Sobre Trote, Vampiros e Relacionamento
Humano nas Escolas Médicas
About Hazing, Vampires and Relationships at
the Medical School
Maria Cristina Pereira LimaI
RESUMO
Os relacionamentos dos estudantes entre si e destes com seus professores podem se tornar difíceis em
diferentes momentos. O ingresso na universidade parece ser um período especialmente tenso em função
dos trotes sofridos nesta fase da vida acadêmica. Este estudo apresenta uma revisão da literatura a
respeito do trote, em especial aquele realizado nas escolas médicas, tentando identificar as características ritualísticas e os fatores mantenedores deste. Paralelamente, constrói uma metáfora com o mito do
vampiro, propondo esta lenda como um paradigma para compreender as relações humanas nas facul-
PALAVRAS-CHAVE
– Educação Médica.
– Ética Institucional.
– Bullying.
dades de Medicina. São discutidas as características comuns entre vampiros e vítimas, encontradas no
mito e nas inter-relações presentes nas escolas médicas, abordando-se possíveis estratégias de manejo.
ABSTRACT
The students’ relationships with one another and their teachers can become difficult at different times.
However, entrance into the university seems to be a particularly tense moment, due to the hazing
suffered this stage of their academic lives. This study presents a review of the literature on the hazing,
especially that have happen in medical schools, trying to identify the characteristics and maintaining
factors of those ritual. In parallel, constructs a metaphor of the vampire myth, proposing this legend
as a paradigm for understanding the human relationships in the medical schools. The common characteristics between vampires and victims, found in myth, and these interrelationships are discussed
in medical schools, approaching at possible management strategies.
KEYWORDS
– Medical Education.
– Institutional Ethics.
– Bullying.
Recebido em: 25/11/2011
Reencaminhado em: 23/03/2012
Aprovado em: 21/05/2012
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I
Faculdade de Medicina de Botucatu, São Paulo, SP, Brasil.
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Maria Cristina Pereira Lima
SOBRE O TROTE
Madrugada quando levantei e me preparei com minha melhor
roupa... Temeroso fui me chegando... Era a eterna estupidez
do trote... Nenhum socorro possível... A escola estava entregue à malta dos veteranos desencadeada contra o rebanho
indefeso dos calouros.... Cheguei em casa todo dolorido dos
encontrões e dos trancos, chorando não de dor mas chorando
por causa de meu único terno decente... fiquei em casa o dia
todo, triste, triste.1 (p. 314-317)
Nascido na Europa, o advento do trote coincide com o ingresso da burguesia nas universidades, sendo, na ocasião, largamente aplicado pelos nobres, até então o único segmento da
sociedade a frequentar a academia2. Embora esteja proibido
por leis específicas em alguns dos Estados do País e possa inclusive ser enquadrado em uma série de artigos do código civil, sua extinção tem parecido impossível. Lamentavelmente,
já ocorreram mortes durante situações que caracterizaram trote, para desespero de famílias, calouros e professores3.
Para alguns, autores o trote pode ser encarado como um
ritual de entrada ou iniciação no novo grupo ao qual o calouro
pretende se integrar. Segundo Van Gennep4, os rituais seriam
formas de um sujeito, inserido em determinada cultura, realizar a passagem de determinada condição a outra, havendo
três modalidades distintas de rituais: os de separação, os de
agregação e, por fim, os de iniciação ou margem. Os ritos de
iniciação são aqueles nos quais os sujeitos que são incorporados a determinado grupo social recebem instruções especiais a
fim de possibilitar sua integração ao grupo; como mencionado, o trote se encaixaria neste último grupo.
Apesar de seu possível papel integrador, o problema em
torno do trote é que ele guarda, ainda hoje, as reminiscências
do uso que dele faziam os nobres na Idade Média. Tendo a
função de destacar a diferença entre os ingressantes e os veteranos e não de integrá-los, o trote seria assim um rito de iniciação “às avessas”2. Ao invés de introduzir o estudante em uma
instituição que preza a democracia e a defesa dos ideais humanitários, o trote transmitiria — ou poderia transmitir — o ideário de uma instituição hierárquica e autoritária2. Esta ideia
poderia levar à conclusão equivocada de que os trotes deveriam ser proibidos. No entanto, como dito acima, ao menos no
que diz respeito aos aspectos legais, eles já o são. Assim, mais
do que propor ou reforçar a proibição, seria necessário compreender o papel que exercem nas instituições de ensino para
pensar em possíveis intervenções.
Sobre os rituais, de modo geral, sabe-se que têm uma
função social nas comunidades em que se inserem — função
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que precisa ser identificada. Em ampla revisão sobre os rituais, Rodolpho5 afirma que os ritos têm uma função organizadora nas sociedades, pois, uma vez que se caracterizam pela
repetição de determinadas atividades e atos, os rituais conferem segurança aos elementos desta comunidade. Segundo a
autora: “[...] através da repetição e da formalidade, elaboradas e determinadas pelos grupos sociais, os rituais demonstram a ordem e a promessa de continuidade destes mesmos
grupos” (p.140).
Em face de eventos desagradáveis e muitas vezes trágicos, calouros frequentemente afirmam que não pretendem repetir os comportamentos dos quais foram vítimas quando vierem a se tornar veteranos. No entanto, o comportamento se
mantém, como pode ser fartamente observado na imprensa
leiga a cada início de ano. Em fevereiro de 2011, um jornal publicado em São Paulo, em caderno dedicado especialmente ao
vestibular, divulgou histórias de violências ocorridas com calouros, bem como os telefones para denúncias no caso de novos alunos enfrentarem trotes em suas escolas6.
Se as experiências de trote são vividas muitas vezes como
desagradáveis e violentas, por que então se mantêm ano após
ano, apesar das medidas legais adotadas? Algumas hipóteses
têm sido propostas para o fenômeno da repetição e manutenção do trote. Uma primeira parece estar relacionada à natureza dos rituais de iniciação. Segundo Zempléni (apud Rodolpho5), os ritos de iniciação têm uma característica que os distingue dos demais, que é a autorreferencialidade. Em breves
palavras, isto significa que o “iniciado” só se torna parte do
grupo quando ele próprio participar da iniciação de outrem.
Não é à toa que o ritual de iniciação é também chamado de
“ritual de margem”, pois estabelece um antagonismo entre
“dentro” e “fora”, pertencendo a este último aqueles que estão desejosos de ingressar no grupo. Assim, apenas após submeter o calouro do ano seguinte ao trote, o iniciado se tornará
parte do grupo de estudantes/veteranos — o que garante a
hierarquia e mantém um círculo vicioso que tende à manutenção deste ritual.
Em extenso ensaio sobre o trote, Vasconcelos2 defende que
talvez haja na repetição do trote o desejo de vingança, numa
busca mágica e irracional de reparar o que ocorreu repetindo
o ato violento sobre outrem. Para poder repetir a ação, mas
não se identificar com aquele que sofre o trote, o veterano o
desumaniza, transforma-o em “coisa”, chamando-o de “bixo”.
Embora na posição de veterano haja o esforço para desumanizar e não se identificar com o calouro, este último deseja se
tornar veterano e se identifica intensamente com este2. Para se
ver livre do trote, o calouro projeta sua liberdade na transformação em veterano:
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Na realidade, o oprimido se aliena de si no ser do
os estudantes que se omitem, num silêncio cúmplice e
opressor. Duas formas de alienação: a aceitação da ação
numa atmosfera de “reino do medo”; 7. Alguns profes-
do opressor e, a posteriori, a reprodução da opressão,
sores consideram naturais estes episódios, recordando
quando recusa sua realização por meio da libertação
sua época de estudante; 8. Intimidações, abusos e assi-
para querer realizar-se também como opressor2 (p. 26).
metrias de poder entre estudantes não se restringem ao
período de recepção ao calouro, conhecido como “tro-
Com base na experiência acadêmica e em denúncias feitas
por estudantes, Akerman et al.7 reforçam a ideia de que o trote
serve mais para manter a hierarquia existente nas escolas médicas do que para integrar os iniciantes. Entre os vários aspectos levantados pelos autores, chama a atenção o caráter autoritário de que se reveste a realização do trote:
te”; são atos que persistem ao longo do ano, nos fazendo imaginar que o bullying — atitudes agressivas, intencionais e repetidas, que ocorrem sem motivação
evidente e adotadas por um ou mais estudantes contra
outro(s), causando dor e angústia, e executadas numa
relação desigual de poder –, descrito e relatado no ensino fundamental e médio, está presente também no en-
1. A recepção aos calouros tem como meta principal en-
sino universitário7. (p. 627-628).
tre os estudantes que o recebem fortalecer o “espírito de
corpo”, fazendo-o aceitar as regras vigentes, predomi-
Partindo de uma análise de discursos de professores e alu-
nando aquela relativa à hierarquia entre calouro e vete-
nos de uma escola médica, Villaça e Palácios9 identificaram
rano; 2. Este intuito, muitas vezes, é relacionado pelos
uma série de situações de violência ocorridas por ocasião do
estudantes à mesma hierarquia existente entre os médi-
trote e destacaram que as mesmas são percebidas pelos estu-
cos, e entre professores e alunos; 3. Para ser parte, o alu-
dantes como corriqueiras, circunstanciais, individuais e até
no tem que “baixar a bola”, uma vez que ele “se acha”
certo ponto esperadas, naturalizadas. Contudo, quando o ve-
por ter passado em um curso tão difícil. Manter-se de
cabeça baixa e ser chamado de calouro é parte do ritual7
(p. 627)
terano recorda sua própria condição de calouro, retoma o desconforto que sentira e os sentimentos de raiva e impotência
experimentados quando da entrada na faculdade9.
Os autores observam também que algumas atividades são
justificadas, no caso dos estudantes de Medicina, pela necessidade de o futuro médico se mostrar capaz de aguentar sofrimento. Para ser médico, tem que suportar, tem que ser “durão”. No estudo já citado de Vasconcelos2, há menção de que
os cursos mais concorridos apresentariam os trotes mais violentos. Em sociedades primitivas, os ritos de passagem são
também constituídos de atividades físicas intensas e muitas
vezes dolorosas8. Aparentemente, além de testarem a resistência dos sujeitos, estas atividades serviriam para reforçar a hierarquia do grupo8. Akerman et al.7 destacam ainda que, embora nem todos cometam atos violentos, há uma possível conivência do grupo, porque muitos assistem e não se manifestam.
Possivelmente, o silêncio daqueles que “apenas” assistem seria uma manifestação da força do grupo em manter seu status
quo. Do ponto de vista do calouro, não participar do trote, ou,
pior ainda, denunciá-lo poderá implicar sanções, sendo a exclusão do grupo a mais temida entre elas7,9. Como consequência, instala-se o silêncio sobre o trote.
SOBRE O ABUSO NAS ESCOLAS MÉDICAS
A ideia da possível existência de abuso nas escolas médicas foi
introduzida por Silver10 em 1982, quando o autor comparou a
transformação que os jovens alunos de Medicina sofrem ao
longo do curso com aquela que ocorre em crianças vítimas das
mais diversas formas de violência. Desde então, a questão
vem sendo estudada em escolas médicas de diversos países,
mostrando-se um problema bem mais prevalente do que se
supunha até então.
Um estudo desenvolvido nos Estados Unidos e que envolveu 16 escolas médicas observou que 42% dos estudantes
referiam já terem sido molestados, enquanto 84% referiam terem sido de algum modo depreciados durante o curso médico11. Os autores não observaram diferenças em relação a gênero ou raça entre os sujeitos que referiram tais problemas. No
entanto, o grupo que referia ter sido molestado ou depreciado
mostrou maior probabilidade de apresentar estresse, sintomas
depressivos, ideação suicida e uso abusivo de álcool, entre outros10. Uma pesquisa desenvolvida no Japão identificou que
5. Nem todos os calouros se submetem, mas isso tem
85,5% dos estudantes de Medicina foram vítimas de abuso ao
um preço: não conseguem ser parte do “corpo”; 6. Não
longo do internato. O tipo de abuso mais frequente foi o ver-
são muitos os estudantes que cometem atos violentos e
bal, e todas as formas de abuso se mostraram mais prevalentes
abusos verbais, físicos e psicológicos, mas são muitos
entre as mulheres12.
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Um estudo realizado pela British Medical Association, citado por Palácios e Rego13, observou que um terço dos sujeitos
referia ter sofrido bullying e que um em cada quatro relatava
ter sido vitimado por um médico(a), enquanto um sexto referia ter sido vítima de maus-tratos por enfermeiro(a). As formas de maus-tratos variaram desde discriminações raciais e
sexuais a humilhações na frente de pacientes e colegas. Entrevistando estudantes de Medicina, Rego14 observou que a prática de maus-tratos por parte dos professores parece frequente. Atitudes negativas dos professores, além de não serem pedagógicas por não melhorarem o aprendizado, podem ainda
ser deletérias para a saúde dos estudantes15.
Embora reconhecido como fenômeno “internacional”16,
no Brasil o uso do termo “abuso” nas escolas médicas surgiu
na literatura apenas recentemente17. Apesar disto, situações de
humilhações, maus-tratos e discriminação de acadêmicos por
preceptores e professores foram relatadas previamente18. Em
um estudo exploratório que procura identificar situações desagradáveis sofridas por alunos de três cursos de Medicina,
Azevedo et al.18 observaram que 76% dos estudantes referiram
ter se sentido depreciados de alguma forma, 42% relataram
sofrer severas críticas e monitorização persistente em demasia, 40% sofreram humilhações perante os colegas e cerca de
um quarto relatou ameaças verbais ou não verbais de seus
professores. Este achado coincide com o obtido por Uhari et
al.16, no qual os autores observaram que três em cada quatro
estudantes finlandeses reportaram algum tipo de maus-tratos
sofridos durante sua formação médica.
Ao comparar a situação vivida pelo estudante de Medicina com aquela experimentada pela criança que sofre relações
abusivas, Silver10 destacou algumas semelhanças. Em ambas
as situações — crianças abusadas e alunos abusados –, há uma
proibição não explícita de discutir o problema, há uma interdição. Outro aspecto que parece similar a ambas é o círculo vicioso de violência que se observa no funcionamento destas
relações. Embora ainda haja muita controvérsia a respeito, sujeitos que cometeram violências contra crianças têm maiores
chances de terem sido vítimas de violências19. Cukier20 conta
que, em sua prática psicoterápica, repete-se a cena de uma
criança que sofre ou assiste a uma situação de violência, aqui
entendida como o abuso de poder de um adulto sobre a criança, podendo este ser físico ou não. Ainda segundo a autora,
um fato intrigante é que esta cena é frequentemente narrada
por um adulto bem-sucedido profissionalmente, mas com dificuldades relacionais e afetivas intensas, tendo se tornado, ele
próprio, o adulto abusador de outrora.
Em um ensaio sobre abuso na infância, Bütz21 propõe uma
comparação deste com o mito do vampiro, particularmente no
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que diz respeito à reprodutibilidade e à manutenção do circulo vicioso de violência. Para o autor, o fascínio que se mantém
em torno deste mito ao longo dos séculos pode ser explicado
pela sua possível associação com as relações abusivas vividas
em especial por crianças, em diferentes momentos da história
ocidental. Para que se possa explorar a mesma metáfora, agora entre vampiros e abuso nas escolas médicas, é necessário
rever, ainda que brevemente, o mito em sua descrição clássica.
SOBRE O MITO DO VAMPIRO
O mito do vampiro é um dos mais antigos na cultura ocidental22.
A versão mais conhecida do mito, concebido após anos de estudo do autor sobre o tema, é Drácula, do escritor Bram Stocker.
De acordo com Lecouteux23, este romance teria tido a função de
organizar diversos aspectos do mito, presentes na cultura europeia, construindo uma espécie de “saber vampirológico”. É deste romance do escritor irlandês que saíram informações sobre o
mito do vampiro, como, por exemplo, a impossibilidade de
adentrar um recinto se não for convidado previamente ou as
formas de evitar que alguém se transforme em vampiro23.
No passado, quando diversas doenças eram ainda desconhecidas em termos de sua fisiopatologia, o mito de vampiro
serviu como possível explicação para sua ocorrência. Segundo
Sledzik e Bellantoni24, doenças potencialmente fatais foram interpretadas como sinais de vampirismo nos séculos XVIII e
XIX. Isto ocorria em função dos aspectos físicos semelhantes
observados entre os doentes e os supostos seres vampirizados,
como, por exemplo, o emagrecimento nos portadores de tuberculose. Quando a tuberculose ocorria em homens jovens e
frequentadores da vida noturna, agregava elementos para que
a crença fosse plausível. Os autores descreveram como exemplo o corpo de um sujeito com lesões ósseas compatíveis com
tuberculose, cujos ossos teriam sido encontrados “embaralhados” — aparentemente, um artifício para impedir que o morto-vivo retornasse. Outras doenças, como, por exemplo, a porfiria, também foram associadas às suspeitas de vampirismo
entre seus portadores25.
De acordo com La Sierra26, existem lendas semelhantes
em culturas tão distantes como a babilônica, a mexicana pré-hispânica e mesmo a chinesa. Apesar das modificações que o
mito do vampiro apresenta nas versões contemporâneas, chama atenção a sua persistência até os dias de hoje. Tentando
elucidar a manutenção do mito, La Sierra26 propõe que talvez
o mesmo se mantenha em função da atração que existe sobre o
vampiro, sendo a mordida um simulacro do ato sexual em si.
Outra possibilidade é que, embora temido, o vampiro seria
também invejado pelo poder que supostamente existiria em
sua força e imortalidade26.
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Nas lendas que o originam há ainda a ideia de que o vampiro foi inicialmente vítima de algum tipo de violência que
culminou em sua morte ou na ocorrência de uma morte súbita
sem explicação. Para evitar que a pessoa se tornasse um vampiro, havia alguns procedimentos a executar com o cadáver,
como, por exemplo, colocar incenso nas narinas e nos olhos,
colocar alho na boca e no ânus ou cortar a cabeça e colocá-la
aos pés do morto23. Reforça-se assim a ideia de que o vampiro
não seria, pura e simplesmente, uma representação do mal,
mas, sim, alguém que, ao morder sua vitima, reproduz a violência sofrida, perpetuando um ciclo de violência.
SOBRE VAMPIROS, ABUSOS E ESCOLAS MÉDICAS
Algumas semelhanças entre o ciclo de vida do vampiro e o
ciclo de violência e abusos que ocorre nas escolas médicas podem auxiliar na compreensão desta metáfora. Assim como os
vampiros seduzem pelo poder que possuem — visto que são
imortais —, calouros e estudantes podem também se sentir seduzidos pelo poder médico e pelo almejado controle sobre
vida e morte. Além do suposto poder sobre a vida e a morte,
outros aspectos têm sido identificados no desejo de ser médico27. Porém, no que diz respeito às relações, a expectativa não
parece ser pelo saber, mas sim pela possibilidade de submeter
o outro, entre outras coisas, ao trote. Uma vez que docentes e
preceptores também podem se envolver em situações de
maus-tratos, reforça-se a hierarquia e a ideia de que os estratos
superiores da escala hierárquica teriam um poder sobre os estratos inferiores, podendo submetê-los à sua vontade.
Outra similaridade é que vampiros foram inicialmente vítimas de violências que os transformaram em tais criaturas. É
plausível supor que as situações de abuso identificadas nas
escolas médicas não sejam um fato novo, mas tenham existido
sempre e tenham sido vividas pelos atuais professores quando
eram estudantes. Frutos de instituições altamente hierarquizadas e, muitas vezes, violentas em suas relações, professores,
preceptores e alunos foram, todos eles, mordidos/vampirizados e nada fazem hoje além de manter o ciclo de vampirização/violência. As condições de trabalho dos docentes nas escolas médicas têm se mostrado bastante insatisfatórias28,29, o
que, embora não justifique o modo como se estruturam as relações humanas na instituição, decerto não contribuem para o
melhor ambiente de ensino.
Outro aspecto do mito que deve ser lembrado é a imortalidade, um tema especialmente caro aos médicos, desde o mito
fundador de Asclépio. Na mitologia grega, quando Asclépio
passou a vencer a morte, ressuscitando os vivos, enfureceu os
deuses e recebeu destes um castigo, que o colocava no devido
lugar de humano, ainda que fosse um brilhante curador30.
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Vencer a morte é ainda uma das motivações inconscientes que
atrai os jovens alunos para a carreira médica31.
Vampiros são ainda descritos como criaturas não vivas ou
mortos-vivos, seres que não sentem. Parte do processo que
ocorre com os estudantes no trote tem este aspecto de dissociação ou alheamento do sofrimento do outro. Deste modo,
quando alguns estudantes descrevem o trote do outro, não
lhes parece violento, parecendo haver um consentimento. No
entanto, quando trata de lidar com o trote sofrido por ele próprio, entra em contato com sentimentos de raiva, frustração e
impotência, vividos outrora9. Esta alienação do sofrimento do
outro pode não se restringir às relações com os pares e os superiores, mas contaminar a relação com os pacientes, diminuindo a empatia. Como descrito por Abuchaim32:
Cada um de nós, estudantes de Medicina, quando veio
à escola, trouxe acalentado seu desejo e suas fantasias
do que pretendia e seria como médico. E o primeiro impacto oferecido a esse rasgo de idealismo potencial dos
estudantes é jogá-los sobre um cadáver. Exatamente o
oposto do que vieram buscar e, o que é mais dramático,
é que, na maioria das vezes, esses alunos, pelo resto de
sua existência, passarão buscando o cadáver imobilizado da Anatomia. Então, o paciente não tem sentimentos, não ama, não chora, não sofre.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Somado tudo, não se trata de propor que os estudantes e professores peguem estacas e saiam pelos corredores das escolas
médicas atravessando o tórax uns dos outros. Tampouco não
se trata de apenas insistir na proibição do trote, atuando ou
tentando atuar em apenas um elo da possível cadeia causal.
Em vez disto, é necessário refletir sobre os processos relacionais que existem nas instituições formadoras para que, compreendendo sua montagem, se possa caminhar para outras
formas de iniciação mais sintônicas com o perfil do profissional que se pretende formar. Assim como no mito, para lidar
com o problema é importante que este seja trazido à luz, identificando a ocorrência do abuso, examinando as formas como
a instituição tem lidado com ele, e, em especial, que se encare
criticamente a naturalização de algumas formas de violência
nas escolas médicas.
Conta a lenda que, para ser mordida, a vítima deve convidar o vampiro a entrar em sua residência. É inegável que aspectos como o fascínio e a sedução pelo poder têm um peso na
determinação da “abertura da porta” e do desejo de ter o poder de submeter o outro. Alunos que “fecham a porta” ao trote
têm sido excluídos, não sendo considerados parte do grupo,
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pois “não aguentam nada”. É importante estimular a empatia,
ampliando espaços de humanização e troca nas relações entre
calouros/veteranos/docentes. Para ser vampirizada irreversivelmente, a vítima deve ser mordida no mínimo três vezes. Ao
longo de seis anos, quantas vezes colegas, residentes e docentes temos mordido uns aos outros, condenando a eles e a nós
mesmos a viver nas sombras?
AGRADECIMENTOS
A autora agradece à FUNDUNESP que possibilitou a
apresentação do trabalho no 49º Congresso de Educação Médica, ao CNPq pela bolsa de produtividade e ao Prof. José Luiz
Aidar Prado pelas sugestões de leitura e a escuta atenta sobre
as idéias que deram origem ao estudo.
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ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA
Maria Cristina Pereira Lima
Depto Neurologia, Psicologia e Psiquiatria
Faculdade de Medicina de Botucatu — UNESP — C.P. 540
Botucatu, São Paulo — SP
CEP: 18618-970
Email: mclima@fmb.unesp.br
Declarou não haver
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REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO MÉDICA
36 (3) : 407 – 413 ; 2012