Fundacionalismo
Edição dE 2022 do
compêndio Em linha
dE p roblEmas dE FilosoFia a nalítica
2018-2021 FCT Project PTDC/FER-FIL/28442/2017
Editado por
Ricardo Santos e Pedro Galvão
ISBN: 978-989-8553-22-5
Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica
Copyright © 2022 do editor
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
Alameda da Universidade, Campo Grande, 1600-214 Lisboa
Fundacionalismo
Copyright © 2022 do autor
Domingos Faria
DOI: https://doi.org/10.51427/cfi.2021.0097
Todos os direitos reservados
Resumo
Neste artigo, analiso diferentes versões de fundacionalismo
(nomeadamente, o fundacionalismo clássico, o fundacionalismo
moderado internista e o fundacionalismo moderado externista) como
resposta ao enigma sobre a estrutura da justificação, também conhecido
tradicionalmente como o Trilema de Agripa. Começo por formular
explicitamente esse enigma e, de seguida, examino o argumento da
regressão a favor do fundacionalismo. Por fim, discuto as diferentes
versões de fundacionalismo e defendo que a versão mais plausível é a do
fundacionalismo moderado externista.
Palavras-chave
Estrutura da justificação, fundacionalismo, crenças apropriadamente
básicas, internismo, externismo.
Abstract
In this paper, I analyze different versions of foundationalism (namely
classical foundationalism, moderate internalist foundationalism, and
moderate externalist foundationalism) as an answer to the puzzle about
the structure of justification, also known traditionally as Agrippa’s
Trilemma. I begin by explicitly formulating this puzzle, and then I
scrutinize the regression argument for foundationalism. In the final
part, I discuss the different versions of foundationalism and I hold that
the most plausible version is the moderate externalist foundationalism.
Keywords
Structure of justification, foundationalism, properly basic beliefs,
internalism, externalism.
Fundacionalismo
DOI: https://doi.org/10.51427/cfi.2021.0097
1 Enigma sobre a estrutura da justificação
Comecemos por analisar uma crença que possuímos e para qual
parece que temos justificação epistémica como, por exemplo, a crença
C de que uma certa figura tem quatro ângulos retos.1 Mas o que justifica esta crença C? Como resposta pode-se fornecer uma razão R1 de
que essa figura é um quadrado. Todavia, pode-se questionar: Por que
razão acreditar em R1? Como resposta pode-se oferecer novamente
uma razão R2; mas também se pode continuar a questionar por que
razão acreditar em R2 e assim por diante. Dado esse raciocínio, uma
das seguintes coisas deverá acontecer: (i) o processo termina com
uma razão Rn que não é suportada por outra razão; (ii) a série de
razões torna-se circular porque uma razão usada anteriormente na
série é usada novamente; ou (iii) a série continua para sempre com
novas razões. Mas qual destas respostas é a mais plausível? Este é o
famoso trilema de Agripa.2 Afinal, o que justifica as crenças que temos?
Será que todas as nossas crenças, de forma a estarem justificadas,
precisam de se basear noutras crenças? Ou será que existem crenças
justificadas não-inferenciais, ou seja, crenças justificadas que não se
baseiam noutras crenças? Ou, pelo contrário, tudo o que importa
para a justificação das nossas crenças é a coerência que existe entre
elas? Em suma, o problema ou enigma aqui presente pode ser formulado da seguinte forma: Qual é a estrutura adequada das crenças
justificadas?
Tal como se está a apresentar o problema, a justificação que estamos aqui a referir é a justificação em relação a crenças; por isso,
neste texto estamos a atender à justificação doxástica e não à justificação
1 Neste texto trataremos apenas da justificação epistémica e não de outros tipos
de justificação, como a justificação prudencial ou moral. Para a distinção entre
vários tipos de justificação, veja-se Faria (2016).
2 Este problema é apresentado como "Trilema de Agripa", por exemplo, em
Wright (2011) e como “Problema da Regressão”, por exemplo, em Cling (2008).
Publicado pela primeira vez em 2022
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Domingos Faria
proposicional. Por um lado, uma proposição p é justificada proposicionalmente para um sujeito S na medida em que a evidência global
E de S suporta p, independentemente de S acreditar p com base em
E. Por outro lado, se p é justificada proposicionalmente para S, e S
acredita que p com base na evidência apropriada E, então a crença de
S que p será doxasticamente justificada.3 É neste último sentido que
estaremos a utilizar o conceito de justificação.
Para se captar com mais precisão o enigma filosófico sobre a estrutura
da justificação é útil considerar as seguintes perspetivas, tal como
formuladas por Bergmann (2014: 38–40; 2017: 257–58):
B: uma crença pode ser justificada mesmo se não é inferida, baseada,
noutra crença (i.e. pode haver crenças apropriadamente básicas, ou
seja, crenças não inferenciais justificadas).
J: uma crença pode ser justificada só se é inferida, baseada, noutra
crença justificada (i.e. todas as justificações requerem justificações prévias).
I: uma crença pode ser justificada mesmo se a crença a partir
da qual é inferida, baseada, não está justificada (i.e. uma crença
pode ser justificada através de uma cadeia inferencial que termina
numa crença injustificada).
R: uma crença pode ser justificada através de uma cadeia inferencial infinitamente longa e não repetida (i.e. a justificação pode
surgir através de um raciocínio infinito).
C: uma crença pode ser justificada através de uma cadeia inferencial circular (i.e. a justificação pode surgir através de um raciocínio circular).
S: não pode haver qualquer crença justificada (i.e. o ceticismo
radical é verdadeiro).
Com base nestas perspetivas, podem-se formular três teses não controversas. Na primeira tese afirma-se que se uma crença pode ser justificada só se é inferida/baseada noutra crença, então ou uma crença
pode ser justificada só se é inferida/baseada noutra crença justificada,
3 Esta é a formulação padrão para a justificação doxástica; para uma discussão
sobre se essa é a melhor forma de apresentar a justificação doxástica veja-se, por
exemplo, o debate entre Turri (2010) e Silva (2014).
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ou uma crença pode ser justificada mesmo se a crença a partir da qual
é inferida/baseada não está justificada. Ou seja,
T1: ¬B → ( J ∨ I)
Por outras palavras, se não há crenças básicas justificadas, a justificação está dependente ou de outras crenças justificadas ou de outras
crenças não-justificadas. A segunda tese destaca as consequências
de a justificação estar dependente de outras crenças justificadas. Assim,
se uma crença pode ser justificada só se é inferida/baseada, noutra
crença justificada, então o seguinte é caso: ou uma crença pode ser
justificada através uma cadeia inferencial infinitamente longa e não
repetida, ou uma crença pode ser justificada através de uma cadeia
inferencial circular, ou não pode haver qualquer crença justificada.
Ou seja,
T2: J → (R ∨ C ∨ S)
Com esta tese 2 afirma-se que se toda a justificação requer justificação prévia, então ou há um raciocínio infinito, ou um raciocínio
circular, ou a justificação é impossível. Por fim, a tese 3 pode ser
apresentada como um simples resultado de uma dedução de T1 e T2:
T3: ∴ ¬B → (I ∨ R ∨ C ∨ S)
Em T3 afirma-se que se B é falso, então pelo menos um dos outros
elementos será verdadeiro. O que significa que não podem ser todos
falsos. Por outras palavras, dado T3, temos o seguinte conjunto inconsistente:
Conjunto inconsistente: {¬B, ¬I, ¬R, ¬C, ¬S}.
Para tornar consistente esse conjunto, é preciso negar (i.e. alterar
o valor de verdade de) algum desses elementos. Mas qual? Aqui o
enigma filosófico consiste em argumentar qual é o membro desse
conjunto que é mais plausível negar. Na literatura filosófica foram
desenvolvidas quatro formas principais de resposta a esse enigma:
Fundacionalismo:
Coerentismo:
Infinitismo:
Ceticismo radical:
{B, ¬I, ¬R, ¬C, ¬S}.
{¬B, ¬I, ¬R, C, ¬S}.
{¬B, ¬I, R, ¬C, ¬S}.
{¬B, ¬I, ¬R, ¬C, S}.
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Estas teorias não são as únicas formas de lidar com o enigma acima
apresentado; mas são as respostas mais naturais e influentes na epistemologia contemporânea. Então, qual destas formas de resolver este
enigma filosófico é a melhor? Neste texto e nas próximas secções
focaremos a análise na resposta fundacionalista.4
2 O argumento da regressão a favor do fundacionalismo
O fundacionalismo foi maioritariamente adotado ao longo da história
da filosofia como a melhor solução para o enigma apresentado ao
fazer a distinção entre crenças inferenciais (ou não-básicas) e crenças
não-inferencias (ou básicas).5 O principal argumento a favor do fundacionalismo é o argumento da regressão que tem raiz em Aristóteles
(1960, I, 3).
Numa versão simples, esse argumento parte da ideia de que toda
a justificação epistémica para as nossas crenças depende ou não
depende de uma inferência a partir de outra crença. Se depende da
inferência de outra crença, então essa outra crença deve ser ela mesma
justificada (porque uma crença não pode ser justificada caso seja
inferida de uma crença não justificada). Por sua vez, se toda a crença
justificada depende de outra crença justificada, então ou essa justificação surge através de uma cadeia infinita de raciocínio, ou surge
através de uma cadeia circular de raciocínio, ou a justificação das
crenças é impossível. Mas como cada uma dessas três opções é
muito implausível (tal como se argumentará a seguir), pode-se
rejeitar a ideia que nos conduziu a essas três opções (i.e. pode-se
negar a ideia de que toda a justificação depende de uma inferência a
partir de outra crença) e concluir que uma crença pode ser justificada mesmo se não é inferida de outra crença. Ou, de um modo mais
preciso, e utilizando a terminologia apresentada na primeira secção,
4 Para uma defesa do coerentismo, veja-se Poston (2014). E para uma argumentação a favor do infinitismo, veja-se Turri e Klein (2014).
5 Historicamente o fundacionalismo foi defendido por Aristóteles, e por grande
parte dos filósofos medievais; de igual forma, filósofos modernos, como Descartes,
Locke, Leibniz, Berkeley, Hume e Reid, foram influentes defensores do fundacionalismo.
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pode-se formalizar o argumento da regressão a favor do fundacionalismo
tal como se segue:
1. ¬B → (I ∨ R ∨ C ∨ S)
2. ¬I ∧ ¬R ∧ ¬C ∧ ¬S
3. ∴ B
[Premissa, T3]
[Premissa]
[1, 2]
A premissa 1 já foi devidamente defendida na primeira secção, correspondendo à terceira tese, e não é alvo de disputa dado ser aceite por
todas as respostas em confronto. Por isso, o ponto central para o
fundacionalista é a tentativa de defesa da premissa 2. Que razões tem
o fundacionalista para pensar que essa premissa é verdadeira?6
Começando com ¬I, por que razão é falso que uma crença pode
ser justificada mesmo se a crença a partir da qual é inferida não está
justificada? Para se analisar isso, considere-se que temos duas crenças
não justificadas nem baseadas em qualquer tipo de evidência: C1 e C2.
Além disso, suponha-se que C2 implica C1. Ora, não parece plausível
sustentar que C1 se torna justificada somente pelo facto de a inferirmos de uma crença não justificada C2. Por isso, não se obtém uma
crença justificada apenas pela inferência a partir de uma crença não
justificada.
Uma razão semelhante pode ser apresentada a favor de ¬C, para
se afirmar que é falso que uma crença pode ser justificada através de
uma cadeia inferencial circular. Assim, suponha-se novamente que
temos C1 e C2, duas crenças não justificadas nem baseadas em qualquer tipo de evidência. Mas agora suponha-se que elas se implicam
entre si. Ora, não parece plausível sustentar que C1 e C2 são ambas
justificadas apenas em virtude de se inferir C1 a partir de C2 e, concomitantemente, inferir C2 a partir de C1. Assim, se as crenças não
têm justificação, não é apenas por se implicarem mutuamente que
adquirem justificação.7
Como objeção ao raciocínio anterior a favor de ¬C, pode-se alegar que se apresentou apenas uma crítica à versão de coerentismo
linear (ou seja, formulou-se apenas uma objeção à perspetiva de que
C é verdadeiro). Contudo, há versões mais plausíveis de coerentismo
6 Aqui vamos seguir as razões sistematizadas por Bergmann (2017: 257–59).
7 Veja-se Plantinga (1993b: 74–78) para um argumento similar a favor de ¬C.
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que, em vez de C ou de um raciocínio linear circular, propõem uma
conceção não-linear ou holística da justificação e, por isso, não são
suscetíveis à objeção anterior. Assim, uma crença p é justificada para
S caso p se conforme bem com a totalidade do sistema de crenças de
S. Em vez de um raciocínio circular, o que se defende é a coerência
global do sistema de crenças; é isso que confere justificação. No
entanto, são vários os filósofos, como Sosa (1980: 18), Barnes (1990:
124), Plantinga (1993b: 78), ou Bergmann (2017: 260), que argumentam que esta versão holística de coerentismo não é de todo rival
do fundacionalismo, sendo apenas mais uma versão de fundacionalismo. Isto porque essa teoria está, tal como argumenta Plantinga
(1993b: 78), "a indicar uma condição sob a qual uma crença é apropriadamente básica. (…) Nesta perspetiva, uma crença p é apropriadamente básica para uma pessoa S se, e só se, p é apropriadamente
coerente com o resto da estrutura noética de S". Desta forma, o
coerentismo não parece apresentar problemas para uma estrutura
fundacionalista da justificação. Pois, por um lado, se o coerentismo
for interpretado numa conceção de raciocínio linear circular como
C, é suscetível à objeção do parágrafo anterior; por outro lado, se
o coerentismo for interpretado numa conceção não-linear holística,
é uma mera versão de fundacionalismo.8 Outras teorias alegadamente
rivais ao fundacionalismo, tal como o "fundarentismo" proposto por
8 Kvanvig (1995), Feldman (2003: 60–61), Audi (2011: 218–20), Howard-Snyder (2012: 38–39) e Faria (2017: 109–11) defendem que o coerentismo
holístico não pode ser interpretado como uma versão de fundacionalismo,
nomeadamente se definirmos com precisão "crença apropriadamente básica" desta
forma: Uma crença p de S é apropriadamente básica se, e só se, p é justificada e p
não deve inteiramente a sua justificação (i) às outras crenças de S ou (ii) à coerência do seu sistema de crenças, ou (iii) a uma combinação de ambos. Com esta
caracterização mais cuidada da noção de crença básica, o coerentismo holístico
não pode ser considerado como uma versão de fundacionalismo, nem as crenças
que são membros de uma estrutura noética coerente podem ser caracterizadas
como apropriadamente básicas. Assim, o coerentismo holístico é realmente uma
versão rival ao fundacionalismo. Contudo, esse coerentismo é suscetível à objeção
do isolamento ou do input de que um sistema de crenças pode ser totalmente
coerente sem ter nada a ver com a realidade, bem como à objeção dos sistemas
alternativos coerentes em que pode haver numerosos sistemas de crenças igualmente coerentes que são mutuamente incompatíveis e em que o coerentista não
consegue dar qualquer critério para escolher por um desses sistemas de crenças.
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Haack (1993), acabam no fundo por defender uma justificação não-inferencial para algumas das nossas crenças de modo a não se cair
numa regressão infinita, ou seja, defendem o elemento B e negam
os elementos restantes (I, R, C, S) no enigma sobre a estrutura da
justificação, o que é suficiente para as classificar como seguindo uma
estrutura genérica fundacionalista.9
Voltando às premissas do argumento da regressão a favor do
fundacionalismo, para justificar ¬R, em que se afirma que é falso
que uma crença pode ser justificada através uma cadeia inferencial
infinitamente longa e não repetida, pode-se desenvolver o seguinte
raciocínio por analogia com a teoria do valor. Ora, considere-se a
perspetiva de que todo o valor é valor instrumental (i.e. útil para obter
alguma coisa valiosa). Se isso é o caso, então não há qualquer valor
último (valioso em si mesmo) do qual o valor instrumental dependa
e, dessa forma, haveria apenas uma série interminável de valor que
nunca seria realizado. Mas se aceitamos que podemos realizar ou
alcançar um valor, então temos de aceitar que algumas coisas valem
por si mesmas.10 De forma análoga, se todas as nossas crenças estão
dependentes de outras crenças (numa cadeia inferencial não repetida)
para serem justificadas, então não há qualquer justificação última que
proporcione justificação a toda a cadeia e, desse modo, haveria apenas
uma séria interminável de inferências que nunca seria realmente justificada. Porém, se aceitarmos que algumas das nossas crenças estão
efetivamente justificadas, então de forma a obter-se justificação na
cadeia de inferências, deverá haver alguma fonte de justificação que
não seja inferencial. Além disso, é implausível aceitar R, pois nenhuma
das nossas crenças é de facto baseada numa cadeia de raciocínio infinito e não repetida.11
Por fim, pode-se justificar ¬S, em que se afirma que algumas
das nossas crenças podem estar justificadas da seguinte forma: para
se defender o ceticismo radical, S, seria necessário um argumento
extremamente poderoso para a conclusão de que é impossível haver
9 Veja-se Tramel (2007).
10 Para se aprofundar este argumento, veja-se Zimmerman e Bradley (2019).
11 Apesar das objeções, a perspetiva R é defendida, entre outros, por Klein
(2006). Para uma análise crítica aos argumentos de Klein (2006), veja-se, por
exemplo, Bergmann (2014).
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crenças justificadas. Mas para um tal argumento ser bom, ter-se-ia
de justificar bem as premissas e, dessa forma, seria falso que nenhuma
crença está justificada. Assim, parece que não se pode defender
coerentemente o ceticismo radical.
Como se argumentou, de acordo com a teoria fundacionalista,
cada uma das quatro perspetivas analisadas (I, R, C, S) é implausível.
Além disso, ao considerar-se que algumas crenças podem ser justificadas ao serem baseadas, não em inferências de outras crenças, mas
sim em pareceres, impressões ou experiências (como, por exemplo,
uma impressão matemática a priori ou uma experiência de dor), a
perspetiva B pode adquirir a sua plausibilidade. Esta perspetiva permite acomodar, por exemplo, a intuição de que uma crença é justificada só se é baseada numa razão; contudo, essa razão não tem de
ser sempre uma outra crença a partir da qual se faz uma inferência,
podendo, em vez disso e em certas circunstâncias, ser uma experiência ou impressão não-inferencial.12 Em suma, dada a premissa 1,
correspondente à tese T3, se considerarmos plausível a negação de I,
R, C, S, temos de aceitar B, ou seja, concluímos que o fundacionalismo
é verdadeiro.
3 Diferentes versões de fundacionalismo
Com base no argumento da regressão, e tal como se esclareceu na secção
anterior, o fundacionalista faz notar bem que há duas possíveis formas
de uma crença estar justificada; nomeadamente, ou uma crença pode
ser justificada ao ser inferida de outra crença ou uma crença pode
ser justificada sem ser inferida de outra crença. Uma crença que
não é inferida de outra crença designa-se como "crença básica". Se
essa crença básica também for justificada, designa-se como "crença
apropriadamente básica". Portanto, para o fundacionalista, além de
crenças justificadas inferenciais, que são designadas como "crenças
apropriadamente não-básicas", também há crenças apropriadamente
básicas. Esta ideia pode ser capturada pelo seguinte princípio genérico
fundacionalista:
12 Esta ideia é defendida, por exemplo, pela teoria do "conservadorismo
fenoménico" que é uma versão de fundacionalismo. Veja-se Huemer (2007),
Tucker (2013), Moretti (2020) e a próxima subsecção 3.2.1.
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Princípio Fundacionalista: Uma crença está justificada se, e
só se, ou (i) é uma crença apropriadamente básica, i.e. é uma
crença não inferida de outra crença e satisfaz as condições de basicidade C, ou (ii) é uma crença apropriadamente não-básica, i.e. é
inferida, de uma determinada forma F, a partir de outra crença
que está justificada.13
Tal como formulado, este princípio apresenta uma definição básica de
fundacionalismo em termos puramente estruturais, advogando-se
que para uma crença ser justificada esta deve ser ou apropriadamente básica ou apropriadamente não-básica. Esse princípio elementar é aceite por todas as versões de fundacionalismo. Porém, nesse
princípio epistémico é preciso esclarecer as duas letras esquemáticas C
e F. A primeira, a letra C, refere-se às condições que fazem com que
uma crença básica ou não-inferencial seja justificada, isto é, são as
condições de basicidade apropriada. Mas quais são essas condições?
A partir daqui, como resposta a esse problema, começa a discórdia
entre diferentes versões de fundacionalismo, mais fortes ou moderadas,
tal como analisaremos nas próximas secções.
Quanto à segunda letra esquemática, F, esta refere-se às diferentes
formas em que uma crença pode ser inferida a partir de outra. Essa
forma será apenas dedutiva? Ou também poderá ser indutiva ou
até abdutiva? Como resposta a esse problema também temos várias
versões de fundacionalismo. Por exemplo, em versões mais fortes ou
clássicas de fundacionalismo, como aquele proposto por Descartes,
defende-se que uma crença é apropriadamente não-básica se, e só
se, é uma crença deduzida com certeza indubitável a partir de uma
crença justificada. Contudo, versões mais moderadas de fundacionalismo, além de permitirem a dedução, também permitem que as
crenças apropriadamente não-básicas sejam inferidas com base em
induções a partir de uma amostra representativa ou a partir de uma
abdução para a melhor explicação. Mas como o maior ponto da discórdia entre as diferentes versões fundacionalistas é o critério de
basicidade apropriada, focaremos a nossa atenção nas diferentes formas
de preencher a condição C.
13 Aqui estamos a aplicar a estrutura fundacionalista apenas à justificação;
mas pode ser igualmente aplicada a outros estatutos epistémicos, como conhecimento, garantia ou racionalidade.
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3.1 Fundacionalismo clássico
O fundacionalismo clássico advoga a ideia de que todas as crenças
apropriadamente básicas não são suscetíveis de revisão racional; por
isso, as crenças fundacionais são certas e não suscetíveis de erro ou
dúvida. Na história da filosofia a versão fundacionalista clássica de
Descartes (1998) talvez seja uma das mais conhecidas e influentes.
Descartes (1998) preenche a condição C da seguinte forma:
Fundacionalismo Cartesiano: Uma crença é apropriadamente
básica se, e só se, é uma crença não-inferencial produzida com
certeza indubitável por introspeção, ou intuição a priori, ou memória nítida.
Esta é uma versão forte de fundacionalismo em que se defende que
as crenças básicas são infalíveis, indubitáveis, ou incorrigíveis.14
Descartes, através do seu método da dúvida, visava localizar tais
alicerces firmes para o conhecimento, apresentando como exemplo
paradigmático de crença apropriadamente básica a crença na sua própria existência, ou seja, o "cogito". Tal crença é uma certeza indubitável porque, ao tentar-se duvidar dela, descobre-se imediatamente
que tal é impossível. E é com base em tais fundamentos firmes que
se devem apoiar todas as outras crenças apropriadamente não-básicas.
Contudo, nas últimas décadas esta versão forte de fundacionalismo
tem sido seriamente criticada e essas objeções podem ser instrutivas
para uma melhor versão de fundacionalismo. Plantinga (2000: 93–99)
apresenta duas boas razões para defender que o fundacionalismo
cartesiano é implausível. Em primeiro lugar, pode-se argumentar
que o critério de basicidade apresentado pelo fundacionalismo
cartesiano é autorreferencialmente incoerente. Isto porque tal critério
não pode ser aceite como uma crença apropriadamente básica, pois
ele próprio não é uma crença não-inferencial produzida com certeza
indubitável por introspeção, ou intuição a priori, ou memória nítida;
ou seja, o critério cartesiano não é ele próprio uma crença básica
infalível, indubitável, ou incorrigível (aliás, há precisamente muitos
filósofos que duvidam de tal critério). Além disso, não pode ser aceite
14 Crenças incorrigíveis são crenças sobre os próprios estados mentais que
não admitem erro.
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como uma crença não-básica; pois para isso seria preciso haver um
bom argumento ou inferência dedutiva para esse critério de basicidade cartesiano a partir de premissas que fossem infalíveis, indubitáveis, ou incorrigíveis. Mas não é claro que haja um tal argumento.
Em segundo lugar, pode-se argumentar que o critério de basicidade cartesiano é demasiado restritivo. Isto porque existem muitas
crenças que quotidianamente temos e que consideramos apropriadamente básicas, apesar de não satisfazerem as condições de basicidade
propostas pelo fundacionalismo cartesiano. Por exemplo, crenças
como "o mundo existe há mais de cinco minutos", "existem outras
pessoas e mentes", ou crenças em geral sobre a memória são excluídas por tal versão forte de fundacionalismo.
Uma outra crítica relevante que se pode fazer ao fundacionalismo
cartesiano é inspirada pelo argumento da anti-luminosidade de
Williamson (2000). Repare-se que de acordo com o fundacionalismo
cartesiano, se estados mentais de aparência ou introspeção fornecem
ao sujeito certeza genuinamente indubitável, então tal sujeito é capaz
de dizer sempre em que estado se encontra. Ou seja, alguém que
tenha uma experiência de uma dada sensação pode saber que está a
experimentar essa sensação. Por exemplo, de acordo com Descartes,
esse sujeito não pode dúvidar que tem uma aparência ou experiência
de dor ou de frio. Por isso, crenças como "eu sinto uma dor" ou "eu
sinto frio" são apropriadamente básicas na estrutura fundacionalista
cartesiana. Ou seja, nesta versão forte de fundacionalismo todos os
estados mentais são luminosos:
Luminosidade: Uma condição C é luminosa para um sujeito S
se, e só se, sempre que C é o caso, S está em posição de saber que
C é o caso.
Contudo, Williamson (2000: 96) formulou um forte argumento
contra a luminosidade e, consequentemente, contra o fundacionalismo cartesiano.15 Para formalizar-mos o argumento, vamos utilizar
uma série de abreviaturas. Seja t0,..., t n uma série de casos que estão
um milissegundo separados um do outro. Seja C a condição de que
o sujeito S sente frio. E seja K(C) a condição de que S sabe que sente
15 Para um argumento similar, veja-se Srinivasan (2015).
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frio. Com base nestas abreviaturas, e para construir uma reductio,
vamos partir da suposição de que C é luminoso:
(LUM) Se C é o caso em t, então K(C) é o caso em t.
Além disso, a condição de segurança para o conhecimento motiva o
seguinte princípio de margem de erro:16
(MAR) Se K(C) é o caso em t, então C é o caso em t+1.
Com base nessas suposições anteriores, podemos partir das seguintes
premissas verdadeiras:
(INI) C é o caso em t0.
(FIM) C não é o caso em t n.
Porém, todas essas suposições, LUM, MAR, INI e FIM, consideradas
conjuntamente levam a uma contradição, tal como se pode mostrar:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
C é o caso em t0.
[INI]
0
K(C) é o caso em t .
[1 e LUM]
0+1
C é o caso em t .
[2 e MAR]
17
Os passos (1)-(3) são repetíveis indefinidamente.
C é o caso em t n.
[3 e 4]
n
C não é o caso em t .
[FIM]
6 contradiz 5.
Ora, para evitar esta contradição que se derivou em 7, devemos negar
algumas das suposições, LUM, MAR, INI ou FIM. Uma vez que INI
e FIM são verdadeiras por estipulação, e MAR está muito bem motivada pela condição modal da segurança para o conhecimento, segue
que devemos rejeitar LUM. Ou seja, a luminosidade é falsa e, assim,
versões fortes de fundacionalismo que aceitam LUM, como é o caso
16 Sobre a condição de segurança para o conhecimento, veja-se Faria (2020).
17 Isto porque se C é o caso em t 0+1, então por LUM K(C) é o caso em t 0+1.
Por sua vez, se K(C) é o caso em t 0+1, então por MAR C é o caso em t0+2. E se C é o
caso em t0+2, então por LUM K(C) é o caso em t0+2. Ora, se K(C) é o caso em t 0+2,
então por MAR C é o caso em t 0+3 e assim por diante até t n. Esta formalização é
inspirada em Srinivasan (2013) e Hughes (2018).
Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica
Fundacionalismo
13
da cartesiana, também devem ser rejeitadas. Mas estas críticas não
militam contra outras versões mais moderadas de fundacionalismo.
3.2 Fundacionalismo moderado
Nas versões mais moderadas de fundacionalismo aceita-se que as
crenças apropriadamente básicas não têm de ser infalíveis, incorrigíveis ou indubitáveis, bem como se permite um leque mais extenso de
crenças apropriadamente básicas. Em geral as versões moderadas de
fundacionalismo aceitam o princípio esquemático de que na medida em que uma crença p é suportada por alguma coisa X que não é
uma crença e se esse suporte X não é derrotado,18 então essa crença
básica p é justificada e, assim, é apropriadamente básica. As versões
de fundacionalismo moderado podem dividir-se em duas grandes
famílias dependendo de como se entende esse suporte X. Por um
lado, se esse X for entendido de forma internista, temos versões de
fundacionalismo moderado internista; por outro lado, se esse X for
entendido de forma externista, temos versões de fundacionalismo
moderado externista.
3.2.1 Fundacionalismo moderado internista
Começando pelo internismo, esta é a perspetiva de que todos os fatores, individualmente necessários e conjuntamente suficientes, para
uma crença ser justificada para S são internos à perspetiva cognitiva
de S. Assim, para qualquer crença p e sujeito S, determinar p como
justificada para S é inteiramente uma função de fatores que fazem
parte da perspetiva de S. Mas obtemos diferentes versões de internismo dependendo das várias formas de se entender "fazer parte da
perspetiva de S" ou "ser interno à perspetiva de S". Essas interpretações podem ser epistémicas ou metafísicas.
Por um lado, uma leitura epistémica de se interpretar "ser interno
à perspetiva de S" é conhecida como "acessibilismo", podendo ser
definida nos seguintes termos: um dado fator ou suporte X é interno
18 Há derrotadores p.e. quando há alguma boa razão ou justificação para pensar
que a crença é falsa, não fiável, ou duvidosa. Para uma análise dos vários tipos de
derrotadores e de várias sobre os derrotadores, veja-se Brown e Simion (2021).
Edição de 2022
14
Domingos Faria
à perspetiva de S se, e só se, S tem (ou pode ter) algum tipo de acesso
privilegiado para saber se X obtém. Por exemplo, um fator X é relevantemente interno à perspetiva de S caso S possa estar ciente ou
saber apenas por reflexão se X é o caso. Por outro lado, uma leitura
metafísica de se interpretar "ser interno à perspetiva de S" é conhecida
como "mentalismo", que pode ser definida nos seguintes termos: um
dado fator X é interno à perspetiva de S se, e só se, X faz parte da
vida mental (não-factiva) de S; assim, a justificação sobrevém sobre
estados mentais não-factivos de S.
Entre os fundacionalistas moderados que abraçam o internismo,
simultaneamente nas versões de acessibilismo e mentalismo, encontram-se, entre outros, Pryor (2000), Huemer (2007), Tucker (2013),
e Moretti (2020), ao defenderem a seguinte versão de fundacionalismo:
Fundacionalismo Conservadorista Fenoménico: Uma crença
é apropriadamente básica se, e só se, tal crença é justificada prima
facie pela forma como as coisas parecem ao sujeito.
De acordo com esta versão de fundacionalismo, um estado de
não-crença, tal como um parecer ou impressão, fornece justificação
para as crenças básicas. Nomeadamente, se parece a um sujeito S que
p, então, na ausência de derrotadores (ou de evidência contrária), S
tem dessa forma pelo menos algum grau de justificação para acreditar que p de forma básica ou não-inferencial. Tais pareceres são concebidos como certos tipos de experiências (e não como crenças) providas
de conteúdo proposicional, sendo o que distingue "pareceres" de
outros tipos de experiências é o seu caráter fenoménico particular.
Ou seja, os pareceres vêm acompanhados de uma "força", "assertividade", ou "sensação de verdade".19 Esse caráter fenoménico de assertividade vem em graus. Por exemplo, alguns pareceres são tão
assertivos que fazem com que o seu conteúdo parece totalmente
óbvio, como o parecer de que 2 + 2 = 4. Mas outros pareceres podem
ser muito fracos e com pouca força assertiva. Nesse caso, o grau de
justificação não-inferencial conferido por tais pareceres também será
menor. Além disso, existem pareceres de diferentes tipos, como percetivos, introspetivos, mnemónicos, racionais, morais, entre outros. Por
19 Essa assertividade está presente, por exemplo, quando me parece que
1+1 = 2, mas está ausente quando conjeturo que 341 × 269 = 91729.
Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica
Fundacionalismo
15
exemplo, o leitor pode ter justificação para acreditar que está perante
um computador simplesmente porque lhe parece assim visualmente. Mas essa justificação é apenas prima facie, dado que essa justificação pode ser derrotada por outras evidências que indiquem que
o parecer em questão não é fiável ou que a crença é falsa. Assim,
os pareceres são fonte de justificação das nossas crenças básicas, a
menos que tenhamos alguma razão contra.
Como principal desafio para as versões internistas de fundacionalismo pode-se questionar: será que essa sensação ou experiência, esse
"dado", é fonte de justificação? Pode-se argumentar que não; pois, podemos inquirir se a experiência tem conteúdo representacional assertivo,
ou seja, se tem conteúdo que é apresentado como sendo verdadeiro,
mas pode de facto ser falso.20 Ora, por um lado, se a experiência tem
conteúdo assertivo representacional, então é necessária uma razão
adicional para pensar que esse conteúdo é de facto correto, havendo
um regresso ao infinito na justificação. E, por outro lado, se a experiência não tem tal conteúdo assertivo representacional, então a
experiência não pode fornecer uma razão para pensar que alguma
proposição é verdadeira. Assim, de uma forma ou de outra, a experiência não é um fundamento apropriado para a justificação. Esta
objeção é conhecida como dilema de Sellars (1997).
Em resposta a esse dilema, os defensores do conservadorismo
fenoménico, bem como de outras versões moderadas de fundacionalismo internista, procuram argumentar que as experiências ou
pareceres, providos de conteúdo proposicional, fornecem uma razão
básica (ou seja, prima facie) para pensar que esses conteúdos são verdadeiros. Por exemplo, neste momento podemos ter a experiência,
parecer ou impressão, de que há um computador à nossa frente; ora,
em virtude desse conteúdo ser apresentado como verdadeiro na experiência, dá-nos uma razão prima facie para pensar que é verdadeiro.
Nas palavras de Tucker (2010), "a fenomenologia de um parecer faz
senti-lo como se o parecer estivesse a recomendar o seu conteúdo
proposicional como verdadeiro ou a nos assegurar da verdade do conteúdo". Com esta estratégia, filósofos como Pryor (2000), Huemer
(2001) e Tucker (2010) podem rejeitar o dilema de Sellars (1997) ao
sustentarem que a experiência tem conteúdo assertivo representacional
20 Esta formulação da objeção deve-se a BonJour (1985).
Edição de 2022
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Domingos Faria
não sendo necessário uma razão adicional para pensar que esse conteúdo é verdadeiro.21
Bergmann (2006, 2013) apresenta um dilema mais forte do que
o de Sellars (1997) contra todas as versões internistas de funcionalismo. De acordo com Bergmann (2006), qualquer noção de justificação epistémica deverá satisfazer o requisito de acesso, ou seja, a
crença de S que p é justificada só se (1) há algo, X, que contribui para
a justificação de p e (2) S está ciente de X. A condição (2) pode ser
interpretada de duas formas: na primeira interpretação, designada
como forte, requer-se que S esteja atualmente ciente ou, pelo menos,
seja capaz de estar ciente de X apenas pela reflexão, de tal forma
que S concebe X como relevante para a justificação de p. Na segunda
interpretação, designada como fraca, requer-se que S esteja também
ciente de X, mas S não precisa de conceber X como relevante para a
justificação de p.
Mas, qualquer que seja a interpretação, somos levados a concluir
que as versões internistas de funcionalismo são implausíveis. Pois,
por um lado, a interpretação forte implica um regresso vicioso infinito, levando a conclusões céticas de que nenhuma crença pode
ser justificada. Isto porque, nesta versão forte, de forma a S estar
justificado a acreditar numa dada crença p1, S precisa de ter evidência ou fundamento X1 para p1 e, simultaneamente, estar ciente e ter
uma segunda crença justificada, p2, de que X1 é uma evidência ou
fundamento para p1. Todavia, para S estar justificado nessa segunda
crença p2, S precisa de ter X2 para p2 e, igualmente, estar ciente e
ter uma terceira crença justificada, p3, de que X2 é uma evidência ou
fundamento para p2, e assim por diante ad infinitum, dando origem
a conclusões céticas uma vez que seria humanamente impossível ter
um número infinito de tais crenças com um nível crescente de complexidade.
Por outro lado, a interpretação fraca implica que se perde a motivação
principal para adotar o internismo. Isto porque nesse caso a versão
fraca será suscetível à Objeção da Perspetiva do Sujeito (OPS) que é usada
contra o externismo e para motivar o internismo. De acordo com
a OPS, se S não concebe alguma evidência ou fundamento X como
21 Para outras estratégias diferentes de resposta ao dilema de Sellars (1997),
veja-se Fumerton (1995), Fales (1996), e BonJour e Sosa (2003).
Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica
Fundacionalismo
17
relevante para a justificação de p, então seria acidental da perspetiva
subjetiva de S que p é verdadeira. Ora, como na versão fraca não se
exige que se conceba X como relevante para a justificação de p, então
não se elimina a possibilidade das crenças de S serem apenas acidentalmente verdadeiras da perspetiva de S e, dessa forma, não serem
justificadas. Assim, de uma forma ou de outra, devemos abandonar o
fundacionalismo internista.
Como resposta a esta objeção, Rogers e Matheson (2011: 60–63)
argumentam que há várias noções internistas da justificação que
escapam ao dilema de Bergmann (2006), como é o caso do conservadorismo fenoménico. A ideia é que se o X que contribui para a
justificação da crença p de S é um parecer ou impressão de S que
p, então é bastante plausível que o mero facto de S estar ciente de X
(dessa impressão ou parecer), numa leitura fraca, garante por si só
que a crença de S que p não é acidental do ponto de vista do próprio
S. Aliás, há uma diferença clara entre, por um lado, uma crença que
surge simplesmente do nada ou aparece súbita e inexplicavelmente
na cabeça de um sujeito com a fenomenologia de um palpite casual
ou de uma convicção arbitrária22 e, por outro, uma crença que é formada como resultado de um forte parecer ou impressão do próprio
sujeito em que ele se sente impelido a ter essa crença. Ao contrário
da primeira situação, neste último caso o sujeito não é suscetível à
OPS. Moretti e Piazza (2015), bem como Gage (2015), argumentam
de forma similar que o conservadorismo fenoménico pode adotar a
interpretação fraca sem problemas. Nomeadamente, quando a crença
de S que p é baseada nos seus próprios pareceres de que p, a verdade
de tal crença não é acidental da perspetiva do sujeito.23
Ainda que o fundacionalismo moderado internista tenha ferramentas para lidar com as objeções anteriores, pode-se argumentar
que não é capaz de explicar a inadmissibilidade epistémica de crenças
formadas com base em pareceres ou impressões com más etiologias,
como, por exemplo, os que são originados em pensamento ilusório,
vieses cognitivos, sexismo, racismo, etc, e resistente a todo o tipo de
derrotadores. Por exemplo, imagine-se uma pessoa que deseja muito
22 Para se ilustrar este ponto, veja-se o caso de vidência de Norman apresentado por BonJour (1985: 41).
23 Para outras objeções, veja-se Crisp (2009).
Edição de 2022
18
Domingos Faria
que o seu parceiro a ame tendo sempre o parecer ou impressão de que
ele age de forma amorosa e fiel até mesmo quando a trai explicitamente. Ou considere-se o caso de um professor sexista que tem a
firme convicção e parecer, baseado num forte viés cognitivo, que
nenhuma mulher é competente em matemática ou engenharia. Intuitivamente, os sujeitos em tais casos, apesar de terem pareceres e impressões, não têm crenças justificadas. Assim, é plausível aceitar que
tais pareceres ou impressões gerados devido a falhas cognitivas ou
más etiologias não dão estatuto epistémico positivo ou justificação às
crenças básicas.24 Ora, para se impedir essas más etiologias nos pareceres ou impressões numa teoria da justificação epistémica ter-se-á
de advogar que a justificação também está dependente de processos
fiáveis, virtuosos, ou que funcionam apropriadamente. Mas nesse
caso já estamos comprometidos com um fundacionalismo moderado
externista, tal como se analisará na próxima secção.
3.2.2 Fundacionalismo moderado externista
O externismo, caraterizado como a negação do internismo, é a tese
de que a justificação de uma crença não é inteiramente determinada por fatores que fazem parte ou são internos à perspetiva de S e,
por isso, alguns dos fatores necessários para uma crença ser justificada para S são externos à perspetiva cognitiva de S. Ou seja, alguns
desses fatores relevantes para a justificação não fazem parte da vida
mental de S ou são tais que S não tem um acesso privilegiado a eles.
Ora, isto tem uma consequência relevante: contra o internismo, é
possível que dois sujeitos S1 e S2 tenham os mesmos fatores internos
e que a crença p seja justificada para S1 mas não para S2, sendo que
aquilo que faz uma diferença epistemicamente relevante é algum
fator externo à perspetiva do sujeito, tal como o fator da fiabilidade,
ou o fator de rastrear a verdade, ou ainda o fator da função apropriada dos processos cognitivos. Uma das principais teorias fundacionalistas moderadas que se baseia no externismo é conhecida como
"fiabilismo", sendo proposta por Goldman (1979) nestes termos:
24 Esta ideia é defendida, por exemplo, por Siegel (2012) e Kelp (2020).
Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica
Fundacionalismo
19
Fundacionalismo Fiabilista: Uma crença é apropriadamente
básica se, e só se, essa crença resulta de um processo independente
de crenças que é incondicionalmente fiável.25
Como esta é uma teoria externista, para uma crença ser apropriadamente básica não é necessário que o sujeito saiba, tenha consciência,
ou acredite que a crença em questão resulta de um processo independente de crenças incondicionalmente fiável. É suficiente que o processo que produz tal crença seja efetivamente fiável. De forma a
clarificarmos essa versão de fundacionalismo é importante esclarecer algumas questões, tais como: (1) O que é um processo? (2) O que é
um processo independente de crenças? E (3) em que consiste um processo
independente de crenças ser incondicionalmente fiável? Começando pela
questão (1), Goldman (1979: 11) caracteriza um processo da seguinte
forma:
Seja um 'processo' uma operação funcional ou procedimento, i.e.,
algo que gera um mapeamento de certos estados – 'dados de entrada'
(inputs) – noutros estados – 'dados de saída' (outputs). Os dados
de saída, neste caso, são estados de se acreditar nesta ou naquela
proposição num dado momento. Nesta interpretação, um processo
é um tipo e não um exemplar. Isto é perfeitamente apropriado, visto
que só os tipos têm propriedades estatísticas, como a de produzir
a verdade 80% das vezes; e são exatamente essas propriedades
que determinam a fiabilidade do processo.
Os processos são, então, tipos que têm inputs e outputs. Por um lado,
um "processo tipo" é um processo para o qual pode haver muitos
exemplares ou instâncias; por outro lado, um "processo exemplar"
é um processo particular que ocorre apenas uma vez. Mas, se um
processo exemplar ocorre apenas uma vez, então não pode ser fiável
80% das vezes; daqui se segue que quando pensamos sobre a fiabilidade de um processo devemos pensar sobre a fiabilidade do "processo
25 Para uma versão mais completa da teoria deve-se salientar que esta
condição fiabilista é normalmente acompanhada por uma condição de ausência
de derrotadores. Goldman (1979) formula essa condição nestes termos: S não
tem derrotadores de p em t, i.e., não há um processo fiável ou condicionalmente
fiável disponível a S em t tal que se tivesse sido usado por S para além do processo
efetivamente usado, teria resultado em S não acreditar p.
Edição de 2022
20
Domingos Faria
tipo". Entendido desta forma o fiabilismo apresentado por Goldman
é uma versão de fiabilismo global, pois o que é relevante é se o processo geral de formação de crenças pelo qual o sujeito formou a sua
crença é fiável ou não. Mas como devemos pensar esses processos?
Goldman (1979: 11–12) oferece algumas ilustrações:
Um exemplo são os processos de raciocínio, nos quais os dados
de entrada incluem crenças anteriores e hipóteses cogitadas. (…)
Um terceiro exemplo é o processo de memória, que toma como
dados de entrada as crenças ou experiências de um tempo anterior e gera como dados de saída crenças, num tempo posterior.
De forma a responder à questão (2), é preciso distinguir entre processos dependentes e processos independentes de crenças. Por um lado,
um processo dependente de crenças é aquele que inclui entre os seus
inputs outras crenças do sujeito; por outro lado, um processo independente de crenças não inclui qualquer crença entre os seus inputs. Com
base nesta distinção pode-se fazer a distinção, essencial para o fundacionalismo, entre crenças básicas e não-básicas. Ou seja, as crenças básicas são aquelas que resultam e são o output de um processo
independente de crenças, ou seja, de um processo em que nenhum
dos inputs consiste em outras crenças. Neste caso, as crenças percetivas são candidatos típicos a crenças básicas. Ao passo que as crenças
não-básicas resultam de um processo dependente de crenças, isto
é, resultam de um processo cujos inputs consistem parcialmente de
outras crenças. As inferências indutivas ou dedutivas são exemplos
típicos de crenças não-básicas.
Por fim, de forma a responder à questão (3), é importante primeiro
clarificar o significado de "fiável". Ora, um processo F de formação
de crença é fiável se, e só se, F produz com tendência maioritária
crenças verdadeiras ou uma alta percentagem de crenças verdadeiras em vez de crenças falsas. Aqui o conceito de "tendência" pode
ser interpretado de duas formas: ou como frequência (i.e. a efetiva
frequência a longo prazo) ou como propensão (i.e. a regularidade
nas situações efetivas e possíveis). Para ilustrar o que são processos
tipicamente fiáveis, Goldman dá como exemplo a memória nítida, a
visão atenta, a dedução válida, etc. Pelo contrário, a adivinhação, o
Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica
Fundacionalismo
21
pensamento ilusório, a generalização apressada, etc., são exemplos
de processos tipicamente não fiáveis.
Uma vez esclarecido o que é um processo fiável, pode-se distinguir entre processos fiáveis condicionais e incondicionais. Por um
lado, um processo é incondicionalmente fiável se, e só se, tende a
produzir como output crenças que são maioritariamente verdadeiras.
Por outro lado, um processo é condicionalmente fiável se, e só se,
tende a produzir como output crenças que são maioritariamente
verdadeiras se as crenças do seu input são verdadeiras. Com base
nesta distinção pode-se determinar o que são crenças básicas justificadas (ou apropriadamente básicas) e crenças não-básicas justificadas.
Assim, há justificação para as crenças não-básicas quando resultam
de um processo dependente de crenças que é condicionalmente
fiável, isto é, resultam de um processo cujos inputs consistem parcialmente noutras crenças e em que, dado que os inputs são verdadeiros,
produz crenças que são verdadeiras ou provavelmente verdadeiras.
E há justificação para as crenças básicas quando resultam e são o
output de um processo independente de crenças que é incondicionalmente fiável. Deste modo, o fiabilismo torna possível uma forma de
fundacionalismo que bloqueia a ameaça de regressão ao infinito da
justificação, ao mesmo tempo que ultrapassa os problemas apontados
ao internismo no final da secção anterior.26
Muitas outras versões recentes de fundacionalismo moderado
externista baseiam-se nesta versão simples de fiabilismo. Teorias
como o funcionalismo apropriado de Plantinga (1993a) e Bergmann
(2006), a epistemologia das virtudes de Sosa (2007) e Greco (2010),
ou até mesmo a epistemologia do conhecimento-primeiro de
Williamson (2000), têm na sua raiz uma condição fiabilista. Por
exemplo, de acordo com Williamson (2000), tal como se apresentou na crítica ao fundacionalismo clássico, a condição de segurança
para o conhecimento motiva o princípio de margem de erro, sendo
que essa condição de segurança é uma versão modal de fiabilismo.27
Apesar de haver essa ligação com o fiabilismo, o fundacionalismo
moderado externista baseado na teoria do conhecimento-primeiro
26 Para uma análise mais detalhada do fiabilismo, veja-se Perini-Santos (2018).
27 Para uma análise da condição de segurança, veja-se Faria (2020).
Edição de 2022
22
Domingos Faria
de Williamson (2000) tem uma formulação bem diferente e original
que pode ser apresentado nestes termos:
Fundacionalismo do Conhecimento-Primeiro: Uma crença
é apropriadamente básica se, e só se, essa crença é um item
não-inferencial de conhecimento.
Na teoria do conhecimento-primeiro argumenta-se que o conceito
de conhecimento não pode ser analisado em conceitos mais básicos,
tal como crença, verdade, e justificação.28 Pelo contrário, o conhecimento é prévio a outros tipos epistémicos, sendo o conceito de
conhecimento um teórico primitivo. Ou seja, o conhecimento é o
ponto de partida para explicar outras noções, nomeadamente
podemos analisar e explicar crença, justificação, evidência, asserção,
etc., por referência ao conhecimento. Por exemplo, acreditar que p
é em geral tratar p como se conhecêssemos p; uma crença é plenamente justificada se, e só se, constituir conhecimento; todo e apenas
o conhecimento é evidência; entre outros. Embora o conhecimento
não possa ser analisado e reduzido em componentes mais básicas,
pode-se apresentar uma caracterização suficientemente informativa.
A proposta de Williamson (2000: 34) é dar um entendimento positivo
e externista de conhecimento como um estado mental puro. Mais
precisamente, sustenta que "o conhecimento é a atitude factiva mais
geral". Por outras palavras, o conhecimento é o estado mental factivo
mais geral, isto é, a atitude mais geral que se pode ter em relação
apenas a proposições verdadeiras.
Sendo o conhecimento fundamental e primitivo, não estamos de
facto justificados a acreditar em algo que não conhecemos ou que
não se segue logicamente do que conhecemos. Por isso, é o conhecimento que justifica S a acreditar numa dada crença p. De acordo
com Williamson (2000: 185), com isso temos uma versão externista
de fundacionalismo em que todo o conhecimento de um sujeito S
serve como fundação para todas as crenças justificadas de S. Mais
especificamente, dado que apenas o conhecimento justifica a crença,
28 Para Williamson (2000) isso é confirmado indutivamente pela falha
contínua em resolver o problema Gettier, pois, tal como nota Williamson (2000:
30), "uma sucessão de análises cada vez mais complexas têm sido derrubadas por
contra-exemplos cada vez mais complexos".
Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica
Fundacionalismo
23
em qualquer situação possível em que S acredita numa proposição p,
essa crença é justificada por proposições q1,…, qn (que não p) de que
S tem conhecimento. Por isso, a base da pirâmide fundacionalista
que contém as crenças apropriadamente básicas é constituída por
crenças não-inferenciais que são conhecidas pelo sujeito. Contudo,
esta é uma versão modesta de fundacionalismo porque o conhecimento
não é um estado mental infalível ou, utilizando a terminologia conceptual de Williamson (2000), "luminoso". Como exploramos acima
na crítica ao fundacionalismo clássico, tal como estados de dor ou
pareceres não são luminosos, assim também o conhecimento não é
luminoso, sendo os erros sempre possíveis, dado que se pode saber
algo e ao mesmo tempo não se saber que se sabe isso.
Em suma, para Williamson (2000), as crenças são justificadas
pelo conhecimento do sujeito, embora nunca (ou quase nunca) se
tenha conhecimento infalível. Assim, o conhecimento é a fundação
para as crenças justificadas, mas não é a fundação indubitável que
Descartes ambicionava. Com este enquadramento teórico Williamson
(2000: 9) oferece uma resposta para o problema da regressão da justificação (sobre o que justifica a justificação de uma dada crença),
uma vez que a regressão da justificação termina no conhecimento.
Como crítica ou principal desafio transversal a potencialmente
todas as versões de fundacionalismo moderado externista pode-se
apresentar, tal como designado por Sosa (1988; 1991: 132) e formulado inicialmente por Lehrer e Cohen (1983), "o problema do novo
génio maligno".29 Isto porque já há um antigo problema do génio
maligno em que se procura argumentar que podemos ser enganados por um génio maligno e se tal for o caso, então não podemos
realmente saber, entre outros, proposições sobre o mundo exterior
(como a de que tenho mãos, etc.). Deste modo, o problema antigo
do génio maligno usa essa hipótese num argumento para o ceticismo.
Contudo, o novo problema do génio maligno não é diretamente sobre
o ceticismo, mas sim sobre supostas consequências contraintuitivas
das versões fundacionalistas moderadas de externismo que implicam
que as vítimas do génio maligno, ou de outro cenário similar (como
29 Para a análise de outras objeções ao fundacionalismo moderado externista
e ao modo como se pode lidar com elas, veja-se, por exemplo, Faria (2017) ou
Perini-Santos (2018).
Edição de 2022
24
Domingos Faria
o do cérebro numa cuba), nunca podem estar justificadas e, por isso,
não podem ter crenças apropriadamente básicas.
Considere-se alguém que é astutamente enganado por um génio
maligno cartesiano sobre o mundo exterior. Tal logro impede o
sujeito de ter muito do conhecimento que de outra forma poderia ter.
Ou seja, dado que tal vítima não tem conhecimento nem processos
fiáveis de formação de crenças sobre o mundo exterior, segue-se que
tal vítima não tem crenças básicas justificadas sobre o mundo. Contudo, como crítica ao fundacionalismo moderado externista, pode-se argumentar que as vítimas de um génio maligno podem ter
crenças básicas que são tão justificadas como as crenças básicas
de sujeitos comuns em cenários não céticos, dado que a avaliação
epistémica relevante para a justificação é indiferente a estar num
mau caso (como o cenário do génio maligno) ou num bom caso. Tal
como Sosa (1988: 164) assinala:
E se os nossos gémeos noutro mundo possível tivessem vidas mentais [não-factivas] como as nossas, até ao mais ínfimo pormenor
da experiência, pensamento, etc., embora também estivessem
totalmente enganados sobre a natureza do seu ambiente, e os seus
processos perceptuais e inferenciais de aquisição de crenças tivessem alcançado muito pouco a não ser afundá-los cada vez mais
sistemática e profundamente no erro? Devemos dizer que estamos
justificados nas nossas crenças enquanto os nossos gémeos não
estão? Eles estão muito equivocados nas suas crenças, é claro,
mas parece de alguma forma muito implausível supor que estão
injustificados.
As respostas a este desafio têm sido muito diversificadas, mas podem
dividir-se sobretudo em duas categorias: por um lado, as soluções
externistas que atribuem justificação às crenças das vítimas do génio
maligno e, por outro lado, as soluções externistas que não atribuem
tal justificação. Na primeira categoria enquadra-se, por exemplo, o
fiabilismo indexical de Comesaña (2002) ao defender que as crenças
da vítima do génio maligno estão justificadas na medida em que essas
crenças são produzidas por processos que são fiáveis no nosso mundo
atual não-cético e no mesmo sentido em que as nossas crenças são
Compêndio em Linha de Problemas de Filosofia Analítica
Fundacionalismo
25
justificadas.30 De forma parecida, Sosa (2003) tem argumentado que
as crenças de tais vítimas estão justificadas, dado que são adquiridas
através do exercício de uma ou mais virtudes intelectuais que são
virtuosas no nosso mundo atual não-cético. Uma estratégia ligeiramente diferente é defendida por Graham (2016) ao relativizar a
fiabilidade relevante não ao mundo "atual", mas sim às circunstâncias ou condições "normais" ou "naturais", sendo que as "condições
normais" são os ambientes para os quais as capacidades ou processos
em questão foram teleologicamente concebidos (naturalmente ou
não). Nessa base, pode-se alegar que as vítimas do génio maligno têm
crenças justificadas caso tais vítimas usem as mesmas capacidades
normalmente funcionais de formação de crenças. A nossa resposta
a este problema, defendida em Faria (2022), também se enquadra
nesta primeira categoria, pois argumentamos que as crenças das
vítimas do génio maligno estão justificadas na medida em que tais
vítimas exibem disposições, na formação ou retenção de tais crenças,
que tendem a manifestar estados epistémicos de qualidade (como
conhecimento) em casos contrafactuais normais.31
Por sua vez, na segunda categoria encontram-se as respostas que
negam que as vítimas do génio maligno têm crenças justificadas.
Seguindo a argumentação de Williamson (2000), não se pode sustentar
que a vítima do génio maligno no cenário cético tem a mesma evidência que nós temos no mundo atual, pelo menos se assumirmos uma
conceção externista de evidência em que todo e apenas o conhecimento é evidência. Ora, uma vez que a vítima do génio maligno
conhece menos do que nós, segue-se que ela tem menos evidência
do que nós e, por isso, não está justificada como nós estamos. Aliás,
dado que as crenças percetivas dos agentes em tais cenários céticos
radicais são todas falsas, elas não podem constituir conhecimento e,
dessa forma, tais crenças básicas percetivas não são apropriadas ou
justificadas num fundacionalismo do conhecimento-primeiro. Neste
caso pode-se sustentar, tal como fazem Littlejohn (a publicar) e
Williamson (a publicar), que as crenças das vítimas do génio maligno,
30 Para uma avaliação desta proposta de Comesaña, veja-se Faria (2018).
31 Para respostas que se enquadram igualmente na primeira categoria, com
alguma inspiração numa epistemologia do conhecimento-primeiro, veja-se Simion,
Kelp e Ghijsen (2016), e Lasonen-Aarnio (2021).
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Domingos Faria
embora não sejam justificadas, podem ser desculpáveis na medida em
que pelo menos tais agentes podem continuar a ter geralmente uma
disposição para acreditar apenas no que conhecem, bem como podem
acreditar no que uma pessoa assim disposta acreditaria nessas circunstâncias. Isso constitui uma boa desculpa que torna esses sujeitos
inocentes por violarem a norma de que as crenças apropriadamente
básicas são itens de conhecimento.32 De uma forma ou de outra, o fundacionalismo moderado externista tem várias estratégias plausíveis
para lidar com as objeções e para continuar a ser uma teoria influente
na epistemologia.
Domingos Faria
Faculdade de Letras da Universidade do Porto
Instituto de Filosofia da Universidade do Porto
Lancog, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa
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32 Para críticas a esta estratégia de atribuir às vítimas do génio maligno apenas
uma desculpa e não uma justificação, veja-se Simion, Kelp e Ghijsen (2016), e
Simion (2019).
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