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O VERDE-LOURO

2024, O VERDE-LOURO DA FLÂMULA O julgamento de civis pela Justiça Militar da União

Os influxos autoritários pairam sob o mundo e o Brasil não está imune a essa realidade. Como o julgamento de civis pela Justiça Militar se encaixa nesse contexto? A par da relevância histórica dessa competência jurisdicional para a formação identitária brasileira, essa dinâmica, hoje, merece críticas sob os enfoques constitucional e convencional. A presente obra conta com vasta pesquisa bibliográfica sobre o tema, permitindo ao leitor, seja profissional da área ou não, consolidar argumentos e tirar conclusões sobre um assunto que necessariamente afeta sua vida, como membro da Nação brasileira, e que, eventualmente, pode influenciar, como réu da Justiça Militar.

O VERDE-LOURO DA FLÂMULA O julgamento de civis pela Justiça Militar da União Acesse o site: www.booksbyauthors.com • Caso tenha adquirido seu livro através do site da Editora Thoth, você receberá o código de ativação do e-book por meio do e-mail cadastrado. • Se adquiriu este livro através de terceiros, você poderá solicitar o código de ativação do e-book através do e-mail: contato@editorathoth.com.br Editora Thoth parceira da: Conheça melhor a Books by Authors Manual das 1. CRIAR PERFIL 2. PUBLICAÇÕES Crie seu perfil para ter acesso às nossas funções e se encante pela Books by Authors. Publique no seu perfil conteúdos acadêmicos de sua autoria: artigos, trabalhos acadêmicos, livros e vídeos. 3. BUSQUE POR PERFIS Pesquise diversos autores e siga os seus favoritos, para ficar por dentro de suas publicações. PROVAS CÍVEIS 4. MENSAGENS Envie mensagens para outros perfis por meio da nossa plataforma. 7. CITAÇÕES Saiba quando for citado em publicações de outros autores. 5. ACESSE LIVROS EM E-BOOK Acesse livros digitais pelo código concedido pelas editoras ou adquira uma das obras disponíveis para a venda. 6. LEITOR No leitor você poderá grifar seus trechos favoritos, fazer anotações e expandir a tela para uma melhor experiência de leitura. MAURO MACHADO GUEDES O VERDE-LOURO DA FLÂMULA O julgamento de civis pela Justiça Militar da União Londrina/PR 2024 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Guedes, Mauro Machado. O verde-louro da flâmula: o julgamento de civis pela Justiça Militar da União. / Mauro Machado Guedes. – Londrina, PR: Thoth, 2024. © Direitos de Publicação Editora Thoth. Londrina/PR. www.editorathoth.com.br contato@editorathoth.com.br 122 p. Bibliografias: 119-122 ISBN: 978-65-5959-743-7 1. Direito Constitucional. 2. Constitucionalismo Cosmopolita. 3. Direito Penal e Processual Militar. I. Título. CDD 341.2 341.5 Índices para catálogo sistemático 1. Direito Constitucional: 341.2 Diagramação e Capa: Editora Thoth Revisão: o autor Editor chefe: Bruno Fuga Conselho Editorial (Gestão 2024) Prof. Dr. Anderson de Azevedo • Me. Aniele Pissinati • Prof. Dr. Antônio Pereira Gaio Júnior • Prof. Dr. Arthur Bezerra de Souza Junior • Prof. Dr. Bruno Augusto Sampaio Fuga • Prof. Me. Daniel Colnago Rodrigues • Prof. Dr. Flávio Tartuce • Me. Gabriela Amorim Paviani • Prof. Dr. Guilherme Wünsch • Dr. Gustavo Osna • Prof. Me. Júlio Alves Caixêta Júnior • Prof. Esp. Marcelo Pichioli da Silveira • Esp. Rafaela Ghacham Desiderato • Profª. Dr. Rita de Cássia R. Tarifa Espolador • Prof. Dr. Thiago Caversan Antunes 2. Direito Penal: 341.5 Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização. A violação dos Direitos Autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/98. Todos os direitos desta edição são reservados pela Editora Thoth. A Editora Thoth não se responsabiliza pelas opiniões emitidas nesta obra por seus autores. SOBRE O AUTOR MAURO MACHADO GUEDES Delegado de Polícia Civil do DF. Especialista em Direito da Administração Pública (UFF/RJ). Mestre em Direito (UNICEUB). Email: mauromachadoguedes@gmail.com. Ao meu pai, pela coragem de sonhar, ensinando-me essa mentalidade; À minha mãe, pela força e alegria de seguir em frente, apesar das dificuldades; Aos meus irmãos, pela amizade sincera e por terem estimulado minha criatividade; À minha esposa, com quem posso viver o mais alto grau de leveza: a cooperação pelo amor incondicional e desinteressado; Ao meu filho, pelo fato de existir e sorrir. “Há uma limitação desconcertante de nossa mente: nossa confiança excessiva no que acreditamos saber, e nossa aparente incapacidade de admitir a verdadeira extensão da nossa ignorância e a incerteza do mundo em que vivemos.” Daniel Kahneman APRESENTAÇÃO A obra O Verde-Louro da Flâmula aborda, de forma madura e bemsucedida, a problemática do processamento e julgamento de civis, em tempo de paz, pela Justiça Militar brasileira. Adotando uma postura metodológica crítica e corajosa, o autor enfrenta as raízes históricas do julgamento de civis pela Justiça Militar brasileira. Além disso, analisa os vetores axiológicos que emanam do sistema interamericano de direitos humanos e incidem na temática. O bem jurídico-penal de natureza militar também é objeto da investigação, especialmente no que toca à sua não harmonia com o julgamento de civis em termos de dogmática jurídico-penal. Pode-se dizer que estamos diante de uma investigação completa, isso porque o texto apresenta sólida base jurisprudencial e doutrinária, precisa metodologia quanto ao recorte de seu objeto, objetivo, justificativa e hipóteses, linha argumentativa coerente e muito bem concatenada e clara apresentação tópica de resultados, que possuem relevância prática e teórica – o trabalho verticaliza teoricamente e retorna com apontamentos práticos, que tem grande importância para solução de problemas concretos. Ademais, aborda com responsabilidade aspectos interdisciplinares, nos limites epistemológicos entre o direito penal material, direito processual penal, direito constitucional e teoria do Estado. Particularmente, posso dizer que foi uma grande honra orientar o autor em sua jornada de realização do Mestrado no CEUB, cujo fruto é uma obra que tem potencial para figurar entre as referências na temática do julgamento de civis pela justiça castrense brasileira. Ao autor, reitero as congratulações e o registro de elevado mérito acadêmico. Às leitoras e leitores, desejo ótimos estudos. Brasília, 15 de dezembro de 2023. BRUNO TADEU BUONICORE LISTA DE SIGLAS OU SÍMBOLOS SIGLA OU SÍMBOLO DESCRIÇÃO ADI Ação Direta de Inconstitucionalidade ADPF Ação por Descumprimento de Preceito Fundamental CIDH Corte Interamericana de Direitos Humanos CEDH Corte Europeia de Direitos Humanos CPM Código Penal Militar CPPM Código de Processo Penal Militar DIDH Direito Internacional dos Direitos Humanos DIH Direito Internacional Humanitário HC Habeas Corpus IRDR Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas JMU Justiça Militar da União MP Ministério Público MPM Ministério Público Militar PC Polícia Civil PEC Proposta de Emenda à Constituição PF Polícia Federal PJM Polícia Judiciária Militar PM Polícia Militar RESE Recurso em Sentido Estrito RHC Recurso em Habeas Corpus STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça STM Superior Tribunal Militar SUMÁRIO SOBRE O AUTOR .......................................................................................................7 APRESENTAÇÃO .....................................................................................................13 LISTA DE SIGLAS OU SÍMBOLOS .....................................................................15 INTRODUÇÃO ..........................................................................................................19 CAPÍTULO 1 ENTRE FARDAS E TOGAS: O HISTÓRICO DA SUJEIÇÃO DE CIVIS, EM TEMPO DE PAZ, À JURISDIÇÃO MILITAR BRASILEIRA .................23 1.1 Filho teu não foge à luta: a higidez operacional das tropas como fator de consolidação territorial e identitária brasileira......................................................24 1.2 Glória no passado: o contexto jurídico positivista e pré-democrático da sujeição dos civis, em tempo de paz, à Justiça Militar. ........................................35 1.3 Raios fúlgidos? a (in)compatibilidade de uma sujeição jurisdicional histórica com um cenário neoconstitucional contemporâneo ...........................................41 1.3.1 Expansionismo penal-militar: a Lei nº 13.491/2017 .................................41 1.3.2 A insuficiência de um paliativo: a Lei nº 13.774/2018 ..............................46 1.4 Conclusões do Capítulo ....................................................................................49 CAPÍTULO 2 PRECEDENTES INTERNACIONAIS: A SUJEIÇÃO DE CIVIS, EM TEMPO DE PAZ, À JURISDIÇÃO MILITAR.....................................................51 2.1 As razões de ser de uma tendência global de Diálogo de Fontes e Cortes....51 2.2 Contextualizando e apresentando os precedentes internacionais sobre a sujeição dos civis, em tempo de paz, à justiça militar .........................................56 2.3 Conclusões do Capítulo ....................................................................................95 CAPÍTULO 3 UM DILEMA AXIOLÓGICO: O BEM JURÍDICO PENAL MILITAR E O JURISDICIONADO CIVIL...................................................................97 3.1 Níveis de análise de bem jurídico penal militar..............................................97 3.2 Desafios práticos e dogmáticos na compatibilização entre o bem jurídico penal militar e o jurisdicionado civil ......................................................................98 3.3 O jurisdicionado civil aos olhos da justiça militar e a exigência axiológica de limitação desse conceito ....................................................................................... 108 3.4 Conclusões do capítulo....................................................................................110 CONCLUSÕES GERAIS ...................................................................................... 113 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................. 119 LEGISLAÇÃO CITADA ....................................................................................... 122 INTRODUÇÃO O presente livro tem como escopo analisar a (i)legitimidade de um sistema especializado de justiça – o militar – diante das críticas que lhe sobrevêm por meio das ações de controle que tramitam no Supremo Tribunal Federal (ADPF nº 289, HC nº 112.848/STF e RHC nº 142.608/ STF), em razão de indivíduos civis (não-militares) estarem sujeitos à sua jurisdição, em tempo de paz. Trata-se, portanto, de um teste contemporâneo de constitucionalidade e convencionalidade do ramo mais antigo da justiça brasileira, especificamente quanto ao tema da competência para julgar civis, fora das situações extremadas de ruptura institucional (conflitos armados internacionais ou não internacionais). Para isso, três indagações nortearam a atual investigação: quais as razões históricas dessa abrangência jurisdicional castrense relativamente aos civis, no Brasil; como essa possibilidade é vista por outros sistemas de justiça, especialmente o sistema interamericano de direitos humanos; e, por fim, se existe (in)compatibilidade entre o bem jurídico penal militar e a aludida sujeição jurisdicional. Como respostas a estas indagações, analisa-se no Capítulo inaugural, a hipótese de que, a competência da Justiça Militar da União para julgar civis é legítima sob a perspectiva histórica, porquanto tenha sido decisiva para a consolidação territorial e identitária brasileira, com todos os reflexos – econômicos e sociais – daí decorrentes, até os dias atuais. Isso porque viabilizou a higidez operacional das tropas para definir estrategicamente a Soberania Nacional brasileira desde a sua implementação, em 1808, tendo as bases territoriais e de genealogia cultural sido sedimentadas com base nessa segurança armada. Ocorre que, com a pós-modernidade, as características das sociedades se alteraram significativamente, estando o Brasil inexoravelmente inserido nesse contexto de incertezas. A reboque das transformações sociais, operam-se as alterações no ordenamento jurídico, emergindo um novo cenário, neoconstitucionalista. Não obstante, a progressão dos critérios de fixação da competência jurisdicional militar foram objeto de uma dinâmica de retrocesso humanitário, eis que, embora num primeiro momento tenha 20 O VERDE-LOURO DA FLÂMULA O julgamento de civis pela Justiça Militar da União evoluído da fase de ausência de critérios para a aplicação do critério ratione personae, no momento posterior, com a própria Constituição Federal de 1988, retrocedeu para o critério ratione legis, abrindo as porteiras para indivíduos alheios às fileiras castrenses serem submetidos ao respectivo jugo jurisdicional especializado. A par dessa dinâmica de novas definições jurídico-institucionais, paradoxalmente, vislumbra-se um ostracismo dos principais diplomas do direito militar (Código Penal Militar – Decreto-Lei nº 1.001/1969 e Código de Processo Penal Militar – Decreto-Lei nº 1.002/1969), ambos os documentos editados em regime político de exceção autoritária e refratários aos influxos libertários da nova ordem constitucional. O contraste evidenciado, na atual pesquisa, entre as normas penais militares e as comuns, é bastante eloquente nesse sentido. A própria jurisprudência emanada pelo Tribunal Superior desse sistema de justiça especializado, o Superior Tribunal militar (STM), ao revelar um ativismo que destoa das manifestações que vêm sendo consolidadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), também corrobora essa linha de raciocínio. É bem verdade que houve inovações legislativas recentes – Leis nº 13.491/2017 e 13.774/2018 – inadequadas, todavia, à expectativa social e axiologia constitucional, na medida em que promovem a expansão do direito penal militar (no primeiro caso) e a manutenção de uma estrutura institucional que vulnera os direitos fundamentais dos civis que se submetam ao seu escrutínio (no segundo caso, com mera alteração paliativa da competência colegiada para a monocrática para o julgamento de civis). Numa perspectiva complementar de análise, no segundo Capítulo, buscou-se peneirar a vasta jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos sobre o tema. Também foram visitados – ainda que de forma mais perfunctória, por estarem alheios ao sistema de controle de convencionalidade brasileiro - os Sistemas Europeu e Africano de direitos humanos, numa tentativa de imunizar o estudo, o tanto quanto possível, diante das críticas de que a abordagem seja etnocêntrica, enviesada sob o prisma latino-americano. Todavia, é certo que o parâmetro de controle, para os fins da presente pesquisa, repita-se, fica adstrito aos pronunciamentos da Corte Interamericana de Direitos Humanos, haja vista a expressa adesão da República Federativa do Brasil ao Pacto de San José da Costa Rica, sujeitando-se exclusivamente a esse bloco jurídico regional. A tendência cosmopolita de inadmissibilidade do foro militar para cidadãos comuns foi cotejada com a prática institucional brasileira, a fim de verificar se esse proceder resiste não só a um controle contemporâneo de convencionalidade, mas também àquilo que Emmanuel Decaux estabeleceu, há alguns anos, como requisitos ao válido funcionamento das Justiças MAURO MACHADO GUEDES 21 Militares. Nesse ponto chamam a atenção os requisitos principiológicos que dizem respeito ao devido processo legal (em sua vertente material), à imparcialidade dos juízes e a exigência de revisões periódicas da legislação penal castrense, o que indica uma atual inobservância, no cenário institucional brasileiro, dos indigitados princípios. No terceiro e derradeiro Capítulo, a incursão acadêmica se redireciona para a dogmática penal militar, com o fito de testar a (in) compatibilidade entre o bem jurídico tutelado pela norma penal militar e a sujeição jurisdicional específica que se investiga na presente pesquisa. Em primeiro lugar, buscou-se definir a magnitude desse bem jurídico, com a emergência de duas vozes contraditórias entre si. De um lado, a posição de que ele se esgota nos postulados da hierarquia e disciplina, pelo que se afigura impossível, sob o ponto de vista lógico-jurídico, sua vulneração por indivíduos civis. De outro, a perspectiva de que esse bem jurídico é muito maior do que a hierarquia e disciplina militares, afastando, pois, a referida impossibilidade lógico-jurídica. Em seguida, ainda nesse Capítulo Final de desenvolvimento do texto, aprofundou-se a análise dogmática para demonstrar que o equacionamento do problema sob o prisma da teoria do bem jurídico se revela insuficiente, por falta de proporcionalidade e de ofensividade. Foram consideradas a diminuta lesividade dos crimes praticados por civis contra os bens jurídicos tutelados pela norma penal militar e também a perspectiva ontoantropológica desses acusados, sem vínculo jurídico de aderência voluntário ao escopo castrense. Estruturalmente, portanto, a pesquisa foi desenvolvida em três capítulos, com a invectiva necessária para se evidenciar o problema atinente à legitimidade constitucional e convencional da Justiça Militar da União para o julgamento de civis e encaminhar as possíveis reflexões que visam contribuir para sua readequação hodierna. Apresentadas as honrosas bases históricas da Justiça Militar da União, desde as origens até as suas distorções hipertróficas legislativas e jurisprudenciais contemporâneas, passando pela acareação entre os precedentes internacionais e estado de coisas diagnosticado, chega-se ao ponto de inflexão dogmática. Aspira-se, assim, promover contribuições às principais inquietações constantes nas ações de controle ADPF nº 289, HC nº 112.848/STF e RHC nº 142.608/STF. Metodologicamente, pois, a dissertação se vale de pesquisa jurídicoexploratória, servindo-se da técnica de análise documental, bibliográfica, além dos reconhecimentos dos Sistemas Internacionais de Direitos Humanos sobre a sujeição de civis às jurisdições militares. Os paradigmas coletados na jurisprudência, doméstica e alienígena, foram estudados em conjunto com 22 O VERDE-LOURO DA FLÂMULA O julgamento de civis pela Justiça Militar da União as considerações críticas dos pesquisadores que se propuseram a enfrentar o tema. A investigação dos diplomas normativos – evolutivamente – foi outra técnica metodológica utilizada para dar ritmo e consistência ao texto. Concluiu-se a obra com a síntese daquilo que foi articulado em seus três capítulos de desenvolvimento, com a indicação de desdobramentos práticos das conclusões ao cotidiano dos operadores do direito penal militar brasileiro, evitando-se um academicismo meramente redundante em si mesmo. Por fim, esperando haver convencido minimamente o leitor, senão da tese que se pretende demonstrar, ao menos da relevância do tema, a investigação visa suscitar, heuristicamente, indagações que estimulem novas pesquisas sobre temário tão complexo. CAPÍTULO 1 Entre fardas e togas: o histórico da sujeição de civis, em tempo de paz, à jurisdição militar brasileira A perspectiva abordada no presente Capítulo é histórica: buscouse investigar, por meio de metodologia analítico-dedutiva, as normas, jurisprudência e doutrina que tradicionalmente apresentaram os conceitos sobre os quais se sustentam a noção de que indivíduos sem qualquer vínculo jurídico com a caserna, doravante chamados de civis, possam ser submetidos, em tempo de paz, ao julgamento pela Justiça Militar brasileira. O ramo jurisdicional especializado mais antigo do Brasil contribuiu decisivamente para a consolidação identitária e territorial do país, na medida em que, ao promover a higidez operacional das tropas militares, viabilizou o encontro e a acomodação dos povos imigrantes e nativos num espaço soberano cada vez maior e mais seguro diante das ameaças externas e internas. Ao longo desse processo estruturante nacional, havia sentido lógico-jurídico cogitar a sujeição de civis, em tempo de paz, à jurisdição militar brasileira, tendo em vista uma realidade jurídica positivista e uma conformação social pré-democrática. Todos os cidadãos nacionais, militares ou não, deveriam estar compelidos a um desígnio maior de estruturação da Soberania Nacional e isso dependia verdadeiramente do hígido funcionamento das Forças Armadas, garantido por uma Justiça Militar mais abrangente quanto aos seus jurisdicionados. Hoje, num cenário neoconstitucional, e especialmente em razão do recente movimento de expansionismo do direito penal militar brasileiro, em nítido contraste com o panorama jurídico-internacional, faz-se necessária a reflexão crítica sobre essa possibilidade de sujeição jurisdicional. 24 O VERDE-LOURO DA FLÂMULA O julgamento de civis pela Justiça Militar da União 1.1 FILHO TEU NÃO FOGE À LUTA: A HIGIDEZ OPERACIONAL DAS TROPAS COMO FATOR DE CONSOLIDAÇÃO TERRITORIAL E IDENTITÁRIA BRASILEIRA A transferência da Corte Portuguesa, em 1808, trouxe muito mais do que dezenove embarcações e cerca de quinze mil pessoas para o Brasil. Esse foi o marco histórico para o influxo cultural que inaugurou, de imediato, significativas instituições nacionais – Jardim Botânico, faculdades de medicina e engenharia, Banco do Brasil, Biblioteca Real, Imprensa Régia, Real Teatro (atual João Caetano) e a própria Justiça Militar1 – vindo a consolidar, organizacionalmente, a formação identitária de um povo cujo território havia sido descoberto poucos séculos antes. O rústico militarismo exercido pelos senhores de engenho em menoscabo dos negros e indígenas que povoavam um país subjugado, ensina Faoro2, começara a se transmudar, então, num anseio de emancipação das tendências liberais, separação singular e inexistente nas Américas espanhola e inglesa. Nesse contexto de institucionalização burocrática, a segurança pública de um Estado Nacional nascituro foi assegurada pelas tropas militares lusitanas e a salubridade operacional desse contingente, desde a origem, foi penhorada pela Justiça Militar recém-criada. Foi o célebre jurista-sociólogo de Vacaria quem definiu linha de raciocínio segundo a qual as Forças Armadas garantiriam a própria implementação das Cartas Constitucionais no Brasil. Esse seria um padrão de domínio fundado no pressuposto de que tais instituições públicas são as fiadoras, ora dos poderes constitucionais, ora dos poderes constituídos. Esse protagonismo militar ficou ainda mais em evidência na transição da monarquia para o regime republicano, quando os “bacharéis de espada” estavam bem cientes da sua missão: garantir a Pátria íntegra3. A reprimir comoções internas – Canudos, Farroupilha, entre outros episódios históricos – e externas – com destaque para a Guerra do Paraguai - o país consolidou não só o domínio eminente sobre um território de vastas dimensões, mas também a própria institucionalidade burocrática responsável pela gestão desse domínio. Foi-se moldando, então, o modo patrimonialista de gestão da coisa pública brasileira, a par das definições culturais cada vez mais heterogêneas, e as Forças Armadas desempenharam protagonismo nesse contexto embrionário. 1. 2. 3. Alvará Régio, com força de Lei, nº 01/01/1808, outorgado por D. João cf. www.stm.jus.br. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder: Formação do Patronato Político Brasileiro. 5ª Edição, São Paulo: Globo, 2012, p. 279. Idem, p. 610. MAURO MACHADO GUEDES 25 Estabeleceram-se, assim, as bases institucionais e culturais que viabilizaram uma comunhão, ainda que tardia, entre a Casa Grande e a Senzala, na pavimentação de um consenso amadurecido entre “vencedores e vencidos”. Foi dessa forma que Freyre4 destacou o papel dos militares nas questões políticas brasileiras, na passagem da Colônia para o Império Brasileiro. Na visão do autor, colonizadores a colonizados passaram a compartir de um espírito cívico comum, harmoniosamente, garantido pelo braço forte do Exército Brasileiro. Umas das especificidades do povo brasileiro, através de sua história nacional, é que vem ordenando as relações das suas Forças Armadas com as demais forças nacionais sem que tenha surgido qualquer militarismo violentamente opressor da gente civil ou organizado em casta autocrática ou oligarquia caudilhesca5. Diagnóstico realizado em momento anterior, naturalmente, ao período de exceção democrática ocorrido no Brasil entre os anos sessenta e oitenta do século XX. O que Freyre descreveu, antes disso, foi uma Nação coesa, solidária, com força armada institucional que assegurou uma superação de contradições internas. E, nessa toada de cordialismo, é possível verificar que a vida intelectual brasileira, segundo Holanda6, assumiu novo patamar numa quadra histórica de transformação nacional, sendo que o patrimonialismo lusitano, protegido pelo poderio bélico, consolidou as bases de um desenvolvimento nacional-econômico em escalas continentais. Nesse contexto, o autor fez comparações entre a história do Brasil e a de outros países latinos, a fim de entender o militar brasileiro e suas contribuições práticas para a construção nacional pré-republicana. Já no desenvolvimento da República Brasileira, posteriormente, é possível mencionar suas reflexões quanto ao teor do disposto no Manifesto Futurista, documento histórico que continha um fervoroso elogio à guerra, ao militarismo e ao patriotismo como instrumentos de progresso civilizatório. Por exemplo, o nono tópico desse Manifesto, que trata especificamente da guerra, pode ser interpretado enquanto uma demonstração das tensões que caracterizaram os vaticínios da Primeira Guerra Mundial, quando as elites políticas e militares de várias potências econômicas e imperiais da Europa acreditavam que a violência posta em prática era a melhor forma de resolver disputas internacionais ou tensões sociais locais7. Povos de etnias 4. 5. 6. 7. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 20ª Edição, Rio de Janeiro: MEC, 1980, p. 87. Idem, p. 114. HOLANDA, Sérgio Buarque de: Raízes do Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 2014, p. 179. Segue a transcrição desse trecho do manifesto no original: “9. Nous voulons glorifier la guerre – seule hygiène du monde -, le militarisme, le patriotisme, le geste destructeur des anarchistes, les belles Idées qui CONCLUSÕES GERAIS Existe uma visão de mundo baseada na crença de que a soberania nacional – assim considerada como uma manifestação da segurança pública em suas dimensões externa e interna – somente é assegurada por meio de uma higidez operacional das Forças Armadas que, por sua vez, dependem de um sistema jurisdicional especializado, apto a prevenir e reprimir quaisquer ofensas em menoscabo desses valores, sejam quem forem os ofensores. Essa foi uma noção que tornou o Brasil uma nação soberana diferenciada com relação aos demais países da América Latina, porquanto tenha sido capaz de aglutinar, com braço forte, uma miríade de etnias que consolidaram um território com proporções continentais. Desde as Ordenações Filipinas, na alvorada do século XVII, passando pelos Artigos de Guerra do Conde de Lippe, já no século XVIII, com a efetiva implementação da justiça militar brasileira, início do século seguinte, essa foi uma mentalidade que grassou as políticas públicas brasileiras e foi vencedora, no sentido beligerante do termo. As cartas constitucionais nacionais – inclusive a atual – incorporaram o espírito, ao enunciarem hierarquia e disciplina como valores dignos de tutela no mais alto grau do ordenamento jurídico. Os desdobramentos infraconstitucionais decorrentes dessa proteção, todavia, é que foram oscilando ao longo do tempo, ao sabor de circunstâncias culturais que foram atribuindo novas cores àquela mentalidade. Pois, num primeiro momento de ordenação penal militar, não havia qualquer critério a legitimar a sujeição de quem quer que fosse ao arbítrio castrense, tamanha era a abrangência do bem jurídico tutelado, haja vista sua relevância aos nascituros interesses nacionais. Em seguida, com a evolução do pensamento político-jurídico brasileiro e a positivação constitucional da justiça militar, cunhou-se o critério em razão da pessoa, admitindo-se a sujeição de civis, em tempo de paz, ao seu jugo, somente em situações excepcionalíssimas. O capítulo subsequente dessa trama constitucional, já em 1988, foi conferir ao legislador ordinário a prerrogativa de tornear o conceito de crime militar e, a reboque, definir a amplitude da sujeição jurisdicional castrense. Com a melhor das intenções, acreditou-se que o Congresso Nacional seria capaz de respeitar a axiologia constitucional 114 O VERDE-LOURO DA FLÂMULA O julgamento de civis pela Justiça Militar da União democrática, protegendo efetivamente os direitos fundamentais dos indivíduos em conflito com a norma penal militar. Todavia, a prístina legislação penal e processual penal militar, editada em tempos de repressão política, não foi atualizada em termos democráticos, tal qual ocorreu com a lei penal e processual penal comum. Muito pelo contrário: numa história cinquentenária, a única reforma relevante desse ordenamento especializado – pela Lei nº 13.491/2017 – serviu para ampliar desmesuradamente seus tentáculos, em cristalina manifestação do expansionismo do direito penal militar, inclusive sobre os ombros de quem não tem nada a ver com essa história, os civis, conforme entendimento atual do STM. Aliás, a jurisprudência prolatada por esse Tribunal Superior – e revisional – tem se consolidado como refratária às inclinações supremas de restringir o alcance da norma penal militar, em autêntica erupção de um ativismo judicial próprio. Todas essas manifestações – objetivas e subjetivas – de um ordenamento jurídico especializado servem como parâmetros para quem vai dizer e aplicar esse direito nas instâncias de piso, seja na fase processual - Juízes Federais imersos numa cosmovisão jurídica muito peculiar - seja na pré-processual - autoridades de polícia judiciária que, muitas vezes, sequer têm condições de conhecer tecnicamente os meandros dessa visão, eis que não se lhes exige formação jurídica. O resultado é violência simbólica e restrição indevida de direitos fundamentais de investigados/acusados civis. Não fosse suficiente essa incompatibilidade entre os desígnios legislativos e a axiologia neoconstitucionalista, outro fenômeno foi responsável por evidenciar de forma ainda mais nítida a perplexidade do caso brasileiro. Num cenário de crescentes incertezas vivenciais, o mundo jurídico começou a dialogar entre si, Fontes e Cortes. E, numa verdadeira enxurrada de precedentes jurisprudenciais analisados, todas as manifestações globais são contrárias àquilo que vem se praticando no Brasil. No âmbito da CIDH, cuja Convenção paradigmática e decisões colegiadas servem de parâmetros vinculativos para o Brasil, essa dissonância é ainda mais eloquente. É que, tal qual o Estado brasileiro, vários países latino-americanos vivenciaram efetivamente períodos de restrição democrática, o que torna a sujeição de civis à justiça militar um ponto mais sensível, com manifestações jurisprudenciais mais sofisticadas. Inobstante essa diferenciação no contexto fático-genético, as Corte Europeia e a Comissão Africana de Direitos Humanos aderem ao mesmo entendimento: é impossível juridicamente, em tempo de paz, sujeitar civis ao escrutínio castrense. Submeter cidadãos comuns à justiça militar é, portanto, manifestamente inconvencional. Caso se pretenda, verdadeiramente, MAURO MACHADO GUEDES 115 exercer algum tipo de protagonismo no cenário internacional, é preciso levar a sério esse diálogo cosmopolita. No último enfoque de análise da pesquisa, dogmático, realizouse uma abordagem da dicotomia existente quanto à abrangência do bem jurídico penal militar – se limitado aos postulados da hierarquia e disciplina ou se, soberano, é maior que eles. Foi diante dessa segunda corrente que a pesquisa passou a indicar uma carestia da teoria do bem jurídico, revelando uma desproporcionalidade entre a conduta, inofensiva de acordo com a lei, e o bem jurídico que essa mesma norma pretende tutelar. A baixíssima lesividade, na prática, dos desvios praticados por civis em detrimento dos interesses das Forças Armadas, é a pedra de toque para a compreensão dessa desproporção. O argumento de defesa da soberania, pois, não se sustenta empiricamente. Adicionalmente, foi colacionada ao estudo a perspectiva ontoantropológica do indivíduo em conflito com a norma penal militar, porquanto essa seja uma orientação necessária no contexto de complexidades da modernidade tardia. Não há mais como ignorar sofisticações dogmáticas desse quilate, caso se pretenda efetivamente compreender razoavelmente todas as variáveis a que se submete um cidadão comum quando age ou deixa de agir diante de um bem jurídico aparentemente tutelado pela norma penal militar. Um julgamento imparcial desse indivíduo, conferindo concretude ao postulado constitucional do juiz natural (em seu aspecto material), não deve fechar os olhos a essa realidade de empatia, de valoração paralela. Disso depende a própria autenticidade de um Estado Democrático e de Direito. Pois, a pessoa humana deve ser considerada em sua realidade existencial, dignamente, para que se caracterize como justo e imparcial qualquer julgamento que se lhe imponha com o fim de restringir seus direitos mais caros. Se não é militar, que assim se considere; se é um policial militar, e não um membro das Forças Armadas, que seja processado e julgado como tal; se não é mais um membro, que seja, então qualificado como um ex-militar, em respeito à sua condição onto-antropológica. Enfim, dessa artesania processual penal depende não só a justeza do processo, mas a própria capacidade satisfatória de produção probatória (numa extração de elementos empíricos que, efetivamente digam respeito à condição existencial do jurisdicionado). Expostas essas considerações, passa-se a apresentar, em forma de tópicos, as conclusões gerais advindas da pesquisa, atribuindo concretude aos achados: 1. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 289 deve ser julgada procedente, dando-se interpretação conforme a 116 O VERDE-LOURO DA FLÂMULA O julgamento de civis pela Justiça Militar da União Constituição da República ao art. 9º, I e III, do Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (CPM), com eficácia erga omnes e efeito vinculante, para que seja reconhecida a incompetência da justiça militar para julgar civis, em tempo de paz, e para que estes crimes e jurisdicionados sejam submetidos a processamento pela justiça comum, federal ou estadual, mantendo-se hígida a axiologia constitucional e convencional, observada a ausência de proporcionalidade e ofensividade no tratamento que vem sendo isoladamente atribuído pelo Estado Brasileiro ao tema, inobstante a relevância histórica, mas já ultrapassada, desse posicionamento, hoje ilegítimo; 2. Por arrastamento, seja atribuída interpretação conforme ao inciso I do art. 9º e seja reconhecida a inconstitucionalidade parcial do inciso III do mesmo art. 9º, do Código Penal Militar, para que sejam descaracterizados os próprios crimes militares praticados por civis, em tempo de paz, ilegítimos que são contemporaneamente; 3. Suplementarmente, seja julgado procedente o pedido veiculado no HC nº 112.848/STF, afetado para julgamento em conjunto com a ADPF nº 289, afastando-se aplicabilidade do Enunciado da Súmula nº 09/STM, para fazer valer no âmbito da justiça militar o disposto na Lei nº 9.099/1995, até que seja implementada integralmente a decisão relacionada às conclusões indicadas acima (itens 1 e 2), especialmente se tratando de réus/investigados civis; 4. Ainda de forma suplementar, seja também julgado procedente o pedido veiculado no RHC nº 142.608/STF, de igual modo afetado para julgamento conjunto, para que seja aplicada à dinâmica processual penal castrense a sistemática estabelecida pelos artigos 396 e 396-A do Código de Processo Penal comum, instituindo a resposta ao réu civil; 5. Seja considerado inaplicável o disposto no Enunciado da Súmula nº 17/STM, para que não seja considerado o tempo do crime, mas sim a condição do acusado no curso do processo, para a definição da competência jurisdicional; 6. Seja aplicado, subsidiariamente, à dinâmica processual castrense o disposto no artigo 366 do Código de Processo Penal Comum, suspendendose o processo e o curso do prazo prescricional, na hipótese de o réu civil, citado por edital, não comparecer e nem constituir advogado; 7. Seja também incorporada, de forma subsidiária, à prática processual castrense a previsão constante nos artigos 319 e 320 do Código de Processo Penal comum, viabilizando que sejam judicialmente deferidas medidas cautelares diversas da prisão, mais adequadas aos casos concretos nos quais estejam relacionados investigados/acusados civis; MAURO MACHADO GUEDES 117 8. Sejam realizadas alterações institucionais, subsidiariamente, no sentido de assegurar uma efetiva imparcialidade na persecução penal militar de civis, com as seguintes adaptações: a) composição exclusiva do órgão de cúpula da justiça militar por juízes togados, com notável saber jurídico; a.2) enquanto a adaptação indicada no item 8.a supra não seja efetivamente implementada, que se proceda uma alteração regimental, para que os recursos interpostos por réus civis sejam privativamente apreciados por juízes togados; b) exigência de formação jurídica, com lapso temporal mínimo de 03 (três) anos de atividade prática após a conclusão da Graduação em Direito, na designação dos Oficiais das Forças Armadas para o desempenho das atividades de autoridade de polícia judiciária militar, nos moldes da Lei nº 12.830/2013, aplicável às autoridades de polícia judiciária não-militares. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES-MARREIROS, Adriano. 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