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ESCOLA SEM PARTIDO: DE QUEM E PARA QUEM? Keoma Ferreira Antonio 1 Mayara Dantas Bezerra de Oliveira 2 RESUMO O presente artigo se propõe a fazer uma breve reflexão acerca do Projeto de Lei em tramitação no Congresso e no Senado Federal que visa incluir o programa “Escola sem Partido” entre as diretrizes e bases do ensino, de modo a buscar sua consistência lógica e sua constitucionalidade. Na sequência da análise de suas premissas, será dado início a exposição e reflexão de alguns dos pontos abordados no texto do Projeto de Lei em discussão. Além disso, investigaremos as possíveis motivações para confecção do projeto. Palavras-chave: Escola sem Partido, Projeto de Lei, educação, doutrinação. ABSTRACT The present article proposes to do a brief reflection about draft law in the Congress and in the Federal Senate that aims to include the "School without Party” program as guidelines and bases of education, in order to seek its logical coherence and its constitutionality. Following the analysis of its premises, we began the presentation and reflection of some of the points addressed in the text of the Bill under discussion. In addition, we will investigate possible motivations for project design. Keywords: Scholl without Party, draft law, education, indoctrination. COMO SURGE O PROJETO ESCOLA SEM PARTIDO 1 Licenciado em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte e mestrando em Filosofia pela mesma Universidade. 2 Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 1, n. 15, Maio, 2017, 296-307. 297 Encontra-se em tramitação no Congresso Nacional e no Senado Federal, sob a apresentação, na primeira casa, do Deputado Izalci Lucas (PSDB-DF) o Projeto de Lei 867/2015 e na segunda casa pelo Senador Magno Malta (PR-ES) o PL 193/2016. Ambos os projetos apresentam em seu texto um teor com, basicamente, as mesmas reivindicações, no entanto, o projeto que tramita no Senado, por ser mais recente, possui algumas alterações, sobretudo no que tange à discussão de gênero no ambiente da sala de aula, esta, passando a ser proibida. Trataremos neste artigo somente o PL que tramita no senado uma vez que este é mais abrangente e atual. Embora a exposição do PL tenha sido realizada pelo deputado e o senador supracitados em suas respectivas casas de atuação, o texto teve como autor, o criador do movimento Escola Sem Partido, o advogado Miguel Nagib que é também o coordenador do sítio na internet que leva o mesmo nome do projeto. O movimento surgiu em 2004, mas somente em 2014, a pedido do deputado Flávio Bolsonaro (PSC-RJ), Nagib escreve o primeiro projeto de lei. Para analisar o PL, é necessário observar também as premissas que a sustentam. A justificativa do PL, apresenta já em seu início a sua origem: “Esta proposição se espelha no anteprojeto de lei elaborado pelo movimento Escola sem Partido” (www.escolasempartido.org). No sítio do referido movimento, é possível encontrar em sua Home na barra superior a especificação de quem são: EscolasemPartido.org é uma iniciativa conjunta de estudantes e pais preocupados com o grau de contaminação político-ideológica das escolas brasileiras. (...) A pretexto de transmitir aos alunos uma “visão crítica” da realidade, um exército organizado de militantes travestidos de professores prevalece-se da liberdade de cátedra e da cortina de segredo das salas de aula para impingir-lhes a sua própria visão de mundo. 3 No menu à esquerda da página, pode-se ver alguns links que levam à diversas outras páginas do próprio sítio, entre eles, uma traz como título ‘Corpo de Delito’, nela são apresentadas, segundo a descrição “artigos, textos e documentos que comprovam a instrumentalização do ensino para fins políticos e ideológicos”. Esse é o ponto onde apresentam as premissas que dão sustentação para o PL, uma vez que o mentor do movimento em questão, é mentor do texto do PL e também da página na internet. São expostos vídeos e áudios de aulas que abordam sistemas políticos como socialismo e comunismo, denúncias de 3 http://escolasempartido.org/quem-somos (Acessado em 11/12/2016 às 14:55). ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 1, n. 15, Maio, 2017, 296-307. 298 possíveis doutrinações marxistas e trechos retirados das redes sociais de professores. Ainda no menu à esquerda da página, encontramos a exclamação ‘Denuncie!’ referindo-se à importância em fazer exposição do professor que estiver, de algum modo, doutrinando os alunos. O sítio ainda apresenta uma página intitulada ‘Flagrando o Doutrinador’ onde é possível ver a exposição do nome, escola e cidade de um professor que foi “filmado por uma de suas vítimas em pleno ato de incitação de ódio aos EUA”. Logo em seguida, pontos são apresentados como forma de alertar sobre “doutrinação ideológica”. Se admitirmos a premissa de que as escolas estão reproduzindo uma determinada ideologia que beneficia uma linha teórica de pensamento político, poderíamos afirmar que esta não se faz à revelia do Estado, uma vez que de acordo com a justificativa para o Projeto de Lei em voga na presente discussão, alega: “É fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou responsáveis. ”4 O texto original da justificativa ainda menciona que a doutrinação ideológica e política está em vigor nos últimos vinte ou trinta anos no Brasil. É importante ressaltar o regime político vigente no país se voltarmos a traz no período próximo a trinta anos, qual seja, a Ditadura Militar. Próximo à data dos trinta anos, também está a promulgação da Constituição Federal de 1988, que comemorou no ano em curso, vinte e oito anos. É sabido os avanços garantidos no campo dos diretos humanos à população brasileira após um longo período de regime de cerceamento de direitos civis e políticos que foi a ditadura militar. Desde o ano da promulgação da Constituição Federal até agora, o Brasil teve sete presidentes com partidos de diferentes ideologias, não sustentando, desse modo, a ideia de que a escola estava apenas assumindo o papel, que Althusser nomeia como Aparelho Ideológico do Estado, mas seguindo algo que vai além de ideologias de partidos, a própria Constituição. 4 http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1050668 11/12/2016 às 16:30) (Acessado ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 1, n. 15, Maio, 2017, 296-307. em 299 O QUE PROPÕE O PROJETO ESCOLA SEM PARTIDO O projeto em voga propõe novas regras de conduta durante às aulas e já em seu Art. 2°, inciso I, traz como proposta a “neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado”. É sabido a importância do favorecimento de um ambiente escolar que promova a liberdade da multiplicidade de saberes buscando sempre que possível um discurso que não favoreça apenas uma corrente de pensamento. A fala sobre neutralidade política e ideológica remete a corrente filosófica do positivismo, onde um de seus maiores representantes, Durkheim, ressalta a imprescindibilidade da neutralidade da ciência; em contrapartida, Max Weber destaca que esta não é possível e propõe o “método compreensivo” que busca fatos históricos para compreender a presente realidade do ‘objeto’ estudado (NERY, 2007:36). No que tange à neutralidade religiosa, o Brasil é um Estado laico, assim, todas as instituições ligadas ao Estado não podem agir pelo favorecimento de um determinado segmento religioso e em detrimento de outro ou outros, mas sim, oferecer o mesmo tratamento e garantir oportunidades iguais a todos. O inciso IV do PL fala sobre a “liberdade de crença”, algo que já é garantido pela Constituição Federal. O Art. 3° traz em seu texto: São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes.5 Diante disso fica evidente a inconsistência de tal proposta uma vez que (I) demandaria por parte do docente conhecimento total das convicções morais, religiosas e ideológicas de cada discente e seus familiares; (II) demandaria dele a capacidade de produzir discursos unicamente em consonância com todas as convicções morais, religiosas e ideológicas dos discentes e seus familiares; (III) demandaria ainda do docente a capacidade de, somente em um processo de ruminação do senso comum, pois foi isto que restou a este, possibilitar o conhecimento e desenvolver o pensamento crítico nos discentes. Constata-se, inequivocamente, a impossibilidade lógica de atender a tais demandas que, por conseguinte, expressam não só a inconsistência do texto do Artigo supracitado, tal como, se aprovado, a 5 Idem ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 1, n. 15, Maio, 2017, 296-307. 300 deterioração das condições pedagógicas de construção de conhecimento no ambiente escolar. O Art. 4° em seu inciso III trata sobre deveres do professor que, por sua vez, não deverá promover um determinado partido político no exercício de suas funções, o que é relevante, mas o texto deste inciso prossegue advertindo ao docente em não poder incitar aos seus alunos que participem de manifestações, atos públicos e passeatas. Sobre este inciso, em entrevista à revista Carta Maior, o Prof. Dr. em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Fernando Araújo Penna, asserta: Eles misturam nessa lista práticas realmente condenáveis com práticas corriqueiras e desejáveis em sala de aula. (...) Que o professor não deva fazer propaganda política, estamos de acordo. Mas, eles proíbem a discussão política, ao afirmar que o professor não deve debater assuntos vinculados ao noticiário. Veja como eles misturam partes condenáveis com discussões que são vitais. 6 A filósofa Marilena Chauí, sobre o “modelo democrático” de Schumpeter, afirma que a função dos votantes é escolher os “homens que decidirão quais são os problemas políticos e como resolvê-los”(1990:138). Posto que Política é parte constituinte da Filosofia e das Ciências Sociais, e que está presente no currículo de ambas as disciplinas, quer seja no Ensino Fundamental quanto no Ensino Médio e Superior, e que estando em um Estado Democrático de Direito, os professores destas disciplinas, como condição sine qua non, uma vez que configura a própria razão de existência de tais disciplinas no currículo escolar, devem promover condições propícias de aprimoramento de discernimento no âmbito da sala de aula no intuito de incentivar o exercício democrático. O inciso V deste artigo, mais uma vez ressalta a importância de que o discurso proferido pelo profissional da educação esteja em consonância com as convicções morais da família e com as convicções do próprio aluno, algo, como já citado anteriormente, impossível à prática docente, além de que há um problema na medida em que a Lei não especifica quem irá ponderar o que configurará crime e quais serão as sanções sofridas pelo professor que a descumprir. O PL que tramita no Senado Federal acrescenta ao texto proposto no Congresso Federal em seu Art. 1° e Parágrafo único: 6 CARLOTTI, Tatiana. O que está por trás do 'Escola Sem Partido'?, Carta Maior, 20/07/16. http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-que-esta-por-tras-do-Escola-Sem-Partido-/4/36486 Acessado em 11/12/2016. ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 1, n. 15, Maio, 2017, 296-307. 301 O Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero.7 Sobre o termo cunhado no Projeto, “ideologia de gênero”, o Prof. Dr. de Sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Alípio de Souza Filho, se refere como produzido por um “delírio conservador”. O professor ainda ressalta que o que hoje é visto pela camada mais conservadora da sociedade como “doutrinação ideológica” ou ainda “ideologia de gênero” é, na verdade, a tentativa de implementar políticas favoráveis ao Estado de Bem-Estar social no país.8 A discussão sobre sexualidade é, com efeito, recorrente na sala de aula, sobretudo quando os discentes são crianças e adolescentes, idade em que se anseiam descobrir mais sobre o próprio corpo, logo, se no momento em que surgem dúvidas sobre o corpo e a sexualidade, a família não estiver apta a tratar do assunto, e a escola estiver proibida de falar com o aluno sobre o tema, alguns problemas de aceitação das mudanças em seu corpo, poderão surgir. Além disso, o discente convive com outras pessoas, quer na escola, quer em outros espaços, que podem não ter a mesma orientação sexual que ele ou ela recebeu de sua família, podendo apresentar comportamento preconceituoso por não conhecer as diferentes expressões da sexualidade humana. No que concerne a ‘identidade biológica de sexo’, temos a impressão de que o autor do PL não concebe de forma clara e distinta a disparidade entre sexo e gênero. Um dos grandes nomes do existencialismo, a filósofa francesa Simone Beauvoir, afirma que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (BEAUVOIR, 1967:9-10). Ao fazer tal afirmação, a autora refere-se à condição de ‘mulher’ como algo aprendido socialmente. Podemos pensar que sexo se refere as categorias de macho e fêmea, enquanto que gênero se refere a homem e mulher (ou ainda tantas outras manifestações de gênero que o ser humano pode apresentar) que são considerados como papeis sociais, uma vez que embora possamos nascer com uma genitália e sistema reprodutor que nos coloca na categoria de machos ou fêmeas, as influências externas ou orientação, podem me levar a ter um papel social majoritariamente atribuído ao homem ou 7 http://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=125666 (Acessado em 12/12/2016 às 10:30 horas) 8 SOUSA FILHO, Alípio de. A ideologia de gênero e o delírio conservador no Brasil hoje. Carta Potiguar, 09/08/15. http://www.cartapotiguar.com.br/2015/10/09/a-ideologia-de-genero-e-o-delirio-conservador-no-brasilhoje/ (acessado em 09/01/17). ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 1, n. 15, Maio, 2017, 296-307. 302 a mulher. Ao fazer tal afirmação, contudo, não são ignoradas as influencias hormonais, assim, o fato de indivíduo ‘X’ ter vagina, usar maquiagem, usar saia e engravidar, não faz de ‘X’ alguém com atração sexual por homens, mas uma fêmea no que concerne ao sexo, e mulher no que tange ao meu papel social. Não só a Sociologia e a Filosofia trazem uma ampla gama de livros e artigos sobre o tema, mas também a Psicologia. O tema é indispensável na sala de aula, bem como em outros ambientes possibilitadores de senso crítico, e é imprescindível para a construção de uma sociedade com indivíduos capazes de respeitar diferenças. Há um último ponto igualmente relevante na análise do PL em voga no que tange a liberdade do docente. A Lei N° 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, em seu Art. 10°, inciso III, diz que os Estados se encarregarão “de elaborar e executar políticas e planos educacionais, em consonância com as diretrizes e planos nacionais de educação, integrando e coordenando as suas ações e as dos seus Municípios”. 9 Desse modo, é possível constatar que ao serem elaboradas, as leis deverão estar em consonância com a Constituição Federal que é clara ao estabelecer em seu Capítulo III, Art. 206 e nos incisos II e III: Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: (...) II liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino;10 No trecho acima, observamos que a Constituição aponta para a liberdade de aprender e ensinar além de tratar como princípio o pluralismo de ideias. Destarte, compreendemos que é inconstitucional criminalizar o docente que, no exercício de sua função, fale sobre algum assunto que não esteja em harmonia com as convicções morais, ideológicas ou religiosas dos discentes e seus familiares. Motivações do Escola sem Partido No dia 04/07/2016 o historiador Leandro Karnal, já consagrado palestrante e participante frequente de jornais televisivos, sempre discutindo temas de toda ordem que compreenda a esfera pública, fora indagado durante o programa Roda Viva acerca de sua 9 https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm (Acessado em 12/12/2016 às 13:00 horas) https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm (Acessado em 12/12/2016 às 13:30 horas) 10 ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 1, n. 15, Maio, 2017, 296-307. 303 posição sobre a proposta do Escola sem partido. Em voz tonitruante e com clareza cristalina ele responde: Escola sem partido é uma asneira sem tamanho, é uma bobagem conservadora, é coisa de quem não é formada na área e que decide ter uma ideia absurda que é substituir o que eles imaginam que seja uma ideologia em sala de aula, por outra ideologia, uma ideologia conservadora. Não existe escola sem ideologia. Seria muito bom que um professor não impusesse apenas uma ideologia, e que abrisse sempre caminho para o debate, mas é uma crença em primeiro lugar fantasiosa de uma direita delirante e absurdamente estúpida de que a escola forme a cabeça das pessoas, e que os jovens saiam líderes sindicais. Os pais e os professores sabem que os jovens têm a sua própria opinião, e não são massa de manobra. Toda opinião é política, inclusive a escola sem partido. Eu gostaria de uma escola que suscitasse o debate, que colocasse para o aluno no século XIX um texto de Stuart Mill falando do indivíduo, da liberdade do mercado ao lado de um texto de Marx, e que o aluno debatesse os dois textos. Mas, se o professor for militante de um partido de esquerda ou de centro, também faz parte do processo, isto não é ruim. A demonização da política é a pior herança da ditadura militar que além de matar seres humanos, ainda provocou na educação um dano que ainda vai se arrastar por mais algumas décadas.11 Em pouco tempo após a fala de Karnal surge, em redes sociais e no sitio eletrônico Youtube, uma enxurrada de comentários. Boa parte se tratando de “refutações”. Algumas, quase todas que visualizamos, não passavam de resmungos risíveis, e por isso mesmo não trataremos aqui. Não obstante, uma delas foi importante e se destacou, ao menos aos nossos olhos. O filósofo Paulo Guiraldelli Junior tece críticas à fala de Karnal em alguns vídeos postados por ele mesmo em seu canal no Youtube, e em um texto presente em seu sitio. No vídeo intitulado de ‘Escola sem Partido’ de 05/07/16, Guiraldelli afirma que Karnal não fizera uma reflexão acerca do tema durante o programa, e sim expressou uma opinião taxativa e não histórica. Segundo o filósofo: O pedido da escola sem partido não é esdruxulo. (...) Marx já pediu isso (não ensinar história, só matemática e ciências) ele preferia que a escola não ensinasse coisas que pudessem ser ideológicos, partidários, etc. Mas isso tem a ver com a escola sem partido? Aí entra a reflexão, ponderar estes pedidos, explicar o que significa um e o que significa outro. Quando Marx disse isso, ele dizia a partir de uma visão positivista do século XIX, da possibilidade de neutralidade das ciências, que depois o próprio 11 KARNAL, Leandro. Roda Viva, Rede Band, 04/07/2016. ttps://www.youtube.com/watch?v=JmMDX42jOoE. Acessado em 30/12/16. ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 1, n. 15, Maio, 2017, 296-307. 304 marxismo acabou lutando contra ela, mas agora no caso do atual projeto, tem a ver com o positivismo? Claro que tem! Ele fala, o Karnal, que é herança da ditadura, pode ser uma herança da ditadura, de uma direita que acha que não tem política nas escolas. (...)]Mas] a escola sem partido não surgiu por que essas pessoas(...) estão vinculadas a ditadura militar , são conservadores, mas estão vinculados a este pensamento que pegou Marx e que comprometeu toda a nossa republica, que é o pensamento de senso comum sim , ainda positivista que acredita que podemos ter ciências sem vinculação com preferencias políticas.(...) Tem toda uma reflexão a respeito do que é um saber do ponto de vista epistemológico e quando a gente faz estra reflexão a gente vê que o pedido de escola sem partido não é uma bobagem , ele pode ser uma aspiração; na base desse pedido, no pensamento em geral tem muita gente que que tem a aspiração de ver um conhecimento desvinculado de opções de valor e isso não é bobagem, por que nós mesmos falamos isso. Nós temos um saber que tem pretensões de não fazer juízo de valor. 12 Não faremos aqui, por incapacidade de nossa parte, uma análise profunda que vise identificar de maneira inequívoca as motivações e razoes para a confecção do escola sem partido. Não obstante, temos a impressão de que ao menos algo está em nosso alcance: elucidar as disparidades entre os dois discursos supracitados. Guiraldelli explica com clareza a crença positivista de que a construção do saber pode se dar destituído de julgamentos e proposições daquele que possibilita o conhecimento, ou em outras palavras, de que o conhecimento pode emergir da pura neutralidade, sem contaminações de interpretações desviadas, pretensamente ou não, por convicções, afinidades, ou perspectiva daquele que profere ou participa da construção do conhecimento, a saber o professor (também não trataremos aqui se há possibilidade efetiva de tal proeza, dada a inextricabilidade de tal debate). Segundo Guiraldelli, o motor propulsor do escola sem partido é o positivismo, ainda que diluído no senso comum, e por isso não se trata de uma bobagem. Noutras palavras, a proposta tem fundamento filosófico-sociológico. Porém, não é desta forma que Karnal concebe o projeto. Segundo ele a proposta tem sua gênese na ignorância daqueles que a criaram. Posto de outro modo, para Karnal não há, ao menos é o que compreendemos em sua exposição, fundamentos intelectuais, ou preocupações epistemológicas ou pedagógicas de como o saber deve se dar tendo em vista o pleno desenvolvimento intelectivo dos discentes. 12 GUIRALDELLI JUNIOR, Paulo. Escola sem partido, 05/07/16, https://www.youtube.com/watch?v=z5sosoph1T4 Acessado em 01/01/17. ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 1, n. 15, Maio, 2017, 296-307. 305 Especulamos - e o fazemos em razão de não ter sido dito claramente por Karnal- que tudo se dê em torno de uma crença, por parte de alguns pouco entendedores do assunto, de que há na esquerda um projeto doutrinário anti-família, anti-bons costumes, e que anseia freneticamente a manter a corrupção e a deterioração do Brasil. Uma crença de que o Partido dos Trabalhadores (PT) é comunista (uma proposição aberrante, dado que se trata de um partido de centro esquerda, social democrata e por isso mesmo abissalmente distante do comunismo), de que instituirá o comunismo no Brasil e de que os professores (segundo eles majoritariamente comunistas militantes) estão, a serviço de tal revolução, corrompendo os jovens na medida em que são doutrinados quase a maneira de um condicionamento behaviorista a lá Laranja mecânica. Como fora dito acima, isso se trata de conjecturas as quais não daremos suporte, mas que identificamos que possa haver conexão com o que fora exposto pelo Karnal. Sendo esta a motivação, o projeto compreenderia o aspecto político, o anticomunismo (erroneamente anti-PT); e a defesa do ideal cristão da família e os bons costumes na medida em que julgam que discussões em sala de aula sobre as diversas formas de manifestação da sexualidade culminariam na intervenção da opção sexual dos discentes13. Acreditamos, ainda que não defendamos categoricamente, que tal motivação parece se seguir. Em um debate no Canal Futura, o autor do PL, o advogado Miguel Nagib, faz considerações curiosas acerca do Filósofo e educador Paulo Freire: Paulo Freire não conhecia direito constitucional, ele era um pedagogo do PT e usou toda pedagogia progressista para promover os interesses do partido, ele era filiado ao PT. E ele colocou todo seu cabedal cientifico a serviço de uma bandeira para política partidária. Isso é fato notório!14 De todo modo, seja o projeto motivado por ideais positivistas de neutralidade para a construção do conhecimento, ou seja por estupidez (ou interesses políticos), o projeto se mostra inconsistente em razão do que já expomos acima. Um exemplo é o projeto ‘Escola sem homofobia’ ao qual o Deputado Jair Bolsonaro (PP-RJ) apelidou de ‘Kit gay’. “A revista Nova Escola, especializada em educação, publicou um vídeo em que desmente, passo a passo, informações falsas espalhadas nas redes sociais pelo deputado.” http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/01/video-desmascara-informacoes-falsas-espalhadas-por-jairbolsonaro.html, acessado em 31/12/16) 14 SALA DEBATE, Canal Futura. (https://www.youtube.com/watch?v=J2v7PA1RNqk. Acessado em 01/01/17) 13 ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 1, n. 15, Maio, 2017, 296-307. 306 CONSIDERAÇÕES FINAIS O PL em discussão no presente artigo, possui em seu texto, diversos pontos problemáticos, mas não aporéticos, acerca de diversas temáticas. Não obstante, em virtude de nossa diminuta pretensão não mergulhamos mais afundo em seus pormenores. Tentamos neste artigo, de forma tímida, dilucidar as inconsistências de ordem técnica e lógica do referido Projeto de Lei -que culminam inapelavelmente na deterioração da prática docente- tal como mostrar suas possíveis motivações. As disciplinas de filosofia e sociologia, principais alvos deste projeto de lei (também alvo da Medida Provisória 746/2016) merecem de nossa parte uma consideração especial. Ambas as disciplinas conquistaram seu espaço no currículo escolar em virtude de desenvolverem um dos pontos centrais que constituem uma boa educação: aprimoramento do pensamento crítico, da capacidade de análise de discursos, e de autonomia e autarquia de pensamento, ou como disse Kant, capacidade de se servir de seu próprio entendimento. Como pode o professor de ambas as disciplinas atenderem ao seu papel, seja de problematizador por parte do professor de sociologia, ou de questionador por parte do professor de filosofia (a verdadeira essência do filósofo) se tal prática caracterizar uma infração? Chega a ser curioso que um professor de filosofia doutrine seus alunos, pois filosofar é justamente o oposto de doutrinar. São termos dicotômicos. Mas, claro, é muito plausível que hajam professores de filosofia ou de sociologia que, na contramão de suas formações, doutrinem (se é que são formados na área, pois muitos sem formação preenchem a vaga), mas estes assim o fazem por serem péssimos professores e, sendo este o caso, é possível que o problema seja oriundo de uma formação deficitária. Devemos então melhorar nossos cursos no afã de evitar tais aberrações, pois um professor de filosofia que faz doutrinação em sala de aula é como um bombeiro que incendeia casas. Concluímos que é inconcebível a existência de aulas que se deem em plena harmonia à multiplicidade de pensamentos dos discentes e de seus progenitores. A liberdade de cátedra é um pressuposto para que haja o processo de aprendizagem, e isso não implica em ridicularizar o saber e a trajetória dos discentes. É notório ainda, que tal proposição foi elaborada por alguém que não concebe a sala de aula como espaço democrático de troca de saberes uma vez que estabelece a tirania do senso comum, da tradição, ou ainda de interesses políticos em detrimento do saber filosófico e cientifico. ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 1, n. 15, Maio, 2017, 296-307. 307 REFERÊNCIAS: ALTHUSSER, L. P. Aparelhos Ideológicos de Estado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998. ARON, Raymond. As Etapas do Pensamento Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 1995. BEAUVOIR. Simone. O Segundo Sexo, volume 2. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, 2ª edição, pp. 9-10. CARLOTTI, Tatiana. O que está por trás do 'Escola Sem Partido'?, Carta Maior, 20/07/16. http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-que-esta-por-tras-do-Escola-Sem-Partido/4/36486. CHAUÍ. Marilena de Sousa. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas – 5. Ed. – São Paulo : Cortez, 1990.. GUIRALDELLI JUNIOR, Paulo. Escola sem 05/07/16, partido, https://www.youtube.com/watch?v=z5sosoph1T4. NERY. Maria Clara. Sociologia Contemporânea. – Curitiba: IESDE Brasil S.A., 2007. KARNAL, Leandro. Roda Viva, Rede Band, 04/07/2016. https://www.youtube.com/watch?v=JmMDX42jOoE. SALA DEBATE, Canal Futura. https://www.youtube.com/watch?v=J2v7PA1RNqk. SOUSA FILHO, Alípio de. A ideologia de gênero e o delírio conservador no Brasil hoje. Carta Potiguar, 09/08/15. http://www.cartapotiguar.com.br/2015/10/09/a-ideologia-de- genero-e-o-delirio-conservador-no-brasil-hoje/ http://escolasempartido.org/ http://www.cartapotiguar.com.br/2015/10/09/a-ideologia-de-genero-e-o-delirio-conservadorno-brasil-hoje/ https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm https://rick.jusbrasil.com.br/artigos/318975739/aprendendo-a-ler-uma-lei-para-leigos ISSN 1984-3879, SABERES, Natal RN, v. 1, n. 15, Maio, 2017, 296-307.