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Tempos e sinais -uma análise de conjuntura

NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 Tempos e sinais – uma análise de conjuntura Grupo de Análise de Conjuntura da CNBB – Padre Thierry Linard1 19 de novembro de 2023, Dia Mundial dos Pobres “Advento, tempo para contemplar o infinito na história, o inesperado no rotineiro, o divino no humano, porque o rosto de um Homem nos devolveu o rosto de Deus”. Cardeal Tolentino2 1 1. Tempo do Advento Estamos nos aproximando do tempo do Advento. É tempo de espera e de chegada, de pressentir os “sinais dos tempos” e escutar o Senhor que fala através deles. Esta análise de conjuntura é, por isso, o resultado de um longo processo de escuta, pois “escutar os anseios, as alegrias, dores e angústias”3 é a primeira etapa de qualquer serviço e do diálogo4. Depois do texto oferecido à 60ª Assembleia da CNBB, em abril de 2023, buscamos preparar, redescobrir, contemplar, conversar e dar tempo ao tempo, com a presença de uma nova e alegre formação desse Grupo. O mundo e o Brasil não desistem de nos espantar e, paradoxalmente, de nos encantar. Queremos chegar ao Advento com esperança em ações concretas. 1 Este texto é um produto da equipe de Análise de Conjuntura da CNBB. É um serviço para a CNBB. Não representa, contudo, a opinião da Conferência. A equipe é formada por membros da Conferência, assessores, professores das universidades católicas e por peritos convidados. Participaram da elaboração deste texto: Dom Francisco Lima Soares – Bispo de Carolina – MA, Frei Jorge Luiz Soares da Silva – Assessor de relações institucionais e governamentais da CNBB, Pe. Thierry Linard de Guertechin, S.J. (in memoriam), Antonio Carlos A. Lobão – PUC/Campinas, Francisco Botelho – CBJP, Izete Pengo Bagolin – PUC/Rio Grande do Sul, Maria Cecília Pilla – PUC/Paraná, Jackson Teixeira Bittencourt – PUC/Paraná, José Reinaldo F. Martins Filho – PUC/Goiás, Ricardo Ismael – PUC/Rio, Manoel S. Moraes de Almeida – Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, Marcel Guedes Leite – PUC/São Paulo, Robson Sávio Reis Souza – PUC/Minas, Ima Vieira – REPAM, Tânia Bacelar – UFPE, Maria Lucia Fattorelli – Auditoria Cidadã da Dívida, José Geraldo de Sousa Júnior – UnB e Melillo Dinis do Nascimento – Inteligência Política (IP). 2 MENDONÇA, José Tolentino de. Advento. Disponível em: https://catequesehoje.org.br/index.php/veredas/poemas/258-advento. Acesso em 28 out. 2023. 3 Entrevista de Dom Jayme Spengler, arcebispo de Porto Alegre (RS) e presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que, ao participar do Sínodo em Roma, em outubro, concedeu entrevista sobre a escuta. Disponível em https://www.cnbb.org.br/entrevista-dom-jaime-spengler-sinodofundamental-escutar/. Acesso em 28 out. 2023. 4 Nesse sentido: “Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas” (Ap 3,6). O Texto-base da Campanha da Fraternidade de 2022 afirma que “é fundamental uma pedagogia da escuta, que rompa com o paradigma de pedagogias silenciadoras” (CNBB. Texto-base da Campanha de 2022, n. 28). VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 Em meio a vários cenários e a muitas cenas espalhadas, tentaremos ofertar, de forma sintética, diversos pontos de vistas. A própria Igreja se debruçou sobre si mesma, no Sínodo dos Bispos sobre a Sinodalidade5, no mês passado, ofertando frutos e aprendizados a todos os que com ela caminham em comunhão e corresponsabilidade. Nesse período, fomos apresentados à Exortação Apostólica Laudate Deum6, do Papa Francisco, em 4 de outubro, memória litúrgica de São Francisco de Assis, em que a louvação transparece como um convite à ação de todas as pessoas de boa vontade, especialmente em face da severa crise climática. Ao antecipar o futuro, em alguma medida o sentido do tempo do Advento, sublinhamos alguns pontos de um presente duro e difícil em tantos impossíveis declarados, aceitando as tensões e propondo aos horizontes advenientes o brilho possível da Promessa do nascimento do Senhor e do nosso próximo (re)nascer. Com esperança! 2. O contexto internacional Vivemos num mundo em que “tudo está interligado”7. Fatos da economia, da política, da sociedade, do meio ambiente e da cultura se conectam e se influenciam para além das limitações geográficas. Seguindo a metodologia que adotamos nas análises anteriores, consideramos alguns dos movimentos estruturais para chegar à conjuntura e partimos de um olhar sobre os fenômenos internacionais, buscando os indicadores econômicos, socioambientais, políticos e culturais, e suas tendências, que possam nos ajudar a compreender o que marca o atual ambiente. 2.1. Mudanças e indefinições Repetimos em nossas análises que “o mundo está passando por grandes mudanças”. E isso continua marcando a realidade internacional. Podemos traduzir essa situação como um período em que estão entrando em colapso as formas de produção, distribuição e consumo das riquezas, historicamente construídas, na sociedade global, mas também estão em transformação as maneiras de nos relacionarmos como seres humanos e com o próprio planeta8. A humanidade, ao invés de superar seus problemas e caminhar na direção da justiça social e da paz, segue numa trajetória destrutiva de degradação ambiental, guerras e grande desigualdade social. Os conflitos em locais como Etiópia, Haiti, Ucrânia/Rússia, Iêmen, Sudão, Síria e Israel/Palestina, assim como as tensões no Kosovo, Azerbaijão e em diversas outras partes 5 XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos. FRANCISCO, Papa. Laudate Deum (a seguir LD). Disponível em https://www.vatican.va/content/francesco/pt/apost_exhortations/documents/20231004-laudate-deum.html. Acesso em 28 out. 2023. 7 FRANCISCO, Papa. Laudato Si’, nºs 92 e 120. Disponível em https://www.vatican.va/content/dam/francesco/pdf/encyclicals/documents/papafrancesco_20150524_enciclica-laudato-si_po.pdf. Acesso em 28 out. 2023. Há aqui uma opção pela tradução que se transformou em canção. Na primeira tradução usa-se a expressão “relacionado”. Adotamos a expressão “interligado”! 8 Trata-se de um “problema social global”, Laudate Deum (LD n. 3). 6 VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 2 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 do mundo, ilustram a incapacidade da comunidade internacional em estabelecer entendimentos e soluções. O mesmo acontece com o grande conflito que se avizinha no Níger e na África Ocidental. Dados reunidos pelas Nações Unidas indicam que dois bilhões de indivíduos viviam em zonas de conflito em 20229, o que representava um quarto da população mundial. “Hoje, enquanto assistimos o drama de famílias israelenses e palestinas, a constatação é de que os mecanismos, canais ou relações de poderes que existiam para estabelecer o diálogo estão soterrados. Organismos criados ainda em 1945 não dão mais respostas, enquanto uma nova realidade de poder e novas hegemonias regionais abalam as placas tectônicas em todos os continentes”10. É a terceira guerra mundial em capítulos, que tanto nos alerta o Papa Francisco11. A morte de inocentes judeus e palestinos, a destruição total verificada em Gaza, são marcas da barbárie da atualidade. Sobre o tema, a CNBB se pronunciou: “Israelenses e palestinos estão sofrendo as consequências trágicas de um conflito armado e dos descasos históricos dos acordos assumidos. Abriram-se os caminhos para a violência, que gera morte e destruição”12. E o Cardeal Pierbattista Pizzaballa, Patriarca Latino de Jerusalém, também fez ecoar suas palavras: “Enquanto a questão palestina, a liberdade, a dignidade e o futuro dos palestinos não forem levados em conta da maneira que é necessária hoje, as perspectivas de paz entre Israel e a Palestina serão cada vez mais difíceis”13. O Secretário-Geral da ONU, Antônio Guterres, foi bastante incisivo ao chamar de castigo coletivo as incursões de Israel à população de Gaza em resposta ao ataque do grupo Hamas. Essa tragédia, juntamente com o que ocorre na Ucrânia, pode levar o mundo a um quadro inédito de insegurança internacional desde a Segunda Guerra. Os esforços pela paz devem ser incentivados e desenvolvidos a todo instante14. Ademais, somente para citar o ano de 2023, houve uma série de jornadas e importantes mobilizações da sociedade com muitos distúrbios nas cidades de vários países. Em Israel, antes do conflito com o Hamas, o país foi sacudido por manifestações contra a reforma do judiciário. Na França, a luta contra a reforma da previdência na 9 https://noticias.uol.com.br/colunas/jamilConforme CHADE, Jamil. Disponível em chade/2023/10/09/mundo-vive-recorde-de-pessoas-afetadas-por-conflitos-e-diplomacia-fracassa.htm. Acesso em 28 out. 2023. 10 Idem. 11 “Nós entramos na Terceira Guerra Mundial, só que ela é travada em pedaços, em capítulos”. Disponível em https://www.ihu.unisinos.br/categorias/617860-o-alarme-ignorado-do-papa-terceira-guerra-mundialem-andamento. Acesso em 18 nov. 2023. 12 Disponível em https://www.cnbb.org.br/wp-content/uploads/2023/10/Nota-Rezemos-pelapaz_11_10.pdf. Acesso em 28 out. 2023. 13 Disponível em https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2023-10/pizzaballa-temo-uma-gerra-muitolonga-10-outubro-2023.html. Acesso em 28 out. 2023. 14 Na ORAÇÃO PELA PAZ, na conclusão da Hora de Oração “Pacem in Terris”, proferida em 27 de outubro de 2023, O Papa Francisco rogou à Maria: “Agora, Mãe, tomai mais uma vez a iniciativa; tomai-a por nós, nestes tempos dilacerados pelos conflitos e devastados pelas armas. Voltai o vosso olhar de misericórdia para a família humana, que perdeu a senda da paz, preferiu Caim a Abel e, tendo esquecido o sentido da fraternidade, não readquire a atmosfera de casa. Intercedei pelo nosso mundo em perigo e tumulto. Ensinainos a acolher e cuidar da vida – de toda a vida humana! – e a repudiar a loucura da guerra, que semeia morte e apaga o futuro”. Disponível em https://www.vatican.va/content/francesco/pt/prayers/documents/20231027-preghiera-pace.html. Acesso em 28 out. 2023. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 3 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 França transformou a vida da população. Ao contrário de outras épocas, são tensões que não se resolvem em dias ou semanas. Esses processos tendem a ocupar um tempo maior na construção de soluções, carregando destruição e sofrimento para os povos. Em uma América Latina com muitos problemas, tanto estruturais como conjunturais, aproxima-se a possibilidade de uma tensão na fronteira entre a Venezuela e a Guiana. Foi aprovado pela Assembleia Nacional da Venezuela, um referendo, marcado para 3 de dezembro, que decidirá se a “Guiana Essequibo”, rica em petróleo, deveria ser parte do Estado bolivariano. Essa disputa e o possível conflito arrasta-se desde o século XIX15. E, como os dois países são vizinhos do Brasil, pode se transformar em um quadro de insegurança há muito não verificado na região. Vivenciamos momentos de fortes indefinições entre as disputas das forças destrutivas e construtivas da humanidade. Guerras, rebeliões e conflitos que, no passado, tinham curtas durações assumem uma situação de impasse e indefinição, estendendo seus efeitos no tempo. São momentos em que as palavras “incerteza”, “destruição”, “resistência” e “superação” estão marcadas em alto relevo na nossa história. 2.2. Tendências da economia mundial Conforme o último World Economic Outlook (WEO), do Fundo Monetário Internacional (FMI)16, a economia global segue na direção de um reequilíbrio, mesmo com resíduos da pandemia de Covid-19 e da guerra na Ucrânia. A recuperação da economia chinesa com sua reabertura, embora gradual, é outro fator a se considerar. As cadeias produtivas globais, desestruturadas na pandemia, já apresentam sinais de recuperação, estabilizando os níveis de preços e restabelecendo o fornecimento dos elos dessas cadeias. A Política Monetária Contracionista (PMC), adotada pelos Bancos Centrais na maioria das economias após a pandemia, em especial por pressões altistas presentes nos preços, demonstra sinais de relaxamento, com a redução nas taxas de juros básicas. As Tabelas 1 e 2 apresentam dados e previsões do PIB e da inflação na economia global. Conforme historiadores, “O litígio fronteiriço entre a Venezuela e a Guiana Inglesa, muito embora tenha sido submetida a arbitragem de um tribunal arbitral composto em Paris, cuja decisão foi proferida aos 3 de outubro de 1899, dando, praticamente, completo ganho de causa à Inglaterra, não pode ser considerado findo, já que a Venezuela contesta, ainda hoje, seu resultado”, MENCK, José Theodoro Mascarenhas. A questão do rio Pirara (1829-1904). Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2009, p. 325. Disponível em https://funag.gov.br/loja/download/574-Questao_do_Rio_Pirara_1829-1904_A.pdf. Acesso em 28 out. 2023. 16 Disponível em https://www.imf.org/external/datamapper/NGDP_RPCH@WEO/OEMDC/ADVEC/WEOWORLD. Acesso em 28 out. 2023. 15 VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 4 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 Tabela 1: Taxa de Crescimento Econômico Global e Regiões – 2022-2024 Região 2022 Global 3,5 Avançadas 2,7 Emergentes 4,0 Estados Unidos 2,1 Zona Euro 3,5 América Latina 3,9 África 3,9 Ásia 5,4 Fonte: FMI (Real GPD growth) 2023 3,0 1,5 4,0 1,8 0,9 1,9 3,5 2,5 2024 3,0 1,4 4,1 1,0 1,5 2,2 4,1 3,2 Tabela 2: Taxa de Inflação Global e Regiões – 2022-2024 Região 2022 2023 2024 Global 8,9 6,1 4,1 Avançadas 7,3 3,3 2,3 Emergentes 10,1 8,1 5,4 Fonte: FMI (Inflation rate) As economias avançadas perderam um pouco do dinamismo no seu crescimento econômico. Após crescimento de 3,5% em 2022, as estimativas para 2023 e 2024 são de 3,0% e 3,0%, respectivamente. Já nas economias emergentes, as estimativas são de manutenção do crescimento observado em 2022 na casa de 4,0% para 2023 e 2024. A inflação global tende a reduzir significativamente, de 8,9%, em 2022, para 4,1%, em 2024. A inflação nas economias avançadas poderá reduzir-se em três vezes, de 7,3%, em 2022, para 2,3%, em 2024. Nas economias emergentes, a redução deverá passar de 10,1%, em 2022, para 5,4%, em 2024. Embora a recuperação da economia seja pensada como um processo lento por analistas, em 2023 alguns indicadores começam a superar as previsões e dão sinais positivos em relação ao crescimento do PIB e à contenção da inflação. O documento Carta de Conjuntura do IPEA17 indica que o quadro atual da economia mundial é de inflação ainda elevada, mas em queda, taxas de desemprego baixas e crescimento do PIB global de 2023 revisto para cima – de 2,8% em abril para 3,0% em julho. A inflação mundial tem caído, em 2023, como pode ser visto no Gráfico 1. Contribuiu para isso a queda nos preços de energia e alimentos. Conforme o World No original: “the scarring impact of the pandemic; a slower pace of structural reforms, as well as the rising threat of geoeconomics fragmentation leading to more trade tensions; less direct investment; and a slower pace of innovation and technology adoption across fragmented blocs”. 17 Disponível em https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/. Acesso em 28 out. 2023. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 5 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 Economic Outlook (WEO)18, as cadeias de suprimentos se recuperaram amplamente e os custos de transporte e os prazos de entrega dos fornecedores voltaram aos níveis prépandêmicos. Veja-se o Gráfico 1: Gráfico 1 6 2.3. Efeitos da crise climática As crises ambientais, mais claramente o aquecimento global, vão além das previsões e já demonstram concretamente os seus riscos e perspectivas destrutivas. Calor acima da média, incêndio em florestas, chuvas e alagamentos de proporções extraordinárias são eventos que habitam o nosso cotidiano. A comunidade científica, os organismos internacionais19 e os eventos dedicados ao tema (Conferências Internacionais)20 vêm alertando há décadas sobre a gravidade dos 18 Disponível em https://www.imf.org/en/Publications/WEO/Issues/2023/07/10/world-economic-outlook-update-july-2023. Acesso em 28 out. 2023. 19 Como exemplo, a previsão da Organização Meteorológica Mundial (OMM) é de que 2023 será o ano mais quente já monitorado pela ciência. Disponível em https://news.un.org/pt/story/2023/10/1822012#:~:text=A%20Administra%C3%A7%C3%A3o%20Nacion al%20Oce%C3%A2nica%20e,de%20temperatura%20da%20superf%C3%ADcie%20oce%C3%A2nica. Acesso em 18 nov. 2023. 20 Como a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2023 ou Conferência das Partes da UNFCCC, mais comumente referida como COP 28, que acontece de 30 de novembro até 12 de dezembro em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos. Ela será o momento de concluir o primeiro balanço global de implementação do Acordo de Paris, o chamado Global Stocktake. Este balanço terá seu primeiro ciclo encerrado em 2023 e ocorrerá, a partir de agora, a cada 5 anos. A proposta deste balanço é avaliar o progresso coletivo de todos os países nos esforços de mitigação, adaptação, financiamento e transferência de tecnologia para o enfrentamento das mudanças climáticas. Em outras palavras, o balanço global tem o objetivo de identificar se, e em que medida, o agregado de ações domésticas adotadas pelos países é coerente com o alcance dos objetivos do Acordo de Paris e quais lacunas precisam ser preenchidas para VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 problemas ambientais no planeta. Para além do aquecimento global, facilmente identificado na atualidade, a cada ano eventos climáticos extremos se sucedem deixando um alto número de vítimas e larga destruição ambiental. Vários números poderiam explicitar de forma bem direta o tamanho dessa crise socioambiental. Mas talvez, um deles demonstre a proporção do problema e seus desafios. Os desastres relacionados com o clima causaram 43,1 milhões de deslocamentos internos de crianças em 44 países durante um período de seis anos – ou aproximadamente, 20 mil deslocamentos de crianças por dia – de acordo com uma nova análise do UNICEF divulgada em outubro deste ano21. Para complicar, ao utilizar um modelo de risco de deslocamento por desastres desenvolvido pelo Centro de Monitoramento de Deslocamentos Internos, o relatório projeta que as enchentes ribeirinhas têm o potencial de deslocar quase 96 milhões de crianças nos próximos 30 anos, com base em dados climáticos atuais, enquanto os ventos ciclônicos e as tempestades têm o potencial de deslocar 10,3 milhões e 7,2 milhões de crianças, respectivamente, no mesmo período 22. Com eventos meteorológicos mais frequentes e mais severos como consequência das mudanças climáticas, os números reais certamente serão mais elevados. Essa tendência tem se confirmado cada vez mais em 2023, com o norte planetário experimentando intensa onda de calor, como na China e nos Estados Unidos, em que algumas regiões marcaram temperaturas de até 52°C. Incêndios florestais varreram florestas e alcançaram as áreas urbanas em diversos países, como nos Estados Unidos/Havaí e no Canadá. Os incêndios também marcaram a Europa. A Austrália, já na parte austral, passou por terríveis incêndios. O continente africano foi palco de terremotos e inundações. Fortes tempestades com rompimento de barragens causaram grande destruição e mortandade na Líbia. Um ano de um clima extremo não pode ser atribuído apenas ao acaso. que o objetivo seja cumprido. Na Conferência de Dubai também se encerra o prazo para outro processo muito importante que ocorre dentro do regime da ONU para o clima. Trata-se da definição de uma meta global de adaptação às mudanças climáticas e de estratégias para alcançá-la. O tema é complexo, porque abrange elementos como avaliação de impactos, vulnerabilidades, planejamento e monitoramento. Outro dado relevante é a presença do Papa Francisco na cidade dos Emirados Árabes Unidos de 1º a 3 de dezembro para participar da referida Conferência, onde fará o único discurso programado para o sábado, dia 2. Também estão programados encontros bilaterais privados e a inauguração do pavilhão da Santa Sé na Expo City. Programação disponível em https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-11/papa-franciscoprograma-oficial-viagem-dubai-cop28.html. Acesso em 18 nov. 2023. 21 UNICEF, Children displaced in a changing climate: “As inundações e as tempestades foram responsáveis por 40,9 milhões – ou 95% – dos deslocamentos de crianças registrados entre 2016 e 2021, devido em parte a melhores relatórios e a mais evacuações preventivas. Entretanto, as secas provocaram mais de 1,3 milhão de deslocamentos internos de crianças – com a Somália novamente entre os países mais afetados, enquanto os incêndios florestais provocaram 810 mil deslocamentos de crianças, com mais de um terço ocorrendo só em 2020. Canadá, Israel e Estados Unidos foram os que registraram o maior número desses incêndios”. Disponível em https://www.unicef.org/media/145951/file/Climate%20displacement%20report%20(English).pdf. Acesso em 28 out. 2023. 22 Como a definição dos perigos considerados nas projeções é diferente da na análise histórica (2016-2021), não é possível comparar diretamente os dois. As projeções também não incluem evacuações preventivas. O UNICEF analisou dados do Centro de Monitoramento de Deslocamentos Internos (IDMC) para determinar o histórico de deslocamentos de crianças ligados a desastres relacionados com o clima e projetou o risco estimado de deslocamento de crianças no futuro utilizando o modelo de risco do IDMC. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 7 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 No Brasil não foi diferente. O Nordeste brasileiro, com seus momentos de seca, tem registrado índices recordes de chuva. Em 2022, 133 pessoas morreram por conta das fortes chuvas, que assolaram todos os municípios que compõem a região metropolitana do Recife. Os mortos, todos da periferia de cidades como Recife, Olinda e Jaboatão dos Guararapes, são um reflexo das desigualdades estruturais23. A região sul do Brasil também sofre com grande destruição causada por chuvas intensas e ciclones, com mortes e centenas de desalojados decorrentes desses eventos climáticos severos e cada vez mais intensos. Os meses de setembro, outubro e novembro deste ano foram e permanecem marcados no Brasil pela chegada de ondas de calor intenso cobrindo todo o país. Alertas de altas temperaturas foram emitidos em diversas capitais, como Brasília, Rio de Janeiro e Manaus. As altas temperaturas do período já superam os registros históricos, com severos riscos à saúde humana e à biodiversidade, aumento de incêndios e sem muitas soluções a curto prazo. Não está fácil! Veja-se a Figura 1, onde as manchas mais claras evidenciam temperaturas em torno (ou acima) dos 40º graus em novembro de 2023, sem contar a sensação térmica: Figura 1 8 Fonte: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em 16/11/202324. Na Amazônia, uma estiagem generalizada baixou drasticamente o nível dos rios devido a dois fenômenos climáticos simultâneos: o aquecimento do Pacífico, conhecido como El Niño, e o aquecimento do Atlântico Tropical Norte. No Amazonas, foi decretado estado de emergência ambiental, por causa da seca severa em vários municípios e do 23 O dossiê popular feito em 2023 registra a experiência. Disponível em https://habitatbrasil.org.br/wpcontent/uploads/2022/11/apresentacao-UMA-TRAGEDIA-ANUNCIADA-1.pdf. Acesso em 28 out. 2023. 24 Disponível em https://www.gov.br/inpe/pt-br. Acesso em 18 nov. 2023. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 acúmulo de fumaça tóxica no ar de Manaus. Em função do El Niño, as florestas da região ficam mais secas e mais propensas ao fogo, o que aumenta consideravelmente a dificuldade de controle de focos de calor que podem se alastrar e se tornar incêndios maiores, como vem acontecendo com cada vez mais frequência. A “Casa Comum” grita por socorro e os efeitos da crise ambiental estão, a cada dia, mais presentes na vida das populações. Em sua Carta Encíclica25 “Laudato Si”, o Papa Francisco mencionou explicitamente a “Dívida Ecológica”26 gerada por fatos ligados à crescente destruição do meio ambiente, e relaciona tal pecado 27 ao modelo econômico que cultua o deus mercado, com sua lógica de acumulação sem escrúpulos, a qualquer custo humano ou ecológico. Ele referiu-se à Natureza como “A Nossa Casa” e dedicou capítulos específicos de sua Carta às questões como: a poluição e as mudanças climáticas, a preservação das fontes de água, a perda da biodiversidade, a deterioração da qualidade de vida humana, a degradação social e a desigualdade planetária. Em face disso, mesmo no seio da Igreja há uma preocupante tendência de se minimizar a crise climática global. A partir de alguns dados, supostamente científicos, ou a partir do fato de que o planeta sempre teve e continuará a ter períodos de arrefecimento e aquecimento, tentam ridicularizar quem fala de aquecimento global. Os que suscitam tais argumentos desconhecem “o desequilíbrio global causado pelo aquecimento do planeta”, uma realidade global – com variações locais constantes – que persistirá por muitas décadas28. 2.4. Dilemas políticos: autoritarismos e sociedades divididas Estamos num período em que o neoliberalismo assumiu uma forma mais extrema, fenômeno que os analistas denominam como “ultraneoliberalismo”29. Esse modelo econômico-social/político, para garantir sua escalada de reprodução, ataca os direitos 25 http://w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papaDisponível em francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html. Acesso em 28 out. 2023. 26 Disponível em https://www.cadtm.org/spip.php?page=imprimer&id_article=12618. Acesso em 28 out. 2023. 27 Laudato Si’ (LS n.8): “Quando os seres humanos destroem a biodiversidade na criação de Deus; quando os seres humanos comprometem a integridade da terra e contribuem para a mudança climática, desnudando a terra das suas florestas naturais ou destruindo as suas zonas húmidas; quando os seres humanos contaminam as águas, o solo, o ar... tudo isso é pecado”. 28 LD n. 6-8. 29 Ver MAURIEL, A.P.O; KILDUFF, F. SILVA, M.M. da; LIMA, R.S., (Orgs). Crise, ultraneoliberalismo e desestruturação de direitos. Uberlândia: Navegando Publicações, 2020; MEDEIROS, Ana Hortência de Azevedo. Ultraneoliberalismo X Bolsonarismo: inflexões sobre a política de assistência social nos dias atuais. Comunicação no Seminário Internacional de Políticas Públicas, Intersetorialidade e Família (V SIPINF). Disponível em https://editora.pucrs.br/anais/sipinf/assets/edicoes/2021/artigo/36.pdf. Acesso em 28 out. 2023; DEMIER, Felipe. “Burguesia e pandemia: notas de conjuntura sobre neofascismo e ultraneoliberalismo no Brasil de Bolsonaro”. In: BRAVO, M. I. S.; MATOS, M. C.; FREIRE, S. M. F. (Org.). Políticas sociais e ultraneoliberalismo. Uberlândia: Navegando Publicações, 2020. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 9 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 humanos30 e, para se justificar, utiliza o discurso do ódio 31, as fake news32 e o lawfare33. Identifica inimigos a serem eliminados: imigrantes34, população LGBTQIA+35, ambientalistas36, ativistas sociais etc. Nesse modelo, há casos em que se recorre à instrumentalização das religiões e das igrejas. E, para se viabilizar, precisa enfraquecer e/ou destruir as democracias37. No cenário global, os ataques à democracia retornaram com novas roupagens, de um antigo movimento da extrema direita do século 20, o fascismo38. Tal movimento possui organização internacional e consegue, em muitos lugares, captar o sentimento antissistema de populações desesperadas pela perda de direitos, pela violência e pela exclusão social. Em novembro de 2022, a Cidade do México recebeu a nova edição da Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC), que acontece desde 1974 nos Estados Unidos. Entre as principais referências internacionais presentes estavam os estadunidenses Steve 30 Ver como exemplo o Relatório Mundial 2023 do Human Rights Watch. Disponível em https://www.hrw.org/pt/world-report/2023. Acesso em 18 nov. 2023. 31 O discurso do ódio está vinculado à utilização de palavras “que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religião” ou ainda à sua potencialidade ou “capacidade de instigar violência, ódio ou discriminação contra tais pessoas”, cf. BRUGGER, Winfried. Proibição ou proteção do discurso do ódio?: algumas observações sobre o direito alemão e o americano. Direito Público, Porto Alegre, ano 4, n.15, p.117-136, jan./mar. 2007. 32 “Fake news são coisas inventadas, magistralmente manipuladas para parecerem notícias jornalísticas críveis, que são facilmente espalhadas online”, cf. KLEIN, D. O.; WUELLER, J. R. Fake news: a legal perspective. Internet Law 20 (10), 2017, pp. 5-13. Disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers. Acesso em 28 out. 2023. As “fake news” tornaram-se nos últimos anos uma espécie de chavão, uma expressão usada de forma exagerada, muitas vezes como uma explicação rápida e fácil para os problemas da sociedade atual. “Nesse sentido, consideramos (...) que as fake news não devem ser sobrevalorizadas e tomadas como a causa única de experiências históricas complexas como o Brexit ou a eleição de Donald Trump. Defender tal perspectiva seria desconsiderar todo o contexto atual de capitalismo digital, ignorar uma série de especificidades culturais e oferecer uma visão reducionista que oculta as múltiplas razões que tiveram papel relevante na conformação desses votos”, Cf. ALVES, Marco Antônio Sousa; MACIEL, Emanuella Ribeiro Halfeld. O fenômeno das fake news: definição, combate e contexto. Disponível em https://revista.internetlab.org.br/wp-content/uploads/2020/02/o-fenomeno-das-fake-news-definicaocombate-e-contexto.pdf. Acesso em 28 out. 2023. 33 Para Streck, o lawfare é a “construção fraudulenta do raciocínio jurídico para perseguir fins politicamente orientados”. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Enciclopédia do golpe - Vol. 1. Bauru: Canal 6, 2017, p. 119. 34 Conforme o ACNUR, havia 108,4 milhões de pessoas deslocadas à força em todo o mundo no final de 2022 como resultado de perseguição, conflito, violência, violação de direitos humanos ou eventos que perturbaram gravemente a ordem pública. Disponível em https://www.acnur.org/portugues/dados-sobrerefugio/#:~:text=108%2C4%20milh%C3%B5es%20de%20pessoas,perturbaram%20gravemente%20a%2 0ordem%20p%C3%BAblica.. Acesso em 18 nov. 2023. 35 Apenas para se avaliar as mortes deste universo em 2022, no Brasil ocorreram 273 mortes LGBT de forma violenta no país. Dessas mortes 228 foram assassinatos, 30 suicídios e 15 outras causas, conforme o “Dossiê de Mortes e Violências contra LGBTI+”. Disponível em https://observatoriomorteseviolenciaslgbtibrasil.org/dossie/mortes-lgbt-2022. Acesso em 28 nov. 2023. 36 O relatório anual da Global Witness informa que pelo menos 177 ativistas ambientais foram assassinados em 2022 em todo o mundo. Disponível em file:///C:/Users/admin/Downloads/Global_Witness_Annual_Report_September_2022.pdffile:///C:/Users/a dmin/Downloads/Global_Witness_Annual_Report_September_2022.pdf. Acesso em 18 nov. 2023. 37 Cf. LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. 38 Adotamos aqui o uso do conceito de fascismo de forma genérica e não histórica. Ele é “genérico para englobar a maior novidade política do século 20, um fenômeno de massas que engloba nacionalismo, reacionarismo, autoritarismo e populismo, e não encontra antecedentes históricos. Tanto mais, que não morre em 1945, mas se altera ciclicamente conforme migra no espaço-tempo”, cf. PAXTON, Robert. A anatomia do Fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 10 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 Bannon e Ted Cruz e o espanhol Santiago Abascal, além de representantes da direita regional, como Eduardo Bolsonaro (Brasil), José Antonio Kast (Chile), Alejandro Giammattei (Guatemala) e Javier Milei (Argentina), dentre outros. Como exemplo dessa expressão política, na Argentina, Milei, um economista ultraliberal, que se denomina “anarcocapitalista”39, prometeu acabar com a “casta política”, reduzir o Estado ao mínimo, entregar ao capital privado a administração da educação e da saúde, abolir o salário-mínimo, os sindicatos e as pensões, liberar a compra e venda de armas e, sobretudo, resolver a inflação crônica com a dolarização da economia. Ele disputou o segundo turno das eleições presidenciais argentinas40 com o candidato Sérgio Massa41, em um clima de profundo desânimo da maioria do eleitorado. O resultado, em 19 de novembro, com cerca de 10% (dez pontos percentuais) de vantagem transformou Javier Milei no novo presidente de nosso país vizinho. Além de enfrentar a pior crise econômica do país em décadas, ele deverá lidar com um Congresso Nacional em que seu agrupamento político é minoria, com a desconfiança internacional e sua pouca experiência administrativa. O autoritarismo também se estende a territórios antes arejados. A Nicarágua vem numa trajetória ascendente de autoritarismo e de ataques à democracia. Prende e expulsa do país seus opositores. Recentemente, confiscou os bens da Universidade CentroAmericana – UCA, em Manágua, e expulsou os jesuítas de sua residência, de maneira arbitrária. Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, os últimos 5 anos na Nicarágua, foram registradas a morte de pelo “menos 355 pessoas; mais de 2.000 pessoas feridas; 2.090 pessoas privadas de liberdade; 322 pessoas arbitrariamente privadas de sua nacionalidade; e mais de 3.000 organizações que perderam a personalidade jurídica. Além disso, 26 pessoas permanecem detidas arbitrariamente, de acordo com dados de 31 de março de 2023” 42. Vários relatos e documentos comprovam a perseguição a seguimentos da Igreja Católica e a profissionais da imprensa, destacandose, entre outros, o caso do jornalista Victor Ticay, que foi preso em 6 de abril por cobrir uma procissão religiosa no município de Nandaime. Até hoje, três padres continuam arbitrariamente privados de sua liberdade, entre eles Monsenhor Rolando Álvarez, bispo de Matagalpa, condenado pelo crime de “traição” a 26 anos de prisão e privado de sua nacionalidade e de seus direitos políticos. Nessa conjuntura, os processos eleitorais, tão importantes na democracia representativa, não estão conseguindo equacionar os conflitos e as sociedades seguem divididas depois dos resultados das urnas. Eleições polarizadas e sociedades divididas parecem indicar uma crise da democracia representativa 43. Ao lado da desigualdade Esta expressão decorre de um pensamento que se configura como um pretenso modelo de sociedade “sem Estado”. Por não romper com as relações autoritárias resultantes do modo de produção capitalista, o mesmo não encerra a existência do Estado, atuando apenas sob a superfície do mesmo (o chamado ‘Estado visível’)”, cf. OSORIO, Jaime. O Estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. São Paulo: Outras Expressões, 2014, p. 36. 40 Pelo partido “A Liberdade Avança”. 41 Pela coligação peronista “União pela Pátria”. 42 Disponível em https://www.oas.org/pt/cidh/jsForm/?File=/pt/cidh/prensa/notas/2023/067.asp. Acesso em 28 out. 2023. 43 A crise da democracia representativa, além de não ser exclusividade brasileira, é tema bastante complexo, composto por muitas variáveis. O cenário de instabilidade da política em democracias contemporâneas é 39 VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 11 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 social, que se alastra no planeta sob muitas formas e se reflete em precariedade das condições de trabalho, fome, doenças, guerras e migrações forçadas dos pobres da terra, as “condições sociais da democracia”44 se apresentam de forma turbulenta. No caso dos países da América Latina, a recessão democrática da região, expressa no baixo apoio que tem a democracia, o aumento da indiferença ao tipo de regime e por uma preferência por modelos autoritários, evidenciados no último Informe Latinobarómetro 202345, conta com três dimensões que podem explicar este quadro: (a) crises econômicas em um cenário de desigualdades sociais, em que as demandas da população ante os governos não se resolvem; (b) a crônica ineficiência das democracias regionais em produzir, oferecer e proporcionar acesso aos bens públicos desejados pela maior parte da população; e (c) um baixo desempenho dos governos eleitos, portanto dos incumbentes, de promover soluções e atender às demandas. Há, de forma cada vez mais evidente, uma espécie de “autoritarismo líquido” distribuído independentemente da posição ideológica, seja de “direita”, de “esquerda” ou de “centro”46. São traços de autoritarismo fragmentados e cirúrgicos, que têm reflexo da própria experiência democrática. Uma cultura de participação e dever cívico não se cria por si mesma. Há uma necessária responsabilização de cada um e de todos. Numa sociedade que engaja seus membros na difícil, mas necessária tarefa de um cuidar do outro e de todos cuidarem da gestão dos assuntos comuns, observam-se padrões de prudência e justiça, que, no entanto, não exigem pessoas muito disciplinadas, mas apenas tenazes “cidadãos responsáveis”. Não se trata de sempre seguir regras, o desvio da regra é algo natural em uma comunidade. O que se precisa é que esta concepção de responsabilidade faça do “cidadão” uma base sob a qual se possa construir uma comunidade humana criativa e zelosa o bastante para o enfrentamento dos desafios atuais. Nesse sentido, ver BAUMAN, Zygmunt. Vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 386. 44 A expressão é de Guillermo O’Donnell. A “qualidade da democracia” está associada ao problema (mais) complexo se refere ao desenvolvimento humano e, por conseguinte, aos direitos sociais. Ver O’DONNELL, Guillermo. Democracia, desenvolvimento humano e direitos humanos. REVISTA DEBATES, Porto Alegre, v.7, n.1, p. 15-114, jan.-abr. 2013. 45 Em 2018, a satisfação com a democracia na América Latina atingiu o mínimo histórico de 24%, recuperando quatro pontos percentuais e chegando a 28% em 2023. É a quarta medição consecutiva feita pelo Latinobarómetro deste indicador (2017, 2018, 2020 e 2023) em que o resultado indica que menos de um terço dos cidadãos latino-americanos estão satisfeitos com a democracia. Se acrescentarmos ao acima exposto o fato de que, desde 2018 e até o fechamento do relatório de 2023, houve apenas alternâncias no poder nas sucessões presidenciais (de um total de 19 há apenas uma exceção), parece claro que a região assiste a um colapso na atuação dos governos. Repetidas vezes, em busca de soluções para os seus problemas, os cidadãos vão às urnas votar nas alternativas oferecidas pela oposição aos governos, alertando que o partido no poder não é capaz de avançar na resposta adequada às suas reivindicações. Talvez o impacto mais óbvio da pandemia seja justamente esse, a confirmação da onda de alternâncias no poder, que já havia começado anteriormente. As alternâncias de 2019, 2020, 2021 e 2022 dão conta da avaliação da região sobre o desempenho dos governos diante da pandemia. Nenhuma, exceto no caso do Paraguai, cuja eleição ocorre após o fim da pandemia, produz continuidade para o partido no poder. Ao mesmo tempo, a insatisfação com a democracia aumentou em 2018 para um máximo histórico de 72% e depois sofreu uma ligeira queda de três pontos percentuais em 2023, quando atingiu 69%. Pelo terceiro ano consecutivo, a insatisfação não cedeu significativamente. Se o apoio à democracia é de 48% e a insatisfação é de 69%, há mais insatisfeitos do que democratas. Além disso, quase não há democratas insatisfeitos: há democratas insatisfeitos que são indiferentes ao tipo de regime político e aqueles que aceitariam o autoritarismo. Essas pessoas insatisfeitas são o contingente mais aberto ao populismo e ao autoritarismo, 21% dos latinoamericanos, um em cada cinco. Relatório na íntegra, disponível em https://www.latinobarometro.org/lat.jsp. Acesso em 28 out. 2023. 46 Direita, esquerda e centro são conceitos difíceis, polissêmicos e muito polêmicos. Para fins deste texto, adotamos esses conceitos a partir de BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda. Razões e Significados de uma Distinção Política. São Paulo: Editora UNESP, 1995. Não encerramos, entretanto, a questão em sua abordagem, apenas como ponto de partida. Nem o próprio Bobbio encerrou a distinção. São tipos ideais, VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 12 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 destinatários específicos e podem ser capitaneados por diferentes agentes. Trata-se de uma forma aperfeiçoada de autoritarismo, que atinge grupos ou pessoas segundo os interesses de quem o pratica, além de ser mais flexível no plano político, convivendo com institutos e medidas democráticas, mantendo, portanto, uma aparência de respeito às instituições e ao Estado de direito. Na América Latina, por exemplo, não é raro que um mesmo tribunal produza decisões de acordo com os limites constitucionais – e até ampliativas de direito – e medidas de exceção. Nesse paradigma de autoritarismo líquido, a convivência entre estruturas autoritárias e democráticas em um mesmo sistema, ambas tendo caráter estrutural, gera uma complexidade que torna o fenômeno de difícil percepção. Isso porque não se trata de mera disfunção de um Estado democrático em pleno funcionamento, o que seria natural. Trata-se de uma patologia instalada, capaz de obter uma eficácia autoritária sem o ônus de um governo declaradamente autoritário47. Em todos os cantos, quase sempre, o que se percebe é a falta de um projeto de sociedade que tenha o poder de encantar, gerar esperança e coesão social, ao invés do caldo a que estamos submetidos, que produz mais medos e inseguranças, principalmente nos setores médios da população. Há uma crescente presença, nos debates, dos temas morais, muitas vezes reduzidos apenas a uma moral “da cintura para baixo” 48. As religiões ocupam um lugar mais central nos debates eleitorais. Ao lado dessas tendências, reintegra-se com força no espaço público as diversas formas de “identitarismo”. Ao transformar, no campo social, político, cultural, das religiões, das comunicações e das comunidades, as “identidades” em “identitarismo”49, muitas vezes, as práticas se aproximam do sectarismo. Os desafios da democracia, nesses cenários contemporâneos que enfrentam muitas formas de autoritarismos em sociedades ainda dividas, sob diferentes que não correspondem à totalidade do real, mas podem ajudar a levantar inquietações e contribuições, assim como Bobbio o fez. 47 Cf. SERRANO, Pedro Estevam Alves Pinto. Autoritarismo Líquido e as Novas Modalidades de Prática de Exceção no Século XXI. Revista Themis, Fortaleza, v. 18, n. 1, p. 197-223, jan./jul. 2020. 48 Essa expressão (“moral da cintura para baixo”) é do Papa Francisco: “Os pregadores correm um grande risco, que é o de caírem na mediocridade. De apenas condenarem a moral – desculpe a expressão – ‘da cintura para baixo’. No entanto, os outros pecados, que são os mais graves - o ódio, a inveja, o orgulho, a vaidade, matar o outro, tirar a vida -, desses já não se fala tanto (...) És um bom católico? Então passa-me um cheque.”. Cf. WOLTON, Dominique. Papa Francisco: um futuro de fé – uma conversa franca com o sociólogo Dominique Wolton. Rio de Janeiro: Petra Editora, 2018. 49 “Adotamos a expressão ‘identitarismo’ para descrever aquelas posições doutrinárias que enaltecem as ‘identidades’. Se isso vem pela direita, são alimentadas pelo nacionalismo e pelas religiões, em especial as religiões de maiorias. Quando o tema vem pelas “esquerdas”, são as de minorias recortadas não só positivamente, mas de maneira mais presente pelas tentativas de reconhecimento e defesa. A partir deste caldo, muitos setores, inclusive das religiões, têm construído uma política de exclusão e antagonismo, que impede o diálogo e a superação das divergências (...). É fato que todos os governos são influenciados por grupos e pautas identitárias. No passado, armamentismo, temas dos setores neopentecostais (como a mudança da Embaixada brasileira de Telavive para Jerusalém, em Israel), e tantos outros, exerciam influência e tensão pública, mesmo não se constituindo em maiorias na definição das decisões políticas. No atual contexto, muito provavelmente a lógica é a mesma, apenas com a mudança dos atores e grupos de pressão com seus termos próprios e identitários. Ora, se é certo que esses grupos continuarão a produzir e a exercer influência, há que se debater a relação entre estas políticas e as demandas gerais da sociedade, sempre em vista do bem comum”. Ver a Análise de Conjuntura de Abril de 2023, denominada de “Os grandes desafios para a sociedade brasileira”, disponível em https://www.cnbb.org.br/wpcontent/uploads/2023/04/OS-GRANDES-DESAFIOS-PARA-A-SOCIEDADE-BRASILEIRA-230414191806.pdf. Acesso em 28 de outubro de 2023. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 13 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 circunstâncias e alianças políticas, permitem imaginar que a sua superação exige um duplo esforço: (a) as necessidades essenciais dos mais vulneráveis, já conhecidas por quase todos, devem ser solucionadas de forma consequente; e (b) as novas demandas da humanidade, como o equilíbrio climático ou as respostas às pandemias, como foi a da COVID-19, vão exigir maiores recursos públicos, o que exigirão melhores soluções. As formas, às vezes frustrantes e raramente lineares, por meio das quais a democracia trabalha – mas somente quando trabalha bem – devem oferecer às democracias maior democratização. A ideia é consolidar uma “democracia de alta intensidade”. Para superar a concepção hegemônica – democracia liberal – é necessário repensar os conceitos estabelecidos e ressignificá-los; é necessário reinventar a emancipação social elaborando novas formas de participação democrática que realmente atendam aos reais anseios dos cidadãos. Uma democracia de alta intensidade é aquela que contempla os diferentes grupos de uma sociedade, atribuindo-lhes direitos iguais de representação e participação na busca de uma sociedade mais justa e equilibrada, isto é, mais democrática 50. Não à toa, diante dessa quadra, em sua Carta Encíclica Fratelli Tutti51, o Papa Francisco tem insistido em um modelo de fraternidade, baseado na “amizade social” e no “amor político”, tendo o diálogo como caminho necessário para a cultura do encontro 52. 2.5. A importância do Papa Francisco nesse contexto Em um mundo carente de projetos globais como referência para a humanidade construir um caminho de justiça social e paz, a voz profética do Papa Francisco tem ganhado importância singular. De maneira vigorosa, tem afirmado que não há democracia com fome, nem desenvolvimento com pobreza, nem justiça na desigualdade, nem planeta sem Criação. Assim, a partir de documentos e ações/testemunhos exemplares, o Papa vem dialogando sobre a ecologia integral, uma nova economia e política, o cuidado com os imigrantes e com os pobres da terra, a paz e a necessidade de superar as guerras, dentre tantos outros temas imprescindíveis para os nossos tempos e ante os seus sinais. Esse conjunto de mensagens do Papa Francisco não é um programa político. É uma teologia53, com propósito de evangelização básica. E, diante do desafio da missão da Igreja, estão presentes em seu pastoreio, como fonte e inspiração, numa fidelidade criativa à Tradição, fronteiras e periferias que são “o” lugar teológico vivo, a serviço do bem- 50 Ver SANTOS, Boaventura de Souza. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Edições Afrontamento: Lisboa, 2003. 51 Disponível em https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papafrancesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html. Acesso em 28 out. 2023. 52 Fratelli Tutti (FT), n. 13-14. 53 Em seus documentos, discursos, homilias e até gestos há uma teologia e um método teológico mais ou menos explícito e elaborado. E isso tem sido tematizado, problematizado e explicitado em várias publicações. Veja-se a coleção A teologia do Papa Francisco, organizada pelo italiano Roberto Repole, traduzida e publicada pelas Edições CNBB (11 volumes), e a coleção Teologia do Papa Francisco, publicada por Paulinas (11 volumes). Para não falar das inúmeras publicações em livros e revistas que abordam os mais diversos problemas e temas teológico-pastorais no magistério de Francisco. Para uma leitura mais sistemática, ver AQUINO JÚNIOR, Francisco de. Francisco e o quefazer teológico. ATeo, Rio de Janeiro, v.27, n.71, p. 50-62, jan./jun. 2023. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 14 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 viver54 e da vida boa, com sabor e saber, em “diálogo com o mundo, com a cultura, atenta aos problemas do tempo”55. São fundamentais para incorporar na análise da realidade e das conjunturas, especialmente nossos pontos cegos56, em torno da superação das exclusões, pois “ninguém pode ser excluído”57. Devem, por isso, ser assegurados os “direitos humanos, pessoais e sociais, econômicos e políticos, incluindo os direitos das nações e povos” 58, em um sistema político e econômico em que a democracia não seja somente nominal, mas sim estruturada sob “a lógica do bem-comum, em um chamado à solidariedade e a uma opção preferencial pelos pobres”59. Se as mensagens de Francisco são referências para todo o mundo, independentemente de credo e de posição política, ainda mais o são no seio de sua Igreja, feita por discípulos, homens e mulheres, em fraterna proximidade e compaixão 60, partícipes do “próprio coração do Evangelho”, tanto na “vida comunitária” como no “compromisso com os outros”, (...) “cujo centro é a caridade”61. Papa Francisco: “Saber mover-se em harmonia é o que dá a sabedoria que chamamos de viver bem. A harmonia entre uma pessoa e sua comunidade, a harmonia entre uma pessoa e o ambiente, a harmonia entre uma pessoa e toda a criação. As feridas contra esta harmonia são as que estamos vendo evidentemente, que destroem os povos”. Disponível em https://www.vaticannews.va/pt/papa/news/2023-02/papa-franciscopovos-indigenas-fida-estilos-vida-consumo-crise.html. Acesso em 23 out. 2023 55 FRANCISCO, Papa. Discurso do Papa Francisco aos membros da direção da Revista Teológica “La Scuola Cattólica”. 17 de junho de 2022. Disponível em https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2022/june/documents/20220617-rivistascuolacattolica.html. Acesso em 28 out. 2023. 56 Denominamos “pontos cegos” aqueles discursos e aquelas descrições que não estão elevadas à categoria de discurso nem de análise. Como nos provoca José Saramago (1922-2010), estamos cegos, transformandose e virando-se uns contra os outros. No seu “Ensaio sobre a cegueira” a cidade vai se transformando num caos de destruição humana, onde cada cego luta pela sua sobrevivência, entregando-se de tal forma ao desespero que acabam por abandonar qualquer traço de humanidade: “Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem. Cegos que vendo, não veem” (Cf. SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 310). Não é uma apenas uma ausência. E sim a soma de ausências em forma de excrescências (Ver AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Palavras Incertas: as não coincidências do dizer. Campinas: Editora da Unicamp, 1998.). As análises são feitas, na maioria das vezes, mais de pontos cegos que de realidades. E tais silêncios cegos nos explicam. 57 FT, n. 121: “Por conseguinte, ninguém pode ser excluído; não importa onde ele tenha nascido, e menos ainda contam os privilégios que outros possam ter porque nasceram em lugares com maiores possibilidades. Os confins e as fronteiras dos Estados não podem impedir que isso se cumpra. Assim como é inaceitável que uma pessoa tenha menos direitos pelo simples fato de ser mulher, de igual modo é inaceitável que o local de nascimento ou de residência determine, de per si, menores oportunidades de vida digna e de desenvolvimento”. Grifamos. 58 FT, n. 122: “O desenvolvimento não deve orientar-se para a acumulação sempre maior de poucos, mas há de assegurar os “direitos humanos, pessoais e sociais, econômicos e políticos, incluindo os direitos das nações e povos”. O direito de alguns à liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos direitos dos povos e da dignidade dos pobres, nem acima do respeito pelo ambiente, pois “quem possui uma parte é apenas para administrar em benefício de todos”. Grifamos. 59 Discurso do Papa Francisco, aos Juízes Do Continente Americano Reunidos Em Congresso No Vaticano Casina Pio IV, em 4 de junho de 2019: “Um sistema político-econômico, para seu desenvolvimento saudável, necessita garantir que a democracia não seja somente nominal, mas sim que possa se ver moldada em ações concretas que velem pela dignidade de todos os seus habitantes sob a lógica do bemcomum, em um chamado à solidariedade e uma opção preferencial pelos pobres (cf. Carta Encíclica Laudato Si’, 158)”. Grifamos. Disponível em https://www.vatican.va/content/francesco/pt/speeches/2019/june/documents/papafrancesco_20190604_giudici-panamericani.html. Acesso em 28 out. 2023. Grifamos. 60 Jo 13, 35. 61 Evangelii Gaudium (EG), n. 177. 54 VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 15 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 3. Brasil, 2023 3.1. A democracia brasileira A tentativa de golpe, em 8 de janeiro de 2023, foi um evento profundamente preocupante na história recente do Brasil. Este episódio ressalta a fragilidade da democracia no país. O recrudescimento de setores da extrema-direita, o avanço do populismo de direita, a renitente polarização social e política, a presença de grupos antidemocráticos nas Forças Armadas e nas polícias, a manipulação religiosa agregada a interesses ideológicos e políticos, a constância das desinformações e o papel das redes sociais na difusão de discursos de ódio e antidemocráticos, evidenciam que as instituições democráticas ainda enfrentam desafios significativos. Não se deve esquecer que houve ainda a leniência com os acampamentos em frente ao Quartel-General do Exército em Brasília e em outros estados, organizados desde 2022, e o apagão da segurança da Praça dos Três Poderes. Uma questão inadiável para a retomada da democracia em bases sólidas é a apuração e responsabilização de todos os envolvidos, observado o devido processo legal, dos crimes cometidos contra a Constituição e o país na tentativa de golpe de Estado, que culminaram com os ataques aos prédios dos três poderes ocorridos em 8 de janeiro. Esses processos têm contado com uma forte atuação do Supremo Tribunal Federal, do Ministério Público Federal e do Ministério da Justiça, por meio da Polícia Federal. Mesmo com algumas condenações, nos últimos meses, ainda falta muito. O núcleo até então submetido à lei e à Justiça ainda é formado pelos vândalos do 8 de janeiro. Faltam os núcleos empresarial, financeiro, político e de comunicação social. E, também, investigar, e, se for o caso, processar o setor das Forças Armadas envolvido. O papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal desde o início do último processo eleitoral e as respostas ágeis às tentativas antidemocráticas devem ser destacados num cenário de grandes disputas pelo poder. É importante reconhecer a resiliência da extrema-direita no Brasil. Os grupos bolsonaristas, com sua ideologia radical, representam uma ameaça persistente à estabilidade democrática. Uma das mais eficazes estratégicas utilizadas pelos setores da extrema-direita, não somente no Brasil, é a disseminação de informações falsas, o populismo de viés personalista e autoritário e a retórica inflamada, baseada na ideia de uma “guerra cultural”62, que continuam sendo ferramentas que tais grupos utilizam para minar a confiança nas instituições democráticas e criar divisões na sociedade. 62 A origem do termo “guerra cultural” é controversa. Foi nos Estados Unidos, no entanto, que a expressão se tornou popularizada, através de James Davison Hunter, em 1991 (HUNTER, J. D. Culture Wars: the struggle to define America., New York: Basic Books, 1991). Trata-se da descrição do embate entre duas visões de mundo antagônicas, uma conservadora (também chamada de ortodoxa ou tradicionalista), associada à direita política, e outra progressista, relacionada, predominantemente, às esquerdas, mas não só. A guerra cultural traz em seu bojo problemas de ordem social e moral que dizem respeito, por exemplo, à sexualidade, ao comportamento, à raça, à religiosidade, implicando ainda questões políticas e econômicas. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 16 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 Há uma polarização e um radicalização social, em que se insiste no descaso e pouco compromisso com as instituições, os partidos, a política e os políticos. Tanto no campo da direita como no da esquerda, as demandas desaguaram em ressentimentos. Por sua parte, o vazio social e o ceticismo adubaram um terreno já fértil para a ascensão de pretensos outsiders, políticos autoritários, oportunistas e populistas, que se dizem acima e além dos demais dirigentes, apesar de compartilharem o mesmo jogo político e viverem dele. Como não conseguem produzir consensos mais amplos na sociedade civil, apostam, seguindo as lições dos outros governos emergentes, no conflito e na divisão63. Para enfrentar esse quadro é crucial fortalecer a educação cidadã, promover o pensamento crítico e combater a desinformação. Além disso, é essencial que as lideranças políticas e a sociedade civil trabalhem juntas para promover o diálogo, construir pontes entre diferentes grupos e encontrar soluções para as divisões que permeiam a sociedade brasileira. A educação cidadã também capacita os cidadãos a compreenderem seus direitos e deveres, promovendo, assim, uma cultura de respeito às diversidades e às instituições democráticas. Em sintonia e simultaneamente à estratégia de educação cidadã, conceber e executar estratégias de curto prazo é urgente. Diálogo pressupõe comunicação. Comunicar-se através de meios de amplo acesso nas redes sociais e com linguagem acessível e empática, que considere as particularidades das juventudes, das pessoas periféricas, das mães solo, dos trabalhadores formais e informais, das classes médias, das pessoas idosas, das famílias, dos povos das florestas, dos campos e das águas... Incluir sempre, excluir jamais. Num cenário de arranjos políticos e institucionais que visam à governabilidade não se pode descartar os riscos de uma crise institucional, caracterizada pelo atrito contínuo entre os três poderes da República, pelas ameaças de grupos autoritários, pela dubiedade das Forças Armadas em relação aos setores golpistas que ainda habitam em seu interior e pelo fortalecimento de grupos de interesses antidemocráticos (privatistas, extremistas, fundamentalistas, dentre outros) no Congresso Nacional. Esses tensionamentos constantes minam a estabilidade política e dificultam a tomada de decisões importantes para o país. A superação desses desafios requer um esforço conjunto de todos os setores da sociedade brasileira, para além do Governo central. É preciso um comprometimento social e institucional, inclusive das Igrejas, reafirmando apoio aos valores democráticos, à defesa da vida desde a sua concepção até o seu declínio natural, à ecologia integral, à justiça social e à igualdade, para construir um futuro mais estável e inclusivo para o país. É fundamental fortalecer as instituições democráticas, promovendo transparência, responsabilidade e participação cívica. O combate à corrupção em todos os níveis deve ser permanente. Além disso, é preciso fomentar um diálogo construtivo entre os poderes da República, incentivando a colaboração em prol do bem comum64. 63 Cf. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, p. 189. 64 A Doutrina Social da Igreja ensina que todos têm direito de fruir das condições da vida social, mas isso não ocorre porque a repartição dos bens não se dá pelas normas do bem comum e da justiça social. Assim ensinava Pio XI, em 1931: “(...) Hoje, porém, à vista do clamoroso contraste entre o pequeno número dos ultra-ricos e a multidão inumerável dos pobres, não há homem prudente que não reconheça os gravíssimos inconvenientes da atual repartição da riqueza” (cf. PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 17 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 Somente por meio desses esforços conjuntos, dos vários atores sociais que mantêm credibilidade e respeito junto à opinião pública, será possível fortalecer a democracia brasileira e garantir um futuro político mais estável e promissor para as gerações atual e futuras. Sabe-se que a democracia depende de instituições estatais que funcionem bem e de uma sociedade civil organizada. A organização e mobilização da sociedade civil fortalece a democracia. Nesse sentido, é interessante verificar indícios de retomadas de lutas dos trabalhadores, estudantes e suas organizações. Desde o início do ano, já tínhamos presenciado as mobilizações indígenas que culminaram nos acampamentos “terra livre”65 e na Marcha das Margaridas66, em Brasília, que muito bem representam as lutas dos movimentos sociais. Em outubro, a greve do transporte e dos serviços de águas de São Paulo, dos estudantes e professores da USP, podem indicar a retomada das mobilizações por questões salariais e gerais, como a luta contra as privatizações e por melhoria da qualidade da educação. Em novembro, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) realizou uma grande manifestação em Brasília em busca reparação e efetivação dos direitos e políticas de proteção social para os atingidos por parte do Estado brasileiro67. Ainda em novembro, setores sindicais e associações ligadas ao serviço público federal iniciaram mobilizações Compêndio da Doutrina Social da Igreja. 7. ed. São Paulo: Paulinas, 2018, n.167). A responsabilidade de buscar e realizar o desenvolvimento do bem comum não compete apenas às pessoas enquanto indivíduos, mas também ao Estado, pois o bem comum é a razão de ser da autoridade política. O Estado deve garantir coesão, unidade e organização à sociedade civil de que é expressão, de modo que o bem comum possa ser conseguido com o contributo de todos os cidadãos. É tarefa do Estado harmonizar a justiça com os diversos interesses setoriais, ou seja, a correta conciliação dos bens particulares de grupos e de indivíduos é uma das funções mais delicadas do poder público. Por ser um Estado democrático – o qual é representante da vontade da maioria –, ele tem a responsabilidade de interpretar o bem comum do País não só segundo as orientações da maioria, mas também na perspectiva do bem efetivo de todos os membros da comunidade civil, inclusive os que estão em posição de minoria (PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, 2018, n.168). Sendo assim, na perspectiva da fé na Páscoa de Jesus, a Doutrina Social da Igreja ensina que o bem comum para o qual está orientada a sociedade não pode ser identificado com uma visão puramente histórica e materialista, que acabaria por transformá-lo em simples bem-estar econômico. A história humana, ensina o Compêndio, “o esforço pessoal e coletivo de elevar a condição humana – começa e culmina em Jesus: graças a Ele, por meio d’Ele e em vista d’Ele, toda a realidade, inclusa a sociedade humana, pode ser conduzida ao seu Bem Sumo, à sua plena realização” (PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ, 2018, n.170). Vale também ressaltar a encíclica Caritas in veritate, do Papa Emérito Bento XVI, considerada a magna charta para enfrentar o verdadeiro desafio do século XXI: elaborar um novo modelo de desenvolvimento mundial baseado num humanismo novo que leve os povos da Terra a viver unidos no respeito pela diversidade, cf. BOARETO, José Antonio. O bem comum a partir da Doutrina Social da Igreja. Caderno Fé e Cultura, Campinas, v.4, n. 2, p. 85-93, 2019. 65 Em abril de 2023 aconteceu o 19º Acampamento Terra Livre, coordenado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB. O ATL é a grande mobilização nacional do movimento indígena, realizada todo ano, a partir de 2004, para tornar visível a situação dos direitos indígenas e reivindicar do Estado Brasileiro o atendimento das suas demandas e reivindicações. 66 Realizada sempre em agosto para revivificar o mês em que Margarida Alves foi assassinada, a Marcha das Margaridas coloca milhares de mulheres do campo, da floresta e das águas vindas de todo o Brasil em marcha nas avenidas de Brasília. Em 2023 ocorreu entre 15 e 16 de agosto, com a presença de cerca de 100 mil participantes. 67 Cerca de 2.500 atingidos e atingidas de todas as regiões do país participaram de atos, assembleias e reuniões para apresentar suas pautas para a população em geral e para diferentes órgãos do executivo e do legislativo. No dia 14 de novembro, o Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 2788/2019, que cria a Política Nacional de Direitos dos Atingidos por Barragens (PNAB). A vitória é resultado da luta de mais de 30 anos do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Os dados estão disponíveis em https://mab.org.br/2023/11/03/atingidos-por-barragens-fazem-jornada-de-lutas-em-brasilia/. Acesso em 18 nov. 2023. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 18 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 em decorrência da dificuldade do governo em oferecer propostas que atendam às demandas de reestruturação de carreiras e reajustes salariais. As categorias mobilizadas incluem tanto servidores de órgãos econômicos, como o Banco Central (BC) e a Receita Federal, quanto da segurança pública, com movimentações entre funcionários da Polícia Federal (PF). 3.2. A reestruturação do Estado e a construção de um governo de frente ampla A formação de um governo de coalizão e de frente ampla (ou de frente amplíssima, se considerarmos as recentes adesões de partidos políticos mais próximos do Centrão), liderado pelo presidente Lula é uma tentativa de unir diferentes forças políticas para preservar a democracia e proteger as instituições contra futuras tentativas antidemocráticas, num esforço para promover a estabilidade política e fortalecer os valores democráticos, reunindo distintas visões políticas. É preciso reconhecer nesse novo cenário o fortalecimento do Congresso Nacional, de viés conservador e, desde as últimas eleições, formado por vários grupos de interesse. Mais recentemente, através das emendas impositivas ao orçamento, o Congresso tem representado um desafio significativo para a governabilidade no Brasil. Essas emendas, que obrigam o governo a destinar recursos para projetos específicos indicados pelos parlamentares, são, muitas vezes, utilizadas como moeda de troca para garantir apoio político e interesses não necessariamente republicanos. Embora tenham o potencial de promover o desenvolvimento local, quando utilizadas de forma inadequada, podem comprometer a eficiência dos gastos públicos e criar situações de chantagem política. Ao longo da última década, o Congresso Nacional tem assumido um protagonismo para além do histórico modelo do regime presidencialista brasileiro. Entre os principais instrumentos utilizados estão as emendas parlamentares, que garantem ao Congresso um poder inédito sobre as verbas do Orçamento da União. A projeção para 2023 é que os congressistas comandem 30% dos gastos livres federais, ou cerca de 21,2 bilhões de reais. Com isso, cada um dos 513 deputados terão o poder de direcionar ao menos 32 milhões de reais do orçamento para seus redutos eleitorais68. Já os 81 senadores, poderão usar 59 milhões de reais. Entretanto, a aplicação desses recursos segue com falta de transparência e indícios de corrupção. Em outro campo, mas ainda com diversas e estreitas relações com a política, o Supremo Tribunal Federal (STF) tem crescido em sua presença institucional nos últimos anos. Como espaço de proposição ou contenção, é constantemente chamado pela sociedade para manifestar julgamentos cujo objeto final almejado é justamente uma decisão que surta efeitos eminentemente políticos e que tenha a faculdade de interferir na seara de atuação dos demais poderes estatais. São inúmeros os exemplos desta atuação do STF, muitas vezes sob o manto da função interpretativa da norma constitucional, que lhe foi originariamente delegada pela Constituição. 68 O presidente Câmara, Arthur Lira, defende o protagonismo e o comando dos 30% do orçamento, alegando que os gastos livres federais têm uma explicação: “Os parlamentares conhecem melhor o País”. Fonte: Blog Roberto Moreira. Disponível em https://www.blogrobertomoreira.com/p/historia.html. Acesso em 28 out. 2023. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 19 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, no período pósredemocratização, o Supremo Tribunal Federal revestiu-se, forçosamente, é verdade, da função de controlar os atos dos poderes Executivo e Legislativo, interferindo em suas esferas de poder e atuando, em última instância, como poder político. Este chamamento por parte da própria sociedade, por meio de recursos em ações individuais, ou dos representantes legitimados pela Constituição para proporem ações diretas no STF, se dá, em verdade, desde antes da redemocratização. Há muito que a sociedade brasileira clama por um posicionamento político do Supremo Tribunal e um enfrentamento das questões colocadas sob sua deliberação ao invés da simples análise da questão constitucional 69. E ver-se-á que o tribunal não assumiu este papel facilmente. Os ministros foram forçados a julgar inúmeras vezes uma mesma questão por força de interposição de incontáveis recursos que protestavam pela releitura do posicionamento e do próprio papel do STF. A sociedade questionou a função do STF ao longo da história do país e foi após a Constituição de 1988 que ele se tornou – e se reconheceu – como um órgão independente e capaz de decidir aquelas questões não resolvidas na instância das instituições majoritárias, que, muitas vezes em descrédito, se omitiram. O Supremo Tribunal Federal aproximou-se da população, e tornou-se instância essencial para a resolução das questões mais relevantes – e polêmicas – da sociedade, na condição de oferecer dois papéis distintos. Um é o contramajoritário, quando invalida atos dos outros Poderes em nome da Constituição. O outro é o representativo, quando, em certas circunstâncias, atende às demandas sociais que ficam paralisadas no Congresso. As indicações para a vaga remanescente junto ao STF por ocasião da aposentadoria da Ministra Rosa Weber, como também da vaga aberta para a nomeação do novo Procurador-Geral da República (PGR), estão na pauta política do país, tanto como definição de próprio chefe do Poder Executivo, como no embate que, provavelmente, a sociedade e o Congresso irão produzir pela importância dos papéis de cada uma das instituições na democracia brasileira. 3.3. A reinserção do Brasil na geopolítica global Na abertura da 78ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o presidente Lula apresentou um pronunciamento pela defesa de um novo protagonismo dos países emergentes. Conseguiu pontuar os grandes temas globais, sinalizando para a busca de paz como instrumento que deve nortear a organização e sua reformulação. Não é sem razão que Lenio Streck denuncia os sintomas e as consequências de um duplo polo: “Tudo começou com o ativismo e a judicialização da política... para chegar ao ápice: a politização da justiça”. Disponível em http://www.conjur.com.br/2017-jun-29/senso-incomum-check-list-21-razoes-pelas-quaisestamos-estado-excecao. Acesso em 22 out. 2023. Marcelo Neves trata da “acentuada interpenetração entre os sistemas jurídico e político”. Ver NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2006. O sistema jurídico se reproduz a partir da codificação lícito/ilícito e de seus elementos (Constituição, leis, jurisprudência etc.). Já o sistema político – cuja definição poderia ser dada como “a esfera de decisão coletivamente vinculante” – vale-se do código governo/oposição e dos seus programas (procedimentos eleitorais, parlamentares, burocráticos etc.), cf. p. 86. A interferência do direito na política e vice-versa é tal que um põe à disposição do outro a própria complexidade para ajudar na autoconstrução do sistema alheio. Isso resulta em “uma necessidade recíproca de seleção e estruturação da complexidade penetrante”, cf. p. 92. 69 VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 20 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 Principalmente o seu Conselho de Segurança, que o país presidiu temporariamente em outubro, e que tem desafios imensos, como proporcionar uma alternativa para solucionar as guerras e os conflitos já explicitados. No campo da diplomacia, aliás, é importante destacar que os governos brasileiros, historicamente, adotaram uma abordagem multilateral na política externa, buscando uma maior cooperação com outros países do Sul Global e da América Latina, além de participar ativamente em fóruns e organizações internacionais. Essa tentativa está sintetizada no slogan “o Brasil voltou”, ofertado pelo governo federal e bem recebido pela mídia internacional e pela opinião pública de vários países. Nas relações bilaterais com os EUA e China, por exemplo, o país tem adotado uma postura altiva, buscando uma política externa equilibrada e tentando manter relações comerciais sólidas com ambas as nações. Até outubro de 2023, o atual presidente visitou a Argentina (22/01), o Uruguai (25/01), os Estados Unidos (09/02), a China (11/04), os Emirados Árabes (15/04), Portugal (21/04), a Espanha (25/04), o Reino Unido (05/05), o Japão (17/05), a Itália (20/06), de novo a Argentina (03/07), a Colômbia (08/07), a Bélgica (16/07), Cabo Verde (19/07), o Paraguai (14/08), a África do Sul (22/08), Angola (25/08), São Tomé e Príncipe (27/08), a Índia (09/09), Cuba (12/09) e, mais uma vez, os Estados Unidos (15/09). Houve sessões de trabalho no G7 (Grupo dos Sete, dos países mais industrializados do mundo), no G20 (Grupo dos Vinte, fórum de cooperação econômica internacional, com 19 países mais a União Europeia, e que representam 85% do Produto Interno Bruto global, em que o Brasil responderá pela presidência70), no Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai – também com o Brasil na presidência), nos BRICS (mecanismo internacional de cooperação entre os cinco países: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, que teve recente adesão de Arábia Saudita, a Argentina, o Egito, os Emirados Árabes, a Etiópia e o Irã, e contando com muitos outros na fila), na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), nas Nações Unidas (ONU) etc. Iniciativas como essas movimentaram as dinâmicas brasileiras e as suas relações internacionais. Da mesma forma, Brasília recebeu diversos personagens e personalidades, além de chefes de Estado e de Governo, com o objetivo de retomar os interesses comuns e expor as diferenças. Belém do Pará foi palco, em agosto, da Cúpula da Amazônia, a partir da OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica), em que o Brasil exerce um papel fundamental. Os principais temas desses eventos foram, além dos bilaterais, a guerra RússiaUcrânia, a disputa Israel-Hamas, os blocos regionais em que o Brasil participa, os temas ambientais, em especial a Amazônia, as relações comerciais, a desigualdade e a fome, além da demanda da diplomacia brasileira por uma reestruturação da governança global, que é, em verdade, a reivindicação do Brasil de ter assento permanente no mesmo Conselho de Segurança da ONU. A retomada dessas relações internacionais foi importante. O que isso significa para a economia? Ainda não é possível oferecer um resultado objetivo, mas temas como o 70 O mandato brasileiro no grupo das 20 principais economias do planeta vai de 1º de dezembro de 2023 até 30 de novembro de 2024. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 21 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 Acordo Mercosul-União Europeia, relações com a China e incremento das exportações, especialmente de commodities, apontam para uma melhor situação brasileira em um mundo reglobalizado após a pandemia de COVID-19. Uma das grandes oportunidades de liderança global do país está relacionada às questões ambientais. Nesse sentido, o governo federal pretende liderar iniciativas regionais e internacionais para combater as mudanças climáticas, promovendo uma posição proativa do Brasil nesse campo. Ou seja, na geopolítica internacional o atual governo pretende reposicionar o Brasil como um player importante nos novos contextos das disputas internacionais. O desafio principal, não obstante, é encontrar um equilíbrio entre promover políticas progressistas (interna e externamente) e lidar com a resiliência da direita global (que se recrudesce em vários países), enquanto se navega num cenário geopolítico complexo e em constante mudança. 3.4. Nossas questões sociais “As questões sociais sempre interpelaram os pastores da Igreja. É longa a tradição da Igreja em tratar de problemas sociais de acordo com sua própria fé”71. Desde a Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, de 15 de maio de 1891, considerada como o primeiro documento oficial da Doutrina Social da Igreja Católica, há clareza de que as responsabilidades sociais dos fiéis católicos, em todo o mundo72, trazem um compromisso com a vida política e econômica. O Brasil, entretanto, tem características muito duras no universo social. Vejamos algumas delas. 3.4.1. Como estão vivendo os 203,1 milhões Brasileiros? O último censo demográfico, realizado em 2022, revelou que entre 2010 e 2022 a população brasileira aumentou em 12,3 milhões de pessoas73. Esse aumento, que representa 6,5% a mais de pessoas em relação ao censo anterior foi, porém, abaixo do que vinha sendo previsto74. Como consequência, a transição demográfica avançou de forma 71 SPENGLER, Jayme. A Igreja e as questões sociais, 2017. Disponível em https://www.cnbb.org.br/aigreja-e-as-questoes-sociais/. Acesso em 28 out. 2023. 72 Não somente o magistério da Igreja cuida da questão social no mundo. Vários, como Eric Hobsbawm, explicam esta realidade. Vejamos este autor, por sua importância como historiador: “A globalização, acompanhada de mercados livres, atualmente tão em voga, trouxe consigo uma dramática acentuação das desigualdades econômicas e sociais, no interior das nações e entre elas. Não há indícios de que essa polarização não esteja prosseguindo dentro dos países, apesar de uma diminuição geral da pobreza extrema. Este surto de desigualdade, especialmente em condições de extrema instabilidade econômica com as que se criaram com os mercados livres globais desde a década de 1990, está na base das importantes tensões sociais e políticas do novo século O impacto dessa globalização é mais sensível para os que menos se beneficiam dela (...)”. Cf. HOBSBAWM, E. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Cia. das Letras, 2007, p. 11. 73 Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-denoticias/noticias/37237-de-2010-a-2022-populacao-brasileira-cresce-6-5-e-chega-a-203-1-milhoes. Acesso em 28 out. 2023. 74 Disponível em https://g1.globo.com/podcast/o-assunto/noticia/2023/06/29/censo-do-ibge-o-que-e-obonus-demografico-e-por-que-o-brasil-precisa-correr-contra-o-tempo-para-aproveita-lo-e-sedesenvolver.ghtml. Acesso em 28 out. 2023. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 22 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 rápida e a participação das pessoas com 65 anos ou mais no total da população aumentou de 7,72% para 10,49%, enquanto o percentual de pessoas com menos de 19 anos, que era de 32,39%, caiu para 27,59%75. O rápido envelhecimento populacional combinado aos inúmeros desafios sociais que o Brasil não foi capaz de resolver ao longo do tempo se constituí num fator de pressão sobre a sociedade brasileira. Garantir qualidade de vida para os mais de 30 milhões de idosos exigirá políticas públicas capazes de resolver os problemas de um processo de envelhecimento desigual. A expectativa média de vida de 76,6 anos é resultado de condições bastante diversas, que fazem com que os habitantes dos Estados mais desenvolvidos, como é o caso de Santa Catarina, tenham uma expectativa de 8,5 anos a mais de vida que os moradores do Estado do Maranhão76, por exemplo. Esses e outros desafios são consequência de problemas crônicos que privam um elevado percentual da população brasileira de liberdades fundamentais para uma vida digna e autônoma. 3.4.2. A pobreza: crianças e idosos Apesar dos avanços no enfrentamento da pobreza, quando consideramos a linha de pobreza recomendada pelo Banco Mundial para países com o nível de desenvolvimento do Brasil, que é de R$ 636,52 por mês/per capita, mais de 30% da população brasileira encontra-se vivendo o que se chama “pobreza monetária”. De acordo com estudo desenvolvido pelo PUCRS Datasocial, entre os brasileiros e brasileiras com menos de 19 anos, 47,65% encontram-se em situação de pobreza monetária. Já para o recorte das pessoas com até 6 anos de idade, a pobreza infantil é persistentemente elevada, tendo atingido mais de 30% das crianças ao longo da última década e chegando próximo a 45% em 202177. Quando olhamos para a composição etária da parcela da população mais pobre, percebemos que as crianças e jovens (pessoas com menos de 19 anos) e os adultos (entre 19 e 64 anos) são os grupos com maior participação. No entanto, os idosos, que historicamente eram o grupo menos representativo dos pobres, apresentaram um aumento de incidência entre 2012 e 2022, passando de 3 para 4,2% dos pobres. 3.4.3. As múltiplas camadas das desigualdades persistem e/ou se acentuam “Os 10% mais ricos ganhavam, em média, 16,7 vezes mais do que os 40% mais pobres”78 em 2022. As facetas dessa desigualdade também se manifestam em 75 Disponível em https://www.pucrs.br/datasocial/wpcontent/uploads/sites/300/2023/09/PUCRSDataSocial_Relatorio_TerceiraIdade_V2.pdf. Acesso em 28 out. 2023. 76 Disponível em https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/um-pais-mais-velho-o-brasil-estapreparado. Acesso em 28 out. 2023. 77 PUCRS. Data Social. Pobreza entre Idosos no Brasil. Disponível em https://www.pucrs.br/datasocial/pobreza-entre-idosos-no-brasil/. Acesso em 28 out. 2023. 78 Disponível em https://www.pucrs.br/datasocial/wpcontent/uploads/sites/300/2023/06/BOLETIM_DESIGUALDADE-NAS-METROPOLES_13.pdf. Acesso em 28 out. 2023. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 23 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 circunstâncias tais como gênero, raça e local de moradia. Por exemplo, estudo do Observatório Brasileiro das Desigualdades mostrou que os rendimentos das mulheres brasileiras representam, “em média, apenas 72% do valor que os homens ganham”, chegando a ser de apenas 64,2% em Aracaju (SE)79. O estudo também indica que quando os dados são decompostos por raça, a severidade e a persistência das desigualdades se mantêm. “Em média, os brasileiros negros (pretos e pardos) ganham apenas 69,2% dos não negros (brancos e amarelos)”. E quando se olha conjuntamente para gênero e raça, a desigualdade é ainda mais marcante, com as mulheres negras recebendo, em média, 42,3% do rendimento de homens não negros80. Conforme dados divulgados pela Receita Federal (Grandes Números do IRPF 81), o Brasil experimenta um processo de grande concentração de renda, devido ao aumento dos rendimentos dos “super-ricos”, que, além de aumentarem seus ganhos, gozam de isenções e não incidência tributária. Este processo caminha junto com a manutenção de taxas de juros em níveis extremamente elevados e aumento dos lucros advindos da exportação de commodities (fruto das atividades de mineração e grande agronegócio) nos últimos anos. Os declarantes pessoa-física com rendimentos totais superiores a 320 salários-mínimos mensais aumentaram seus rendimentos de R$ 371 bilhões no ano anterior para R$ 605 bilhões anuais em 2021, dos quais o montante de R$ 409 bilhões ficou completamente fora do alcance da tributação e dele não se pagou um centavo sequer de Imposto de Renda – Pessoa Física. Esse grupo de “super-ricos” aumentou fortemente sua participação no total de rendimentos em 2021, de 10,89% para 14,28%. No que tange ao acesso aos serviços públicos essências, tais como educação, saúde e saneamento, existem carências e desigualdades crônicas que ainda não foram superadas. Na dimensão educação ainda persiste o desafio de expandir a oferta de vagas em creches públicas. Apesar do reconhecimento da importância e necessidade de creches (tanto para o desenvolvimento das habilidades das crianças desde a primeira infância quanto como estratégia de superação da pobreza, por permitir que as mães possam exercer atividades no mercado de trabalho) e da existência de metas, a oferta de vagas é insuficiente e desigual. As desigualdades também se fazem presentes, em relação à educação, tanto em termos regionais como de cor. Segundo o IBGE, se a taxa de analfabetismo entre pessoas com 15 anos ou mais era, em 2022, de 2,9% no Sudeste, no Nordeste atingia 11,7% e, em todo o país, 3,4% das pessoas que se consideravam brancas eram analfabetas. Entre pretos e pardos o analfabetismo atingia 7,4%82. No que diz respeito ao saneamento, em 2022 o IBGE apontava que 89,0% dos domicílios urbanos estavam ligados à rede geral de água com fornecimento diário. Na zona rural esse percentual era de 72,5%. Situação mais grave era observada em relação ao acesso à rede geral de esgoto, pois se 71,5% dos domicílios urbanos eram cobertos, na 79 80 81 Idem. Idem. https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/centrais-deDisponível em conteudo/publicacoes/estudos/imposto-de-renda/estudos-por-ano/grandes-numeros-do-IRPF-2008-a2022. Acesso em 28 out. 2023. 82 IBGE (PNADc). Disponível em https://sidra.ibge.gov.br/tabela/7125. Acesso em 28 out. 2023. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 24 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 área rural o percentual atendido era de apenas 4,4%. Os diferenciais regionais são assustadores, pois enquanto 91,1% dos domicílios urbanos do Sudeste são atendidos por rede de esgoto, na Região Norte são apenas 26,5%, e 54,9% no Nordeste. Em termos extremos, enquanto o percentual é de apenas 13,8% no Piauí, em São Paulo é de 94,6%83. Complementarmente, quanto à desigualdade regional, em 2022 o rendimento mensal médio das pessoas com 14 anos ou mais ocupadas no Nordeste correspondia a apenas 60,3% do valor médio percebido nos estados do Sudeste. Também é necessário destacar que no país o rendimento recebido pelas pessoas pretas era 40,3% inferior ao das pessoas brancas84. 3.4.4. A fome Apesar da expressiva contribuição na produção de alimentos para abastecer o mundo, o Brasil segue com o crônico problema de condenar uma parcela significativa da população brasileira a viver em situação de insegurança alimentar. De acordo com o relatório The State of Food Security and Nutrition in the World 2023, que foi publicado pela FAO, utilizando dados de 2021, 48,1 milhões (22,4%) dos brasileiros não possuíam renda suficiente para adquirir alimentos para uma dieta saudável. Estando, portanto, em situação de insegurança alimentar moderada (9.9%) ou severa (32.9%)85. Nessa mesma perspectiva, o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, publicado pela rede PENSSAM 86 destaca que apesar do país ter saído temporariamente do mapa da fome em 2014, menos de dois anos depois a fome já havia voltado ao país. Os extremos climáticos desse ano, em muitas regiões do país, têm aumentado a tragédia da fome e da escassez alimentar. O caso da região amazônica e da região sul do país são exemplos gritantes que nos desafiam com muita força. 3.4.5. Precarização do mercado de trabalho 83 IBGE (PNADc). Disponível em https://sidra.ibge.gov.br/tabela/7192 e tabela/6732. Acesso em 28 out. 2023. 84 IBGE (PNADc). Disponível em https://sidra.ibge.gov.br/pesquisa/pnadca/tabelas. Acesso em 28 out. 2023. 85 De acordo com a Escala Brasileira de Medida Domiciliar de Insegurança Alimentar (Ebia), os domicílios são classificados em quatro categorias: Segurança Alimentar, Insegurança Alimentar Leve, Insegurança Alimentar Moderada ou Insegurança Alimentar Grave. Sendo: (1) Segurança alimentar: os moradores do domicílio têm acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente; (2) Insegurança alimentar leve: Apresentam comprometimento da qualidade da alimentação em detrimento da manutenção da quantidade percebida como adequada; (3) Insegurança alimentar moderada: apresentam modificações nos padrões usuais da alimentação entre os adultos concomitante à restrição na quantidade de alimentos entre os adultos; (4) Insegurança alimentar grave: são caracterizados pela quebra do padrão usual da alimentação com comprometimento da qualidade e redução da quantidade de alimentos de todos os membros da família, inclusive das crianças residentes neste domicílio, podendo ainda incluir a experiência de fome. Disponível em https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/saude-brasil/glossario/insegurancaalimentar-e-nutricional. Acesso em 28 out. 2023. 86 Disponível em https://pesquisassan.net.br/olheparaafome/. Acesso em 28 out. 2023. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 25 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 De acordo com os resultados da PNAD contínua, divulgados em julho de 2023 pelo IBGE87, a taxa de desocupação do segundo trimestre de 2023 recuou em relação ao primeiro trimestre, chegando a 7,9%. Por sua vez, a taxa de ocupação aumentou de 56,2% para 56,8% das pessoas em idade de trabalhar. Cabe destacar, no entanto, que o percentual significativo e crescente das ocupações ocorre no mercado informal de trabalho. O percentual da população informalmente ocupada passou de 38,9% da população ocupada, no primeiro trimestre do ano, para 39,1%. Além disso, 17,8% das pessoas em idade de trabalhar que estão ocupadas encontram-se subutilizadas. Esses resultados explicitam a precariedade do mercado de trabalho, tanto que atualmente não se mensura mais emprego e desemprego, mas sim ocupação e desocupação, constatando as limitações da abrangência das relações trabalhistas neste segmento da economia. Na mesma direção, os resultados da divulgação do novo CAGED ocorrida no dia 30 de agosto de 2023, que revelou um saldo positivo de 142.702 empregos formais, indicaram concentração majoritária em emprego de baixa remuneração, com 141.245 empregos com remuneração de até 1,5 salários-mínimos. Nas atividades que demandam ensino superior completo, o saldo foi negativo, com redução nos postos de trabalho88. Há diferenças regionais relevantes, em desfavor sobretudo dos residentes no Norte e Nordeste. Nessas regiões, o desemprego é mais elevado, a informalidade mais aguda e as remunerações mais baixas. 3.5. A insegurança pública e a violência No dia 5 de outubro, celebramos 35 anos da Constituição Cidadã. A sua promulgação foi a culminância de um amplo debate nacional organizado por diversos movimentos da sociedade. Entre suas conquistas, podemos destacar a integração do Brasil no sistema global (ONU) e sistema regional (OEA) de Direitos Humanos. Criou-se o Sistema Único de Saúde – SUS, como uma política pública universal de acesso à saúde, planejada no território e financiada com orçamento público. No campo da infância, reconheceu-se o dever da família, da sociedade e do Estado de assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem a prioridade absoluta nas políticas públicas como o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência família e comunitária. E foram construídos amplos mecanismos de proteção para o enfrentamento de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. A Constituição reconheceu aos povos originários suas organizações, costumes, línguas, crenças e tradições89. Reconheceu o direito à posse da terra dos quilombos: “Aos 87 Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-denoticias/releases/37750-pnad-continua-taxa-de-desocupacao-e-de-7-9-e-taxa-de-subutilizacao-e-de-17-8no-trimestre-encerrado-em-julho. Acesso em 28 out. 2023. 88 http://pdet.mte.gov.br/images/Novo_CAGED/2023/202307/2-apresentacao.pdf. Acesso em 28 out. 2023. 89 Conforme a redação do Art. 231: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 26 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir lhes os títulos respectivos”90. Por outro lado, a realidade nacional é formada por vários “Brasis”, e, entre eles, em várias realidades, a Constituição de 1988 não se efetivou. Para os pobres em situação de rua, várias são as iniciativas para garantir um direito básico e constitucional como a dignidade humana. A realidade dos presídios é tão cruel e degradante que foi objeto de decisão do STF, que reconheceu, no último dia 4 de outubro, a violação massiva de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro. Com a conclusão do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, o Tribunal deu prazo de seis meses para que o governo federal elabore um plano de intervenção para resolver a situação, com diretrizes para reduzir a superlotação dos presídios, o número de presos provisórios e a permanência em regime mais severo ou por tempo superior ao da pena. Em vários Estados há uma forte ligação entre milícias e o poder político local, gerando vários massacres e chacinas91. Esse aumento da violência do Estado é um fenômeno complexo que envolve a falta de uma efetiva política de controle social da atividade policial, a falta de transparência dos recursos aplicados na área, bem como a ausência de dados públicos e sistema federal de dados unificado que garanta um monitoramento efetivo dos CVLI – Crimes Violentos Letais e Intencionais. Os dados que conhecemos hoje são publicados através do esforço do Fórum Brasileiro de Segurança Pública92. Em grande medida outro fator que precisa ser mais pesquisado é a relação entre os policiais e o fundamentalismo religioso. O espelhamento de uma visão mágica da fé e a cada vez maior difusão do neopentecostalismo nesses segmentos promovem uma abstração medieval da ordem social, reproduzindo uma cruzada dos policiais “de Deus” imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis. § 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco. § 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé. § 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º”. 90 Redação do Art. 68 da ADCT. 91 Ver SOARES, Rafael. Milicianos. Como agentes formados para combater o crime passaram a matar a serviço dele. Rio de Janeiro: Objetiva, 2023. 92 Dados disponíveis em https://forumseguranca.org.br/. Acesso em 28 out. 2023. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 27 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 ou que estão em “missão divina” contra o “mal”93. Essa construção simbólica do “justiceiro” retrocede a uma concepção de Estado pré-iluminista, ou seja, criminaliza-se a periferia, assassina-se a juventude negra em detrimento dos direitos e garantias fundamentais de comunidades inteiras. Apesar dos desafios no campo da segurança pública impactarem a vida de todos os brasileiros, os efeitos são mais severos para os grupos que já enfrentam desvantagens decorrentes de circunstâncias fora do seu controle tais como gênero, cor e local de nascimento. As múltiplas facetas da violência incidem mais sobre as mulheres, os negros e os pobres vivendo em regiões periféricas. Em 2022, a taxa de mortes violentas foi de 23,4 por 100 mil habitantes, de acordo com dados do Pacto Nacional pelo Combate às Desigualdades (2023), taxa que classifica o Brasil como um país violento. O relatório ainda destaca as desigualdades raciais, de gênero e regionais nesse tipo de violência. São os jovens negros as principais vítimas da violência urbana. O cenário de desigualdades e de violências historicamente praticadas contra as comunidades quilombolas foi agravado nos últimos cinco anos (2018-2022) no Brasil. Nesse período foram mapeados 32 assassinatos, com registro de casos em 11 estados e todas as regiões do país. Conflitos fundiários e violência de gênero estão entre as principais causas dos assassinatos de quilombolas no Brasil. Ao menos 13 quilombolas foram mortos no contexto de luta e defesa do território94. A violência e a criminalidade são fenômenos multidimensionais e seu enfrentamento é bastante difícil em sociedade complexas e desiguais, como é o caso do Brasil. Há uma engrenagem social que articula miséria, pobreza, exclusão social e falta de oportunidades, gerando múltiplas formas de violências. Portanto, causas sociais são importantes fatores para a compreensão do fenômeno da violência urbana e da criminalidade. O uso legítimo e proporcional da força pelo Estado para a contenção do crime também deve ser considerado. Porém, essa engenharia estatal depende de múltiplos atores. A cooperação entre União, Estados e Municípios nos programas de prevenção e repressão ao crime é fundamental, mas há um jogo de empurra e omissões quando se trata de uma ação orquestrada dos vários entes federativos para o enfrentamento à violência. Ademais, a política de segurança pública no Brasil foi entregue, desde a ditadura, para as agências policiais e, cada vez menos, os governos civis, nos âmbitos estadual e federal, exercem o controle dessas instituições. Em 2022, policiais brasileiros civis e militares mataram 6.430 pessoas, e 173 membros das corporações foram mortos de forma violenta. Os números também foram compilados pelo anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública95. 93 Ver MANSO, Bruno Paes. A fé e o fuzil: crime e religião no Brasil do século XXI. São Paulo: Todavia, 2023. 94 Cf. a Pesquisa “Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil”. Desenvolvida pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e a Terra de Direitos, está disponível em https://terradedireitos.org.br/racismoeviolencia/. Acesso em 19 nov. 2023. 95 O perfil das pessoas que morreram nos confrontos policiais mudou pouco: 99,2% das vítimas eram do sexo masculino, 75% tinham entre 12 e 29 anos e 83,1% eram negros. Entre os mortos em ações policiais, a parcela de pessoas negras mortas foi ainda maior do que quando consideradas todas as mortes violentas, das quais os negros foram 76,4%. Disponível em VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 28 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 Para se ter ideia da violência seletiva estatal, entre 2016 e 2023, as polícias militares e civis da Bahia, Pernambuco e do Rio de Janeiro, além das polícias federal e rodoviária, estiveram envolvidas em 331 chacinas. Chacinas são definidas quando ao menos três civis foram mortos em uma mesma ação. Ao todo, 1.330 pessoas morreram em decorrência de ações policiais nessas chacinas. Os dados são de um levantamento exclusivo do Instituto Fogo Cruzado96. Pode-se dizer que algo em torno de 20% dos homicídios ocorridos no Brasil, anualmente, têm como autores policiais97. As polícias devem fazer parte da solução contra a violência urbana e rural e não do problema. Parece óbvio, mas é o que tem acontecido. O controle externo rígido pelo Ministério Público e o controle social, através de Conselhos Sociais atuantes, com força deliberativa, devem sair do papel. Uma autoridade pública sem monitoramento e controle é uma autoridade hipertrofiada, ou seja, um desvio no Estado Democrático de Direito. O combate de varejo ao tráfico de drogas (que gera a maior violência do Estado contra o cidadão e entope o sistema prisional brasileiro), conhecido como “guerras às drogas” não tem demonstrado efetividade. O crime, que foi se organizando nas últimas três décadas, está, atualmente, dentro de instituições do Estado e na disputa do poder político. Portanto, somente o desmantelamento das organizações criminosas, através de ações de inteligência, articulada por vários atores em diferentes níveis, o sufocamento dos lucros financeiros dessas organizações e a prisão de seus líderes, ou seja, dos “tubarões” invisíveis das ações do Estado, poderá redundar em efetividade no combate ao crime organizado e, posteriormente, na diminuição da violência e da criminalidade. Ocorre, porém, que não são esses os únicos tipos de violência que assolam o Brasil. A violência contra os quilombolas, lideranças indígenas e defensores dos direitos humanos é tão grave quanto constante. Ao mesmo tempo, seringueiros, camponeses e ribeirinhos precisam de um apoio para produção, proteção e garantia de seus direitos e dos seus territórios. Jovens e crianças, no campo e na cidade, estão submetidos aos mais variados riscos, especialmente os que estão nas periferias das cidades. A violência contra a mulher tem apresentado dados cada vez mais impactantes, com abusos e mortes que espantam e indignam os defensores da paz98. No caso dos indígenas, ao lado da violência sistemática, os últimos quatro anos foram marcados por um “desmonte da política indigenista e dos órgãos de proteção ambiental a que o Estado esteve submetido durante os quatro anos sob o governo de Jair https://oglobo.globo.com/brasil/noticia/2023/07/20/numero-de-policiais-mortos-no-brasil-aumenta30percent-em-um-ano.ghtml . Acesso em 03 out. 2023. 96 Disponível em https://www.cartacapital.com.br/sociedade/policias-do-rio-de-janeiro-bahia-epernambuco-cometeram-331-chacinas-em-sete-anos/. Acesso em 03 out. 2023. 97 Em 2022 foram mortas 40.800 pessoas no Brasil. Segundo o UNODC, sistema de dados do Escritório das Nações Unidas para Crimes e Drogas, o Brasil responde por 20,4% dos homicídios no mundo, mesmo tendo apenas 2,7% dos habitantes do planeta. Em 2020, em 102 países morreram 232.676 pessoas; só aqui foram quase 48 mil óbitos. 98 A Rede de Observatórios da Segurança registrou 2.423 casos de violência contra a mulher em 2022, 495 deles feminicídios., conforme o Relatório “Elas vivem: dados que não se calam”. São Paulo e Rio de Janeiro têm os números mais preocupantes, concentrando quase 60% do total de casos. Essa foi a terceira edição da pesquisa feita em sete estados: Bahia, Ceará, Pernambuco, São Paulo, Rio de Janeiro, Maranhão e Piauí, os dois últimos monitorados pela primeira vez. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-03/no-brasil-uma-mulher-e-vitima-de-violencia-cadaquatro-horas. Acesso em 31 out. 2023. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 29 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 Bolsonaro (...)”. Os assassinatos, suicídios e mortalidade na infância”, no universo indígena brasileiro, “avançaram lado a lado com o desmonte das políticas públicas voltadas aos povos originários, como a assistência em saúde e educação, e com o desmantelamento dos órgãos responsáveis pela fiscalização e pela proteção destes territórios”99. Uma reforma em todo o sistema de justiça (considerado moroso, seletivo e punitivista) é fundamental. Além da uma reforma policial, é preciso que outras agências desse sistema (Ministério Público, Poder Judiciário, sistema prisional e órgãos de controle) sejam totalmente repensados para que os vícios de um aparato altamente oneroso e ineficiente possam resultar em mudanças efetivas na segurança pública brasileira, como uma política pública capaz de garantir paz, maior desarmamento e proteção dos direitos humanos. É importante registrar que, a respeito do governo anterior, há indícios de que um ecossistema criminoso, infiltrado e estimulado a partir do núcleo do poder central, operava sem limites. Do centro do poder partiam estímulos ao vale-tudo (inclusive eleitoral), ao armamentismo sem controle, à truculência policial, ao punitivismo penal 100, ao garimpo ilegal, ao narcogarimpo, ao genocídio de comunidades indígenas, à participação de milicianos em órgãos públicos, entre outros fatores que minam as bases do sistema de segurança. É preciso recordar, também, a título de visão histórica, um conjunto de eventos nos momentos finais do governo anterior para dimensionar o nível de comprometimento de órgãos do Estado na área da segurança pública: (a) em 12 de dezembro de 2022 houve clara omissão da Polícia Militar do DF nas ações de vandalismo em Brasília, inclusive na tentativa de invasão da sede da Polícia Federal; (b) no dia 24 de dezembro de 2022, deuse o episódio da bomba, armada nas proximidades do aeroporto internacional de Brasília, episódio transcorrido com total omissão da PF e das Forças Armadas e ação pontual, somente, da Polícia Civil do DF; (c) e o boicote evidente da Polícia Militar do DF e das Forças Armadas nos eventos de 8 de janeiro de 2023. Esse conjunto de eventos atentatórios ao Estado Democrático, protagonizados por agentes públicos da área da segurança evidencia o nível de desorganização e contaminação do sistema de segurança pública brasileiro, que se soma às mazelas históricas que caracterizam esse sistema e que demonstram as dificuldades de reorganização a curto prazo, pelo atual governo. 99 Cf. CIMI, Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, 2023. Disponível em https://cimi.org.br/wp-content/uploads/2023/07/relatorio-violencia-povos-indigenas-2022-cimi.pdf. Acesso em 31 out. 2023. 100 É possível definir o “punitivismo” a partir dos seguintes autores: ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A palavra dos mortos: conferências de criminologia cautelar. São Paulo: Saraiva, 2012. _____. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991. GENELHÚ, Ricardo. Do discurso da impunidade à impunização: o sistema penal do capitalismo brasileiro e a destruição da democracia. Rio de Janeiro: Revan, 2015; CARVALHO, Salo. O papel dos atores do sistema penal na era do punitivismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. Este último aponta que “o sintoma contemporâneo ... vontade de punir, atinge os países ocidentais e ... desestabiliza o sentido substancial de democracia, propicia a emergência das macropolíticas punitivistas (populismo punitivo), dos movimentos políticos-criminais encarceradores (lei e ordem e tolerância zero) e das teorias criminológicas neoconservadoras (atuarismo, gerencialismo e funcionalismo sistêmico)”. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 30 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 3.6. Sinais da economia brasileira A economia brasileira, como a maioria das demais, sofreu uma queda expressiva no ritmo de crescimento econômico, como indica o Gráfico 2. Uma crise na forma de um “V” entre os anos da Pandemia. Gráfico 2 31 Segundo a equipe do Grupo de Conjuntura Dimac/Ipea101, o desempenho da economia brasileira surpreendeu nos últimos meses, ou seja, os resultados são melhores que as expectativas. As taxas de crescimento econômico estão sendo revisadas para cima e a taxa de inflação para baixo (equipe do IPEA e Boletim FOCUS do BACEN que consulta os agentes do mercado). Na perspectiva global, o aumento da demanda por commodities foi elevado, ampliando a participação de produtos brasileiros nos mercados internacionais, em especial soja e petróleo. A maior demanda também está relacionado à reabertura da economia chinesa, e, como reflexo da redução na oferta dos concorrentes (Argentina e Estados Unidos), vem gerando expansão de nosso mercado externo. O resultado é positivo, inclusive no combate à inflação, mas deixa ainda mais visível a reprimarização na pauta de exportações. Se, em 2002, os 10 produtos mais importantes correspondiam a 28% da pauta, em 2022 passaram a representar 54%; soja, petróleo e minério de ferro somam 30% das exportações, não constando mais automóveis e aviões nessa lista (MDIC). 101 Disponível em https://www.ipea.gov.br/cartadeconjuntura/index.php/2023/09/desempenho-do-pib-nosegundo-trimestre-de2023/#:~:text=O%20PIB%20avan%C3%A7ou%200%2C9,o%20segundo%20trimestre%20de%202022. Acesso em 28 out. 2023. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 Esta reprimarização da pauta de exportações tem impacto direto sobre o setor industrial e a dinâmica da economia brasileira como um todo e consequência da desindustrialização de nossa economia. O novo Governo Federal, sob o comando do Vicepresidente, está tentando construir uma proposta de promoção da indústria em novas bases. Na perspectiva doméstica, os juros elevados pressionaram para baixo a atividade econômica, além de elevarem os níveis de endividamento das empresas, das famílias (fragilidade financeira) e do setor público, tendo em vista que a cada 1% de elevação da Selic, temos um aumento no gasto anual de R$ 44,8 bilhões com juros da dívida102! Mesmo com a redução efetuada na Selic, esse gasto continua aumentando, segundo dados do próprio Banco Central (Bacen), devido ao aumento da dívida bruta, em grande parte decorrente da necessidade de financiamento dos juros dessa mesma dívida. O aumento da inadimplência por parte das famílias fez com que parcela dos rendimentos fosse direcionada para pagamentos de juros. Segundo o Bacen, a parcela do rendimento das famílias destinada ao pagamento de juros saltou para 28%, o maior nível desde 2007. O projeto de lei para fixação de limites aos juros do cartão de crédito e o Desenrola Brasil são decorrentes desse agravamento da saúde financeira das famílias brasileiras103. O Programa Desenrola Brasil104 já apresenta resultados, em especial na expansão do crédito para consumo. Por outro lado, a inadimplência subiu em agosto 105, o que mostra a insuficiência de projetos como esse enquanto não for enfrentada a causa desses problemas: as altíssimas taxas de juros no Brasil. Cabe aqui ressaltar a iniciativa da Auditoria Cidadã da Dívida – em conjunto com outras entidades e o Observatório de Finanças e Economia de Francisco e Clara – de encaminhar à Comissão de Legislação Participativa (CLP) da Câmara dos Deputados proposta de Projeto de Lei Complementar que limita as taxas de juros de quaisquer operações financeiras a 12% ao ano ou o dobro da Taxa Selic (o que for menor), e acaba com a “Bolsa Banqueiro”, ou seja, a remuneração da sobra de caixa dos bancos, garantida diariamente pelo Banco Central e paga aos bancos sobre dinheiro que sequer pertence a eles, fazendo com que eles prefiram receber essa remuneração do que emprestar a empresas e pessoas, e só o fazendo mediante cobrança de juros elevadíssimos. A referida proposta de projeto de lei foi acolhida pela CLP e agora tramita na forma do Projeto de Lei Complementar nº 104/2022, atualmente na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados. Por outro lado, a dificuldade financeira para as empresas ainda persiste, primordialmente na operação de Capital de Giro. As empresas dependem de redução da taxa de juros para sua expansão e sustentabilidade financeira. Depois de um período árduo 102 Disponível em https://www.bcb.gov.br/content/estatisticas/hist_estatisticasfiscais/202309_Texto_de_estatisticas_fiscais. pdf. Acesso em 28 out. 2023. 103 Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/994940-camara-aprova-projeto-que-limita-juros-docartao-de-credito-e-cria-o-programa-desenrola/ 104 Disponível em https://www.gov.br/fazenda/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/desenrolabrasil 105 Disponível em https://www.serasa.com.br/limpa-nome-online/blog/mapa-da-inadimplencia-erenogociacao-de-dividas-no-brasil/ VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 32 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 de juros elevados, o Banco Central começou a reduzir a taxa Selic diante do recuo dos preços e da pressão política exercida pelo Executivo. A conjuntura econômica para 2023 apresenta uma mistura de políticas econômicas, condicionadas principalmente ao chamado “Novo Arcabouço Fiscal” (Lei Complementar 200/2023), que limita o crescimento real das despesas primárias (que compreende todos os gastos com a estrutura do Estado e os investimentos sociais em serviços prestados à população) a apenas 0,6% ao ano, podendo chegar a 2,5% ao ano de crescimento real, desde que obedecidas outras condicionantes estabelecidas na mesma lei, como o crescimento real da arrecadação e o atingimento de metas de superávit primário. No contexto deste arcabouço, ficam extremamente limitadas as possibilidades de resolução dos problemas sociais indicados nos itens anteriores, enquanto os gastos com juros e amortizações do Sistema da Dívida e seus mecanismos crescem sem limite ou controle algum e consomem cerca da metade do orçamento federal. Adicionalmente, apesar das reduções graduais da taxa básica de juros, continua em vigor uma política monetária contracionista, com o Brasil mantendo seu título de campeão mundial de juros básicos reais, de quase 8% ao ano, enquanto países desenvolvidos apresentam juros reais muito baixos ou negativos, como a Zona do Euro (taxa negativa de -0,67%), Japão (taxa negativa de -3,20%) ou Estados Unidos (1,74%)106. Mas a política monetária já vem dando sinais de uma trajetória parcimoniosa de redução na Selic mediante um processo prévio de desinflação. E, por isso, as expectativas para a taxa de crescimento econômico serem revisadas para cima. Conforme o último Boletim Focus107, publicado pelo Banco Central, a estimativa para o crescimento do PIB é de 2,92% para este ano, com a Selic finalizando o ano em 11,75%. 3.7. A questão da transição religiosa no Brasil É preciso considerar – num cenário de profundas e rápidas mudanças que vêm ocorrendo nos últimos anos –, que o Brasil passa por um intenso (e contínuo) processo de transição religiosa. Alguns estudiosos têm se esmerado nas pesquisas sobre esse fenômeno e produzido uma série de análises nos últimos anos. Para os objetivos de uma rápida reflexão sobre tema tão relevante, considerando que a sociabilidade brasileira está alicerçada, em boa medida, na religiosidade cristã e que o predomínio que a Igreja Católica manteve por quase 450 anos está em “xeque”, vamos considerar alguns tópicos dessas análises108. É possível dizer que o fenômeno da transição religiosa brasileira se desdobra em quatro movimentos: “declínio absoluto e relativo das filiações católicas; aumento 106 Disponível em https://clubedospoupadores.com/ranking-juros-reais. Acesso em 28 out. 2023. Disponível em https://www.bcb.gov.br/publicacoes/focus?fbclid=IwAR2XQpu8rSaEF7l5jkHQT03BZXBxg8xLRJtYDL Dm_QDNYAkIxoMmxUBOn2c. Acesso em 28 out. 2023. 108 Ver os estudos de José Eustáquio Diniz Alves, consolidadas no artigo “Projeções indicam que os evangélicos serão maioria no Brasil nos próximos dez anos”. Artigo completo disponível em https://projetocolabora.com.br/ods16/transicao-religiosa-evangelicos-serao-maioria-nos-proximos-dezanos/. Acesso em 29 set. 2023. 107 VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 33 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 acelerado das filiações evangélicas; crescimento do percentual das religiões não cristãs; aumento absoluto e relativo das pessoas que se declaram sem religião” 109. Conforme se observa na tabela abaixo, o catolicismo começou a reduzir fortemente a partir da década de 1970. O número de católicos era de 121,8 milhões (83% da população) em 1991, 124,9 milhões (73,6%) em 2000 e 123,3 milhões em 2010. Percebe-se que o número absoluto de católicos atingiu o valor máximo no ano 2000 e, pela primeira vez na história brasileira, o número absoluto de católicos caiu na década inaugural do século XXI. Além disto, o decrescimento relativo que estava em 1% por década, passou para 1% ao ano. Concomitantemente, entre 1991 e 2010, os evangélicos passaram a crescer 0,63% ao ano, as outras religiões cresceram 0,38% ao ano e os sem religião cresceram 0,43% ao ano. Veja-se na Tabela 4: Tabela 4 34 José Eustáquio Diniz Alves informa que “os evangélicos têm conseguido alcançar multidões mais amplas na medida em que possuem grande descentralização e autonomia, rápida formação de pastores, cultos dinâmicos, musicais e alegres e a combinação de megatemplos em grandes avenidas, com a abertura de minitemplos perto das comunidades. Um marco do crescimento evangélico no Brasil tem sido o uso intensivo das diversas mídias (jornais, rádios, televisão, internet, redes sociais, WhatsApp etc.) e a presença atuante na política (especialmente na Frente Parlamentar Evangélica)”, essa última no Congresso Nacional110. O evento mais recente que mostra a capilaridade dos evangélicos, especialmente dos denominados “neopentecostais”111, na ocupação de Ver os estudos de José Eustáquio Diniz Alves, consolidadas no artigo “Projeções indicam que os evangélicos serão maioria no Brasil nos próximos dez anos”. Artigo completo disponível em https://projetocolabora.com.br/ods16/transicao-religiosa-evangelicos-serao-maioria-nos-proximos-dezanos/. Acesso em 29 set. 2023. 110 Idem. 111 O neopentecostalismo teve início na segunda metade dos anos de 1970. Cresceu, ganhou visibilidade e se fortaleceu no decorrer das décadas seguintes. A Universal do Reino de Deus (1977, RJ), a Internacional da Graça de Deus (1980, RJ), a Comunidade Evangélica Sara Nossa Terra (1976, GO) e a Renascer em Cristo (1986, SP), fundadas por pastores brasileiros, constituem as principais igrejas neopentecostais do país. No plano teológico, caracterizam-se por enfatizar a guerra espiritual contra o Diabo e seus representantes na terra, por pregar a Teologia da Prosperidade, difusora da crença de que o cristão deve ser próspero, saudável, feliz e vitorioso em seus empreendimentos terrenos, e por rejeitar usos e costumes de santidade pentecostais, tradicionais símbolos de conversão e pertencimento ao pentecostalismo. Ver MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Ed, Loyola, 2005. 109 VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 espaços de poder, se deu nas eleições para os conselhos tutelares112, realizadas em 1º de outubro deste ano. 3.8. Os desafios amazônicos A Cúpula da Amazônia (ocorrida em 8 e 9 de agosto), sob o ritmo das celebrações e das atividades dos 200 anos da Adesão do Pará (15 de agosto), possibilitou ao Brasil e aos brasileiros perceber que têm desafios amazônicos. São enormes. E não deverão sair da pauta social e política. Em novembro de 2025, o Brasil sediará a 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 30), em Belém do Pará. Ela deverá ser um momento de pactuação de novas metas ambientais em todo o mundo. A região sempre conviveu com as expectativas da abundância de suas imensas riquezas, do abandono que esteve presente no sentimento e na realidade da sua população, ao longo da história, e do fato de ser a maior floresta tropical do mundo, que é essencial na regulação do clima do planeta. A retomada de sua importância decorre de muitos fatores. A Amazônia é fundamental como bioma, para todo o planeta e seus outros biomas, para as populações, povos e suas relações sociais e ambientais. Como região abrange, além do Brasil, o maior país amazônico, Bolívia, Colômbia, Guiana, Peru, Venezuela, Equador e Suriname. Estamos atravessando, em todo o mundo, como já dito, um estado de emergência climática. E, como sempre, há uma profunda necessidade de modificar as desigualdades que acometem o país e a América do Sul. Na Cúpula da Amazônia, no contexto da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), que tem sede em Brasília, foi possível a realização dos “Diálogos Amazônicos”, com uma grande participação de movimentos sociais, dos representantes dos países, da imprensa e das organizações da sociedade civil. Além das festas, os intensos debates receberam cerca de 35 mil pessoas, que avaliaram diversas temáticas socioambientais. Apesar de não se ter assumido compromissos mais claros, como a proposta da delegação brasileira de desmatamento zero até 2030 na região, ou o fim da exploração de petróleo, sugerida pela Colômbia, a mais importante conquista foi estabelecer uma retomada das profundas questões da região. São tempos de valorização e reconhecimento de que é possível a participação social nas discussões, aprofundamento e decisões relacionadas a temas que envolvem e necessitam da cooperação amazônica para o cuidado com o bioma, pensando o futuro do desenvolvimento sustentável na Amazônia a partir dos saberes, culturas e caminhos ancestrais dos seus povos. Não dá para falar e definir programa de cooperação da Amazônia, na Amazônia, para Amazônia sem escutar e dialogar com os amazônidas. Daqui em diante o período será de mais discussões. A COP 30 será uma possibilidade de o governo brasileiro assumir maiores compromissos, reforçar o protagonismo na questão climática, oferecer as necessárias condições de sua realização, 112 Conselhos tutelares são órgãos públicos criados com o objetivo de defender os direitos de crianças e adolescentes. Funcionam no âmbito municipal. Grandes cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador, têm vários deles, divididos por regiões ou distritos. A sua base legal é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 35 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 ao mesmo tempo em que terá que lutar para apresentar mais e melhores soluções para a floresta e para seus povos. Não é mais possível propor soluções que não tragam, em sua essência, a dimensão social ao lado da dimensão ambiental, partes fundamentais e integradas de um planeta que está muito próximo do ponto de não retorno da floresta. Se não cuidarmos da Amazônia com medidas concretas, vai ser muito difícil corrigir o desastre posteriormente. Os números são ousados: (a) proteger 80% do território até 2025, através de um plano que garanta a cessação de toda a deflorestação ilegal até 2025; (b) atingir a deflorestação legal zero até 2027; (c) revogar as leis e disposições que promovem a destruição da Amazônia; e (d) reabilitar, recuperar e restaurar as áreas desflorestadas e degradadas113. É muito necessário! A liderança brasileira pode ser decisiva na construção de tais iniciativas a partir do atual governo. Os governadores, prefeitos e demais autoridades públicas de toda a região são, também, muito importantes. Mas se não houver o compromisso dos demais países, da sociedade brasileira e de todos com a proteção da Casa Comum, não se vai chegar a uma situação que garanta (minimamente) a vida da Criação, tanto na Amazônia como em todo o planeta. 4. Conclusões e sinais de esperança Passados 11 meses do novo governo, o país continua dividido. Em recente pesquisa da Quaest, de outubro de 2023, ainda permanece essa divisão “política” no Brasil. Em 30 de outubro de 2022, um levantamento feito pelo instituto revelou um total de 72% de brasileiros que, naquele momento, enxergavam um país dividido, contra 19% que avaliavam o Brasil como um país unido. Ao todo, as estatísticas evoluíram para um ápice na polarização em dezembro do mesmo ano, com 90% enxergando um país dividido e 8% um país unido. Em outubro de 2023, o cenário é de aparente melhora: 64% dos entrevistados enxergam um cenário de divisão, e 27% de união. Entretanto, essa queda é apenas aparente. Ela se concentra no campo dos apoiadores do atual governo. No campo do antipetismo, a posição está cristalizada114. Na sociedade e entre as instituições existem múltiplas desconfianças diante dos desafios e das incertezas. É certo que se retomou o “velho anormal” 115 após a posse do novo governo. As instituições da República conseguiram manter as formas, após o período de ataques à democracia que redundaram no 8 de janeiro. Mas não há muito a se celebrar ante à extensão de nossos problemas cotidianos, sem contar as enormes questões estruturais que assolam o planeta, e de forma mais próxima, o Brasil. E nos faltam as 113 Conforme a Carta da Assembleia dos Povos da Terra pela Amazônia, referendada em 7 de agosto de 2023, disponível em https://www.cartacapital.com.br/wp-content/uploads/2023/08/23.08.08releasecartaAPTA.pdf. Acesso em 28 out. 2023. 114 Análise completa da pesquisa está disponível em https://congressoemfoco.uol.com.br/area/pais/polarizacao-persiste-um-ano-apos-eleicao-de-lula-revelapesquisa/. Acesso em 31 out. 2023. 115 Expressão usada após a pandemia da COVID 19, o “velho anormal” surge neste contexto de crise e mudanças. Como exemplo ver o debate “Atravessando a quarentena: o novo normal e o velho anormal”. Disponível em www.bahia.fiocruz.br/live-atravessando-a-quarentena-o-novo-normal-e-o-velho-anormal/. Acesso em 31 out. 2023. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 36 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 fórmulas, que muitos chamam de “projeto nacional”, para movimentar os debates e mobilizar os setores da sociedade. Estamos diante de mais um período de disputas, antevendo a chegada de um fim do ano de 2023 em que continuaremos incertos. Nessa quadra, buscamos no horizonte e na presença da Igreja, alguns sinais de esperança. É possível que as sementes plantadas em 2023 tendam a germinar e dar frutos nos próximos anos para melhorar o desempenho e, sobretudo, redirecionar a economia brasileira. Acreditamos muito nas realidades e na força que surge das comunidades: a luta em defesa dos territórios e a teia dos povos das florestas, das cidades, dos campos e das águas, o trabalho da “Economia de Francisco e Clara”, a presença constante de tantos projetos de solidariedade, a força dos movimentos sociais, como o movimento negro116 e o movimento indígena117, o papel das escolas nas comunidades, a organização e a mobilização das mulheres, a forte articulação das pastorais sociais, as Campanhas da Fraternidade118, tão proféticas, a presença da Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM) e os projetos de economia solidária e agroecologia, são sinais importantes, dentre tantos outros que nos inspiram. A sustentabilidade ambiental é preocupação que ganhou força nas políticas federais (haja visto o inédito protagonismo do Ministério do Meio Ambiente). Do mesmo modo, o Ministério dos Povos Indígenas, primeira experiência na história brasileira, tem, embora com desafios, conseguido impor a sua presença nos debates políticos, como no caso do Marco Temporal, que segue em debate nas tensas relações entre os três poderes da República. A proposta de retomada da industrialização está sendo construída com a pegada da “inovação, descarbonização, inclusão social e crescimento sustentável”, um dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas119. Claro que há Um grande exemplo é, em 2023, com o tema “Mãe Negra Aparecida, leve o clamor do seu povo ao seu filho Jesus”, a Romaria das Comunidades Negras, que ocorreu em 4 de novembro, no Santuário Nacional da Mãe Aparecida, coordenada pela Pastoral Afro-Brasileira, transformadora, comprometida e com presença marcante no país. Disponível em https://www.cnbb.org.br/mes-da-consciencia-negra-resistirexistir-e-fortalecer-a-identidade-e-o-clamor-da-xxvii-romaria-das-comunidades-negras/. Acesso em 19 nov. 2023 117 Veja-se o importante documento “Chamado para uma Ação Urgente” elaborado por organizações indígenas, indigenistas e socioambientais latino-americanas e encaminhado aos nove chefes de estado que compõem a Amazônia – Brasil, Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Venezuela, Suriname, Guiana e Guiana Francesa. O documento encaminhado em 27 de outubro também foi endereçado à Secretaria Geral da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Nele, as organizações alertam que a Amazônia está desidratada, que o “ponto de virada” chegou e que “os governos da Amazônia devem assumir a liderança em ações articuladas”. Elas advertem ainda para importância de se tomar medidas imediatas para conter os avanços devastadores das mudanças climáticas e para insistente implantação de projetos desenvolvimentistas em locais socio ambientalmente vulneráveis. As organizações também indicam medidas de soluções específicas para resolver os problemas. Disponível em https://cimi.org.br/2023/10/acao-urgente-amazonia-nove-paises/. Acesso em 19 nov. 2023. 118 No próximo ano, serão celebrados os 60 anos da Campanha da Fraternidade, iniciativa que ilumina a vivência da Quaresma no Brasil, à luz da caridade cristã. O tema escolhido pelos bispos é “Fraternidade e Amizade Social” e o lema “Vós sois todos irmãos e irmãs” (Mt 23, 8). 119 Meta 9.2.: “Promover a industrialização inclusiva e sustentável e, até 2030, aumentar significativamente a participação da indústria no emprego e no produto interno bruto, de acordo com as circunstâncias nacionais, e dobrar sua participação nos países de menor desenvolvimento relativo”. Disponível em https://www.ipea.gov.br/ods/ods9.html. Acesso em 19 nov. 2023. 116 VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 37 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 muito a ser debatido para transformar proposições em consistentes relações sociais e de produção. Mas é um início que merece toda a nossa atenção. As políticas educacionais ganharam prioridade, em especial as voltadas ao ensino básico (que compreende a educação infantil, o ensino fundamental e ensino médio – básico e profissional). No campo da saúde, o Ministério da Saúde busca reforçar o SUS e propõe usar o poder de compra desse amplo sistema para promover a produção nacional de medicamentos e de vacinas ao invés de priorizar a importação. Além disso, medidas para retomar a cultura brasileira de vacinação e enfrentar a desinformação são mais que necessárias120. A preocupação com a fome tem revalorizado a política de apoio à produção de alimentos para consumo interno, priorizando a agropecuária da base familiar e a agroecologia. A Igreja Católica, no Brasil, por meio da CNBB, continua se posicionando a favor da vida, desde a sua concepção até o seu declínio natural, da ecologia integral, da justiça social e da igualdade entre todos, fonte dos direitos e da cidadania. Ela caminha, diante de toda uma conjuntura exigente, com esperança e caridade. Nesse mesmo sentido, essa caminhada brasileira reconhece a importante luz que veio de Roma. O Informe resumido do Sínodo dos Bispos121, divulgado em 28 de outubro, aprovou uma síntese que trata da opção pelos pobres, de paz, de economia solidária, de salário básico universal, de justiça social, da superação do neocolonialismo e do neoliberalismo, de pleno reconhecimento ao protagonismo dos movimentos sociais. Exortam os ali reunidos para a missão e para a sinodalidade, sem cariz eclesiástico, em uma Igreja em saída, para realizar a política como dimensão sublime da caridade. E sussurra, como vento e como Espírito, para “continuar a viagem”, que “não se trata de dispersar-se em muitas frentes, perseguindo uma lógica de eficiência e procedimental. Trata-se, melhor, de aproveitar, das muitas palavras e propostas (...), a que mais se parece com uma pequena semente, mas plena de futuro, e imaginar como entregá-la à terra que a fará amadurecer para a vida de muitos”122. Ela nos ilumina. Um exemplo é o “Movimento Nacional pela Vacinação”, que busca retomar as altas coberturas vacinais do Brasil, disponível em https://www.gov.br/saude/pt-br/campanhas-da-saude/2023/vacinacao. Acesso em 19 nov. 2023. Sobre a vacinação, em evento noticiado pela CNBB, o secretário-geral da CNBB, Dom Ricardo Hoepers, declarou que a vacinação é “... uma causa nobre. Entendemos que a CNBB, através dos seus regionais e das dioceses, pode somar-se a esse trabalho. Quando levamos a consciência da saúde integral da pessoa humana, estamos levando o Evangelho também. Jesus veio e disse: ‘eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância’. Portanto, vamos cuidar dessa vida que nos foi dada”. Dom Ricardo acredita que a vacina deve chegar a toda população, principalmente, às famílias que têm suas crianças e aquelas pessoas que vivem em situação de vulnerabilidade. “É mais do que uma causa nobre, é um dever moral, como diz o Papa Francisco. A vacinação também é um ato de amor”. Disponível em https://www.cnbb.org.br/cnbb-e-convidada-pelo-cnmp-a-aderir-ao-pacto-nacional-pela-conscienciavacinal/. Acesso em 19 nov. 2023. 121 XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, Primeira Sessão, de 4 a 29 de outubro de 2023, Informe resumido: UMA IGREJA SINODAL EM MISSÃO, 28 de outubro de 2023. 122 Idem, “Para continuar el viaje”, tradução livre do castellano. 120 VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 38 NUP CNBB: 00000.9.005511/2023 Este texto foi concluído no Dia Mundial dos Pobres, data criada pelo Papa Francisco123. Em sua mensagem para o ano de 2023124, com inspiração no livro de Tobias125, o Papa destaca a necessidade do empenho de todos e de forma constante no acolhimento e na transformação dessa realidade: “A pobreza permeia as nossas cidades como um rio que engrossa sempre mais até extravasar; e parece submergir-nos, pois o grito dos irmãos e irmãs que pedem ajuda, apoio e solidariedade ergue-se cada vez mais forte”126. Ele cita diversos problemas contemporâneos, que também geram pobreza: as especulações financeiras que levam a um aumento dramático dos preços e do custo de vida, a desordem ética no mundo do trabalho, a cultura que leva jovens a se sentirem “falidos” e até mesmo ao suicídio, e os cenários de guerra são denunciados127. E indica os gestos concretos e a presença necessária a partir de uma relação pessoal 128. No tempo do Advento, diante dos ventos que virão, há muita lida e muita luta. Elas não substituem a esperança, essa nossa irmã, pois são caminhos e sinais do presente e do futuro. Fortes e duros, como as realidades aqui suscitadas. Mas nossos desafios são, da mesma forma, imprescindíveis. Com esperança, pois ela “não é um lenitivo que adormece a dor até que ganhemos coragem para tratar a sério da vida, mas uma força que já hoje nos motiva para a transformação da história”129. Esperamos o que não vemos, mediante a perseverança130. A esperança é isso, perseverança. Dinâmica e concreta! 123 O Dia Mundial dos Pobres foi instituído pelo Papa Francisco, em 2017, na conclusão do Jubileu da Misericórdia e é celebrado no domingo que antecede o Dia de Cristo Rei, que ocorre no último domingo do Ano Litúrgico da Igreja Católica, geralmente em novembro. A data tem como objetivo chamar a atenção para a situação das pessoas em situação de pobreza e marginalização e incentivar a solidariedade e o apoio aos menos favorecidos. 124 VII Dia Mundial dos Pobres. 125 “Não desvies o rosto de nenhum pobre” (Tb 4,7). 126 Mensagem do Santo Padre Francisco para o VII Dia Mundial Dos Pobres, XXXIII Domingo do Tempo Comum, 19 de novembro de 2023. Disponível em https://www.vatican.va/content/francesco/pt/messages/poveri/documents/20230613-messaggio-viigiornatamondiale-poveri-2023.html. Acesso em 19 nov. 2023. 127 Idem. 128 Idem, 8b: “É fácil cair na retórica quando se fala dos pobres. Tentação insidiosa é também parar nas estatísticas e nos números. Os pobres são pessoas, têm rosto, uma história, coração e alma. São irmãos e irmãs com os seus valores e defeitos, como todos, e é importante estabelecer uma relação pessoal com cada um deles”. 129 MENDONÇA, José Tolentino de. A esperança digna de espanto. Disponível em: https://centroloyola.org.br/revista/outras-palavras/desdobramentos/1586-a-esperanca-digna-de-espanto. Acesso em 28 out. 2023. 130 Ro 8, 25. VERIFIQUE A AUTENCIDADE DESTE DOCUMENTO EM: http://cnbb.ikhon.com.br/cadastroUsuarioExterno/verificacao.aspx INFORMANDO O CÓDIGO: 71CB118 39