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ÍCONE | REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA DA ARTE | ISSN 2359-3792 | V. 5 | Nº 6 | 2020 | PÁG. 18 QUASEORAÇÃO Vidas que contam ANDREI MOURA DIEGO GROISMAN FIGURA 1 Exibição do Quase-Oração Fotografia: Kevin Nicolai O QUE nos torna humanos? Desde os princípios da formação do pensamento filosófico ocidental, o problema tem surgido e sido respondido, sem, contudo, esgotar-se em forma-resposta definitiva. Em uma frase epigráfica, José Saramago reafirma a pertinência da questão: “Saberemos cada vez menos o que é um ser humano”, atualizando à contemporaneidade a insuperável complexidade da pergunta. O tensionamento entre razão e emoção – sua equação irresoluta –, parece ter voltado à cena com os processos desencadeados pela atual pandemia, que arrasou paradigmas sedimentados de comportamentos, ao impor protocolos restritivos de segurança. ÍCONE | REVISTA BRASILEIRA DE HISTÓRIA DA ARTE | ISSN 2359-3792 | V. 5 | Nº 6 | 2020 | PÁG. 19 E, em contrapartida, colocou em relatividade os ganhos que o avanço predatório do acúmulo monetário legou ao mundo contemporâneo. Sem dúvida, a crise é sanitária. Mas, sobretudo, é humanitária. Diante do indigno desprezo pela vida, Quase-Oração surge como uma ação coletiva de enunciação por extenso de cada número componente da soma de vítimas fatais, colocando em palavras o som dos algarismos que, metonimicamente, estão em lugar de vidas interrompidas. Como ação, ganha a arena pública por meio de lives pelo Instagram – suporte estrategicamente escolhido pelo largo alcance, e ironicamente ocupado como ponto fora da curva ao habitual compartilhamento de amenidades; além de projeções em pontos diversos do espaço urbano. Transcorrido entre os dias 25 e 2 de fevereiro de 2021, o ponto inicial da ação congregou mais de 50 participantes que, de forma ininterrupta, atingiram a marca de 193 horas de contagem, tornando-se, talvez, a mais extensa performance duracional já realizada no país. Daí, seguiram-se ativações pontuais até o atual formato de contagens diárias, que já contabilizam mais de 300 horas e 100 participantes. A ambiguidade do título, ao mesmo tempo que semanticamente se aproxima das ideias de prece e reza, afasta-se pela prefixação “quase” que demarca, com certa ênfase, o distanciamento. Quase-Oração decisivamente opõe-se à religiosidade fundamentalista, que deu força a um projeto de poder reacionário e, mais recentemente, genocida no Brasil. A leitura dos números, de forma sistemática e exaustiva, cumpriu dupla função: acolher a dor do luto pelos que se foram e alertar incomodamente a todos nós sobreviventes sobre a dimensão sagrada de cada vida humana. Em lugar da apática posição de espectadores, Quase-Oração convoca à empatia, à ação e preservação da vida e à sutura da chaga do luto em nós aberta, potencial e literalmente. E, aqui, reside a força de resistência que encontramos no fenômeno artístico, que, ao ser vetor de pensamento e criação de inéditas percepções, impacta individual e coletivamente as subjetividades. FIGURAS Reprodução: Instagram @quaseoracao