Falar o Sofrimento de Vidas Presas: uma Política da Narratividade
Talking the Suffering of Lives Arrested: a Policy of Narrativity
Hablando el Sufrimiento de Las Personas Detenidas: una Política de La Narratividad
Alyne Alvarez Silva
Graduação em Psicologia (2006) e Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal do
Pará (2009). É professora da Universidade da Amazônia (UNAMA) e doutoranda no Programa de
Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo/PUC-SP. Membro do Movimento
Paraense da Luta Antimanicomial/MLA-PA, que integra a Rede Nacional Internúcleos da Luta
Antimanicomial/RENILA.
Email: alvarezalyne@gmail.com
Maria Cristina Gonçalves Vicentin
Graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1983), Mestrado em
Psicologia Social (1991) e Doutorado em Psicologia Clínica (2002) pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo. É Professora Doutora do Programa de Pós Graduação em Psicologia Social da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde coordena o Núcleo de Lógicas Institucionais e
Coletivas.
Email: mvicentin@pucsp.br
Resumo
O artigo aborda o sofrimento de vidas reclusas em um manicômio e um simulacro de manicômio, respectivamente: o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Pará e a Unidade
Experimental de Saúde de São Paulo. Apresenta duas modalidades de mecanismos de segurança que acionam circuitos de intercâmbio entre norma biológica e norma jurídica como forma
de garantir a construção do indivíduo perigoso e a manutenção de dispositivos de exclusão e
violência. Pontuando a lógica que os atravessa, em diálogo com o estado penal e a biopolítica,
destacamos o sofrimento dos internos como um dos efeitos desta lógica, buscando fazer ecoar o
intolerável e ativar lutas que impeçam a ampliação da rede penal. Apontamos, por fim, algumas
pistas para uma ação ético-política neste âmbito, pontuando as condições de enunciação desse
sofrimento em uma política da narratividade.
Palavras-chave: Política da narratividade; Sofrimento; Manicômio judiciário; Mecanismo de
segurança.
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Silva, A.; Vicentin, M.
Abstract
The article discusses the suffering prisoners of a judiciary asylum, and a simulacrum of that,
respectively: Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico in Pará and Unidade Experimental de Saúde in São Paulo. Presents two types of security mechanisms that drive circuits
of exchange between biological norm and juridic norm in order to ensure the construction of
dangerous individual and maintenance of devices of exclusion and violence. Punctuating the
logic that crosses in dialogue with the state criminal and biopolitics, we highlight the suffering
of the inmates as one of the effects of this logic, searching echoing the intolerable and activate
struggles that prevent the expansion of the criminal network. Pointed out, finally, some clues for
an ethical-political action in this area, pointing out the conditions of enunciation that suffering
in a policy narrative.
Keywords: Politics of narrativity; Suffering; Asylum judiciary; security mechanism.
Resumen
El artículo aborda la difícil situación de los presos que viven en judicial manicomio y una semblanza de esta, respectivamente: Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico in Pará and
Unidade Experimental de Saúde in São Paulo. Presenta dos tipos de mecanismos de seguridad
que disparan circuitos de intercambio entre norma biológica y el norma juridica, a fin de garantizar la construcción de los individuos peligrosos y el mantenimiento de los dispositivos de la
exclusión y de la violencia. Puntuando la lógica que atraviesa un diálogo con el estado criminal
y la biopolítica, se destaca el sufrimiento de los presos como uno de los efectos de esta lógica,
buscando eco de lo intolerable y activar las luchas que impiden la expansión de la red criminal.
Señaló, por último, algunas claves para una acción ético-política en la materia, señalando las
condiciones de enunciación que sufren desde una política de la narratividad.
Palabras clave: Política de la narratividad; el sufrimiento; judicatura Asylum; el mecanismo
de seguridad.
Este artigo visa colocar em pauta o
Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Pará
sofrimento de internos de instituições to-
e a Unidade Experimental de Saúde de São
tais, recentemente erguidas na contramão
Paulo.
do processo de Reforma Psiquiátrica vivida
O Hospital de Custódia e Tratamen-
no Brasil há quase três décadas: Hospital de
to Psiquiátrico (HCTP), chamado até a Lei
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de Execução Penal (1984) de manicômio ju-
da Saúde, Justiça e Administração Peniten-
diciário, é o lugar para onde são encaminha-
ciária, para oferecer tratamento para adoles-
das as pessoas com suspeita ou diagnóstico
centes autores de ato infracional portadores
de algum transtorno mental e que comete-
de diagnóstico de transtorno de personali-
ram algum delito. Teoricamente serviria às
dade e/ou de periculosidade, em regime de
pessoas que, não conscientes do ato ilícito
contenção, alargando, assim, o tempo de in-
que cometeram ou incapazes de determinar-
ternação dos jovens (que poderá ser, inclusi-
-se de acordo com a ilicitude do fato, ofe-
ve, indefinido), por meio do acionamento da
recem sérios riscos a si e à outrem e devem
interdição civil. Juridicamente, trata-se de
cumprir medida de segurança – considerado
um arranjo que transforma a medida socio-
um tratamento psiquiátrico – até que cesse
educativa em protetiva para uma internação
sua suposta periculosidade. Porém, longe de
psiquiátrica compulsória, que,em seguida, é
se configurarem como Hospital, estes espa-
adicionada a uma interdição civil, num si-
ços são de fato prisões.
mulacro de medida de segurança.
Os HCTP’s, no entanto, podem ser
Sua emergência delineia um vetor
considerados ainda piores tendo em vista
central da política de gestão da criminali-
que as pessoas que aí entram, não têm pra-
dade juvenil de São Paulo: o da construção
zo determinado para sair. Elas dependem de
do jovem perigoso, “intratável”, portador
um exame de cessação de periculosidade
de Transtorno de Personalidade Antissocial
que deveria ser feito anualmente, mas não o
(TPAS) que justifica este continuum inter-
é e, sem acompanhamento em saúde mental
namento (Gramkow, 2012). Acionando es-
e sempre olhadas pelo prisma da psiquiatria
tratégias de exílio, inabilitação, imunização
forense, a qual costuma ser bastante conser-
e aniquilamento, tal política se vale de en-
vadora, quando passam por este exame não
grenagens de exceção (Agamben, 2002),
deixam de ser consideradas doentes e enten-
e m nome da proteção social (Gramkow,
didas como perigosas. Daí o caráter, muitas
2012).
vezes, perpétuo da medida de segurança.
Após delinearmos brevemente o
A Unidade Experimental de Saúde
contexto de produção desses aparatos e os
no estado de São Paulo é, por sua vez, um
dispositivos pelos quais atua, produzindo
simulacro de um Manicômio Judiciário. Es-
“anormais” e indivíduos “perigosos” para
tabelecimento único no Brasil, inaugurado
justificar táticas de guerra contra a própria
em dezembro de 2006, foi criada por lei es-
população, apresentamos expressões do so-
tadual, em um convênio entre as Secretarias
frimento das pessoas aí enclausuradas para
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daí extrairmos algumas pistas de trabalho
responder às desordens suscitadas pela
em que a expressão e a narrativa do insupor-
desregulamentação
tável de suas vidas reclusas e negadas possam
da
economia,
pela
dessocialização do trabalho assalariado
e pela pauperização relativa e absoluta
“interrogar os silêncios da história” (Meunier,
de amplos contingentes do proletariado
1999, p. 84-85), configurando atos que alterem
urbano, aumentando os meios, a amplitude
certos regimes de verdade.
e a intensidade da intervenção do aparelho
policial e judiciário (Wacquant, 2001, p. 10).
Mecanismos de segurança e racismo de
estado: manicômios judiciários e seus
simulacros
Nesse sentido, não apenas autoriza-se o uso da violência estatal, como permite-se práticas extremas de arbitrariedade,
A globalização da política de Tolerância Zero e o consequente encarceramento em massa, iniciados na década de 70 nos
EUA e fortalecidos após o 11 de setembro,
sinalizaram ao mundo a instauração de um
Estado Penal (Wacquant, 2001), concomitantemente ao Estado Democrático de Direito, com práticas que influenciam fortemente
os países da América Latina. Com efeito, no
Brasil, nos anos 1990 e 2000, assistimos a
um aumento vertiginoso da população carcerária. Segundo os dados do DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional), em
1990, havia no sistema penitenciário 90 mil
presos; em 2012, esse número chega a quase 550 mil, o que significa um aumento de
511% da população carcerária no país.
Para Wacquant, desenvolver o Estado penal é restabelecer uma verdadeira
‘ditadura sobre os pobres’, já que o mesmo
funciona para:
sem que ninguém se escandalize, como era
de se esperar, a exemplo de métodos de tortura como formas de investigação – desde
que direcionadas aos setores da sociedade
identificados como suspeitos ou perigosos. Como diz Tânia Kolker (2002, p. 93):
“Quando pensávamos que as democracias
modernas teriam mais instrumentos para
coibir a violência estatal, verificamos que
a tortura coexiste muito bem com a ordem
constitucional”.
Temos, assim, a transposição dos
dispositivos do Sistema Internacional de
Segurança, que deveriam servir para a garantia da soberania do país, para o Sistema
de Segurança Nacional, em que as táticas
de guerra passam a ser utilizadas contra a
própria população com vistas a garantir a
ordem. Um exemplo atual são as ações da
polícia militar, única da América Latina que
não foi desmilitarizada, diante das manifestações sociais iniciadas em junho de 2013
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e que se irradiaram por várias cidades do
que quer fazer viver, destruindo a vida, ex-
país: em resposta a manifestações pacíficas,
pondo determinada população a perigos ou
prisões arbitrárias (por carregar vinagre!),
situações que quando não matam, mortifi-
confrontos com bombas de gás lacrimogê-
cam subjetividades, como no caso dos ma-
nio, sprays de pimenta, balas de borracha
nicômios judiciários. O racismo exerceria
e cacetes. Cenas de guerra que as camadas
uma dupla função: a de produzir uma sepa-
populares vivem cotidianamente, sendo que
ração, dentro do continuum biológico, entre
enfrentando balas de verdade; toques de re-
quem pode viver e quem pode morrer, arti-
colher; invasões domiciliares, sem mandado
culando as duas condições: a morte de uns
de segurança; mortes registradas como Re-
favorece a sobrevivência dos outros (Fou-
sistência Seguida de Morte (RSM); desapa-
cault, 1999).
recimentos, dentre outros absurdos.
Jovens e adultos associados com a
O recrudescimento das políticas
periculosidade (especialmente os do circui-
criminal e penitenciária, previsto como so-
to infracional e o circuito “uso de drogas”),
lução para a exclusão social, coloca a pri-
têm sido o alvo recorrente desta estratégia e
vação da liberdade como tática central para
estão cada vez mais regulados por circuitos
lidar com os indesejáveis, seja em prisões,
de intercâmbio entre norma biológica e nor-
hospitais psiquiátricos, manicômios judi-
ma jurídica, no âmbito de uma lógica biopo-
ciários para adultos ou jovens, centros de
lítica (Foucault, 1999).
internação, dentre outros. Os processos de
No contexto acima descrito, de uma
patologização e judicialização se fortalecem
sociedade punitiva (cf. Wacquant, 2001,
dentro de máquinas médico-jurídicas, legiti-
2008), e de produção de medo social (cf.
mando o enclausuramento em nome da pro-
Kolker, 2005), uma indiferença face à si-
teção e do direito à saúde.
tuação de sofrimento vivida tanto por adul-
É deste modo, em defesa da socieda-
tos quanto por adolescentes privados de li-
de ou da democracia, que se criam novos e
berdade tem sido uma constante (Arantes,
velhos inimigos, os quais devem ser elimi-
2009), como vemos, com a Unidade Expe-
nados segundo a lógica do racismo de es-
rimental de Saúde (UES), em São Paulo, e
tado, discutido por Foucault. Em seu curso
com o Hospital de Custódia e Tratamento
“Em defesa da sociedade”, ele explica como
Psiquiátrico de Santa Izabel do Pará.
entender em termos de racismo de estado
Se tomamos o tema do sofrimento
determinadas racionalidades e tecnologias
como perspectiva de trabalho neste tex-
que parecem ir na contramão de um poder
to, não é para reduzir as desigualdades ou
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a violência ao sofrimento, conforme aler-
Falar o sofrimento: vozes de internos do
ta Fassin (2010). O autor sinaliza um ris-
HCTP do Pará e a UES de São Paulo
co presente nas atuais políticas de ajuda a
imigrantes, refugiados e populações em
O Hospital de Custódia e Tratamento
situação de vulnerabilização (especialmen-
Psiquiátrico no Estado do Pará, inaugurado
te a juventude das periferias na França): o
no ano de 2007, foi o último a ser posto em
de que as “desigualdades sejam traduzidas
funcionamento no Brasil. Construído atra-
como sofrimento social, as violências em
vés de convênio entre Departamento Peni-
termos de traumatismos e as questões po-
tenciário Nacional (DEPEN) e o Estado do
líticas em termos humanitários” (Fassin,
Pará, com um custo previsto, em 2001, de
2010, p. 38, tradução nossa). Muito menos
5,5 bilhões reais, localiza-se no município
tomamos o sofrimento aqui apenas como
de Santa Izabel, a 60 km de Belém. Em suas
um dado ou a conseqüência de um fato,
120 vagas, hoje tem, em suas celas, 227 in-
este sim a ser analisado. Ao contrário, na
ternos e presos, número que vêm crescendo
esteira de Farge (2011) e Ferrandiz (2002,
exponencialmente devido à transferência
2005), entendemos a dor como um modo de
constante de presos provisórios, caracteri-
ser no mundo que varia segundo os tempos
zados, em sua grande maioria, como jovens,
e as circunstâncias; que pode se exprimir
pobres e usuários de drogas. Na verdade,
ou, ao contrário, se recalcar; que se insere
esse tem sido o novo perfil de boa parte da
em processos que podem ser explicados e
população institucionalizada no manicômio
combatidos, podendo ou não se transformar
judiciário do Pará. Para exemplificar o que
em ação política.
tem ocorrido no Estado, somente no mês
de julho deste ano, de um único município
Há racionalidades do abominável. (...)
Uma sociedade que se debruça sobre os
mecanismos de racionalidade que organizam
seus modos de produção de violência e
do interior, chegaram seis jovens, entre 20
e 27 anos, com perfil semelhante: dois com
laudo psiquiátrico atestando “Transtorno
de sofrimento é uma sociedade que faz
de Personalidade Anti-Social”, e os demais
‘existirem’ aqueles que a dor aniquila e que
com a suspeita do juiz de terem o mesmo
pode, se o desejar, encontrar outras formas
transtorno. Coincidentemente todos os seis
de racionalidade para pensar de outro modo
a ‘noite da violência que faz o homem se
erguer contra o próprio homem’ (Boyer, “La
vie fraternalle”, Furor, n. 27). (Farge, 2011,
p. 23).
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eram usuários de drogas em suas casas penais de origem.
Do total institucionalizado, 85 são
pessoas que cumprem medida de segurança,
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o restante aguarda perícia como condenado
mais aos moldes dos mecanismos de segu-
ou sentença como preso provisório, todos
rança ou de regulação, tais como teorizados
geralmente transferidos de outra casa pe-
por M. Foucault (2008). Nesta lógica de
nal. Para admitir o preso nas dependências
poder, uma margem ótima de irregularida-
do HCTP, é procedimento que ele passe por
de é permitida para fazer melhor funcionar
avaliação psiquiátrica em clínica particular,
uma série de outros sistemas, sempre base-
localizada em município vizinho, já que não
ados em cálculos que apontam vantagens
há médico psiquiatra em seu quadro funcio-
e desvantagens com relação às práticas de
nal. O acompanhamento é dado pela equipe
repressão e com balanços que descrevem
de enfermagem do HCTP que separa os psi-
seus prejuízos para os Estados em termos
cotrópicos prescritos nos três turnos do dia
de custos (Foucault, 2008). Nesse sentido,
para 85% da população internada, quando
não interessa a condição de violência em
estes não faltam.
que se encontram os indivíduos aí enclau-
Corredores escuros e celas superlotadas, insalubres e com mau cheiro, amon-
surados, mas interessa prezar pela segurança entendida nesses termos.
toam pessoas em medida de segurança
Como estratégia de visibilidade da
juntamente com presos provisórios e con-
situação em que vivem as pessoas que cum-
denados, sem qualquer transtorno mental.
prem medida de segurança no Hospital de
Embora o setor de segurança aponte essa
Custódia e Tratamento Psiquiátrico de San-
mistura como prejudicial às pessoas com
ta Izabel do Pará, realizamos1 oficinas de
transtorno mental, que acabam sofrendo
fotografia e gravura junto a 18 internos da
violência por parte dos demais, o setor pen-
instituição, ministradas por artistas visuais,
sa-a como estratégia para desarticular pos-
objetivando apresentar seus trabalhos em
síveis mobilizações e motins, já que os pre-
exposições itinerantes por vários espaços da
sos provisórios transferidos de outras casas
cidade de Belém.
penais, mais recentemente, não conseguem
Durante as duas semanas de realiza-
manipular as pessoas em medida de segu-
ção das oficinas, fomos os escutadores das
rança, impregnadas de medicamento.
angústias diárias de alguns internos parti-
Ao contrário dos dispositivos disci-
cipantes, através de sussurros, quando das
plinares que buscam “transformar as mul-
breves ausências dos agentes penitenciários
tidões confusas, inúteis ou perigosas em
que nos vigiavam em sala. Os “homens de
multiplicidades organizadas” (Foucault,
preto”, geralmente transferidos de outras
1987, p. 135), o HCTP parece funcionar
casas penais, portanto, com larga cultura
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carcerária, nos alertavam sempre que podiam, dizendo para termos cuidado diante
do “perigo” que os internos ofereciam. Justificavam, assim, sua presença intermitente
na sala e nos deixavam sempre de sobreaviso, vigilantes sobre nossas conversas que
a todo momento se interrompiam ou nem
mesmo eram anunciadas, no caso dos mais
Figura 2
temerosos em receber repreensões.
José, sempre preocupado com quem
As imagens produzidas a partir da
técnica da xilogravura (gravura em madeira), escolhidas para este artigo, relatam histórias semelhantes: um idoso, de 71 anos, e
passa pela porta, conta baixo parte da sua
história no livro que, devido a seu analfabetismo, produziu com a ajuda dos demais
participantes da oficina:
um jovem, de 27 anos, expressam a injustiça de estarem cumprindo medida de segu-
Pra te falar a verdade não sei nem assinar
rança sem laudo psiquiátrico. A internação
meu nome, mas já que trouxeram essa ideia
compulsória para ocorrer requer, além da
eu resolvi historiar isso aqui, contar um
pouco da minha história. Aqui também não
guia de internação expedida pelo juiz, um
tem como contar de outro jeito, né? Aqui
“laudo médico circunstanciado que caracte-
a gente não pode falar muitas coisas... O
rize os seus motivos”, conforme o artigo 6°
negócio aqui não é fácil não. (...) quando a
gente tá de trás da cela, a gente pensa muita
da Lei 10.216/2001. As imagens abaixo são
coisa que rola que a gente não imaginava.
respectivamente de José e Paulo :
Sofre angústia, sofre desagrado. A família
Figuras 1 e 2
mora longe e não vem visitar. Passa tempo e
2
a gente acha que tá esquecido.
Por uma situação de briga de bar,
José, foi acusado de tentativa de homicídio. Passou dois anos na cadeia comum e,
por estar na ocasião do ato alcoolizado, foi
transferido para o HCTP sem laudo médico,
como ele próprio relata. Sua cidade locaFigura 1
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lizada a 300 km de Belém inviabiliza sua
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família de vir visitá-lo. Por ser réu primá-
bicho lá. Além de urinar e defecar no chão,
rio e idoso, poderia estar respondendo em
dorme num pedaço de espuma num calor
liberdade.
infernal e acorda todo mordido de carapanã
Ao mesmo tempo, Paulo comenta a
[pernilongo]”.
Raimundo, 28 anos, participante da
injustiça que vive:
oficina de fotografia, questiona o HCTP faJá passei por quatro psiquiatras e nenhum
lando que “em um Hospital não se usa per-
atestou nada. Você acha que é não é injustiça
namanca para ‘arriar’ interno. (...) e quando
a justiça te mandar pra um lugar que você não
a gente se queixa de dor, pra conseguir um
merecia tá lá? Eu não tô falando que eu não
merecia tá preso; mereço, eu cometi um erro.
medicamento tem que fazer muito barulho
Mas (...) não queria tá num hospital onde ficam
pra ser levado pra enfermaria, isso quando
pessoas com problemas mentais, com algum
eles não dizem que não tem medicamento”. A
tipo de distúrbio ou esquizofrenia. (...) Eu tô
enfermaria, primeira foto abaixo, foi o limi-
aqui há dois anos e um mês, nunca briguei,
nunca fui pra MD [medida disciplinar], ou
seja, quando briga ou discute, fica isolado,
te determinado pela direção para realizar as
fotos com câmeras artesanais (denominadas
vai puxar um castigo de dez a quinze dias
Pinhole e Pinlux): não era possível fotografar
(...). Isso aqui, pra mim, praticamente acabou
“lá em baixo”, como é chamado por internos
com a minha vida. Eu não sabia que o juiz
e funcionários o espaço onde se encontram
que estuda direito, estuda também algum tipo
as alas carcerárias. “Em cima” localizam-se
de psicologia, porque ele me deu medida de
segurança sem laudo psiquiátrico, sem laudo
o setor técnico e administrativo do HCTP. O
portão na foto ao lado da enfermaria sepa-
médico, por conta própria.
ra a parte de “baixo” da parte de “cima” do
A Lei
de
Execução
Penal
(7.210/1984), diante de uma falta disciplinar do preso, prevê o isolamento em local
HCTP. De qualquer maneira, as fotos prenunciam o que pode ser encontrado depois dele:
Figuras 3 e 4
adequado como sanção disciplinar (Art. 53,
Inc. VI). No HCTP, o castigo aos insubordinados é a medida disciplinar (MD), ou seja,
isolamento do interno em uma cela que mais
se assemelha ao uma jaula de 1m2, onde os
castigados ficam por pelo menos dez dias, o
que pode se estender, dependendo do caso.
Segundo outro interno: “A pessoa vira um
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Figura 3
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Silva, A.; Vicentin, M.
não passei. Fiz uma reavaliação em maio
desse ano, mas ainda não saiu o laudo. Se eu
não passar de novo, nem sei o que vai ser de
mim, acho que vou desistir.
Antonio, 51 anos, está preso há quase 10 anos, sendo que há seis anos cumpre
medida de segurança. Cometeu homicídio
Figura 4
e, como tinha o hábito de beber, recebeu o
diagnóstico de Síndrome de Dependência
Sobre a atuação da psiquiatria forense do Estado, é interessante trazer a fala de
um outro interno que participou da oficina
de fotografia. Em um dos intervalos da oficina, ele traz sua apreensão quanto ao exame de cessação de periculosidade e a possibilidade da duração perpétua da medida de
segurança:
Não consigo compreender os critérios que
de Álcool. É réu primário e, por isso, já poderia estar de livramento condicional, já que
cumpriu muito mais que um sexto do tempo
previsto para a pena máxima referente ao
crime cometido. No entanto, está a mercê
da avaliação de um dos três psiquiatras forenses do Estado.
Em outubro de 2013, no III Encontro de Execução Penal do Tribunal de Justi-
a psiquiatra do IML usa para avaliar os
ça do Pará, o qual abordou exclusivamente
internos. Eles precisam entender que cada
o tema da medida de segurança no Estado,
pessoa tem seu modo de se expressar, sua
foi apresentada uma Exposição, intitula-
cultura, suas gírias. Eu falo de um jeito e
ele fala de outro. Cada um fala de um jeito
da “Restos Manicomiais”, com várias das
diferente. Ela [psiquiatra forense do IML]
imagens produzidas nas oficinas. Dez inter-
tinha que entender essas diferenças a partir
nos do HCTP, que estiveram presentes no
de cada um. Mas parece que todos tem que
evento, puderam falar por si e pelos demais
falar somente de um jeito dentro daquilo que
ela entende ser normal. (...) Tem também
sobre seus sofrimentos e foram escutados,
o fato de que a pessoa espera tanto tempo
para além do circuito médico-jurídico, por
para passar por esse exame que na hora
mais de 200 pessoas. Estas narrativas, que
fica nervosa e não passa. (...) Se eu que me
melhor abordaremos mais à frente, se con-
expresso bem e sei que me faço entender
não passei, como algumas pessoas que não
seguirem escapar ao caráter de denúncia do
conseguem nem falar direito vão um dia
sofrimento e de apelos humanitários, para
passar. Fiz uma perícia no ano passado e
ensejarem a análise de certas racionalidades
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e tecnologias do “continuum internamento”,
instrumento para estudo da transformação
podem ganhar um estatuto político.
das políticas de saúde”.
Passemos agora às narrativas dos
Vejamos outra destas vozes:
jovens internos da Unidade Experimental
de Saúde de São Paulo. A UES mantém in-
É por meio desta [carta] que venho até vocês
ternados atualmente (e desde 2007-2008)
hoje. Creio que devo me apresentar. Meu
cinco jovens, pelo menos há 6 anos (o sex-
nome é Bruno. Tenho 23 anos e sou interno
exilado na Unidade Experimental de Saúde,
to foi desinternado neste ano de 2013). Se
aonde me encontro atualmente detido contra
contarmos os 3 anos relativos ao período de
a minha vontade por motivos e razões que
cumprimento de medida socioeducativa na
sinceramente não entendo. Fui enviado a esta
Fundação Casa, serão 9 anos de privação
de liberdade e sem previsão de saída (Gramkow, 2012).
localidade por autoridades do poder público
e judiciário, embargado nas promessas que
aqui iria encontrar um tratamento adequado
de ressocialização com uma assistência
Em 14/05/2012, como parte das es-
apropriada e necessária a minha situação.
tratégias de enfrentamento da UES, desen-
Mas a realidade a qual me deparei não foi a
volvida pelo Grupo Interinstitucional Saúde
prometida pelos mesmos, e, sim o inverso,
pois me deparei com uma unidade vazia no
Mental e Justiça (grupo que reúne ativistas
composto geral, mal fundamentado e aos
dos sistemas de justiça, da rede de saúde e
olhos de muitos ilegal perante a lei. Já estou
de instituições formadoras) construiu-se um
aqui há quatro anos sem uma assistência
seminário3 em que foi possível presentificar
adequada, após três anos cumprindo medida
os jovens lá internos, presos políticos do
socioeducativa na extinta FEBEM e agora
Fundação CASA, que na minha humilde
nosso Tempo, por meio de cartas. Foi a pri-
opinião, nada mais foi que um sistema
meira vez que tais vozes em sua dimensão
carcerário semi-juvenil, maquiado por trás
de sofrimento puderam ter lugar num even-
das leis do ECA, aonde fui mandado para
to público. Lidas ao lado das falas dos parti-
ser punido e ressocializado aos olhos da
cipantes, juízes, psiquiatras, representantes
lei e da sociedade, mas posso afirmar com
propriedade, pois vivi a realidade de uma
das políticas de saúde para adolescentes em
Fundação que nada mais foi na minha época
cumprimento de medida de internação, as
uma escola do crime, muito eficaz por
cartas produziram um efeito desconcertante
sinal, aonde aprendi muitas coisas erradas.
relativamente ao discurso da proteção e do
suposto tratamento. Um dos jovens descre-
E foi nessa mesma situação que comecei a
perceber que estava sendo iludido, e logo vi
a ilusão composta de maldade, sangue, raiva
vendo o cotidiano prisional interroga: “onde
e tristeza maquiado pelo poder e dinheiro
está tratamento? E pede para não “servir de
do crime. Já na intenção de mudança e
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Silva, A.; Vicentin, M.
de auto regeneração no fim da internação
fracionais leves: a maioria furto ou roubo,
da Fundação CASA, fui abordado por
com medidas socioeducativas que foram
pessoas do poder público e judiciário que
me convenceram por meios técnicos que
o melhor para mim era esta unidade. Mas
da internação à semi-liberdade e LA, esta
última associada com medida protetiva de
aqui estou completamente abandonado,
tratamento num CAPS. Mesmo assim, foi
vegetativo socialmente [...] (Carta de Bruno,
encaminhado para a UES, cujo perfil, recor-
14/05/12).
demos, é para ato infracional grave, em função do diagnóstico de epilepsia e transtorno
Mas a expressão de sofrimento se
anti-social, apontado em exames realizados
agudiza no caso de Marcos, desinternado
pela Equipe Técnica do Juízo. Durante seu
finalmente, depois de uma tentativa de sui-
processo de internação, Leandro realiza
cídio que se dá no interior da UES. A de-
nove auto-lesões com lâmpadas, as quais
sinternação se ancora nos questionamentos
tiveram como principal encaminhamento,
feitos pela Defensoria e pelo Ministério
além de sua contenção corporal, a produção
Público com base em pareceres de profis-
de vários boletins de ocorrência. As referên-
sionais da saúde que sustentam que a in-
cias às auto-lesões nas avaliações técnicas,
ternação não possui qualquer papel terapêu-
nos informes ao órgão corregedor e, inclu-
tico do ponto de vista médico-psicológico.
sive nas audiências de seu processo, cor-
(Gramkow, 2012). Evidencia-se, assim, a
roboravam sua conduta anti-social: “É seu
iatrogenia institucional, na medida em que
comportamento habitual provocar ferimen-
a declaração de um campo de saber, o da
tos para chamar atenção, vingar-se ou tentar
saúde, atesta a inoperância da internação e
sair da unidade” (relatório médico da UES,
o sofrimento ganha força política pelo suicí-
13/05/08). Pouco tempo depois, o caso é re-
dio e consequente desinternação.
avaliado pela mesma Equipe Técnica do Ju-
Mas é a situação-problema de Lean-
ízo que testemunha “uma rotina de absoluta
dro que nos mostra como a UES participa
ociosidade” e “tratamento que se resume à
da construção da trajetória do jovem pericu-
hiper-medicalização” (Relatório, 26/05/08),
loso: ele ingressará no sistema penal por co-
solicitando seu retorno ao sistema socioedu-
metimento de ato infracional: um incêndio
cativo.
realizado no seu próprio colchão, quando
Em seu período de internação na
internado na UES. Trata-se de jovem com
UES, uma das avaliações de um psiquiatra
trajetória institucional longa (2004-2009),
na função de perito, transforma o discurso,
mas de breves passagens, todas por atos in-
talvez até anedótico, do jovem em subsídio
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de seu “alto nível de sua “periculosidade”:
Na gestão dos corpos na UES e no
“realizou vários homicídios subseqüentes!”,
HCTP, podemos dizer que encontramos um
ainda que de acordo com o registrado nos
híbrido de distintas produções de sofrimen-
processos judiciais, seus atos infracionais
to: a) uma espécie de mil mortes (Foucault,
envolvessem majoritariamente abordagens
1987), pelos dias que não contam seu fim,
sem uso de armas para furto e/ou roubo de
na perspectiva de uma prisão perpétua. Ou
celular, e fossem frustradas em flagrante
na forma da “A vida como castigo”, como
por policiais. Passa-se assim, nas malhas do
sugere Cesaroni (2010), referindo-se aos jo-
próprio percurso institucional, de furto/roubo e auto-lesões à conduta de alta periculosidade e de história infracional grave, mesmo sem provas judiciais! (Gramkow, 2012).
Finalmente, para que não tenhamos dúvida de que a divisão entre os que
vens em prisão perpétua na Argentina4); b)
a produção de uma experiência de mortificação (Goffman, 1974) que se expressa de
diversas formas: exaustão, medo e desamparo, sentida tanto pelos internos, quanto
pelos profissionais que deles se ocupam em
função da segregação aliada às condições de
devem morrer e os que não devem morrer
se faz presente no funcionamento da UES,
vejamos a fala de um dos promotores de um
dos casos lá internados, também extraído da
pesquisa de Gramkow (2012):
empobrecimento da vida descritas por Bruno, pelos internos do HCTP e visível na tentativa de suicídio de Marcos.
Mas outro tipo de produção de sofrimento pôde ser vista com o caso de Leandro e dos internos do HCTP: é por meio do
A propósito
ato
disso [da gravidade do
infracional],
este
subscritor
está
absolutamente convencido que a correta
distanciamento social e principalmente pela
hipertrofia dos aparatos de segurança que se
medida a ser aplicada deveria de ser a
multiplicam as situações ameaçadoras, se
morte do adolescente, se possível fosse,
incrementam as estratégias puramente de-
mesmo sendo menor irresponsável o autor
fensivas, se reduz a tolerância social frente
dos estupros. Ocorre, todavia, que o Brasil
aos conflitos e se ampliam as situações de
ainda não se desenvolveu suficiente para
aceitar a inexorável conclusão segundo a
qual, para sancionar casos que tais, apenas
pena de morte seria adequada (Promotor de
encarceramento. Neste caso, a periculosidade é produto dos códigos interpretativos e
das tecnologias de intervenção das próprias
Justiça, no Processo socioeducativo, caso
instituições que reproduzem a norma e exer-
Lucas, 21/06/04, grifos nossos).
cem o controle.
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Silva, A.; Vicentin, M.
Por uma política da narratividade
do direito a falar, descobre (...) que o poder
estava de alguma forma ligado aos direto à
Nos dois casos acima apresentados,
a expressão e a narrativa compõem parte de
palavra” (Radio Canadá, 1971, citado por
Artieres, 2004, p. 149).
uma luta. “A informação é ela mesma uma
De fato, Foucault (1999) percebeu a
luta” (Artieres, 2004, p. 144), ao modo do
enorme importância de (re)colocar os sabe-
que foi o Grupo de Informações sobre as
res desclassificados, sujeitados ou desquali-
Prisões (GIP), que na França, no início da
ficados na cena política, pela sua potência
década de 1970, com suas enquetes nas pri-
de sublevação, de insurreição. Para ele,
sões, construiu uma potente narratividade
nesses saberes jaz a memória dos comba-
das “vidas presas”
tes – que tinha sido mantida sob tutela, e a
Nesta intervenção, da qual participou Michel Foucault, buscou-se formar um
potência de dispor dos próprios problemas e
de fazer a crítica.
coletivo em que pudessem tomar a palavra
Como nos diz Portelli (2010, p. 02),
os próprios detentos, assim como vários in-
trata-se de que “essas vozes – que, sim,
telectuais (técnicos, juristas, jornalistas) que
existem, porém ninguém as escuta, ou pou-
já não toleravam mais sua cumplicidade no
cos as escutam – tenham acesso à esfera
exercício da opressão e do poder político. O
pública, ao discurso público, e o modifi-
grupo, defendendo a circulação de informa-
quem radicalmente”.
ções, realizou uma pesquisa com detentos
Criar as condições para a expressão/
sobre as condições do sistema carcerário,
enunciação do sofrimento e dos modos de
inspirado nos instrumentos que o proletaria-
vida que aí se produzem é uma via de tra-
do havia criado no século XIX: as pesquisas
balho que nos parece central em contextos
feitas pelos próprios operários sobre a con-
de violência de estado. Ou seja, as situações
dição operária. Seu objetivo não é acumular
de dor, humilhação, sofrimento e violação
conhecimentos, nem mesmo fazer com que
de direitos poderiam desaparecer, como
as pessoas tomem consciência, mas “difun-
costuma acontecer, nos segredos e conluios
dir o mais amplamente as revelações feitas
dos agentes institucionais e em infindáveis
pelos próprios prisioneiros” (Eribon, 1990,
processos de apuração que só confirmam
p. 211).
a periculosidade dos internos, mas podem
Nas palavras de Foucault, “gente
ganhar outro destino, alterando o regime
que havia sido, por gerações e gerações, ex-
de verdade, com as oficinas-exposição e a
cluída não somente do poder político, mas
construção do seminário-carta.
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Falar o Sofrimento de Vidas Presas: uma Política da Narratividade
No caso das oficinas no HCTP do
e, ainda, que trabalhem uma dimensão esté-
Pará, acionou-se as artes visuais como fer-
tica, constituindo uma espécie de dramatur-
ramentas conceituais e técnicas que podem
gia do real.
funcionar como bombas-relógio capazes
No texto “A vida dos homens infa-
de implodir concepções, revirar modos de
mes”, Foucault (1992) registra o impacto
existir, quebrar práticas engessadas, bem
que teve sobre ele a leitura de fragmentos
como possibilitar espaços de vida menos
de existências, encontradas a esmo em al-
arbitrários, quiçá mais libertários. Para li-
guns documentos com os quais trabalha-
mitar o sofrimento das pessoas internadas
va. Estes fragmentos de “vidas ínfimas”,
no HCTP, a arte por meio da qual falam
“lendas de homens obscuros”, Foucault
suas dores pode atuar como dispositivo de
chamou de “existência-clarão” ressaltando
saída do exílio. Pensamos ser possível des-
que “aquelas vidas, que estavam destinadas
construir, por enquanto metaforicamente,
a passar ao lado de todo o discurso e a de-
os muros que nos separam deste mundo
saparecer sem nunca terem sido ditas, não
para tornar visível a realidade de violações
puderam deixar traços – breves, incisivos,
e contradições vivenciadas pelas pessoas
enigmáticos muitas vezes – senão em virtu-
diagnosticadas com transtornos mentais em
de do seu contato momentâneo com o poder
conflito com a lei, fazendo fissuras na arti-
(Foucault, 1992, p. 98-99).
culação arbitrária existente entre a concepção de loucura e perigo.
Buscando sustentar este efeito-intensivo, Foucault construirá uma espécie de
Na UES é a narrativa–carta, não pre-
método de escrita/narratividade. Sua ideia
vista pelos discursos distantes e técnicos
central seria que estas narrativas mantives-
dos gestores que produz um efeito de crítica
sem sempre relações com a realidade, isto é,
em ato, numa inversão de poder, ainda que
não apenas que a ela se referissem, mas que
momentânea: a carta é negação das falas do
nela operassem; que fossem uma peça da
psiquiatra, da direção da unidade que ficam,
dramaturgia do real (Foucault, 1992, p. 95,
no mínimo, embaraçados.
grifos nossos), quando não se pode “manter
Entendemos ser necessário ainda
que a expressão/narrativa transmita a di-
face a elas a distância do olhar, da memória,
da curiosidade ou do divertimento”.
mensão política que encarnam – isto é, um
Daí, a necessidade de uma política
modo de agir no mundo; é necessário que
da narratividade, “entendendo que o conhe-
trabalhem uma dimensão ética, transfor-
cimento que exprimimos acerca de nós mes-
mando a experiência do horror em história,
mos e do mundo não é apenas um problema
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teórico, mas político” (Passos e Benevides,
2009, p. 151). Isto é, ao definirmos uma
Notas
forma de expressão do que se passa, tomamos uma posição. No caso de pesquisas e
1
de intervenções, não se separam, portanto,
sob orientação da coautora, em andamento,
o ethos da pesquisa do ethos da clínica, aqui
no Programa de Estudos Pós Graduados de
entendidos como lócus de escuta/expressão
Psicologia Social, da Pontifícia Universidade
e de produção de sujeitos (cf. Passos e Be-
Católica de São Paulo (PUC-SP).
nevides, 2009).
2
Pesquisa de doutorado da autora deste artigo
Em cumprimento à Resolução 196/96,
A expressão e as narrativas destas
aos participantes da pesquisa foi garantida
existências só podem fazer sentido se tra-
a sua confidencialidade, portanto, os atores
balham para limitar a “negação da vida”,
envolvidos no estudo serão apresentados
para “limitar o sofrimento” (fazemos alusão
de modo genérico (com referência
ao trabalho de N. Christie, Limits to Pain:
sua vinculação institucional) ou quando
The Role of Punishment in Penal Policy,
referidos, faremos por meio de nomes
disponível para download em www.jus.uio.
fictícios inventados pelas pesquisadoras.
no/ifk/forlag/limits-to-pain), se fazem ecoar
3
o intolerável e ativam lutas para “impedir
saúde mental e juventude nas fronteiras psi-
a multiplicação de medidas que ampliem a
jurídicas”, realizado na PUC-SP, visou: 1.
rede penal” (Wacquant, 2008, p. 104).
avaliar a política de saúde mental do sistema
No caso do Brasil, a persistente vio-
a
O seminário “Balanço das políticas de
socioeducativo
privativo
de
liberdade
lência de estado nas prisões, HCTPs e in-
refletindo os desafios e perspectivas e 2.
ternatos coloca para profissionais, pesqui-
analisar o caso UES como estratégia de
sadores e ativistas, compromissos com a
medida de segurança juvenil. Participaram
produção da informação relativa às vidas
do seminário diversos gestores das políticas
presas, principalmente quando “casas de
de saúde e de justiça juvenil. Neste
custódia e prisões tornaram-se organiza-
encontro os jovens participaram do evento
ções opacas em que pode ser muito difícil
indiretamente por meio da apresentação de
e às vezes impossível penetrar” (Wacquant,
cartas lidas ao longo do evento na presença
2004, p. 25). A narratividade pode realizar a
de seus familiares.
nosso ver um combate à violência de esta-
4
do sempre que puder evidenciar e argüir as
a prisão perpétua a seis adolescentes com
racionalidades vigentes.
condenações no período de 1999 a 2002.
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Nesse país latino-americano, foi imposta
| 140
Falar o Sofrimento de Vidas Presas: uma Política da Narratividade
Essa história persiste atualmente (cinco
Cesaroni,
C.
(2010).
La
vida
como
jovens continuam presos e um cometeu
castigo. Los casos de adolescentes
suicídio) ainda sem soluções. Instâncias
condenados a prisión perpetua en
nacionais e internacionais condenaram a
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