers were able to ingeniously craft multivalent sacred works that simultaneously served liturgical, devotional, and political ends” (WEAVER, 2016, p.41).
9
Original: “The financial restraints imposed because of the Thirty Years’ War prevented the Habsburgs from actually reproducing the
costly splendor of the operas to which the Mantuan princesses were accustomed” (BENNETT, 2013, p.27).
10
Weaver (2016, p.60).
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A música sacra no reinado de Leopoldo I (1658-1705)
de unificação e formação de um Estado absolutista alemão sob o comando da Casa de
Habsburgo havia sido praticamente extinta.
Destarte, quando Leopoldo I foi coroado imperador do Sacro Império Romano-Germânico, em 1658, recaiu sobre ele a difícil tarefa de reestruturação e reorganização
das atividades musicais na Monarquia de Habsburgo. Todavia, apesar de todas as dificuldades envolvidas, o monarca austríaco conseguiu, como veremos a seguir, realizar esta
tarefa com grande sucesso, transformando Viena, ao final de seu reinado, em um dos
principais centros musicais da Europa. Segundo Somerset, “Pode-se dizer que a escola
clássica vienense deveu sua origem em grande parte ao incentivo, patrocínio e prática
da música pelos Habsburgos” (SOMERSET, 1949, p.204).11
Leopoldo I e a música sacra
Quando Leopoldo nasceu, em junho de 1640, a Guerra dos Trinta Anos ainda era
tratada pelos membros da Casa de Habsburgo com grande otimismo, e, apesar da entrada da França no conflito, a maior parte dos cortesãos de Viena acreditava que as
tropas de Fernando III ainda sairiam vitoriosas. Neste período, o irmão mais velho de
Leopoldo, Fernando IV, era esperado para suceder seu pai e assumir o trono do Sacro
Império Romano-Germânico, garantindo assim a continuação da dinastia de Habsburgo no comando do império. Desse modo, enquanto Fernando IV teve sua criação planejada para assumir a coroa imperial, Leopoldo foi educado pelo jesuíta Johann Eberhard
Nithard para seguir, assim como seu tio Leopoldo Guilherme, uma carreira eclesiástica.
Entretanto, quando Fernando III faleceu, em 1657, as expectativas que a aristocracia austríaca tinha no início da década de 1640 haviam sido totalmente desfeitas. Tendo
de lutar em duas frentes – ao oeste contra os franceses e ao norte contra os suecos –,
as tropas imperais foram derrotadas em seguidas batalhas até o fracasso definitivo das
forças austríacas em 1648. Além disso, um ano após ser eleito rei dos romanos e, conjuntamente, futuro imperador, Fernando IV faleceu, em 1654, por conta de complicações médicas relacionadas à varíola.
Apesar de ter passado seus primeiros quatorze anos de vida estudando para se tornar um clérigo, Leopoldo I foi eleito, em 18 de julho de 1658, imperador do Sacro Império Romano-Germânico. Por conta de sua educação, o monarca austríaco ficou conhecido em toda a Europa por ser um homem bastante culto e religioso, sendo fluente em
alemão, latim, italiano, francês e espanhol. A religiosidade de Leopoldo, por exemplo,
foi descrita em 1661 pelo embaixador veneziano, Aluise Molin, da seguinte maneira:
A piedade e a bondade desse jovem príncipe não são credíveis. Ele confessa
todos os domingos. […] Ele não tem nenhuma sombra imaginável de vícios, na
verdade ele os detesta, e todas as suas inclinações são à virtude e à bondade
de sua natureza. […] Durante a quaresma três dias da semana são destinados às
11
Original: “It may truly be said that the Viennese classical school owed its origin in large part to the encouragement, patronage and
practice of music by the Habsburgs” (SOMERSET, 1949, p.204).
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A música sacra no reinado de Leopoldo I (1658-1705)
atividades na capela, e em um dia mais a imperatriz introduziu o Oratório ao uso
de Roma. (MOLIN, 1661 apud FIEDLER, 1867, p.49).12
Por conta deste caráter profundamente religioso, Leopoldo I se comprometeu diretamente com a causa da Contrarreforma, envolvendo-se, em especial, com inúmeras
atividades da Companhia de Jesus. Dessa forma, o reinado de Leopoldo foi marcado
por um processo contínuo de recatolização da população austríaca e de combate às
demais confissões. Em março de 1670, por exemplo, o monarca decretou a expulsão
dos judeus de Viena e do resto da Áustria. O notável sucesso das práticas associadas à
Contrarreforma na segunda metade do século XVII esteve intimamente relacionado ao
fato de que, se por um lado a Paz de Vestefália (tratado que decretou o final da Guerra
dos Trinta Anos) havia dado fim a qualquer possibilidade de dominação efetiva dos territórios germânicos, por outro ela também havia ampliado o direito do imperador em
impor o catolicismo em seus domínios.13 Segundo Charles Ingrao (2005, p.61):
De fato, se Leopoldo prosseguiu com vigor um aspecto do processo de construção do Estado, foi a continuação, assim como seus antecessores, da aplicação
da uniformidade religiosa, que ele também visualizou como um teste decisivo de
lealdade à monarquia. Durante o seu reinado, os jesuítas continuaram a dominar
as instituições de ensino superior da monarquia.14
Os jesuítas, ao longo do século XVII, além de terem educado os principais membros da elite eclesiástica austríaca, também foram responsáveis diretos na formação
política de Leopoldo, assim como no desenvolvimento de suas preferências teológicas
e estéticas. Outrossim, tendo recebido uma ampla educação humanista, com instruções
sobre história, astronomia, filosofia, literatura e arte, Leopoldo acabou desenvolvendo
um interesse especial pela composição musical. Durante sua infância e adolescência,
o monarca austríaco teve aulas regulares de órgão, flauta e composição com os mais
renomados musicistas de Viena, como os irmãos Markus e Wolfgang Ebner e o então
mestre de capela Antonio Bertali. Segundo o embaixador Nicolò Sagredo, “Seus exercícios são Igreja, Música e Caça” (SAGREDO, 1665 apud FIEDLER, 1867, p.115).15
Devido a este particular envolvimento de Leopoldo com a música e com o catolicismo, o monarca chegou a compor inúmeras peças religiosas, abrangendo praticamente toda a extensão do repertório sacro: ofertórios, hinos devocionais, motetos, missas, salmos, peças dramáticas (como oratório e cantata) e réquiens. Apesar de grande
parte destas obras não ter sobrevivido ao tempo, cerca de 79 composições religiosas
12
Original: “La pietà, e bontà di questo giouine Precipe non è credibile. Egli si confessa ogni domenica. […] Non hà immaginabile ombra di
vitio, mà anzi l’abborrisse, e tutte le sue inclinationi sono alla virtù, et alla bontà di sua natura portate. […] La Quaresima tre giorni della settimana
tiene Capella, et in un giorno di più hà l’Imperatrice introddotto gli Oratotij all’ uso di Roma” (MOLIN, 1661 apud FIEDLER, 1867, p.49).
13
Segundo o princípio cujus regio eius religio, reafirmado na Paz de Vestfália, a religião oficial de uma determinada região do Sacro Império
Romano-Germânico seria definida pela religião de seu governante.
14
Original: “Indeed, if Leopold pursued one aspect of the state-building process with vigor, it was in continuing his predecessors’ enforcement of religious uniformity, which he too visualized as a litmus test of loyalty to the monarchy. During his reign the Jesuits continued to tighten
their grip over the monarchy’s institutions of higher education” (INGRAO, 2005, p.61).
15
Original: “Li suoi essercitij sono Chiesa, Musica, e Caccia” (SAGREDO, 1665 apud FIEDLER, 1867, p.115).
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são atribuídas ao imperador.16 Segundo Lawrence Bennett, “em vista de sua preparação
inicial para uma carreira eclesiástica, não surpreende que, como compositor, ele [Leopoldo] tenha dedicado uma quantidade considerável de sua atenção à música sacra”
(BENNETT, 2013, p.44).17
As composições de Leopoldo I foram frequentemente executadas publicamente
pelos músicos da capela imperial, principalmente em ocasiões especiais, como casamentos, festas religiosas e funerais. Em 1673, por exemplo, em decorrência da morte
de sua sobrinha e esposa Margarida Teresa de Habsburgo, Leopoldo compôs a peça
Missa pro defunctis (W11) para 5 vozes, 4 violas da gamba, 2 cornetti muti, 3 trombones,
violoncelo e órgão. Ao observar o trecho de 22 compassos selecionado abaixo (Fig. 2),
pode-se atestar a capacidade do monarca em assimilar diversos procedimentos composicionais típicos do estilo veneziano, principalmente em relação ao uso de contrastes,
como a justaposição de compassos binários e ternários, as variações entre tutti e solo e
o uso tanto de texturas homofônicas quanto imitativas.
16
Somerset (1949, p.210).
17
Original: “In view of his early preparation for an ecclesiastical career, it is not surprising that as a composer he devoted a considerable
amount of his attention to sacred music” (BENNETT, 2013, p.44).
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A música sacra no reinado de Leopoldo I (1658-1705)
Fig. 2: Compassos 16-38 do Santus da Missa pro defunctis (W11), de Leopoldo I. Fonte: Dietz (1891, p.13).
Acerca desta relação entre Leopoldo e a composição, Aluise Molin, na mesma carta citada acima, diz:
[…] sua inclinação particular é a música. Ele compõe perfeitamente, […] empregando dias inteiros nela, ele me disse inúmeras vezes, sem nunca se cansar. Vos-
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sa Majestade gasta 60 mil florins para manter uma capela florescente de vozes e
instrumentos. (MOLIN, 1661 apud FIEDLER, 1867, p.48).18
O interesse de Leopoldo pela música não se resumiu apenas ao seu envolvimento
na área da composição, mas incluiu também grandes investimentos na capela imperial.
O início do seu reinado foi marcado por uma profunda reorganização da vida musical
vienense. Desse modo, na década de 1660, o ambiente de estabilidade e conservadorismo estético do final do reinado de Fernando III deu lugar “a um grande influxo de
novas personalidades musicais” (BENNETT, 2013, p.32).19 Dentre estes, destacam-se os
músicos italianos Antonio Maria Viviani, Carlo Cappellini e Filippo Vismarri, assim como
os compositores que chegaram, como veremos mais adiante, para trabalhar na capela
pessoal da imperatriz viúva Leonor de Gonzaga-Nevers, como Giuseppe Tricarico, Giovanni Battista Pederzuoli e Antonio Draghi. Draghi, em especial, ganhou muita notoriedade na corte vienense enquanto ainda trabalhava na capela de Leonor, tendo, como
consequência, sido escolhido por Leopoldo I, em 1682, para assumir o comando da
Hofburgkapelle, posição hierárquica mais alta para um músico na Áustria.
Além da presença desta longa série de músicos italianos em Viena, a conexão musical da Monarquia de Habsburgo com a Itália durante o reinado de Leopoldo I também
envolveu a formação sistemática dos principais compositores austríacos no Collegium
Germanicum em Roma. O Collegium Germanicum, fundado em 1552, foi, juntamente
com o Colégio de Viena, uma das primeiras instituições jesuíticas a adotar o ensino sistemático de música. Apesar da prescrição de Ignácio Loyola vistas acima, a presença de
uma longa série de músicos prestigiados, notadamente Giacomo Carissimi (que trabalhou como professor e mestre de capela entre 1629 e 1674), fez com que o colégio usufruísse uma excelente reputação quanto aos seus empreendimentos musicais. Durante o
período em que Carissimi assumiu o comando das produções musicais do colégio, houve um crescimento substancial na quantidade de músicos profissionais na instituição.
Entre os diversos alunos de Carissimi, destacam-se os austríacos Philipp Jakob
Baudrexel e Johann Caspar Kerll. Entretanto, ainda que tanto músicos italianos quanto
germânicos fossem contratados pela aristocracia austríaca, via de regra,
[…] a nacionalidade de um compositor definia seus deveres. Os compositores
italianos forneciam música dramática (ópera, oratório e cantata), enquanto os
austríacos concentravam-se em peças instrumentais, incluindo música de balé
(para obras dramáticas), música de teclado, composições litúrgicas e música
para os dramas jesuítas. Essa separação de deveres não era inteiramente rigorosa (BENNETT, 2013, p.28).20
18
Original: “sua particolare inclinazione è alla Musica. Compone perfettamente, […] impiegando in essa gionate intiere, m'hà più volte
detto, non stancarsi mai d'essa. Spende Sua Maestá pur in questa 60 mil fiorin, e tiene di voci, e stromenti una floridissima Capella” (MOLIN, 1661
apud FIEDLER, 1867, p.48).
19
Original: “an influx of strong new musical personalities” (BENNETT, 2013, p.32).
20
Original: “[…] a composer’s nationality defined his duties. Italian composers provided dramatic music (opera, oratorio, and cantata),
while Austrians concentrated upon instrumental ensemble pieces, including ballet music (for dramatic works), keyboard music, liturgical compositions, and music for the Jesuit dramas. This separation of duties was not entirely strict” (BENNETT, 2013, p.28).
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A música sacra no reinado de Leopoldo I (1658-1705)
De acordo com John Hill, Leopoldo foi responsável pela formação de diversos
compositores nativos do Sacro Império Romano-Germânico, como Johann Heinrich
Schmelzer (1620-1680), Ferdinand Tobias Richter (1651-1711) e Johann Joseph Fux
(1660-1741). “Todos esses compositores escreveram música sacra em latim para grandes conjuntos e em estilo grandioso” (HILL, 2005, p.300).21
Outra figura da Casa de Habsburgo de grande relevância para o desenvolvimento da música na Áustria foi o tio de Leopoldo I, Leopoldo Guilherme (bispo de Passau,
Strassburg, Halberstadt, Olmütz e Breslau). Devido à sua paixão pelas artes, em particular pela ópera, Leopoldo Guilherme passou a ser, especialmente após o fim da Guerra
dos Trinta Anos, um dos principais patronos da arte em toda a Europa. Desse modo, o
aristocrata austríaco
[…] desempenhou um papel central na atração de músicos italianos para a corte
imperial. Dois agentes que serviram ao arquiduque para esse fim foram Friedrich, landgrave de Hessen-Darmstadt, e o jesuíta Theodorico Bechei, ambos
mantinham laços especialmente fortes com Roma. Leopoldo Guilherme apoiou
jovens músicos italianos em seu serviço, que estudaram no colégio alemão em
Roma. (BENNETT, 2013, p.21).22
Todavia, apesar desta clara influência da música italiana, a maior parte dos compositores trabalhando em Viena e no resto da Áustria, procuraram adaptar as novas
técnicas composicionais provindas da Itália à preferência tipicamente germânica pelo
estilo contrapontístico. Portanto, enquanto nas regiões de Nápoles, Veneza e Mântua
o stile moderno se desenvolveu essencialmente através da monodia e de composições
homofônicas para poucas vozes,
[…] na Alemanha foi o estilo concertante coral que mais se desenvolveu. Temas
declamatórios, elaborados à maneira do antigo estilo polifônico, deram forma
a uma nova configuração coral. Johann Kaspar Kerll, aluno de Carissimi, foi o
líder nessa arte que nunca ganhou muito apoio na Itália. Heinrich Schmelzer,
Franz Heinrich Biber, Christoph Strauss e outros também cultivaram essa forma
de coral. […] Até mesmo os italianos trabalhando nas cortes germânicas, como
Giovanni Valentini (organista em Viena, 1619), Antonio Bertali (1605-1699), Felice Sances (1600-1679), Stefano Bernardi (c.1575-1638), e outros desenvolveram
esse tipo de configuração. (FELLERER, 1961, p.120).23
21
Original: “Emperor Leopold nurtured a new generation of native German composers, notably Johann Henrich Schmelzer (ca. 16201680), Johann Caspar Kerll (1627-1693), Ferdinand Tobias Richter (1651-1711), and Johann Joseph Fux (1660-1741). All these court composers
wrote Latin-texted church music for large forces in the grandiose style” (HILL, 2005, p.300).
22
Original: “Leopold Wilhelm played a central role in attracting Italian musicians to the imperial court. Two agents who served the archduke for this purpose were Friedrich, landgrave of Hessen-Darmstadt, and the Jesuit Theodorico Bechei, both of whom maintained especially
strong ties to Rome. Leopold Wilhelm supported young italians musicians in his service who studied at the German college in Rome” (BENNETT,
2013, p.21).
23
Original: “In Germany it was the concertante choir style that was developed. Declamatory themes, elaborated in the manner of the old
polyphonic setting, gave shape to a new choir setting. Carissimi’s pupil, Johann Kaspar Kerll (1627-1693), was the leader in this art, which never
won much support in Italy. Heinrich Schmelzer, Franz Heinrich Biber, Christoph Strauss, and others also cultivated this choral form. […] Even the
Italians working in German courts, like Giovanni Valentini (organist in Vienna, 1619), Antonio Bertali (1605-1699), Felice Sances (1600-1679),
Stefano Bernardi (c.1575-1638), and others developed this form of setting” (KELLERER, 1961, p.120).
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A música sacra no reinado de Leopoldo I (1658-1705)
Desse modo, apesar de o fascínio da elite europeia pela ópera italiana ter influenciado profundamente o curso da música em todo o continente, diferentemente da
França e da Itália, nas cortes germânicas o contraponto continuou sendo, pelo menos
até o início do século XVIII, parte fundamental tanto das composições sacras quanto
das seculares.
Ademais, com a vitória das tropas austríacas contra os invasores turcos, em 1683,
os gastos com a capela imperial cresceram de maneira constante, chegando a contar
em 1705 (ano da morte de Leopoldo I) com o total de 102 musicistas.24 Outrossim, nos
últimos 12 anos de seu reinado, Leopoldo procurou reformar e repovoar a capela musical imperial, proporcionando, desse modo, uma mudança radical, após um período de
certo conservadorismo, no tipo de música produzida em Viena. Segundo Harry White,
A nomeação, nos últimos anos do reinado de Leopoldo, de compositores mais
jovens para a corte imperial, incluindo Carlo Agostino Badia (1694), Giovanni Bononcini (1697), Johann Joseph Fux (1698) e Marc’Antonio Ziani (1700), foi uma
das principais causas desta impressionante modernização. (WHITE, 2013, p.16).25
A capela de Leonor e o estabelecimento do sepulcro em Viena
Em grande medida, é possível dizer que, durante a primeira metade do reinado de
Leopoldo I (particularmente entre 1658 e 1686), a imperatriz viúva Leonor de Gonzaga-Nevers foi uma das figuras mais importantes na patronagem das atividades musicais
da corte imperial. Ainda que nos séculos XV e XVI diversos membros da Casa de Habsburgo já desempenhassem papéis de grande relevância no desenvolvimento da música
austríaca – principalmente através da patronagem de músicos de destaque da Europa
(em especial da Itália) –, foi somente após o fim da Guerra dos Trinta Anos, com a liberação dos recursos da guerra e a transformação da corte imperial em um centro marcadamente cosmopolita, que as produções musicais executadas em Viena começaram
a ganhar notoriedade em um nível continental. Dentro deste contexto, o casamento do
imperador Fernando III e de Leonor de Gonzaga-Neves, em 1651, fortaleceu ainda mais
o processo de italianização da música na Áustria.
Assim como Leopoldo I e Fernando III, Leonor teve uma educação profundamente
religiosa, tendo passado a maior parte de sua adolescência no convento de Sant’Orsola,
onde desenvolveu seu interesse pela arte e pela música. Por conta desta educação e de
seu envolvimento com as principais atividades artísticas da época, a adaptação de Leonor
à vida na corte de Viena foi consideravelmente fácil. Segundo Schnitzer-Becker (1993),
Apesar de não parecer excessivamente piedosa aos olhos de seu tempo, Leonor
compartilhou com Ferdinando a atitude religiosa, os interesses literários e o amor
24
Original: “By 1705, the last years of Leopold’s reign, the total number of court musicians had grown to 102” (BENNETT, 2013, p.27).
25
Original: “The appointment in particular of younger composers to the imperial court, including Carlo Agostino Badia (1694), Giovanni
Bononcini (1697), Johann Joseph Fux (1698), and Marc’Antonio Ziani (1700) in the closing years of Leopold’s reign was the cause of this striking
modernization” (WHITE, 2013, p.16).
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A música sacra no reinado de Leopoldo I (1658-1705)
pela música. Leonor participou de passatempos judiciais, organizou banquetes,
favoreceu e assistiu a apresentações teatrais. (SCHNITZER-BECKER, 1993).26
Além da patronagem e da organização regular de diversas execuções musicais
dentro e fora da corte, Leonor também ficou conhecida na Áustria por suas habilidades como soprano. Ainda que, por conta da proibição da participação de mulheres nos
palcos e nas igrejas, a monarca italiana não tivesse a permissão de se apresentar diante
de grandes públicos, a sua presença em produções mais íntimas pôde ser observada
com alguma frequência. De fato, ao levar-se em consideração que muitos membros da
dinastia de Habsburgo se destacaram durante o século XVII pelo envolvimento regular
com algum tipo de prática musical, a participação de Leonor em alguns empreendimentos musicais deixa de ser surpreendente.
Entretanto, apesar deste envolvimento da imperatriz na vida musical vienense durante o reinado de Fernando III, foi principalmente após a morte de seu marido, em 1657,
e da coroação de seu enteado Leopoldo I, em 1658, que a aristocrata italiana passou a
exercer um papel verdadeiramente significativo no desenvolvimento da música austríaca. Ainda que possa parecer contraditório, este crescimento da importância de Leonor
estava relacionado ao fato de que, nos séculos XVI e XVII,
[as] grandes famílias costumavam atribuir até um quinto do valor de suas propriedades em dotes, como forma de criar vínculos com outras grandes famílias;
a taxa de juros sobre este montante proporcionava um usufruto que permitia à
noiva cobrir seu custo de vida. Na viuvez, a soma total poderia ser reapropriada
por ela. (HUFTON, 2006, p.15)27.
Dentro desse contexto, o recebimento de cerca de 200 mil florins por ano, aos
quais 21.452 eram despendidos com empreendimentos musicais diversos, permitiu que
Leonor estabelecesse sua própria corte pessoal em uma das alas do Palácio Imperial de
Hofburg, em Viena, incluindo uma nova capela musical com 20 músicos, um mestre de
capela, um copista, um luthier e um tocador de fole. Segundo Deisinger (2016, p.171), “a
fundação de uma corte para uma imperatriz viúva era comum naqueles dias e os pré-requisitos legais para isso já haviam sido estabelecidos no contrato de casamento”.28
Ademais, o estabelecimento desta corte pessoal só foi possível por conta do bom relacionamento entre o novo imperador e Leonor, o que pode ser atestado pelo seguinte
trecho da carta escrita por Molin em 1661: “A imperatriz Leonor governa a si mesma
26
Original: “Pur non apparendo eccessivamente pia agli occhi del suo tempo, Eleonora condivideva con Ferdinando l’atteggiamento religioso, gli interessi letterari e l’amore per la musica. Eleonora partecipava ai passatempi di corte, organizzava banchetti, favoriva e presenziava a
rappresentazioni teatrali” (SCHNITZER-BECKER, 1993).
27
Original: “[the] great families could put up to a fifth of the value of their estates into dowries as a way of creating links with other great
families; the interest on the sum provided a usufruct enabling the bride to meet her living costs. In widowhood the whole sum could become hers
to reappropriate” (HUFTON, 2006, p.15).
28
Original: “the foundation of a court for a widowed empress was usual in those days and the legal prerequisites for this had already been
established in the marriage contract” (DEISINGER, 2016, p.171).
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A música sacra no reinado de Leopoldo I (1658-1705)
com a máxima prudência e é amada pelo imperador, estimada como mãe” (MOLIN, 1661
apud FIEDLER, 1867, p.53).29
Assim que sua corte foi fundada, Leonor convidou Giuseppe Tricarico para assumir
o cargo de mestre de capela (posição que o compositor ocupou até 1662). Tricarico,
que havia estabelecido uma boa reputação em Roma e Ferrara entre as décadas de 1640
e 1650, teve então a incumbência de recrutar oito músicos italianos para acompanhá-lo
em sua nova jornada; entre eles, foram escolhidos Alessandro Riotti, Jacomo Venturini
e seu irmão, Antonio Tricarico. No começo da segunda metade do século XVII, o nome
de Giuseppe Tricarico havia se tornado amplamente conhecido entre os membros da
Monarquia de Habsburgo por conta, em grande medida, da presença de uma de suas
composições (intitulada Crucifixus) no prestigiado livro Musurgia Universalis, escrito
pelo jesuíta alemão Athanasius Kircher em 1650. Em seu livro, “Kircher descreve Tricarico como um excelente e extremamente talentoso compositor e seu Crucifixus como
uma excelente obra de arte” (DEISINGER, 2007, p.46-47).30
Apesar da curta estadia do compositor em Viena (aproximadamente seis anos), a
elaboração de três obras sacras dramáticas executadas entre 1660 e 1662 teve um impacto significativo para o rumo da música sacra na Áustria.31 Isto pois essas peças deram
início a uma nova tradição, quase ininterrupta, de apresentações anuais no Palácio Imperial de Hofburg. A partir de então, duas apresentações deste novo gênero dramático,
que ainda no século XVII passou a ser intitulado com nomes distintos, como sepulcro,
azione sacra, azione sepolcrale e rappresentazione sacra, começaram a ser realizadas
todas as Quintas e Sextas-Feiras Santas, em lembrança à morte de Cristo. Enquanto nas
Quintas-Feiras Santas os sepulcros realizados na capela de Leonor continham um cenário relativamente simples, contando, em muitos casos, apenas com a escultura do Santo
Sepulcro, nas Sextas-Feiras Santas, as apresentações realizadas na Hofburgkapelle dispunham, além da escultura utilizada no dia anterior, de pinturas de fundo sofisticadas,
ilustrando o tema do libreto.
Este novo gênero musical, apesar de ser, assim como o oratório, um tipo de obra
sacra dramática cantada em italiano, se diferenciava de outras produções da época pelo
uso extensivo de personagens alegóricos, figurinos e cenários; pela limitação a temas
relacionados à Paixão e Crucificação de Cristo; pela composição em uma única parte
estrutural (ao contrário da habitual divisão do oratório em duas seções) e pela escassez
de grandes momentos de ação dramática (em decorrência de seu caráter essencialmente descritivo e reflexivo).
Para Robert Kendrick, o estabelecimento do sepulcro, no inverno de 1660, estava
relacionado não somente a questões puramente estéticas e religiosas, mas também à
29
Original: “L’Imperatice Leonora predetta si governa con somma prudenza, et è dall’Imperatore amata, stimata come Madre. Ella
non molto s’inferisse nel governo, e mostrando di niente pretende, tutto per il più meritamente ottiene. Sà incontrar il genio di Sua Maestà, e
rendersela grata, hà introdutto Oratorij in Musica, e fa venir Predicatori Italini de più celebri, largamente regallandoli, con che più frequentemente
gode la conversatione di Sua Maestà” (MOLIN,1661 apud FIEDLER, 1867, p.53).
30
Original: “Kircher bezeichnete Tricarico als exzellenten und äußerst begabten Komponisten und dessen Crucifixus als ein ganz
ausgezeichnetes Kunstwerk” (DEISINGER, 2007, p.46-47).
31
Apenas a partitura da peça intitulada La Gara della Misericordia e Giustizia, de 1661, foi preservada.
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A música sacra no reinado de Leopoldo I (1658-1705)
necessidade dos membros da Casa de Habsburgo, após o período de transição imperial
entre 1657 e 1658, de estabelecerem novas tradições capazes de confirmarem o poder
de Leopoldo I e de sua madrasta aos olhos da nobreza vienense. Os sepulcros compostos por Tricarico para a corte de Leonor, por exemplo, apesar de serem consideravelmente mais simples e íntimos do que aqueles realizados durante as Sextas-Feiras Santas
na capela principal de Hofburg, possibilitaram a demonstração da força financeira e da
sensibilidade religiosa da imperatriz viúva para um círculo restrito, porém imponente,
de convidados.
Ao longo do reinado de Leopoldo I, as execuções dos sepulcros tornaram-se cada
vez mais reconhecidas internacionalmente, principalmente devido à presença de inúmeros embaixadores e diplomatas de toda a Europa, que, após testemunharem as apresentações, relataram o alto nível de sofisticação das atividades artísticas na Áustria. Entretanto, a performance do sepulcro de 1684 acabou se tornando motivo para uma polêmica
entre a imperatriz viúva e o núncio papal (cardinal Francesco Buonvisi). Isto pois Buonvisi
decidiu boicotar as atividades organizadas por Leonor após se sentir ofendido pela decisão da imperatriz viúva em destinar o melhor lugar da capela ao duque de Lorraine, Carlos V, obrigando, desse modo, o cardinal a sentar-se em uma posição menos privilegiada
para acompanhar o sepulcro (Le Lagrime più giuste, de Pederzoli). Em uma missiva ao
secretário de Estado do Vaticano, cardeal Alderano Cybo, Buonvisi relata:
Eu devo defender vigorosamente minha [dignidade do cardeal] contra os ataques da imperatriz Leonor, que os repete com o consentimento tácito do imperador. […] E agora mais uma vez a imperatriz deu um lugar mais alto ao duque,
pois no oratório na Quinta-Feira Santa, eles [a realeza] estavam na frente do sepulcro, […] e se eu tivesse ido, teria sido colocado em um banco lateral. (BUONVISI, 1684 apud KENDRICK, 2019, p.199).32
Ao observarmos o decurso desta polêmica, podemos atestar como o sepulcro acabou se tornando um evento de tal importância dentro da corte imperial, que um detalhe, aparentemente supérfluo, como a posição do assento de uma figura de destaque, se
transformou em um escândalo de nível internacional. Do mesmo modo, por meio de uma
segunda carta de dez páginas, onde o núncio papal afirma que “a imperatriz viúva sempre
demanda mais homenagens opulentas do que o próprio imperador” (BUONVISI, 1684
apud KENDRICK, 2019, p.199),33 confirmamos o papel fundamental de Leonor na patronagem e organização de grandes produções artísticas durante o reinado de Leopoldo I.
32
Original: “Di esser pronto a fi nir qui i miei giorni, bisognerà difenderla [his dignity] con vigore contro gli attacchi dell’imperatrice Eleonora,
che asserice di farli col tacito consenso dell’Imperatore. [...] et hora l’Imperatrice ha dato di nuovo luogo più nobile nella sua cappella al sig. Duca,
e nell’Oratorio del Giovedì Santo accanto il Sepolcro, [...] e se io ci fossi andato, non ci sarebbe intervenuto S.A., ma sarei stato sopra un banco per
fi anco, come è lo stile” (BUONVISI, 1684 apud KENDRICK, 2019, p.199).
33
Original: “Dapoi l’Imperatrice Vedova, che sempre desidera ossequij maggiori di quelli, che si prestano all’Imperat.re” (BUONVISI, 1684
apud KENDRICK, 2019, p.199).
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Considerações finais
Ainda que outros imperadores, em especial Fernando III, já tivessem mostrado interesse pela música sacra, Leopoldo I foi, inegavelmente, o monarca austríaco que mais
se envolveu com as atividades musicais do Sacro Império Romano-Germânico, sendo
também o compositor mais prolífico da história da dinastia de Habsburgo. Entretanto,
este comprometimento público do imperador com a música não agradou a todos os
corsões de Viena. Segundo o embaixador veneziano Aluise Molin: “[…] alguns, no entanto, gostariam de ver essa aplicação à música menos evidente em Vossa Majestade. Para
deixá-lo mais focado à negociação e a disposições mais magnânimas” (MOLIN, 1661
apud FIEDLER, 1867, p.49).34
De modo semelhante, ainda que muitos acreditassem que a educação marcadamente religiosa de Leopoldo I fosse uma vantagem para a administração de seu governo, outros, como o embaixador Marino Giorgi, diziam:
Falta-lhe vigor no comando, franqueza nas resoluções, entusiasmo em fazê-las
e ousadia em se aplicar às maiores e mais notáveis operações. Eles desertam dos
defeitos de um espírito despertado pela educação generosa, inadequada para a
coroa e cetro. (GIORGI, 1671 apud FIEDLER, 1867, p.127).35
Todavia, apesar de todos estes protestos, o reinado de Leopoldo foi marcado pela
intensificação contínua da patronagem de novos músicos e compositores, principalmente de origem italiana, e pela expansão da capela imperial, gerando, em consequência, uma profunda renovação das produções musicais vienenses. De modo semelhante,
ainda que outras imperatrizes viúvas já tivessem mostrado interesse na patronagem da
música, o nível de influência exercido por Leonor de Gonzaga-Nevers nos empreendimentos musicais em Viena nunca havia sido observado anteriormente e, em grande
medida, nunca conseguiu ser igualado novamente. Segundo Deisinger (2016, p.179),
“com seus músicos, Leonor se tornou um foco da vida cultural na corte vienense. Ela
organizou concertos e performances de obras musicais dramáticas e teve festivais religiosos adornados com músicas comemorativas”.36 Indubitavelmente, este interesse dos
membros da Casa de Habsburgo pela música, e em especial pela música sacra, foi crucial para a formação de Viena como um dos principais centros musicais da Europa.
Assim sendo, é surpreendente, levando em consideração a importância da capital
austríaca para a história da música ocidental, que a historiografia sobre o barroco vienense seja tão escassa. A maior parte da literatura publicada sobre a vida musical em
Viena, escrita tanto por pesquisadores nativos da Áustria quanto de outras partes do
34
Original: “Alcuni però bramerebbero, che quest’ applicatione alla Musica fosse men valida in Sua Mtá., per lasciarla maggiore al negotio,
et à più magnanime dispositioni” (MOLIN, 1661 apud FIEDLER, 1867, p.49).
35
Original: “Li manca vigore nel commando, franchezza nelle rissolutioni, ardone nell’essequirle, et ardire nell’ applifgiarsi ad operationi
magvanime, et cospicue; Seaturiscono li difetti da spirito destituto d’educatione generosa, non addatata alle Corone, et alli Scetri” (GIORGI, 1671
apud FIEDLER, 1867, p.127).
36
Original: “with her musicians, Eleonora became a focus of cultural life at the Viennese court. She arranged concerts and performances
of musical dramatic works and had religious festivals adorned with celebratory music” (DEISINGER, 2016, p.179).
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mundo, tem como objeto de estudo o período entre o advento do Josefismo e o fim
da Segunda Guerra Mundial, ou seja, entre a primeira e a segunda Escola de Viena (de
Haydn a Schoenberg). De acordo com Harry White (2013, p.11),
A história – incluindo a história da música – inseriu um véu sobre o barroco vienense. […] Não é de forma alguma um estado de coisas excepcional ler a história
monumental (e relativamente recente) da música ocidental de Richard Taruskin,
por exemplo, um relato estupendamente detalhado da música antiga que, no
entanto, consegue eclipsar todo o barroco vienense, apesar da magnitude evidente e proeminência da música na corte imperial durante esse período.37
Referências bibliográficas
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37
Original: “History – including music history – has draw a veil over the Viennese Baroque. […] It is by no means an exceptional state
of affairs to read in Richard Taruskin’s monumental (and comparatively recent) history of western music, for example, a stupendously detailed
account of early music which nevertheless manages to eclipse the Viennese Baroque in its entirely, despite the self-evident magnitude and prominence of music at the imperial court during this period” (WHITE, 2013, p.11).
Caio Amadatsu Griman
Dorotéa Machado Kerr
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Das mortes nas estações (2018)
(Quatro canções para mezzo-soprano
e piano)
Dierson Torres1
Universidade Federal de Pernambuco
dierson.torres@gmail.com
Marília Santos2
Universidade Federal da Paraíba
marilia_05030@hotmail.com
Submetido em 04/07/2020
Aprovado em 17/09/2020
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Das mortes nas estações (2018)
(Quatro canções para mezzo-soprano e piano)
Das mortes nas estações (2018) é um ciclo de quatro canções escritas por Marília Santos (1987-) – poemas – e Dierson Torres (1953-) – música. Estão baseadas no
Vier letzte lied (Quatros últimas canções) (1948), do compositor Richard Strauss (19641949). Esse ciclo é um dos mais famosos de Strauss. No entanto, ele não chegou a ver
sua estreia, que aconteceu em 1950, após seu falecimento.
Assim como as Quatros últimas canções, escritas para soprano, Das mortes nas
estações também é composta para voz “feminina”, mas para mezzo-soprano. Ao escrever os poemas, criei relações diretas, escolhas de palavras, com os poemas de Joseph
von Eichendorff (1788-1857) e Hermann Hesse (1877-1962), utilizados por Strauss para
suas canções. Ao mesmo tempo, procurei colocar elementos que remetem ao agreste
pernambucano visto e vivido por mim durante minha vida, sobretudo infância e adolescência, como “bromélias e açucenas” – sempre nos vasos das casas das minhas avós,
assim como no meio do mato –, “cor-de-fruta-de-facheiro”, “caatinga”, “chão rachado”,
“açudes que secaram”, “capuchos de algodoeiros”, “flores do mulungu” – ah..., com as
quais eu tanto brinquei quando era criança –, descrevendo a imagem da natureza de
um Nordeste que não aparece no que está estereotipado nacionalmente, mas que existe, em todas suas formas e cores. Essa descrição está um pouco baseada na escrita de
Virginia Woolf. Eichendorff, Hesse (na poesia) e Woolf (no romance) descrevem detalhadamente a natureza, o mesmo que busco fazer. – Marília Santos.
Da mesma forma, Dierson Torres busca nas Quatro últimas canções relações para
compor a melodia, a harmonia, o movimento das vozes, toda a textura musical, utilizan-
1
Dierson Torres, natural de Recife, é bacharel em Regência pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com o título acadêmico
Magna cum Laude. Na Escola de Música da UFRJ estudou Composição com o maestro Henrique Morelenbaum. Como regente, trabalhou com
diversos coros e orquestras, atuando nas montagens das óperas: Fosca, Romeu e Julieta, La Gioconda, entre outras. De volta ao Recife, fundou e
dirigiu o coral da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (Facho), compondo para os 10 anos dessa entidade a Missa Cantabo Domino. Durante
vários anos lecionou no Conservatório Pernambucano de Música, onde criou o Coro de Câmara e Conjunto de Música Antiga. Atuou também, como
regente convidado, na Orquestra Sinfônica do Recife. Como compositor escreve principalmente para conjuntos vocais e instrumentais. Dentre as
suas obras, podemos destacar a canção La Colmeña, escrita como trilha sonora do curta-metragem Me faz voar, de Marcone Simões. Na música
instrumental, a Pequena suíte brasileira para Orquestra de Cordas e Percussão e Toada e Desafio sobre um Tema de Capiba. Três parábolas, para coro, solistas, piano, sopro e percussão. Lá estarei eu, para canto e piano, e com poesia do próprio compositor. Sonatina, em três movimentos, e Meditação
no 2, ambas para violino e piano. Uma parábola das áreas de bravura das óperas italianas, em formato de Ária da Capo, com o título: Canzone Senza
Parole, também para violino e piano. Além disso, compôs uma Chacone, para cravo solo, dedicada à professora Maria Ainda Barroso, e um ciclo de
quatro canções, Das mortes nas estações, para voz e piano, com texto de Marília Santos, dedicado à cantora Virgínia Cavalcanti. Realizou também
os arranjos vocais para a montagem do Auto de Natal – O nascimento de Jesus, da Fundação Nova Jerusalém. Em 2003 a Orquestra Sinfônica do
Recife executou sua obra para grande orquestra Abertura de Concerto. Sua grande última grande obra é Um réquiem nordestino, em homenagem
a Ariano Suassuna, para solistas, coro e orquestra. Atualmente é professor do Departamento de Música da UFPE, onde leciona as disciplinas de
Estética e Estruturação Musical e Fundamentos da Construção Musical.
2
Marília Santos é mestra em Música/Etnomusicologia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), graduada em Música pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) – com láurea acadêmica – e em Letras pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Caruaru (Fafica).
Iniciou suas atividades musicais em uma ONG, em São Caitano (“da Raposa”), agreste de Pernambuco. Na UFPE atuou na pesquisa sob orientação
da professora Dr.a Cristiane Galdino, sendo premiada. No mestrado, sob a orientação do professor Dr. Carlos Sandroni, desenvolveu uma pesquisa
sobre os “Ecos Armoriais” na música. Integrou a equipe multidisciplinar de pesquisa do “Inventário do Ofício dos Artesãos e Artesãs do Barro do
Alto do Moura – Caruaru/PE”, exercendo a função de pesquisadora/etnomusicóloga, sendo responsável por registrar expressões como mazurca,
pífano, reisado, sanfona, poetas(isas), cantadores, bacamarte, emboladores, repentistas, compositores(as). Desenvolve trabalhos sobre gêneros/
corpos/mulheres/feminismos, na pesquisa, em oficinas, em poesias. Durante a Graduação em Música, foi monitora, sob orientação do professor
Dierson Torres, de Fundamentos da Construção Musical (harmonia). Na mesma instituição teve aulas de composição com o professor Dr. Paulo
Lima. Na performance atuou como clarinetista na Banda Sinfônica do Conservatório Pernambucano de Música, no grupo Bellas Marias, na Camerata da UFPE e em alguns grupos de câmara. Como corista chegou a participar da Grande Missa Nordestina, de Clóvis Pereira, da Nona Sinfonia, de
Beethoven, junto com a Orquestra Sinfônica do Recife, e da estreia mundial de Um réquiem nordestino, de Dierson Torres. Atuou como regente no
coro da Faculdade Frassinetti do Recife (Fafire), sendo cocriadora do mesmo. Atualmente é estudante de violoncelo.
Dierson Torres
Marília Santos
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(Quatro canções para mezzo-soprano e piano)
do harmonias cromáticas, quintas aumentadas, dissonâncias, “desenhos musicais” que,
além de manterem uma coerência com os textos utilizados, criam uma relação com o
ciclo de canções de Richard Strauss e com a sutileza de falar sobre a morte, sobre o fim
dos ciclos, através de sons que penetram como sentimentos ditos sem palavras, complementando estas, que, vestidas de poesia, transcendem escritora e compositor.
Ouvi as Quatro últimas canções, de Richard Strauss, pela primeira vez em 15 de
maio de 1981, em um concerto da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal, sob a regência de Henrique Morelenbaum. Ou seja, 31 anos depois da sua estreia, que ocorreu
em 22 de maio de 1950. Foi amor à primeira audição e, desde sempre, tive a intenção
de escrever algo paralelo a essas canções. A atração por elas é tamanha que eu sempre
disse aos mais próximos que gostaria de “ouvi-las” no meu velório. Para mim, essas últimas canções são um verdadeiro réquiem. Não o réquiem da liturgia cristã, mas partindo
do Ein deutsches requiem (Um réquiem alemão), de Brahms, e indo até mais além deste.
Nelas o tema da morte é transfigurado e dito em forma de despedida, do cansaço da
vida. A dor e o luto torturante jamais são sentidos claramente. Trinta e sete anos depois,
em 2018, escrevi as minhas Quatro canções, com poesias de Marília Santos, que sabia
da minha admiração pela obra de Richard Strauss. – Dierson Torres.
No segundo semestre de 2017, em outubro ou novembro, fui ao Departamento
de Música da Universidade Federal de Pernambuco – onde qual cursei a Graduação em
Música – para resolver alguns assuntos. Bati à porta da sala de Estética e Estruturação
Musical e Fundamentos da Construção Musical, do professor Dierson Torres, para dar
um “Oi” para ele. Este, que estava dando aula no momento, convidou-me para entrar
e apreciar as Quatro últimas canções, de Richard Strauss, que ele colocaria para tocar
naquele momento para que as(os) alunas(os) analisassem. Eu entrei, ouvi e fui embora.
Mas, naquele dia, as canções não saíram da minha cabeça. Quando cheguei em casa,
fui ouvi-las e ler sobre as mesmas. Também pesquisei sobre seus poemas, suas traduções para a Língua Portuguesa. Naquela semana fui envolvida por um sentimento que
somente a poesia é capaz de explicar. E, ouvindo as canções incansavelmente, inspirada pelas suas palavras, por seus acordes, melodias, e pelo momento de finais de ciclos
que vivia, fui escrevendo poemas que intitularia Das mortes nas estações. Na época eu
já sabia do quanto o professor Dierson admirava a obra de Richard Strauss, mas, até o
momento em que decidimos publicar as partituras, eu não conhecia essa relação dele
tão íntima, tão próxima, tão profunda com as Quatro últimas canções, como ele colocou. Enviei os poemas para ele e o mesmo disse que os musicaria. Mas eu não acreditei.
– Marília Santos.
A primeira canção, Setembro, que é o título da segunda canção de Richard Strauss
– September –, segue em paralelo ao texto da primeira canção, Frühling (Primavera).
Nesta canção, aproveitei a relação de mediante cromática exposta na introdução da
canção de Strauss. Faço uso das harmonias cromáticas, da tonalidade suspensa e dos
acordes de quinta aumentada. – Dierson Torres.
Setembro foi a segunda poesia a ser escrita, embora seja a primeira do ciclo. Como
fiz um paralelo com Frühling, a chamei também de Primavera, intitulando, no momento,
a outra poesia já escrita – que se tornaria a segunda canção –, Verão. Na criação de
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Marília Santos
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Setembro, além de buscar elementos da poesia de Hermann Hesse – escritor e pintor
alemão –, eu tento passar as sensações que sinto quando lembro das imagens de primavera que vivenciei. – Marília Santos.
A segunda canção, Dezembro, segue os mesmos procedimentos “musicais”, harmônicos da canção anterior, porém com um teor dissonante mais intenso. Ela foi a primeira a ser composta, surgindo a partir de um improviso que fiz em sala de aula, quando
estava trabalhando harmonia com as(os) alunas(os). Digno de nota é o uso do tema final
de Strauss na sua segunda canção, September. Embora ele esteja sutilmente modificado em Dezembro. – Dierson Torres.
Coincidentemente, Dezembro também foi o primeiro poema a ser escrito. E esse
detalhe nunca foi comentado com Dierson. Ao tentar buscar uma imagem do Nordeste
do Brasil, as primeiras imagens que vieram foram as da seca, comumente relacionada
com essa região do país. Então pensei em descrever essa seca, dolorida, com um sol
que sei como arde na pele, que rasca, que desanima, que muitas vezes mata. Relacionar
a morte com isto não foi difícil. Esse poema também tem uma relação bastante intrínseca com o primeiro das Quatro últimas canções. E o compositor conseguiu perceber o
“peso”, a “tristeza maior” desses versos em relação aos dos outros três poemas, trazendo
isso para a música. – Marília Santos.
Na terceira canção, Março, a poesia lembra a utilizada por Richard Strauss na última canção do seu ciclo, Im abendrot (Na vermelhidão do poente ou Pôr do sol), onde
fala em “andar de mãos dadas” e “um país silencioso”. Em Março, a letra diz: “Numa estação silenciosa / Caminhamos de mãos dadas”. Utilizei a imagem do “caminhar de mãos
dadas” em uma figura lenta e descendente em semínimas, que recorda a introdução
de Orpheus, de Ígor Stravinsky (1882-1971). No intermezzo da canção, volto a utilizar o
tema que usei na coda da canção anterior, mantendo uma relação entre elas, para que
sonoramente se tornem, de fato, um ciclo, e não a mera junção de quatro canções. –
Dierson Torres.
Março foi a última poesia que escrevi. De certa forma, me faz lembrar da minha
irmã, porque é o mês no qual ela nasceu. Mas não foi dedicada a ela. A poesia está bastante baseada na de Joseph von Eichendorff (1788-1857) – um dos escritores mais importantes do Romantismo alemão –, utilizada por Strauss na última canção do seu ciclo.
Considero a mais “leve” das quatro. Essa “leveza”, inclusive, foi mantida na música, apesar das semínimas descendentes, que podem ser interpretadas como uma certa
“tristeza”. A aceitação do fim do(s) ciclo(s), que é o que tento passar, é o que tira o “peso”
da poesia/música. A palavra “estação”, já no primeiro verso, é um dos meios de manter
a unidade de relação das quatro estações do ano presentes nas poesias. Porém essa
palavra dá margem para várias interpretações. Possivelmente esta, junto com Agosto, é
a que traz mais traços das experiências felizes que vivi, as imagens dos pés de algodão,
as serras em que moravam minhas avós, avôs, tias, tios, onde minha mãe nasceu e meu
pai cresceu, onde eu brincava com minha irmã e meu irmão por entre as palmas e os
pés de manga e de caju. O entardecer do céu, o qual eu admirava – na cidade – todos
os dias após chegar da escola. Um céu que se fazia rosa, alaranjado, azul, brilhante, de
tantas cores. E a flor de maracujá... – Marília Santos.
Dierson Torres
Marília Santos
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Desde muito pequena sempre admirei a beleza dessa flor. Suas cores, formato. Eu
me pendurava nas cercas, nas árvores, nos lugares onde o pé de maracujá ficava trepado, para olhá-la e sentir seu perfume tão singular. Na época em que escrevi os poemas,
o pé de maracujá que eu havia plantado no jardim da minha casa estava repleto de
flores. Ao escrever, eu quis passar o que sentia todas as tardes quando abria a porta e o
vento trazia, já de longe, o aroma de todas aquelas flores, que são uma mistura de branco, roxo, amarelo, verde, lilás. O cheiro delas me tocava, me penetrava, através do movimento gracioso, às vezes forte, às vezes leve, do ar, do vento. Definitivamente é a flor
mais bela que existe e não se perde em si mesma, na sua beleza, mas torna-se “belo” em
sua continuidade, ao transformar-se num maracujá: fruto, comestível, vida que dá vida.
Se eu tivesse um único desejo poético – mas real –, seria que todas as pessoas, pelo
menos uma vez na vida, pudessem sentir o cheiro da flor de maracujá. – Marília Santos.
Na quarta canção, Agosto, Marília faz um bom paralelo com a poesia utilizada na
segunda canção por Strauss. A composição nasceu de um esboço para uma outra canção, baseada em uma poesia de Hermann Hesse, que não levei adiante. Volto a utilizar o
tema usado nas três canções anteriores, mas agora mais explícito a partir do compasso
34. – Dierson Torres.
Antes de escrever Agosto, dei o nome de Junho, seguindo a ordem dos meses em
que as estações têm início no Hemisfério Sul: Primavera (setembro), Verão (dezembro),
Outono (março), Inverno (junho). Mas, ao começar a “rabiscar” os primeiros versos, percebi que não fazia sentido chamá-la assim. Deveria ser Setembro, o mês em que o inverno “começa a se preparar para fechar seus olhos” e quando “o calor da primavera já
sorri”. Um ciclo que se abre e se fecha no “mesmo lugar”, mas que já é outro. Setembro
é o mesmo do início dos poemas, no entanto já é outro. Todavia resolvi chamar o poema
que fecha o ciclo de Agosto, por uma questão de diferenciação. Não o nomear Setembro
deixa, de certa forma, uma abertura nesse ciclo que se fecha. Não é o fim, é apenas uma
breve finalização de algo que deve continuar se transformando. – Marília Santos.
Essa foi a última canção, das quatro, que Dierson me enviou. Lembro-me de uma
primeira versão dela, que depois ele modificou. Mas já era tão bela quanto a atual. Os
compassos 24 e 25 dizem: “Docemente arrepiam-se as montanhas”. Em seguida o piano faz um movimento, na mão esquerda, de subida e descida (para lá e para cá) que, na
partitura, cria o desenho de várias montanhas. Uma verdadeira cordilheira. Dierson literalmente desenhou em sons o que eu disse em palavras. Naquele momento, sem saber,
eu me apaixonei por Agosto. Eu nem percebi. Embora partitura não seja música em si,
ela é, em muitas situações, muito importante para o registro, a difusão e continuidade
da música e fundamental para nos ajudar a ver coisas que às vezes os ouvidos não estão
atentos. – Marília Santos.
Quando me sentei para escrever as quatro poesias, não estava, necessariamente,
pensando na morte, abordada pelos textos de Hesse e Eichendorff. Eu simplesmente
me deixei levar pelos versos e fui guiada pela música. Tive o cuidado de escolher bem as
frases, de modo que criassem as cores, os cheiros, os sabores, a sensações que eu sentia com cada natureza desenhada nelas. Porém, já desde a primeira, Dezembro, percebi
que se tratava do fim de um ciclo, a própria vida, o próprio ser, que já não aguenta mais,
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que já chegou ao fim dessa jornada. A segunda que escrevi, Setembro, fala, talvez, de
um amor que se foi e que não voltará mais. Pensei que as outras duas também deveriam
tratar de finalizações. Então eu quis falar do final de uma estação do ano mesmo. E assim,
como Hesse faz em September, que fala do fim do verão no Hemisfério Norte, o que
normalmente para os povos de lá é sinônimo de vida, eu falo do inverno, que acaba aqui
no mesmo período, também Setembro/Agosto, que, para quem vive a seca do Nordeste
do Brasil, é o nosso sinônimo de alegria, de renascimento. Mas eu trato a finalização do
ciclo da estação de uma maneira mais leve do que Hesse faz no seu poema. Por fim, em
Março, pensei na finalização de uma forma mais geral, por isso eu digo: “Aproxima-se a
hora de dormir”, como um acalanto. Finalizações, ao contrário do que a sociedade nos
faz acreditar, não são coisas ruins. Tudo vive em movimento. – Marília Santos.
Quando terminei de escrever os quatro poemas, decidi que eles precisavam de um
título para finalizar a unidade de um ciclo. Relendo-os várias vezes, decidi nomeá-los:
Da morte nas estações, pensando na mensagem de finalização de cada um. E recordei-me que um texto poético está aberto a várias interpretações e que, depois de pronto,
ele já não pertence mais, como arte, a quem o escreveu. Ele, como toda e qualquer obra
de arte, liberta-se! Sendo assim, não se trata apenas de uma morte, mas de várias. Vários
fins e muitas oportunidades para novos recomeços. – Marília Santos.
Ainda que os poemas de Das mortes nas estações tenham sido baseados nos utilizados para a composição das Quatro últimas canções, essa relação de escolha de palavras, versos, não acontece de forma “paralela”. Ao observar cada um dos poemas das
canções aqui presentes, pode-se notar elementos de um ou mais poemas de Hesse e
Eichendorff. As relações são cruzadas.
Quando Dierson me enviou a primeira partitura, quase finalizada, disse que gostaria de dedicar a música para alguém. Ao ver que era para mezzo-soprano, a primeira voz
que soou na minha cabeça, enquanto solfejava mentalmente aquela “pintura”, realizada
pelas figuras musicais, foi a de Virgínia Cavalcanti – atualmente professora de canto da
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Eu disse a Dierson que por mim era tranquilo que ele dedicasse para alguém – embora ele não precisasse da minha permissão
para isso. E ele me contou que gostaria de dedicar para Virgínia Cavalcanti. Enviou para
ela Dezembro, que, segundo ele, ela adorou e ainda fez umas sugestões sobre a voz.
Depois disso ele compôs as outras três. – Marília Santos.
Logo após serem compostas, Das mortes nas estações seriam estreadas, no primeiro semestre de 2018, pela própria Virgínia Cavalcanti, no Departamento de Música
da UFPE, no “Concerto dos Professores”. Na época ela ainda não fazia parte do quadro de docentes do departamento. No entanto, representaria o professor Dierson, que,
além de professor e regente, é também compositor. Contudo, por motivos de força
maior – talvez o destino –, as canções acabaram não sendo estreadas.
Embora o ciclo de poemas tenha sido composto separadamente das canções – e
sem intenção de se tornar música –, existe uma conexão clara entre letra e “música” –
entre aspas, porque, numa canção, tudo é música, inclusive a letra – que poderia ser
dito que foram compostas por uma única pessoa. Inclusive a relação que existe entre
elas e as de Strauss é individual. Nunca conversamos durante o processo de criação das
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poesias e das canções. Eu [Marília Santos] escrevi minhas poesias no meu momento,
sozinha, durante uma noite, num período de duas, três horas, aproximadamente. E eu
[Dierson Torres] criei as minhas canções, também na minha solidão, num período de
duas semanas.
Nesse sentido, chamamos a atenção para os processos criativos, que podem aparecer de várias formas e, quando estão acontecendo, muitas vezes não são compreendidos, pois as análises acontecem após os processos. Também gostaríamos de destacar
o quanto a emoção, a relação com as canções, foi importante, tanto para a criação
individual – poema e música – quanto para a conexão, como um elo que liga todas as
partes. O único ponto de discordância entre a poetisa e o compositor é no compasso
20 de Março, em que Dierson colocou um trinado na segunda nota, um Fá (mínima), em
que finaliza a frase: “Rolinhas, pardais, galos de campinas e beija-flores”. Para Dierson,
o trinado representa o canto dos pássaros, enquanto, para Marília, a nota deveria ser
“lisa”, sem trinado, para a(o) ouvinte imaginar os passarinhos pairando, suspensos no ar,
principalmente o beija-flor, que é o último a ser citado. O trinado, para Dierson, é um
lembrete das andorinhas que Strauss coloca no fim da última canção.
Para uma análise mais aprofundada, faz-se necessário um estudo das poesias usadas por Richard Strauss relacionando-as com as escritas por Marília. Note que o próprio
título do conjunto de canções, Das mortes nas estações, recorda claramente a ideia
principal da obra de Strauss, que fala de modo transfigurado da morte. – Dierson Torres.
Escritas setenta anos após as Quatro últimas canções, resolvemos publicar Das
mortes nas estações num periódico para poder difundi-las, para que possam chegar até
outras pessoas e, quem sabe, ser estreadas ainda neste ano, também setenta anos após
a estreia das canções de Richard Strauss.
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Das mortes nas estações (2018)
(Quatro canções para mezzo-soprano e piano)
Dierson Torres
Marília Santos
ORFEU, v.5, n.2, 2020
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Das mortes nas estações (2018)
(Quatro canções para mezzo-soprano e piano)
Dierson Torres
Marília Santos
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Das mortes nas estações (2018)
(Quatro canções para mezzo-soprano e piano)
Dierson Torres
Marília Santos
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(Quatro canções para mezzo-soprano e piano)
Dierson Torres
Marília Santos
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(Quatro canções para mezzo-soprano e piano)
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Marília Santos
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(Quatro canções para mezzo-soprano e piano)
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(Quatro canções para mezzo-soprano e piano)
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(Quatro canções para mezzo-soprano e piano)
Dierson Torres
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(Quatro canções para mezzo-soprano e piano)
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