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Versão Final Dissertação

1 2 Índice Dedicatória.......................................................................................................................5 Agradecimentos...............................................................................................................6 Resumo............................................................................................................................7 Abstract............................................................................................................................8 INTRODUÇÃO.............................................................................................................10 CAPÍTULO 1................................................................................................................12 1.1. Alves Redol e o “trabalho sério de gente nova” – Enquadramento histórico, político, social e cultural em Portugal.........................................................12 1.2. Pelo povo e com o povo! – Folclore, Ribatejo, Tejo e Avieiros................23 CAPÍTULO 2.................................................................................................................33 2.1. Quotidianos de sobrevivência – Trabalho de campo..................................33 2.3. Como escreve Redol? Aproximações ao seu processo criativo..................43 CAPÍTULO 3................................................................................................................55 3.1. A paisagem na literatura – Reflexões acerca da representação do espaço..55 3.2. Os avieiros de hoje – O leitor do passado e do presente.............................63 CONCLUSÃO...............................................................................................................71 Bibliografia....................................................................................................................73 Webgrafia.......................................................................................................................76 Anexos (registos fotográficos).......................................................................................77 3 Índice de figuras Figura 1 – Alves Redol junto à fonte luminosa.................................................................5 Figura 2 – Passeio no Tejo..............................................................................................12 Figura 3 – Barco avieiro, homem e mulher a manusear a rede ©1999 Carlos Pinto......23 Figura 4 – Alves Redol com um grupo de avieiros que constrói o barco de pesca.........33 Figura 5 – Alves Redol junto da máquina de escrever....................................................43 Figura 6 – Família avieira na faina da pesca © Câmara Municipal de Vila Franca de Xira / Museu Municipal de Vila Franca de Xira.............................................................55 Figura 7 – Pontes, Vila Franca de Xira ©2011 Pedro S. Lobo / Coleção Museu NeoRealismo, Portugal..........................................................................................................63 Figura 8 – Lápide Alves Redol. Foto por Cristiana Oliveira e edição por Andreia Seara................................................................................................................................77 Figura 9 – Museu do Neo-Realismo. Foto por Cristiana Oliveira..................................78 Figura 10 – Avieiro em Vila Franca de Xira. Foto por Cristiana Oliveira......................78 Figura 11 – Homenagem a Alves Redol na Palhota. Foto por Cristiana Oliveira...........79 Figura 12 – Barco avieiro na Palhota. Foto por Cristiana Oliveira.................................79 Figura 13 – Casa Típica Avieira na Póvoa de Santa Iria. Foto por Cristiana Oliveira....80 Figura 14 – Alves Redol com compadre avieiro Manuel Guerra, no Esteiro do Nogueira..........................................................................................................................80 Figura 15 – 1ª página do manuscrito do romance Avieiros, onde se dirige a Jerónimo Tarrinca............................................................................................................................81 Figura 16 – Glória do Ribatejo: elementos etnográficos – digitalização do mapa ribatejo.............................................................................................................................81 Figura 17 – Digitalização da "Alegoria de Manuel Ribeiro de Pavia para Avieiros" In Alves Redol: Horizonte revelado....................................................................................82 4 Dedicatória Para Alves Redol. Figura 1: Alves Redol junto à fonte luminosa1 1 In ESPLIT-RED/FOT/A21/8.51/CX.27/DOC.5 5 Agradecimentos É preciso viver, não apenas existir. (Plutarco) De coração aberto, agradeço... o amor incondicional de Mãe e Pai. o companheirismo perseverante do Xavier. a orientação norteada da Prof.ª Dr.ª Cristina Santos. as boas amizades das colegas de Mestrado. a sabedoria dos Professores(/as) do Mestrado em Literatura Comparada (2020/2021). o encanto dos claustros da Universidade de Évora. o contato direto com o Eng. António Mota Redol. o acolhimento do Museu do Neo-Realismo, em especial, a amabilidade da Dra. Odete Belo e da Dra. Cristina Porfírio. a prontidão da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira e da Fábrica das Palavras, com destaque, o Dr. Alexandre Sargento e a Dra. Mónica Pereira Alves. a disponibilidade do Dr. David Santos, da Dra. Paula Godinho e da Prof.ª Helena Briosa. a afabilidade da Dra. Eduarda Dionísio da Casa da Achada. a fotografia de Pedro Lobo. o trabalho de revisão da tradutora Jani Dunne. o trabalho de edição fotográfica de Andreia Seara. a hospitalidade de Valentina Alvarez em Vila Franca de Xira. os laivos de inspiração da amiga Rita Lança, do amigo Eduardo M. Romano e do Prof. Dr. António Cândido Franco. a vigilância silenciosa das verdadeiras amizades. E, ainda de coração aberto, rasgo-me na verdade das planícies alentejanas, das lezírias ribatejanas e das encostas durienses. 6 ALVES REDOL, UM ESCRITOR EM CONSTRUÇÃO: O ESPÓLIO E O ROMANCE AVIEIROS Resumo: A partir do espólio de Alves Redol exploro a memória do escritor e dos avieiros. Para isso, numa primeira parte procuro apresentar um breve retrato do contexto histórico, político, social e cultural em Portugal e na Europa no século XX e sobre o Ribatejo e a comunidade avieira. Seguidamente, exploro o trabalho de campo e a forma empírica como o escritor o desenvolveu. Como exercício de análise da escrita redoliana comparo a 1ª e 5ª edições. Para finalizar, apresento algumas conclusões e reflexões acerca das paisagens e dos avieiros de hoje. Palavras-chave: Neo-Realismo, Alves Redol, espólio, avieiros, paisagem. 7 ALVES REDOL, A WRITER IN THE MAKING: HIS OEUVRE AND HIS NOVEL AVIEIROS Abstract: From the work of Alves Redol, I explore the memory of the writer and of the “avieiros”. To do so, in the first part I aim to present a brief portrait of the historical, political, social and cultural context in Portugal and Europe in the 20th century and of Ribatejo and the “avieira” community. I then explore the fieldwork and the empirical way in which the writer developed it. As an exercise in analysis of his writing, I compare the 1st and 5th editions. Finally, I present some conclusions and reflections about the landscapes and the “avieiros” of today. Keywords: Neo-Realism, Alves Redol, oeuvre, avieiros, landscape. 8 Nada até hoje me tornou mais feliz do que esta busca ansiosa, e tantas vezes dramática, de me realizar como escritor. Alves Redol In Gazeta Musical e de Todas as Artes (1961) Regressar a Alves Redol e a Avieiros é, portanto, mais do que regressar a um romance; é regressar a um povo. João Francisco Gomes In Avieiros, hoje (2022) 9 INTRODUÇÃO A presente tese compromete-se em estabelecer um diálogo entre Alves Redol e os avieiros, tendo como fontes principais, o espólio e as duas versões do romance Avieiros. Adjacente a esta investigação está a potencialidade do processo de criação como um processo de construção da verdade do escritor, do homem e do mundo. Alves Redol sempre viu com demasiada lucidez e sempre falou com demasiada franqueza, sendo o romance o género literário mais adequado à matéria real da vida; em perpétua evolução e indagação, tal como o homem e o escritor. Para compreender melhor a inovação do Neo-Realismo e o propósito de Redol, exploro o enquadramento histórico, político, social e cultural de Portugal no capítulo 1. Ainda no mesmo capítulo, circunscrevo a análise ao Portugal folclórico rural ribatejano e explico a importância do estudo do folclore e do Cancioneiro do Ribatejo na complementaridade com Avieiros. O capítulo 2 encontra-se diretamente interligado ao espólio e ao romance Avieiros, fruto da observação do esboço criativo dos apontamentos e do manuscrito que deram origem à primeira edição do romance em 1942. O manejo dos documentos orientou-me na interpretação das pistas, muitas delas subjacentes nas entrelinhas do diário de campo e do corpus do romance. Partindo dessa perspetiva, demonstro a envolvência de Redol na lógica neo-realista e a relevância do seu trabalho de campo para a formação de uma nova consciência social e estética, para a criação literária e para o entendimento do povo. Sobre o ponto de vista do escritor, comparo elementos prefaciais pertinentes que exprimem diálogos de Redol com o Neo-Realismo, com a criação e com o romance. Sobre o ponto de vista da personagem principal d’Avieiros, comparo elementos narrativos da 1ª e 5ª edições, traçando a linha evolutiva da primeira versão para a segunda. Finalizando com o capítulo 3, apresento os ecos da narrativa redoliana nas paisagens sociais e culturais dos avieiros na contemporaneidade. Ancorada à voz humana de Redol e, intrinsecamente, às vozes esquecidas do povo avieiro, apreendo os discursos e os espaços que as paisagens avieiras convocam. Enumero contributos importantes de organismos, investigadores e artistas acerca dos Avieiros de Redol e acerca dos avieiros de agora. Exploro as dimensões desses contributos e/ou desses projetos que conservam e revitalizam a memória nas várias áreas culturais e sociais e abrem caminhos para novas leituras e novos leitores, para o projeto literário-social de Redol e para a reafirmação da comunidade avieira no património cultural do século XXI. 10 Alves Redol foi um homem do seu século, imiscuído na realidade, ciente da sua verdade e escritor do seu povo, cujas marcas do passado ainda vivem no presente através dos seus testemunhos. Esta tese lidará sobretudo com as marcas da memória do espólio e do romance Avieiros, sob a égide neo-realista e sob o olhar atual do nosso século, sendo mais um contributo para a memória viva de Redol e dos avieiros. 11 CAPÍTULO 1 1.1. Alves Redol e o “trabalho sério de gente nova” - Enquadramento histórico, político, social e cultural em Portugal A arte não é só talento, mas sobretudo coragem. Glauber Rocha Figura 2: Passeio no Tejo2 2 In ESPLIT-RED/FOT/A21/8.28/CX.27/DOC.28 12 Alves Redol viveu um ‘século de forja’. A plena consciência de missão na sua ação interventiva e na sua criação literária determinaram o combatente cívico e o escritor do povo. Integrado na força coletiva, projetou-se na história sociocultural portuguesa e numa era que renunciava todos os direitos humanos. Proponho-me assim a identificar as respetivas tensões do século XX em Portugal e na Europa e do Neo-Realismo português que exerceram uma relação de pertinência na trajetória de Redol e do romance Avieiros. O século XX foi um século bélico e totalitário. Viveram-se tempos de inquietações vivas e de extrapolação de limites morais, éticos e económicos, incrementando o desprezo pela existência alheia e a proletarização das vastas camadas da população: “esta Europa entrou na fase central da carreira louca da morte; começou a descida aos infernos.” (Caraça, 2008, p.85). A Cultura Integral do indivíduo – problema central no nosso tempo 3 do humanista Bento de Jesus Caraça (1901-1948) sugere a análise racionalista dos problemas do seu tempo através do questionamento de antagonismos irreconciliáveis da História da Humanidade: destruição do homem; admiração pelo corpo humano; luta no espaço e no tempo entre o individual e o coletivo (domínio do individual sobre o coletivo); maquinismo; trabalho escravo, entre outros. Os problemas sociais, gerados por esses antagonismos, são vários. O principal é o da independência económica que é condição sine-qua-non para a senda da cultura e para a conquista da liberdade, segundo modelos capitalistas. Neste seguimento, a sua abordagem remete para problemas basilares através de soluções parcelares. Considera a definição dos termos indispensável - civilização, cultura, sabedoria, humanismo, humanidades - antes da colocação do problema. A desmitificação da falsa sinonímia dos termos implica um esforço meditativo para diferenciar os graus e para identificar os abismos entre os mesmos. Cultura não é o mesmo que civilização e sabedoria depende do grau de saber de cada um: “Ser-se culto não implica ser-se sábio; há sábios que não são homens cultos e homens cultos que não são sábios [...]” e “[...] um povo pode ser civilizado e não ser culto e vice-versa.” (Caraça, 2008, pp.77-78). Os homens sábios ou não-sábios podem tornar-se civilizados pelo progresso científico e pela utilização que dele se faz para questões económicas e podem tornar-se cultos pelo modo como entendem o progresso e as relações sociais. No texto Humanismo e Humanidades4, Caraça problematiza o conceito de humanismo, Conferência realizada na União Cultural “Mocidade Live” em 25 de Maio de 1933. In A Cultura Integral do Indivíduo. A primeira parte foi publicada no número 301 d’O Diabo a 29 de Junho de 1940. 3 4 13 mencionando a presença do elemento permanente e transitório e distinguindo as duas grandes formas - um humanismo do homem pelo homem e um humanismo do homem pelo grupo. Ele afirma que o contingente dominador é o transitório e que a tendência recente é o homem pelo grupo, porque o mundo está economicamente arruinado e socialmente desequilibrado 5. Assim apela-se a um “novo humanismo” 6, do homem pelo grupo, integrado no meio em que vive e na resolução dos problemas. Para despertar a alma coletiva das massas é imperativo pensar as partes no todo e o todo nas partes, ou seja, contemplar os níveis de sabedoria e cultura de cada civilização através de várias formas de humanidades, como vias de acesso às variações de humanismo. Como esforço prévio de pensamento, a articulação destes conceitos sociais é uma etapa importante para desconstruir dogmas e entender a sociedade e o ‘outro’. Ancorada na reflexão teórica dos textos anteriores, escritos em 1933 e 1940, as dinâmicas do século XX evidenciam-se. Em termos ideológicos, o nacionalismo do século XIX e o internacionalismo do século XX balizaram as duas grandes guerras Primeira Guerra Mundial de 1914 a 1918 e Segunda de 1939 a 1945 – e fomentaram anos de conflitos entre vários países, sendo o tratado de Versalhes (1919) insuficiente na manutenção duradoura da paz. As convulsões da imposição da ditadura e a crise do Iluminismo (século XVIII) e do Liberalismo (século XIX) precipitaram intolerâncias entre os extremismos de direita e de esquerda. Refiro por exemplo: a ascensão do nazismo em Itália em 1922 e na Alemanha em 1932-1933; o Estalinismo de 1924 a 1953; a Guerra Civil espanhola de 1936 a 1939; a ocupação da França pela Alemanha de 1940 a 1944; a Guerra Fria de 1947 a 1989 e a guerra colonial portuguesa de 1961 a 1974. A hegemonia totalitarista, aliada à produção belicista desenfreada, tiranizaram minorias, escravizaram o proletariado e exterminaram etnias minoritárias. Portugal não foi exceção à regra. De 1933 a 1974 decorreu a ditadura mais longa da Europa do século XX – a ditadura militar do Estado Novo com António Oliveira de Salazar (1889-1970) e, posteriormente, com Marcello Caetano (1906-1980). Durante os seus mandatos foram implementados mecanismos legais e severos contra os opositores do regime, tais como, a aprovação dos estatutos da União Nacional em 1930; a Constituição Política Portuguesa de 1933; o Grande depressão (1929-1939) e crise de 1929. “O novo humanismo corresponde em filosofia a um mergulho na realidade [...] pretende retirar de sobre a realidade o nevoeiro espesso dos pseudoproblemas e das atitudes mistificadoras [...] pretende arrancar o seu pseudopensador do pseudopensamento e mergulhá-lo na vida e na realidade [...]” In Ramos de Almeida, A. (1942). Diletantismo e humanismo. In C. Reis, Textos teóricos do Neo-Realismo português (pp.119121). 5 6 14 “Estatuto do Trabalho Nacional”, a proibição dos sindicatos livres e a Censura prévia à imprensa em 1933; o campo de concentração do Tarrafal de 1936 a 1974; as prisões de Caxias, Aljube e Peniche; a Mocidade Portuguesa e a Legião Portuguesa em 1936; a PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado) de 1945 a 1969; a propaganda ideológica da “política de espírito” de António Ferro e a perseguição dos opositores do regime. Os sobreviventes que assistiram à revolução dos cravos, no tão desejado e inesperado 25 de Abril de 1974, ainda acreditaram numa democracia mais justa e num futuro mais próspero. Ao invés disso, seguiu-se um pós-revolução conturbado com seis governos provisórios e instabilidade socioeconómica. Comparativamente a outras ditaduras, muitos consideram a ditadura portuguesa uma ‘democratura com pezinhos de lã’; talvez por esquecimento, talvez por inexperiência. A verdade é que aconteceram atrocidades, as quais tornaram a atmosfera mais densa e ensimesmada em si mesma: “Este policiamento simultaneamente exterior e interior tornava o escritor português um exilado na sua própria escrita.” (Viçoso, 2011, p.20). Conforme Vítor Viçoso, crítico especialista do Neo-Realismo, o estrangulamento da intelectualidade dos escritores portugueses sujeitá-los-ia à censura prévia informal ou à captura dos livros não filtrados nas livrarias. Este processo ignóbil era invasivo para os escritores e custoso para as editoras. Contudo, também reuniu condições para a emergência de uma prolífica teorização, tendencialmente marxista. Os jornais e as revistas de ideias e cultura7, algumas de pendor regional, fizeram circular as novas teorias e questionaram as “certezas indiscutíveis”. Deparo-me então com um panorama complexo, de fronteiras ténues entre o salazarismo e o comunismo, por onde Redol atua. As fases pelas quais atravessa a sua obra refletem a sua inquietude política e a sua experiência africana (1989-1931)8, fortemente consciencializadora para os problemas do povo português. Como disse Fernando Mendonça da Universidade de São Paulo: “Não era difícil escrever um bom romance neo-realista em presença de uma realidade tão amargurada.” 9. Concordo que a amargura providencie material ao escritor, mas não o suficiente. Não bastava estar só em presença, mas também em vivência: “Para ser artista é necessário, principalmente, ser homem. E ser homem, minhas senhoras e meus senhores, é viver dentro da humanidade, 7 Consultar o depósito online: http://ric.slhi.pt/. Alves Redol: experiência africana. In A. M. Redol & V. Viçoso, Alves Redol fotobiografia fragmentos autobiográficos (pp.20-23). 9 Referência aos Mineiros (1944) das minas de Jales de Manuel do Nascimento (1912-1966). 8 15 atingir um fim que conhecemos e lutar.” (Redol, 1936)10. A evocação de uma posição moral, veementemente vincada por conceitos de humanidade, conhecimento e luta, reafirma o homem antes do artista e define a premissa da palestra “Arte” (1936) no Grémio Artístico Vilafranquense. Reconhecida como uma das primeiras afirmações do Neo-Realismo em Portugal, Redol defende a feição social da arte, difundida por dois filósofos e teóricos marxistas russos – a “arte utilitária” de Gueorgui Plekhanov (18561936) e a arte como “meio de socialização dos sentimentos” de Nikolai Bukharine (18881938). No mesmo ano da palestra, formou-se o primeiro Grupo Neo-Realista de Vila Franca - Alves Redol, António Dias Lourenço (1915-2010), Garcez da Silva (1915-2006) e Bona da Silva (1913-1983) – e um ano depois juntaram-se novos elementos - Mário Rodrigues Faria (1921-2004), Arquimedes da Silva Santos (1921-2019), Carlos Rodrigues Pato (1920-1950), Emílio Lopes e Júlio Goes (1909-1989): O ano de 1936 foi, com efeito, de grande significado para a história do neo-realismo, melhor dito, do realismo socialista, pois «neo-realismo» era apenas uma designação inventada, para iludir a vigilância censória quanto ao verdadeiro sentido deste movimento artístico-literário, empenhado num projeto de sociedade socialista. (Silva, 2021, p.93) Antes do triunfo da “designação inventada”, coexistiram outras, tais como, “novo realismo”, “realismo sociológico” e “novo humanismo”. Alves Redol e o Grupo NeoRealista de Vila Franca (1990) de Garcez da Silva revela os novos horizontes rasgados no realismo e no humanismo através da literatura e das artes, por um grupo de jovens ativistas dos anos 30/40 da região vilafranquense. A sintonia com os problemas sociais, políticos e económicos e com as preocupações cívicas, estéticas e literárias criaram sólidas amizades e incorporaram um movimento cívico-literário, denunciador das injustiças sociais e estimulante de novos valores literários e culturais. O compromisso literário materializou o movimento do Neo-Realismo na resistência ao fascismo. Os polos físicos de atuação foram a associação Sport Lisboa e Vila Franca e o Grémio Artístico Vilafranquense11. A tese sobre o Ateneu Artístico Vilafranquense12 (2008) do historiador Reprodução da palestra “Arte” In ESPLIT-RED/PL-ENS/A21/4.9/CX.13/DOC.10 Fundado em 1891 como Fanfarra 1º de Maio; em 1906 Grémio Popular Vilafranquense; em 1916 Grémio Artístico Vilafranquense e em 1938 Ateneu Artístico Vilafranquense. 12 O Ateneu e os anos do estado novo. In Ateneu artístico vilafranquense: da monarquia constitucional à adesão europeia (pp.189-226). 10 11 16 de arte e curador David Santos 13 aprofunda a dimensão interventiva, social e cultural de um lugar numa agenda política e demonstra a sua permeabilidade no teste do tempo. Os princípios desta associação foram sempre bem claros: desenvolvimento comunitário; coesão social; promoção de atividades culturais, recreativas e desportivas; democracia; solidariedade; reciprocidade; cooperação; ética; transparência; eficiência; qualidade; inovação e sustentabilidade. A passagem das gerações pelo mesmo organismo recriou um espaço aberto ao diálogo e à clarificação dos problemas político-sociais vigentes. Diferentes décadas, diferentes orientações; sempre norteadas pelas necessidades artísticosociais. Durante a década de 30/40 preponderou uma orientação mais política e social, dando conta dos acontecimentos nacionais e internacionais. Nesse momento, Redol fez parte da Comissão da Cultura. A partir da década de 50, a sua orientação redirecionou-se para a música como função sociocultural de entretenimento e recreio. Na década de 60, nas revoltas estudantis (1962 a 1969), o número de sócios e colaboradores aumentou, dinamizando setores e promovendo eventos. Extensivamente ao associativismo em terra, os passeios no Tejo a bordo do barco “Liberdade” de Jerónimo Tarrinca abarcaram colaboradores d’O Diabo14, intelectuais de esquerda, estudantes, homens de letras, matemáticos, historiadores, arquitetos e economistas 15. O debate intelectual e o sentido coletivo firmaram ideologias políticas e pressupostos neo-realistas. A sólida união na luta “contra-poder” faz eco até aos dias de hoje e ainda dá que pensar: “Hoje, custa a perceber como [...] ainda havia ânimo para lutar.” (Mota Redol, 2019, p.274). O endurecimento da repressão nacional e internacional e a incerteza da situação histórica ameaçadora16 pediram um reposicionamento estratégico de ação e inscreveram o Neo-Realismo português “[...] na tendência mundial da arte revolucionária nos anos 30 [...]” (Ferreira, 1992, p.11). Apesar da vigilância censória, o movimento estético-literário do Neo-Realismo portou o realismo social, integrado na luta do povo português pela libertação. Contrariamente aos neo-realistas, os presencistas atrelaram o seu ideário às tendências da modernidade, mais próximas da “arte pela arte”, da literatura introspetiva e das teorias inconscientes de Sigmund Freud (1856-1939). A falta de extrospeção da revista Presença (1927-1940), oposta à revista Orpheu (1915), rotulou a literatura 13 D. Santos, comunicação pessoal, 25 de Novembro de 2021. Encerramento do jornal pela PIDE, em 21 de dezembro de 1940, após a publicação nº326. 15 Ver figura 2, p.12. 16 Crise económica do final dos anos 20; acontecimentos políticos-ideológicos como a difusão e implantação de regimes totalitários e deflagração da Segunda Guerra Mundial. 14 17 presencista como a “literatura alienada”. Entendo que a eminência e o desbastamento das guerras tenham contraído contextos de puro marasmo. Os seus catalisadores foram o romance psicológico e a poesia com conotações românticas, a par das vertentes europeias 17 de uma modernidade em falência. Desta forma, o apoliticismo presencista deu lugar ao engajamento neo-realista que, por sua vez, constituía o reflexo mais nítido das influências sociais e políticas, embora ainda se encontrassem reminiscências da dialética entre tradição e renovação no discurso neo-realista. A tese de doutoramento Alves Redol e o Neo-Realismo Português de Ana Paula Ferreira analisa processos de continuidade e enumera três objetivos artísticos fundamentais do romance neo-realista18: nova expressão literária entre a estética herdada da tradição e a urgência da mensagem ideológica; assimilação de outros sistemas de pensamento e revigoração do romance, marginalizado desde finais do século XIX. Sendo assim, é importante notar a contribuição das dinâmicas literárias na formação do movimento neo-realista, sem exclusões confronto com a Presença e contexto histórico-literário. Os exemplos antecessores na evolução da novelística social portuguesa foram intensamente lidos por Redol: Almeida Garrett, (1799-1854), Alexandre Herculano (1810-1877), Camilo Castelo Branco (18251890), Eça de Queirós (1845-1900), Abel Botelho (1854-1917), Aquilino Ribeiro (18851963) e Ferreira de Castro (1898-1974)19. Não tão distantes do Neo-Realismo, o Romantismo e o Realismo sociais dos autores enumerados transitam entre o Regionalismo, o Naturalismo e o Realismo. Os três últimos ismos manifestam-se no Neorealismo, como correntes de renovação da intelectualidade romântica. Ideia também corroborada por Eduardo Lourenço (1923-2020) que contemplou duas orientações presentes no Neo-Realismo - a reinvenção da terra portuguesa e a continuidade do legado romântico: “[...] vocação telúrica, ruralista ou provincial do neo-realismo [...]” (Carmo, 2020 p.17). Atentemos então nos palimpsestos literários que, inevitavelmente, se estendem nas estéticas e nos pensamentos. Mesmo com tendência transnacional, o NeoRealismo desenvolveu-se em quadros amplos e livres, assimilando criticamente a arte do passado e a arte que acaba de nascer 20. Por outras palavras, o paradigma neo-realista Proust, Max Jacob, André Breton, Reverdy, Jean Cocteau, André Gide, Dostoiévski, entre outros. Capítulo III – Do neo-realismo como equívoco: continuidade e superação do paradigma romântico. In Alves Redol e o neo-realismo Português (pp.131-178). 19 Alguns críticos consideram A Lã e a Neve (1947) de Ferreira de Castro, o romance mais próximo da orbita neo-realista. 20 Campos Lima, M. (1956). Nua realidade e fantasia. In C. Reis, Textos teóricos do Neo-Realismo português (pp.141-148). 17 18 18 reabilitou o romance histórico 21, reconfigurou o pensamento romântico e prolongou a estética realista, mantendo o diálogo consecutivo de pergunta-resposta aos problemas da sua época. No que concerne às fases do Neo-Realismo, há dois momentos concretos que separam quatro décadas. Os anos 30/40, caraterizados pela ‘simplicidade esquemática’ e pela voz romantizada, lirista e realista e os anos 50/60, caraterizados pelo cânone literário e pela densidade narrativa e psicológica. As primeiras obras de Redol acentuam o informal documentalismo, despontador de um lirismo romanesco e marcador de uma interdisciplinaridade: “[...] o projecto literário de Alves Redol como uma forma de realismo literário, trabalhado para transmitir emoções ao leitor, mas também valores e preocupações de teor político-social.” (Santos, 2011b, p.94). Tal como citado anteriormente, o “projeto de sociedade socialista” era o “projeto literário de Alves Redol” e do grupo neo-realista. As “preocupações de teor político-social” eram as preocupações do povo e dos primeiros romances neo-realistas, marcados pelo realismo social e pelo lirismo romântico. Na tensão do tempo escasso e das lutas empenhadas, escrevia-se com a urgência de salvar o povo - o mais oprimido, o mais trabalhador. Daí, a maior ênfase no conteúdo e no valor etnográfico, do que na forma e no valor literário, mais aprimorados na segunda fase. Como percursor do Neo-Realismo, Redol absorveu essas modulações na sua produção literária, especialmente Avieiros, com 1ª edição em 1942 e com 5ª edição em 1968: “Primeiro o etnólogo, depois o ficcionista, cronologicamente falando [...]” (Dionísio, 1982). Mário Dionísio (1916-1933), como figura de proa da crítica neorealista22, acompanhou Redol como etnólogo dos anos 30/40 e como ficcionista dos anos 50/60. Esta denominação, talvez simplista, derivou de duros anos de aprendizagem, despreendimento, renovação, amadurecimento e aperfeiçoamento e da indagação constante do homem e do escritor, ambos cientes das contradições, ambos satisfeitos com o seu século: “Eu penso que a nossa época é muito aliciante para um escritor [...] gosto muito do nosso século, com todas as contradições. Estou muito satisfeito.”23 (Caeiro, 1958, 26:56-27:00, 27:16-27:20). 21 Sequeira, R. (1956). O romance histórico. In C. Reis, Textos teóricos do Neo-Realismo português (pp.206-207). 22 E. Dionísio, comunicação pessoal, 22 de Novembro de 2021. 23 Transcrição minha In Entrevista 1 - Alves Redol por Igrejas Caeiro (1958). 19 Além das adversidades do contexto histórico, político, social e cultural, Redol também defrontou polémicas internas do Neo-Realismo24, no fundo, mais críticas diretas a certos neo-realistas do que ao próprio Neo-Realismo em si. Aqui saliento a contenda Dionísio-Redol, como leme na escrita redoliana e no romance Avieiros. A “Ficha 5” em Seara Nova tece uma crítica devastadora, a qual coloca em dúvida a qualidade da escrita e o equilíbrio do conteúdo e da forma25: [...]os livros até hoje publicados de Alves Redol não formam uma obra literária por mais que os assuntos nêles tratados, por mais que a orientação que o seu autor lhes imprima ou principalmente pretenda imprimir-lhes, nos leve a simpatizar profundamente com eles. [...] forma e conteúdo se não podem separar sem ficarem ambos a escorrer sangue.26 [...] não me refiro somente ao vocabulário [...] duma maneira geral à maneira de construir as frases, de as ligar, de formar o discurso – uma maneira que de-facto às vezes quando falada [...] é natural e simpática mas que escrita se torna insuportavelmente artificial. [...] o único progresso que pode servir a Alves Redol é a completa mudança de processos. [...] falta de unidade nos seus livros, à falta de coesão entre os seus vários elementos, à falta de vida que há nêles, ao não formarem, finalmente, aquilo a que gostosamente chamaríamos obras de arte. (Dionísio, 1942, pp.131-134) Através de uma classificação mais primitiva, Avieiros cumpre os requisitos da primeira fase. No entanto, a crítica reboca questões estilísticas de fundo, de fazer estilo através da “espessa cortina” que dificulta a compreensão do leitor - a monotonia dos ‘que’s causais, o exagero do léxico do falar do povo apartado da linguagem corrente e prosa impressionista dos finais do século XIX. O crítico, também como leitor exigente e sensível, sublinha lacunas de concatenação e de lógica narrativa na conceção do texto romanesco, as quais interferem na coesão do conjunto, executa um trabalho cirúrgico e considera Avieiros a “ossatura dum romance” e não um romance. Aliás, ele pergunta se Redol “Será um romancista, um contista, um repórter no sentido mais elevado desta palavra?”. Pergunta interpeladora da “existência do artista verdadeiro”, quiçá “abafado por uma série de equívocos fundamentais que o algemam”, mas que acaba por se revelar “um dos nossos mais fortes e mais humanos escritores do futuro”. A expetativa O desalento na Oposição ao regime salazarista no final da 2ª Guerra Mundial e as proporções nucleares da Guerra Fria tiveram repercussões dentro do próprio Movimento Neo-Realista – grupos (/defensores ideológicos) que se antagonizavam, pensando alguns que os romances de Redol tinham desvios ideológicos. António José Saraiva (1917-1993) escreveu-lhe duas cartas, onde colocou reservas ideológicas a Vindima de Sangue e Olhos de Água. 25 “A forma começa a definir-se com o conteúdo, e é indecomponível dele.” In De Andrade, J.P. (1942). “Aldeia Nova”. Contos de Manuel da Fonseca. In C. Reis, Textos teóricos do Neo-Realismo português (pp.180-185). 26 Negrito meu. 24 20 omnipresente de Dionísio em Redol concretizou-se com a obra prima Barranco dos Cegos (1961) e teve expressão máxima na seguinte apologia: [...] o último livro de Alves Redol é, para mim, o primeiro em que todas as dúvidas, enfim, se dissiparam. Só nele suponho, com efeito, resolvido um velho problema que tive ocasião de levantar, num artiguinho esquecido e não sei se muito bem compreendido nas suas verdadeiras intenções, fez há pouco dias vinte anos. [...] nenhum soube ser tão humilde, perante esse triunfo relativo, nenhum terá desconfiado tanto, até ao fundo, de si mesmo, nenhum ouviu de certo com tanta atenção a crítica sem se deixar esmagar por ela, nenhum, que eu saiba, teve a tal ponto esta coragem de recomeçar de zero mais uma vez [...] (Dionísio, 1962, pp.1 e 24) O “artiguinho esquecido”, talvez não “compreendido nas suas verdadeiras intenções”, corrobora alguma reconsideração na acidez que a sua crítica possa ter tido sob Redol. Dionísio jorra palavras de contentamento em ver “resolvido um velho problema”, o qual deixara Redol “desconfiado”, mas “sem se deixar esmagar”. Uma espécie de missão cumprida pela crítica de Dionísio, cuja tenção pretenderia ir para além da crítica per se e obter um efeito reformulador das artes. No prefácio da versão melhorada d’Avieiros e na dedicatória dirigida a Dionísio, tacitamente, notam-se ‘marcas de água’ de uma “longa jornada do confronto” e de uma gratidão franca: Se confessar que este romance me aterrorizou, depois de me deslumbrar, digo a verdade inteira. [...] Mas vivi um drama verdadeiro com este romance. [...] Sei o que ainda não atingi de tudo o que me parece necessário. E passaram trinta anos. (Redol, 1980, pp.17-19) Devo à tua sinceridade e à tua camaradagem, Mário Dionísio, muito daquele pouco que hoje sou. Quero dizer-to hoje, de olhos nos olhos, com a lucidez de quem se rasga todos os dias para se situar neste mundo. Obrigado! (Redol, 1980) Decididamente, a incomodidade e “a lucidez de quem se rasga todos os dias para se situar neste mundo” fizeram de Redol “o escritor do povo”, também numa descida aos infernos. Nesta breve incursão pelo século de Redol, concluo que foi dos líderes mais influentes para o povo e para o Neo-Realismo portugueses. Viveu como indivíduo e artista numa época extremamente político-ditatorial, mas não fez política. Fez Arte! Deu os primeiros passos na crise do contato entre a Arte e o público com a palestra “Arte” e abalou preconceitos estéticos com Avieiros. Como intérprete das inquietações do povo, deu vida aos avieiros com o máximo de realidade e com o “escrever difícil”, duramente 21 criticado por Mário Dionísio. Apesar disso, a sua literatura foi sempre profundamente humana, empenhada nas causas sociais e transformadora de tragédias em glórias: “É preciso que a literatura, dando-nos um banho de vida nas cachoeiras da tragédia do Homem, nos torne mais sociais, quer dizer, mais humanos.” 27. 27 Martins, M. (1956). Literatura Humana. In C. Reis, Textos teóricos do Neo-Realismo português (pp.117118). 22 1.2. Pelo povo e com o povo! – Folclore, Ribatejo, Tejo e Avieiros Um rio vive, respira, trabalha, constrói e destrói. Também os homens. Alves Redol Figura 3: Barco avieiro, homem e mulher a manusear a rede ©1999 Carlos Pinto 28 28 Foto nº20 In Avieiros de Vieira a Vila Franca. 23 Se não fosse Redol, a história dos avieiros estaria ainda por escrever. Para isso, predispôs-se ao modo de vida dos avieiros na Palhota durante meses e à reescrita do romance durante vinte e cinco anos. Embora posterior à 1ª edição d’Avieiros, a recolha intensa feita para o Cancioneiro do Ribatejo ajudou-o na articulação dos seus vínculos familiares com o folclore, com o Ribatejo e com os avieiros. Pretendo com isto destapar as raízes d’Avieiros, mostrando o estudo prévio e contínuo do folclore, desenvolvido por Redol. O interesse pelo povo nasceu com Redol e desenvolveu-se a partir da sua experiência de vida. As origens ferreiras (avô materno Venâncio Alves), campinas (avô paterno João Redol) e avieiras (avó paterna Ana da Guia) semearam o gosto por ambientes genuínos. O contexto africano, como mencionado no primeiro ponto deste capítulo, atentou-o para o contexto português, essencialmente para as geografias dos que não têm voz. A partir de um espaço geográfico concreto – o Ribatejo – ele observou os restantes. Desde as infindáveis lezírias à grandeza do Tejo, Redol traçou horizontes amplos, com eixos de comunicação com décadas de tradições. O folclore, isto é, a “sabença do povo” conserva o passado e recria as tradições do futuro no presente. A recolha feita por Redol ambicionou “auscultar a alma do povo” nas suas manifestações culturais de tradição oral e dissolver a rigidez entre os tradicionalistas e os burocratas. O tradicionalismo puro destes últimos apreciava a arte popular por curiosidade ou por colecionismo e pretendia reduzi-la a um ideal burocrático, a um serviço. Os horizontes sociais, impostos à arte popular pela civilização, restringem o seu sentido evolutivo e prenunciam o seu desaparecimento. Mesmo assim, ambos se anulam. Enquanto o povo existir, a arte popular também: “Uma arte diferente num povo diferente? Sem dúvida.” (Redol, 1950, p.18). A transversalidade do folclore viabiliza canais de comunicação entre diferentes civilizações e culturas e estabelece relações de aproximação pela semelhança ou pela diferença ante do ‘outro’29. Não sendo estático, o folclore moldase em detrimento da evolução dos tempos. A revolução industrial (1760-1840) é um exemplo disso no que toca à desconstrução dos limites do tradicionalismo e à produção de uma força criadora e cíclica. Como obras de estudo: Glória – Uma Aldeia do Ribatejo (1938); A França – Da Resistência à Renascença (1948); Cancioneiro do Ribatejo (1950) e Romanceiro Geral 29 Ter em conta a reflexão teórica elaborada no primeiro ponto do capítulo 1 acerca de civilização, cultura, sabedoria, humanidades, humanismo. 24 do Povo Português (1959). Com exceção de Glória, as restantes localizam-se cronologicamente entre a 1ª (1942) e 5ª (1980) edições d’ Avieiros e constituem um suporte teórico para a criação e compreensão literária do imaginário ribatejano. Contudo, destaco a investigação especializada de catorze anos do Cancioneiro (1936), cuja preparação implicou inúmeros apontamentos e ensaios30, como estudo preparatório para os outros estudos (1938, 1948, 1959) e como obra enciclopédica para o primeiro romance (1939) e para os seguintes. A partir da profunda imersão no Ribatejo e nas raízes do folclore, Redol reuniu várias manifestações culturais, desde o lirismo ao quotidiano, as quais “[...] permitem o aprofundar dos diferentes problemas que servem para uma justa compreensão das multidões ignoradas, tornando-se [...] um testemunho com voz própria, cuja presença será imprescindível para que se pautem afirmações em relação a cada povo.” (Redol, 1950, p.19). O revivalismo do testemunho das “multidões ignoradas”, para entender a voz própria da cultura popular de “cada povo” – campinos, gaibéus, pescadores, varinos, avieiros, forjadores – e para pensar sobre problemas individuais e sobre soluções coletivas, tornou-se a constante da narrativa redoliana. A saber, as três mil quadras do Cancioneiro estão divididas em três grandes temas – meio, homem, trabalho – e versificam monólogos íntimos em “poesia da vida”. A partir de fragmentos, Redol reconstruiu uma literatura oral, repleta de autênticas sínteses da condição humana relativamente à complexidade da existência. O trabalho é o tema transversal aos outros, dado ser o sustento do meio e do homem: Ó minha mãe dos trabalhos para quem trabalho eu? trabalho, mato o meu corpo, não tenho nada de meu... Glória (Redol, 1950, p.195) O trabalho que matava o corpo do povo ribatejano era o mesmo orquestrado pelos grandes interesses do latifúndio, frontalmente contra os interesses do povo português: “«Há sempre quem mande nos pobres; o mal é dos pobres.»” (Redol, 1980, p.202). Na esperança de aliviar o mal dos pobres, Redol resgatou as vozes sem voz e elevou-as a “poesia nacional”. Estabeleço aqui o paralelismo com a epígrafe garrettiana do cancioneiro redoliano: “Quem não tem olhado senão à superfície da nossa literatura, não crê que ao pé, por baixo, andava outra literatura que era a verdadeira nacional, a popular, 30 Cancioneiro do Ribatejo In ESPLIT-RED/PL-ENS/A21/4.12/CX.15/DOC.1 25 a vencida, a tiranizada por invasores gregos e romanos.”. Tanto Garrett como Redol exerceram um trabalho de “desocultação social” (Santos, 2011b, p.109) da linguística e dos costumes que os respetivos regimes pretendiam domesticar ou ocultar. Similar ao Cancioneiro do Ribatejo, O Romanceiro também derivou da tradição oral e escrita (lendas e romances portugueses), salientando o valor das tradições populares como fonte de conhecimento e inspiração inesgotável para outros escritores e para outros temas. De fato, um autêntico gesto para traçar a cartografia emocional ribatejana, cujos temas e subtemas entrecruzam-se. Da música à dança, Redol esmiuçou os meandros das origens, desde gregos, romanos e egípcios, a trovadores e jograis. Numa primeira abordagem e para enquadrar o folclore do Ribatejo, passou por Espanha, França, Itália, África, Ásia, entre outros, elaborando um apanhado das raízes da música e da dança. O enquadramento do Cancioneiro feito por Redol torna nítida a árvore genológica da natureza humana do folclore e elucida-nos para o passado de tradições orais e para o presente demográfico e paisagístico do Ribatejo. As “transplantações por contacto” entre ribatejanos, beirões, durienses, alentejanos e algarvios não são óbvias. É necessária uma escavação arqueológica mais profunda, de modo a determinar as ramificações genealógicas por detrás de fenómenos sociais. No entanto, a “autobiografia colectiva” desses povos, presente nas quadras do Cancioneiro, pretende ensinar o povo e aprender com o mesmo, através do “[...] que o povo conserva do passado e cria no presente, dando este as tradições de amanhã, num encadeamento que afirmará a presença constante da inventiva popular na cultura das nações.” (Redol, 1950, p.11). As “tradições de amanhã” são parte das tradições de ontem, filtradas pelo presente. As acumulações hereditárias constituem as ideias, as necessidades e os sentimentos do passado que sintetizam a raça e pesam sobre a mesma. Sendo assim, torna-se muito importante conservar tradições, aprender com o ‘outro’ e, com isso, revigorar o presente e transformar o futuro31. Estou certa de que a primeira manifestação romanesca da “inventiva popular na cultura das nações” e ‘inaugurativa’ na literatura neo-realista foi Gaibéus (1939), cuja célebre epígrafe32 privilegia a intenção documental à artístico-literária. Logrou de uma excelente aceitação junto do público e dos neo-realistas, tendo uma função interventiva, interativa e didática: “O livro é lido em voz alta nas tabernas e nas colectividades de Vila Franca. Nas Lezírias é lido em grupo por trabalhadores letrados aos que são analfabetos.” 31 Le Bon, G. (2020). As tradições. A psicologia das massas (pp.83-85). “Êste romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quere ser, antes de tudo, um documentário humano fixo no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem.” 32 26 (Mota Redol, 2013, p.42). A frequente alusão à taberna foi emergindo nos romances da época33, como um lugar-comum; um tempo e um espaço de alento do povo: “E quando sobravam uns tostões, lá ia uma pinguita para animar e aquecer a alma.»” (Vasconcelos, 1997, p.8). A taberna aparecia como um lugar de convívio, evasão e estímulo para a labuta e/ou como um observatório de comportamentos humanos do povo que trabalha, que sofre e que não tem voz. O primeiro contato de Redol com os avieiros foi na taberna: “[...] vi entrar aquele homem meão na taberna do cais de Vila Franca, [...] pouco tinha de comum com os varinos da rua [...]. Nómadas do rio [...] chamavam-lhes avieiros.” (Redol, 1980, pp. 11-12). A convivência na taberna de António Vitorino no cais de Vila Franca e os passeios com Jerónimo Tarrinca até à Toureira, familiarizam Redol com estes “nómadas do rio”. Nas férias de 1941, a convite da comunidade local, Redol e Maria, a sua esposa, foram para a aldeia avieira da Palhota34. Também com(o) os avieiros, Redol habitou o rio e as aldeias avieiras: Palhota, Valada do Ribatejo, Casa Branca, Toureira. Lá trabalhou com pescadores - pescou no rio, lançou as redes, enquanto registava a experiência com apontamentos e fotografias. Ele foi homem pescador e homem escritor, confraternizando com os avieiros de corpo e alma. Portanto, por decisão de anciãos, convidaram-no para ser padrinho do primeiro casamento realizado na aldeia. Um passo considerável para os avieiros, visto fazerem parte de um círculo fechado nas suas relações e tradições. Pouco depois, tornou a experiência “carne viva”, publicando Avieiros (1942), com edições consecutivas até 1945 (4ª edição) e com última edição em 2011 (12ª edição). O Tejo e a taberna surgem como espaços agregadores da narrativa d’Avieiros. A grandeza do Tejo sobressai-se e transforma: “[...] a relação entre rio e homem, e que permite sublinhar que o Tejo não é apenas um cenário externo dentro do qual decorre a acção humana, mas uma formulação colectiva de todos os que nele vivem.” (Buescu, 2012, p.60). A relação entre o rio e o homem reforça o sentido do coletivo e relembra a epopeia camoniana: “[...] uma alma em total correspondência com a vida dinâmica do mar.” (Bachelard, 1998, p.174). O etnólogo Jorge Dias (1907-1973) discursa eloquentemente acerca do Tejo, como edificador do cenário coletivo português. Ele afirma que o seu estuário foi um ponto natural de convergência de várias regiões e, assim, muito importante na constituição do povo português na sua homogeneidade cultural permanente: “[...] esse forte abraço do mar com a terra, que definitivamente presidiu aos 33 34 Exemplo: A Mãe (1907) de Máximo Gorki. Ver figura 11, p.79. 27 destinos de Portugal.” (Dias, 2004) 35. A hegemonia da “cultura permanente” e nacional também se define pela coexistência de outras culturas próprias, de condições ambientais diferentes e etnias diversas. O (re)conhecimento de uma cultura só se efetiva na contraposição com outra. A atividade dos avieiros é um exemplo de uma contraposição efetivada. Entre 1850 e 1966, o vínculo de Santarém com a fácil navegabilidade do rio criou grupos socioprofissionais – pescadores, cordoeiros, barqueiros marítimos, tanoeiros, etc. Existia aí um potencial económico, atrativo para famílias que procuravam o seu sustento. O mar era a sua primeira opção, só que os rigorosos invernos e a grave crise no setor da madeira, da construção naval e da pesca (com declínio da pesca da xávega) obrigaram essas famílias a um novo plano de ação. Muitas subiram “a corrente remansosa do Lis” (Soares, 1986, p.4), na expetativa de aumentar os seus rendimentos, apostando nas deslocações migratórias internas, temporária ou definitivamente. Quando o Tejo era um “jardim de peixe” (finais do século XIX), procriavam-se variadas espécies - barbo, corvina, robalo, linguado, fataça, tainha, boga, sável, salmão, sabre, camarão, lampreia, saboga e enguia: “Terá sido porventura esta abundância de pesca no Tejo que atraiu os pescadores do litoral norte, que perseguiam os ciclos migratórios das espécies como o sável e a lampreia.” (Véstia, 2012, p.36). No princípio do século XX, os numerosos pescadores e as suas técnicas nocivas (botirões, zorros e camaroeiros de arrastar) prejudicaram as espécies, tendo sido declaradas restrições proibitivas de algumas artes de pesca. Também, o desenvolvimento industrial e urbanístico diluiu o papel social e económico do rio e das populações ribeirinhas. A extração de areias, o uso de químicos na agricultura, o monopólio das fábricas e a consequente poluição do Tejo ameaçavam a fauna e a flora. A mingua do peixe e a extinção da safra do sável e da corvina afetaram as famílias que viviam da pesca, principalmente os avieiros, os quais sobreviveram pelas margens de Vila Franca de Xira36, Alhandra e Póvoa de Santa Iria. Dessa maneira, eram obrigados a suplementar a pesca com trabalhos do campo (mondas, ceifas, sacha das vinhas, construção dos valados), mondas do arroz, fragatas e cultura do melão. O entrosamento dos avieiros com outras comunidades iniciou um longo caminho de inclusão social, apesar dos desentendimentos entre homens do rio e homens do campo: 35 36 Ensaio no I Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros em Washington, 1950. Ver figura 10, p.78. 28 Aliás o apodo de cigano pode também ter surgido pelo facto de os Avieiros, enquanto sociedade fechada e repudiada, terem o hábito de casar entre si, como forma de protecção, para se defenderem e para preservarem o conhecimento que tinham das artes da pesca e para darem continuidade às suas tradições, tal como praticam as comunidades de etnia cigana. (Véstia, 2012, p.49) Apelidados de “ciganos de mar” ou “nómadas do rio”, os avieiros tinham uma maneira muito autóctone de ser e de estar. A sua ‘estranheza’ nas tradições, como a religiosidade, o folclore e as crenças apartara-os das comunidades. O casamento era um forte exemplo do culto da tradição. Casavam entre gente do mar e festejavam durante três dias – cantavam, dançavam, comiam carne e bebiam vinho: “Em dias alumiados só conhecem carne nas panelas. [...] ninguém parava de bailar e comer em toda a roda do dia e pela noite dentro. Também, se gostasse da pinga, não levaria queixa no regresso. (Redol, 1980, p.82). Formava-se um cortejo das aldeias na lezíria para a Igreja e o barco da noiva estava decorado com uma coroa de flores silvestres, enroladas à volta da proa: “Na margem do Tejo, três saveiros esperavam viagem. O da noiva lá estava com uma grinalda de flores na proa.” (Redol, 1980, p.83). O colorido dos enfeites florais simbolizava esperança numa vida dura e difícil, pois a missão da mulher passava também pela camaradagem no trabalho de pesca. Todos adquiriam conhecimento piscatório – como pescar, como fazer redes, como construir barcos. As artes de pesca dos avieiros são as redes e os viveiros, sendo utilizadas conforme as espécies e as condições naturais. Independentemente do árduo trabalho piscatório, o peixe era mal pago, os intermediários ganhavam a cota maior e o fiscal do rio era uma fastidiosa dor de cabeça. Portanto, o casal avieiro vivia e trabalhava em conjunto37. O homem avieiro assumia a lida da pesca e vestia-se com trajes típicos “tradicionais calças de xadrez atadas no tornozelo com uma fita, camisa xadrez, cinta e barrete pretos, nos pés tamanca alta com sola de madeira.” (Véstia, 2012, p.52). A mulher avieira, matriarcal na sua figura, não só assumia a lida da casa como mãe e esposa, mas também grande parte das tarefas da faina. Ajudava na pesca durante a noite, vendia o peixe a granel ou aos almocreves de manhã, fazia as compras de mercearia, cuidava dos filhos e emendava as redes durante o dia. Na escassa faina, a avieira vendia fruta (melão e melancia), ia para o campo ou trabalhava onde a mão de obra era precisa. A mulher avieira usava: 37 Ver figura 3, p.23. 29 [...] saia aos quadrados, bastante franzida se for de trabalho, ou pregueada se for domingueira, a blusa é de cor com motivos e avental bordado, sacanitos de lã e chinelas pretas com sola alta de madeira, usa ainda lenço de lã escuro e por cima dele chapéu preto, o saiote é branco com bastante roda e os coletes são da mesma cor. (Véstia, 2012, p.52) Fins-de-semana, feriados e férias não existiam, sendo os momentos de descanso raros. Todavia, intervalavam o trabalho árduo e a pobreza com instantes de lazer. “Pobres, mas alegres”, bebiam nas tabernas, cantavam para embalar o barco e organizavam bailes todos os domingos. “Quem canta seus males espanta” e os avieiros faziam frente às maleitas da vida, cantando. A odisseia d’Avieiros “primeiro estranha-se, depois entranha-se”. A integração destes forasteiros do mar redefiniu-se também pelo status habitacional, como revela a etnógrafa Maria Micaela Soares: O tempo e as transformações sociais que gradativamente modificaram a habitação avieira – do barco flutuante, ao barco-barraca, à tenda de pano cru ou ao barco de caniço; destes à casa de madeira, de configuração palafítica, aparentada com o palheiro da costa atlântica ocidental; do palheiro, à casa alvenaria térrea ou de andar – são inelutáveis. (Soares, 1986, p.14) A permanência nas bordas d’água lodosas do Tejo fez do barco avieiro um “barcomorada” (Soares, 1986, p.7) e (re)adaptou o tipo de barco, de um mais pequeno e simples para um mais esguio e estável – saveiro, bateiras ou maneirinhas 38. Ali nasciam, viviam e morriam. A geógrafa e investigadora Maria Adelaide Neto Salvado conclui que o modelo poderá ter tido influências no tamanho e na elegância dos barcos ílhavos e na originalidade de ser instrumento de trabalho e abrigo familiar dos barcos varinos, usados no Douro, Tejo e Sado39. Em 1939 construíram-se aglomerados em caniço e/ou madeira, apoiados em estacas de madeira ou troncos de árvores, e mais tarde, pedra ou cimento, por causa das cheias (as maiores em Dezembro): “A imagem cíclica de imensos espelhos de água.”40. As enxurradas destruíam as palhotas, inundavam as casas, avultavam carências de saneamento e eletricidade e agravavam o acesso por terra, quase remoto, incrementando ainda mais a individualização destes povos com traços distintos. As 38 Ver figura 12, p.79. Os Avieiros nos finais da década de cinquenta. (1985). 40 Depoimento do autor Francisco Santos no documentário Memórias de um rio: avieiros, os nómadas do Tejo. 39 30 aldeias avieiras mais típicas são: Palhota, Conchoso, Escaroupim, Casa Branca, Vau e Caneiras. Distantes umas das outras, mas próximas das praias, muito pelo hábito das artes de arrastar para terra que exigiam espaços largos e planos. A localização recuada, a uniformidade habitacional e as águas baixas de verão das primeiras cinco aldeias mencionadas, levavam os pescadores a águas mais fundas. Os pescadores do Escaroupim iam para a Vala do Carregado e os da Casa Branca, Conchoso e Vau iam para Vila Franca de Xira e Alhandra. Ainda baseada nas conclusões de Maria Adelaide Neto Salvado, os picos migratórios foram entre 1919-1923 e 1934-1939. O processo de fixação entre 1940-1960 acelerou a sedentarização a partir de 1958. A natalidade aumentou e as populações cresceram. A vida em “casas modestas”41 e a diminuição da faina nos anos 60 convidaram o avieiro a trabalhar mais tempo na terra do que no rio. Todavia a “[...] atracção pelo rio tem raízes mais fundas mergulhadas numa tradição que vem de longe e que nem a lezíria nem o trabalho árduo do campo conseguirão apagar em absoluto alguma vez.” (Salvado,1985, p.59). Mediante toda a conjuntura avieira – falta de sustento, lucro dos intermediários, miséria, fome, prostituição, cheias - Redol profere a palestra “Meus amigos...”42: “[...] escrever uma conferência literária, àcêrca da Gente da Vieira no Ribatejo, era o mesmo que exigirem-me um tratado sobre qualquer ramo da ciência.”. O alto nível de seriedade que Redol transmite nesta palestra, eleva o nível de empatia por a “Gente da Vieira no Ribatejo”. A sua preocupação maior remete para a destruição massiva das cheias e o seu enaltecimento para a resiliência heroica dos valadores e dos avieiros face à “braveza do Tejo” e face à limpeza das valas e dos destroços. Não obstante disso, destaca a mulher avieira: É a mulher heroica que tem no coração a mesma fé de todos os povos oprimidos, que confiam sempre, mesmo que tudo se lhe recuse. Mas confia lutando, porque só a luta é criadora, só ela dá a certeza que se vive e que se pode transformar o destino. Num dia em que se fizer um grande monumento ao povo, há que colocar em lugar de destaque uma mulher: e essa mulher só poderá ser uma avieira. Significa isto que a mulher avieira é representativa não de uma pessoa singular, mas de uma generalidade de pessoas. Para o homem Redol, representa Ana da Guia (avó Na Póvoa de Santa Iria: “A Junta Central das Casas dos Pescadores tomou a iniciativa de construir casas pra essa gente humilde. [...] 32 pescadores [...] deixaram as barracas de lata e as bateiras para viverem em casas modestas, mas funcionais.” In Diário de Lisboa, 1968. 42 Cópia da palestra “Meus amigos...” In Espólio, ESPLIT-RED/PL-ENS/A21/COTA4.8/CX.13/DOC.9 41 31 paterna). Para o escritor Redol, representa Olinda (personagem principal d’Avieiros). Esta última simboliza a luta pela sobrevivência e afirmação da comunidade avieira através de pequenas lutas: quando se defende do murtoseiro que a cobiça, do maltês que a assalta, do Tó Lobo que a assedia, do Tubarão que lhe destrói a rede velha; quando se coloca em perigo ao trabalhar na monda e na ceifa com as gaibéuas, enquanto Tóino está na tropa; quando retira uma tábua do meio dos destroços das cheias para reconstruir a sua casa, as suas vidas. Assim, as pequenas histórias servem para contar a história de Olinda e, consequentemente, para valorizar a condição feminina e para formar a consciência de classe. Ainda assim, a história de Olinda serve para contar a história da ‘grande personagem’ – o Tejo. Como previamente citado, Helena Carvalhão Buescu fala do Tejo como uma formulação coletiva de todos aqueles que vivem nele. Estilisticamente, a metonímia do Tejo e a alegoria de Olinda transferem a individualidade dos espaços e das personagens para a coletividade das populações que habitam o rio e que sobrevivem dele, em específico, os avieiros. Neste momento, percebo que “o desconcerto do mundo”43 instigou Redol a querer concertá-lo. Para tal, começou pelas raízes das suas raízes 44 – o folclore – e dispôs-se “a enfrentar as dificuldades da recolha 45. À moda de Garrett, Redol revitalizou a tradição oral ribatejana e redescobriu uma literatura popular, dando-lhe uma segunda voz nas suas obras ensaísticas e literárias. O simbolismo da taberna, como lugar onde nasceu Avieiros, e a presença do Tejo como espaço geográfico, histórico, político, económico, social e cultural definiram o povo e os avieiros e fizeram do Tejo a ‘grande personagem’. Tendo em conta o ressalto da mulher avieira na palestra “Meus amigos...” e em Avieiros, não duvido que a descendência avieira de Redol tenha marcado o seu respeito e a sua homenagem pela comunidade avieira, aproximando-o inevitavelmente “de semelhante gente”. Alusão aos Lusíadas (1572) de Luís Vaz de Camões (1524-1580). “Para ser justo / pensa nas raízes.”, Yiannis Ritsos (1909-1990). 45 Alusão ao Preâmbulo da 1ª edição Glória – Uma Aldeia do Ribatejo. 43 44 32 CAPÍTULO 2 2.1. Quotidianos de sobrevivência – Trabalho de campo Eu quero pôr o observador num terreno pouco seguro, para que tenha que se reconsiderar a si próprio e às suas circunstâncias. Vito Acconci Figura 4: Alves Redol com um grupo de avieiros que constrói o barco de pesca46 46 In ESPLIT-RED/FOT/A21/8.23/CX.27/DOC.23 33 O espólio de Redol procura esgotar o campo do (im)possível através da multiplicidade dos enunciados. Os registos revelam o diário de campo da vida e obra, profícuo no reconhecimento e na compreensão das entrelinhas dos seus romances. Também revelam aspetos da vida em sociedade, trazendo um olhar de dentro para fora: “Os problemas íntimos têm de se resolver, voltando-nos para os problemas totais.”47. Desde o ponto de vista de alguns segmentos do espólio, com foco nos apontamentos sobre Tejo, a pesca e os avieiros48, analiso a digressão do trabalho de campo e as devidas metodologias, como parte integrante da lógica neo-realista e da criação d’Avieiros. Parte do espólio literário encontra-se armazenado nas reservas do museu sui generis - Museu do Neo-Realismo49 – e outra parte ainda está na posse do seu filho Eng.º António Mota Redol. Em linhas gerais, o acervo documental contém os seguintes temas: produção literária do autor (ficção narrativa, romance, conto, teatro, cinema, ensaio); história pessoal do autor (biografias, bibliografias, entrevistas); correspondência expedida e recebida; vária (atividades culturais, profissionais e gerais, documentos pessoais, apontamentos); fotografia; impressos (críticas e notícias sobre a obra e relacionadas com o autor, vária sem referência ao autor, material gráfico diverso); documentos de outros (produção do autor); artes plásticas, decorativas e outras; objetos pessoais; monografias e publicações periódicas e documentos pós-morte (impressos, fitas fúnebres). No que diz respeito à produção intelectual, encontram-se versões preliminares, provas tipográficas manuscritas e dalitoscritas com emendas e notas à margem e documentação de suporte aos livros publicados. Elegi vinte dossiês com estudos, palestras, ensaios e apontamentos. Nos estudos, o Cancioneiro do Ribatejo e Glória – uma aldeia do ribatejo fornecem elementos etnográficos e folclóricos da área ribatejana50. Nas palestras, “Arte” e “Meus Amigos” reafirmam o discurso neo-realista e a comunidade avieira. Nos ensaios, existem reflexões acerca das principais preocupações sociais, tais como: analfabetismo; mortalidade por tuberculose; tabela dos pensionistas; custo de vida; desemprego; saúde pública; etc. Atento aos contextos sociais vivos e consciente dos problemas do mundo, Redol submetia-os a casos de estudo e fundamentava-os com dados oficiais - percentagens, taxas, valores, datas. Nos 47 Fotocópia da carta de Alves Redol a Arquimedes da Silva Santos In ESPLIT-RED/COREXP/A21/6.1.1/CX.20/DOC.13 48 In ESPLIT-RED/PL-RED/A21/2.6/CX.1/DOC.7 49 Ver figura 9, p.78. 50 Ver figura 16, p.81. 34 apontamentos, também existem tópicos com esses dados oficiais, mas preponderam os tópicos relativos ao trabalho de campo. Deparo-me então com um espólio, onde o real dominava a literatura e onde a vida coletiva era parte dominante de Redol. Simplesmente, a vida pela vida e a vida das personagens conduziam-no. O seu trabalho de campo (individual ou coletivo 51) realocava-o da sua “torre de marfim” para paisagens com verdade, afirmando-o em função de um tipo humano universal que toma posições interessadas nos conflitos da realidade: «A literatura da nossa geração saiu [...] para a rua. O escritor faz parte da multidão; tem os mesmos anseios, sofre as mesmas desgraças, deleita-se com as mesmas alegrias, luta pelos mesmos fins. O escritor é o intérprete da alma colectiva; sincroniza em si toda a gama de emoções envolventes.»52 (Silva, 2021, p.185) Esta ‘nova’ literatura que “saiu [...] para a rua” – a literatura neo-realista - é uma “literatura comprometida”, sintonizada pelas fragilidades da condição humana. Existe uma “consciência alertada antes de ser romance” que inquieta o escritor não só como escritor, mas também como ser humano - “caminhada colectiva”. Caminhada pressupõe movimento, território e experiência e o trabalho de campo rege-se pela experimentação dos contextos. O observador-cronista, também escritor-cidadão e escritor-militante, toma uma posição de igualdade perante o ‘outro’ ou perante o objeto de estudo – binómio arte literária e intervenção política. O escritor, como “intérprete da alma colectiva”, tem a necessidade de estar em contato com a vida e pensá-la - análise vigilante e assídua, pensamento elaborado, observação e meditação. “O escritor faz parte da multidão” e há uma entrega total durante o tempo de recolha do trabalho de campo. Relembro aqui o relato de um pescador nazareno, no documentário Alves Redol, Memórias e Testemunhos do cineasta português Francisco Manso, ao enunciar com espanto a determinação de Redol em terminar a companha e enfrentar o mar grande, tal como eles e juntamente com eles. “De bloco de notas em punho, tudo observava.” (Mota Redol, 2014, p.26). As ferramentas usadas eram muito simples: lápis, caneta, papel e máquina fotográfica. Redol 51 Participação na ação cultural com Júlio Pomar (1926-2018), António Alfredo (1932-2000), Rogério Ribeiro (1930-2008), Lima de Freitas e Cipriano Dourado (1921-1981) – “Estudos para o Ciclo do Arroz” (1953) de Júlio Pomar. 52 Excerto do artigo “A literatura da nossa geração” In Alves Redol e o Grupo Neo-Realista de Vila Franca. 35 fotografava ou desenhava para ‘legendar’ os conteúdos, para comunicar mais amplamente e para testemunhar uma geografia espacial e humana – Naturalismo e Realismo Social. A fotografia permanecia como uma atividade secundária à escrita; um auxílio à literatura e um entusiasmo pela aventura etnográfica: “[...] um cruzamento particular e original “entre” o exercício da narrativa ficcional e a recolha documental de teor etnográfico.” (Santos, 2011b, p.92). O cruzamento “entre” uma foto (Realismo) e um sistema de ideias (Neo-Realismo) procura copiar parcelas da realidade e referi-la na estrutura global do conjunto.53 A foto torna-se um produto in loco; um registo direto e autêntico do real; uma mediadora da verdade, despida de pretensões artísticas e reveladora de signos linguísticos, destapando as verdades sociais, ocultadas pelo regime. Também a ilustração em torno da obra redoliana acrescenta valor artístico, no caso dos desenhos54 de Júlio Goes, e representa um dos ícones de um Portugal profundo salazarista, no caso das alegorias de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1057). Faço menção à “Alegoria de Manuel Ribeiro”55 em Avieiros, cujo traço arredondado esculpe os corpos cansados e as sombras vincam a tristeza nos rostos. O traço forte projeta os corpos num movimento firme, imprimindo grandeza e dignidade às figuras. O manuscrito d’Avieiros 56 encontra-se completo, com páginas numeradas, exceto o capítulo “Maria do Rio: sempre?!..”. Tem cerca de cento e oito folhas soltas, escritas a lápis e a caneta preta, com algumas rasuras e/ou correções. Relativamente à segunda versão não há manuscrito nem apontamentos; é possível que tenha sido datilografada diretamente a partir da modelação da primeira versão. Os apontamentos sobre o Tejo, pesca e avieiros contêm vinte e uma folhas, maioritariamente folhas de rascunho 57 ou pedaços de papel, escritos a lápis. Escreve-se certo por linhas tortas, com palavras soltas, frases curtas, enumerações, com ou sem pontuação, por vezes, ilustrada com desenhos de objetos ou instrumentos de pesca. Os apontamentos descrevem os barcos e as artes de pesca: “Ciar (remar p’trás quando vão colher as redes)”; “Numa saveira compõe-se de 5 rêdes e 10 boias ou balisas”. Traçam “O realismo era um método, o neo-realismo é uma interpretação.”. In Gomes, R. (1948). «“Maria – Escada de serviço”, por Afonso Ribeiro». In C. Reis, Textos teóricos do Neo-Realismo português (pp.6871). 54 Utensílios de cortiça madeira e cerâmica, móveis, tipos de chaminé, forno de pão, vestuário, acessórios, bordados In Glória. 55 Ver figura 17, p.82. 56 Ver figura 15, p.81. 57 Por exemplo: recibos de “imposto sobre animais e veículos, “imposto de transito nas estradas” ou “receitas de chapas de veículos” ou folha dactilografada com o saldo e movimentos de uma conta corrente da Câmara Municipal de Mós (1932). 53 36 linhas longitudinais geográficas através da enumeração de portos e esteiros e da descrição de eventos meteorológicos: “Um cabeceiro em forma de boneco de braços abertos”; “6 horas a encher 6 horas a vazar com cabeças de água vai até Alverca e depois esperam: vento de travessia – vento de oeste.”. Referem curiosidades soltas: “os enviadeiros são 2 homens que vão levar o peixe pª venda e trazem os mantimentos (enviadas)”; “a agua do Tejo é a melhor é agua de mil fontes”; “galinhas a comer os ovos. Desespero dos donos”; “O barulho de um tractor na outra margem [...] uma canção monótona num conjunto orfeónico. Borrões negros de bois – toiros lavrando. Os montes lá ao longe têm a irrealidade dum cenário, na penumbra da distancia.”; “As mulheres trabalham tanto como os homens. Trabalham sobre uma cabeça de areia que liga a Terra, onde as crianças chafurdam.”; “Velas vermelhas e brancas vão a Salvaterra e Benavente.”; “Trigo loiro fatasa como toiro”; “tempo chatioso”; “Está lazaro de uma mão”; “Camisas [...] aos quadrados largos de verde azul [...] de flanela amarelos, vermelhos [...]. Ceroulas de riscado [...].”; “Faina dura e madrasta”. E descrevem a chegada das redes e a venda do peixe: Mulheres de negro c/ canastras. Terras grossas. Cabeças de água – Escarnam muito. Vêm os barcos recolhendo as redes [...]. De Alhandra vêm-se chegando. O guarda fiscal já tem o lino de notas. Vêm chegando as mulheres. [...] as canastras e sentam-se sobre elas. Cabeças brancas, esfiapados os cabelos entre os lenços. Chegam os chales ao rosto. E ficam silenciosas. Tamancos a bater. Ficaram barcos em Terra. Varas erguidas. [...] Filho que come muito. Não quer trabalhar com o pai. – Amalçoado/Amaldiçoado! [...] Calzas arregaçadas. – Quinhentos. – É uma carga. O peixe em agonia nas canastras. Ferindo as barbatanas. Os grandes vão arrastando. Trazem-nos tecas. [...] – Afogai-nos agora [...] sentam-se na borda dos barcos e lavam os pés. [...] Afetam-se firmando as varas. Atracam outros, metendo as varas. [...] Deitam-se no fundo das bateiras. No estaleiro um barco negro, com um remendo mais negro. Alcatrão. Nem vão lavando as redes em dois barcos. No lodo ficam as pégadas. Atiram a rêde p’o outro barco. Redes brancas e castanhas [...] – Não há lugar nem para comer nem para dormir. E começar a lota. – Quanto vale esta? – 8$00 Vão juntando e olham à volta – 13 escudos ou é da ti Emila! E os caixotes vão chegando. Camisas de foro [...] caixote carregado às costas. – Xica Baldeira. [...] Lá levam [...] o peixe nas canastras. Homens, mulheres, crianças. [...] Desembaraçam o peixe das malhas e atiram-no para terra. [...] O peixe salta abrindo a bôca e as barbatanas em leque. Numa angústia de morte. Apoiando-se ora na cabeça ora no rabo. [...] descançado e depois sacode-se, novamente, batendo no chão com impulsos fortes que vão apagando e diminuindo. Ao prateado do lombo vai-se aderindo a areia molhada, impacto pelo chão se lhe esvai a vida pintalgando-o de vermelho vivo. As guelras de sanguíneo. O corpo estremece-lhes. Considero as transcrições anteriores prelúdios do romance, porque proporcionam vislumbres do texto original. As frases simples e a linguagem coloquial transmitem 37 marcas de oralidade, de quem estava a transcrever fielmente, enquanto exercia o ofício de pescador, escritor e fotógrafo. A conexão profunda de Redol com os contextos exprime-se no enfoque analítico e sintético: “Ao prateado do lombo vai-se aderindo a areia molhada, impacto pelo chão se lhe esvai a vida pintalgando-o de vermelho vivo.”. A expressão impressionista desta descrição passa pela mistura de pigmentos orgânicos no “lombo” do peixe, cujos contornos abstratizam-se. Redol descreve o momento de transição de uma natureza viva para uma natureza morta, com cor (prateado, vermelho) e relevo (lombo, areia). Ele expande os horizontes de visualização, aumentando ou diminuindo os pixéis de um evento efémero e fugaz: “É a experiência, que temos oportunidade de adquirir quase diariamente, que nos determina a distância e o ângulo de visão.” (Benjamin, 2012, p.27). A questão da repetibilidade e/ou da proximidade das experiências determina a forma como se olha para a realidade. A experiência diária e terrena de Redol com os avieiros proporcionou-lhe um ângulo de visão privilegiado para conceber um romance nítido, único, atemporal e etnográfico. A reportagem do trabalho de campo, ao qual se propunha e comprometia, era crucial na preparação dos seus romances, antes de dar vida às personagens: Eu, geralmente, quando escrevo um romance, não vou nunca com uma ideia prévia. Recolho muita coisa, desde o folclore, os modos de expressão, as coisas mais ínfimas e, depois é que tiro daí realmente a orientação, os pilares, digamos assim, sob qual assenta depois a obra que vou escrever. [...] para refazer, para transplantar essa realidade objectiva para uma realidade romanesca.58 (Crespo, 1991, 25:09-25:34, 45:15-45:22) Uma vez que Avieiros nasceu na taberna de maneira inesperada, a recolha intensa do “folclore”, dos “modos de expressão” e das “coisas mais ínfimas” e o trabalho de campo com os avieiros59, são provas vivas de que não há “uma ideia prévia”. Há sim, “pilares” da “realidade objectiva” que orientam a “realidade romanesca” e, depois há o transplante de uma realidade para a outra que pede uma certa reclusão na escrita. Como proferido na palestra “Arte”, antes de escritor, Redol era homem, por isso vivia a vida antes de a escrever. A sua criatividade fluía conforme os contextos, na busca incessante do diálogo pela observação e pela recolha: “[...] disponibilidade imensa para captar a genuinidade do ‘outro’ social, procurando no diálogo e na humanidade do gesto solidário um modo mais profundo de acesso à experiência quotidiana desses grupos.” (Santos, 58 59 Transcrição minha In Alves Redol: vida e obra (1991). Ver figura 4, p.33. 38 2012, p.264). A “disponibilidade imensa” para o ‘outro’ e a “experiência colectiva desses grupos” criava uma linguagem universal e uma narrativa coletiva, abrindo brechas de consciência face questões sociopolíticas inerentes. Estar no terreno é estar com as paisagens e as suas memórias. É perceber a configuração territorial das mesmas como resultado a longo prazo da interação entre natureza e cultura: “Isto é, a paisagem apresenta dimensões mais objetivas e materiais, normalmente conotadas com aspectos da geografia física, mas também dimensões culturais, percebidas e subjetivas (NOGUÉ, 2008).” (Soares, 2013, pp.157-158). O trabalho de campo sensibiliza o escritor para diferentes dimensões (objetivas, materiais, culturais, percebidas, subjetivas) através do contato com as marcas identitárias e evolutivas de um tempo e de um espaço. Estar no terreno é também perceber tudo isso através dos testemunhos reais, neste caso específico, dos avieiros 60. A apreensão da paisagem na sua plenitude é genuinamente multidimensional: “[...] a paisagem é um sujeito, vive por si só em quem observa, não é complemento imaginado nem fundo de acção representada, unindo apontamentos da realidade num real inexistente; a paisagem é um documento, um sentimento e um novo olhar.” (Serén, 2013, p.135). Esta conceção de paisagem complementa a conceção do Tejo como “uma formulação colectiva”, referida no ponto dois do capítulo 1. No seguimento da lógica coletiva, adotada no Neo-Realismo pelos seus seguidores, Redol imiscuiu-se nas paisagens ribatejanas através das vivências interiores e exteriores dele mesmo e de “todos os que nele vivem”. Desenrolava-se um processo de materialização (documento) e humanização (sujeito) da paisagem com os seus testemunhos, no ângulo do sentimento e do olhar de quem a viveu. O discernimento do espólio compreende dimensões humanas, espaciais e temporais, portanto reitero essas dimensões através do empirismo, da geografia e da memória, acautelando ritmos criativos. Todo o processo do trabalho de campo é um processo de tempo – cronológico; vivo; psicológico; do eu – dependente da subjetividade de cada um. O trabalho de campo joga com a relatividade desses quatro tempos, tanto a nível das paisagens como dos seus intervenientes. Cronologicamente, Redol ficou alguns meses no terreno, absorvendo quotidianos vivos e ritmos paisagísticos e emocionais de testemunhos naturais e humanos. Após tantas interferências, surgia a necessidade de tempo do eu; tempo de recolhimento em silêncio para filtrar os tempos cronológicos, 60 Ver figura 14, p.80. 39 vivos e psicológicos das vivências e para transpô-las em arte através do método, da análise e da técnica: [...] eu gosto muito da multidão, gosto muito de estar no meio dela, mas, ao fim de um certo tempo, estou um pouco cansado, satura-me, preciso, portanto, de me afastar um pouco (antídoto) e ficar num grande silêncio, num grande sossego, para pensar nela evidentemente [...]61 (Caeiro, 1958, 31:39-31:55) A palavra “evidentemente” constata a seriedade que o “grande silêncio” lhe trazia para pensar na “multidão”. A faceta jornalística de Redol catapultava-o para o meio da dela, para o trabalho de campo e para um registo menos narrativo e mais informativo. O momento de afastamento da multidão era o momento do romance e da técnica narrativa, resultante da convivência solitária com os registos das vivências; o “antídoto” para o momento fulcral da combustão literária. Desde o contato com os avieiros na taberna, ao trabalho de campo nas aldeias avieiras, à moagem dos materiais de recolha e à escrita e reescrita do romance, Redol viajou pelo espaço-tempo de realidades paralelas. Redimensionou a cronologia quotidiana dos avieiros e potenciou a sincronicidade espacial, temporal e emocional dessa realidade objetiva com a romanesca. Desde este ponto de vista, acho importante olhar para o espólio na sua materialidade (estrutura, caligrafia, fotografia, ilustração) que providencia muitas pistas sobre o homem (pensamento, criação), o tempo (século XX) e o espaço (mundo e Ribatejo) e na sua ‘imaterialidade’ que desvenda as respetivas dimensões cognitivas e emocionais. À luz da reinterpretação e recriação das várias camadas do espólio, os registos do trabalho de campo são os mais frutíferos, porque apresentam uma escrita livre e espontânea que procura transcrever os contextos. Uma ‘escrita de bolso’, próxima de Redol, dos avieiros, das aldeias avieiras, do Tejo e das lezírias e propícia à imaginação intelectual e à reconstrução da memória. Também apresenta uma escrita concreta, etnográfica e antropológica. Em contraposição, a escrita pensada e elaborada das listas de vocabulários ou das fichas bibliográficas, organizadas por ordem alfabética, remetem para o método de estudo que acontecia antes, durante e depois do trabalho de campo. A viagem pelos cinco sentidos que o trabalho de campo proporcionou a Redol é agora proporcionada ao leitor através do manuseamento do espólio e da leitura da sua obra. A revisitação da atividade cívico-literária de Redol marcou a cena portuguesa e 61 Transcrição minha In Entrevista 1 - Alves Redol por Igrejas Caeiro (1958). 40 internacional durante décadas e reafirmou a vitalidade da sua obra e o pensamento social, político e ético. O eco desse pensamento repercutiu-se na contemporaneidade, também através de outros vultos literários. No âmbito do Centenário de José Saramago 202262, evoco o trabalho de campo de cerca de dois meses em Lavre (1976) para recolher testemunhos dos habitantes e para romancear a obra Levantado do Chão (1980). Evoco também Viagem a Portugal (1981), como um trabalho de campo mais alargado por todo o país entre 1979 e 1980. Este livro foi originalmente publicado com fotos que salientavam a personagem principal – a paisagem. É interessante notar como a forma de viajar de Redol e Saramago por Portugal pode ser diferente, mas semelhante: “O viajante viajou no seu país. [...] viajou dentro de si mesmo, pela cultura que o formou e está formando [...] registou em trânsito e processo, as impressões, as vozes, o murmúrio infindável de um povo.” (Saramago, 2022, p.16). Os seus pontos de partida eram as suas terras (Vila Franca de Xira e Azinhaga) e os seus pontos de chegada eram as terras do povo (Palhota e Lavre). Eles partiam de um lugar individual, interior para um coletivo, exterior. Eles foram viajantes, onde as paisagens eram pontos de reflexão e de questionamento sob diferentes ângulos históricos e culturais. Eles não foram meros viajantes, mas sim viajantes que se permitiram à descoberta de um Portugal mais profundo e, com isso, traçar um roteiro mais fidedigno e menos turístico: [...] responsabilidade relevante ao Estado Novo pelo obscurantismo cultural e pela preservação de uma ruralidade (pelo menos até à década de 50) que fez deste país uma écloga à beira-mar plantada, com muitos disparates ecológicos, para consumo de turistas em busca do exotismo. (Viçoso, 2011, p.15) O “exotismo” de Portugal, o “obscurantismo cultural” e a “preservação da ruralidade” estagnaram o país e isso teve e tem as suas consequências – pouca autossuficiência e algum subdesenvolvimento cultural, em comparação à Europa. Com isto, pretendo reestabelecer laços reconstrutivos da memória do esvaziamento cultural e da disparidade social que a ditadura trouxe e a forma como a ruralidade ditou a marginalidade de certos povos, neste caso, os avieiros. Porém, os Avieiros e as suas tradições irão sempre inaugurar um ‘manifesto’ da Borda d’Água pela conservação dos trajes, pelas festas de casamento e pelo estilo das casas em madeira, com estacas, deslocadas e estranhas à lezíria. 62 16 de Novembro de 2022; José Saramago (1922-2010). 41 Em suma, este espólio confirma que Redol estava informado pela inteligência e pela experiência. Nunca se absteve das causas sociais e coletivas e sempre quis o progresso dos povos. Nunca se colocou fora da realidade; dedicou-se a vivê-la para pensála, estudá-la e problematizá-la. Foi um homem estudioso e um escritor comprometido. Imbricado numa lógica neo-realista, levou o seu trabalho de campo muito a sério, complementando-o com o estudo contínuo de questões teóricas e sociais, com fotos e desenhos. A duplicidade representativa da arte social de Redol desempenhou uma função social nos vários domínios da vida e tocou no que há de mais profundo na condição humana. Não só observou os avieiros como uma comunidade, mas também como cada homem e cada mulher, procurando a realização do problema de cada um, na solução do problema de todos. O projeto literário-social de Redol foi sempre sensível ao passado, atento ao presente e vinculado ao futuro. Daí, o espólio conter objetos de estudo, profícuos na desenvoltura de investigações literárias, etnográficas e antropológicas acerca do homem, do escritor, do século e dos avieiros. 42 2.2. Como escreve Redol? Aproximações ao seu processo criativo A vida significa para nós transformar constantemente em luz e flamas tudo o que somos ou o que se nos depara. Nietzsche Figura 5: Alves Redol junto da máquina de escrever63 63 In ESPLIT-RED/FOT/A21/8.46/CX.27/DOC.46 43 O romance assimila outros géneros literários (epopeia, lirismo, dramaturgia, historiografia, filosofia, narrativa, conto) e requer o conflito dramático, o enredo, o fundo romanesco, o quadro de valores e a análise: “[...] o romance é expressão frisante de crise de valores.”64. Quanto mais intensas as contrariedades, mais vivaz o romance e Redol buscava respostas para essas contrariedades através dos seus romances. A formação de uma nova consciência social e estética deduzia um novo sentido de objetividade e de novos valores nas relações humanas. Mediante a revigoração do romance, o meu propósito é analisar a evolução da escrita redoliana na narrativa neo-realista, nos prefácios e na 1ª e 5ª edições d’Avieiros. Redol escrevia a partir da matéria-prima da realidade. A sua criação literária reportava-se a um processo criativo, o qual derivava do culturalismo analítico, da observação participante e da maturação dos conteúdos. Ele trabalhava anos a fio nos seus romances, imiscuindo o documento ensaístico com a obra romanesca. Complementava esse trabalho com a leitura de livros teóricos e ideológicos; com o estudo exaustivo das ciências sociais; com o engagement no sistema social, político, cultural e educacional; com as relações com escritores e críticos e com a recolha escrita, desenhada e fotografada do trabalho de campo, individual ou coletivo. Dessa forma, a sua escrita dialogou com o seu percurso de autoconhecimento como homem e escritor, também nas suas fragilidades. Em meados de 1954, ponderou deixar de escrever, comunicando por carta a Francisco Tavares Teles essa vontade, esse desalento: “Olho para trás de mim e julgo que tudo o que tenho produzido é falho de interesse. E pergunto por isso mesmo se valerá a pena continuar.” (Martins, 2013, p.56). As críticas persecutórias, as apreciações muito exigentes, as posições políticas sobre ele e a sua obra, a censura, a relação com as editoras, a situação política nacional e internacional, a carreira publicitária – tudo isso acarretou um desgaste brutal. No entanto, os intervalos na escrita projetaram Redol para uma fase mais madura e constituíram um ato de renascimento do autor e da obra. Isso traduziu-se na escrita de prefácios pertinentes e na reescrita de algumas obras, sendo Avieiros o exemplo mais perto disso. Fruto de um longo processo de criação, cuja crítica despoletou a escrita-leitura e a crítica-recriadora, evoluindo da primeira versão para a segunda no espaço de vinte e cinco anos. 64 Lopes, O. (1948). «Condicionalismo do romance português». In C. Reis, Textos teóricos do NeoRealismo português (pp.212-216). 44 O aprimoramento do estilo da escrita de Redol, tanto a nível da forma como do conteúdo, adaptou o seu romance a uma audiência mais vasta e plural e elevou-o ao pódio dos cânones literários 65. Os vários estágios de amadurecimento, intercalados por períodos de recolhimento e reconsideração interiores, fortificaram a linha evolutiva da sua escrita - maior dinâmica e densidade narrativas. Por muitas etapas 66 que a mesma tenha passado, há propriedades comuns que a definem. Quero com isto dizer que a escrita redoliana é uma escrita etnográfico-narrativa e lírico-descritiva, pontualmente auxiliada pela fotografia e pelo desenho ou modelada pela crítica. Jornalista em terreno, romancista na ficção, cujo fio condutor do discurso etnográfico-narrativo e lírico-descritivo é a “desocultação social” que tenho vindo a enunciar. A mesma serve-se de duas estratégias discursivas – a narrativa e a descrição. Ambas se afastam da linguagem poética e aproximam-se da linguagem referencial, cuja enunciação está presente na inscrição das condições de recolha e do juízo sobre a sua obra e sobre o diálogo com o leitor. O respetivo discurso cognitivo segmenta-se em objetivoreferencial e/ou subjetivo-literário. O “tentame etnográfico” de Redol contatou com microcosmos ergográficos e folclóricos e reproduziu os dados mais relevantes. O prefácio do Dr. João David Pinto-Correia67 aborda duas condicionantes na prática do etnógrafo – a reorganização dos dados recolhidos do sujeito-enunciador/narrador e a estruturação do discurso descritivo/narrativo. O discurso do saber concretiza-se da preparação teórica e da competência metodológica. Na fase de enunciador-produtor, a ordem factológica da escrita poderá ou não acompanhar, cronologicamente, a ordem do trabalho de campo. Numa primeira instância, poderá pressupor-se uma hierarquização dos dados do saber pela exclusão de contributos concretos da experiência do trabalho de campo ou pela inclusão de contributos exteriores a essa experiência. Numa segunda instância, poderá reorganizar-se essa hierarquização, sem descartar as condições e os contextos do trabalho de campo. Ainda no prefácio, abordam-se quatro preocupações da escrita etnográfica. A preocupação descritivo-narrativa advém da prática etnográfica de recolha que requer condensação, sintetização e amplificação. A preocupação de integração (extra)contextual etnográfica relaciona uma rede comparativa com situações contextuais ou extracontextuais. Os elementos linguísticos servem como ponto de comparação com os Atribuição do Prémio Ricardo Malheiros a Horizonte Cerrado (1949) em 1950. Quatro fases da escrita de Graham Wallas (1858-1932): preparação, incubação, iluminação e verificação. 67 Pinto-Correia, J. D. (1980). Uma escrita acerca do povo ou da possibilidade de um discurso etnográfico. In Glória: uma aldeia do Ribatejo (pp.9-29). Lisboa: Publicações Europa América. 65 66 45 de outras regiões. A preocupação de “citação” de terminologias linguísticas que o etnógrafo recebe, respeita e transcreve de acordo com as regras metodológicas próprias do seu ofício. A preocupação terminológica/taxinómica exige uma classificação do autor de distinções, análises ou sínteses, a qual constitui uma proposta de taxinomias, ou seja, de um discurso científico-técnico (esquemas, ilustrações, gravuras). O registo terminológico e taxinómico, aliados ao icónico (desenhos), suscita um estudo comparativo entre o texto e o antetexto. De tal modo que a interação entre a escrita etnográfica-narrativa e lírico-descritiva teceu relações tensas e nutritivas entre etnografia e literatura. Redol e Avieiros sofreram o conflito sangrento entre forma e conteúdo, debatido na crítica neo-realista por Dionísio aquando 1ª edição e comentado no prefácio por Redol aquando 5ª edição. O aperfeiçoamento do romance não foi nada pacato, mas foi um momento decisivo para Redol, para o Neo-Realismo e para a história da literatura portuguesa. Isto porque desencadeou uma evolução no escritor, na escrita e no romance. Explicitando melhor, a nível da estrutura externa, ao analisar os índices (a forma) e algumas passagens (o conteúdo) da 1ª para a 5ª edições, noto alterações significativas: Índices 1ª Edição Dedicatória Epígrafes 5ª Edição Dedicatória Breve história de um romance O mar trouxe uma criança Meu menino Um grito Os rapazes são como as melancias O mar trouxe uma criança Deixa ficar a navalha Um grito da banda do rio O Mar não ouve os velhos As crianças são como melancias Poisada Barracão Mestre Feliciano sabe histórias Zé!... A vida passa Apêlo A Maria vai casar O Tóino que canta... O destino está lá fora Barracão Não há por ali mais telha Mestre Feliciano sabe histórias Zé!... A vida é um pássaro Apelo A Maria vai casar Maria do Rio Vagabundos Estrada para o fim do mundo João da Vala Rêdes lázaras Eu é que sou o homem Maria do Rio Que a terra se queime onde puseres o rasto dos teus pés Voou um pássaro na noite «Fizeste uma coisa bonita!...» Vagabundos do Tejo 46 Companha Carreia Sempre?!... O dono do Tejo O menino adormeceu Andanças e lembranças Até quando?! Não te mexas, Tóino! É um rapaz, tem de se chamar João Um homem do Tejo não s’arreceia dum toiro... O homem sou eu Mais força, Linda! Carreia de formigas Sempre?!... Caminhos Aldeia Emposta Mais uma estrêla na noite O Tejo levava saudades Barcos fora de água Companha As redes do Zé Malho Avieiros e murtoseiros O dono do Tejo Porquê, Senhor, porquê? No rio nasceu uma certeza Volta Safra Lance galo Mar traiçoeiro Caminhos Aldeia Mondina que vai à monda Pra que tu saibas, amor, / Que eu ando à monda no campo O Tejo leva mais saudades que água Barcos fora de água A paciência não ganha pão Safra Quem se lembra mais do Zé Soisa? Quem só muda de camisa, não muda de má vida Lance-galo Parvo, grande parvo! O fio da vida Ciganos Ciganos do rio Regresso Água e mais água – mais angústia que água A Lezíria é um lago O festim dos milhafres Olha, Tóino! O número das partes (seis) mantém-se nas duas edições e os capítulos aumentam de trinta e um para quarenta e três. “Maria do Rio” e “Caminhos” crescem, mas contrabalançam o grande conjunto. Os desenvolvimentos da matéria romanesca derivam de cortes e substituições e traduzem-se, numa primeira instância, no volume da paginação - 1ª edição 305 páginas e a 5ª edição 326 páginas; o que demonstra que o texto foi totalmente transformado. As partes e os capítulos englobam sínteses, sinédoques, designações, perífrases, símbolos, interrogações e interjeições: “[...] um conjunto de 47 grande diversidade, que converge na interferência constante de significação entre o texto e a sua designação.” (Seixo, 2012, p.43). As partes apontam o sentido da intriga e os capítulos fornecem pistas dos textos através de sujeitos, objetos, lugares, atmosferas, estados, sentimentos. A dedicatória mantém-se em ambas as versões, com ligeiras alterações: eliminação do “que” e encurtamento das frases. Na primeira “Ao Jerónimo Tarrinca. À sua «Liberdade», caminheira do rio, que leva decoradas na proa todas as rotas do Tejo.”; na segunda “Para o Jerónimo Tarrinca e o António Vitorino, meus companheiros nas andanças do Tejo.”. As epígrafes transformam-se em texto preambular e/ou prefacial reflexivo, afinando a intenção e o sentimentalismo do autor para com a sua obra. O comprometimento de Redol com a sua missão de homem e escritor para com o ‘outro’ e para com o leitor é transversal nos prefácios que se seguem. O preâmbulo de Glória de 1937 remete para o ensaio, para o “filão etnográfico” e para a preocupação inerente de “[...] elucidar o leitor, expondo-lhe o porquê do trabalho e o seu objectivo [...]” (Redol, 2004, p.37). Há transparência naquilo que se escreve para que depois possa ser interpretado pelo leitor de forma livre e justa: “Este romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário fixo no Ribatejo. Depois disso, será o que os outros entenderem.”. (Redol, 1976, p.7). “Breve memória para os que têm menos de 40 anos ou para quantos já esqueceram o que aconteceu em 1939” (1965), “Breve história de um romance” (1967) e “o escritor antecipa-se e fala das personagens antes que outros as encontrem e conheçam” (1967) são prefácios dos anos 50/60 que tecem diálogos com os anos 30/40. Há uma tomada consciência através da retrospetiva dos malogros do mundo e do país, dos antecedentes pessoais de Redol e do “[...] sadio combate de juventude [...]” que o Neo-Realismo foi. Há uma deliberação do “documentário fixo”, ou seja, do propósito do romance redoliano: “[...] romance antiassunto, ou, melhor, anti-história [...]” (Redol, 1976, p.16), nunca prescindindo de coordenadas da história (1936-1939). O prefácio d’Avieiros combina as epígrafes da 1ª edição (“Vagabundos do Tejo” e “Ciganos do Tejo”) e enquadra o romance nos eventos que o fizeram nascer e renascer. Redol veste a “palavra-pele” que o forjou com dor e alegria durante cerca de trinta anos. Entre epígrafes, dedicatórias e prefácios, em primeiro plano, há o diálogo progressivo de Redol para consigo mesmo, para com o ‘outro’ e para com o seu romance. 48 Em segundo plano, há a construção do pensamento redoliano que dita a intenção e o sentimentalismo do homem e do escritor. A homenagem a Garrett é um dos aspetos que trespassam e perduram. Na epígrafe do Cancioneiro do Ribatejo, como já referi no ponto dois do capítulo 1 e na epígrafe “Homenagem a Garrett” (Redol, 1993, p.7) e no “Quase Um Prefácio” (1954) em Olhos de Água: “[...] a dedicatória a Garrett significa, além da homenagem devida ao que abriu o caminho do nosso romance [...]” (Redol, 1993, p.13). Rebocando novamente o paralelismo com Saramago, leia-se a seguinte epígrafe: “A quem me abriu portas e mostrou caminhos – e também em lembrança de Almeida Garrett, mestre de viajantes.” (Saramago, 2022, p.5). Em tom de similaridade, a influência garrettiana abriu portas para ambos os escritores e caminhos para o romance. Sem sombra de dúvida que Garrett foi o mestre do romance para Redol e o “mestre de viajantes” para Saramago. Sucintamente, o enredo principal d’Avieiros começa pelo parto de Ana Carramilo no barco, acompanhada pelo marido João e pelo filho Zé. Dois habitantes das margens, Clotilde e Feliciano ajudam no parto e oferecem-se para apadrinhar e criar Olinda. Contrariamente à afetuosidade de Feliciano, a intransigência de Clotilde aprisiona e revolta Olinda no barracão durante a sua infância e juventude. Entretanto conhece Tóino da Vala, apaixonam-se e casam-se. A partir daí, relatam-se episódios da vida adulta de Olinda: a vivência conjugal (momentos de sedução e violência) e a pesca no barco; a escassez do peixe; os prejuízos da venda do peixe no mercado e/ou aos almocreves; a exploração das licenças (redes) pelo fiscal do rio - Tubarão/José Gonçalves; a gravidez, a doença e a morte do primeiro filho de Olinda – João; a nova gravidez, desta vez de uma menina – Maria; a luta por melhores condições de vida – uma barraca/casa, uma cooperativa de pescadores, a compra de um barco novo, o trabalho conjunto em companha; a tropa de Tóino em Santarém; o trabalho na monda e na ceifa de Olinda (momento de resistência à sedução do murtoseiro e de defesa contra o maltês e o fiscal de rio); o regresso de Tóino da tropa; as cheias. Tem-se melhor perceção de ambas as edições d’Avieiros, recorrendo a um glossário. Porém, a linguagem da 1ª edição é mais coloquial, mais simples, mais onomatopeica, bastante próxima da oralidade de todos os dias. Essas marcas de oralidade sobressaem-se na pontuação, na acentuação, nos dizeres, nas quadras ou nas canções (a 1ª soma 47 versos e a 5ª soma 23 versos), saídas das entranhas da poesia popular. A 5ª edição mantém o mesmo tom, mas num registo mais cuidado. As descrições menos 49 polidas da 1ª edição remetem para uma leitura mais espontânea e mais orgânica. Tomese como exemplo as seguintes passagens: 1ª Edição68 “Receber sobras de mimalhos é coisa que pesa no peito.” (p.16) “Nos toletes os remos chiavam.” (p.17) “- Vamos, João! Rema depressa... Dá-lhe com gana...” (p.21) “Pusera um chaile pelos ombros e abalara com êle carreiro abaixo.” (p.33) “Tudo ia numa dobadoura naquela manhã.” (p.78) “O barco deslisava no rio, enquanto João da Vala se entregava por inteiro aos seus sonhos.” (p.126) “Se vossemecês não me tira o garraio das unhas, inté o comia...” (p.141) “- A mãi não se demora. Não tenhas medo.” (p.163) “Esticou o estai e amarrou-o bem na cinta do barco.” (p.193) 5ª Edição “Receber sobras dói sempre” (p.24) “Os remos chiavam nos toletes.” (p.26) “- Anda lá depressa, João! Agora tem de ser depressa!” (p.29) “Pusera um xale pelos ombros e apanhara-o a meio do carreiro.” (p.39) “Andava tudo numa fona.” (p.83) “O saveiro encavalitou-se na vaga do rio, levando João da Vala para o mundo dos sonhos.” (p.136) “Quando agarrei o bicho pelos cornos, ninguém mo tirava das unhas, ouviram?” (p.151) “- A mãe vem já, não se demora nada. Não tenhas medo, João.” (p.168) “Estica a vela do estai e amarra-a à cinta do barco.” (p.212) Os vocabulários, as reticências e as exclamações a negrito transcrevem e pontuam a expressão popular em ambas as edições. Contudo, a presença da oralidade e dos regionalismos é mais forte na 1ª edição (“Dá-lhe com gana...”; “abalara”; “dobadoura”; “garraio”; “inté o comia”; “mai”; “estai”) do que na 5ª edição (“fona”; “bicho”). A oralidade da 1ª edição também se manifesta na gramática, por exemplo, na troca do sujeito e do predicado (“Nos toletes os remos chiavam.”), ao contrário da 5ª edição (“Os remos chiavam nos toletes.”). O apuramento da gramática torna a linguagem mais cuidada (“pesa no peito” – “dói sempre”; “barco” – “saveiro”; “estai” – “vela do estai”) e estiliza a linguagem dos avieiros, tornando-a mais acessível ao leitor. A “[...] variação sobre o mesmo tema de 1940 [...]” (Redol, 1980, p.17) demonstra a evolução da metalinguagem de Redol e da língua portuguesa (“chaile” – “xale”). 68 Negritos meus. 50 As remodelações externas acarretam mutações internas e complexificam a estrutura elaborativa. As descrições das paisagens69 e os enquadramentos da narrativa tornam-se mais extensos, com mais atenção ao pormenor: Quando regressaram à revessa do caniçado, Olinda manejava os remos.70 O companheiro sentara-se a seus pés e fitava-a com ternura, assobiando. Levantara-se uma ponta de vento agreste. (Redol, 1980, p.107) Naquela noite começavam bem. Pelo sacudir do peixe nas mãos dele, Olinda adivinhou que deviam ter agarrado fataça gorda; depois outra ainda menos esperta, e também mais mindinha. Viu-o atirá-las para dentro da caverna e levantou-se do banco para as espreitar; não se enganara. A maior devia andar por um quilo. (Redol, 1980, p.116) Firme nos passos, Olinda Carramilo caminhava a passo firme pelo areal. [...] Puxou com toda a força. Mesmo que o mundo caísse dentro da rede, ela sentia-se capaz de arrastá-lo nos braços. (Redol, 1980, p.159) Agarrada aos punhos dos remos, Olinda Carramilo meteu o saveiro à vala, na esperança de saltar em terra e encontrar alguma madeira para a barraca. Podia calhar, sabe-se lá onde se encontram tábuas! (Redol, 1980, p.168) Crescia dentro dela uma força de raiva e de desprezo. Amarrou a cinta num arremesso, saltou para fora do saveiro e pegou na tábua. Olhou-o de frente, bem de frente, mas ele ainda lhe sorria. Então, Olinda Carramilo não se conteve; encostou a tábua ao tronco de um salgueiro e saltou-lhe para cima com os dois pés. Uma vez, duas, tantas vezes, até que a madeira cedeu e se abriu a meio. (Redol, 1980, p.172) A avieira tem os pés vermelhos e inchados, massaja-os, sorri para as outras, não quer dar parte de fraca, está habituada às águas frias do Tejo durante a safra do sável. (Redol, 1980, p.234) Olinda sentia-se calma. Já abrira a navalha dentro do bolso do avental. Só sacudiu o braço para que o maltês a largasse, não podia gritar, não devia chamar, tinha de resolver por si aquele encontro. (Redol, 1980, p.239) Puxa da navalha, abre-a e começa a cortar as malhas da chincha, uma por uma. Os homens param o lance e olham para Júlio Gonçalves, o dono do Tejo. Ninguém desvia o olhar das suas mãos. As mulheres chegam-se mais. Olinda Carramilo está lívida, tremelhe o corpo. Abre a sua navalha e percebe que o Tubarão estremece. (Redol, 1980, p.267) Ler o exemplo do segundo parágrafo do capítulo “Um grito da banda do rio”, da parte “O mar trouxe uma criança”: “A terra fica mole [...]” (Redol, 1980, p.31). 70 Negritos meus. 69 51 Quando a vê puxar a rede, Tó Lobo volta à faina. Chega uma peça rasgada, como se a tivessem cortado a canivete. O mulherio grita. O uivar das mulheres cobre a zunida do vento. As mãos de Olinda estremecem, mas não cessam de alar. (Redol, 1980, p.284) Todas estas citações antecedem um diálogo da personagem principal com alguém ou com alguma situação. Este tipo de enquadramento do discurso indireto fomenta a compreensão do discurso direto e a caraterização da personagem: “[...] aventurosa, exigente, animada, terna, construtiva, ansiosa, perseverante, cometida [...] (Seixo, 2012, p.48). A respetiva densidade psicológica constrói-se, então, a partir do diálogo com outras personagens (Tóino, Sr.ª Clotilde, Mestre Feliciano, Tó Lobo, Espanta, Tubarão/Júlio Gonçalves, Francisco Descalço), despoletando sentimentos, atitudes e reações em Olinda. São narradas a infância, a juventude (“O mar trouxe uma criança”; “Barracão”) e a idade adulta de Olinda (“Maria do rio”; “Companha”; “Caminhos”; “Ciganos do rio”), assumindo esta última grande parte do corpo narrativo. A mulher avieira, exemplar na luta cíclica da família avieira, defronta os seus e os outros. À medida que Olinda se afirma nos contextos perante o ‘outro’, também afirma o coletivo. Desprotegida e lutadora, sobretudo quando o seu companheiro Tóino ingressa na tropa, enfrenta a faina, a monda e a safra. Quando ele regressa, enfrentam o cataclismo das cheias juntos. Olinda levantalhe a moral e ergue das águas uma tábua que reconstruirá a barraca. Este final apoteótico da tragédia dos avieiros glorifica a condição feminina e a resiliência avieira, elogiadas na palestra “Meus Amigos...”. Em prol das vertentes do romance psicológico, Redol trabalha o robustecimento do romance e a densidade psicológica da personagem principal. Em Avieiros, Olinda sofre todo o embate da ação e das personagens secundárias, quando nela são provocadas reações psicológicas, as quais geram o enredo. Relativamente à reafirmação da personagem principal como feminina e avieira, com base no seu prefácio, entendo que a revelação do mistério de Ana da Guia (avó paterna avieira), tenha contribuído para a reconstrução de Olinda e d’Avieiros: “Ana da Guia nascera de pescadores do Tejo, era avieira, andara no trato de barcos e redes, vendera peixe pelas portas; acabara por se meter ao trabalho do campo quando o pai lhe morreu e o barco ficou sem homem.” (Redol, 1980, p.16). Redol fez d’Avieiros o romance da Mulher e deu voz a Ana da Guia através de Olinda que, por sua vez, deu voz a todos/as os/as avieiros/as. Mais uma vez e insistindo no paralelismo com Saramago, Levantado do Chão também dá voz e poder à 52 excecionalidade feminina: “José Saramago levanta do chão essas mulheres, ao dar-lhes nomes, corpo e história. A evolução das personagens femininas na narrativa de Levantado do Chão funciona como prenúncio do que o mundo pode ser se homens e mulheres se unirem na construção de algo melhor.” (Santos, 2017, p.34). Redol também deu nome, corpo e história à mulher avieira, em detrimento do homem avieiro. Olinda e Tóino foram representativos do casal avieiro e mostraram que a sua união supera tudo - dualidade transformadora. Relembrando os apontamentos sobre o Tejo, pesca e avieiros do espólio e correlacionando-os com a versão original, associo prontamente algumas expressões. Um dos exemplos aparece nos apontamentos e na 1ª edição: “Ciar (remar p’trás quando vão a colher as redes)” - “- «Ceia» p’ra trás” (Redol, 1942, p.106); “Trigo loiro fatasa como toiro” - “[...] quando o trigo está loiro a fataça é como toiro.” (Redol, 1942, p.102). A transcrição fiel dos registos para a versão original do romance demonstra a conexão profunda de Redol com a linguagem dos avieiros: [...] Alves Redol dá novo ímpeto ao género romanesco no reencontro entre a tradição literária burguesa (de cunho cosmopolita) e a herança do folclore nacional. A maneira como o escritor neo-realista incorpora fragmentos de canções tipo tradicional para preencher as necessidades formais e ideológicas de boa parte dos seus romances deve ser valorizada, pois, como o ponto de partida fundamental para a transmissão dos desejos históricos de uma massa humana sem voz. (Ferreira, 1992, p.285) A incorporação dos “fragmentos” “de uma massa sem voz” nas “necessidades formais e ideológicas” d’Avieiros regenerou o género romanesco. Redol propiciou um ponto de encontro entre o cosmopolitismo e o nacionalismo dentro da prosa narrativa. O seu romance plurifacetado representa o caso mais consciente do enraizamento da tradição e o elo mais motivador do legado oitocentista entre o compromisso literário do passado e do presente e entre as incursões futuras da arte na história. Para terminar, Redol escreveu com “[...] o seu sangue e os seus nervos.” (Namorado, 1939, p.12). O essencial da sua escrita nunca mudou, apenas evoluiu. Rompeu estigmas literários dentro do Neo-Realismo e alargou horizontes na literatura portuguesa. O romance foi o género de eleição e Redol consolidou-o em Avieiros, possibilitando duas versões para a mesma história; duas oportunidades para a mesma mulher; duas oportunidades para o mesmo povo. Pessoalmente, prefiro o jeito poético da 53 versão original. Penso que se aproxima mais da génese do movimento neo-realista e penso que me aproxima mais da essência de Redol, dos avieiros e das paisagens. 54 CAPÍTULO 3 3.1. A paisagem na literatura – Reflexões acerca da representação do espaço A Arte é uma expressão da vida. Antero Ferreira Figura 6: Família avieira na faina da pesca © Câmara Municipal de Vila Franca de Xira / Museu Municipal de Vila Franca de Xira71 Palha, José (1930). In G. S. Nunes, Vidas no Tejo, um olhar sobre as comunidades avieiras. Jornal da exposição. Edifício do Celeiro da Patriarcal. 71 55 O universo redoliano contempla uma série de paisagens, verticais e/ou horizontais, em tempos objetivos e/ou subjetivos. Em justaposição, os espaços que compõem essas paisagens possibilitam outros percursos e abrem novos caminhos na afirmação das vozes dos avieiros. Em sobreposição, os discursos que narram esses espaços interrogam e subvertem as realidades nos seus valores estéticos, morais e ideológicos. Com âncora no estudo de Maria Graciete Besse72, trago a minha reflexão acerca do espaço em Avieiros. Exploro alguns olhares da problemática do espaço, das manifestações de violência, da dinâmica discursiva e do domínio simbólico. Os espaços redolianos detêm componentes geográficas, temporais, rurais, urbanas, laborais, recreativas e sociais, as quais permitem reconstruir os lugares de vida e de morte e as paisagens profundas. Avieiros desenvolve-as a partir da personagem principal feminina (Olinda) que transita entre as outras personagens e entre os espaços que essas outras personagens ocupam. Na origem desses espaços está o mar e o rio. Espaço migratório dos pescadores da praia de Vieira de Leiria para as margens do Tejo, o qual constituiu um canal de entrecruzamento entre diversos espaços. Esta transposição dos espaços permitiu a criação do espaço avieiro dentro do espaço ribatejano. Processo longo e custoso. A aceitação dos avieiros no Ribatejo traduz-se muito no modo como habitaram o rio. Primeiro viveram nos barcos nas margens do rio e depois nas casas de palha, madeira e/ou cimento. Enquanto viveram nos barcos, trabalharam maioritariamente na pesca. Quando começaram a habitar as casas, viram-se obrigados a cultivar o terreno para ocupá-lo. Também trabalharam no campo, apesar de não serem totalmente aceites pelos campinos/as e/ou gaibéus/as. Gente do rio não se misturava com gente do campo e vice-versa (Lei do Tejo). Este espaço migratório é um espaço de conflito e de adaptação. É um espaço líquido que flui sentido norte-sul e que percorre espaços abertos, fechados, eufóricos e disfóricos. A luta dos avieiros pela sobrevivência tem como veículo o barco, levando sofrimento na ré e esperança na proa (associação da imagem das flores na proa no dia do casamento avieiro, também como motivo de esperança). Encontro assim o mundo do trabalho e do lazer dos avieiros, cujos espaços diurnos e noturnos passam-se maioritariamente em espaços abertos: rio (pesca diurna ou noturna e barco-casa) ou campo (trabalho diurno). Apesar do sofrimento inerente da labuta e da falta de condições de vida, a abertura do rio potencia o espaço onírico/eufórico, com 72 Alves Redol: o espaço e o discurso (1997). 56 horizonte. Os espaços fechados (barracão, taberna), embora marcados pelo lazer, são espaços fechados/disfóricos, sem horizonte. Olinda move-se entre estes espaços de luz (exterior) e sombra (interior), criando um espaço intermédio representado pelo barco. O mesmo coloca-a em trânsito entre os espaços e as personagens, permitindo-lhe ver mais além. A cena final da tábua de madeira que Olinda encontra no meio dos destroços das cheias é bastante confirmadora da força do sonho que comanda a vida. A vivência antagónica da personagem feminina gravita nesse espaço intermédio de esperança entre o disfórico (destruição das cheias) e o eufórico (construção da casa). Este espaço líquido, com horizontes largos, mais uma vez, protagonizado pela omnipresença da personagem principal masculina – o rio Tejo. Olinda navega pelos vários espaços e desnivela as suas várias dimensões: nascimento conturbado; infância no barracão; juventude asfixiante; casamento avieiro; vida difícil em casal; trabalho árduo; pesca escassa; gravidez com privações; violência doméstica; exploração das licenças; apreensão das redes; morte do filho; nova gravidez; tropa do Tóino; monda; defesa pessoal; venda no mercado; companha; cheias. Todas estas experiências de vida de Olinda são marcadas por um espaço físico (Tejo), não estático, que reflete questões políticas e económicas. O rio define-se também como um espaço problemático, dominado pela oposição dos trabalhadores (avieiros e murtoseiros), pela divisão económica (pescadores e autoridades) e pela catástrofe natural (cheias). A luta social crescente, empreendida por Olinda, manifesta-se na tentativa de criar uma cooperativa de pescadores, no trabalho coletivo em companha e no confronto com o fiscal de rio. A narração da sua vida rege-se por dois eixos: o espaço da força com a coragem (ao anavalhar o maltês e ao ameaçar o fiscal do rio), a sedução (os cantares do Tóino e a cobiça do murtoseiro) e a resistência a conluios familiares (a educação restrita e burguesa de Clotilde) e a desejos intensos (o desejo de gravidez do melão do mercado e o assédio de Tó Lobo aquando da tropa de Tóino) e o espaço da fraqueza com momentos de passividade (o espancamento por parte do Tóino) e de tristeza (a vida difícil em casal e a doença/morte do filho). Apesar de alguma passividade momentânea73, talvez conveniente, a postura feminina ativa de Olinda vence e prospera até o final do romance. Essa postura também resgata a humanização no meio da constante desumanização através do bom senso e da perseverança dos seguintes valores: amor, fidelidade, união, “- Vocês agora viram todos que o homem é ele – disse Olinda com raiva. – Deixa lá o homem bater à vontade na mulher que lhe pertence.” (Redol, 1980, p.154). 73 57 comunidade e justiça. O dinamismo interior destas duas dimensões (humano-desumano) recria uma nova dimensão: uma progressiva tomada de consciência, capaz de novas lutas coletivas, dependentes do esforço comum e da união de todos. Olinda situa-se no limiar de um mundo novo, também exaltando a condição feminina. A ruralidade encontra-se bastante presente em Avieiros, ao contrário da urbanidade quase nula, manifestada no espaço afastado da tropa em Santarém. Dentro da ruralidade, aprofunda-se a realidade ribatejana, melhor dizendo, a realidade das margens do Tejo e dos avieiros e reconhecem-se as dificuldades de integração na realidade socioeconómica. O espaço terra surge como um lugar de morte e o espaço rio surge como um lugar de vida. Nesta comparação, a casa de Clotilde aparece como um espaço prisional (educação burguesa e casamento por conveniência) e o rio como um espaço libertador (rituais amorosos dos avieiros, a cena do banho de Olinda). A transição da terra para a água muda as conceções e revela a similaridade e a dualidade interiores destes dois espaços, enriquecendo o espaço dramático do romance. Na base desta mudança está a mudança do estado civil de Olinda que, por sua vez, acompanha a mudança de menina para mulher, colocando-a em contacto com a dura realidade da vida fluvial: “[...] o trabalho mais esforçado era para as mulheres.” (Redol, 1980, p.115). O rio transforma-se num espaço de trabalho, sofrimento e dever, assumindo proporções de uma outra espécie de prisão. A degradação física pelo trabalho árduo e pelos partos sucessivos constata a profunda miséria: “Tinha de apanhar mostarda para a sopa da noite. No caixote não encontrara mais do que meio punhado de massa para cozer. O pão acabara-se ao almoço e o galricho que pusera do rio dera uma enguia pequena.” (Redol, 1980, p.108). Este segmento conota a terra com a abundância, tal como o rio nos tempos áureos e antes da mudança de Olinda. A passagem de um espaço fechado (barracão) para um espaço aberto (barco) reintegra as suas origens e penetra nestes lugares de vida e morte que se acolhem e se transmutam. As ambiguidades do rio humanizam o rio: “Espelho da felicidade, o rio esconde também dramas, determina o ritmo da vida dos pescadores e pode-se revelar até como espaço de violência que encontra nas cheias cíclicas o seu ponto culminante.” (Besse, 1997, p.69). Os avieiros são vítimas da violência natural do rio e da exploração imposta por figuras de autoridade que navegam no rio, neste caso, o Tubarão (fiscal do rio e/ou representante do Estado). Esta figura opressora é implacável e impiedosa. A sua ascensão social ergue-se sob injustiças, na prepotência e na falta de humildade: “Deitou redes, alou 58 cordas, roeu fomes. Tanto as lutas travadas com a má sorte como as injustiças sofridas, não acharam ninho no seu peito para se lembrar agora dos antigos companheiros.” (Redol, 1980, p.203). O Tubarão torna-se então um carrasco em detrimento da figura do estado 74. Entre as figuras oprimidas, sobressai a força feminina. O carácter de Clotilde e Olinda revelam uma certa emancipação feminina, sem precedentes na obra redoliana. Há um percurso feminino desbravado por Olinda na coragem, na luta e na grandeza humana, enquanto que o percurso masculino é pautado por passividade, apatia, ciúme e egoísmo. A violência dos homens contra as mulheres aparece bem explicita: “Isto de mulheres é pão na canhota e porrada na outra, pois então!” (Redol, 1980, p.151). No entanto, a mulher desempenha um papel fundamental na relação e no trabalho. O ambiente agreste vivido no rio torna-o um espaço masculino e problemático, onde os jogos de poder fluem e intervêm nas relações. Isso reflete-se na sucessividade dos espaços e das situações e na deslocação das personagens, onde a agressividade e a ameaça estão bastante à flor da pele. Por exemplo, a coragem que Olinda representa para as outras mulheres avieiras, quando vai trabalhar para a lezíria, quebrando a Lei do Tejo e quando enfrenta o maltês. Naturalmente, as dinâmicas discursivas d’Avieiros veiculam um conjunto de ideias, crenças e valores do grupo dos avieiros nos anos 30-60. O título simples e conciso evidencia o substantivo Avieiros e abre alas para o projeto romanesco que se desdobra em epígrafes, prefácios e destinatários. Por detrás deste projeto romanesco, desenvolvese um projeto humano, operado pela subjetividade do autor no seu trabalho de escritor. Os vários enunciados reportam-se a esses projetos. O enunciado introdutório do romance cria logo um espaço de tensão entre a vida e a arte na tentativa de recriar a violência e a alienação: “Pela vala da Casa Branca, a reponta da maré não corria de feição. O homem meteu o barco junto à margem de uma das ínsuas e lá foi remando sem esforço [...]” (Redol, 1980, p.23). O imperfeito “corria” prolonga a ação até o presente imprevisto, o perfeito “meteu” efetiva uma ação dentro da ação e o gerúndio “remando” confere continuidade ao imperfeito e à “maré”. Nos enunciados intermédios, o presente conjuga o trabalho, a verdade e a ideologia, sendo o espaço rio um espaço de conflito necessário no desenrolar da ação, das personagens e de Olinda. A descoberta do eu, como mulher avieira no mundo masculino avieiro, depende dos desafios que o rio lhe coloca. 74 Paralelismo com Alcides da Barca dos Sete Lemes (1958) que também se torna um carrasco de si próprio, por influências exteriores. 59 O discurso dos enunciados sobre os contextos de trabalho e opressão desagua num enunciado final, aberto e dinâmico. Há um grito no presente que emerge e inaugura o futuro: “- Olha, Tóino! Prà casa da gente, Tóino!” (Redol, 1980, p.326). A repetição exclamativa do nome próprio remete para este grito feminino com eco de esperança. Então, há um compasso de espera e descoberta num espaço de promessa, imprescindível na luta dos oprimidos contra os opressores: “[...] o Futuro está contido no Presente e o romance enquanto reflexo directo do real, encarrega-se de desvendar a sua complexidade.” (Besse, 1997, p.102). Esta dimensão neo-realista sustenta o projeto romanesco e o projeto humano. A perspetiva narrativa obedece a uma visão do mundo e não a uma sólida hierarquia, tendo como objetivo denunciar os opressores. Não será demais mencionar que o narrador se posiciona junto dos oprimidos e dá-lhes voz. A estrutura temporal d’Avieiros apresenta uma dilatação temporal, porque abrange a vida completa do herói ou, neste caso, da heroína: fase do nascimento, da infância, da adolescência e da maturidade 75. O tempo de espera no espaço da infância é um tempo mágico, de pausa da realidade objetiva que redimensiona ainda mais a estrutura temporal. O tempo de espera no espaço da adolescência é um tempo de resignação e de revolta. O tema do pássaro aviva o fogo libidinal de Olinda e instiga-a a ultrapassar limites da sua condição de adolescente vigiada: “São poucos os que voam com o pássaro. [...] Parecia resignada com a vida insossa do barracão [...] Naquela noite gostou de pensar o que aconteceria se aparecesse, assim nua, junto da fogueira onde os jangadeiros se reuniam.” (Redol, 1980, pp.70-74). Este “pássaro dentro de si”, como conta o Mestre Feliciano, confere espessura existencial à evolução de Olinda. Não como uma personagem petrificada, mas como uma personagem fluída, com penas que caem e nascem. O espaço da maturidade é um tempo de pouca regeneração e de muita degradação. O tempo passa para todos e a sua passagem deixa marcas sobre os corpos. A transformação das mãos de Olinda é simbólica disso e do trabalho duro: “Olhava-as, nunca mais os calos endureciam, doíam-lhe, um criara-lhe na mão esquerda e trazia-o enrolado num trapo.” (Redol, 1980, p.105). As estruturas temporais mencionadas no parágrafo anterior, muitas vezes, aparecem dinamizadas pela linguagem metafórica e/ou exploradas pelo simbolismo dos 75 Paralelismo com a estrutura temporal ainda mais dilatada da Barca dos Sete Lemes (1958), porque presencia-se a fase do nascimento, da infância, da adolescência, da maturidade e da morte. Ao contrário do renascimento de Olinda para uma segunda vida/oportunidade, Alcides percorre um caminho descendente que o aniquila. 60 quatro elementos (fogo, ar, terra, água). Tal como a estrutura temporal, estes elementos também se dilatam da função realista para a mais poética, explorando o sentido da obra e a respetiva simbologia. A água é o elemento vital d’Avieiros e o Tejo é o seu grande rosto d’água. Como tem vindo a ser dito, o Tejo é um cenário humano; também integrante doutros tipos de realidade líquida: mar, ribeira, alverca, pântano, chuva, lágrimas, suor, sangue, etc. Os “espelhos de água”76 refletem os rostos dos avieiros e sinestesias pictóricas, sujeitas aos efeitos de luz: “É um lago colorido, azul e amarelão, quase laranja, misturado, talvez um pouco de roxo, uma manta bonita para o Tejo adormecer.” (Redol, 1980, p.176). As águas calmas convidam à contemplação desta “manta” policromática e camaleónica que se espraia ao longo do “lago”. A imagem da manta reaparece em Barca de Sete Lemes: “uma manta de retalhos com muitas cores”77. Esta manta metafórica é tecida pelo rio e pela vida, também reflexo do estado de espírito das personagens. Entre atalhos e saídas, Olinda vai retalhando e remendando a vida. O Tejo é o seu “berço”, a sua vida (rio-espelho, superfície), o seu destino (rio-misterioso, profundidade). As águas mágicas do Tejo escondem lendas: “- Os meninos moram no fundo da água guardados por um peixe grande...” (Redol, 1980, p.35); “- A Lua era uma princesa que vivia na Terra num grande palácio, mais lindo que tudo que há no mundo.” (Redol, 1980, p.61); “A água do Tejo é água de mil fontes” (Redol, 1980, p.300), rituais: “Quando um rapaz canta com moça dentro do barco, é sinal de que o noivado acabou bem.” (Redol, 1980, p.76); “Na margem do Tejo, três saveiros esperavam viagem. O da noiva lá estava com uma grinalda de flores na proa.” (Redol, 1980, p.83) e presságios: “Escuta o vento. Escuta a chuva. Os sinais do céu não são bons.” (Redol, 1980, p.303). A superfície (luz) e a profundidade (sombra) do Tejo tornam as suas águas dramáticas, comparáveis às vidas dramáticas dos avieiros. A duplicidade simbólica da água está ligada ao rio-berço (lugar de vida) e ao rio-túmulo (lugar de morte), em que o barco é o símbolo da embarcação, da viagem. A Barca dos Sete Lemes (alegoria) é construída por Alcides para se proteger e para sobreviver às adversidades, só que ele próprio e a fatalidade do destino despedaçam-na. Já o barco avieiro de Olinda protege-a (barco-casa) e sobrevive às adversidades (cheias). Enquanto a barca de Alcides navega do nascimento para a morte, a de Olinda navega do nascimento para o renascimento. Contudo, a desolação das cheias invade de rompante, Referência à nota 38, p.24. “A vida é uma manta de retalhos com muitas cores. Nunca vi a manta do pobre com tanto remendo. Eu gosto mais do azul, não sei porquê. Mas na manta da minha vida há pouco dessa cor. Talvez por isso mesmo.” (Redol, 1959, p.329). 76 77 61 chegando até a liquefazer a terra no inverno. Nesse momento, os avieiros intervêm juntamente com os valadores. O espelho do rio-lago ‘parte-se’ e converte-se em destroços, engolidos pela braveza do rio-mar e pela espessura do rio-lama: “Parecia que o Mar entrava pela terra dento, bem no fundo da terra, e levava a gente para as profundas do Mar Alto.” (Redol, 1980, p.311). A violência aquática está para a violência humana, como a violência humana está para a violência aquática. De modo similar, a ingestão moderada de líquidos alcoólicos causa um efeito primário de relaxamento para os adultos e para as crianças: “[...] não deixem a cachopada chorar, embebedem-nos com sopas de vinho. Agora, na névoa, até os homens e as mulheres precisavam de se embebedar.” (Redol, 1980, p.312). Já a ingestão excessiva acarreta violência humana, por vezes, tão voraz quanto a aquática: “Tóino da Vala recuou um passo para lhe atirar uma punhada à cara. [...] Ela só baixou a cabeça [...] esperou pelo resto, outra e mais outra, estava ali para apanhar o que ele quisesse [...]” (Redol, 1980, p.154). “Na água, a vitória é mais rara, mais perigosa, mais meritória [...]” (Bachelard, 1998, p.169) e os avieiros conseguiram essa vitória. A fixação da comunidade avieira no Ribatejo representou uma resposta do rio às lutas sucessivas e às dinâmicas humanas. Comparo aqui o mundo-espelho de Bachelard78 ao rio-espelho que reflete a força e a vontade dos avieiros. A tenacidade perante a violência da água inscreveu a identidade avieira na identidade e na paisagem ribatejanas. Para rematar a minha reflexão acerca d’o espaço e o discurso, tenho a partilhar que este estudo abre um espaço de partida para outros espaços e discursos redolianos ou extensivos a outros domínios (etnografia, antropologia, sociologia). O universo d’Avieiros carateriza-se pela presença imponente do rio, povoado por gente que trabalha, que sofre e que é reprimida por forças humanas socioeconómicas e por forças naturais aquáticas. As múltiplas representações do espaço rural e fluvial geram um espaço interrogatório da miséria avieira e da submissão feminina e um espaço denunciador das injustiças do sistema capitalista. Os espaços são como as matrioskas: multiplicam-se uns através doutros. Esta associação contínua ao longo do tempo mantém o diálogo aberto entre a paisagem e a literatura, o qual trará sempre novas aceções, novas estéticas, novas poéticas. Neste caso concreto, a visão redoliana é um reflexo da paisagem do rio Tejo na literatura líquida d’Avieiros. “Se o mundo é a minha vontade, é também o meu adversário. Quanto maior a vontade, maior o adversário.” (Bachelard, 1998, pp.165-166). 78 62 3.2. Os avieiros de hoje – O leitor do presente e do passado Sem memória não há futuro. Museu do Aljube Figura 7: Pontes, Vila Franca de Xira ©2011 Pedro S. Lobo / Coleção Museu Neo-Realismo, Portugal 63 Quem leu Avieiros no período de 40-60, não deve ter lido de ânimo leve, dadas todas as circunstâncias já apontadas nos capítulos anteriores. Quem leu Avieiros, aprendeu a ler e a escrever e tomou consciência da existência e da condição deste povo. Quem lê Avieiros, sente um certo deslumbramento por uma realidade nova, distante e atípica. Quem relê Avieiros, desconstrói o estereotipo da literatura neo-realista como uma literatura ‘menor’, estritamente propagandista, e considera-a uma literatura por um bem maior. Não descurando a imprescindível memória viva do filho Eng.º António Mota Redol, refiro nas seguintes linhas leitores contemporâneos que se dedicam a reinterpretar a obra redoliana na atualidade e a reconstruir a memória coletiva, da qual as gerações de avieiros ainda fazem parte. Avieiros é um dos ícones de um Portugal profundo salazarista 79, enraizado numa paisagem ribatejana e convocatório da memória avieira do passado no presente. O romance é o principal interlocutor no feminino dessa memória na literatura, alcançando outros interlocutores na museologia, no associativismo, na arquivologia, na academia, na dramaturgia, na cultura, na gastronomia, no cinema e na religião: Museu do NeoRealismo; Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo (APMNR); Núcleo Museológico “A Póvoa e o Rio”; Nova Síntese; Grupo Teatresco; Junta de Freguesia de Vieira de Leiria; Câmara Municipal da Marinha Grande; Câmara Municipal de Vila Franca de Xira; a realizadora Leonor Teles; Nossa Senhora dos Avieiros. Arquitetado por Alcino Soutinho (1930-2013) e inaugurado em 2007, o Museu do Neo-Realismo é um Museu dedicado ao Neo-Realismo de Vila Franca de Xira na década de oitenta do século XX. Na década de noventa, o Museu abriu ao público o seu Centro de Documentação. A partir de então, o Museu tem trabalhado na diversificação do património, na área arquivística e bibliográfica, investindo na aquisição de coleções museológicas (espólios literários e editoriais, arquivos documentais impressos e audiovisuais, acervos iconográficos, obras de arte, bibliotecas particulares, biblioteca especializada na temática neo-realista). Os serviços de comunicação e imagem, de produção de atividades, de artes plásticas, de espólios artísticos, de documentação, de espólios literários, de educação e de conservação e restauro especificam-se nos respetivos serviços, atraem curiosos e/ou investigadores e recriam novas dinâmicas em torno da memória. Também incorpora, preserva e dá a conhecer o trabalho dos artistas e escritores neo-realistas, dentro da memória do movimento neo-realista. Este olhar do passado no 79 Referência à nota 54, p.31. 64 presente contempla o futuro, as novas gerações de artistas e a ligação do movimento com a produção artística e literária contemporânea do século XXI: “[...] entender o nosso passado recente é um factor de compreensão do presente e de abertura ao futuro.” (Viçoso, 2011, p.15). Esta sequência roga um exercício de memória coletiva e institucional e um exercício de memória pessoal que reflete, associa e clareia perspetivas. A “messianidade espectral do arquivo” de Jacques Derrida (1930-2004) rompe com barreiras temporais de maneira anacrónica e progressista, (re)fazendo “no presente a futuridade do passado” (Marques, 2018, p.34). A (in)temporalidade do arquivo não é inerte e metamorfoseia-se à mercê da interpretação de leituras e traduções de línguas ou linguagens. Daí o Museu do Neo-Realismo, em parceria com a APMNR e com a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, ser património fundamental no projeto museológico nacional e internacional, pois permite-se ao diálogo entre a vocação temática original e as ideias e a cultura do século XXI. A comemoração do centenário de Alves Redol em 2011 teve como casa o Museu do Neo-Realismo e a “Apresentação” de David Santos no catálogo Horizonte Revelado explicita de forma clara a origem do Museu: “[...] muito deve à figura e ao legado literário de Alves Redol. Foi em torno do seu espólio e importância patrimonial que, durante os anos 70 e 80, se desenvolveu a ideia e o sonho de constituição de um museu que ajudasse a preservar essa memória cultural, decisiva para entende o século XX português.” (Santos, 2011a, p.7). O Museu e Redol manifestam-se numa identidade comum, inscrita no património e na memória culturais. Embora grande parte das referências aos avieiros raramente apareçam isoladas d’Avieiros, o Núcleo Museológico “A Póvoa e o Rio” na Póvoa de Santa Iria reforça a memória e a identidade de várias gerações ribeirinhas. Inaugurado em 2013, a sua relação com o Tejo veio requalificar a zona ribeirinha e os passadiços do Parque Linear Ribeirinho do Estuário do Tejo e veio permitir a visita das casas típicas avieiras 80. Do mesmo modo que os museus criam narrativas sobre os objetos, as bibliotecas também. As bibliotecas públicas e particulares do Museu do Neo-Realismo e da Biblioteca Municipal de Vila Franca de Xira abrem espaços de transmissão cultural de diálogo, aprendizagem e formação. A magnitude dos acervos permite criar micronarrativas e motiva a investigação comparativa. A minha experiência como investigadora é positiva, porque usufruí das inter-relações entre o espaço museu e o espaço biblioteca. A recolha de material acerca de Redol foi no Museu e acerca dos 80 Ver figura 13, p.80. 65 avieiros foi na Biblioteca. A mediação e o testemunho dos técnicos foram importantes neste diálogo entre os dois espaços com o espaço redoliano avieiro e com o espaço avieiro atual. Com rigor mais científico, a revista Nova Síntese continua a trazer “textos e contextos do neo-realismo” de investigadores nacionais e internacionais. Também continua a trazer a figura de Alves Redol. Em 2012, no âmbito das comemorações do centenário, as comunicações do Congresso Internacional Alves Redol - Horizonte Revelado e em 2021 Alves Redol – Presente e Futuro da Sua Obra. O número de 2021 não traz referências concretas d’Avieiros, mas reaviva a consciência social aguda da literatura redoliana e relaciona-a com problemas sociais atuais. “A personagem do negro em Histórias Afluentes, de Alves Redol” de Antony Cardoso Bezerra faz uma releitura de três contos de Redol nas questões raciais, recentemente reativadas pelo caso da morte de George Floyd em 2020. Já o número de 2012 contém artigos científicos sobre Avieiros por Maria Alzira Seixo e Helena Carvalhão Buescu. A primeira faz uma abordagem comparativa entre a primeira e a segunda versão e a segunda analisa relações de pertinência do prefácio da segunda versão com aspetos do romance. Há um diálogo constante de Redol com a sua literatura, com as ciências sociais81 e com os avieiros. E, ao longo das várias gerações, há sempre interlocutores do presente que nutrem esse diálogo do passado-futuro. O poder da palavra de Redol difunde-se no tempo e no espaço: Fronteira Fechada pela Cegada no Teatro Teatro-Estúdio Ildefonso Valério (Alverca do Ribatejo) em 2021; Constantino, Guardador de Vacas e Sonhos pelo Teatro Zero no Palco Sevilhanas no Colete Encarnado 2022 e Avieiros pelo Teatresco no Parque de Merendas junto à foz do rio Lis em 2022. A leitura encenada d’Avieiros por Pedro Wilson coloca os vieirenses em contato com as suas raízes, dinamizando a cultura na zona. Esta iniciativa tem vindo a repetir-se desde 2020, o que demonstra a participação ativa do leitor na memória coletiva dos avieiros e na memória viva do romance e do escritor. Com efeito, entre 2020 e 2021, há um movimento cultural crescente da cultura avieira: lançamento da Rota de Cultura Avieira pela Entidade de Turismo do Alentejo e Ribatejo; investimento num espaço de cultura avieira (Espaço CulturAvieira – Oficina de Artes), num novo mercado e num circuito de arte urbana pela Junta de Freguesia de Vieira de Leiria; transformação dos 81 Godinho, P. & Mota Redol, A. (coords.). (2014). Alves Redol: o olhar das ciências sociais. Edições Colibri. 66 antigos pavilhões dos pescadores da Praia da Vieira num centro interpretativo da arte xávega para exposições e para tarefas dos pescadores, pela Câmara Municipal da Marinha Grande. Também como elemento cultural, a gastronomia avieira continua presente nos pratos tradicionais das respetivas localidades: caldeirada de peixe, arroz de lampreia e o famoso sável frito com açorda de ovas (“Março, Mês do Sável” pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira). Yuri Lotman refere a memória como uma das funções da linguagem: “The text is not only the generator of new meanings, but also a condenser of cultural memory. […] Yet texts that preserve their cultural activity reveal a capacity to accumulate information […]” (Lotman, 2000, p.18). O texto d’Avieiros é um lugar de novos significados que se geram através de leituras e/ou interpretações geracionais. É também um lugar da memória e das imagens que essa paisagem reflete. Terra Franca (2018) de Leonor Teles projeta essa memória em imagens e paisagens que dialogam com as personagens, ou melhor, com a personagem principal, Albertino Lobo. Numa entrevista a Leonor Teles pelo crítico de cinema José Vieira Mendes 82, ela descreve como lhe surgiu a figura do Albertino e a resposta é bem clara e simbólica: “Quando ia no barco fiquei com aquela imagem na cabeça deste herói, deste ‘cowboy’, do Tejo, mas sobretudo com a imagem de uma pessoa que estava no seu elemento, isto é onde devia estar, e onde eu própria sentia que ele devia estar, que era o Rio Tejo.”. A imagem do homem com descendência avieira e do homem com família varina83 permite-me estabelecer relações. Ao contrário da protagonização feminina e vincada de Olinda em Avieiros, Albertino Lobo, em Terra Franca, distinguese pela protagonização masculina e discreta. A sinopse anuncia o pescador e o rio que se acompanham na ciclicidade da natureza e da vida, com tranquilidade: À beira do Tejo, numa antiga comunidade piscatória, um homem vive entre a tranquilidade solitária do rio e as relações que o ligam à terra. "Terra Franca" retrata a vida deste pescador, atravessando as quatro estações que renovam os ciclos da natureza e acompanham as contingências da vida de Albertino Lobo. O documentário começa e acaba com uma cena do pescador solitário a navegar perto da Ponte Marechal Carmona84. O caráter cinematográfico das paisagens vespertinas 82 Disponível online em https://www.magazine-hd.com/apps/wp/entrevista-leonor-teles-estreiafinalmente-terra-franca-nas-salas/. 83 “O ‘Terra Franca’, foi feito no Rio Tejo e tem mais a ver com a comunidade varina, embora na verdade o Albertino — o personagem principal — seja descendente de avieiros.” (Leonor Teles IN magazine.hd). 84 Ver figura 7, p.63. 67 e/ou crepusculares recriam enquadramentos intimistas e poéticos do homem na natureza, do pescador no rio, aproximando-os. As relações profundas com a água trazem-lhe uma “tranquilidade solitária”, distinta das relações com a terra. Intrínsecas à relação conjugal e familiar com sua esposa Dália, mãe de Lúcia e Laura, Albertino surge como um senhor de hábitos simples e como um bom chefe de família. O companheirismo do casal subentende-se nos diálogos simples e/ou silenciosos e nas rotinas em conjunto. O dia começa bem cedo, por volta das cinco da manhã, quando Albertino leva Dália ao snackbar do Mercado de Vila Franca de Xira. Ela começa a preparar os petiscos para o dia e depois ele vai para a pesca. Após alar as redes e ver o peixe, regressa ao snack-bar. Entretanto, voltam para casa e jantam em família, com as filhas, o genro e a neta. Os momentos espontâneos de cumplicidade matrimonial também se imiscuem nas dinâmicas familiares. O primeiro exemplo acontece quando Dália e Albertino estão em sua casa. Ela diz que oferece o café em tom de brincadeira e ele responde: “Se não pagar, pago com o corpo.”85. O segundo exemplo acontece na festa de aniversário de Albertino. Uma das filhas incita a mãe a abraçar o pai, quando uma senhora fala com ele e dão-lhe shots para ela se soltar, dizendo ao pai para lhe sussurrar ao ouvido. Ambas as cenas denotam uma certa intimidade acanhada, com risos inocentes e cúmplices. Tanto a figura do homem como da mulher aparecem envoltas em algum mistério que se revela esporadicamente, por vezes, em gestos ou meias palavras. Quando Albertino está no barco e quando Dália está no snack-bar. Isso também se percebe nos momentos individuais com outras personagens. O diálogo de Dália com outra mulher, demonstrando grande proximidade familiar com as filhas e o diálogo de Albertino com outro homem, mencionando a indignação com a questão das licenças de pesca: “Vocês levam tudo!” 86. Albertino recebe uma carta relativa à sua licença de pesca e comenta com Dália. Ela aconselha-o: “Deixa lá! Alguma coisa se arranja.” 87 e diz para se animar com o casamento da filha. Mesmo assim, sem a licença, ele vai para o cais ver o rio, falar com pescadores e remendar as redes. Esta atitude de Dália, remete para a atitude paciente e perseverante de Olinda nas adversidades e nos desabafos de Tóino. Terra Franca é mais do que um documentário etnográfico da tradição piscatória e ribeirinha. É um documentário real, quotidiano e sensível da família varina e/ou avieira do século XXI em Vila Franca de Xira. Contudo, há temas viscerais que associo a 85 Transcrição minha. Transcrição minha. 87 Transcrição minha. 86 68 Avieiros: a casa humilde, a licença apreendida, a festa popular, o casamento. A casa humilde é um lugar matriarcal de família e de convívio, onde não falta comida e bebida. O barco é um lugar patriarcal de pesca e de introspeção. O drama da escassez do peixe e das licenças apreendidas perdura e Albertino lida com isso e com as suas emoções em silêncio, embora desabafe por meias palavras com um homem e com a esposa. Mesmo com condições de vida menos boas, não falta união, família e festa. O tema da festa popular e do casamento aparece representado em duas cenas distintas e são costumes e/ou rituais que acompanham os avieiros até aos dias de hoje. Aliás, o totem da Nossa Senhora dos Avieiros continua a peregrinar centenas de quilómetros Tejo abaixo e a reunir as comunidades ribeirinhas, principalmente as mais isoladas a norte do país. Este ano realizou-se a VIII edição do Cruzeiro Religioso e Cultural do Tejo e, em virtude do póspandemia, intitulou-se de cruzeiro de fé e afetos, pela saúde, pela seca e pela paz. Com a Confraria Ibérica do Tejo, este cruzeiro parte dia 4 de junho em Rosmaninhal, e em Santiago de Alcântara, Espanha e termina dia 19 de junho na Marina de Oeiras, Portugal. Em meu entender, a ritualização avieira revela-se como o signo mais forte de diálogo que se mantém entre as gerações e que as une. A crescente adesão ao cruzeiro é um sinal vital de união dos diversos Tejos e da dissolução de fronteiras aquáticas - Tejo e/ou “Tajo”. O olhar sobre o Tejo mudou. Na altura d’Avieiros o Tejo reconhecia-se pela fonte de sobrevivência (pesca) e pela destruição (cheias). Agora o Tejo reconhece-se pela paisagem, pelo estuário e pelo turismo. O revivalismo das tradições avieiras revitaliza o rio e reúne a comunidade. Sob o prisma do documentário, percebo que as tradições vãose mantendo, mas a pesca artesanal não. Lamentavelmente, está em vias de extinção. A evolução dos tempos reajustou a vida tradicional avieira à vida comum contemporânea. A escassez do peixe, a poluição do rio e as rendas das casas colocaram os avieiros mais tempo em terra do que em rio, readaptando-os forçosamente a um novo habitat, não natural. Não obstante disso, também surgiram melhores condições de vida, casas com saneamento básico e mais oportunidades de trabalho. Tudo isso foi importante para reabilitar as zonas ribeirinhas do Tejo e para retirar a comunidade avieira da margem da sociedade, mas tudo isso também trouxe mutações genéticas no ADN avieiro. Concluindo, os avieiros de hoje não são os de ontem e o leitor do passado não é o do presente. Porém, a dimensão social da obra de Redol ligará todos os avieiros e todos os leitores na posteridade: “A obra de Redol foi, para várias gerações, um grito de protesto contra a miséria material e moral e um sinal de esperança na possibilidade de os homens 69 construírem um mundo melhor.” (Soares, 2000, p.271). Todas as manifestações literárias e/ou artísticas, revistas anteriormente, são gritos de protesto e sinais de esperança; são participações ativas na memória coletiva, redoliana e avieira; são interpretações e questionamentos de novos caminhos para “um mundo melhor”. Avieiros de Redol “[...] imortalizou as vidas heroicas dos avieiros da mesma maneira que uma epopeia celebra os grandes heróis de um povo.” (Gomes, 2022, p.98); constituiu a nova era dos descobrimentos portugueses em rio, abrindo rotas de navegação para “um mundo melhor”. Os que ainda procuram esse “mundo melhor”, embarcarão sempre no saveiro de Olinda e de Albertino e tornar-se-ão leitores conscientes e ativos para as questões sociais de Redol e dos avieiros no passado, presente e futuro. 70 CONCLUSÃO A investigação apresentada celebra Alves Redol e os avieiros, a partir da memória do espólio e do romance Avieiros, contemplando dimensões temporais, espaciais e psicológicas que o passado, o presente e o futuro conjugam. Os quatro capítulos, cada um com as suas especificidades, salientam os principais aspetos históricos, políticos, sociais e culturais em Portugal, importantíssimos na conjuntura do povo, do folclore, do Ribatejo, do Tejo e dos avieiros (capítulo 1). Dentro da lógica neo-realista, avalio as vertentes extrospetivas e introspetivas da escrita redoliana, perspetivando prefácios pertinentes e passagens da 1ª e 5ª edições (capítulo 2). O discurso humano de Redol e a paisagem profunda do Ribatejo na literatura permitem desvendar o espaço objetivo e subjetivo d’Avieiros e desenvolver estudos contemporâneos (capítulo 3). De tal forma, torna-se útil ressaltar que as considerações desta tese, no sentido de ampliar o campo cognitivo da literatura redoliana, partem de aproximações feitas ao escritor através da observação do espólio e das duas versões d’Avieiros. Para tanto, tornase essencial tecer algumas conclusões, sem assumir verdades absolutas. A contextualização histórica, política, social e cultural empreendida no capítulo 1 torna-se uma espécie de preâmbulo para os restantes capítulos. A geografia do Ribatejo e a literatura garrettiana aproximaram Redol do folclore, dos avieiros e das suas raízes avieiras e inscreveram a literatura redoliana na literatura popular e na tradição oral ribatejanas. Apesar do Cancioneiro do Ribatejo ser posterior a Avieiros, é uma obra com catorze anos de investigação, a qual apoiará obras precedentes e posteriores. Portanto, é uma obra preparatória de todas as outras, tendo, obrigatoriamente, de passar por ela para aprofundar a consciência das raízes do folclore, do Ribatejo, do Tejo e dos avieiros. O capítulo 2 desloca-se da geografia física dos avieiros para a geografia criativa do escritor, tendo como instrumentos de análise o espólio e (para)textos da 1ª e 5ª edições d’Avieiros. As reminiscências escritas e fotográficas do diário de campo reconhecem-se na realidade e na ficção, legitimando a importância da ação social de Redol no terreno junto da comunidade avieira e sobrevalorizando as duas versões do romance. O estilo etnográfico-narrativo e lírico-descritivo de Redol ajudou na regeneração da estética romancista, apimentou o teor (neo-)realista e aproximou a etnografia ao romance, a literatura à paisagem. Partindo da necessidade de articulação de todas estas noções, no capítulo 3, a exploração do simbolismo da água no discurso social e no espaço fluvial e rural 71 d’Avieiros fomenta diálogos paralelos. O diálogo gerado entre a paisagem líquida e humana recria paisagens sociais; retratos autênticos do contexto salazarista. Esse diálogo ramifica-se pelas várias áreas sociais, literárias, culturais e artísticas e perpetua-se através de escritores contemporâneos, como Saramago, e através de leitores perspicazes e sensíveis às repercussões desses diálogos nas paisagens sociais da atualidade. A literatura que, aparentemente, celebra a memória dos avieiros, também questiona o seu futuro, posicionando o leitor frente a frente com a história real deste povo migratório. Em grande verdade, Alves Redol buscou a essência de si mesmo e do mundo através da sua literatura. Uma literatura que se estranha e que busca fora de si o outro. Uma literatura de resistência que ainda resiste e persiste na memória, enraizada em processos criativos que buscam a verdade na História, na Identidade e na Humanidade. Uma literatura ‘datada’, mas atual, que ainda se constrói na contemporaneidade. Como escreveu Joaquim Namorado e trocando gaibéus por avieiros: “António, o “inferno” está na mesma. É preciso então que ressuscites na carne dos gaibéus para as lutas finais.” (Namorado, 2000, p.167). 72 Bibliografia Ativa Redol, A. (2007). Espólio Alves Redol. PT/MVFX-MNR/A21/ESPLIT-RED/FOT/8. Coleção Museu Neo-Realismo. Redol, A. (1942). Avieiros (1ª ed.). Livraria Portugália Lisboa. Redol, A. (1980). Avieiros (8ª ed.). Publicações Europa América. Passiva Bachelard, G. (1998). A água violenta. In A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria (pp.165-192). 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A memória: em holograma ou caleidoscópio, terei sempre a nítida visão, de quem foste, de quem és, de quem serás. (29/11/2021) Cristiana Oliveira 88 Organizados pelas fontes. 77 Figura 9: Museu do Neo-Realismo Foto por Cristiana Oliveira Figura 10: Avieiros em Vila Franca de Xira Foto por Cristiana Oliveira 78 Figura 11: Homenagem a Alves Redol na Palhota Foto por Cristiana Oliveira Figura 12: Barco avieiro na Palhota Foto por Cristiana Oliveira 79 Figura 13: Casa Típica Avieira na Póvoa de Santa Iria Foto por Cristiana Oliveira Figura 14: Alves Redol com compadre avieiro Manuel Guerra, no Esteiro do Nogueira89 89 In ESPLIT-RED/FOT/A21/8.36/CX.27/DOC.36 80 Figura 15: 1ª página do manuscrito do romance Avieiros, onde se dirige a Jerónimo Tarrinca90 Figura 16: Glória do Ribatejo: elementos etnográficos – digitalização do mapa ribatejo91 90 91 In ESPLIT-RED/PL-ROM/A21/2.7/CX.1/DOC.8 In ESPLT-RED/PL-ENS/A21/4.3/CX.13/DOC.3 81 Figura 17: Digitalização da "Alegoria de Manuel Ribeiro de Pavia para Avieiros" In Alves Redol: Horizonte revelado92 92 In MNR RED/ROM/4619 82