Arq Bras Neurocir 25(2): 82-85, junho de 2006
Abscesso cerebral por
Actinomyces odontolyticus
Relato de caso
PauloValdeciWorm1,MáriodeBarrosFaria1,MarceloPaglioliFerreira2,NelsonPiresFerreira3
Serviço de Neurocirurgia, Hospital São José, Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, RS, Brasil
RESUMO
Actinomicose é uma infecção supurativa crônica que tende a formar abscessos. O acometimento do
sistema nervoso central é evento raro, sendo crucial o diagnóstico diferencial com nocardiose para a
seleção apropriada da terapia antimicrobiana. O manejo recomendado consiste na drenagem cirúrgica
associada ao tratamento prolongado com antibióticos por, em média, 5 meses, além da erradicação do
foco primário, quando identificado. Embora constitua uma forma tratável de abscesso cerebral, está
relacionada a morbidade e mortalidade elevadas. É relatado caso de abscesso cerebral causado por
Actinomyces odontolyticus em paciente imunocompetente, cuja evolução desfavorável possa estar
relacionada à restrição do espectro antimicrobiano após identificação do agente etiológico.
PALAVRAS-CHAVE
Abscesso cerebral. Actinomicose. Actinomyces odontolyticus.
ABSTRACT
Actinomycotic brain abscess. Case report
Actinomycosis is a chronic supurative infection caused by a bacterium which tends to form abscesses.
The involvement of the central nervous system is rare, and its differentiation from Nocardiosis is crucial
for the appropriate selection of antibiotics. Adequate treatment consists of surgical drainage associated to
prolonged antimicrobial medication, in addition to eradication of primary focus, when identified. In spite of
being a treatable cause of cerebral abscess, it is associated with significant morbidity and mortality. A case
of actinomycotic brain abscess in an immunocompetent patient is reported, whose poor outcome could
have been related to the antibiotic spectrum restriction that followed identification of the etiologic agent.
KEY WORDS
Brain abscess. Actinomycosis. Actinomyces odontolyticus.
Introdução
Relato do caso
A actinomicose é uma infecção causada por microorganismo comensal que habita a cavidade oral e
tratos gastrointestinal e pélvico8,20. Embora apresente
algumas semelhanças com fungos, a presença de ácido
murâmico e a ausência de membrana circundando o
núcleo classificam-na como bactéria. Afeta indivíduos
imunodeprimidos e imunocompetentes20. A infecção
do sistema nervoso central (SNC) é rara, porém está
associada a prognóstico reservado12.
Apresentamos um caso de abscesso cerebral por
Actinomyces odontolyticus em uma paciente do sexo
feminino, 66 anos de idade, com história de cefaléia
hemicraniana esquerda com quatro semanas de evolução
associada a vômitos e confusão mental progressivos. Não
havia relato de febre. O exame físico revelou disfasia de
expressão, paralisia facial à esquerda e ptose palpebral
ipsilateral, associados a hemiparesia e hiperreflexia do
hemicorpo direito com predomínio crural. A paciente
1 Médico residente do Serviço de Neurocirurgia do Hospital São José – Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
2 Mestre em cirurgia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, RS. Research fellow pela Wayne State University, Estados Unidos.
3 Chefe do Serviço de Neurocirurgia do Hospital São José – Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Professor de cirurgia da Faculdade de
Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
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estava afebril, sem sinais de irritação meníngea. Referiu
ter sido submetida a extração dentária cerca de dois
meses antes e negou doenças cardíacas, pulmonares ou
outras comorbidades. Tomografia computadorizada (TC)
e ressonância magnética (RM) de crânio evidenciaram
lesão expansiva frontotemporal esquerda com limites
bem definidos, realce anelar após injeção de contraste e
edema circunjascente (figuras 1 e 2). Foi diagnosticada,
na internação, infecção urinária por Escherichia coli. O
hemograma identificou apenas microcitose, estando todos
os demais parâmetros dentro dos limites da normalidade.
Os valores de velocidade de sedimentação glomerular
(VSG) e proteína C reativa eram, respectivamente, de 75
mm e 39,6 mg/L. As provas diagnósticas para a síndrome
da imunodeficiência adquirida (SIDA) foram negativas.
A paciente foi internada em unidade de terapia
intensiva (UTI) e submetida a tratamento neurocirúrgico da lesão por meio de craniotomia frontotemporal
esquerda, seguida de punção aspirativa da lesão com
agulha. Foram extraídos aproximadamente 40 mL de
secreção purulenta verde-amarelada com odor fétido.
Iniciou-se esquema tríplice antimicrobiano para o tratamento de abscesso cerebral, incluindo vancomicina
1 g endovenoso (EV) a cada 12 horas, ceftriaxona 2 g
EV a cada 12 horas e metronidazol 600 mg EV a cada
6 horas. A paciente evoluiu de forma favorável, com
melhora discreta, porém progressiva, da disfasia e hemiparesia, recebendo alta da UTI para a enfermaria no
terceiro dia pós-operatório. Recebeu esse esquema de
antibióticos por 8 dias, quando o resultado da cultura
anaeróbica apontou Actinomyces odontolyticus como
agente etiológico. O esquema tríplice antimicrobiano
foi, então, substituído por penicilina G cristalina, sendo
programada nova TC de controle em 7 dias.
No sexto dia depois de instituída a penicilina como
monoterapia, a paciente iniciou quadro de vômitos,
sonolência progressiva e anisocoria, com midríase
à esquerda. Nova TC de crânio (figura 3) realizada
em caráter de urgência mostrou recidiva do abscesso
frontotemporal esquerdo, com dimensões superiores
àquelas vistas no exame pré-operatório e desvio da
linha mediana em cerca de dois centímetros. Foram
administrados 150 mL de manitol a 20% e oito unidades de plaquetas para corrigir trombocitopenia (o
hemograma mostrou 30.000 plaquetas). A paciente foi
imediatamente levada ao bloco cirúrgico para nova punção da lesão, onde se obteve saída de pus francamente
espesso com raias de sangue. O material foi enviado ao
laboratório para cultura. Oito horas depois, a paciente
apresentou midríase paralítica bilateral, refratária à
terapia máxima antiedema. Tomografia de crânio iden-
Figura 1 – Tomografia computadorizada de crânio com contraste
evidenciando processo expansivo frontotemporal à esquerda, com
duas áreas centrais hipodensas e realce linear circunjascente.
A
B
Figura 2 – Ressonância magnética em T1 antes (A) e após (B) a injeção de gadolínio mostra lesão frontotemporal esquerda em hipossinal
com septação central e realce anelar periférico pós-contraste bem definidos, com edema circunjascente, característicos do abscesso cerebral.
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Worm PV e col.
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tificou sangramento na topografia do abscesso drenado,
com inundação ventricular. Evoluiu para óbito em três
dias. As culturas da segunda punção do abscesso foram
todas negativas.
Figura 3 – Tomografia computadorizada com contraste confirma
a recidiva do abscesso, com importante efeito de massa e desvio
das estruturas da linha média.
Discussão
Das espécies de Actinomyces conhecidas, seis
podem causar doenças em humanos (A. israelii, A.
naeslundii, A. odontolyticus, A. viscosus, A. meyeri
e A. Gerencseriae)16. Os germes do tipo Actinomyces
são geralmente comensais e de baixa patogenicidade,
causando infecção endógena em locais de trauma ou
necrose tecidual, como em extrações dentárias e/ou
feridas cirúrgicas15. Quatro formas clínicas de apresentação foram descritas (cervicofacial, torácica, abdominopélvica e cerebral), responsáveis pela maioria das
infecções em humanos19. No SNC, pode se apresentar
sob forma de meningite, meningoencefalite, empiema
subdural, actinomicoma e abscesso cerebral ou epidural
espinhal5-7,9,10,21. O germe atinge o SNC geralmente por
via hematogênica, proveniente de infecção primária no
pulmão, abdome ou pelve; além disso, as infecções de
ouvido, seios da face ou região craniocervical podem
facilitar a penetração de bactérias através dos forames
da base do crânio, causando infecção focal ou meningite basilar. Numa revisão realizada por Smego18, os
fatores de risco incluíram cárie e abscesso dentários,
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Worm PV e col.
extração dentária recente, cirurgia do trato gastrointestinal, trauma craniano, otite, mastoidite, sinusite
e tetralogia de Fallot. Em aproximadamente 1/3 dos
casos, Actinomyces são isolados como parte de uma
flora bacteriana mista que inclui uma ou mais espécies
de bactérias aeróbias e anaeróbias19.
O abscesso cerebral, quando causado pelo Actinomyces, constitui a apresentação mais freqüente da
doença no SNC, correspondendo a 76% dos casos,
usualmente únicos e multilobulados, com aparente
predileção pelos lobos frontal e temporal18. O intervalo
entre o início dos sintomas e o diagnóstico tende a ser
maior quando comparado com os abscessos piogênicos causados por outros agentes etiológicos3. Nas
apresentações não meníngeas, os sinais e sintomas são
tipicamente de lesão expansiva, com déficit neurológico
focal e sinais de hipertensão intracraniana dominando
o quadro clínico. Sinais e sintomas específicos são
variáveis dependendo da localização anatômica do
abscesso. A febre está presente em menos de 50% dos
casos, o que, com freqüência, dificulta a diferenciação
entre processo infeccioso e neoplasia17,18.
O acometimento do SNC pode ocorrer por via
direta, através dos tecidos ou ossos da região cervicofacial, ou por via hematogênica, a partir de focos
abdominais, pélvicos ou dentários. O envolvimento
de pacientes com SIDA não é freqüente; contudo, há
relatos de formas progressivas e intratáveis nesses
indivíduos13. O diagnóstico definitivo é firmado pela
identificação do microorganismo a partir de cultura
microbiológica ou histológica, embora esta última
seja mais difícil, uma vez que muitas espécies contêm
poucos grânulos sulfúricos4,11,14.
Actinomyces são susceptíveis, in vitro, a um grande
número de agentes antimicrobianos, incluindo penicilinas, cefalosporinas, cloranfenicol, eritromicina, estreptomicina, clindamicina e tetraciclina15,18. A experiência
clínica demonstrou que são necessárias altas doses de
medicamentos associadas ao tratamento cirúrgico, quando indicado, para a obtenção de resposta favorável, além
da erradicação do foco primário quando identificado3,15.
A terapia antimicrobiana deve ser individualizada, sendo
o esquema preconizado composto de 18 a 24 milhões de
unidades de penicilina G cristalina endovenosa por 2 a
6 semanas, seguido por penicilina oral ou amoxicilina
por 6 a 12 meses15. Alguns autores advogam o uso de
associação de antibióticos devido à possibilidade de flora
mista e de resistência bacteriana18. A exata duração da
terapia depende do local e da severidade da doença. A
observação prolongada dos pacientes após o tratamento
é necessária para detectar recorrências19.
A revisão de Smego18 sobre abscessos cerebrais
causados por Actinomyces incluiu 70 pacientes tratados
com antibióticos e drenagem cirúrgica. Esse trabalho
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identificou mortalidade em torno de 28% e déficit neurológico residual de 54% entre os sobreviventes. Fatores
que se mostraram envolvidos num pior prognóstico
incluíam a presença de sintomas por mais de 2 meses
antes da internação, o não tratamento com antibióticos
e a aspiração com agulha em vez de drenagem aberta18.
Não há medidas específicas para a prevenção da actinomicose; entretanto, boa higiene dental e remoção da
placa bacteriana podem reduzir a densidade de germes
colonizantes. Entre 121 casos de actinomicose cervicofacial, Porter14 identificou 27 pacientes com história
prévia de extração dentária recente e 33 pacientes com
cáries. Soma-se a isso o fato de procedimentos dentários
constituírem causa importante de bacteremia, sobretudo
naqueles com periodontite. Bhatawadekar2 relatou a
prevalência de 80% de bacteremia após procedimentos dentários, 30% destes envolvendo Actinomyces. O
subtipo odontolyticus foi isolado em 8,33% dos casos,
e flora mista foi evidenciada em 26% dos pacientes.
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No caso de abscesso cerebral por Actinomyces
odontolyticus aqui relatado, a história de extração
dentária, 2 meses antes da admissão hospitalar, e a
presença de dentes sépticos e sangramento gengival
sugerem a cavidade oral como foco primário da infecção. A melhora neurológica evidente observada após a
drenagem cirúrgica mais antibioticoterapia em esquema
tríplice, associada à deterioração clínica subseqüente à
substituição deste esquema tríplice pela monoterapia,
com desfecho fatal, nos alerta para os riscos relacionados a essa conduta. Talvez, o potencial benefício de
se restringir o espectro antimicrobiano no tratamento
do abscesso cerebral deva ser cuidadosamente revisto
em virtude da possibilidade constante de resistência
bacteriana e da presença de flora mista, a despeito da
identificação de germe único na cultura.
Este relato de caso coloca em dúvida a segurança do
tratamento com penicilina como droga única do abscesso cerebral depois de isolado Actinomyces odontolyticus
como único agente etiológico.
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Original recebido em outubro de 2005
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Aceito para publicação em março de 2006
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Abscesso cerebral por Actinomyces odontolyticus
Worm PV e col.
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