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ASSENTAMENTOS PRECÁRIOS NO BRASIL: DISCUTINDO CONCEITOS Adauto Lúcio Cardoso 1. Introdução As cidades brasileiras mostram de forma eloqüente as desigualdades e as precárias condições de vida da população pobre. Os mecanismos formais de acesso à terra e à moradia, seja pela via do mercado, seja pela via das políticas públicas, sempre foram insuficientes, atendendo apenas parte das necessidades reais e através de soluções habitacionais de baixa qualidade e com um escasso grau de integração à infra-estrutura e aos equipamentos urbanos. Ao mesmo tempo, a maior parte da população de baixa renda só viabilizou o acesso á habitação através de processos de ocupação de terras ociosas e de autoconstrução da moradia, gerando assentamentos insalubres, freqüentemente ocupando áreas de risco e com a sua segurança física comprometida pela ausência de técnicas e de materiais adequados para a construção. A precariedade da moradia popular tem alta visibilidade material e simbólica na sociedade brasileira. No entanto, não existem informações que permitam a sua quantificação ou caracterização, tendo em vista as necessidades de formulação de uma política de âmbito nacional. Os dados disponíveis dizem respeito às favelas ou assemelhados, que são objeto de levantamento através do Censo Demográfico, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística a cada dez anos. O tamanho e o crescimento das favelas seriam os mais importantes indicadores da gravidade da situação urbana no Brasil. De acordo com o Censo de 2000, o Brasil terminou o século XX com 3.905 favelas espalhadas pelo país; um aumento de 717 (ou 22,5%) desde o Censo de 1991 e de 557 (16,6%) desde a Contagem de 1996 (3.348 favelas). Enquanto o parque domiciliar cresceu no país, na última década, 1,01% ao ano, as taxas de crescimento dos domicílios favelados superam, em muito, as taxas totais de crescimento domiciliar: entre 1991 e 2000, o crescimento de domicílios favelados foi de 4,18% ao ano. Deve-se, contudo, ter em mente que estes números envolvem um certo grau de subestimação, como apontado em vários estudos. Tratam-se, no entanto dos únicos indicadores existentes sobre a precariedade habitacional que, na verdade, ultrapassa o problema das favelas, envolvendo também os loteamentos irregulares e clandestinos, os cortiços e os conjuntos habitacionais degradados. De imediato, coloca-se como uma questão premente, para o planejamento adequado das políticas de enfrentamento da precariedade habitacional e urbana, o desenvolvimento de estudos e pesquisas que permitam mapear esse fenômeno de forma mais completa e abrangente. Como entender os processos que transformaram as cidades brasileiras em pequenas ilhas de moradia regular e adequada em meio a uma mar de irregularidade e precariedade? Em primeiro lugar, deve-se considerar que, embora a pobreza e a desigualdade social sejam fatores fundamentais para o surgimento e o agravamento da crise de moradias e para a irregularidade e precarização dos assentamentos humanos, entende-se que a dinâmica habitacional não pode ser pensada apenas a partir do problema da distribuição de renda. Mesmo nos países desenvolvidos, em que os rendimentos se distribuem com maior eqüidade, a intervenção pública no campo da moradia tem sido fundamental para garantir o acesso universal da população a esse bem. Nesse sentido, deve-se tomar a precarização da moradia como sintoma de um processo de insuficiência da oferta de moradias novas através dos setores formais (mercado ou setor público). A literatura especializada é unânime em afirmar que, para a ampliação da oferta, são de relevância estratégica dois elementos: o padrão de financiamento habitacional e a oferta de terras (Maricato, 1979; Ribeiro, 1997; Smolka, 1991; Abramo, 2001). O dilema do financiamento reside na desconexão entre as decisões de investimento – movidas segundo a dinâmica dos mercados financeiros, que estabelecem condições de rentabilidade e liquidez médias – e as possibilidades oferecidas pelo mercado de moradias, derivadas das características básicas do bem habitação: alto valor agregado, longo tempo de consumo, necessidade de um novo terreno a cada ciclo produtivo. Por isso, a solvabilização da demanda só se torna possível através da criação de um sistema de financiamento próprio. Estabelece-se, portanto, uma hierarquia de causalidade sobre a limitação da oferta, identificando-se a existência e a disponibilidade de recursos para o financiamento habitacional como um dos obstáculos estruturais à ampliação da oferta. Como mostra a experiência histórica, a expansão do mercado de imóveis residenciais para as camadas de baixa renda, ou mesmo para setores inferiores das camadas médias, somente ocorre, mesmo nos países centrais, quando há um sistema de crédito capaz de financiar, principalmente, o consumo. Essas experiências mostram, ainda, a importância do fundo público como elemento assegurador dos financiamentos. Além disso, deve ser considerado que, no caso brasileiro, dada a estrutura de distribuição de renda e os altos níveis de pobreza, esse sistema de financiamento deve contar necessariamente com um sistema amplo de subsídios. Além do financiamento, e considerando que o produto da construção é um bem imóvel, a produção de moradias necessita permanentemente de novos terrenos. Não quaisquer terrenos, mas aqueles localizados em zonas dotadas dos equipamentos e serviços necessários à vida urbana. A variação da oferta de terrenos depende de dois fatores: das formas de propriedade e do preço da terra (Ribeiro, 1997). Em primeiro lugar, a predominância de relações de propriedade “não-capitalistas”, ou seja, aquelas em que predomina o valor de uso ou aquelas em que a terra cumpre um papel de acumulação patrimonial ou reserva de valor, pode vir a ser um obstáculo à colocação de novas terras no mercado na quantidade, qualidade e localização requeridas para a produção de moradias. Em segundo lugar, com relação ao preço da terra, sua variação irá depender essencialmente das condições de construtibilidade dos terrenos e da sua localização no espaço da cidade. Um dos componentes da construtibilidade é a natureza física do terreno propriamente dito, ou seja, sua topografia, suas características geomorfológicas, etc. O outro componente é o conjunto de normas que regulam o uso e a ocupação do solo e as regras relativas à edificação. A legislação aparece aqui, portanto, como um dos fatores que definem as condições de construtibilidade dos terrenos e, portanto, seu preço. O fator localização envolve uma maior complexidade. Por um lado, os terrenos disponíveis para o mercado seriam aqueles que gozassem de acessibilidade mínima aos centros geradores de emprego e que contassem ainda com um conjunto de infra-estruturas, equipamentos e serviços que garantissem um determinado padrão de qualidade de vida. A escassez ou a abundância relativas desses itens - transportes, saneamento ambiental, equipamentos de educação, saúde e lazer, entre outros - definirá então um mapa básico de preços de terrenos na cidade. Sobre esse mapa básico se sobrepõe uma outra dimensão, que reflete o que se poderia chamar de “divisão social e simbólica do espaço” e que consiste na valorização diferenciada que é atribuída a diferentes lugares na cidade em razão de certas características, como a proximidade a certas amenidades, a qualidade da paisagem, o acesso a determinadas atividades valorizadas socialmente ou, ainda, a possibilidade da auto-segregação em relação a categorias sociais consideradas inferiores na hierarquia social dominante. No caso principalmente das grandes cidades essa “qualidade simbólica” do espaço é fundamental na determinação dos preços fundiários, dadas as características ambientais e paisagísticas que marcam uma parte importante da cidade, nas proximidades da sua área central. Deve-se, contudo, lembrar que essa “valorização simbólica” é também produzida pelo próprio mercado que gera a “obsolescência” de certas áreas para deslocar a demanda, abrindo novas fronteiras para a expansão da oferta imobiliária (Smolka, 1990). Deve-se ressaltar, ainda, que essa “qualidade diferencial” dos bairros e localizações mais valorizadas também podem ser produzida - ou preservada - por influência da legislação urbanística, através da preservação de áreas verdes, da eliminação de usos inadequados ou da manutenção de baixas densidades. Nesses casos, muitas vezes verifica-se uma relação tensa entre as necessidades de preservação da qualidade local e a pressão do setor imobiliário pela alteração das normas, visando a liberação de terra ou a alteração de índices para viabilizar um maior adensamento. Em síntese, a expansão deste mercado, como vimos, depende da oferta de crédito e de terra. A primeira depende da constituição de um sistema de financiamento que permita garantir prazos maiores e juros subsidiados, o que não pode ser pensado, em grande escala, senão a partir de uma política federal. Com relação à questão fundiária, o aumento da oferta depende, em parte, da ação do poder público na provisão de infra-estrutura, dos equipamentos e dos serviços urbanos, responsáveis, em parte, pela produção de terra “urbanizada”. A ausência do poder público na provisão da infra-estrutura, gera uma escassez de terra urbanizada, com conseqüências sobre o seu preço. Nesse sentido, uma ampla política de urbanização, com forte investimento em energia, transportes, sistema viário, saneamento, etc. poderá ter efeitos muito mais substantivos sobre o mercado de terra do que políticas habitacionais específicas. No entanto, deve-se também considerar que o investimento em infra-estrutura e o financiamento habitacional podem – e tendem a – ser capturados pelo setor imobiliário, que, utilizando-se de recursos especulativos, retém a terra urbanizada fora do mercado à espera de valorização enquanto disponibiliza terras mais distantes, sem infra-estrutura, “puxando” para cima os preços médios da terra. Nesse sentido é que a viabilização da ampliação do mercado depende de instrumentos de política fundiária, como aqueles estabelecidos no Estatuto da Cidade cuja utilização é de responsabilidade municipal. A elevação do preço da terra decorrente desse processo torna extremamente difícil o acesso para as camadas de renda baixa. Produz-se, como conseqüência, uma tendência dual: a precarização da moradia e a informalização da produção, reduzindo-se o preço final para o consumo de mercadorias baratas e de baixa qualidade. Santos (1985), descrevendo a expansão dos loteamentos periféricos, assim expressa essa tendência: Assim, as empresas podiam realizar o milagre de continuar agindo em seções do território que não permitiam lucros altos nem em grande velocidade. Praticavam uma dupla abstração: 1) fingiam que estavam oferecendo terra urbanizada; 2) faziam crer que, no futuro seria inevitável a ação do governo para promover a melhoria dos locais que vendiam. (Santos, 1985: 25) A informalização da produção e a precarização do produto moradia se expressaram historicamente através de duas formas básicas. A primeira, através de mecanismos de mercado, em que, desrespeitando as normas e padrões mínimos de habitabilidade estabelecidos na legislação urbanística, agentes econômicos disponibilizam terra ou unidades habitacionais a preços mínimos capazes de ser assumidos por uma população empobrecida e com vínculos de trabalho frágeis. É o caso dos loteamentos periféricos populares e dos cortiços. A segunda forma, através de ocupação espontânea, organizada ou não, de terras ou de imóveis vazios. Com a consolidação desses assentamentos, no entanto, começam a funcionar mecanismos informais de mercado (compra e venda ou aluguel) que passam a organizar parte do acesso à moradia (Abramo, 2003; Baltrusis, 2000). 2. Precariedade habitacional: problemas de mensuração Os assentamentos precários apresentam várias configurações, como favelas, loteamentos irregulares ou clandestinos, cortiços, conjuntos habitacionais invadidos, prédios ocupados, etc., correspondendo cada denominação a uma forma específica de processo de produção destes assentamentos. De forma geral, cortiços caracterizam-se como moradias de aluguel, geralmente contando com apenas um cômodo e com sanitário e outras instalações coletivas, através, na maioria dos casos, da subdivisão de edificações antigas em áreas centrais que passam por processo de esvaziamento econômico e/ou transformação de uso. Loteamentos correspondem a processos de parcelamento do solo em que existe um agente econômico responsável pela subdivisão e pela venda. A irregularidade diz respeito ao não cumprimento integral da normativa urbanística, embora haja sido dado início aos procedimentos de licenciamento, e a clandestinidade diz respeito a parcelamentos efetuados sem qualquer iniciativa de licenciamento, ou seja, empreendimentos sobre os quais não há registro oficial pelo poder municipal. Favelas ou similares são denominações que correspondem a assentamentos caracterizados pela ocupação irregular do solo, público ou privado, freqüentemente com tipologia irregular e com padrões urbanísticos inferiores aos mínimos exigidos pela legislação. A única estatística existente com abrangência nacional é a desenvolvida pelo IBGE para a mensuração dos chamados “aglomerados subnormais”, denominação emprestada às favelas e similares. Isso significa que para os loteamentos, cortiços e conjuntos irregulares e precários não existem estimativas consolidadas em escala nacional. Em ambos os casos, existem levantamentos desenvolvidos pelas Prefeituras de algumas cidades. Para os loteamentos, as Prefeituras desenvolvem dois procedimentos distintos, a partir de denúncias dos adquirentes e de vistorias realizadas pela fiscalização. Quanto aos irregulares, que já contam com registro prévio nos órgãos de licenciamento, verificando-se a não continuidade dos procedimentos de habite-se, verificações in loco podem constatar a irregularidade. Já os clandestinos dependem fundamentalmente de denúncias ou de vistorias. De qualquer forma, a capacidade fiscalizadora das prefeituras é condição essencial para a manutenção de um cadastro razoavelmente atualizado de loteamentos irregulares e clandestinos. Em municípios que promovem programas de regularização e urbanização para estes loteamentos, como Rio de Janeiro e de São Paulo, por exemplo, existe um forte incentivo para que os adquirentes procurem a Prefeitura para denunciar a situação e habilitar-se a participar do programa. No caso dos municípios periféricos, mais pobres, com prefeituras de menor capacidade de fiscalização e de controle urbano e que não dispõem de programas de regularização, a situação é de total ausência de informações a respeito desse fenômeno. É possível, inclusive, que, mesmo em se tratando de parcelamentos em desacordo com a Lei 6.766, existam procedimentos de “regularização” fiscal ou mesmo urbanística sem que sejam atendidos por completo os preceitos normativos. Isso significa que não existem dados confiáveis de abrangência nacional, mesmo para uma apropriação quantitativa do fenômeno apenas em nível metropolitano. De forma geral, os loteamentos irregulares ou clandestinos apresentam como uma de suas características a ausência de infra-estrutura, um dos itens da legislação mais custosos para os loteadores e, portanto, um elemento central na sua caracterização. Nesse sentido, do ponto de vista de uma apropriação global, os indicadores de carência de infra-estrutura, como aqueles utilizados para o cálculo da inadequação habitacional, segundo a metodologia da Fundação João Pinheiro, poderiam ser uma proxy para uma estimativa grosseira. Seria, no entanto, necessário que se excluíssem os domicílios em favelas desse total, já que também estes se caracterizam pela ausência de infra-estrutura. No que diz respeito aos cortiços, a situação é similar, com o fator agravante da inexistência de qualquer espécie de registro nas prefeituras, à exceção de pesquisas específicas desenvolvidas pelas administrações locais. Mesmo em São Paulo, onde o problema é mais grave, não existem estimativas abrangentes e confiáveis e a Prefeitura tem trabalhado com uma quantificação que se restringe a um determinado perímetro da área central da cidade. Para as outras cidades não existem estimativas conhecidas. Conjuntos irregulares e degradados, também caracterizados como assentamentos precários, existem em várias grandes cidades, e também demandam um trabalho de mensuração. Não cabe, nesse caso, considerar a ausência de infra-estrutura como indicador, embora em alguns casos (ou talvez em muitos) essa condição esteja presente. As Companhias de Habitação (COHAB) e/ou a Caixa Econômica Federal que possuem registros de todos os conjuntos produzidos serão parceiros estratégicos para o desenvolvimento de um trabalho de levantamento mais preciso das condições em que estes se apresentam. Com relação à situação de prédios invadidos, também não existem estatísticas nem mesmo em nível local. No caso de ocupações organizadas por movimentos de moradia, seria possível fazer algum tipo de estimativa com base nos dados a serem fornecidos pelos movimentos lembrando, porém, que as ocupações espontâneas ou organizadas por agentes individuais ficariam excluídas deste levantamento. Esta é uma questão que deve ser mais bem pesquisada para que o poder público possa dispor de um diagnóstico geral acerca do impacto e sua extensão deste fenômeno. Cabe aqui, colocar uma primeira questão: loteamentos, cortiços e conjuntos irregulares e deteriorados são formas de precarização da moradia que podem ser tão ou mais graves do que as favelas. No entanto, não existem, até o momento, informações consistentes e abrangentes para a caracterização destes problemas, exceto alguns levantamentos eventualmente realizados pelas administrações municipais. Levando-se em conta a importância das favelas entre os assentamentos precários e o esforço que vem sendo desenvolvido em seu estudo há longo tempo, vamos nos deter mais longamente sobre os problemas que estas estatísticas apresentam e as possibilidades de sua adequação, para, mais adiante, propor o desenvolvimento de uma tipologia de caracterização de assentamentos irregulares e precários que abranja a totalidade de situações nesta condição. 3. Evolução do conceito de subnormalidade e métodos de estimação adotados pelo IBGE A primeira contagem da população residente em favela foi realizada pela primeira vez, pelo IBGE, em 1950. Ao longo das décadas seguintes, várias mudanças foram feitas em termos da denominação, da definição e da metodologia de coleta de informações. Quanto á denominação, até 1960 adotava-se o termo “favela”, de uso corrente no Rio de Janeiro e adotado para as outras cidades. Em 1980, passou-se a adotar a denominação de “setor especial de aglomerado urbano” modificada, a partir de 1991, para “aglomerado subnormal”. A adoção da qualificação de “subnormal” para caracterizar as favelas tem sido criticada, por conter um viés pejorativo, que se estende das características físicas para a população que ali reside. Segundo a metodologia adotada para o Censo de 1950, foram consideradas oficialmente favelas os aglomerados que possuíssem total ou parcialmente as cinco características abaixo: 1. proporções mínimas – agrupamentos prediais ou residenciais formados com número geralmente superior a cinqüenta; 2. tipo de habitação – predominância de casebres ou barracões de aspecto rústico, construídos principalmente com folhas de flandres, chapa zincadas ou materiais similares; 3. condição jurídica da ocupação – construção sem licenciamento e sem fiscalização em terrenos de terceiros ou de propriedade desconhecida; 4. melhoramentos públicos – ausência no todo ou, em parte, de rede sanitária, luz, telefone e água encanada; 5. urbanização – área não urbanizada com falta de arruamento, numeração ou emplacamento. (Oliveira, 1973 apud Costa, 2002) Dentre os critérios adotados, quatro se referem a aspectos físicos enquanto um se refere a um estatuto jurídico: o da ocupação ilegal da terra. Porém, em função das dificuldades de generalização e aplicabilidade dos critérios físicos, como veremos adiante, o estatuto jurídico da terra tem sido, oficialmente, o critério que define a classificação do setor censitário como aglomerado subnormal ou favela. O IBGE altera parcialmente a definição metodológica de tais conceitos para o Censo Demográfico de 1980, admitindo então que já haviam ocorrido melhoramentos em termos de infra-estrutura: O chamado setor especial de aglomerado urbano é aquele com no mínimo 50 domicílios, em sua maioria, dotados de infraestrutura carente e geralmente localizados em terrenos não pertencentes aos moradores, como é o caso das favelas, mocambos, palafitas, malocas, etc. (Sinopse Preliminar do Censo de 1980, apud Costa, 2002) Cabe ressaltar que, embora essas fossem as definições oficiais, nem sempre as práticas dos recenseadores as seguiam estritamente. Na delimitação dos setores especiais, feita antes da aplicação dos questionários, os materiais e o aspecto das construções era também considerado. Nesse sentido, a caracterização dos setores de favela, no caso do Censo Demográfico de 1980 para o Rio de Janeiro era feita a partir de: (...) uma linha imaginária que cortaria as favelas a 20 metros de altura de sua base. Se abaixo dessa linha predominassem domicílios de alvenaria, dotados de certa infra-estrutura, a área não seria considerada como setor especial e passaria a integrar um setor urbano sem características de favela. (Oliveira, 1983 apud Costa, 2002) O resultado dessa postura era, além da incongruência metodológica, superestimando as características físicas da residência, a desconsideração das diferenciações internas das favelas, já que o mais comum era que exatamente as partes inferiores se valorizassem e propiciassem as melhorias construtivas e de infra-estruturas, enquanto as partes superiores acumulavam as maiores carências. Variavam assim os métodos de construção da informação e a natureza dos dados que lhes forneciam o suporte estatístico. Neste percurso, a confiabilidade da informação e a condição de comparabilidade dos dados ficaram, por vezes, prejudicadas: “o único critério que distingue as áreas invadidas dos outros tipos de moradia na cidade é o fato de construírem uma ocupação.“ ilegal” da terra já que sua ocupação não se baseia nem na propriedade da terra nem no seu aluguel aos proprietários legais”. (Leeds & Leeds, 1978) Esta visão é acompanhada por outros trabalhos de pesquisa estatística que tentam caracterizar e mensurar os mesmos fenômenos urbanos tais como as pesquisas realizadas, para o município de São Paulo, pela Prefeitura Municipal de São Paulo (1973, 1975, 1987 e 1993), pelo IPT-FUPAM (1980), pela Secretaria Municipal de Habitação e Desenvolvimento Urbano (1988), entre outros. Todos os demais critérios freqüentemente utilizados para distinguir favelas de outros tipos de moradias se aplicam apenas parcialmente. Quanto ao critério urbanização, no que tange às características do traçado urbanístico, a informação não assegura a caracterização do fenômeno. Nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, por exemplo, em sua maioria, as invasões se dão gradualmente e sem um traçado urbanístico planejado, diferentemente do que ocorre em outras cidades latino-americanas, como Lima, no Peru, que se notabiliza pelo número de “barriadas” oriundas de movimentos coletivos de ocupação de terras, com traçado físico regular, o que também ocorre em Bogotá, Buenos Aires, etc. O mesmo acontece com o critério relativo ao tipo de habitação que se refere à precariedade dos materiais utilizados na construção da unidade domiciliar. Os barracos de madeira e zinco que marcavam a paisagem da favela nas décadas de 50, 60 e 70, foram quase por completo substituídos por casas de alvenaria, passando de 51% das moradias em favelas na cidade de São Paulo, em 1987, a 75% delas em 1993. Também o critério melhoramento público, ou a ausência dele, não consegue ser um bom indicador de sub-normalidade uma vez que grande parte das favelas nas grandes cidades já foi objeto de alguma intervenção pública visando a ampliação da rede de energia elétrica. Assim, segundo Taschner (2003), o critério mais adequado à definição de favela também é o estatuto jurídico da terra. O Censo de 1991 e 2000 adotaram, para os “setores especiais de aglomerados subnormais” a seguinte definição: São aqueles constituídos por um mínimo de 51 domicílios, ocupando ou tendo ocupado até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) disposto em geral de forma desordenada e densa e carente, em sua maioria, de serviços públicos essenciais. (Manual de delimitação dos setores e das zonas de trabalho, 1990 apud Costa, 2002) Ao longo do tempo, foram também mudando as formas de delimitação dos setores. Enquanto no Censo de 1950 adotavam-se os Cadastros Prediais Domiciliares como mecanismo de coleta, em 1960 e 1970 já foi elaborado um cadastro preliminar, a partir de informações coletadas junto aos órgãos com atuação específica em favelas, expressos em cartogramas. Em 1980 os cadastros existentes foram atualizados em campo, considerando a cota de 20 metros, acima citada, e, para os Censos de 1991 e 2000 a delimitação foi efetuada previamente, em campo, pela Base Operacional geográfica, considerando o critério de ocupação ilegal da terra no momento atual ou em período recente (até 10 anos) e, concomitantemente, ou a urbanização fora dos padrões ou precariedade dos serviços públicos essenciais (Costa, 2002). O problema a ser enfrentado é que mesmo a definição mais restrita (propriedade da terra) é problemática, do ponto de vista da sua identificação. Na ausência de procedimentos específicos e de instituições locais que contem com cadastros de terras transparentes e fidedignos, é difícil, para o IBGE, a identificação prévia de quais assentamentos podem ser caracterizados por propriedade irregular da terra. Como vimos, apesar de ser um fenômeno onipresente na cena pública brasileira, a definição do que é favela não deixa de ser complexa, sobretudo quando tratada do ponto de vista do sistema de produção dos dados estatísticos (Marques, Torres e Saraiva, 2003). Para sua efetiva classificação, além dos critérios anteriormente mencionados, existe o relativo ao tamanho do aglomerado, cuja variável é agregada pelo IBGE à variável “condição de ocupação do terreno”. Desde 1980, o IBGE tem definido favela como “um setor especial de aglomerado urbano, formado por pelo menos 50 [51 a partir de 1991] domicílios, (...)”.No entanto, existe um número considerável de situações de precariedade de assentamentos, conceitualmente similares à definição de favela que escapam a esta classificação por não totalizarem 50 ou mais domicílios contíguos, gerando distorções significativas no esforço de mensuração realizado, podendo gerar a subestimação ou superestimação como será comentado no próximo item. Por outro lado, a delimitação do setor especial de aglomerado subnormal responde também a aspectos operacionais relativos ao planejamento da pesquisa. O setor censitário, por exemplo, é uma unidade administrativa do Censo, delimitada como área a ser percorrida por um único recenseador no seu trabalho de campo. Para o IBGE, os setores são classificados por tipo: setor normal, setor especial de aglomerado subnormal, setor especial de quartéis e bases militares, setor especial de alojamento, etc. Os setores sub-normais sofrem esta classificação a partir de informações prévias ao campo, conforme já descrito, embora o IBGE afirme que utiliza informações fundiárias em alguns casos (Marques, Torres e Saraiva, 2003). O procedimento tem, inclusive, objetivo de permitir o pagamento diferenciado por entrevista, devido às dificuldades inerentes à realização de pesquisas em locais deste tipo. Os dados censitários para as favelas têm sido objeto de controvérsia. No censo de 1980, os resultados foram frutos de tabulação especial da variável situação do domicílio. Através destes levantamentos não é possível separar domicílios totalmente próprios dos com apenas a construção própria. No item “condição da ocupação” existem as categorias: próprio pago, próprio em aquisição, alugado, cedido (por empregador ou particular) e outros. Já o censo de 1991 e a contagem de 1996 apresentam a variável localização do domicílio (V0202), com as categorias casa ou apartamento isolado ou em condomínio, em conjunto popular e em aglomerado subnormal. Outra variável que permite identificar a favela é a que define o tipo de setor (V1061). Em princípio deveria existir coincidência total entre as duas apurações, mas avaliações realizadas para São Paulo, na contagem de 1996, mostram distorções em alguns distritos (Taschner, 2003). Para o município do Rio de Janeiro, em 1991, das 236.354 unidades habitacionais identificadas em assentamentos subnormais, verificaram-se 16.147 domicílios não-favela (Preteceille e Valladares, 2000). Como variável de controle, a variável “condição de ocupação” poderia auxiliar, dado que nas unidades faveladas apenas a construção é própria, nunca o terreno. Entretanto, para a Região Metropolitana do Rio de Janeiro surgiu a categoria “só a construção própria” tanto nos setores considerados como favela quanto nos setores considerados como não-favela. Entre os domicílios situados em aglomerados subnormais, onde se esperava que todas as unidades tivessem propriedade da terra irregular, computou-se 86.000 moradias com terreno próprio, enquanto que, entre os domicílios situados em setores “normais”, surgiram quase 150.000 moradias que declararam apenas a construção própria, representando cerca de 9% do estoque total de moradias (Preteceille e Valladares, 2000). A variável que define a não propriedade do terreno é baseada em uma pergunta feita ao morador. Os problemas de fidedignidade da resposta são em parte óbvios: pode-se supor, com razoável certeza, que os residentes conscientes da situação de irregularidade de sua ocupação não fossem revelá-la explicitamente a um estranho. O problema, no entanto, pode ser mais complexo. Como parte significativa do acesso à moradia em favelas passou a ser feita através de compra e venda da moradia ou do “terreno”, e não através da ocupação, o fato de ter adquirido o imóvel através do mercado (informal) dá ao adquirente um senso de propriedade. Ainda mais se consideramos que as Associações de Moradores tendem a registrar as transações, funcionando como um cartório informal que legitima, nos olhos do morador, a sua situação de proprietário (Abramo, 2003). Outro fator que deve ser lavado em conta é o peso do instituto da posse na tradição jurídica e cultural brasileira (Castro, 2001). No município de São Paulo, o número de domicílios com apenas a construção própria alcançava, em 1991, 176.774 unidades habitacionais representando 7,27% do total de domicílios do município. Para o mesmo ano e pela mesma fonte, o total de domicílios em aglomerados subnormais foi de 146.891. Mais uma vez ocorreu divergência entre as duas entradas que deveriam ser coincidentes. Além disso, verificou-se, de forma paradoxal, a existência de 29.883 unidades domiciliares na categoria “só a construção própria” – definição de favela – que não estavam em setores de favela. Esse paradoxo indica o pouco que conhecemos sobre o problema. No censo de 2000 a variável “situação do setor”, onde estava a categoria aglomerado subnormal, não mais engloba esta categoria. A variável (0206) – localização – aponta apenas se o terreno é próprio, cedido ou tem outra condição. Para Taschner (2003), no Censo de 2000 vale a pena recuperar a variável “tipo do domicílio” (V1007), onde aparece o setor especial de aglomerado subnormal e cotejar seus valores com os da variável “condição do terreno” (V0206). No município de São Paulo, a tabulação da variável (V1007) permitiu o conhecimento dos aglomerados subnormais por distrito. A utilização do chamado setor subnormal como variável para indicar as favelas pode acarretar uma série de conseqüências relevantes do ponto de vista da quantificação da população favelada. A qualidade da estimativa vai depender do grau de atualização da cartografia utilizada para o planejamento do Censo, o que vai depender muito do grau de colaboração entre o IBGE e outros órgãos públicos, tais como prefeituras e secretarias de Estado, que atualizam a cartografia com fins tributários e para o planejamento. Isto faz com que a precisão da estimativa da população favelada, utilizando os setores subnormais, varie entre os vários municípios, sendo mais atualizada para municípios com cartografia mais recente (Marques, Torres e Saraiva, 2003). De forma similar, a qualidade de tais estimativas tende a variar bastante ao longo do tempo, dependendo do grau de atualização dos limites dos setores de aglomerados subnormais, realizada antes de cada Censo. Neste caso, dois levantamentos realizados em períodos distintos no tempo, em determinado município, podem conter erros não desprezíveis. Além disso, como já foi dito, favelas muito pequenas tendem a não ser consideradas como setores subnormais. Como conseqüência geral destes elementos, na maior parte das vezes os dados de setores subnormais implicam números subestimados da população favelada. Como esta subestimação não é nem mesmo estável no tempo, o cálculo de taxas de crescimento pode levar a valores muito baixos ou muito altos. Tal fator tende a provocar clara contestação dos dados censitários por parte de gestores públicos locais e de movimentos sociais. O critério de computar apenas aglomerados com 50 ou mais unidades explica parcialmente a subestimação, pelos Censos, da população favelada paulistana. Em 1987, em São Paulo, 21,93% da população favelada morava em assentamentos com menos de 51 unidades domiciliares. A pesquisa realizada pela FIPE/USP, em 1993, mostra que as favelas pequenas, de 2 a 50 domicílios agrupavam 21,2% das casas. As grandes favelas, com mais de 1000 unidades, representavam apenas 12,9% dos domicílios favelados. A moda estatística em relação ao tamanho das favelas, em São Paulo, era representada por assentamentos entre 51 e 400 casas (51,1% das casas faveladas) (Marques, Torres e Saraiva, 2003). O tamanho dos aglomerados depende diretamente da topografia da cidade e do tipo de terreno disponível para invasão. Em São Paulo, as favelas ocupam geralmente terras de uso comum de loteamentos, glebas pequenas, quando comparadas às do Rio de Janeiro, onde as favelas galgam os morros, ou às de Salvador, onde invadem o mar. Dessa forma, a subestimação em São Paulo tende a ser maior do que no Rio, onde, já em 1969, 62,7% das favelas tinham mais de 100 domicílios, sendo que 6,4% mais que 1500 (Parisse, 1969). Isto impede que se arbitre ou se considere um percentual estimativo homogêneo de desvio para esta variável. As situações de subestimação ou superestimação da população favelada podem ser ilustradas nos casos em que, por exemplo, uma favela possuir 20 domicílios em um setor e 40 em outro setor. Tais domicílios não serão computadas como setor especial de aglomerado sub-normal, sendo incorporadas, portanto, a dois setores normais, provocando, com isso, tanto a subestimação das unidades faveladas, quanto a distorção dos resultados dos respectivos setores normais identificada pela variável “condição do terreno”. Por outro lado, em havendo contigüidade física entre unidades faveladas e não faveladas, sendo o conjunto da unidades faveladas maior ou igual a 50 unidades, todo o setor será considerado como um aglomerado subnormal, propiciando nesta situação, a superestimação das unidades faveladas, percebidas pela mesma variável de controle anterior. Em termos operacionais, tem-se lançado mão, intensamente, de levantamentos diretos e/ou amostrais, que nem sempre produzem os resultados mais adequados do ponto de vista técnico. O tipo de levantamento mais comum, as contagens de barracos realizadas por assistentes sociais do poder público local ou de empresas contratadas, não substituem uma efetiva aferição da população residente, uma vez que podem existir barracos de uso comercial, barracos vazios, de uso ocasional e/ou situações de dupla declaração (a questão do residente temporário). As discrepâncias comumente presentes nas informações obtidas dessa forma decorrem do fato de que Secretarias Municipais de Habitação não são, necessariamente, boas produtoras de dados e tendem a produzir números populacionais díspares (Marques, Torres e Saraiva, 2003). Entretanto, se os números produzidos diretamente pelo poder público local tendem a ser frágeis, a informação relativa à dimensão fundiária tem condições de ser mais precisa, tal como é feito no Município de São Paulo, a partir de um sistema de informação interinstitucional que captura várias formas de catalogação de processos de ocupação (a partir de moradores, proprietários, fiscais e órgãos públicos), consolidando um banco de dados de favelas que, por sua vez, é utilizado para atualização dos respectivos perímetros no mapa oficial da Cidade. Dada a relevância e magnitude do assunto, em especial para o planejamento de políticas públicas, outros órgãos estaduais e municipais, como fundações estatísticas, passaram a realizar levantamentos e estudos censitários específicos. Em 1987, a Prefeitura Municipal de São Paulo realizou o Censo das Favelas. Este estudo foi atualizado em 1993, através de procedimentos amostrais, pela FIPE/USP, indicando uma espantosa taxa de crescimento da população favelada de 15,2% entre 1987 e 1993, atingindo 1,9 milhão de pessoas, totalizando 19% da população em 1991. Os dados do Censo Demográfico, porém, contavam uma outra história. Para o IBGE, a população residente em assentamentos subnormais nunca teria ultrapassado a cifra de 900 mil tanto nos censos de 1991 e 2000, quanto na Contagem Populacional de 1996. Segundo o IBGE, entre 1980 e 2000 a população de setores subnormais teria apresentado uma taxa de crescimento anual de 4,5% aa, contra 1,0% aa relativo à população total. Entre 1991 e 2000, essa taxa seria de 3,7% ao ano, contra 0,9% aa da população total. Em suma, se existem, por um lado muitas razões objetivas para supor que os dados se setores subnormais impliquem uma subestimação da população favelada, fica claro, por outro, que o Censo de Favelas – ao menos como foi realizado em São Paulo em 1993 – gerou uma superestimação dos dados populacionais (Marques, Torres e Saraiva, 2003). A tabela 1 abaixo, resume estes resultados. Tabela 1 -População favelada segundo Censos Demográficos e Censos de Favelas. São Paulo, 1980-2000. População – Censos Demográficos Anos Total Setores Sub-Normais Censo de Favelas 1980 8.493.226 375.023 1987 9.209.853 (*) 530.822 (*) 815.450 1991 9.646.185 647.400 1.434.134 (*) 1993 9.722.856 (*) 686.072 (*) 1.901.892 1996 9.839.066 748.455 2000 10.434.252 896.005 (*) Dados interpolados geometricamente (**) Calculada como (Censo de favelas – subnormais) *100/subnormais Fonte: Marques, Torres e Saraiva, 2003 Diferença (%) (**) 53,6 121,5 172,2 - De fato, para aceitar uma taxa de crescimento de 15% da população favelada entre 1987 e 1993, seria necessário imaginar que a população não favelada do município de São Paulo decrescera substancialmente em termos absolutos, já que o acréscimo na população total teria sido inferior a 100 mil habitantes entre 1991 e 1993. Embora regiões do centro expandido de São Paulo tenham perdido população efetivamente, nada se compara ao movimento populacional que teria que ocorrer para viabilizar tal estimativa. Por mais que seja possível argumentar que estaria existindo uma crise social entre 1987 e 1991, os números simplesmente não fecham. (Marques, Torres e Saraiva, 2003). Com objetivo de testar a consistência de tais números, o Centro de Estudos da Metrópole (CEM) realizou um estudo sobre estimativas de população favelada para o município de São Paulo utilizando diferentes bases de dados. Foram comparadas as informações do Censo de Favelas (PMSP) de 1987 e 1993, com os dados dos setores censitários subnormais do IBGE, do Censo de 1991 e 2000, e foi utilizada também a delimitação das favelas, disponível em bases cartográficas, produzidas pela Prefeitura de São Paulo. O trabalho não visava a produção de uma estimativa determinística do tamanho populacional das favelas e sim o de estimativas máximas e mínimas da população favelada, buscando uma faixa de variação mais provável como referência. As diferenças entre os limites dos setores subnormais (IBGE) e o das favelas (Prefeitura S.P.) apresentaram diferenças significativas. Embora existissem favelas totalmente sobrepostas a setores subnormais, existiam também favelas sobrepostas a setores normais e outros setores subnormais não registrados como favelas pela prefeitura. Se por um lado ficou constatada a subestimação quanto ao número total de favelas em função da adoção do critério de tamanho do aglomerado utilizado pelo IBGE, por outro, foi detectado que também o Censo de Favelas desconsiderou vários trechos considerados subnormais pelo IBGE, embora o somatório das áreas faveladas tenha sido bastante superior. Em termos agregados, o grau de coincidência espacial entre os dois mapeamentos só foi maior que 80% em menos de 20% da área total das favelas sendo que, nestes setores - com tal grau de sobreposição - reside menos de 2% da população total dos municípios. Em outras palavras, a crítica ao conceito de setor subnormal parece fazer sentido quando se compara as bases cartográficas do IBGE - delimitação de setores subnormais - com a cartografia de favelas elaborada pela Prefeitura Municipal de São Paulo, para fins de planejamento urbano e política habitacionais. Porém, aceitar esta crítica não implica em validar qualquer estimativa de população de favelas realizada de modo alternativo (Marques, Torres e Saraiva, 2003). Como estratégia analítica da metodologia desenvolvida pelo CEM para a estimação da população favelada, foi proposta a adoção do indicador de densidade média como característico da situação de subnormalidade. Assim, de forma expedita, tal parâmetro poderia ser utilizado tanto para este primeiro fim quanto para avaliação de resultados populacionais obtidos a partir de eventuais levantamentos de campo. Este parâmetro deveria ser extraído das áreas com alta sobreposição cartográfica entre delimitações de favelas e setores subnormais. Para isto foram desenvolvidas quatro hipóteses de apropriação da densidade média a partir das áreas de sobreposição favela/subnormal e verificadas as suas aplicabilidades. Com base nessa avaliação, pode-se afirmar que o número total de favelas cresceu, embora esse número não tenha uma utilidade analítica já que é muito influenciado pela forma como a população constrói suas identidades e divide a favela. Quanto ao perímetro, os dados indicam um crescimento do total da área favelada em certas partes da cidade, com alguns episódios significativos de desfavelização em outras partes. Com relação à confiabilidade da informação cartográfica, pôde-se observar em relação ao estudo 1991/2000, um aumento no percentual de coincidência na sobreposição das bases do ano 2000, refletindo já o esforço do IBGE na organização do trabalho de campo deste último censo. (Marques, Torres e Saraiva, 2003) Quanto à estimativa propriamente dita, esta indicou uma taxa de crescimento da população favelada de 2,97%aa, inferior à do próprio IBGE e bem mais reduzida do que a da FIPE, sendo, porém, superior à taxa de crescimento do conjunto da população do Município que foi de 0,87% aa, no mesmo período. Esse crescimento se deu principalmente pela elevação da área total de favelas, que cresceu 24% na década, somado ao aumento da sua densidade média que se elevou de 360 hab/ha para 380 hab/ha, representando 6% de aumento. (Marques, Torres e Saraiva, 2003) Em resumo, a literatura especializada aponta, com base na avaliação de resultados de pesquisas e levantamentos realizados por órgãos estaduais e municípios, complementares às informações censitárias do IBGE, que ocorre um subdimensionamento na identificação e quantificação da população favelada, caracterizada por este, como população residente em assentamentos subnormais. Além dos aspectos conceituais que estão sendo tratados de forma mais abrangente ao longo deste documento, a crítica metodológica relativa aos problemas técnicos de caracterização e mensuração de favelas (ou no caso assentamentos subnormais) se concentra nos ítens relacionados ao: (i) sub-dimensionamento do número de favelas, (ii) sub-dimensionamento da área total das favelas no que se refere à atualização de seus limites – perímetro, (iii) sub-dimensionamento do número de domicílios e, por último (iv) sub-dimensionamento da estimativa da populacional favelada( em função do cálculo da taxa de crescimento da pop. favelada). Considerando-se a ação local, no entanto, os dados censitários constituem importante conjunto de informações que poderiam ser mais bem utilizados para a caracterização da população e da situação dos domicílios. Mesmo subestimados, os números do IBGE constituem amostra representativa da população residente em favelas. Apropriações mais finas podem ser desenvolvidas com o cruzamento das cartografias das áreas de favelas com a cartografia dos setores censitários ou das Áreas de Expansão Demográfica. O problema é que, no caso das AEDs, a metodologia de construção das áreas não agregou separadamente os setores subnormais, o que torna inviável a sua utilização, num primeiro momento. É possível, no entanto, solicitar ao IBGE a reestruturação das AEDs para fins específicos, no caso, agregando separadamente os “setores subnormais” em AEDs. De qualquer forma, a utilização dos setores censitários já permite uma exploração bastante importante de informações, que podem ser individualizadas, mesmo que as favelas consideradas não sejam definidas pelo IBGE como setores subnormais. Um exemplo das possibilidades que poderiam ser exploradas é o cruzamento de variáveis utilizadas para cálculo do déficit habitacional com os setores subnormais. Estudo da Fundação João Pinheiro mostra que o número de domicílios improvisados e de coabitação familiar em aglomerados subnormais pode atingir valores médios muito altos, como 40% em Belém, 32,4% em São Bernardo, 24% no Rio de Janeiro, etc. Isso significa que, ao entrar com um processo de urbanização em um assentamento, poderia se pensar em buscar atender, com a oferta de novas unidades as famílias em situação de déficit. Isso significaria uma melhoria nas condições de densidade da favela e também reduziria as pressões para o crescimento do assentamento após a urbanização, já que são estas as famílias que, em princípio, buscarão aproveitar oportunidades de comprar ou ocupar uma área para construção de sua casa. 4. Proposta para caracterização dos “assentamentos irregulares e precários” Historicamente, como já mostrado na Introdução, as experiências de intervenção sobre assentamentos precários partiam de uma diferenciação entre 3 tipos básicos: loteamentos (clandestinos ou irregulares) favelas e cortiços. Dos 3 tipos, as favelas seriam os mais precários, pela insegurança da posse da terra, pela prevalência de padrões urbanísticos de pior qualidade (“lotes” menores, maior densidade, sistema viário inadequado, problemas de acessibilidade) pela ausência de infra-estrutura e pela inadequação dos sítios ocupados, com fortes problemas de risco. Para cada tipo de assentamento foram propostos modelos específicos de intervenção, sendo que para as favelas a solução por urbanização se consolida a partir da década de 80. Existe um debate recente na literatura sobre em que medida a definição clássica de favelas ainda dá conta das mudanças nos processos através dos quais favelas e loteamentos são produzidos. Com a progressiva periferização das favelas, verifica-se, nos assentamentos mais recentes, uma relativa indistinção – afora o problema fundiário – entre favelas e loteamentos, em termos de disponibilidade de infra-estrutura. Também do ponto de vista social, dados censitários mostram que a população residente em favelas consolidadas nas áreas centrais apresenta condições de renda e escolaridade superiores às de populações residentes em loteamentos regulares ou irregulares na periferia. Além disso, a política de urbanização, que passa ser hegemônica a partir dos anos 80, no Brasil, implicou a realização de investimentos públicos nas áreas de favelas, incluindo em muitos casos a regularização da situação fundiária e urbanística, o que elimina a distinção, nestas favelas, pela questão fundiária e pela disponibilidade de infra-estrutura. Para as favelas mais antigas, situadas em áreas centrais, permanece uma distinção pela tipologia, já que os padrões adotados para a urbanização tendem a ser inferiores aos adotados para os loteamentos. Para as novas favelas situadas em áreas periféricas, as tipologias podem já não diferir tanto, seja em termos do tamanho dos “lotes”, seja em termos da largura das vias. Outra indistinção relativa diz respeito ao processo de ocupação. Ao mesmo tempo em que se consolida um mercado imobiliário nas favelas mais antigas e situadas em áreas mais centrais, fazendo com que o acesso passe a se dar de forma importante através de mecanismos econômicos, as novas ocupações tendem a ser organizadas por uma agente econômico que “vende” o “direito” de ocupar e, ao mesmo tempo, planeja e organiza a ocupação, instituindo um conjunto de normas básicas, respeitadas pelos adquirentes. Uma outra questão relevante diz respeito ao fato de que, apesar dos investimentos realizados na urbanização e regularização dos assentamentos precários, essas áreas continuaram a ser reconhecidas como favelas. Esse quadro nos leva, portanto, a propor uma discussão mais aprofundada sobre a definição de critérios que permitam estabelecer, com mais clareza quais assentamentos populares serão objeto da política e, dentre estes, como estabelecer prioridades. Uma primeira contribuição para a construção desta tipologia partiria de uma caracterização lógica dos problemas a serem enfrentados. Seguindo a proposta de Laura Bueno (2003): 1. É necessário distinguir irregularidade de precariedade e de carência/vulnerabilidade social. Nem todos os assentamentos irregulares são precários, nem todos os precários comportam população em situação de carência ou vulnerabilidade social. 2. A irregularidade pode se referir à propriedade da terra (fundiária), ou à propriedade da terra e do imóvel, e/ou ao padrão (ou aos procedimentos) de parcelamento adotado (urbanística) e/ou ao padrão (ou aos procedimentos) de construção adotados (edilícia). Quanto à irregularidade fundiária, pode ocorrer ocupação de terras públicas (de uso comum do povo ou dominiais) ou privadas. No caso da ocupação de imóveis, também podem ser públicos ou privados. 3. A precariedade pode se referir ao risco (alagamento, deslizamento, proximidade de linhas de transmissão de alta tensão, ou de estruturas viárias ou ferroviárias, proximidades de linhas de oleodutos, ocupação de aterros de lixo, etc.) e/ou à acessibilidade (dimensionamento e condições de circulação do viário), e/ou à infra-estrutura (água, esgoto, lixo, pavimentação, energia, drenagem, iluminação pública) e/ou ao nível de habitabilidade das edificações [salubridade, segurança, densidade da unidade habitacional (número de cômodos e/ou área adequada ao tamanho da família, número de pessoas por cômodo servindo de dormitório adequados), condições de insolação e ventilação, disponibilidade de sanitário interno] e/ou à qualidade ambiental do assentamento (densidade, área verde por habitante, área de praça por habitante, grau de arborização, nível de poluição atmosférica, dos corpos hídricos ou do solo, etc.). 4. A carência social é definida pela existência ou predominância de grupos sociais caracterizados pelas suas posições inferiores na hierarquia social, em termos de renda, escolaridade e possibilidades de acesso ao mercado de trabalho. Vulnerabilidade social é caracterizada pela existência ou predominância de grupos sociais com dificuldades de acesso a recursos que os habilitem a participar ativamente da sociedade. As pesquisas têm mostrado que a segregação sócio-espacial, ao produzir efeitos de isolamento social, vem se tornando uma dimensão importante da desigualdade, gerando processos de exclusão social. Para estes grupos é fundamental que se construam políticas de inclusão social, visando a superação do das desigualdades sociais. Considerando estes pontos, e seguindo a proposta de Denaldi (2003), os assentamentos seriam caracterizados, quanto às dimensões de propriedade, urbanística e edilícia, como regulares, regularizados, regularizáveis ou não regularizáveis; quanto à dimensão da precariedade física (risco, acessibilidade, infra-estrutura, nível de habitabilidade e qualidade ambiental do assentamento), como consolidados, consolidáveis ou não consolidáveis; e, quanto à dimensão da carência e vulnerabilidade como sendo ou não objeto de programas sociais como a PNURBI (carência) ou como objeto prioritário de políticas de inclusão social (vulnerabilidade). Essa tipologia poderia ser adotada como forma de enquadramento de intervenções ou como mecanismo de priorização dos investimentos tomando-se, como princípio, a prioridade dos assentamentos em pior situação, por um lado, e com possibilidades concretas de regularização, consolidação ou inclusão social. Para que tais procedimentos possam ser desenvolvidos, será necessário estabelecer-se um conjunto de critérios, dentro de cada item, que permitisse estabelecer os diferentes graus de irregularidade, precariedade, carência/vulnerabilidade. Entre esses critérios, poderão ser acionados, por exemplo, a proporção da área do assentamento ou das famílias sob más condições, ou a gravidade das situações encontradas que poderiam ser traduzidas em indicadores analíticos (ou seja, que permitissem identificar o tipo de problema). QUADRO 1 Bibliografia Abramo, Pedro. Mercado e Ordem Urbana: do caos à teoria da localização residencial. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2001. Abramo, Pedro. “A teoria econômica da favela: quatro notas sobre a localização residencial dos pobres e o mercado imobiliário na favela”. Abramo, Pedro (org.) A Cidade da Informalidade: O desafio das cidades latino-americanas. Rio de Janeiro, Sette Letras/FAPERJ, 2003. 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