Volume 5 (2025)
Revista Metodologias e Aprendizado
Capitalismo, pós-graduação e adoecimento
mental
Resumo: Discute-se neste ensaio o crescente adoecimento mental dos pós-graduandos no Brasil como expressão da
intensificação da exploração do capitalismo nas últimas décadas. Para tanto, além de mobilizar a bibliografia sobre o
tema, são analisados elementos de pesquisas realizadas anteriormente acerca do adoecimento entre pós-graduandos.
Procura-se mostrar como o espaço acadêmico expressa, ainda que com mediações, a exploração capitalista e como esse
processo tem afetado a saúde dos pós-graduandos.
Michel Goulart da Silva
1 – Doutor em História pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) - ua no Instituto Federal Catarinense (IFC).
A – Contato principal de e-mail: michelgsilva@yahoo.com.br
Nos últimos anos, o adoecimento mental tem sido um dos fenômenos mais marcantes
da sociedade capitalista, produto das suas contradições e da exploração de classe, se
materializando em ansiedade, estresse, depressão, fobia social, desordens alimentares,
automutilação, insônia, entre outras coisas (ANTUNES, 2018; DUNKER, 2017). O massivo
adoecimento se dá em meio a um cenário no qual se fala muito na necessidade do “sentirse bem”, o que significaria “se realizar como profissional, pai, cônjuge e cidadão capaz
de contribuir efetiva e resignadamente com a sociedade tal como nos é apresentada”
(Corbanezi, 2021, p. 210). Esse fetiche de uma vida feliz, cuja retórica está baseada num certo
entendimento de sucesso profissional e de família estável, vendido pela classe dominante,
além de pressionar as pessoas para que alcance essas conquistas, esconde as contradições
que levam os trabalhadores a situações de desgaste físico e mental, de sofrimento e
adoecimento.
Um dos segmentos marcados por esse tipo de pressão e que sofre com o adoecimento
são estudantes de mestrado e doutorado, ainda que o fenômeno também afete outros
setores do mundo acadêmico, como discentes de graduação, professores e técnicoadministrativos. O adoecimento dos estudantes de pós-graduação tem relação com sua
condição acadêmica, em grande medida marcada, por um lado, pela precarização e pela
falta de uma perspectiva profissional estável e, por outro, pela convivência em um ambiente
que, apesar das mediações do meio acadêmico, mostra-se, como outros espaços de trabalho,
angustiante, competitivo e, em muitos casos, hostil. Com a integração cada vez maior entre
a universidade e os interesses privados, a pesquisa se tornou parte orgânica do processo de
produção de mercadorias, aprofundando o processo que torna o conhecimento científico
um elemento central tanto na extração de mais valia como de intensificação da exploração
de força produtiva (SILVA, 2020).
Essa intensificação da exploração em busca de uma maior produtividade do processo
de trabalho se reflete nas condições cotidianas em que os pesquisadores realizam seu
trabalho, expressando-se, entre outros elementos, na presença de entes privados nas
instituições públicas de ensino e em um processo de avaliação que prioriza indicadores
quantitativos. Num país dominado pelo imperialismo, como é o caso do Brasil, onde as
empresas pouco investem na estruturação de departamentos de pesquisa, as universidades
acabam assumindo esse papel, fazendo com que o trabalho de docentes, técnicos e discentes
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de diferentes níveis convirja para o desenvolvimento de pesquisas que atendam aos
interesses privados (LEHER, 2019). Com isso, a própria pesquisa passa a ter que responder
à dinâmica, às exigências e aos prazos impostos pelos interesses do mercado. O capital
explora a ciência,
apropriando-se dela no processo produtivo. Com isto se produz, simultaneamente, a separação
entre a ciência, enquanto ciência aplicada à produção, e o trabalho direto, enquanto nas fases
anteriores da produção a experiência e o intercâmbio limitado de conhecimentos estavam ligados
diretamente ao próprio trabalho (Marx, 1982, p. 191).
Esses elementos estruturais do capitalismo, que passam pelo uso da ciência no
processo produtivo, estão na base dos métodos e critérios do processo de avaliação das
universidades e de centros de pesquisa e que, no caso da pós-graduação, é determinante
para a conquista de financiamento, seja por meio de recursos para a manutenção dos cursos,
seja pela concessão de bolsas. Os cursos melhor avaliados têm prioridade na distribuição
de recursos, criando-se uma pirâmide em que os programas de pós-graduação que estão
em níveis inferiores vão disputando recursos cada vez menores com um número maior de
cursos. Mesmo regras criadas para minimizar esse tipo de desigualdade na distribuição de
recursos, como a concessão de bolsas para cursos em regiões mais pobres, não resolve o
problema.
O processo de avaliação da pesquisa e da pós-graduação, realizado por órgãos
como o CNPq e a CAPES, se mostra coerente com as exigências internacionais dos países
localizados no centro do capitalismo, que priorizam o registro de patentes e a publicação
de artigos em revistas indexadas (Ouriques, 2011). Esses indexadores, normalmente com
sede em países dominantes, possuem uma série de critérios de avaliação que apenas um
pequeno número de periódicos consegue alcançar. Outro problema passa pelo fato de que
se cria uma hierarquia de periódicos. Com isso, os pesquisadores devem levar em conta
essa hierarquia entre os periódicos caso queiram garantir que seus programas tenham uma
boa avaliação. Essa situação acaba por ter como consequência a criação de uma indústria
de periódicos pagos, tanto no acesso do leitor como na publicação pelos autores, fazendo
com que a difusão de muitas pesquisas importantes esteja restrita a periódicos que cobram
valores elevados.
Estruturou-se uma realidade em que todos os sujeitos envolvidos – docentes, técnicoadministrativos e discentes de diferentes níveis – se veem pressionados pela produtividade,
ao mesmo tempo exigindo-se que sejam o que se convencionou chamar de profissionais
“bem-sucedidos” e, ainda, devendo ter uma vida pessoal feliz. O capitalismo, contudo, não
permite isso, na medida em que suas expectativas passam pela garantia da permanência de
seu funcionamento e da manutenção da exploração sobre a força de trabalho (SILVA, 2015).
Na elaboração deste ensaio foram utilizados relatos de pesquisas anteriormente realizadas,
mencionadas ao longo da exposição. Essas informações, ao expressar a percepção dos pósgraduandos, serviram para que se pudesse mobilizar uma bibliografia a partir da qual foi
possível apontar para possíveis causas e efeitos relacionados ao fenômeno de adoecimento.
Os dados, ainda que não sejam conclusivos, mostram que há um preocupante cenário de
adoecimento entre os estudantes de pós-graduação, que se relacionam tanto com a formas
como se estrutura o meio acadêmico como com as contradições da sociedade capitalista.
A situação dos pós-graduandos
No ambiente da universidade intensificou-se um processo de exigências sobre os
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pesquisadores, sejam os docentes, os técnicos ou os estudantes, que muito se assemelha
ao das fábricas no capitalismo (ALMEIDA, 2012). Entre outros aspectos, consolidou-se um
mecanismo de coautoria, em que os discentes escrevem os textos de suas pesquisas e os
docentes e outros pesquisadores assinam, mesmo que tenham tido pouco ou mesmo nenhum
envolvimento com a produção do texto (SILVA, 2020). Além disso, as tarefas de coordenação
cotidiana das pesquisas dos laboratórios são assumidas por mestrandos e doutorandos,
que, mesmo sem receber um salário para realizar essas atividades, são colocados a liderar
pesquisas sem levar em conta as condições concretas a que estão submetidos (LOUZADA &
SILVA FILHO, 2005).
Esses são alguns dos elementos que marcam a situação dos pesquisadores que
atuam nas universidades, constituindo parte do pano de fundo de seu adoecimento. Em
função disso nos últimos anos foram publicadas pesquisas e análises sobre a questão da
saúde mental dos pós-graduandos (COSTA & NEBEL, 2018; LOUZADA & SILVA FILHO, 2005;
Santana, Pimentel, & Véras, 2020). Além disso, em 2017, o jornal Folha de São Paulo publicou
relatos que mostram alguns dos problemas enfrentados pelos pós-graduandos. Os relatos,
oriundos das mais diversas instituições de ensino – USP, Unicamp, Unesp, universidades
federais de diferentes estados – apresentam elementos que possibilitam um primeiro
diagnóstico, demonstrando um conjunto de problemas enfrentados pelos pós-graduandos.
Um dos relatos destaca a falta de acompanhamento por parte dos orientadores,
ao mesmo tempo em que os pós-graduandos são cobrados para a realização de outras
atividades, mesmo que isso possa prejudicar o desenvolvimento de sua pesquisa:
Meu orientador cobrava presença diária nas atividades do laboratório, mas nunca me orientou.
Fiz tudo sozinha. Além do professor não orientar, o ambiente era extremamente hostil. Minha
defesa de projeto, no meio do curso, foi traumática. Meus familiares não aguentaram assistir a tanta
humilhação. Eu mesma não aguentei e chorei o tempo todo. Na minha defesa final não foi diferente:
humilhação em cima de humilhação. Para não me despedaçar eu foquei no diploma do mestrado
que eu estava prestes a receber (MORAES, 2017).
Um dos relatos detalha que os estudantes acabam tendo que assumir tarefas que
deveriam ser realizadas pelos professores:
É como se você tivesse que ser mil e uma utilidades, os orientadores exigem que o pós-graduando
realize, além da sua pesquisa, outras demandas do laboratório, dê aulas em seu lugar... a jornada
chega a doze horas diárias. Além disso, temos de produzir artigos e escrever inúmeros relatórios
para as agências de fomento (MORAES, 2017).
Esse ambiente, que muitos pós-graduandos enxergam como hostil e em que se sentem
sozinhos e desamparados, acaba se mostrando insalubre, fazendo com que os estudantes
adoeçam. Os relatos são abundantes e mostram a relação direta entre o ambiente acadêmico
e o adoecimento. Um dos relatos aponta:
No mestrado, a frieza no laboratório, a cobrança por resultados que não dependiam de mim, e sim
de equipamentos, e as longas horas de trabalho me fizeram desenvolver crises insuportáveis de
fibromialgia, perda de apetite a ponto de ficar com o peso corporal incompatível com a saúde e uma
tristeza tão profunda que ia chorando no caminho de casa até o laboratório (MORAES, 2017).
O adoecimento também se mostra relacionado às cobranças sofridas pelos estudantes:
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Ao entrar no mestrado sofri com as cobranças exageradas; fiquei doente, precisei de ajuda de
psicólogo e neurologista, tive crises de ansiedade, não conseguia dormir. Pensava em suicídio, sim.
No doutorado tentamos retirar a medicação, pois parecia que havia me adaptado à rotina. Não deu
certo. Em um mês, a ansiedade e a insônia tinham voltado (MORAES, 2017).
Outro fator de adoecimento são as pressões sofridas pelos pós-graduandos:
Estava, obviamente, muito atrasado. Em vez de receber algum mérito pelo desenvolvimento do
método praticamente sem ajuda de colaboradores, fui muito criticado por estar atrasado e acabei
sendo reprovado na minha qualificação. Existe uma segunda chance de se qualificar, mas uma
nova reprovação te desliga da pós. Nesse ponto comecei a dar sinais de depressão. Não conseguia
dormir porque ficava pensando muito nisso. Passava noites em claro. Comecei a ter fortes crises
de ansiedade. Meu peito doía sem parar, meu coração acelerava loucamente. Fui parar no hospital
universitário duas vezes achando que estava tendo um infarto. Fizeram exames, mas nada foi
constatado. O médico perguntou todo o meu histórico. No fim, só restou um diagnóstico: crise de
ansiedade. O tratamento parece ser simples: parar de se preocupar (MORAES, 2017).
Contudo, mesmo nesse cenário em que há um visível adoecimento coletivo por parte
dos pós-graduandos, o apoio recebido é escasso ou mesmo inexistente, em grande medida
por conta do ambiente competitivo e individualista fomentado pelos programas de pósgraduação. Diante disso, muitos estudantes optam por esconder seu sofrimento:
O medo e a vergonha de ser rotulado de fraco, de louco, de exagerado são maiores do que a vontade de
gritar. Como ser indiferente a jornadas cansativas, professores semideuses, orientadores abusivos?
Nunca me senti tratado como gente enquanto estive na pós, pois colocar família, saúde ou lazer,
mesmo que poucas vezes, à frente das atividades acadêmicas é visto como crime. Não foram poucos
os amigos que desistiram. Pior ainda, outros permaneceram, vivendo a base de remédio para dar
conta (MORAES, 2017).
No caso das mulheres pós-graduandas, o fantasma do assédio sexual mostrase também uma realidade cotidiana, na qual existe pouco ou nenhum apoio ou mesmo
solidariedade. Uma aluna assediada pelo orientador relata: “Todo mundo sabia da história,
mas ninguém fez nada. Ele andava solto falando que eu era ‘a menininha não sabia ser
cantada sem ficar bravinha’. Tentei por mais um ano, até que perdeu o sentido. Eu não
aguentava mais” (MORAES, 2017).
Em grande medida esse cenário de opressão tem relação com as dificuldades
financeiras enfrentadas pelos bolsistas, que não podem ter qualquer outra renda regular,
seja pelo fato de terem que dedicar muitas horas aos seus laboratórios de pesquisa, seja
pelas regras dos órgãos de fomento. Um dos relatos aponta:
O aluno de pós não é um trabalhador: não há salário, há bolsa; não há férias; não há função específica;
é uma espécie de escravidão. Que pós-graduando nunca entrou no laboratório às 7h e saiu às 23h?
Qual nunca ficou até o dia 24/12 no laboratório? Qual nunca teve que repetir o mesmo experimento
200 vezes só para mostrar ao orientador que a hipótese dele estava errada? (MORAES, 2017).
Outro relato também aponta a sobrecarga de atividades e a postura dos orientadores:
Estudávamos de 12 a 14 horas por dia. Resenhávamos 500 páginas por semana. Os professores riam
das nossas caras quando tentávamos apresentar novas ideias e interpretações. A bolsa não pagava
nem o aluguel. O terrorismo acadêmico é verdadeiro (MORAES, 2017).
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Em 2018, o resultado de uma pesquisa apontava uma série de conclusões que
corroboram os relatos coletados pela Folha de São Paulo. Essa pesquisa apresenta, entre
outras informações, o seguinte relato:
Odeio meu orientador ou ex orientador.... Nunca se mostrou disponível para me atender desde que
começaram as aulas, não respondia e-mails e hoje ele simplesmente protocolou que não quer mais
ser meu orientador porque não cumpria as atividades estabelecidas... Ele nem me deu um plano
de atividades, quem fez fui eu, escrevi artigos, etc etc etc. Agora corro o risco de perder a bolsa
e dependo dela para me manter, não tenho papai e mamãe para pagar minhas contas (COSTA &
NEBEL, 2018, p. 209).
Os dados quantitativas demonstram também preocupações relacionadas a
instabilidade financeira, prazos de titulação, incerteza quanto ao futuro profissional,
isolamento, entre outras coisas. Os pesquisadores afirmam:
durante a jornada na pós-graduação, muitos pós-graduandos acabam desenvolvendo ansiedade,
depressão, distúrbios do sono, dentre uma série de outras doenças psíquicas. Grande parte deles
opta por sofrer em silêncio, principalmente, porque existe ainda um grande tabu na sociedade em
torno dos transtornos mentais, inclusive dentro da universidade, espaço o qual, pelo menos em
teoria, deveria ser aberto ao diálogo (COSTA & NEBEL, 2018, p. 209).
O problema não é necessariamente recente. Em 2005, o resultado de outra pesquisa
mostrava conclusões semelhantes, destacando como o ambiente vivenciado pelos pósgraduandos pode afetar no adoecimentos:
o sofrimento expresso por esses sujeitos não pode ser compreendido sem que se considere a
organização do trabalho a que estão submetidos. Se, como vimos, o sofrimento é apresentado como
natural por alguns pós-graduandos, isso revela, de antemão, a desconsideração da organização
do trabalho como fator relevante nesse processo de formação. No entanto, foi também possível
encontrar outros estudantes que fizeram referência às condições e relações de trabalho na atividade
de pesquisa. Isso inclui o ambiente do laboratório e a cultura organizacional; mas não apenas. Há
que se dar destaque também às regras acadêmicas, aos critérios definidores do sucesso científico
por parte das instituições financiadoras, ao próprio processo de financiamento e sustentação da
atividade de pesquisa. Em suma, há que considerar, no mínimo, as políticas educacionais e de
ciência e tecnologia vigentes no momento estudado (LOUZADA & SILVA FILHO, 2005, p. 459).
Contudo, ainda que numa primeira análise o problema possa ser relacionado à
situação imediata dos pós-graduandos dentro da universidade, o problema é mais amplo e
tem relação com exploração do trabalho na sociedade capitalista. O adoecimento dos pósgraduandos está relacionado ao próprio adoecimento da classe trabalhadora.
Saúde mental e capitalismo
O tema da saúde mental deve ser entendido como parte da realidade concreta da exploração
capitalista. Nesse sentido, associar a saúde mental, por exemplo, apenas a fatores biológicos
de indivíduos isolados implica em excluir o seu caráter histórico e social. Os fatores
biológicos não se explicam sozinhos, devendo estar articulados à dinâmica histórica da
sociedade. O ciclo vital do ser humano não pode ser determinado apenas biologicamente, na
medida em que varia em diferentes épocas, a partir das condições materiais em que produz
sua existência. Pode inclusive também variar no interior das diferentes classes sociais em
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uma mesma época e sociedade, ou seja, concretamente, a forma da reprodução da vida em
sociedade determina a existência de diferentes transtornos físicos e mentais.
No caso das universidades, seus diferentes sujeitos são afetados pela exploração
capitalista. Certamente seria um erro conceitual afirmar que os docentes e os técnicoadministrativos das universidades públicas são explorados para produzir mais valia,
mas é correto apontar que eles são impactados pelas relações de trabalho capitalistas,
que, dentro das universidades, se materializam na estrutura pouco democrática, no
controle hierarquizado e, principalmente, na realização de ações que, mesmo quando
não são financiadas diretamente pelo setor privado, auxiliam no processo de produção
de mercadorias. Segundo Marx (1982, p. 192), “a produção capitalista transforma o processo
produtivo material em aplicação da ciência à produção, em ciência posta em prática”, dessa
forma “submetendo o trabalho ao capital e reprimindo o próprio desenvolvimento intelectual e
profissional”.
Nesse sentido, para pensar a saúde e a doença, é fundamental compreender as formas
como se organiza o processo de trabalho e de produção de mercadorias e como isso impacta
na vida das pessoas; essa compreensão permite entender como se adoece e se morre nas
diferentes classes sociais. Na sociedade capitalista, a burguesia precisa de trabalhadores
aptos a produzirem em suas fábricas, ou seja, na lógica capitalista, o que determina ser
saudável ou não é a capacidade do sujeito de trabalhar e manter-se produtivo. Neste modo
de produção, ser ou não saudável está relacionado ao desgaste da força de trabalho.
O desgaste relacionado ao trabalho aponta elementos que extrapolam as análises
focadas apenas nas causas imediatas do adoecimento, devendo abarcar também os impactos
físicos e psicológicos do processo de trabalho, que afetam a vida e até mesmo o cotidiano
do trabalhador. Engels, em seu clássico estudo sobre a situação da classe trabalhadora na
Inglaterra no século XIX, associava o adoecimento às adversidades “a que os operários estão
expostos em razão das flutuações do comércio, do desemprego e dos salários miseráveis em
tempos de crise” (ENGELS, 2008, p. 141). Essa situação tinha graves consequências para os
trabalhadores:
Acontece com frequência que, acabando o salário semanal antes do fim da semana, nos últimos
dias a família careça de alimentação ou tenha apenas o estritamente necessário para não morrer
de fome. É claro que semelhante modo de vida só pode originar toda sorte de doenças; quando as
enfermidades chegam, quando o homem – cujo trabalho sustenta a família e cuja atividade física
exige mais alimentação e, por conseguinte, é o primeiro a adoecer –, quando esse homem adoece,
é então que começa a grande miséria (ENGELS, 2008, p. 115).
O capitalismo passou por mudanças na forma de organização do trabalho, como
respostas às suas crises cíclicas, com vistas a garantir a extração da mais valia. Essas formas
de organização, que marcaram o começo do século XX, tiveram impacto também no cotidiano
do trabalhador, como a perspectiva de controle inclusive sobre a vida privada, imposto
pelo fordismo. Essa forma de organização do trabalho buscava ampliar a produtividade
nas fábricas, garantindo uma maior extração de mais valia e, dessa forma, afetando até
mesmo a subjetividade. Gramsci (2007, p. 248) apontava que “a racionalização determinou
a necessidade de elaborar um novo tipo humano, adequado ao novo tipo de trabalho e de
processo produtivo”.
Nas últimas décadas, o que marca mais profundamente o processo de organização
do trabalho é o chamado toyotismo. Essa forma de organização da produção tem como
uma de suas características o chamado trabalho flexível. Essa forma de organização exige
do trabalhador um maior engajamento no processo de produção, também afetando a sua
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subjetividade:
Sob o toyotismo, a competição entre os operários é intrínseca à ideia de “trabalho em equipe”.
Os supervisores e os líderes de equipe desempenham papéis centrais no trabalho em equipe (no
caso do Japão, os líderes da equipe de trabalho, isto é, do team, são, ao mesmo tempo, avaliadores
e representantes dos sindicatos). Permanece ainda, de certo modo, uma supervisão rígida, mas
incorporada, “integrada” – vale salientar – à subjetividade operária contingente. Em virtude do
incentivo à competição entre os operários, cada um tende a se tornar supervisor do outro (ALVES,
2011, p. 125).
Essa é a base na qual se dá o avanço do adoecimento mental dos trabalhadores. O
estresse é uma constante nas diferentes formas de organização do processo produtivo,
causando não apenas diversas doenças como, também, fadiga e tensão nervosa. Essa fadiga
sentida pelo trabalhador tem relação com diferentes dimensões de sua vida cotidiana,
como o deslocamento para o trabalho, as tarefas domésticas, questão de moradia, o acesso
à educação, à alimentação e à saúde, entre outros.
Os trabalhadores também sofrem com o medo de serem descartados. Suas condições
física e psicológica, como a idade ou o desenvolvimento de doenças crônicas, podem se
tornar um problema para a permanência no trabalho ou para encontrar um novo emprego,
correndo o risco de ficar sem qualquer ocupação. O desgaste pode significar a expulsão
do trabalhador do mundo da produção, afinal a organização do processo de trabalho no
capitalismo, ao exigir um determinado padrão de esforço, seleciona os que suportam
a sua intensidade, descartando aqueles que não mais possuem forças para se manterem
produtivos. Nesse processo,
a pressão pela capacidade imediata de resposta dos trabalhadores às demandas do mercado, cujas
atividades passaram a ser ainda mais controladas e calculadas em frações de segundos, assim como
a obsessão dos gestores do capital por eliminar completamente os tempos mortos dos processos
de trabalho, tem convertido, paulatinamente, o ambiente de trabalho em espaço de adoecimento
(Antunes, 2018, p. 142).
Essa situação expõe os trabalhadores a uma infinidade de fatores que levam ao
sofrimento e ao adoecimento, que podem ser físicos, biológicos, químicos, ergonômicos,
entre outros, resultando na precarização da saúde dos trabalhadores.
Precarização da vida acadêmica
Nesse cenário, o problema do adoecimento dos pós-graduandos não pode ser entendido
apenas como uma questão de gestão das universidades e, muito menos, como um situação
isolada que cabe aos indivíduos resolverem sozinhos. Por um lado, as mudanças na
organização da produção de mercadorias do capitalismo ampliaram as formas de trabalho
precarizado, ampliando a intensidade da exploração e, inclusive, ampliando o impacto
sobre a sua vida privada. Sabe-se que
a flexibilização se expressa na diminuição drástica das fronteiras entre atividade laboral e espaço de
vida privada, no desmonte da legislação trabalhista, nas diferentes formas de contratação da força
de trabalho e em sua expressão negada, o desemprego estrutural (ANTUNES, 2018, p. 141).
Por outro lado, a universidade se torna cada vez mais um espaço que contribui na
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produção e reprodução do capital. Se em outros momentos históricos os cientistas gozavam
de uma relativa autonomia para realizar suas pesquisas, o capitalismo faz com que a ciência
se integre organicamente às forças produtivas. Com isso,
o modo capitalista de produção destrói sistematicamente todas as perícias à sua volta, e dá
nascimento a qualificações e ocupações que correspondam às suas necessidades. As capacidades
técnicas são daí por diante distribuídas com base estritamente na “qualificação”. A distribuição
generalizada do conhecimento do processo produtivo entre todos os participantes torna-se, desse
ponto em diante, não meramente “desnecessária”, mas uma barreira concreta ao funcionamento do
modo capitalista de produção (BRAVERMAN, 2015, p. 79).
O próprio cientista, mesmo quando é o trabalhador de uma universidade pública,
deve responder aos interesses do capital, caso queira manter seu emprego e evitar ficar
marginalizado em seu próprio local de trabalho. Neste caso, ações de diferentes governos,
como uma legislação que facilita o investimento privado ou que afetem a democracia
interna das universidades, não são meras ações ideológicas ou de uma gestão específica,
mas políticas de interesse do capital que visam garantir que as atividades acadêmicas
continuem a ser realizadas respondendo aos interesses empresariais.
Nesse processo, os pesquisadores em formação na pós-graduação mostram-se o elo
mais frágil dentro do mundo acadêmico. Por um lado, há os profissionais que buscam uma
maior escolaridade. Essa procura está relacionada ou ao crescimento dentro da empresa,
no caso dos profissionais oriundos do setor privado, ou progressão na carreira, no caso
de servidores públicos. Sua perspectiva de concluir o mestrado ou o doutorado passa, em
grande medida, pela melhoria na sua condição de vida, por meio do aumento salarial. Pode
haver uma relação entre a pesquisa a ser realizada e suas tarefas no trabalho, mas este não
é necessariamente um requisito.
Por outro lado, ingressam na pós-graduação uma massa de pessoas que ou estão
desempregadas (em grande parte, por exemplo, jovens recém-formados) ou com empregos
precários (por exemplo, profissionais temporários em vagas públicas, como os professores).
Na pós-graduação visam ou uma forma de garantir sua subsistência por meio de bolsa de
estudo ou de buscar na titulação uma forma de concorrer a melhores condições de emprego.
Com isso, acabam se tornando o principal grupo submetido à intensificação as exigências
do meio acadêmico, sofrendo ameaças das mais diversas e sempre sendo lembrados dos
riscos de serem prejudicados caso não se submetam. Ainda que haja pós-graduandos que
busquem no meio acadêmico o desenvolvimento prazeroso de pesquisas e de temas que
lhe interessam, as pressões sofridas acabam empurrando muito de suas perspectivas para
a resolução de situações práticas, como a obtenção de um emprego melhor ou a progressão
na carreira (SILVA, 2005; SILVA, 2020).
O cenário que se cria reproduz a ilusão de que a pós-graduação pode melhorar sua
condição de vida imediata e, também, fomenta a expectativa de que pode trazer conquistas
futuras. Essas ilusões e expectativas, em que o pós-graduando enxerga na titulação a
resolução de seus problemas, são gestadas pelas pressões materiais a que essas pessoas
estão submetidas. Com o desenvolvimento do capitalismo e suas ações de para resolver as
crises cíclicas,
o próprio conceito de qualificação torna-se degradado justamente com a deterioração do trabalho, e
o gabarito pelo qual ele é medido acanha-se a tal ponto que hoje o trabalhador é considerado como
possuindo uma ‘qualificação’ se ele ou ela desempenham funções que exigem uns poucos dias ou
semanas de preparo; funções que demandem meses de preparo são consideradas muito exigentes,
e a função que exija preparo por período de seis meses a um ano, tais como a de programador de
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computador, inspiram um paroxismo de pavor (BRAVERMAN, 2015, p. 375).
Portanto, as expectativas do capital em relação à “qualificação” são diferentes daquelas
das pessoas que cursam uma pós-graduação. Para o capital, é suficiente ter um grupos
de cientistas leais política e ideologicamente que lhe garantam intensificar a produção e
manter a exploração do trabalhador. Para o jovem e o trabalhador em situação precária fica
a esperança de conquistar um emprego estável e um salário elevado e, em alguns casos,
ao se submeter politicamente, ser agraciado com algumas benesses ofertadas pelo capital.
Entre a realidade dos interesses do capital e as ilusões de setores pauperizados da classe
trabalhadora há um evidente e gigantesca diferença.
No caso dos pós-graduandos que possuem emprego a situação não é muito melhor,
afinal a pós-graduação está associada a algum tipo de requisito relacionado ao seu vínculo
empregatício. Um dos exemplos mais comuns são de profissionais de empresa que fazem
pós-graduação tendo a liberação de parte da carga horária, mas que, em contrapartida,
devem apresentar resultados que interessem à empresa. Neste caso, há uma pressão dupla,
ou seja, da universidade pela conclusão do curso e da empresa pela entrega de algum
produto, preferencialmente uma patente, que possa contribuir no processo de produção.
Outro exemplo são os trabalhadores do serviço público. Uma parte consegue dispensa
integral e outra apenas parcial do trabalho. Em ambos os casos, contudo, esses trabalhadores
também são pressionados a apresentar resultados que, por exemplo, auxiliem no diagnóstico
de problemas ou apresentem métodos inovadores para processos administrativos ou de
produção. Além disso, é comum que esses trabalhadores sejam utilizados nos processos
de capacitação de outros profissionais dos próprios órgãos a que estão vinculados, vindo a
acumular, depois do retorno ao trabalho, essa atividade à sua rotina.
Percebe-se, assim, que o desenvolvimento de tecnologias e de processos e sua
inovação está associado a pesquisadores em formação, se dando sob condições adversas ou
mesmo precarizadas. Não custa lembrar que não existe
limites para a precarização, apenas formas diferenciadas de sua manifestação. Formas capazes de
articular em uma única cadeia produtiva desde o trabalho terceirizado, quarteirizado, muitas vezes
realizado na casa dos próprios trabalhadores, até aquele intensificado ao limite, desenvolvido nos
ambientes “modernos” e “limpos” das corporações mundiais (ANTUNES, 2018, p. 142).
Conclui-se, assim, que o pós-graduando encontra, em primeiro lugar, um ambiente
em que são reproduzidas, ainda que com mediações, as formas de exploração capitalista do
trabalho. Em segundo lugar, ao entrar nesse meio, percebe logo que quaisquer expectativas
que pudesse ter são enfraquecidas ou mesmo destruídas, na medida em que são forças
privadas, externas à universidade, que determinam seus interesses. E, em terceiro, diante
da piora da situação de vida da classe trabalhadora, o pós-graduando não tem muitas
alternativas a não ser se submeter a essa situação estrutural de desconforto e hostilidade.
Esse é o cenário em que se dá o adoecimento dos pós-graduandos.
Os pós-graduandos e seu adoecimento
Foram apresentados vários elementos sobre o adoecimento dos pós-graduandos nos
fragmentos de depoimentos antes citados. Um que aparece com frequência é a depressão,
que está associada ao desânimo em relação à realidade e à própria vida, fazendo com que a
pessoa perca a vontade não apenas de agir, mas até mesmo de ter qualquer interação com
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o mundo que a cerca. Não se trata de um mero desânimo diante de uma situação adversa
momentânea, mas de um estado que se torna frequente ao longo de dias, semanas ou mesmo
meses. Esse estado tem implicações físicas e mentais, podendo afetar a pessoas de diversas
formas. A depressão não surge por acaso, afinal vive-se
em uma lógica social na qual o constante aprimoramento da eficiência, da produtividade, da
autorrealização e do desempenho atua como princípio normativo, restringindo cada vez mais o que
define a normalidade (CORBANEZI, 2021, p. 197).
No caso dos pós-graduandos, uma das possíveis causas da depressão pode estar associada à
crise de expectativas em relação ao trabalho que está realizando. Conforme se percebe nos
relatos antes apresentados, há entre os pós-graduandos decepção com seus orientadores,
a pressão para assumir tarefas em laboratórios que consomem o tempo que deveriam ter
dedicado a suas pesquisas ou a pressão para a publicação de artigos em coautoria forjada.
Outras situações poderiam ser descritas, mas de forma geral o que se tem é um cenário em
que a realidade cotidiana concreta solapa quaisquer ilusões e expectativas. Nesse processo,
o sujeito interpreta adversidades como sinal e permissão para a desistência. Os triunfos são sentidos
como derrotas e as realizações, como sinais de insuficiência (perfeccionismo). Isso pode fazer com
que o deprimido desista de fazer seu desejo reconhecido. Isso ocorre de forma circular. A falta
de dedicação aos sonhos e projetos leva a decepções que confirmam a insuficiência e impotência,
reduzindo a autoestima (DUNKER, 2017, p. 225).
Outro transtorno mental frequente entre os pós-graduandos é a ansiedade. Ela
está relacionada ao sentimento de angústia, na medida em que a pessoa se vê impotente
diante de uma realidade que o oprime, onde “a incerteza quanto às verdadeiras razões
do sucesso ou do fracasso engendram uma forma de dívida difusa e de ansiedade
flutuante” (Dunker, 2017, p. 199). A ansiedade pode ser caracterizada como uma carga de
energia emocionalmente bloqueada, que gera tensões internas e se manifesta por meio
de sintomas físicos e emocionais. Freud (2013, p. 229) destacava que a ansiedade, “como
estado afetivo, é a reprodução de um velho acontecimento ameaçador”, que se coloca “a
serviço do autoconservação e é o sinal de um novo perigo”. No caso do pós-graduando, em
grande medida, a ansiedade está associada ao medo de não conseguir realizar o projeto
nos prazos estabelecidos ou de não cumprir as metas estabelecidas por seus laboratórios
e orientadores, o que leva ao sofrimento e ao desenvolvimento de sintomas mentais, que
passam por fobias e insônia, e físicos, como crises que provocam alterações na respiração
ou mesmo cardiovasculares.
Outro elemento que está no cotidiano das pessoas é o estresse. Trata-se de um
conjunto de reações do indivíduo diante dos problemas com os quais precisa lidar em seu
cotidiano, provocando nervosismo, tristeza, apatia, entre outras coisas. O acúmulo desses
sentimentos pode provocar uma diversidade de reações fisiológicas e psíquicas, que levam
ao esgotamento. Trata-se de “uma síndrome que atinge corpo e mente e que expressa o
caráter totalitário e totalizante das novas implicações objetivas (e subjetivas) da produção
do capital” (Alves, 2011, p. 152). O estresse é uma doença da sociedade marcada pela forma
toyotista de organização do trabalho, onde a rápida urbanização desenvolveu gatilhos que
podem estar literalmente em qualquer esquina ou mesmo dentro de casa.
Outro elemento que marca esse processo de adoecimento passa pelo suicídio, também
mencionado nos depoimentos, que se torna uma saída cogitada pelas pessoas diante dos
sofrimentos provocados pela crueldade da realidade. Pode-se entender o suicídio como
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a expressão radicalizada da deterioração das condições de trabalho sob a vigência da gestão flexível.
Ele e todo o sofrimento que o cerca encontram espaço para se desenvolver na medida em que a
classe trabalhadora se vê diante de uma organização do trabalho voltada para o controle acentuado
de sua atividade, sob condições em que as margens para a autonomia e o imprevisto, mesmo que
já bastante limitadas na fase anterior do capitalismo, tenham sido gradativamente eliminadas
(ANTUNES, 2018, p. 144).
Embora aqui expostas de forma separada, é perceptível que depressão, ansiedade e
estresse, entre outras formas de adoecimento, estão relacionados, podendo ser não apenas
a causa de uma ou outra, como o seu agravante. Esses transtornos, como outros tantos, têm
sua origem na situação concreta em que as pessoas vivem, tendo “também como pano de
fundo, entre outros, o crescente processo de individualização do trabalho e a ruptura do
tecido de solidariedade antes presente entre os trabalhadores” (Antunes, 2018, p. 143). Essas
situações afetam física e mentalmente o sujeito, ainda que se busque apresentar os problemas
como coisas separadas, procurando mostrar os transtornos psíquicos desassociados da
realidade concreta e os problemas físicos a eles relacionados desligados da mente. Devese ter a clareza de que “essa estratégia de fragmentação do mal-estar dificulta que o sujeito
reconheça que seu sofrimento tem uma relação direta com a maneira como ele vive sua
vida” (Dunker, 2017, p. 217).
Uma resposta ao sofrimento e ao adoecimento normalmente é o uso de drogas, não
apenas como escolha individual, mas como recomendação de profissionais da área médica.
Engels chamava a atenção para a questão do alcoolismo, relacionado isso à situação a que
estava submetida a classe trabalhadora inglesa no século XIX:
Todas as ilusões e tentações se juntam para induzir os trabalhadores ao alcoolismo. A aguardente é
para eles a única fonte de prazer e tudo concorre para que a tenham à mão. O trabalhador retorna à
casa fatigado e exausto; encontra uma habitação sem nenhuma comodidade, úmida, desagradável e
suja; tem a urgente necessidade de distrair-se; precisa de qualquer coisa que faça seu trabalho valer
a pena, que torne suportável a perspectiva do amargo dia seguinte. Fica acabrunhado, insatisfeito,
sente-se mal, é levado à hipocondria; esse estado de ânimo se deve principalmente às suas más
condições de saúde, à sua má alimentação e é exacerbado até o intolerável pela incerteza de sua
existência, pela absoluta dependência do acaso e por sua incapacidade de pessoalmente fazer algo
para dar alguma segurança à sua vida. Seu corpo enfraquecido pela atmosfera insalubre e pela má
alimentação requer imperiosamente um estimulante externo; a necessidade de companhia só pode
ser satisfeita numa taberna, porque não há nenhum outro lugar para encontrar os amigos (ENGELS,
2008, p. 142).
O cenário atual fica ainda mais complexo, diante da massificação e da diversificação
dos tipos de drogas. O uso recreativo se torna uma resposta do indivíduo diante dos
problemas e dificuldades a que estão submetidos. Diante da sua fragilidade psíquica, o
consumo de drogas, se mantida sua regularidade, pode levar ao abuso e ao vício. Além disso,
certas drogas legalizadas, culturalmente encaradas e vendidas como remédios, mostram
um cenário ainda pior, na medida em que se tornaram as principais formas indicadas por
médicos no tratamento para os transtornos mentais.
Em certa situações o uso de remédios deve ter seu uso recomendado, como parte de
um tratamento terapêutico mais amplo. Contudo, o que se vê são médicos recomendando
de forma indiscriminada remédios e a ação dos mais variados laboratórios na fabricação
de todo o tipo de drogas que afetam a mente das pessoas, seja, por exemplo, para animar
aquelas que estão em estado depressivo, seja para provocar o relaxamento naqueles que
sofrem com os transtornos de ansiedade (DUNKER, 2017). Assim, são criados dependentes
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de drogas legalizadas, que aceitam esse tipo de tratamento diante da promessa de resposta
rápida aos sentimentos de angústia ou mesmo de desespero a que estão submetidos. Se num
primeiro momento há uma sensação de melhoria, no médio e longo prazo fica evidente que
seu efeito é efêmero e que somente será possível manter esse estado ampliando o consumo
desses e de outros medicamentos, ampliando o vício.
Essas pessoas, que sofrem com ansiedade ou depressão, na busca por ajuda
profissional, são jogadas para outra doença, a da dependência química de substâncias que
alteram seu comportamento. Isso tem um dupla causa no capitalismo, o qual primeiro leva
às pessoas ao adoecimento e depois apresenta as drogas como uma resposta positiva, criando
a dependência. Com isso, a dependência química deixa de ser um problema individual,
devendo ser enfrentada pela sociedade de conjunto. Engels (2008, p. 142-3) afirmava que,
nesse caso, o alcoolismo deixa de ser um vício de responsabilidade individual; torna-se um
fenômeno, uma consequência necessária e inelutável de determinadas circunstâncias que agem
sobre um sujeito que – pelo menos no que diz respeito a elas – não possui vontade própria, que se
tornou – diante delas – um objeto; aqui, a responsabilidade cabe aos que fizeram do trabalhador um
simples objeto.
Muitos pós-graduandos, diante do cenário de pressões e falta de expectativas, com o
adoecimento de corpo e mente, encontram nas drogas, tanto as legais como as ilegais, uma
forma de concluir seu trabalho. Não é incomum que combinem dois tipos de remédios para
inclusive reverter os efeitos de um ou do outro ou que consumam álcool mesmo quando
tomam medicação controlada. Para os pós-graduando que se encontram nessa situação,
o importante é estar em condições de executar, dentro do prazo, aquilo que lhe é exigido
pelo curso. Caso conclua a pesquisa e defenda sua tese ou dissertação, a universidade estará
contente e o elogiará, independente das sequelas físicas e psíquicas que deixaram marcas
no agora pesquisador formado, e que o afetarão por toda a sua vida.
Perspectivas
Para começar a resolver o problema do adoecimento da classe trabalhadora, não resta
outra coisa que não seja atacar sua causa, ou seja, é preciso construir uma nova sociedade,
governada pelos trabalhadores, onde a produção não esteja voltada para o enriquecimento
privado. Essa nova sociedade somente poderá ser construída a partir de uma profunda
transformação que coloque no horizonte o interesse do conjunto dos trabalhadores,
democratizando o conhecimento científico acumulado pela humanidade e utilizando-o
para o fortalecimento do conjunto das pessoas.
Contudo, um primeiro obstáculo para que se possa caminhar no sentido dessa solução
passa justamente pelo fato de que uma das consequências do adoecimento físico e mental
das pessoas é o abandono de quaisquer perspectivas de futuro, optando não por saídas
complexas e de longo prazo, mas por soluções mais imediatas (consumo de drogas, saídas
individuais, suicídio, entre outras coisas). Certamente não se trata de um erro procurar
amenizar os sofrimentos provocados pela sociedade capitalista e sua fábrica de misérias,
se dedicando a formas saudáveis de lazer e distração. Contudo, ao mesmo tempo, é preciso
lutar contra uma das mais cruéis consequências do capitalismo, que é a perda do senso de
coletividade.
Observa-se que em algumas universidades existem pequenos grupos que procuram
ser espaços saudáveis para a convivência dos pesquisadores em formação. Procura-se evitar
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a competitividade, incentivando a colaboração entre os membros. Procura-se diminuir
os impactos da produtividade imposta pelo capitalismo às universidades, de tal forma
a construir um ambiente de trabalho que prioriza a produção de conhecimento e não a
fabricação de números. Contudo, esses grupos, além de pequenos, estão cada vez mais
raros, afinal sofrem dificuldades de se sustentar materialmente diante dos empecilhos
impostos pelos interesses do capital nas universidades.
Uma nova sociedade, em que o lucro não esteja no centro de tudo, pode ser um
primeiro passo para que as pessoas possam viver uma vida mais saudável. Um novo mundo
precisa ser construído, em que seja possível superar a miséria e o adoecimento, mas, para
tanto, é importante que os trabalhadores transformem a realidade e se empenhem na luta
por uma nova sociedade, superando, assim, as sequelas que a miséria capitalista nos impõe
cotidianamente.
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