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O princípio da ampla defesa - Uma reconstrução a partir do paradigma do Estado Democrático de Direito Flaviane de Magalhães Barros Pellegrini1 Marius Fernando Cunha de Carvalho2 Natália Chernicharo Guimarães 3 Introdução O estudo que fazemos do tema ampla defesa surgiu de uma discussão inserida no projeto de pesquisa “Justiça consensual e devido processo legal“, e iniciou-se a partir dos seguintes questionamentos: o princípio da ampla defesa inclui o direito de defesa, ou até, é igual ao direito de defesa? Se assim for, a ampla defesa seria um paralelo ao direito de ação, já que o autor, pela teoria da relação jurídica, exerce seu direito de ação ao provocar a demanda e o réu seu correlato direito de resistir ou de se defender? Como esta perspectiva era inadequada para o marco teórico já adotado pela pesquisa, que visava à compreensão do processo a partir do paradigma do Estado Democrático de Direito, entendeu-se necessário analisar o tema para buscar uma nova proposição. Numa perspectiva popperiana (POPPER: 1999), a cientificidade de uma proposição afere-se pela sua possibilidade de testificação/refutabilidade. Assim, científicas são somente são as teorias passíveis de refutação. As teorias são sempre conjecturas. Nesse sentido, a escolha da melhor teoria dentre todas que tentam resolver o mesmo problema (teorias concorrentes) não deve ser subjetiva. A preferência objetiva diz respeito à escolha da mais resistente às críticas formuladas, capaz de solucionar os problemas das demais e aqueles que as mesmas não conseguiram. Portanto, faz-se necessário testificar as teorias que tentam conceituar o princípio da defesa, pois apesar de sua importância no contexto do paradigma do Estado Democrático de Direito e de sua inclusão no esquema mínimo 1 Doutora e mestre em direito processual – PUC-MINAS. Professora adjunta da PUC-MINAS, no curso de graduação e pós-graduação. Professora da Universidade de Itaúna, no curso de graduação e pós-graduação. Coordenadora técnica de direito processual penal da Escola Superior de Advocacia da OAB- MG. 2 Graduando em direito pela Faculdade Mineira de Direito PUC-MINAS e bolsista de iniciação científica do programa PIBIC/CNPq Brasil. 3 Graduanda em direito pela Faculdade Mineira de Direito PUC-MINAS e bolsista de iniciação científica do programa FIP/PUC-MINAS. 1 unitário que constitui a base principiológica do modelo constitucional prova, não tem sido sistematicamente estudado como ocorre com o princípio do contraditório. O tema ampla defesa apesar de sua importância no contexto do paradigma do Estado Democrático de Direito e de sua inclusão no esquema mínimo unitário que constitui a base principiológica do modelo constitucional do processo, não tem sido sistematicamente estudado como ocorre com o princípio do contraditório. Ambos os princípios quando estudados em bloco fazem ressaltar o contraditório de tal maneira que sugere que a ampla defesa seja uma parte do contraditório ou mesmo que esta foi abarcada pelo contraditório, notadamente, no modelo constitucional de processo italiano. Portanto, torna-se importante estudar outras proposições a respeito da ampla defesa, e vem dos estudos de Italo Andolina e Giuseppe Vignera, uma destas proposições, que relaciona a ampla defesa à posição do juiz no processo. Para se chegar, assim, a uma formulação adequada do princípio da ampla defesa no paradigma do Estado Democrático de Direito, que se inicia com a compreensão de direito de ação em Fazzalari. 1. O direito de defesa como paralelo ao de ação O presente capítulo pretende recuperar, de forma sucinta, a discussão do direito de defesa como paralelo ao direito de ação. No estudo do estado da arte deste tema, observamos que as construções teóricas para a sua conceituação baseiam-se no ponto comum do paralelismo. Podemos apontar poucas diferenças na doutrina que se dedicou ao tema, o que ocorre basicamente no aspecto da qualidade. Couture (1946) há muito já denunciou a escassez da bibliografia que tenha como objeto o esclarecimento do instituto jurídico da defesa. É de se espantar que muito já tenha se escrito sobre ação, mas pouco a respeito de seu assim chamando correspondente-paralelo: o direito de defesa. Se a situação é grave para aqueles que assim entendem a defesa, ousamos afirmar que para a teorização do Estado Democrático ela é ainda mais tormentosa, pois, é necessário revisitarmos as teorias anteriores e, a partir delas, construirmos outras teorizações, as quais devem manter 2 o que há de positivo em suas antecessoras e resolver as questões em que essas falharam4. A gravidade é acentuada pelo pouco material que dispomos para reconstruir. Na obra intitulada “Fundamentos do Direito Processual Civil”, Couture inicia o capítulo II, dedicado ao estudo da exceção5, com a seguinte frase: “entre o problema da ação e o da exceção, é aparente um claro paralelismo”. (COUTURE,1946, p. 57). Segundo o processualista, solicitamos uma resolução de nossas controvérsias para um terceiro imparcial, o Estado. Para tanto, utilizamos um instituto jurídico denominado ação. A instauração de conflitos de interesses assim realizada possui de um lado o autor, que espera que seu pedido seja julgado procedente, e de outro lado o réu, o qual deseja o reconhecimento de sua pretensão, ou seja, a improcedência do pedido autoral. É por isso que o autor afirma que a “exceção é um meio legal de destruir ou adiar a ação intentada” (COUTURE,1946, p. 58). Uma importante observação feita pelo estudioso, ainda que possa parecer singela, é a de que para cada teoria da ação, corresponde uma da exceção ou da defesa. Trata-se de uma observação que após leitura acentuada sobre o tema é trivial, pois, como a defesa é um paralelo da ação, o conceito daquela depende da maneira pela qual se formula o desta, mas que desde já deve estar claro no entendimento do leitor. Nessa linha de argumentação, para concluir a introdução do capítulo, o professor uruguaio cita uma metáfora utilizada por Picard, para assim dizermos, com o intuito de “esclarecer” o tema em análise: “O paralelismo é por tal forma evidente, que os autores que definem a ação como sendo o direito armado em pé de guerra dizem que ‘na exceção, o direito perdeu o capacete, mas conserva ainda o escudo’”. (COUTURE, 1946, p. 58). O primeiro conceito de defesa analisado pelo autor é o do paralelo à teoria imanentista da ação (Savigny), ou seja, “a todo direito corresponde uma ação”. Logo, a ação é somente um apêndice do direito assim chamado material. Na verdade, não há distinção entre direito e ação. A partir do momento da lesão ao direito, o mesmo é perseguido em juízo devido a sua própria dinâmica. Devido à precariedade teórica de tal formulação, o autor a descreve, meramente, com finalidade informativa. Segundo Couture, “a doutrina que considera a ação como um elemento substancial do direito subjetivo não tem palavras muito claras para sustentar o mesmo raciocínio com referência à exceção”.(COUTURE, 1946, p. 58-59). Uma vez entendida a 4 Trata-se do método denominado falibilismo popperiano (Cf. POPPER, 1999). O termo exceção recebeu ao longo da evolução da Ciência Processual vários significados. Isso ficará latente ao decorrer do texto. Todavia, quando não especificado, o termo será empregado como sinônimo de defesa, assim como se encontra na obra ora comentada. 5 3 ação como um adjetivo do direito subjetivo, a defesa nada mais é do que uma expressão particular do mesmo. Assim, todas as objeções feitas à teoria imanentista da ação são extensivas ao conceito de defesa acima descrito. Assevera que essa teoria é incapaz de explicar o fenômeno da “ação improcedente” (sic), logo, também a defesa infundada (COUTURE,1946, p. 60). Após essa análise de cunho informativo-histórico da Ciência Processual, O autor trabalha o conceito da defesa como paralelo à teoria da ação concreta (Wach). Ressaltamos que este estudo feito é importante para o Direito Processual brasileiro, pois, a teoria eclética da ação (Liebman), a qual é adotada pelo CPC/73, encontra parte de sua base teórica na concretude proposta por Wach. É de caráter fundamental para esta doutrina o estabelecimento do conceito de exceção. Segundo lição do professor Moacyr Amaral Santos, que consideramos mais clara nesse aspecto do que a de Couture, as exceções possuem três significados, a saber: Num sentido amplo, “por exceção se entende qualquer defesa do réu, de natureza processual ou de mérito” (SANTOS: 1982, p. 189). Trata-se “de qualquer meio de que se sirva o réu para justificar o seu pedido de absolvição” (COUTURE: 1946, p. 62). Neste caso, exceção é sinônimo de defesa. Num conceito mais restrito, “chama-se exceção a defesa indireta de mérito, a objeção sob duas modalidades, exceção e objeção, ou contestações indiretas do mérito”.(SANTOS: 1982, p. 189). Trata-se de uma argumentação do réu de fato impeditivo ou extintivo que exclua os efeitos da ação (COUTURE: 1946, p. 63). A doutrina exemplifica com a novação. Num conceito ainda mais restrito, “por exceção se entende a defesa de mérito indireta consistente na alegação de fatos geradores do direito de impedir os efeitos da ação, sem negar o fato jurídico constitutivo da pretensão do autor”.(SANTOS: 1982, p. 189). São exemplos o dolo ou o erro. Para os adeptos de teoria da exceção como contra-direito ou concreta, influenciados por doutrina de Chiovenda, só são consideradas verdadeiramente exceções esse último conceito. Nesse entendimento, diz-se que: “Essas exceções são um contra-direito no sentido de que é um poder de anulação dirigido contra um outro direito; não já no sentido de que o demandado, opondo a exceção, reclame algo mais que a rejeição da demanda, senão que neste caso se obtém a rejeição da demanda ainda quando a ação, antes do processo, tivesse vida e eficácia”.(COUTURE: 1946, p. 63). 4 Logo, a prescrição é um exemplo marcante, pois, segundo o autor, o direito era válido antes de sua argüição. O limite destas exceções é estabelecido em correspondência com os limites da demanda. O pedido de rejeição, no caso, não ataca a relação jurídica, a qual fica intacta, pois, para a doutrina clássica, a prescrição impede que se pleiteie em juízo o direito subjetivo devido, todavia, uma vez demandado, nada impede a possibilidade de se defender com fundamento nele. Por fim, podemos afirmar que o preceito de que “só tem ação aquele que tem razão ou direito”, ou seja, uma sentença de mérito favorável, é também aplicado à exceção, com uma peculiaridade, “só tem exceção o réu que possua um contra-direito”. Todavia, ambas as formulações (teoria imanentista e a concreta da exceção) não conseguem explicar o fenômeno jurídico da exceção infundada, falha adquirida de suas bases teóricas, ou seja, a incapacidade da teoria imanentista da ação e da concreta, para elucidarem a ocorrência da “ação improcedente” ······· (sic). É espantoso que somente Couture tenha alertado para esse problema da exceção. A resolução desta falha foi realizada pela teoria da ação abstrata6 (Degenkolb e Plòsz). Seria possuidor de ação mesmo aquele que não obtivesse êxito em sua demanda, ou seja, desprovido de razão. Ou seja, esse direito é entendido “como um puro direito à jurisdição” (COUTURE: 1946, p. 67). Assim, tanto a sentença favorável como a desfavorável são ocorrências que coadunam com a característica abstrata. Trata-se da maior autonomia possível do processo diante do chamado direito material. Como a relação entre ação e exceção desenvolve-se num paralelismo, como descrito ao longo deste capítulo, é forçoso concluirmos que o direito a exceção também é abstrato, ou seja, pode ser fundamentado ou não. Só a sentença final poderá afirmar quem tem razão. Trata-se de um direito geral de oposição. Importante ressaltarmos que mesmo com a tentativa dos teóricos abstracionistas de não vincularem o direito de ação ao resultado final do processo, as formulações de nosso ordenamento jurídico se direcionam ao concretismo. Inicia-se pela disposição constitucional que assevera no art. 5º, XXXV, o denominado princípio da inafastabilidade da tutela judicial, no sentido de que nenhuma lesão ou ameaça de lesão será excluída da apreciação pelo Poder Judiciário, neste sentido, 6 Afirma-se que é espantosa a denúncia solitária de Colore, consideramos mais espantoso que a formulação da teoria abstrata da ação é antecessora da teoria concreta. Na lógica popperiana, isso é um Frankstein jurídico, pois, a sucessora é menos capaz de resolver problemas que a antecessora. 5 a lesão preexistiria ao processo jurisdicional? E se a alegação da referida lesão fosse infundada, o direito ao processo, que os relacionistas denominam direito de ação, não teria sido exercido? Não é somente no texto constitucional que se verifica a influência concretista, ela perpassa diversos institutos do processo, como as condições da ação, entendidas por Liebman como condições prévias para análise do mérito, ou seja, condições para o exercício do direito de ação, já que este é compreendido como direito a uma sentença de mérito. (cf. LIEBMAN, 1985, p. 150-157) Se deste direito de ação entendido como direito de provocar uma demanda, surge um correlato direito de defesa para a parte ré, fica latente que a denominada exceção ou defesa do réu é na teoria da relação jurídica mais limitada que o direito de ação, já que é compreendida como a possibilidade de reação pela alegação e comprovação de um direito extintivo, impeditivo ou modificativo do direito do autor, como criticado por Fazzalari (cf. FAZZALARI, 1992, p.422). No processo penal o direito de defesa também é compreendido como paralelo ao direito de ação, e intimamente ligado ao contraditório. Ressalta Grinover, Fernandes e Gomes Filho: “porquanto é do contraditório (visto em seu primeiro momento, da informação) que brota o exercício da defesa; mas é essa - como poder correlato ao de ação - que garante o contraditório.” (GRINOVER, FERNANDES E GOMES FILH0, 2002, p. 77) Mas defende a doutrina processual penal relacionista, que o paralelismo entre ação e defesa no processo penal se distingue do processo civil, pois neste quem não teve direito de ação porque não provocou a demanda terá direito de defesa, no processo penal não prospera, pois direito de ação somente tem o Ministério Público e o querelante. (Cf. FERNANDES, 2002, p.268,269). Como o princípio da ampla defesa é garantido constitucionalmente no art. 5o, LV da CF 88 igualmente ao acusado e litigantes e partindo da compreensão que a Teoria Geral do Processo se sustenta no Estado Democrático de Direito, pela base principiológica uníssona que se define a partir da Constituição, não há porque definir o tema de maneira distinta entre processo civil e penal, em virtude da especificidade da ação penal no segundo. 2- A ampla defesa como relação entre o juiz e as partes 6 A compreensão da ampla defesa demanda estudos sobre sua aproximação com o princípio do contraditório, notadamente porque eles tendem a se aproximar no paradigma do Estado Democrático de Direito. A aproximação entre os dois princípios perpassa no direito italiano pelo próprio modelo constitucional, já que a sustentação principiológica do contraditório advinha dos artigos 24, comma 2 e art. 3o da Constituição Italiana, que garantia respectivamente o direito de defesa e a igualdade. Como ressalta Nunes: “Tal situação é presente, por exemplo, na doutrina italiana, em face da ausência de texto expresso em sua Constituição, até bem pouco tempo, que garantisse o contraditório. Desta maneira, este teria sido elevado à perspectiva constitucional por força da interpretação do § 2o de seu art. 24, que estabelece a garantia de defesa, e/ou do § 1o do art. 3o, que garante a igualdade formal. (NUNES, 2004, p 43)”. Importante ressaltar que o artigo 24, comma 2, da Constituição italiana, não só corresponde à defesa formal ou técnica, de garantir um advogado ou defensor, mas também uma defesa substancial que garante a participação efetiva da parte na dialética processual para a formação da convicção do juiz. (Cf. ANDOLINA, VIGNERA, 1990, p.165). A doutrina italiana defende que a defesa substancial compreende a equação: defesa = contraditório, contraditório = participação, participação = audiência preventiva sobre elemento relevante para decisão. (Cf. ANDOLINA, VIGNERA, 1990, p 173). Propondo uma nova compreensão e justificação dos referidos princípios no modelo constitucional italiano, ressaltam os autores Andolina e Vignera, que o art. 3º da Constituição Italiana por si só é suficiente para fundamentar o contraditório como um princípio constitucional. Ao passo que o art. 24, comma 2, não se refere a uma igualdade de partes, mas sim a uma relação entre particulares (jurisdicionados) e o Estado (jurisdição). Assim, justificam os autores que o contraditório é uma relação entre as partes, ao passo que o direito de defesa é uma relação entre alguma das partes e o juiz. Nas palavras dos autores: “Concepito così il diritto alla difesa come garanzia riconosciuta alla parte nei confronti dei poteri atribuiti al giudice, emerge chiaramente la sua diversità concettuale rispetto alla garanzia dell’uguaglianza delle armi ( ed al principio del 7 contraddittorio en particulare, staticamente e/o dinamicamente inteso). Mentre quest’ultima, per vero, nel paradigma costitucionale del processo civile rapresenta il canone disciplinante i rapporti tra le parti ( id est: tra i titolari delle contrapposte pretese fatte valere apud iudicem), la garanzia della difesa integra, invece, la formula organizzatoria delle relazioni riguardanti ciascuna parte ( da un lato) ed il giudice (dall’altro lato)”. (ANDOLINA, VIGNERA, 1990, p. 174) Desta forma, propõem os autores uma nova proposição a respeito do direito de defesa, e por conseqüência, do princípio denominado pelo texto constitucional brasileiro de ampla defesa. Na compreensão dos autores o direito de defesa não é de uma parte para com a outra parte, ou de defesa do réu frente ao pedido do autor, mas sim das partes (jurisdicionados) frente ao Estado (Jurisdição) na pessoa do juiz. Assim, o direito de defesa assegura a qualquer das partes o direito de reagir a qualquer ato do juiz que lhe prejudique. Apesar de os autores distinguirem contraditório de ampla defesa, a compreensão da segunda como uma garantia do jurisdicionado face ao Estado jurisdição, não se adequa a uma compreensão do processo no Estado Democrático de Direito, pois acaba mitificando os direitos fundamentais e garantias constitucionais como proteção do indivíduo face ao Estado, numa acepção própria do paradigma Liberal, no qual cabe ao Estado a garantia da certeza nas relações sociais, no respeito dos direitos individuais (Cf.CATTONI, 2002, p.55). Como sustenta Chamon Júnior, a respeito da compreensão dos princípios e garantias constitucionais no Estado Democrático de Direito: “Para tanto parte-se de uma leitura atrelada a uma interpretação liberal do Direito e Política, no sentido de entender, inclusive, os direitos fundamentais como direitos "contra” o Estado, “quando, na verdade, podemos, aqui em específico, interpretá-los, vez que referentes a um procedimento que se dá, pois, em vias institucionalizadas, não como direito “contra” o Estado mas que devem ser perseguidos e respeitados em face de uma atividade institucionalizada no seio do Estado”. (CHAMON JUNIOR, 2005, p 85). Desta feita, aglutinando os estudos já realizados, não podemos compreender a ampla defesa nem como uma garantia idêntica ao contraditório, mas dirigida apenas ao réu por ser garantia correlata ao direito de ação, nem como garantia das partes (jurisdicionados) frente ao poder coercitivo do Estado Jurisdição, que compreenderia a 8 ampla defesa como uma garantia do Estado Liberal de proteção do indivíduo frente ao poder Estatal, pois ambas as proposições são inadequadas no paradigma do Estado Democrático de Direito. 3- A superação do direito de ação como direito de provocar uma demanda O Direito de Ação, como se denota das exposições anteriores, sofreu grandes modificações em seu conceito durante toda a história. Mister se faz, no entanto, ressaltar a grande modificação ocorrida neste conceito de acordo com Elio Fazzalari. Elio Fazzalari reelabora o conceito de ação, retirando-lhe toda a carga de tradições arraigadas, relacionando-o a legitimação ao provimento e não mais como direito de provocar uma demanda e formular um pedido. Para realizar esta transformação, contudo, utiliza os conceitos de situação legitimante e situação legitimada. Assim, distingue-se situação legitimante de situação legitimada, segundo Aroldo Plínio, com base nos ensinamentos de Fazzalari: “enquanto a situação legitimante é contemplada como aquela em presença da qual um poder, uma faculdade ou um dever é conferido ao sujeito, a situação legitimada consiste em uma série de poderes, faculdades, deveres, que se põem como expectativa para cada um dos sujeitos do processo”. (GONÇALVES, 1992, p. 152). Nas palavras do autor: “La legitimazione ad agire va considerata – alla stregua della legitimazione genere, quale nozione di teoria generale- da due angoli. Chiamiano situazione legitimante il punto di agancio delle legitimazione de agire, fuor de metafora la situazione in base alla quale si determina qual’è il soggetto che, in concreto, può e deve compiere un certo atto, e situazione legitimata il potere, o la facoltà, o il dovere – o una serie dei medesimi – che, di conseguenza, viene a spettare al soggetto individuato, val dire il contenuto delle legitimazione, ciò in cui esse consiste”. (FAZZALARI, 1992, p. 300). Para Aroldo Plínio: FAZZALARI faz a revisão do conceito de ação tomando como critério a legitimação para agir, que não pode ser concebida como atribuída apenas ao autor, mas se estende a todos os sujeitos do processo, o que é perfeitamente lógico, pois sem a legitimação para 9 agir não se poderia compreender o fundamento jurídico de seus atos. (GONÇALVES, 1992, p. 144). Torna-se fácil deste modo, notar que para Fazzalari não há que se falar em legitimação ativa e legitimação passiva das partes, pois segundo Aroldo Plínio: (...) FAZZALARI repele, por absolutamente imprópria, a afirmação de que o autor se reveste da legitimação ativa e o réu da legitimação passiva, pois a legitimação para agir é de todos os protagonistas do processo e é “sempre ativa”. Somente em relação ao provimento pode-se falar em legitimação passiva daqueles a quem vem imposto. (GONÇALVES, 1992, p. 152). Esclarecido em linhas gerais o que é a ação e o próprio direito de ação para Fazzalari, urge-se, destacar que não se deve contrapor ação e exceção, como ressalta Fazzalari, pois exceção é uma figura muito mais limitada, já que compreende apenas a alegação de fatos extintivos, impeditivos do direito alegado pelo autor.(Cf. FAZZALARI, 1992, p. 422) Portanto, um conceito muito mais restrito que o compreendido na posição de simétrica paridade dos interessados e contra-interessados, que gera para ambos uma série de direitos, deveres e faculdades simétricos. Importantes, parece-nos, são as implicações desta conclusão, pela qual têm ação no processo todos aqueles que realização uma série de atos, direitos, faculdades e deveres. Principalmente, no que tange ao confronto entre as atuações do autor e do réu. Pois, tanto um, quanto outro, possuem faculdades, direitos e deveres, relativos à construção do processo como procedimento em contraditório, entendido como posição de simétrica paridade entre eles. Logo, não se pode falar em legitimação ativa do autor e legitimação passiva do réu. Pois, ambos são legitimados ativos do contraditório. Se há alguma legitimação passiva das partes, esta se refere à legitimação ao provimento jurisdicional, pois serão eles os afetados pela decisão. Deste ponto o direito de ação como legitimação ao provimento, ou apenas, direito ao processo constitucionalmente garantido, se une a compreensão do contraditório, pois como autor e réu são legitimados ativos ao provimento, participaram da construção do provimento jurisdicional em simétrica paridade. Assim, a ampla defesa há de ser concedida a todos em igual proporção sob pena de quebrar-se um dos princípios institutivos do processo, qual seja, a simétrica paridade. Por isso, não há que se falar em direito de defesa privativo do réu, como querem 10 os relacionista, mas em direito de defesa tanto do réu quanto do autor, fazendo com que seja, desse modo, respeitado o princípio da ampla defesa em seu mais abrangente aspecto. 4- A ampla defesa como ampla argumentação – Uma reconstrução a partir do Estado Democrático de Direito Partindo da compreensão de que o direito de ação é na verdade o direito ao processo, que, portanto, independente da posição de autor, réu, interveniente, todos os afetados pelo provimento estarão exercendo o referido direito, podemos afirmar que o contraditório dará a cada uma das partes a oportunidade de participar da construção da decisão. Desta feita, o contraditório entendido como posição de simétrica paridade entre os afetados pela decisão (Cf. FAZZALARI, 1994) é entendido não como a ação e reação ou o dizer e o contradizer, mas sim como a estrutura argumentativa que propicia as partes intervirem de maneira participativa em toda a construção do provimento jurisdicional juntamente com o juiz. Ou seja, não será apenas a decisão final (sentença) que será construída participadamente, mas toda a estrutura procedimental que gera o provimento final que garante a simétrica paridade entre os afetados. Assim, tomando estes dois conceitos como base – direito de ação e contraditório –, a ampla defesa será compreendida como garantia das partes de amplamente argumentarem, ou seja, as partes além de participarem da construção da decisão (contraditório), têm direito de formularem todos os argumentos possíveis para a formação da decisão, sejam estes de qualquer matiz. Isto, pois a recorrente afirmação da distinção entre argumentos de fato e de direito, aqui estão compreendidos como indissociáveis. Assim, a ampla argumentação garante como conseqüência lógica a possibilidade de ampla produção de prova para a reconstrução do fato e circunstâncias relevantes para o processo. Necessário, portanto, trabalhar a garantia retirando toda a carga pandectista que o termo defesa agrega, já que trabalha a noção de que se alguém se defende, é porque alguém ataca, logo a terminologia ampla defesa reforça a dicotomia própria da teoria da relação jurídica, que a todo direito violado há sempre um correlato dever descumprido (Cf. Pellegrini, 2005), e também a noção de direito de ação como mero direito de provocar a 11 atuação jurisdicional. Assim, melhor tratarmos o direito de ação como direito ao processo, e ampla defesa como ampla argumentação. Importante, ressaltar, que na proposição da ampla argumentação abarca-se tanto a possibilidade de a parte formular teses jurídicas a respeito dos temas a serem decididos, sejam argumentos jurídicos processuais e sejam argumentos quanto ao mérito da decisão, mas também a possibilidade de reconstrução de fatos relevantes para a formação da cognição, ou seja, o amplo direito de produção da prova por meios lícitos. Como linha convergente a esta proposição, encontramos Rosemiro Pereira Leal: “O princípio da ampla defesa na teoria neo-institucionalista do processo é que vai permitir defesas não só em face de defeitos procedimentais ou contra o mérito, mas numa concepção expansiva da negação ou afirmação de constitucionalidade dos atos e conteúdos jurídicos das pretensões e de sua procedimentalidade formal. Ampla defesa é nessa concepção o direito processualmente garantido a um espaço procedimental cognitivo à construção de fundamentos obtidos dos argumentos jurídicos advindos das liberdades isonômicas exercidas em contraditório na preparação das decisões”. (LEAL, 2002. p. 171) Neste sentido, também, nos parece a elaboração proposta por Lucio Chamon Júnior: “Se interpretarmos o contraditório como o reconhecimento de iguais possibilidades de participação no procedimento, por sua vez o direito de ampla argumentação há que ser a todos os envolvidos reconhecido como o direito de trazer à discussão institucionalizada, que é o processo, toda e qualquer questão que entendam ser relevantes também, e mais uma vez, para a reconstrução do caso e do Direito a fim de que seja construída a decisão do caso”. (CHAMON JÚNIOR, 2005, p 87) Contudo, um reparo deve ser feito à citação, reforçando conceito já proposto pelo autor do que se compreende como ampla argumentação. Pois, fazer a distinção entre a reconstrução do caso e do Direito vai de encontro com o marco proposto, qual seja, a teoria procedimentalista ( Habermas, 1997) e a teoria da argumentação jurídica de Günther, já que o direito adequado somente pode ser argumentativamente definido no espaço procedimentalizado do processo a partir do caso concreto, separar argumentos de fato e de Direito possibilita a limitação da argumentação a uma só das matizes. 7 7 Na fase recursal esta prática é recorrente limitando recursos a questões de Direito e não de fato. 12 Deste modo, contraditório e ampla argumentação não são garantias iguais, mas se distinguem, sendo visível a aplicação a um processo jurisdicional. Pois, pode haver processo com garantia de participação na construção da decisão, mas que tenha reduzida a garantia da ampla argumentação. Exemplificando, em processo nos quais em nome de uma pretensa celeridade para garantia de uma ordem jurídica justa como acesso à justiça, foi estabelecida a sumarização do procedimento, política adotada primeiramente no processo civil, mas que também gerou “filhotes” no processo penal (Lei 9.099/95, 10.409/ 02). A sumarização do procedimento priva, portanto, a parte, mais ainda aquele que se encontra como parte contra-interessada, do tempo necessário para formulação de teses e em alguns casos, limitação na produção de provas, já que impede a utilização de determinados meios de provas. Isto porque a ampla argumentação apesar de estar limitada pela preclusão, pois ela não pode ir além do tempo do processo (que finda com o trânsito em julgado da decisão), também não pode ser exígua a ponto de privar a parte do tempo mínimo para a sua formulação, gerando um processo nulo. Também é visível o desrespeito à ampla argumentação na transação penal, já que o autor do fato negocia com o Ministério Público sem conhecimento prévio da imputação a qual responderá no processo, podendo assim gerar transações de fatos que nem mesmo seriam típicos, isto é, fatos que se subsumem a uma norma de direito penal. Portanto, a ampla defesa deve ser vista não somente como o direito de se defender, mas principalmente, a garantia de produção irrestrita de provas dentro de um espaço devidamente procedimentalizado (devido processo legal), que assegure tanto ao réu quanto ao autor a simétrica paridade e o próprio contraditório. 5- Conclusão Assim, podemos concluir retomando as duas perguntas /questionamentos feitos no início do presente trabalho. O Direito de defesa é uma formulação própria da Teoria da Relação Jurídica e neste caso ele pode corresponder ao direito de defesa do réu e o princípio da ampla defesa como garantia apenas destes (réus) face ao direito de ação do autor, ambos garantidos constitucionalmente. Contudo, esta formulação não nos parece adequada ao paradigma do Estado democrático de Direito, já que nesta formulação o direito de defesa é mais restrito que o direito de ação. Ademais, o direito de ação somado ao de defesa não se iguala ao 13 contraditório, somente se este for considerado como rechaçado no trabalho como ação e reação, dizer e contradizer. De outro modo, a proposição de direito de defesa como direito das partes (jurisdicionados) face ao Estado (Jurisdição) também não se adeqüa ao paradigma do Estado Democrático de Direito por se demonstrar uma compreensão liberal dos direitos e garantias fundamentais, vistos como meros limites à atuação estatal. Assim, partindo da compreensão do direito de ação como legitimação ao provimento, ou simplesmente, direito ao processo, conferido igualmente a todos os afetados pelo provimento, pois possuem direito, faculdades e deveres, já que possuem situação legitimante ( Fazzalari) e da definição do contraditório como a garantia de simétrica paridade entre os afetados pelo provimento ( Fazzalari), ou seja, o espaço argumentativo no qual as partes participam da construção da decisão, conclui-se que ampla defesa em uma interpretação constitucionalmente adequada ( Günther) deve ser entendida como ampla argumentação. Isto é, ampla possibilidade das partes inserirem na controvérsia argumentos relevantes para a construção da decisão e ampla possibilidade de produção de provas para reconstrução de fato relevante para o processo. Desta feita, verifica-se que diversos institutos do direito processual, mesmo garantindo um pretenso contraditório podem de forma incisiva atingir a ampla argumentação, como na sumarização dos procedimentos, e no caso dos juizados especiais criminais através de uma transação que se efetiva sem que a parte ( autor do fato) conheça a imputação a qual será formulada no processo penal. 6-Referências Bibliográficas ANDOLINA, Italo; VIGNERA, Giuseppe. I fondamenti constituzionali della giustizia civile: il modello constituzionale Del processo civile italiano. 2. ed. Torino: G. Giappichelli Editore, 1997. CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002. 14 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Princípios normativos de persecução ao “crime organizado”: uma discussão acerca do devido processo penal no marco de uma compreensão procedimental do Estado de Direito. Revista do curso de direito. Nova Lima, v. 3, n.5, p. 71-91, 1o sem. 2005. 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