Literaturando
artigos, ensaios e contos
Vol. VI
Literaturando
artigos, ensaios e contos
Vol. VI
Daniela Valentini
José Dias
Junior Cunha
Organizadores
© 2024 Instituto Quero Saber
Gerente Editorial
Ana Karine Braggio
Conselho Editorial
Carlos Renato Moiteiro
Eliana Nogueira Brito Saturnino
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens
Produção Editorial
Amanda C. Schallenberger Schaurich
Mônica Chiodi
Instituto Quero Saber
www.institutoquerosaber.org
editora@institutoquerosaber.org
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
L776
Literaturando: artigos, ensaios e contos. Vol. VI. / organizadores, Daniela Valentini,
José Dias, Junior Cunha. 1. ed. e-book –
Toledo, Pr.: Instituto Quero Saber, 2024.
134 p.: il.
Modo de Acesso: World Wide Web:
<https://www.institutoquerosaber.org/editora>
ISBN: 978-65-5121-019-8
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.84
1.
Literatura. 2. Poesia. 3. Conto.
CDD 22. ed. 869
Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi – Bibliotecária CRB/9-1610
O teor da publicação é de responsabilidade exclusiva de seus respectivos autores.
Um livro autêntico jamais é impaciente.
Ele pode esperar séculos para despertar
um eco vivificante.
George Steiner
Sumário
Apresentação .................................................................. 9
Priscila Santos
Artigos
Annuario das Senhoras: modos de ser mulher no Brasil
do século XX .................................................................. 15
Thiago Waldeyr Faria da Silva
Antijesuitismo e encômio pombalino em O Uraguai:
influxos estéticos e diálogos históricos na poética de
Basílio da Gama ............................................................. 51
Jheniffer Maria Moraes dos Santos & Warley Rodrigues Pereira
Ensaios
A literatura infanto-juvenil como ferramenta de
emancipação da criança e do adolescente ................... 89
Antonio Vinicius Tomacheski
Contos
A dama da noite ........................................................... 105
Giovanna Victória Pilotti
Adelaide ....................................................................... 119
Ammy Lee Vitória
Maldito espelho ........................................................... 123
Junior Cunha
Os olhos verdes fascinantes de Giovanni,
mio Romeo................................................................... 127
Andrielly Antunes da Silva & Giovanna Victória Pilotti
Apresentação
Priscila Santos
Priscila Santos é Bacharel em Ciências Farmacêuticas pela
Faculdade Anglo-Americano e Mestranda em Ciências
Farmacêuticas pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Contato: prihps@gmail.com
A Coleção Literaturando chega ao seu sexto volume,
evidenciando que os estudos e produções literárias
continuam a encantar, envolver e suscitar debates e
Literaturando
reflexões importantes. Também mostra que pesquisadoras
10
e pesquisadores, escritoras e escritores, leitoras e leitores
não perdem o fôlego e persistem engajados no estudo e
deleite de boa literatura.
Como nos volumes anteriores, este novo marco do
vigor da Coleção Literaturando também é divido em três
seções: artigos, ensaios e contos. Mais uma prova da
riqueza e amplitude que a literatura pode atingir, e assim o
faz, primeiro, como um fruto do esforço árduo daqueles se
que dedicam em romper com a barreira da página em
branco; e, segundo, como um objeto de prazer daqueles
que se encantam com o poder das palavras.
No texto de abertura deste volume, o artigo
Annuario das Senhoras: modos de ser mulher no Brasil do
século XX, Thiago Waldeyr Faria da Silva analisa de que
forma O Annuario das Senhoras, em seu primeiro ano de
circulação, ‘constrói aquilo que seria próprio das mulheres
na esfera social’.
No segundo texto, o artigo Antijesuitismo e encômio
pombalino em O Uraguai: influxos estéticos e diálogos
históricos na poética de Basílio da Gama, Jheniffer Maria
Moraes dos Santos e Warley Rodrigues Pereira expõem ‘o
modo como o louvor a Pombal, o heroísmo do indígena e a
retaliação jesuítica são estruturados nos fios do discurso
histórico tecidos por Basílio da Gama no tear da via
estética’.
Em seu ensaio, A literatura infanto-juvenil como
ferramenta de emancipação da criança e do adolescente,
literatura infanto-juvenil, ‘sendo ela o lugar onde a criança
se permite disfrutar do estado da arte, da estética e dar
asas à sua imaginação’.
Giovanna Victória Pilotti abre a seção de contos
com A dama da noite, uma história intensa e cheia de
reviravoltas, com personagens complexos e uma trama que
explora temas como o amor, a paternidade, a doença e, por
que não, a redenção.
N sequência, Ammy Lee Vitória nos brinda com
uma reflexão profunda sobre as complexidades da vida. O
11
artigos, ensaios e contos
Antonio Vinicius Tomacheski destaca a importância da
narrador de Adelaide expressa suas desilusões com o curso
de sua vida, em contraste com as expectativas ingênuas de
sua juventude.
No conto Maldito espelho, Junior Cunha escreve
sobre um exame introspectivo de um narrador, que se
questiona sobre quem ou o que ele realmente é,
confrontando-se com uma sensação de estranhamento ao
Literaturando
se olhar em um espelho.
12
Coroando a seção de contos, Andrielly Antunes da
Silva e Giovanna Victória Pilotti apresetam uma narrativa
romântica, que se passa na cidade de Genova durante o
ano de 1800, em Os olhos verdes fascinantes de Giovanni,
mio Romeo.
Uma boa e prazerosa leitura!
Artigos
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.84.01
Annuario das Senhoras:
modos de ser mulher no
Brasil do século XX
Thiago Waldeyr Faria da Silva
Thiago Waldeyr Faria da Silva é Acadêmico do Curso de Letras da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Contato: thiagowaldeir3456@gmail.com
Literaturando
16
Resumo: A mulher sempre foi público-alvo de publicações
impressas e de anúncios publicitários no mercado editorial
brasileiro desde as primeiras publicações no país, com a
implantação da Imprensa Régia, no início do século XIX. O
Annuario das Senhoras foi um guia de consulta (para o ano
inteiro) que circulou no Rio de Janeiro entre os anos de 1934-1958
e tratava especialmente de assuntos voltados para aquilo que se
dizia ser do interesse das mulheres: o anuário trazia anúncios que
ofereciam desde sapatos até objetos de decoração para o lar,
matérias que tratavam da saúde e do comportamento no âmbito
familiar e social da época. Pretendemos analisar de que forma o
Annuario, em 1934, primeiro ano da sua circulação, constrói
aquilo que seria próprio das mulheres na esfera social. Para
tanto, pretendemos compreender o funcionamento do discurso
tanto nas publicidades quanto nas matérias que retratavam as
mulheres. Essa proposta fundamenta-se na análise do discurso
de linha francesa sobre o discurso jornalístico/publicitário e a
construção do que era próprio da mulher no primeiro guia desta
publicação. Trata-se de pensar o discurso jornalístico/publicitário
como formador de redes interdiscursivas, por meio de
retomadas, atualizações e deslocamentos de sentidos. Diante
disso, este estudo visa compreender, sobretudo, as Formações
Discursivas e Imaginárias acerca daquilo que se dizia sobre/para
as mulheres na esfera social ao longo do ano de 1934, a fim de
que seja possível compreender a quais mulheres o Annuario se
refere e os efeitos de sentidos sobre/paralelas na sociedade
brasileira no século XX.
Palavras-chave: Anuário das Senhoras. Modos de ser mulher.
Brasil do século XX.
Introdução
O Annuario das Senhoras, revista que circulou no
Rio de Janeiro entre os anos de 1934-1958, ao fazer circular
alguns sentidos sobre/para as mulheres constrói aquilo que
seria próprio desse público: estilo de vida, educação, saúde,
comportamento familiar, consumo, comportamento social
etc. Ao colocar em circulação determinados sentidos,
naturaliza e padroniza comportamentos e sujeitos:
17
institucionalizando o que deveria ser próprio delas. Ao
artigos, ensaios e contos
naturalizar sentidos constrói um modelo de mulher, de
comportamentos que devem ser seguidos por tantas
outras mulheres no Brasil no século XX.
Os discursos sobre ao falarem sobre um discurso de
(discurso-origem), situam-se entre este e o
interlocutor, qualquer que seja. De modo geral,
representam lugares de autoridade em que se
efetua algum tipo de transmissão de
conhecimento, já que o falar sobre transita na corelação entre o narrar/descrever um acontecimento
singular, estabelecendo sua relação com um campo
de saberes já reconhecido pelo interlocutor
(Mariani, 1996, p.64, grifos meus).
Esse discurso, pautado numa pretensa ilusão de
naturalidade, de efeito de evidência, vai construindo a
história dos sujeitos e (re)produzindo os sentidos
(passados, presentes e futuros) a respeito deles e de sua
relação causal com o lugar social do qual não conseguem se
Literaturando
desvincular. É como se os sentidos colassem e a
18
interpretação imobilizasse os sujeitos naturalizando a
memória discursiva que circula sobre eles.
O
Rio
de
janeiro
era
habitado
por
aproximadamente um milhão de pessoas no início do
século XX. Foi durante a primeira década deste século que
a imagem como grande capital sul-americana, sonhada nas
pranchetas dos arquitetos e dos engenheiros, ganhou
visibilidade, marcando um tempo importante da história
urbana da cidade (Azevedo, 2015).
O Rio de Janeiro era o principal porto de exportação e
importação do país e o terceiro em importância no
continente, depois de Nova York e Buenos Aires. Mais
que isso, como capital da República ela era a vitrine
do país. Num momento de intensa demanda por
capitais, técnicos e imigrantes europeus, a cidade
deveria operar como um atrativo para os
estrangeiros. Mas, ao contrário ela era acometida
por uma série de endemias, que assolavam e
vitimavam sua população local. (...)Por isso a cidade
tinha, desde o século XIX, a indesejável reputação
de ‘túmulo do estrangeiro (Sevcenko, 1998, p.15,
grifos meus).
Diante desta situação, as autoridades organizaram
uma ação conjunta que reestruturaria a cidade em três
instâncias, fazendo surgir a nova cidade. As medidas foram
a modernização do porto, saneamento da cidade e a
reforma urbana. Uma equipe foi nomeada pelo presidente
Rodrigues Alves: “o engenheiro Lauro Müller para a
reforma do porto, o médico sanitarista Oswaldo Cruz para
o saneamento e o engenheiro urbanista Pereira Passos,
19
que havia acompanhado a reforma urbana de Paris, para a
artigos, ensaios e contos
reurbanização” (Sevcenko, 1998, p.23).
As reformas se voltaram para o centro da cidade,
onde havia muitos casarões em que moravam um grande
número de pessoas pobres, que tiveram suas casas
invadidas por equipes do sanitarista e derrubadas pelo
reurbanizador. Um contingente enorme de pessoas foi
posto na rua, migrando para os morros, iniciando essa nova
ocupação.
A Regeneração se completou no fim desse mesmo
ano de 1904. Seu marco foi a inauguração da
Literaturando
20
avenida Central, atual avenida Rio Branco, eixo do
novo projeto urbanístico da cidade. As revistas
mundanas e os colunistas sociais da grande
imprensa incitavam a população afluente para o
desfile de modas na grande passarela da avenida
[...], nas mediações, as tradicionais festas e hábitos
populares, congregando gentes dos arrabaldes,
foram reprimidos e mesmo o Carnaval tolerado não
seria mais o do entrudo, dos blocos, das máscaras e
dos sambas populares, mas dos corsos de carros
abertos [...], típicos do Carnaval de Veneza, tal
como era imitado em Paris (Sevcenko, 1998, p.27,
grifos meus).
A reforma urbana da então capital se destinou à
introdução no país de ideais de controle social, assim como
em Londres e Paris, e São Petersburgo, para levar o país a
alcançar a “modernidade” (Secnenko, 1998).
Os valores da vida moderna ao impregnarem-se nas
relações sociais desencadearam uma transformação
acelerada de tudo. O novo substituiu o velho e tentou
apagar naquele os sinais destes. Tudo foi destruído e
reconstruído, impondo um estilo de vida mais urbano, de
relação mais impessoal (Secnenko, 1998). O Rio de Janeiro
começa, portanto, a exportar um estilo de vida e
comportamento para o resto do país.
Nessas condições de urbanização da cidade e da
vida cotidiana na capital, a revista/anuário se refere a
determinadas mulheres e a partir dessas referências
constrói comportamentos sociais adequados e estilos de
vidas que devem ser seguidos e passam a corresponder às
novas exigências sociais da época.
Nos perguntamos, a partir dessas considerações: a)
Para quais mulheres o anuário se refere? b) Quais ficam de
fora por não se identificarem com o que circula como
modelo a ser seguido? c) O que circula como
comportamento social adequado e aceitável no início do
século XX sobre/para às mulheres? São algumas questões
revista/anuário, do discurso jornalístico/publicitário, dos
efeitos de sentidos da época postos em circulação nas
páginas da primeira edição, de 1934.
Esse processo de urbanização da cidade do Rio de
Janeiro não está desvinculado, na passagem do século XIX
para o século XX, com o que ocorreu em outras sociedades
ocidentais influenciadas por correntes liberais, pautadas
em ideais de liberdade individual e igualitarismo. Esse
liberalismo era marcado pelo patriarcalismo:
21
artigos, ensaios e contos
que nos guiam para compreender o funcionamento da
Literaturando
O patriarcado é o domínio social ou uma estrutura de
poder social centralizada no homem ou no
masculino. É baseada na própria ideia de paters,
figura do pai. E relaciona instâncias públicas e
privadas da vida social. É uma estrutura bastante
comum na sociedade humana, mas é contestada por
diferentes grupos sociais em vários momentos da
história, devido à pouca ou nenhuma ação que impõe
às mulheres. O patriarcado associa a biologia à
cultura, no sentido de diferenciar os papeis sociais
baseados em papeis sexuais (Aguiar, 2000, p. 303,
grifos meus).
feminismo, orquestrada por mulheres dos EUA e do Reino
22
Unido, brancas, de classe média e insatisfeitas com o seu
Nessa época, surge a denominada primeira onda do
estado de submissão e opressão.
Nos EUA, o movimento culminou na aprovação, em
1919, da Décima Nona Emenda à Constituição americana,
que concedeu às mulheres de todos os Estados o direito ao
voto. No Brasil, em 1932, durante o governo de Getúlio
Vargas, foi assinado o Decreto 21076, que assegurava às
mulheres o direito de votar. No entanto, até 1965, o direito
era estendido apenas às mulheres com profissões
remuneradas (Aguiar, 2000).
Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos explicita o rol de direitos humanos aceitos
internacionalmente e garante o direito à participação
política tanto para homens, quanto para mulheres.
Diante do que circulava como as qualidades de boa
mulher postas como evidência através das matérias
veiculadas/propagandas publicitárias na revista/anuário,
cabe-nos tratar da forma como as condições de produção,
da época, produziram efeitos de sentidos nas páginas do
Annuario das Senhoras.
Além disso, precisamos também pensar na
importância dos meios de comunicação nas grandes
capitais ocidentais do mundo sobre/para as mulheres e
seus etilos de vida. O que da primeira onda do feminismo
movimento pauta os comportamentos postos como
modelos? São questões que nos movimentam para
compreender as Formações Discursivas e Imaginárias que
se inscrevem no Annuario, corpus de nossa pesquisa.
O discurso jornalístico se pauta, para discursivizar o
mundo, nos mitos de neutralidade, imparcialidade,
objetividade e verdade, como afirma Mariani (1998), para
colocar em circulação alguns sentidos em detrimentos de
outros. Ele funciona como um discurso pedagógico, ou
seja, age como se observasse o mundo fora do ideológico
23
artigos, ensaios e contos
(não) reverbera nos textos na revista? O que desse
ou põe em circulação suas análises como se elas fossem o
resultado de uma abordagem desinteressada (neutra,
verdadeira, objetiva e imparcial). Dessa mesma forma, o
discurso jornalístico construindo-se como se os fatos
falassem por si, mascara as interpretações realizadas
silenciando, dessa forma, a ideologia que se inscreve no
discurso.
Literaturando
Segundo Payer (2005), a mídia interpela o sujeito a
24
partir do que ele produz e coloca em circulação, reforçando
os mitos, citados acima, construídos em torno dele.
Segundo ainda a autora, a força do discurso das mídias
funciona de maneira muito similar à forma como o discurso
religioso afetava o homem, na Idade Média:
Tudo indica que um novo Texto vem adquirindo o
valor de Texto fundamental na sociedade
contemporânea. Este grande texto da atualidade,
no meu modo de entender, consiste da Mídia,
daquilo que está na mídia, em um sentido amplo, e
em especial no marketing, na publicidade. O valor
que a sociedade vem atribuindo à mídia - ou o poder
de interpelação que a Mídia vem exercendo na
sociedade(...). A mídia pode ser assim considerada
como o Texto fundamental do Mercado na medida
em que se compreende texto como a forma
material do discurso, como propõe Orlandi (2001),
como o lugar material em que a relação entre língua e
ideologia produz seus efeitos (Payer, 2005, p. 15-16,
grifos meus).
Interessa-nos estudar os processos discursivos
decorrentes das transformações da sociedade da
informação/consumo e o modo como se articulam a
língua/linguagem, os sujeitos e a ideologia a respeito da
construção do que seja própria da mulher e os discursos
sobre/para ela, no Brasil do século XX.
O texto da mídia, sobretudo o que faz uso da
imagem, opera com especial força pragmática sobre os
indivíduos. A introdução da publicidade tem estatuto
semelhante ou mais forte do que a invenção da imprensa
especificas. Se todo discurso tem a propriedade de
produzir
evidências
de
real,
esta
capacidade
é
potencializada no discurso com base da imagem. Além
disso, as imagens da mídia, como texto fundamental do
Sujeito Mercado (Payer, 2005), são investidas de
dimensões
gigantescas,
a
exemplo
de
outdoors,
constituindo-se em verdadeiros espetáculos textuais.
Mais do que descrever a interpelação da Mídia e da
imagem, queremos enfatizar que esta interpelação não se
dá simplesmente pelas possibilidades empíricas das
25
artigos, ensaios e contos
(Payer, 2005). As formas de interpelação da imagem são
diversas materialidades dos textos, que por si já, são
enormes. Esse poder de interpelação se exerce não apenas
porque opera a partir da Formação Discursiva Mercantil,
mas, sobretudo, porque opera na base de nova Formação
Ideológica, a exemplo da ideologia religiosa e da ideologia
jurídica (Payer, 2005). Sob a égide do Capitalismo Mundial
e Integrado é que vemos configurar-se uma nova forma-
Literaturando
sujeito.
26
Na
Formação
Discursiva,
depreendemos
as
regularidades dos enunciados (ordem discursiva, posições
discursivas). Essas regularidades vão caracterizar uma
Formação Discursiva que é o que determina o sentido que
as palavras adquirem a partir de uma posição dada em uma
conjuntura, isto é, numa certa relação de lugares no interior
de um aparelho ideológico, e inscrita numa relação de
classes. Já a Formação Imaginária diz respeito a forma
como os sujeitos são sempre-já significados, ou seja, como
as suas imagens circulam como naturais: todo mundo sabe
como se comportam... é a imagem que fazemos do outro,
de nós mesmos, do discurso (Orlandi, 2005).
Para as nossas análises, usam-se os pressupostos
teóricos da análise do discurso de linha francesa,
justamente por considerar que essa teoria dará suporte
para compreender o funcionamento da ideologia que se
inscreve no discurso e o funcionamento do discurso que se
inscreve na língua em condições de produção específicas.
A linguagem aqui não é entendida apenas como
instrumento de comunicação, mas como efeito de sentido
entre interlocutores. Assim, Brandão (1985, p. 12, grifos
meus) afirma que:
A linguagem passa a ser entendida como a
mediação entre o homem e sua realidade. Como afirma
Orlandi (2005, p. 15), “essa mediação, que é o discurso,
torna possível tanto a permanência/continuidade quanto o
deslocamento/transformação do homem e da realidade
em que ele vive”.
Para a análise do discurso de linha francesa, a
linguagem não é transparente e como ressalta Santaella
(1996, p. 330, grifos meus), e em virtude disso, somente a
27
artigos, ensaios e contos
A linguagem enquanto discurso não constitui um
universo de signos que serve apenas como
instrumento de comunicação ou suporte de
pensamento; a linguagem enquanto discurso é
interação, e um modo de produção social; ela não é
neutra, inocente (na medida em que está engajada
numa intencionalidade) e nem natural, por isso o lugar
privilegiado de manifestação da ideologia.
partir
da
compreensão
da
ideologia
é
possível
compreender os sentidos que circulam:
Literaturando
As linguagens não são inocentes nem
inconseqüentes. Toda linguagem é ideológica,
porque ao refletir a realidade, ela necessariamente a
refrata. Há sempre, queira-se ou não, uma
transfiguração, uma obliqüidade da linguagem em
relação àquilo a que ela se refere.
28
O objeto de estudo da análise do discurso é o
discurso, que foge ao modo elementar de esquema da
comunicação proposto por Jakobson, organizado a partir
daquele que produz a informação (o emissor), daquele
quem recebe essa informação (o receptor) e a maneira pela
qual ela acontece (o código). Aqui, não se acredita nessa
linearidade da mensagem e muito menos, como já falado,
na transparência dos sentidos. Não tratamos de uma língua
autossuficiente, mas do discurso porque neste observa-se
um complexo processo de constituição de sujeitos e
produção de sentidos.
O nosso ponto de partida, então, se organiza a
partir
do
deslocamento
de
língua
(estrutura
autossuficiente) para discurso (aquilo que liga o homem a
sua realidade) como objeto de análise para permitir que se
possa perguntar: como o texto significa?
Cada texto tem uma materialidade simbólica
própria e, por isso, não existe uma “verdade” dada antes
daquele texto se constituir. O enunciado se materializa e
seus efeitos são produzidos a partir das Formações
Discursivas, Ideológicas e Imaginárias dos meios de
comunicação que colocam determinados sentidos em
circulação e não outros e não todos, de forma a evidenciar
o seu lugar no processo de constituições de sentidos diante
do objeto analisado.
Assim, o discurso é o lugar onde se pode observar a
relação entre a língua, o sujeito e a história para
compreender como sujeitos e sentidos se constituem.
constituem ao mesmo tempo (Orlandi, 2005).
O funcionamento do discurso jornalístico/publicitário
no Annuario das Senhoras
Pretendemos, para a organização desta pesquisa,
compreender o funcionamento do discurso jornalístico/
publicitário presente no Annuario das Senhoras de 1934,
primeiro ano de circulação. São 317 páginas digitalizadas e
disponíveis na no site Biblioteca Nacional. Este anuário é
composto por matérias e propagandas publicitárias
29
artigos, ensaios e contos
Dizemos em análise do discurso que sujeitos e sentidos se
direcionas às mulheres durante os anos de 1934-958.
Optamos por analisar apenas a primeira edição, 1934, do
Annuario uma vez que ela se insere nas condições de
produção bastante produtivas para a compreensão da
ideologia, dos sentidos e dos sujeitos: o Rio de Janeiro no
século XX, capital do país, em um processo de urbanização
da cidade e das vidas cotidianas produzindo um modelo de
Literaturando
cidade/comportamento para o resto do país.
30
Em seguida, a partir desse corpus discursivo
organizado, selecionaremos as sequências discursivas,
usando como critério, as Formações Discursivas e
Imaginárias construídas e postas em circulação pela revista
sobre/para a mulher e aquilo que diz respeito ao seu
comportamento no âmbito social: estilo de vida, consumo,
comportamentos individuais e coletivos, classe social, raça
etc.
Pensamos
que
a
partir
disso
poderemos
compreender o funcionamento da ideologia, que se
inscreve no discurso, das Formações Discursivas e
Imaginárias
presentes
nas
matérias/publicidades
produzidas sobre os comportamentos das mulheres no ano
de 1934, nesta revista/anuário.
Em 1930, após Getúlio Vargas assumir a Presidência
da Brasil, os espaços para algumas mulheres nos cargos
públicos do estado vão se abrindo, dando a elas certa
autonomia. No ano da primeira publicação do Annuario das
Senhoras em 1934, “após uma acalorada discussão, os
constituintes aprovam a igualdade de direitos políticos
entre homens e mulheres, desde que maiores de 18 anos e
alfabetizados” (Marques, 2019, P.92). Ao impedir as não
alfabetizadas, os constituintes excluem uma parte
considerável da população feminina uma vez que no século
XX. De acordo com Romanelli, 2001, p. 128, grifos meus):
Em virtude do pouco acesso das mulheres ao
sistema educacional nos cursos secundários é possível que
se depreenda na citação acima que mesmo os constituintes
aprovando igualdade de direitos entre homens e mulheres
31
artigos, ensaios e contos
O importante a notar é que, durante o século XIX e a
primeira metade do século XX, a exclusão feminina
dos cursos secundários inviabilizou a entrada das
mulheres nos cursos superiores. Assim, a dualidade
e a segmentação de gênero estiveram, desde
sempre, presentes na gênese do sistema
educacional brasileiro, sendo que as mulheres
tinham menores taxas de alfabetização e tinham o
acesso restringido aos graus mais elevados de
instrução.
já se partia de um desequilíbrio estrutural entre os gêneros:
às mulheres não cabiam o acesso à educação formal, mas
os cuidados com o lar.
Algumas poucas mulheres, então, conseguem, uma
conquista mais significante, agora quem tivera mais de 18
anos e também a alfabetização poderia exercer seu direito
de votar, participando assim da vida pública do seu país,
Literaturando
estado e município. Mas não podemos perder de vista de
32
que eram os homens quem comandavam os lares, suas
esposas e filhas impondo, muito provavelmente, o que
podiam/deviam fazer.
O corpus do nosso trabalho é voltado às indicações
comportamentais que dizem sobre/para às mulheres em
1934. Colocando em circulação, desta forma, assuntos,
sentidos que eram/podiam ser de interesse das mulheres.
Nele é apresentado a seguinte propaganda:
SD1. Não te esqueças de trazer um vidro de
CUNHANDY, sim, meu querido? Terás a tua
mulherzinha sempre vigorosa, sadia, fórte,
satisfeita e carinhosa O CUNHANDY é o meu
thesouro! (Annuario das Senhoras, n. 1, 1934, p.12,
grifos meus).
Vemos aqui uma propaganda de um produto, o
Cunhandy. Percebe-se que a mulher, na sequência
discursiva acima, SD1., mostra-se apta para agradar seu
companheiro,
isso
também
está
presente
nas
caracterizações necessárias à mulher no anúncio em
“vigorosa, sadia, forte, satisfeita e carinhosa” de forma que,
então, ela deve estar apta a receber o seu marido, ou seja,
todos estes adjetivos estão a serviço do homem para o seu
bem-estar e à mulher cabe apreendê-los para a satisfação
dele.
A aquisição de produto é para a satisfação da
mulher, da tua mulherzinha, como é possível ler no anúncio,
no entanto, há também os sentidos que beneficiam o
homem: adquirindo o produto terá uma mulher satisfeita e
Apesar de algumas conquistas, uma delas o direito
ao voto, os lugares reservados aos homens e mulheres fica
bastante marcados na forma de circulação dos sentidos
sobre os gêneros. Eni Orlandi (2020, p. 93-94, grifos meus),
sobre o funcionamento do discurso, ressalta que:
O sentido é história. O sujeito do discurso se faz (se
significa) na/pela história. Assim, podemos
compreender também que as palavras não estão
ligadas as coisas diretamente, nem são o reflexo de
uma evidência. É a ideologia que torna possível a
relação palavra/coisa. Para isso têm-se as condições
33
artigos, ensaios e contos
carinhosa.
de base, que é a língua, e o processo, que é
discursivo, onde a ideologia torna possível a relação
entre o pensamento, a linguagem e o mundo, ou,
em outras palavras, reúne sujeito e sentido.
À mulher cabia, como disse acima, funções
domésticas, atribuições não intelectuais na forma como
apareciam no Annuario das Senhoras. Não estamos
Literaturando
afirmando, no entanto, que elas, na primeira metade do
34
século XX, já não estivessem no mercado de trabalho.
Estavam. Mas, também como já dissemos, o Annuario não
era produzido para todas elas, mas a algumas. Nesse
sentido, no funcionamento discursivo do nosso corpus
discursivo é fundamental pensar em classe, raça para saber
a quais mulheres o anuário se reportava.
Sobre raça, não foi possível encontrar qualquer
anúncio ou texto que fizesse referência às mulheres negras.
Elas não comparecem nas páginas do annuario, isso
significa que a elas não eram endereçadas as matérias
publicadas nas páginas deste annuario, nosso corpus
discursivo.
Em análise do discurso pecheutiana buscamos as
regularidades enunciativas, os sentidos que estão
circulando e são naturalizados, as formações discursivas e
imaginárias que circulam sobre, no nosso caso, as mulheres
leituras dessas publicações. A história não é estanque, os
sentidos não surgem sem a relação com os sentidos que já
estão circulando, para que uma palavra produza sentido,
ela já está inscrita na história, ela já tem sentido (Orlandi,
1996).
A
Formação
Discursiva
(doravante,
FD)
depreendemos as regularidades dos enunciados (ordem
discursiva, posições discursivas). Essas regularidades vão
caracterizar uma Formação Discursiva que é o que
determina o sentido que as palavras adquirem a partir de
uma posição dada em uma conjuntura, isto é, numa certa
relação de lugares no interior de um aparelho ideológico, e
No jornal Echo das Damas, do século XIX, dedicado
às mulheres, em circulação no ano de 1879, sob o comando
de Amélia Carolina da Silva Couto 1, é possível
compreender a naturalização desse funcionamento
discursivo, nos meios de comunicação, sobre/para as
mulheres:
1
Jornalista e feminista, atuou no Rio de Janeiro onde fundou o jornal
Eco das Damas, que graças ao seu tino empresarial levou seu
periódico a circular por 8 anos, publicando artigos dedicados aos
interesses das mulheres. Fonte: http://www.mulher500.org.br/
amelia-carolina-da-silva-couto-sec-xix/.
35
artigos, ensaios e contos
inscrita numa relação de classes.
Literaturando
SD2. Guiar os primeiros passos vacilantes de um ente
novo que surge do nada; ensinar-lhe a balbuciaras
primeiras palavras; fazer-lhe soletrar os primeiros
princípios de uma moral sã, pura e racional;
implantar-lhe no espírito incerto as noções de uma
religião sublime, isenta de superstições banaes,
grosseiras e odiosas: incutir-lhe no animo o amor da
virtude, de tudo quanto é grande e bello, e o desprezo
pelas vaidades e pelos vícios; formar enfim o futuro
homem, é uma missão que, bem entendida, torna-se
espinhosa e às vezes impossível (Echo das Damas, n.
1, 1879, p. 2, grifos meus).
atribuição das mães circula no Echo das Damos, de 1879.
36
Cabem às mães a tarefa de preencher o vazio da criança,
Na SD2, acima, observamos como àquilo que é
todos os princípios da formação cidadã. Nada se diz da
função paterna em relação à educação dos filhos. Diz
respeito às mães exclusivamente a responsabilidade de
preparar o futuro de seus filhos. Ou seja, a formação
imaginária sobre o papel das mulheres no século XX, de
acordo com o Annuario, não surge nele. São sentidos que
já circulam sobre os lugares que podem/devem ocupar
esses sujeitos: mães, pais, filhos.
No quadro sobre as formações imaginárias abaixo
criado por Pêcheux (Pêcheux; Fuchs, 1997, p. 83), isso é
expresso como a “imagem do lugar de B para o sujeito
colocado em A” (“Quem é ele para que eu lhe fale assim?”).
Esse lugar do outro organiza o lugar em que o falante
coloca a si mesmo, na ilusão de “dono” do próprio discurso.
Ao colocar em circulação determinados sentidos
os meios de comunicação vão produzindo memórias do
passado e do futuro sobre os tais lugares, sedimentando
sentidos e colando o significante ao significado como se os
sentidos só pudessem ser aqueles.
Se no Annuario das Senhoras (n. 1, 1934, p. 5, grifos
meus) encontramos os sentidos: “SD3. É dever da mãe
alimentar o filho para conservá-lo sadio e robusto”.
Nada se diz sobre a função paterna. Mas se na
ausência também há sentidos, lemos, nessa sequência
discursiva, que não cabe a ele nada que diz respeito à
37
artigos, ensaios e contos
sobre determinados sujeitos e seus lugares enunciativos,
formação, educação e cuidados com os filhos. Ou seja, é
função e atribuição da mulher o cuidado com os filhos, sua
Literaturando
educação etc.
38
SD4. Da educação da mulher, assim o pensamos,
depende a prosperidade de uma nação. Eduque-se,
pois a mulher: quebrem-se de uma vez estes
preconceitos estultos: de-se-lhe uma instrução
solida e variada e teremos bons cidadãos e uma
sociedade moralizada. (Echo das Damas, n. 1, 1879,
p. 2, grifos meus).
Ainda que se diga que dependa da mulher a
prosperidade de uma nação, diz-se apenas dessa
responsabilidade doméstica da educação, cuidados e
alimentação. À mulher no social apenas os sentidos sobre
bons costumes, beleza, delicadeza. Além disso, fala-se
sobre moralização que cola ao sentido da educação formal:
a instrução sólida, que era para poucas, tem uma relação
causal com o bom cidadão e a moralização social.
Marques (2020, p.15, grifos meus)), acerca desta
questão, afirma que:
Devido à ausência de uma política educacional
séria, poucas mulheres recebiam instrução
suficiente para desenvolver um ofício remunerado
que não envolvesse servir, limpar ou cuidar de
alguém. No casamento, eram submetidas aos
maridos, que, por se julgarem superiores em
intelecto, tratavam-nas como crianças. Tal situação
também tornava inviável a integração das mulheres
na vida política, porque elas chegavam à vida adulta
despreparadas para formar opinião própria das
questões públicas.
As mulheres eram praticamente privadas da
educação formal, apenas uma pequena parte conseguia se
instruir formalmente. A maioria delas era suficiente
conhecer as atribuições domésticas. Nos meios de
comunicação aos quais tivemos acesso, nada se diz, além
disso sobre elas na vida pública. Essa relação entre
educação, classe e raça é bastante recorrente nos não-ditos
trabalharam, as mulheres negras, e que não frequentavam
as escolas porque educação era para em sua maioria as
meninas brancas de classe média.
Carlota Pereira de Queirós toma posse como a
primeira mulher deputada no Brasil em 15 de novembro de
1933, segundo Marques (2020). Podemos afirmar que essa
posse é um acontecimento discursivo, ou seja, uma
ressignificação da memória sobre o que podia/cabia às
mulheres.
39
artigos, ensaios e contos
do annuario: nada se diz sobre às mulheres que sempre
Por isso encontramos no Annuario das Senhoras (n
1, 1934, p. 12, grifos meus) trechos como este:
SD5. SENHORAS as batatas possuem qualidades
nutritivas xcepcionaes. Contendo phosphatos e saes
básicos de pureza e de frescura, ellas substituem o
pão, sendo muito aconselhadas no regime
alimentar das creanças, dos adultos que padecem
do estomago, e dos diabéticos.
Literaturando
É recorrente, no corpus analisado, os sentidos que
o poder dos alimentos, os seus nutrientes, sobre uma boa
40
alimentação. Mulheres e batatas circulam com a mesma
aproximam as mulheres dos afazeres domésticos (é uma
relação causal): a relação era estritamente relacionada com
naturalidade que circulam homens e trabalho.
São essas as regularidades encontradas até o
presente momento no corpus analisado por nós. O
funcionamento do discurso jornalístico/publicitário que
constrói o lugar social da mulher, no Rio de Janeiro, no
século XX (e XIX), não desliza, não é ressignificado pois à
mulher já circulam sentidos sobre aquilo que podem e
devem fazer desse lugar que circulam: os sentidos de cuidar
da casa, dos filhos e do marido; o papel materno solitário,
uma vez que sobre a figura paterna nada é dito em relação
a essas atribuições.
A educação da mulher no Brasil no século XX a
deixava com mais um empecilho à sua participação nos
cargos públicos da sociedade, segundo Alves e Beltrão
(apud Romanelli, 2009, p. 128, grifos meus):
Durante o século XIX e a primeira metade do século
XX, a exclusão feminina dos cursos secundários
inviabilizou a entrada das mulheres nos cursos
superiores. Assim, a dualidade e a segmentação de
gênero estiveram, desde sempre, presentes na
gênese do sistema educacional brasileiro, sendo que
as mulheres tinham menores taxas de alfabetização e
tinham o acesso restringido aos graus mais
elevados de instrução.
Elas aqui ficam mais longe dos lugares mais
descreve, percebe-se o motivo dele tratar mulher como
inferior ao homem.
Sobre a educação da mulher, circula naturalmente
que este jornal não foi feito para todas as mulheres do Rio
de Janeiro do século XX. Segundo os dados do IBGE
(Instituto Brasileiro de Geografia Estatísticas), os números
de inscritos no ensino secundário e superior no Distrito
Federal entre os anos de 1907 a 1912 a quantidade de
mulheres matriculadas eram muito inferior ao dos homens
tendo uma diferença de 75,3% para eles e 24,7% para elas
artigos, ensaios e contos
prestigiados da sociedade, desta forma, como nosso corpus
41
no primeiro ano se tratando de nível secundário, ao olhar
ao nível superior daquela época a diferença é absurda pois
apenas, observando o primeiro ano, 1,3% entravam em
uma faculdade (Alves; Beltrão, 2009, p. 129)
As barreiras postas a elas eram gigantes, no
entanto, a busca por seus direitos vagarosamente iria se
Literaturando
aumentando, pois:
42
Durante muito tempo o direito de votar foi entendido
como um privilégio de poucos, e estes poucos sendo
exclusivamente do gênero masculino, brancos e
possuidores de bens (Karawejczyk, 2014, p. 69)
E, segundo a própria Karawejczyk (2014, p. 70,
grifos meus), depois da conquista do direito ao voto:
Deixou de ser considerado como meramente
simbólico e passou a ser visto como a chave para
grandes mudanças e as mulheres que almejavam
participar do mundo político passaram a focar seus
esforços para influenciar as decisões do Parlamento e
sensibilizar seus participantes em reformar a lei em
benefício das mulheres.
Isso acontece por volta 1890 a 1900, em um
momento em que se pautava sobre os direitos femininos a
voto, no entanto, como vimos acima este direito só foi
conquistado no ano de 1934, para todas as mulheres que
tivessem 18 anos e fossem alfabetizadas.
O problema se encontra aqui, pois para elas os
estudos, anos anteriores, eram muitos restritos, com isso
muitas delas ainda não poderiam votar.
A alta classe daquela época, ou melhor, as mulheres
de alta classe, detinham este privilégio, o Annuario das
Senhoras era produzido para mulheres elitizadas, ele assim
nos traz a seguinte menção:
Na SD6, observa-se que o jornal menciona sobre o
vestido de uma mulher que era famosa nos EUA daquela
época evocando toda sua luxuria, aqui ele o tenta acertar o
inconsciente das mulheres da alta classe que tinha ele em
mãos, o casamento parecia ser necessário, mostrando mais
uma vez a sua inferioridade ao homem.
2
Atriz e Cantora do teatro norte-americano (de 1903 a 1965)
43
artigos, ensaios e contos
SD6. Um fio de perolas no farto véu de tulle de seda,
dois fios á volta do pescoço; perolas bordando os
sapatos e o vestido de crepe setim branco cuja saia em
apanhado na frente se estende pra traz em pequena
cauda- fazem de Jeannette Mac Donald 2 uma figura
de noiva encantadora, branca e risonha à frente
(Annuario das Senhoras, n. 1, 1934, p. 105, grifos
meus).
O patriarcado produz os sentidos que circulam
como naturais sobre a mulher, nos dicionários, segundo
Garcia (2017, p. 79):
[...] não atribuem à mulher as características de
inteligência, honra, honestidade. Esta é somente a
fêmea e a meretriz. Sentidos esses que são mantidos
e circulam nos grandes dicionários do século XX e XXI.
Literaturando
Evidencia-se aqui a sua inferioridade ao sexo
44
masculino.
O nosso corpus não é feito para todas as mulheres
do Rio de Janeiro do século XX, mas sim para as poucas que
possuíam acesso à educação e aquelas que possuíam a
capacidade financeira para assiná-lo anualmente, logo ele
esquece das mulheres da baixa classe, analfabetas e as
pretas do rio de janeiro no século XX
Ao observar este ponto, o Annuario (n. 1, 1934, p.
140, grifos meus) nos diz:
SD7. Sentar-se na cadeira, bem defronte do prato;
desdobrar o guardanapo e collocal-o sobre os
jelhos. Virá a sopa. Não se deve jámais agarrar a
colher com toda mão. A palma fica livre. Ergue-se a
colher delicadamente, como si fôra uma penna, entre
o indicador e o pollegar, sujeitando-a com o dedo
médio.
Na SD acima temos os sentidos de como o nosso
annuario sustenta os efeitos sobre a mulher, as formações
imaginárias sobre elas, aqui ele as ensina, disciplina como
um passo a passo em relação a como se portar à mesa:
primeiro faça isso, em seguida aquilo, depois aquilo outro
etc.
Na SD1 vimos que a própria deveria estar vigorosa
ao seu parceiro e na SD5 vimos que eram ensinadas a
conservar os alimentos, como mostramos também que era
dever dela cuidar do seu filho.
As mulheres, neste periódico, eram retratadas
como dona de casa e que seus afazeres eram cuidar dos
cuidar de si, se dava para se mostrar vigorosa ao seu
parceiro.
Neste mesmo tempo as lutas femininas em busca
do direito ao voto aconteciam e como vimos as mulheres
conseguiram este direito no mesmo ano da primeira
publicação deste jornal, mas ele não traz nem a luta
feminina nem esta grande conquista em nenhuma das
páginas do periódico, pelo contrário nos mostra:
45
artigos, ensaios e contos
filhos, da casa e de seu marido e quando eram para ela
SD8. Num canto de sala um jarro alto, de bonita
fórma, simplesmente decorado de vermelho velho e
azul brilhante, ou amarelo e pardo, o fundo pode ser o
próprio barro, o que tornará ainda mais original o vaso
guarnecido ainda de folhagens. À direita um prato de
parede – para o mesmo “canto” pintado a “laque” um
motive arabe (Annuario das Senhoras, n. 1, 1934 , p.
255, grifos meus).
Claramente o nosso jornal não se preocupa com as
Literaturando
lutas femininas daquela época, mas procura, como na SD
acima, ensiná-la a arrumar a sua casa deixando a mais
bonita, aqui se evidencia, novamente, o papel da mulher no
Rio de Janeiro do século XX, a de dona de casa.
46
Considerações finais
Nossos objetivos, no desenvolvimento deste
trabalho de iniciação cientifica, foram:
a) Para quais mulheres o anuário se refere?
b) Quais ficam de fora por não se identificarem com
o que circula como modelo a ser seguido? e
c) O que circula como comportamento social
adequado e aceitável no início do século XX sobre/para às
mulheres?
No decorrer do nosso trabalho, percebemos, no
corpus discursivo referente ao Annuario das Senhoras que
circulou no Rio de Janeiro entre os anos de 1934-1958, que as
formações imaginárias segundo as quais as mulheres eram
pautadas/se pautavam não surge nesse periódico, como
fonte desses sentidos, mas que já circulavam no social
sobre os papeis que cabiam às mulheres no século XX, no
Rio de Janeiro: o lugar de subalternação em relação ao
homem e de privilégio destes em relação às mulheres de
uma forma geral. Além disso nada se diz sobre raça ou
classes sociais silenciando tudo o que não fossem as
mulheres
que
tinham poder de
consumo, eram
Para aquelas, ou seja, para o público-alvo do
annuario: os sentidos eram os de servir ao homem, à casa e
aos seus filhos. O espaço era o privado uma vez que o
annuario se referia quase que de forma geral aos afazeres
domésticos, à higiene pessoas, aos cuidados com os filhos
e o marido.
Mesmo com as lutas importantes e conquista do
voto que foi em 1934 no ano que também foi publicado a
primeira edição deste jornal, nada se diz sobre isso nas
47
artigos, ensaios e contos
escolarizadas e viviam no lar como mãe e esposa.
edições analisadas, como se não fossem sobre essas
mulheres a que o annuario se referia.
Claramente o annuario não se preocupa com as
pautas feministas daquela época, mas procura, ao
contrário dos sentidos dessas pautas, naturalizar os
sentidos sobre a vida privada, ou seja, como arrumar a sua
casa deixando-a mais bonita. Este era o papel ou o perfil da
Literaturando
mulher no Rio de Janeiro do século XX.
48
O Annuario das Senhoras foi um jornal designado às
mulheres que possuíam alguma educação formal,
escolarização naquele tempo, no entanto, mesmo às que
eram escolarizadas, os ensinamentos eram exclusivamente
sobre o lar, sobre como se portar e se cuidar para o seu
marido e filhos, sobre como cuidar dos filhos.
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49
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Literaturando
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50
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DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.84.02
Antijesuitismo e encômio
pombalino em O Uraguai:
influxos estéticos e diálogos
históricos na poética de
Basílio da Gama
Jheniffer Maria Moraes dos Santos
Warley Rodrigues Pereira
Jheniffer Maria Moraes dos Santos é Acadêmica do Curso de
Letras da Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Contato: jheniffer.santos5@unioeste.br
Warley Rodrigues Pereira é Acadêmico do Curso de Letras da
Universidade Estadual do Oeste do Paraná.
Contato: warley.pereira@unioeste.br
Literaturando
52
Resumo: Este trabalho compreende o estudo de O Uraguai, de
José Basílio da Gama, como esforço de exaltação, por meio da
literatura, da figura política de Marquês de Pombal contra os
jesuítas à época da Guerra Guaranítica, confronto armado em
decorrência do Tratado de Madri que envolveu os índios
Guaranis, das reduções jesuíticas, em oposição ao exército lusoespanhol. São ainda esforços de reconstrução da história
brasileira à luz da Arcádia, uma vez que o discurso historiográfico
se constitui como matéria-prima do poema épico de Basílio da
Gama. O caminho metodológico dá-se a partir de uma
investigação bibliográfica de base analítico-descritiva. Como
aporte teórico, utilizam-se autores como Aristóteles (2005), Bosi
(2022), Fischer (2022), Lukács (2000), Lugon (1977), Silva (2017)
e White (2019). A análise exposta demonstra o modo como o
louvor a Pombal, o heroísmo do indígena e a retaliação jesuítica
são estruturados nos fios do discurso histórico tecidos pelo autor
no tear da via estética.
Palavras-chave: Marquês de Pombal. Guerra Guaranítica.
Arcádia. Discurso historiográfico. Poesia épica.
Serás lido, Uraguai. Cubra os meus olhos
Embora um dia a escura noite eterna.
Tu vive e goza a luz serena e pura.
(Canto V)
Introdução
O século XVIII representa um momento decisivo
para a formação da literatura brasileira. Sob a ótica árcade,
as tendências estéticas se voltaram para a harmonia dos
clássica. Assim, a produção árcade constituiu-se na
justaposição de contrastes, da poética do culto ao
bucolismo ao momento ideológico, em cujo cerne se
localiza a crítica da burguesia à nobreza e ao clero.
Se há em Cláudio Manuel da Costa uma voz poética
que ecoa nos prados sentimentais em busca da figura
feminina pastoril, em Basílio da Gama o ciclo pombalino
emerge da poética do encômio. Figura ambígua, o poeta
mineiro cantou a violenta luta entre os luso-espanhóis, os
missionários jesuítas e os índios guaranis pela conquista
53
artigos, ensaios e contos
gestos temáticos e formais mediante ao retorno à cultura
dos Sete Povos das Missões em O Uraguai, de 1769, obra
pela qual o autor se destaca entre os árcades circunscritos
na produção literária brasileira.
Em cinco cantos e mil trezentos e setenta e sete
versos brancos, Basílio da Gama constituiu um amplo
panorama que inclui a louvação da figura de Marquês de
Pombal e a bravura do indígena, vítima da perfídia e astúcia
Literaturando
de um inimigo a ser combatido: o jesuíta e sua ambição
54
desmedida.
O presente artigo tem como objetivo analisar a
poética de louvor aos feitos políticos de Pombal no que se
refere à expulsão dos missionários jesuítas instalados na
região dos Sete Povos, palco da luta retratada na obra, bem
como
os
esforços
de
reconstrução
do
discurso
historiográfico que constitui a base de O Uraguai. Para isso,
este estudo encontra-se dividido em cinco seções, a contar
da introdução: discute-se, na segunda, a consolidação do
Arcadismo no Brasil com ênfase na produção literária de
Basílio da Gama. Embasam essa discussão os estudos de
Bosi (2022). Na terceira seção, discute-se a caracterização
do gênero épico e, em seguida, na subseção, a tradição do
gênero na literatura brasileira. Utilizam-se, como aporte
teórico, autores como Lukács (2000), Aristóteles (2005) e
Silva (2017). Na quarta seção, busca-se recuperar as
condições históricas da Guerra Guaranítica como ponto de
partida para a realização da análise de O Uraguai.
Fundamentam essa discussão os estudos de Lugon (1977),
Silva (2017) e Fischer (2022). Na quinta e última seção,
apresenta-se uma perspectiva de análise do discurso
historiográfico a partir dos estudos de White (2019).
O Arcadismo no brasil
A busca pelo natural, pela simplicidade e pela
graciosidade segmenta características que marcam e
definem o Arcadismo, movimento literário de origem
até o ano de 1836 e sendo sucedido pelo movimento
romântico. A tentativa de abandono das contradições, das
tendências extravagantes e da linguagem rebuscada do
movimento Barroco, assim como o resgate de tendências
greco-latinas, conduziu os escritores do Arcadismo a um
estilo mais harmônico, como assevera Bosi (2022, p. 57): “o
que já se postulava no período áureo do Barroco em nome
do equilíbrio e do bom gosto entra, no século XVIII, a
integrar todo um estilo de pensamento voltado para o
racional, o claro, o regular, o verossímil”.
artigos, ensaios e contos
europeia que predominou no século XVIII, vivendo seu auge
55
A temática da poesia pastoral e a valorização da
vida bucólica se dão em contraste com a perspectiva do
contexto histórico e social que estava ocorrendo no
desenvolvimento urbano da Europa, assim como com o
avanço técnico e tecnológico. Esse desenvolvimento
acarretou a industrialização e posteriormente o êxodo
rural. Teóricos como Bosi (2022) e Candido (2000) explicam
Literaturando
esse contraste a partir da relação de sentimentos que esse
56
desenvolvimento causou no âmbito da sociedade
burguesa, gerando reações de frustração no convívio da
cidade e perda da euforia e da felicidade. Ademais, como
resultado da insatisfação com a vida urbana, ocorreu uma
crescente valorização da vida rural, conforme evidenciado
nas produções literárias do período.
No Brasil, tem-se considerado como marco de
início do Arcadismo as Obras Poéticas do mineiro Cláudio
Manuel da Costa, publicadas em 1768, ainda que o autor as
tenha
publicado
em
Coimbra
e
não
no
Brasil,
propriamente. Além do resgate dos poetas gregos e
latinos, a poesia setecentista brasileira também se voltou
aos escritores portugueses do período quinhentista,
sobretudo Camões. O movimento teve forte influência do
arcadismo europeu e do iluminismo francês, o que levou
diversos autores a se envolverem em grupos com
conotações políticas e libertárias, opostas ao governo
português, como visto na Inconfidência Mineira. Tal
movimento separatista, além de resultar na prisão e pena
de exílio a diversos autores desse período, interveio em
diversas temáticas das obras árcades, seja como meio de
protesto contra o governo e os agentes portugueses, ou,
posteriormente, como resposta à promulgação das penas.
Os estilos dos escritos árcades brasileiros podem
ser divididos em três vertentes: lírico, como os sonetos de
Cláudio Manuel da Costa; satírico, como apresentado nas
Cartas Chilenas, crítica política escrita de forma mais velada
Alvarenga, em que se apresenta uma crítica política mais
aberta; e épico, como nas obras Caramuru, de Santa Rita
Durão, e O Uraguai, de Basílio da Gama.
Basílio da Gama nasceu em 1741, em Minas Gerais,
como diversos outros autores árcades. Estabeleceu
contato com a Companhia de Jesus, estudando no Colégio
dos Jesuítas, no Rio de Janeiro. Após a expulsão dos
jesuítas, seguiu para Roma e foi aceito na Arcádia Romana
com a ajuda de seus mestres. Após viajar a Lisboa, Gama
foi preso por suspeita de jesuitismo e condenado ao exílio,
57
artigos, ensaios e contos
por Tomás Antônio Gonzaga, e no Desertor de Silva
fato que o conduziu à produção de um Epitalâmio, que
dedicou à filha do Marquês de Pombal. Sua astúcia e
veemência na escrita não só o fizeram ser perdoado, como
levou
Pombal
a
protegê-lo,
concedendo-lhe,
posteriormente, a publicação da obra épica O Uraguai, em
1769, e o presenteando com a carta de fidalguia no ano de
1771. Outras obras do autor são: A Declamação Trágica
Literaturando
(1772), Os Campos Elísios (1776), Lenitivo da Saudade (1791)
58
e Quitúbia (1791). O poeta faleceu em Lisboa, em 31 de
julho de 1795.
O gênero épico
No bojo das mais variadas manifestações literárias
da tradição ocidental, o gênero épico suscita múltiplas
compreensões no campo da literatura. De acordo com Silva
(2017), o discurso épico é fundamentado a partir de uma
dupla instância enunciativa, a narrativa e a lírica, o que o
torna um discurso híbrido. Em outras palavras, a
discursividade épica não pode ser definida a partir de uma
instância única, mas somente articulada pela concatenação
de cada um dos aspectos particulares que a constituem.
Assim, a partir dessa dupla instância de enunciação,
A epopeia, mesclando naturalmente o gênero
narrativo com o lírico, apresenta de um lado os
elementos específicos da narrativa literária,
personagem, espaço, acontecimento e narrador,
inseridos na estrutura verbal duma proposição de
realidade, e de outro, os elementos específicos da
lírica, eu lírico, espaço lírico e motivação lírica,
inseridos na expressão subjetiva da experiência lírica
(Silva, 2017, p. 14).
Contudo, a distinção entre epopeia e narrativa
ficcional faz-se necessária, pois embora seja aquela
narrativa, difere-se desta em dois aspectos fundamentais,
a saber:
No tocante à proposição de estruturação da
realidade, a epopeia engendra mito e vivência (real
histórico), enquanto a narrativa de ficção propõe a relação
do homem com o mundo sob as bases da fabulação. Assim:
A narrativa de ficção, sendo uma elaboração
imaginária da relação existencial do homem com o
59
artigos, ensaios e contos
A epopeia apresenta um eu lírico que integra a
expressão formal na estrutura narrativa (utilização do
verso como unidade, exploração de recursos rítmicos
e sonoros, uso das estrofação e da divisão em cantos),
enquanto a narrativa de ficção tem apenas a voz
narrativa, utiliza como unidade o período e divide-se,
normalmente, em capítulos (Silva, 2017, p. 15).
mundo, estrutura uma proposição de realidade
ficcional. A epopeia, nutrindo-se do real e do mito
fundidos na matéria épica, estrutura uma proposição
de realidade histórica. A narrativa de ficção estrutura
uma matéria romanesca, elaboração literária do real
imaginário; a epopeia estrutura uma matéria épica,
fusão do real histórico com o mito (Silva, 2017, p. 15).
Silva (2017) assevera que a matéria épica parte da
dimensão histórica para a mítica, as quais se fundem para
Literaturando
dar contornos a uma unidade indissociável. Essa matéria,
ela reúne, originalmente, um conjunto de narrativas
60
míticas alinhadas a eventos monumentais, e o aspecto
uma vez rearticulada a partir da forma poética da epopeia,
recebe um acréscimo: a dimensão literária. Desse modo,
literário somente ganha espaço quando tal matéria é
recriada na epopeia.
Pela fusão das três dimensões da epopeia — a
histórica, a maravilhosa e a literária — a natureza épica
vincula, no seio da historiografia literária, diversas
motivações, entre as quais destacam-se:
Aproveitar narrativas da tradição oral; versar sobre
temas narrativos heroicos e nacionais, de cunho
elevado e sublime, relacionados com feitos
guerreiros; referir acontecimentos históricos do
passado remoto, de feição lendária; exibir um herói de
extraordinária compleição física e psicológica, capaz
de realizar feitos memoráveis, inclusive sobrehumanos; inserir tema amoroso em episódios
separados na trama narrativa; apresentar um
maravilhoso criado pela intervenção de forças
sobrenaturais na ação épica; apresentar partes
distintas, proposição, invocação, narração e epílogo;
realizar o enlace do nacional e do universal [...] (Silva,
2017, p. 18).
Aristóteles 1 (2005) alude à necessidade de haver
tanto na tragédia como na epopeia determinadas
características semelhantes no que se refere às peripécias
e à linguagem (devendo esta sempre prezar a excelência).
Contudo, a epopeia, por ser narrativa, poderia representar
opulência da obra. Para Aristóteles (2005, p. 24):
A poesia épica emparelha-se com a tragédia em
serem ambas imitação metrificada de seres
1
Anazildo Vasconcelos da Silva, em Formação Épica da Literatura
Brasileira, toma o exame aristotélico sobre o discurso épico como
uma manifestação de um corpus crítico delimitado, isto é, a epopeia
grega. Para o autor, a referida posição crítica não se estende às
manifestações vindouras a respeito do mesmo discurso. Não
obstante, de acordo com Anazildo, a proposta de Aristóteles,
quando tomada como padrão/referência de uma teoria épica do
discurso, tornou a épica clássica um referencial teórico a partir do
qual todas as demais manifestações de caráter épico foram
analisadas, o que, em alguma medida, inviabilizou uma noção
crítico-evolutiva da epopeia.
artigos, ensaios e contos
diversos episódios simultâneos, cuja pertinência elevaria a
61
superiores; a diferença está em que aquela se compõe
num metro uniforme e é narrativa. Também na
extensão; a tragédia, com efeito, empenha-se,
quanto possível, em não passar duma revolução do sol
ou superá-la de pouco; a epopeia não tem duração
delimitada e nisso difere.
Georg Lukács (2000, p. 25), na abertura de A teoria
do romance, argumenta que são “afortunados os tempos
Literaturando
para os quais o céu estrelado é o mapa dos caminhos
62
transitáveis e a serem transitados, e cujos ramos a luz das
estrelas ilumina”. Para o crítico húngaro, esse era o mundo
clássico, em cujo seio a Odisseia e a Ilíada foram gestadas.
Na compreensão de Lukács, a existência de heróis como
Ulisses e Aquiles é possível apenas na épica clássica, pois a
ação do tempo sobre eles não vincula qualquer aspecto
transformador, apenas engendra e atualiza a intervenção
de uma ordem superior e ideal
A épica no Brasil
Em terras brasileiras, o percurso do gênero épico
assinala uma expressão importante da produção literária.
Para Silva (2017), o início da literatura brasileira se localiza
no século XVI, a partir da inserção da tradição literária
ocidental na produção renascentista, incorporada por José
de Anchieta simultaneamente na lírica e na épica.
Posteriormente, com a épica de Bento Teixeira e a lírica
barroca do século seguinte, a consolidação da epopeia se
tornou visível:
O legado épico de Anchieta e Bento Teixeira
sedimentaria a permanência da epopeia no curso da
formação da Literatura Brasileira, marcando presença
continuada em todos os períodos literários de sua
história. A Literatura Brasileira fez da epopeia
expressão legítima de sua formação literária desde
o início, incorporando epicamente, em todas as fases
de sua evolução, a expressão nacional do momento
histórico na expressão artística do momento literário
(Silva, 2017, p. 31, grifos nossos).
Na compreensão de Silva (2017, p. 32), em
63
Anchieta, a escolha literária (épica) seguiu a inspiração
artigos, ensaios e contos
homérica, isto é, a noção “de que as culturas dos diferentes
povos se erguem sobre uma identidade heroica fundadora
de sua cosmologia”. No entanto, nos séculos posteriores,
as motivações da epopeia estiveram ligadas a construção
literária do ideal de brasilidade como resposta ao processo
colonial. Assim, “a epopeia foi uma escolha deliberada de
nossos poetas, já que, nutrindo-se do real e do mito, era a
forma poética adequada à expressão literária do viés
nacionalista da brasilidade” (Silva, 2017, p. 32).
Permaneces, Uraguai
Publicado pela primeira vez em 1769, O Uraguai, do
mineiro José Basílio da Gama, é um dos textos mais
importantes da literatura brasileira. Segundo Bosi (2022, p.
68), “o Uraguai lê-se ainda hoje com agrado, pois Basílio era
poeta de veia fácil que aprendeu na Arcádia menos o
Literaturando
artifício dos temas que o desempeno na linguagem e do
metro”. Em cinco cantos e mais de mil versos que variam
entre o sáfico e o heroico, Basílio cantou a guerra em uma
estrutura poética flexível se comparada às divisões
regradas do poema heroico.
64
A matéria-prima do poema de Basílio, a Guerra
Guaranítica, oferece uma das chaves de compreensão da
obra:
A equação tem que ser composta não entre dois
impérios apenas, mas entre três (talvez quatro)
forças: Portugal queria expandir sua fronteira sul ao
máximo, de preferência até o rio da Prata; a Espanha
queria empurrar Portugal para o norte, preservando
para si o domínio daquele rio fundamental; a terceira
força é a das Missões (que na verdade contém dois
componentes conflitantes, índios e jesuítas), que por
mais de cem anos se espraiou pelo miolo do território
sul-americano e consolidou-se como uma verdadeira
civilização, organizada, produtiva, próspera,
integrada aos mercados, etc. (Fischer, 2022, p. 18,
grifos do autor).
Nesse contexto, o Tratado de Madri, assinado em
treze de janeiro de 1750 entre Portugal e Espanha, marcaria
o começo de uma história sangrenta. Pelo acordo, Portugal
cederia a Colônia de Sacramento à Espanha e esta deveria
entregar à Portugal a área ocupada pelos Sete Povo das
Missões (margem esquerda do rio Uruguai). Segundo
Fischer (2022, p. 19), “um daqueles três atores não foi
consultado, as Missões Jesuíticas, que se vinculavam ao
mundo espanhol, [...] pagavam tributos à Espanha,
comerciavam nas praças das colônias espanholas e, não
de deliberações objetivas, o acordo firmado entre as coroas
de Portugal e Espanha explicitava as novas configurações
territoriais a serem postas em prática:
O Art.° 16 diz: “Quanto aos burgos e aldeias que Sua
Majestade Católica cede na margem oriental do Rio
Uruguai, os missionários abandoná-los-ão com seus
móveis e bagagens, levando consigo os índios para
que se estabeleçam em outras terras pertencentes à
Espanha. Os ditos índios poderão igualmente levar
seus bens, móveis e gados, as armas, pólvora e
munições que possuam. Os burgos e aldeias serão
entregues na forma prescrita à Portugal, com tôdas as
65
artigos, ensaios e contos
menos importante, os padres eram espanhóis”. Por meio
suas casas e edifícios, e a propriedade imóvel do
terreno (Lugon, 1977, p. 284-285).
Assim, cada um dos afetados pelo tratado encarou
Literaturando
as mudanças sob perspectivas distintas:
66
Para os guaranis das sete reduções condenadas, era a
espoliação, a ruína e o infortúnio, a destruição do
trabalho de muitas gerações, a deportação de mais de
trinta mil pessoas, segundo as cifras mais modestas.
Se se examinar um mapa, verifica-se que a República
Guarani ia ser amputada de metade de seu território,
abrangendo as estâncias, os yerbales, as florestas
mais ricas e mais vastas, propriedades de onze
reduções das duas margens do Uraguai (Lugon, 1977,
p. 285).
Já para os missionários:
[...] a armadilha estava ferozmente armada. Era de
prever que os guaranis reagissem. Se os padres os
apoiassem, seriam considerados rebeldes. Se não se
solidarizassem com seus fiéis, perderiam a confiança
dêstes (Lugon, 1977, p. 285).
Após várias tentativas frustradas em razão da
resistência indígena e jesuítica, em maio de 1756 os
exércitos de Portugal e Espanha invadiram as Missões.
Fischer (2017), citando os números levantados na obra de
Tau Golin 2, assinala:
Para avaliar o tamanho da tragédia, vale citar um
registro demográfico feito pelos jesuítas acerca dos
Sete Povos em 1753, logo antes do processo de
expulsão, morte ou fuga: neles haveria 6.144 famílias,
num total de 29.052 pessoas. O menor dos povos era
São Lourenço, com 1.838 pessoas; o mais populoso,
São Miguel, contava com 6.898. Compararemos esses
números com outros, do lado português: em 1780,
quatro décadas depois, a mais antiga cidade sulina,
Rio Grande, tinha 2.421 habitantes, e a aldeia de Porto
Alegre contava 1.312 habitantes (Fischer, 2017, p. 22).
O Uraguai, se lido sob a perspectiva das diversas
67
nuances históricas que o engendram, oferece ao leitor um
artigos, ensaios e contos
amplo panorama do Brasil do século XVIII. Para Silva
(2017):
Basílio da Gama, concebendo o epos nativo da saga
heroica da colonização, inicia a narrativa literária de
fundação da identidade heroica, inaugurando com O
Uraguai uma nova etapa de formação da épica
brasileira. [...] o poeta explora a contraposição das
óticas culturais do colonizado e do colonizador,
2
GOLIN, Tau. A guerra guaranítica: como os exércitos de Portugal e
Espanha destruíram os Sete Povos dos jesuítas e índios guaranis no
Rio Grande do Sul (1750-1761). Porto Alegre/Passo Fundo: Editora
da Universidade/Editora da UPF, 1998.
inerentes à aderência mítica nativa e ao fato histórico,
respectivamente, e refunde os referenciais históricos
e simbólicos no curso épico do relato (Silva, 2017, p.
63).
O campo de batalha representa, na obra, o
esplendor do guerreiro que se transmuta, isto é, que faz a
passagem do plano histórico ao mítico. Quanto à
Literaturando
identidade heroica no poema, Silva (2017, p. 64) ressalta
68
que:
É no confronto bélico que o herói conquista a
identidade épica, a batalha do Caiboaté era, portanto,
o segmento heroico que consagraria os heróis da
Guerra Guaranítica. O confronto de uma tropa
militarmente adestrada, dispondo de poderosa
artilharia, com uma tropa de índios despreparada,
armada de arco e flecha na batalha do Caiboaté,
evento culminante da guerra guaranítica, em que
morreram cerca de mil e quatrocentos índios em
apenas uma hora de luta, contra meia dúzia de feridos
e apenas uma morte para cada um dos exércitos
aliados, caracterizado do ponto de vista militar um
deliberado massacre. Consequentemente, do ponto
de vista épico, a batalha do Caiboaté consagra apenas
os heróis indígenas que, combatendo a tropa inimiga
com arco e flecha, conquistam a identidade heroica
no campo de batalha.
No que concerne à estrutura, a intenção épica pode
ser percebida a partir dos elementos tradicionais como
invocação, proposição, dedicação, narração e episódio
lírico. A Guerra Guaranítica, que oferece as bases para a
matéria épica, fundamenta as duas dimensões do poema
heroico (real e mítica). Essa matéria é articulada pelo
embate entre os índios das reduções, chefiados por
Cacambo, e a tropa luso-hispânica, sob o comando de
Gomes Freire de Andrade. O confronto armado no campo
de batalha delimita-se pela alternância da ótica
colonizador-colonizado na instância de enunciação. A
abertura do poema, in medias res, reproduz o resultado da
Fumam ainda nas desertas praias
Lagos de sangue tépidos e impuros
Em que ondeiam cadáveres despidos,
Pasto de corvos. Dura inda nos vales
O rouco som da irada da artilheria.
(Gama, 2022, p. 35, grifos nossos).
Com efeito, o força bélica do exército chefiado por
Gomes Freire de Andrade é contrastada com o sangue
derramado pelos guerreiros mortos no confronto. Ouve-se
ainda o som da guerra, que ecoa, persistente e vívido, como
símbolo funesto. Em seguida, o herói português (Gomes
69
artigos, ensaios e contos
fatídica batalha que levou ao massacre indígena:
Freire de Andrade) é louvado por subjugar os missionários
jesuítas, freando, dessa forma, a expansão da Companhia
de Jesus:
Literaturando
MUSA, honremos o herói que o povo rude
Subjugou do Uraguai, e no sangue
Dos decretos reais lavou a afronta.
Ai tanto custas, ambição de império!
(Gama, 2022, p. 35, grifos nossos).
70
No poema, a caracterização de vilania atribuída aos
padres jesuítas é evidente. A Companhia de Jesus é descrita
como gananciosa por desejar expandir o império para além
das terras (reduções) em que estavam. Os padres são vistos
como tirânicos pela influência que exercem sobre os
indígenas, além de enganadores pôr os colocarem contra
os portugueses e espanhóis a fim de usá-los na guerra. Tal
caracterização é evidenciada na conversa que os líderes
indígenas, Sepé e Cacambo, têm com o general português
no Canto II:
[...] Esse absoluto
Império ilimitado, que exercitam
Em vós os padres, como vós, vassalos,
É império tirânico que usurpam. Nem são senhores,
nem vós sois escravos.
(Gama, 2022, p. 65, grifos nossos).
A fala acima proferida por Gomes Freire Andrade
destaca a posição em que os missionários são colocados na
obra: recebem o papel de inimigos a serem combatidos e
se revelam os verdadeiros culpados pelos conflitos e a
guerra. Ao se referir aos padres como atuantes de um
“império ilimitado” e “tirânico”, percebe-se a ideia de que
eles possuem poder e influência e desejam governar, tendo
como seus súditos e submissos “vós, vassalos”, ou seja, os
indígenas. Esse perfil é mantido até o fim do poema, como,
por exemplo, na descrição da pintura do teto do templo
que pertencia aos jesuítas, presente no Canto V:
71
artigos, ensaios e contos
[...] No alto sólio
Estava dando leis ao mundo inteiro
A Companhia. Os cetros, e as coroas,
E as tiaras, e as púrpuras em torno Semeadas no
chão. Tinha de um lado Dádivas corruptoras: do outro
lado,
Sobre os brancos altares suspendidos, Agudos ferros,
que gotejam sangue.
Por esta mão ao pé dos altos muros
Um dos Henriques perde a vida e o reino.
E cai por esta mão, oh céus!, debalde Rodeado dos
seus, o outro Henrique,
Delícia do seu povo e dos humanos. Príncipes, o seu
sangue é vossa ofensa. Novos crimes prepara o
horrendo monstro. Armai o braço vingador: descreva
Seus tortos sulcos o luzente arado
Sobre o seu trono; nem aos tardos netos
O lugar em que foi mostrar-se possa.
(Gama, 2022, p. 123-125, grifos nossos).
Tal imagem funciona como comprovação final da
ganância e dos objetivos obscuros dos jesuítas relatados na
obra. Nos versos: “Os cetros, e as coroas, / E as tiaras, e as
púrpuras em torno / Semeadas no chão” há a alegação das
Literaturando
futuras intenções dos jesuítas com relação não só as terras
72
que cercam o Rio Uruguai, pelas quais batalharam, mas
também a outros países, objetivando tornarem-se
dominadores desses também.
Nos versos: “Por esta mão ao pé dos altos muros /
Um dos Henriques perde a vida e o reino. / E cai por esta
mão”, a imagem retratada faz referência à morte do rei
francês Henrique III, assassinado por fr. Jacques Clemente,
em 1589. Esses acontecimentos são apresentados na obra
como algo almejado e planejado pelos jesuítas que
estavam naquelas terras. Da mesma forma, os versos
seguintes: “debalde / Rodeado dos seus, o outro Henrique,
/ Delícia do seu povo e dos humanos”, fazem alusão à morte
de seu sucessor, Henrique IV, como também motivada por
tais tiranos.
O explícito “antijesuitismo” assumido na obra pode
ser explicado como um artifício empregado por Basílio da
Gama para conciliar o heroísmo do indígena e o encômio
feito a Marquês de Pombal (Bosi, 2022). Tal louvação se
sobressai no momento da visão mística que Lindoia tem
com o auxílio da sacerdotisa Tanajura. Na cena, a indígena,
já viúva, vê a cidade de Lisboa, antes destruída pela guerra,
e agora reconstruída pelas mãos de seu salvador:
As expressões grifadas acima se referem ao Conde
de Oeiras, futuro Marquês de Pombal (1769), a quem a obra
é oferecida. Sobre os versos “Espírito Constante, / Gênio de
Alcides” é interessante salientar que, na mitologia grega,
“Alcides” é o nome de batismo dado ao herói Hércules.
Dessa forma, tal escolha para fazer menção a Pombal
expressa o objetivo do autor em descrevê-lo como alguém
muito notável, passível de ser comparado a um dos maiores
heróis gregos, alguém que, como parte de seus futuros e
73
artigos, ensaios e contos
[...] Mas, do céu sereno
Em branca nuvem, Próvida Donzela Rapidamente
desce e lhe apresenta,
De sua mão, Espírito Constante,
Gênio de Alcides, que de negros monstros Despeja o
mundo e enxuga o pranto à pátria [...] Já mais bela
Nasce Lisboa de entre as cinzas — glória
Do grande conde [...]
(Gama, 2022, p. 97, grifos nossos).
grandiosos feitos, expulsaria os jesuítas e reconstruiria a
capital portuguesa (Fischer, 2017).
A respeito do indígena, mesmo estando em posição
oposta aos “heróis” portugueses e espanhóis, sua imagem
é retratada como o “enganado” e o “inocente” em oposição
às ambições e aos planos dos jesuítas. Suas principais
figuras representantes na obra são Sepé e Cacambo, os
Literaturando
líderes. A qualidade de verdadeiro herói da obra recai sobre
74
o indígena, especificada inicialmente em Sepé e
posteriormente na figura de Cacambo, pois eles lutam
contra forças superiores às suas e têm entre suas
características as do guerreiro honrado, corajoso e
incansável, aquele que dá exemplo, ainda que não tenha
sido vitorioso em sua luta:
Jaz o ilustre Cacambo — entre os gentios Único que,
na paz e em dura guerra,
De virtude e valor deu claro exemplo. Chorado
ocultamente e sem as honras
De régio funeral, desconhecida
Pouca terra os honrados ossos cobre.
Se é que os seus ossos cobre alguma terra. Cruéis
ministros, encobri ao menos
A funesta notícia.
(Gama, 2022, p. 93, grifos nossos).
Há também no episódio da morte de Cacambo a
desrealização do fato histórico e a realização épica. As
ações e sentimentos encarnados pelos indígenas no poema
mostram que eles são os únicos representantes do amor e
da fidelidade, atendendo às características de heróis
exemplares e honrados e expressando os sentidos de
natureza e liberdade. Esses sentidos podem ser
encontrados também nas cenas da morte dos indígenas
Sepé e Lindoia, o primeiro morto em combate, defendendo
sua terra, povo e direitos, e a segunda escolhendo morrer
em nome do amor (ou, especificamente, em razão da perda
dele). Isso ocorre em contraste com a má fé incumbida aos
portugueses:
MUSA, honremos o herói que o povo rude
Subjugou do Uraguai, e no seu sangue
Dos decretos reais lavou a afronta.
(Gama, 2022, p. 35, grifos nossos).
Nos versos do excerto acima, o militar português
Gomes Freire de Andrade é descrito como o herói que deve
ser louvado pelos seus feitos, isto é, por ter subjugado o
povo rude do Uraguai. Entretanto, observa-se que as
justificativas para atribuir a ele o título de herói não são as
75
artigos, ensaios e contos
jesuítas e até mesmo com a grandiosidade ilustrada dos
mesmas utilizadas para a caracterização do herói na
tradição épica. Em relação aos militares portugueses, é
possível encontrar no decorrer da obra intenções e práticas
sanguinolentas que não condizem com o que se espera do
herói épico. O exército português é engrandecido e
exaltado no poema por ter derrotado os vilões jesuítas e
seus seguidores indígenas, porém, em vista do exposto,
Literaturando
nota-se que esses feitos não permitem classificá-lo como
76
detentor de heroísmo épico na obra.
Tessitura da história: caminhos e tramas
A história é uma tapeçaria conjuntiva de
formulações com elementos estruturais específicos a partir
dos quais os historiadores tecem as narrativas. Dessa
forma, o discurso de aspecto histórico caracteriza o ponto
de vista, encadeia o espaço e organiza as figuras de enredo
tal qual o discurso ficcional. No prefácio de Meta-história: a
imaginação histórica do século XIX, Hayden White assinala
que, no discurso histórico,
[...] o historiador realiza um ato essencialmente
poético, em que prefigura o campo histórico e o
constitui como um domínio no qual é possível aplicar
as teorias específicas que utilizará para explicar 'o que
estava realmente acontecendo' nele. Esse ato de
prefiguração pode, por sua vez, assumir certo número
de formas cujos tipos são caracterizáveis pelos modos
linguísticos em que estão vazados (White, 2019, p.
12).
White
(2019),
partindo
das
categorias
estabelecidas por Northrop Frye em Anatomia da Crítica,
propõe quatro modos de elaboração de enredo mediante
os quais o historiador pode “esculpir” os acontecimentos
históricos, a saber: a estória romanesca, a tragédia, a
comédia
e
a
sátira.
A
estória
romanesca
“é
fundamentalmente um drama de auto-identificação
simbolizado pela aptidão do herói para transcender o
77
mundo da experiência, vencê-lo e libertar-se dele no final”,
artigos, ensaios e contos
como também “um drama do triunfo do bem sobre o mal,
da virtude sobre o vício, da luz sobre a treva” (White, 2019,
p. 24). A sátira, para o teórico, configura-se como um
“drama da disjunção, drama dominado pelo temor de que
o homem é essencialmente um cativo do mundo, e não seu
senhor” (White, 2019, p. 24). A comédia oferece uma
esperança temporária de vitória do homem sobre o mundo
no qual ele está inserido. Nas palavras do autor, isso ocorre
em razão da “perspectiva de reconciliações ocasionais das
forças em jogo nos mundos social e natural” (White, 2019,
p. 24). Por fim, a tragédia apresenta a “queda do
protagonista e o abalo do mundo que ele habita”, e “para
os expectadores da luta houve uma aquisição de
conhecimento” (White, 2019, p. 24).
Segundo a compreensão de Hayden White, na
tessitura da história, os historiadores relacionam os
eventos a uma dessas categorias, cujo resultado, um
Literaturando
trabalho que ambiciona a objetividade, constitui-se de
78
modo muito análogo ao discurso ficcional. A composição
de O Uraguai, cuja matéria-prima de elaboração narrativa
encontra-se na Guerra Guaranítica (1753-1756), parece
corresponder à articulação da estória romanesca, uma vez
que a luta do bem contra o mal, representado pelo embate
afoito entre as forças luso-espanholas e os índios guaranis,
permeiam a obra toda. Não obstante, a morte de Sepé 3 e
3
Em um dos momentos de maior tensão da obra, no fim do Canto
II, o líder indígena é assassinado na batalha contra o exército lusoespanhol. Ao morrer na guerra, Sepé faz a passagem do plano
histórico ao plano mítico, concretizando-se, dessa forma, a matéria
épica. O texto de Basílio da Gama ressalta a bravura do herói
indígena, cujo legado permanece vivo até hoje, mais de duzentos
anos depois, no âmago da cultura rio-grandense, para a qual ele é
uma espécie de herói da resistência: “fez proezas Sepé naquele dia.
/ Conhecido de todos, no perigo / Mostrava descoberto o rosto e
peito, / Forçado os seus co’ exemplos e co’ as palavras” (Gama, 2022,
p. 79).
posteriormente e de Cacambo sinaliza a libertação do herói
em relação ao mundo:
[...] Rende-te ou morre,
Grita o governador; e o tape altivo,
Sem responder, encurva o arco, e a seta
Despede, e nela lhe prepara a morte.
Enganou-se esta vez. A seta um pouco
Declina, e açouta o rosto a leve pluma.
Não quis deixar o vencimento incerto
Por mais tempo o espanhol e, arrebatado,
Com a pistola lhe fez tiro aos peitos.
Era pequeno o espaço, e fez o tiro
No corpo desarmado estrago horrendo.
Viam-se dentro, pelas rotas costas,
Palpitar as entranhas. Quis três vezes
Levantar-se do chão: caiu três vezes,
E os olhos, já nadando em fria morte,
Lhe cobriu sombra escura e férreo sono.
Morto o grande Sepé, já não resistem
As tímidas esquadras [...]
(Gama, 2022, p. 81, grifos nossos).
79
batalha, representa a luta do herói contra as forças da
desventura, o que corresponde, na perspectiva whiteana, à
transcendência
do
mundo
da
experiência
e
à
autolibertação em relação a ele. O mesmo ocorre com
Cacambo que, após ter uma visão de Sepé o encorajando a
artigos, ensaios e contos
O desfecho de Sepé, assassinado cruelmente na
lutar, incendeia o acampamento dos luso-espanhóis e
retorna para juntos dos padres, quando é traído e
Literaturando
assassinado por Balda:
80
Mas não sabia que a fortuna entanto
Lhe preparava a última ruína.
Quanto seria mais ditoso! Quanto
Melhor lhe fora o acabar a vida
Na frente do inimigo, em campo aberto
Ou sobre os restos de abrasadas tendas
Obra do seu valor! [...]
Ou foi que Balda,
Engenhoso e sutil, quis desfazer-se
Da presença importuna e perigosa
Do índio generoso; [...]
Tornar não esperado e vitorioso
Foi todo seu delito. Não consente
O cauteloso Balda que Lindoia
Chegue a falar ao seu esposo; e manda
Que uma escura prisão o esconda a aparte
Da luz do sol.
[...] até que à força
De desgostos, de mágoa e de saudade,
Por meio de um licor desconhecido,
Que lhe deu compassivo o santo padre,
Jaz o ilustre Cacambo — entre os gentios
Único que, na paz e em dura guerra,
De virtude e valor deu claro exemplo.
Chorado ocultamente e sem as honras
De régio funeral, desconhecida
Pouca terra os honrados ossos cobre.
Se é que os seus ossos cobre alguma terra.
(Gama, 2022, p. 91-93, grifos nossos).
Há em O Uraguai um discurso histórico que não
deixa dúvidas quanto ao aspecto unívoco. A tirania do
jesuíta, que exerce opressão pelo controle da ingenuidade
do indígena, é um mal a ser combatido pelas forças
portuguesas e espanholas. Ao tecer os fios da história na
composição literária, Basílio da Gama tenta conciliar um
jogo de forças distinto entre si com vistas a sobrepujar a
imagem de Marquês de Pombal.
Para Hayden White (2019, p. 24), o modo trágico
vincula a “queda do protagonista e o abalo do mundo que
efetivamente atinge os heróis: Cacambo, que se faz herói
na morte, por meio da qual a realização épica toma forma,
e Lindoia, cujo suicídio 4 após a morte de Cacambo eleva o
prestígio do amor mediante à resistência diante das
agruras sofridas:
4
O local da morte de Lindoia é caracterizado por meio do bucolismo
e da exaltação da natureza, elementos comuns na produção árcade,
como observável nos versos: “entram enfim na mais remota e
interna / Parte do antigo bosque, escuro e negro, / Onde ao pé de
uma lapa cavernosa / Cobre uma rouca fonte, que murmura, / Curva
latada de jasmins e rosas” (Gama, 2022, p. 113).
81
artigos, ensaios e contos
ele habita”, o que alude, em O Uraguai, à derrocada que
Literaturando
82
Um frio susto corre pelas veias
De Caitutu, que deixa os seus no campo;
E a irmã por entre as sombras do arvoredo
Busca co’ a vista, e teme de encontrá-la.
Entram enfim na mais remota e interna
Parte do antigo bosque, escuro e negro,
Onde ao pé de uma lapa cavernosa
Cobre uma rouca fonte, que murmura,
Curva latada de jasmins e rosas.
Este lugar delicioso e triste,
Cansada de viver, tinha escolhido
Para morrer a mísera Lindoia.
[...] Mais de perto,
Descobrem que se enrola no seu corpo
Verde serpente, e lhe passeia, e cinge
Pescoço e braços, e lhe lambe o seio.
[...]
Leva nos braços a infeliz Lindoia
O desgraçado irmão, que ao despertá-la
Conhece, com que dor!, no frio rosto
Os sinais do veneno, e vê ferido
Pelo dente sutil o brando peito.
[...]
Nos olhos Caitutu não sofre o pranto,
E rompe em profundíssimos suspiros,
Lendo na testa da fronteira gruta,
De sua mão já trêmula gravado,
O alheio crime e a voluntária morte.
E por todas as partes repetido
O suspirado nome de Cacambo.
Inda conserva o pálido semblante
Um não sei quê de magoado e triste,
Que os corações mais duros enternece,
Tanto era bela no seu rosto a morte!
(Gama, 2022, p. 113-117, grifos nossos).
Desse modo, a queda dos heróis indígenas na obra
sinaliza grandeza e marca a resistência diante do abalo
sofrido, motivado pelas forças que os compelem.
Considerações finais
O antijesuitismo e a louvação ao Marquês de
Pombal e aos feitos portugueses são características claras
e marcantes na obra O Uraguai, do poeta mineiro Basílio da
Gama. Esse pendor pode ser analisado através da forma
83
pela qual o autor constrói os elementos da narrativa, dando
artigos, ensaios e contos
a cada parte envolvida um papel: o vilão, o louvado e o
herói, enquanto se mantém dentro da estética épica e da
compleição da historicidade. O fato de a obra se tratar de
um poema épico permitiu que tais elementos fossem
possíveis, já que os aspectos narrativo e lírico coexistem
dentro de tal gênero literário, o que oportuniza a
estruturação das dimensões histórica, maravilhosa e
literária na narrativa. A temática da obra, com conotações
políticas e críticas à instituição jesuítica, bem como a
exaltação do bucolismo, demonstra a primazia do
Arcadismo sobre a estética vigente no contexto da
literatura brasileira da época.
Dessa forma, O Uraguai trata o indígena como o
verdadeiro herói, inocente e corajoso apesar da derrota
sofrida, e o jesuíta como seu enganador, tomando a
postura de vilão e inimigo, responsável pelo torpor da
guerra e por todos os males apresentados na obra. Há
Literaturando
nesse artifício de atribuição de vilania à Companhia de
84
Jesus a possível conciliação dessas forças, assim como o
encômio feito a Pombal e aos lusitanos, os vencedores do
confronto final na obra.
Na tentativa de conciliar essas forças distintas,
Basílio da Gama reescreve, pela via estética, a história da
Guerra Guaranítica à luz do Arcadismo, entre a qual
encontram-se a transcendência do herói indígena em
relação a seu mundo imediato e sua queda frente ao abalo
desse mundo. Com efeito, Basílio cantou o fogo da guerra
e os rumores da artilharia para que O Uraguai
permanecesse e gozasse a luz serena e pura nos bosques da
Arcádia e na história da literatura brasileira.
Referências
ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. Trad.
Jaime Bruna. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2005.
BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo:
Cultrix, 2022.
CANDIDO. A. Formação da literatura brasileira: momentos
decisivos. 6. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.
FISCHER, L. A. O Uraguai: seu autor, seu contexto, suas
virtudes. In: GAMA, B. O Uraguai. Porto Alegre: L&PM, 2022.
GAMA, B. O Uraguai. Porto Alegre: L&PM, 2022.
LUGON, C. A república "comunista" cristã dos guaranis. Trad.
Álvaro Cabral. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
SILVA, A. V. Formação épica da literatura brasileira. São Paulo:
Paco, 2017.
WHITE, H. Meta-história: a imaginação histórica no século XIX.
Trad. José Laurênio de Melo. 2. ed. São Paulo: Universidade de
São Paulo, 2019.
artigos, ensaios e contos
LUKÁCS, G. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico
sobre as formas da grande épica. Trad. José Marcos Mariani de
Macedo. São Paulo: Duas Cidades / Editora 34, 2000.
85
86
Literaturando
Ensaios
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.84.03
A literatura infanto-juvenil
como ferramenta de
emancipação da criança e
do adolescente
Antonio Vinicius Tomacheski
Antonio Vinicius Tomacheski é Acadêmico do Curso de Letras da
Universidade do Oeste do Paraná.
Contato: tomacheski.antonio@gmail.com
O que é Literatura Infantil?
Literaturando
Ao adentrar no surgimento da Literatura Infantil e
90
suas principais características, é necessário conceituar do
que se trata o gênero abordado nesse ensaio. Para início de
entendimento, é importante destacar que o conceito de
literatura infantil está intrinsecamente ligado ao que
conhecemos por infância, ou melhor, ao sentido de infância
e juventude construído ao longo das décadas em nossa
sociedade.
O conhecimento que temos hoje sobre ser criança e
jovem é um processo que se iniciou há muito tempo e ainda
se encontra em desconstrução, pois envolve múltiplos
fatores, como veremos a seguir. Segundo, José Gregorin
Filho (2010, p. 16):
Literatura infantil é, antes de tudo, literatura; ou
melhor, é arte: fenômeno de criatividade que
representa o mundo, o homem, e a vida, através da
palavra. Funde os sonhos e a vida prática, o imaginário
e o real, os ideais e sua possível/impossível realização.
São, portanto, textos capazes de provocar
sentimentos que instigam a curiosidade no jovem leitor,
transportando-o ao mundo da fantasia: lugar imaginário
onde a criança pode ou não se identificar com personagens,
espaços, histórias e acontecimentos. Nesse lugar fictício,
espaço do imaginário, o jovem leitor exercita a criatividade
a partir das expectativas que cria sobre determinada obra,
bem como, a formulação de hipóteses e possíveis
desfechos das narrativas que lê.
Quanto a sua forma, o gênero infanto-juvenil está
poesias, contos, fábulas, mitos, narrativas de ficção,
histórias de fantasia, contos de fadas e histórias em
quadrinhos. Em relação ao conteúdo desses textos,
revelam um arcabouço de possibilidades que variam entre
idades, gêneros e classes sociais de crianças e jovens
leitores.
A origem da Literatura destinada ao público infantil
O nascimento de um gênero literário cujas
características e estruturas textuais resultam na realização
91
artigos, ensaios e contos
relacionado a tipologias tradicionais como poemas,
mágica da leitura e na emancipação de crianças e
adolescentes faz parte de um processo construtivo que
vem se desenvolvendo desde sua origem entre os séculos
XVII e XVIII. Segundo Regina Zilberman (2012, p. 22-23),
pesquisadora de Literatura Infantil e autora de diversos
Literaturando
estudos sobre a relação entre literatura e infância:
92
Entre os gêneros literários existentes, um dos mais
recentes é constituído pela literatura infantil, que
apareceu durante o século XVIII, época em que as
mudanças na estrutura da sociedade provocaram
efeitos no âmbito artístico, mudanças que vigoram
até os dias atuais.
As mudanças ocorridas na estrutura da sociedade,
comentadas pela teórica, referem-se à decadência de
gêneros clássicos como a epopeia e a tragédia que
narravam
histórias
mitológicas
e
apresentavam
personagens da aristocracia. Esses e outros gêneros deram
lugar a outras formas, por exemplo: o romance e o drama,
para atender as mudanças da classe burguesa em
ascensão, responsável pela formulação do conceito de
infância que revigora até os dias atuais.
É com o surgimento da burguesia que o conceito de
infância ganha um significado, a partir daqui a criança
passa a representar a imagem central do seio familiar, onde
os pais têm a tarefa de zelar pela saúde e participar
ativamente no processo de desenvolvimento intelectual de
seus filhos. Entretanto:
A nova valorização da infância gerou maior união
familiar, mas igualmente meios de controle do
desenvolvimento intelectual da criança e
manipulação de suas emoções. Literatura infantil e
escola, inventada a primeira e reformada a segunda
(Zilberman, 2012, p. 6).
Se por um lado, o nascimento da burguesia
possibilitou maior aproximação entre pais e filhos, por
outro, criou formas de manipulação, subestimação,
imposição de valores sociais e regras de comportamento à
93
criança por meio das histórias narradas nos textos a ela
artigos, ensaios e contos
dirigida. Tais medidas tomadas pela burguesia por meio da
literatura visava o domínio intelectual do jovem em
detrimento da manutenção de pensamentos tradicionais
perpassados entre gerações.
Outro acontecimento determinante para a origem
e disseminação da Literatura Infantil está no avanço
causado pela revolução industrial, que possibilitou a
produção de livros em maior escola:
[...] o progresso das técnicas de industrialização
chegou à arte literária, facilitando a produção em
série de obras e de materiais de fácil distribuição e
consumo, fenômeno posteriormente designado
como cultura de massa (Zilberman, 2012, p. 22).
Desde então, as obras foram se tornando cada vez
mais acessíveis para o público que já tinha acesso a elas,
mas, principalmente para a maioria da população que não
tinha direito ao conhecimento. Pela primeira vez pessoas
Literaturando
consideradas comuns puderam comprar livros para seus
94
filhos. Tal evolução permitiu que as classes sociais menos
privilegiadas da época tivessem acesso à cultura e o direito
a literatura.
A Literatura como instrumento pedagógico
Outro fator citado na obra de Zilberman, intitulada:
A Literatura Infantil na Escola, fala sobre a natureza
formativa do espaço educacional, que enxergou na
literatura um forte instrumento para o ensino de valores.
Segundo a mesma teórica:
A aproximação entre a instituição e o gênero literário
não é fortuita. Sintoma disso é que os primeiros textos
para crianças são escritos por pedagogos e
professoras, com marcante intuito educativo
(Zilberman, 2012, p. 6).
A princípio esses textos não tinham pretensão de
emancipar as crianças no desenvolvimento da imaginação,
da criatividade, da sensibilidade e da arte, do contrário. A
literatura dirigida à infância possuía caráter educativo
oriundos dos valores sociais tradicionais da época.
Daí se deve também o nascimento do gênero
infantil, ou seja, da aproximação da pedagogia, envolta nos
processos de alfabetização dos pequenos leitores em
formação.
Segundo o pesquisador Edmir Perroti (1896), no
campo educacional, torna-se necessário distinguir o
utilitário do estético, isto é, deve-se pensar nas funções dos
moralmente, dos que possuem caráter artístico e que,
portanto, merecem ser lidos pelos pequenos.
O papel do educador no processo de escolha dos
textos
No Universo da Literatura Infantil cabe ao educador
selecionar os textos que serão trabalhados em sala. As
temáticas envoltas nos materiais elaborados pelo
mediador devem condizer com a faixa etária, bem como a
identidade de cada turma escolar para ocorrer o processo
95
artigos, ensaios e contos
textos, delimitando quais cumprem o papel de ensinar
de leitura e para que a aquisição do conteúdo, por parte dos
estudantes, se realize de maneira eficaz.
Contudo, deve-se também pensar em obras que
possibilitem ao estudante relacionar o texto à sua
exterioridade, considerando fatores históricos, culturais e
sociais para que exista uma ampla reflexão por parte dos
Literaturando
estudantes acerca de uma determinada obra:
96
Quem se vê na posição de mediador de leitura tem por
dever ser bastante exigente e seletivo nos títulos que
indica, não se deixando satisfazer com texto banais,
didatizados, simplificadores, feitos de encomenda
pelo mercado para atender a esta ou aquela faixa
etária, a esta ou aquela série escolar, a este ou aquele
tema da moda, por inserir-se nas diretrizes
educacionais A, B ou C. (Ceccantini, 2011, p. 3).
Ao observar esses aspectos, o educador seleciona
obras de qualidade, textos que facilitam o surgimento de
identificação do estudante com um personagem ou
acontecimento ocorrido na narrativa por eles apreciada;
evita obras superficiais que impedem o educador de
explorar temas sensíveis. Até mesmo, obras feitas com o
intuito de atender a um mercado específico visando
somente o lucro capital.
Do mesmo modo, deve se pensar em textos que
desafiem os estudantes, deslocando-os da zona de
conforto da leitura, segundo João Luís Ceccantini (2011, p.
3):
É preciso não ter medo de colocar nas mãos das
crianças, o quanto antes, textos literários densos, de
maior complexidade, de ampla envergadura, textos
cuja leitura deixe marcas profundas na personalidade
de quem os lê.
Cada vez mais, é preciso desafiar os jovens leitores
a saírem da zona de conforto literária, buscando expandir
seus horizontes, torna-se papel do educador desafiar os
jovens leitores para conhecer o novo, o diferente.
materiais, diz respeito a responsabilidade do professor em
ter um bom repertório literário. É necessário que o
educador seja um leitor assíduo:
Essa postura desafiadora exige que o mediador de
leitura/professor seja ele mesmo um leitor voraz;
possua um amplo repertório de leituras,
continuamente atualizado, de modo a poder escolher
de fato a cereja do bolo e a não levar gato por lebre
(Ceccantini, 2011, p. 5).
artigos, ensaios e contos
Outro fator importante a respeito da seleção de
97
É indicado que esse profissional possua amplo
conhecimentos das obras com as quais irá trabalhar em
aula. Ele deve construir critérios rigorosos e exigentes na
seleção de textos que irá levar à sala de aula
A Literatura como ferramenta de identificação do
Literaturando
jovem leitor
98
No capítulo 7, A geração 70, Impasses e Renovação,
do livro O Texto Sedutor na Literatura Infantil, o professor
aposentado e escritor, Edmir Perrotti, escreve sobre o
discurso utilitário no ensino da literatura nas escolas,
discurso que segundo o professor: “procurou sempre
oferecer a crianças e jovens atitudes morais de conduta a
serem seguidos” (1986, p. 2). E analisa, por meio de
exemplos, obras que buscaram formas de se desprender do
utilitarismo tradicional no uso de inovações semânticas.
Uma mudança perceptível, ainda que tímida, nesse
paradigma, está na obra infanto-juvenil escrita por Ana
Maria Machado, em 1979, intitulada: Raul da Ferrugem
Azul.
Embora, segundo o autor, a obra se encaixe nos
preceitos utilitários, consegue de alguma forma se
desprender do modelo tradicional ao apresentar novos
conteúdos como: 1) A valorização da emoção; 2) O
reconhecimento de dificuldades psicológicas da criança
(ignorado no modelo tradicional); 3) A valorização da
criança ativa, participante de sua história; 4) A valorização
da mulher, enquanto ser ativo. 5) O reconhecimento do
saber popular como forma de libertação.
Essas e outras inovações apresentadas nas demais
obras analisadas no livro, apontam para as diferenças de
percepções da realidade ao longo dos anos. Todas as
mudanças de paradigma se apoiam na inserção de
temáticas diversas nas histórias que antes não ganhavam
espaço. É evidente a evolução que as histórias de literatura
Histórias que questionam o preconceito racial e de
gênero;
histórias
que
apresentam
personagens
homossexuais superando conflitos pessoais e externos,
construindo laços e participando ativamente da narrativa;
histórias que conversam sobre diferenças entre classes
sociais e econômicas etc. São exemplos de como a
literatura que levamos as crianças servem como
instrumento
de
representatividade.
emancipação
por
meio
da
99
artigos, ensaios e contos
infanto-juvenil vêm passando desde a década de 70.
Considerações finais
Em síntese, o que conhecemos hoje por literatura
infanto-juvenil se deve as transformações pelas quais o
gênero literário passou desde seu surgimento.
Destaca-se a atual inquietação na busca de uma
definição para o conceito de literatura infantil e para o
Literaturando
papel importante que possui, sendo ela o lugar onde a
100
criança se permite disfrutar do estado da arte, da estética e
dar asas a sua imaginação.
Ao término deste ensaio, conclui-se que a literatura
servindo unicamente com propósito pedagógico e
pragmático na escola, no processo do desenvolvimento
infantil, retira da criança a magia da apreciação; o caráter
imaginativo; o estado da arte e a fantasia de fazer parte de
um outro universo.
A proíbe de realizar-se numa outra existência sendo
ela igualmente ou mais complexa que sua realidade
imediata, criada a partir do conhecimento de mundo
individual, cuja influência das condições sociais nas quais
vive, lhe permite sonhar
Referências
CECCANTINI, João Luís. Literatura Infantil: a narrativa.
UNIVESP, 2011.
FILHO, José Nicolau Gregorin. Literatura Infantil: múltiplas
linguagens na formação de leitores. Melhoramentos, 2010.
PERROTI, Edmir. O Texto Sedutor na Literatura Infantil. São
Paulo: Icone, 1986. (Coleção Educação Crítica).
ZILBERMAN, Regina. A Literatura Infantil na Escola. São Paulo:
Global, 2012.
101
artigos, ensaios e contos
102
Literaturando
Contos
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.84.04
A dama da noite
Giovanna Victória Pilotti
Giovanna Victória Pilotti é Acadêmica do Curso de Letras da
Universidade do Oeste do Paraná.
Contato: giovannapilotti660@gmail.com
Em uma bela tarde de outono, um jovem rapaz
estava sentado por mais um dia na mesa 9 de um café, já
era de costume, às 15h a mesa estava aguardando sua
Literaturando
reserva de um dono de uma fábrica de tecidos para que,
106
assim pudesse tomar seu cappuccino acompanhado de um
belo bolo enquanto lia o jornal. Arthur Rothgar,
proprietário do Ateliê Rothgar, do qual foi herdado de seu
pai após uma trágica morte devido a uma cardiopatia.
Assim como o empreendimento, infelizmente, o rapaz
também nasceu com tal doença e sabia que isso faria com
que tivesse poucos anos de vida pela frente, isso fez com
que o seu pensamento em relação a criar uma família
mudasse, nada colocava em sua cabeça que um dia se
casaria, além disso, sua aparência não contribuía.
Diversas moças frequentavam seu negócio atrás da
matéria prima de seus belíssimos vestidos, mas, nenhuma
se encantava por tal. O rapaz, pelo qual todos tinham
ciência de quem se retratava, era um grande frequentador
de bordéis, buscava beber e aproveitar a vida através das
festas das quais ele mesmo bancava. Segundo o
pensamento
dele,
somente
pagando
conseguiria
conquistar o prazer de uma mulher bela, porém, muitas das
vezes nem o dinheiro que tinha pagava por isso, a fábrica
estava falindo, então pouco dinheiro ainda lhe restava, da
mesma forma, o homem gastava como um milionário.
Certo dia, enquanto estava festejando num bordel,
seus olhos deram de encontro com os de Ângela
Courtenay, mesmo que ambas as belezas não fossem de
muito agrado, algo entre eles ornou, foram de encontro um
ao outro e começaram uma conversa um tanto quanto
peculiar. Ângela era uma das mulheres que trabalhavam no
cafetina, era a mulher que menos lhe dava lucro. O pouco
de diálogo resultou em uma noite juntos, que tristemente
acabou após três batidas na porta, a cafetina apareceu para
a cobrança...
— Bom dia, queridos pombinhos! Arthur, já está na
hora de ir embora e deixar minha mocinha trabalhar, pode
acertar sua conta no caixa lá embaixo.
— Ah, bom dia, Bruna. Estou indo já, obrigado. —
Respondeu assustado com a presença.
107
artigos, ensaios e contos
bordel, estava quase à beira da rua, pois, segundo a
Sendo assim, colocou suas roupas e seguiu até o
caixa onde pagou com as últimas notas que restavam e
assim seguiu até a fábrica, hoje seria mais um dia pelo qual
passaria por apuros se não vendesse, não havia mais nada
dentro de casa, a não ser uma garrafa de cachaça e suas
roupas, boa parte de seus móveis estavam penhorados
para arcar com as dívidas. Mas, pelo movimento da semana
Literaturando
que se passou, dificilmente venderia bem naquele dia, ao
108
abrir a loja notou-se que logo abaixo da porta havia no
mínimo sete cartas de aviso de despejo, e em 48 horas se o
aluguel não fosse pago, a ordem de despejo seria validada
e os móveis recolhidos... Apesar de todos os problemas do
qual o mesmo deveria resolver, na cabeça se passava um
filme da noite anterior com Ângela, mesmo que não
estivesse nenhum pouco sóbrio aquela dama teria mexido
com o seu psicológico, ao deixar a cama, não a viu, e talvez
não a visse tão cedo também.
A venda daquele dia o surpreendeu grandemente,
conseguiu o dinheiro do aluguel em um só dia, o que lhe
restou foi o que garantia que sua fome seria cessada
durante aquela noite, sem mais delongas foi até o mercado
mais próximo e fez um macarrão à bolonhesa, do qual
gostava tanto. Embora tivesse boa parte de seus maiores
problemas resolvidos, algo faltava, sentia metade do seu
ser esvaído, aquilo que antes de conhecer a moça nunca
havia acontecido, será que uma paixão estaria ali se
rebelando? Arthur sabia que dificilmente a encontraria
pelas ruas ou até mesmo em sua fábrica, afinal, era moça
da vida, das qual dificilmente saia do ambiente do qual
trabalhava, até porque a classe não era respeitada. O medo
da paixão era constante em seu coração, assim como a
incógnita entre saber se ela estava pensativa assim como
ele.
Enquanto a reflexão de Arthur seguia em sua
mente, a dama da noite estava em seus trabalhos,
estranhas em seu corpo, o jovem teria sigo somente mais
um dos seus clientes, ainda que, a vontade de seu coração
era largar a vida miserável da qual estava vivendo, estava
ali por pura precisão, seus pais faleceram quando ela havia
apenas 10 anos, deixando uma irmã pequena para que
criasse, não tendo sustento nenhum buscou a vida de
prostituição, mas seu coração palpitava ao pensar em uma
grande família. As mocinhas com os pais eram criadas afim
de que conquistassem seus maridos naquela época, e ela
logo quando pequena se tornou mãe de quem ao menos
109
artigos, ensaios e contos
seguindo sua vida normalmente com algumas sensações
pariu. Aos 10 anos, responsável pela vida de um ser
humano, do qual precisa de amor, cuidados, sustento, sem
que ela houvesse algo a se receber.
Cerca de uma semana se passou, as vendas da
fábrica aumentaram, mais tranquilo, infelizmente sabia
que para ir atrás daquela que tomou conta de seus
pensamentos seria necessário ir até o bordel onde ela se
Literaturando
encontrava. Ao chegar, não encontrou o brilho no olhar que
110
ela tinha após doses de bebida, viu um brilho diferente em
seu olhar, talvez fosse sim uma grande paixão, mesmo que
não a conhecesse, mesmo que não tivesse a beleza mais
esperada do mundo, era naquele olhar que se encaixava,
mas, sabia que se assumisse esse amor, possivelmente
perderia sua credibilidade como pessoa da sociedade.
Parou de ouvir seus pensamentos e foi até aquela que
carinhosamente apelidou de “dama da noite”.
— Olá, senhor Rothgar, a que devo sua presença!?
— Disse Angela.
— Olá, Ângela, como está você? Estive pensando
em você durante a semana, queria poder te conhecer um
pouco mais, não sei se realmente deveria contar isso a
você, mas meu coração clama. — Respondeu Arthur de
forma desengonçada.
— Estou um pouco preocupada... Do que você está
falando? Infelizmente, ao que a sociedade julga, não sou
uma mulher descente para formar uma família, apesar de
que já tenho a minha pequena... E, sinceramente, acho que
preciso conversar com você, mas, precisamos conversar
longe daqui, estou sentindo alguns enjoos desde que
esteve aqui, você foi o único com quem me relacionei nos
últimos meses, estou quase à beira da rua por não
despertar a atenção de outros rapazes além da vossa
senhoria.
Tendo em vista que aquela conversa não poderia
acontecer naquele lugar, tomaram a decisão de se
foi feito, ao chegar, a mulher reparou que a casa não teria a
estrutura prevista para um homem bem de vida do jeito
que achou que ele era, logo, surpresa o perguntou:
— Mas, o senhor disseste a mim que era dono de
uma fábrica de tecidos, uma das mais reconhecidas, cadê o
conforto desta casa? Não há móveis, não há nada.
— Pois é, minha fábrica está falindo, desde que
papai partiu, não tenho animo para nada, quem despertou
minha vontade de viver foi a vossa companhia durante
aquela noite. Não tenho dinheiro, o que me resta é a minha
111
artigos, ensaios e contos
encontrarem na casa de Arthur na manhã seguinte, e assim
moradia e por enquanto a fábrica que ainda está de pé,
mas, não sei até quando. — respondeu o comerciante.
— Tive certeza que seria o homem com o qual teria
a minha família justamente por sua vida ser bem sucedida,
até o ponto que eu sabia... Eu iria te enganar, mas, pelo
visto, fui a repudiada da história, como você vai dar o
sustento dos meus filhos se é você é pobre e ainda por cima
Literaturando
alcoólatra? E sem querer te entristecer ainda mais, mas, eu
112
não posso continuar trabalhando prenha. — Indagou a
prenha
— Você irá trabalhar até que complete seis meses
de gestação, depois poderá trabalhar somente em casa,
ainda sou o pai do bebê que está dentro de você e portanto,
você vai. Enquanto ao golpe do qual quis me dar, bem feito!
Não sou nada do que a vossa mocidade pensa assim como
vossa mercê não é nada do que imaginei. Iremos manter
tudo embaixo dos panos até que esse bebê nasça. — Assim
Arthur encerrou a discussão.
Diante daquilo que resultou o fim da discussão, a
espertalhona moça seguiu a vida, mesmo que já tinha
certeza de que o rapaz não era pai do bebê que estava
gestando, o verdadeiro genitor era ainda mais medíocre.
Enquanto isso, o comerciante tentava reerguer o seu
negócio para que assim pudessem viver uma vida
tranquilamente, já sabendo de todos os riscos que ambos
estavam expostos, ressaltando principalmente a relação da
prenha, como o pai do seu filho ordenou, continuou
trabalhando, podendo facilmente ser pega de surpresa por
uma doença sexualmente transmissível. Com meados de
seus 5 meses começaram a aparecer algumas espécies de
bolas por cima de sua pele, doíam de forma intensa, foi ai
que sentiu a necessidade de ir até um médico procurar
saber o que estava acontecendo, que riscos aquilo traria
para a criança que estava em seu ventre, até que o doutor
confirmou que aquilo que ela estava sofrendo era a
passar para o feto durante a gestação. Depois da consulta
foi imediatamente conversar com Arthur para avisá-lo que
não poderia seguir trabalhando, precisava de repouso,
contou sobre a doença e os perigos que ela e o bebê
estariam correndo. Com isso, aquilo que estava até o
presente momento por debaixo dos panos teve de ser
afirmado como uma união, passando a moradia em
conjunto e um possível casamento.
Cada dia que passava, as dores pioravam, a doença
espalhou pelo seu corpo rapidamente, não tinha forças, a
113
artigos, ensaios e contos
chamada sífilis, sem cura e com grandes chances da doença
dor ardia. Completaram as 39 semanas com muito
sofrimento, mesmo em casa, seu dever era servir ao seu
marido, quando chegasse a comida tinha que estar em
cima da mesa, a casa deveria estar limpa e organizada, suas
roupas limpas para um novo dia de trabalho, fazia seu
serviço com êxito, até a dor de o parto manifestar-se. Na
primeira troca de lua...
Literaturando
— Sinto que devo chamar a parteira, estou sentindo
114
o bebê chegar. — Exclamou Angela grunhindo de dor.
— Não deveríamos consultar primeiro para ver se é
isto!? Como saberíamos que está a chegar!? — Assustado,
respondeu Arthur.
— Pare de problematizar tudo, ao menos uma vez.
Escute-me, chame a parteira o quanto antes, sinto a cabeça
do bebê.
Naquele dia, seu mundo mudaria por completo,
agora seria pai, título que nunca havia passado pela sua
cabeça antes, mesmo que, fora sem envolvimento de
sentimento algum. Chamou a parteira enquanto sua agora
esposa estava aos gritos no quarto. Segundo a parteira, a
moça estava com uma grave hemorragia que complicaria
ainda mais o parto, podendo ocasionar a morte do bebê e
da própria moça. O parto deveria de acontecer da mesma
forma, a dilação estava em 8 dedos já, até que com toda a
força feita, nasceu! Ao mesmo som do choro da criança
ouviam-se gritos da parteira vindo do quarto, Ângela se foi.
A alegria e a tristeza mesclavam-se naquele ambiente,
enquanto uma vida se fora outra chegara, um menino, do
qual se chamaria Inácio Rothgar.
Inácio cresceu escutando as histórias da sua mãe
pela voz de sua irmã, Angelina, a garotinha que foi criada
por Ângela após o falecimento dos seus pais. O menino não
herdou a sífilis de sua mãe, porém, aos 15 anos já era
alcoólatra, como seu pai, dizem que filho de peixe, peixinho
é, a cardiopatia de seu pai estava presente em seu DNA.
esteve acompanhado de Angelina, seu pai seguia o mesmo
de sempre, festeiro e frequentador de bordéis, ao menos,
conseguiram estabilizar a fábrica de tecidos novamente,
quando seu filho completara 16 anos além de ensina-lo a
trabalhar no meio das máquinas e na administração
daquilo que lhe seria herdado, como ensinamento o levou
até o bordel onde conheceu a sua mãe, para que realmente
o menino fosse sua cópia completa, pois somente assim
teria orgulho.
115
artigos, ensaios e contos
Com o falecimento da sua mãe, Inácio sempre
As atitudes do pai influenciavam de forma intensa
nas atitudes do pequeno, a forma que pensava o modo com
que tratava as mulheres, de forma robusta, assim como o
seu pai. Apesar da grande igualdade entre o filho de Ângela
e Arthur na forma de ser, ambos não tinham nenhuma
semelhança física, o que fazia o próprio ter incerteza em
relação à paternidade do menino, porém, nunca se foi
Literaturando
confirmada verdadeiramente, mas, naquela noite tudo
116
mudou... Ao chegar, Arthur com um grande sentimento de
orgulho apresentou seu filho a todas as mulheres que
estavam presentes, e logo soltaram um grito:
— Este não é o filho de Ângela!? O mesmo que, cuja
o pai a esperta deu o golpe do baú!? Pois deveria de ter
descoberto já que nada lhe parece, tudo indica que o pai
seja o engraxate que veio junto com o seu patrão dias antes
do dono da fábrica de tecidos aparecer.
Naquele momento, a face de ambos esbranquiçou,
o choque da verdadeira história a ser escutada pela boca de
outrem foi enorme, seu coração estava fraco o suficiente
para resultar em uma morte súbita no momento do
murmuro. Sendo assim, aquilo que fora um dia do até
então pai do Inácio, agora era de sua responsabilidade, o
jovem, solteiro, que não tinha pensamento algum para um
dia formar uma família tornou-se molde, totalmente
influenciado pela problemática em que se encontrava.
Arthur foi de encontro à outra vida sem filhos, deixando
apenas um bastardo como herdeiro de seu império.
117
artigos, ensaios e contos
118
Literaturando
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.84.05
Adelaide
Ammy Lee Vitória
Ammy Lee Vitória é Aluna de Ensino Médio no Colégio Integral de
Toledo-PR.
Contato: ammyleevitoriaa@gmail.com
Cheguei aos 27 anos sendo tudo, exceto o que eu
imaginei que seria. Quando saí da casa dos meus tios para
encontrar a autêntica felicidade, ainda não tinha noção do
Literaturando
quanto essa ideia poderia ser inalcançável, especialmente
120
para uma pessoa ingênua e tola o bastante para acreditar
no amor.
Se eu soubesse quanto problema ia ter com a tal
história, teria desistido logo no início. Porque uma coisa é
dar um jeito em algo que pode ser ajeitado, a outra é bater
a cabeça na parede. Oscilei um instante entre o horror e o
humor, mas não pude evitar: ri. Senti que deveria me
desculpar, mas não sabia pelo quê. Agora eu estava
sozinha, e o único caminho era o que eu deixava atrás de
mim.
Esta vida é absurda e ilógica; e eu já tenho medo de
viver, Adelaide. Tenho medo, porque não sabemos para
onde vamos, o que faremos amanhã, de que maneira
havemos de nos contradizer diante deste mundo
expressivo.
Além do que, penso que todo este meu sacrifício
tem sido inútil. Tudo o que nele pus de pensamento não foi
atingido, e o sangue que derramei, e o sofrimento que vou
sofrer toda a vida, foram empregados, foram gastos, foram
estragados, foram vilipendiados e desmoralizados em prol
de uma tolice anoitada qualquer...
Ninguém compreende o que quero, ninguém
deseja penetrar e sentir; passo por doida, tola, maníaca e a
vida se vai fazendo irremediavelmente minuto após
minuto.
Adelaide, estou com medo, mas acho que o medo
nunca nos abandona, não importa o quanto você cresça,
assombrar.
Tenho medo de pessoas confusas e de mentiras
obscuras. Tenho medo de pessoas que se apaixonam
rapidamente, mas também temo aquelas pessoas que se
apaixonam com lentidão. Tenho medo de pessoas que
trocam as pessoas como se não fossem nada e também de
pessoas que mudam de opinião em um passe de mágica.
Tenho medo de ser trocada, maltratada, humilhada. Eu
tenho medo disso tudo e no final acho que só queria ser
amada.
121
artigos, ensaios e contos
amadureça, envelheça, ele sempre estará lá para
Sou do tipo socialmente despreparada, Adelaide. E
me sinto consumida pela sufocante exaustão. Por que nada
faz sentido? Minha boca fala o que não se deve, meus
pensamentos se engolem, próprios, se contradizem a cada
minuto, vivem num debate, que só me resta esperar que se
resolvam. Eu queria escrever alguma coisa de amor, mas
para mim todo mundo é fingimento, para mim todo
Literaturando
fingimento é de verdade, eu finjo tanto que amo que amo
122
mesmo, eu vivo tantas histórias dentro da minha cabeça.
Eu e meu amor de pensamentos. Sua boca ocupada com
outras desculpas, minha culpa ocupada com outras
mentiras. Droga de pensamentos milenares.
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.84.06
Maldito espelho
Junior Cunha
Junior Cunha é Doutorando em Filosofia pela Universidade
Estadual do Oeste do Paraná (Bolsista CAPES). Mestre e Licenciado
em Filosofia pela mesma instituição.
Contato: juniorlcunha@hotmail.com
Me vi em um maldito espelho. Atrevimento meu
dizer que me vi. Não sei ao certo quem ou o que eu sou.
Para todos os efeitos, gosto de me chamar de eu.
Literaturando
Colocarei da seguinte forma então: eu me vi em
124
maldito espelho. O curioso é que eu nunca havia notado
quantas imperfeições posso ver só de me olhar em um
espelho.
Cada traço horripilante meu, ali, diante de meus
olhos abatidos pelo cansaço de horas e mais horas de
leitura de meus prolongados dias. Mas já que me olhei
nesse maldito espelho, tentarei me compreender.
Obviamente, não me aterei às minhas imperfeições
físicas, quanto a isso, eu já deixei escapar o choque e o
assombro de me ver. Todo espanto foi por demais pequeno
se colocado ao lado de me observar interiormente.
Quando me detive em me olhar profundamente,
havia algo estranho. Uma enorme coisa. Uma absurda e
estranha coisa! É certo que eu não sei quem ou que eu sou,
mas me ver e perceber esta terrível e estranha coisa me
leva a indagar: seria eu, esta estranha coisa?
Em que momento de minha vida me tornei isto? Ou
tenho sido sempre isto?
Os lapsos de memória me impedem de ir muito
além dos anos recentes, e dou por mim que não sei quando
passei a ser essa estranha coisa.
Devo me concentrar. Tentar olhar com mais
atenção.
Forçar
as
vistas,
deve
haver
algo
de
compreensível nessa estranha coisa. Mas que maldito
espelho. Não vejo nada além dessa estranha coisa.
Só posso concluir que eu sou essa estranha coisa e
sempre isto?
Vamos lá. Mais um esforço. Devo me lembrar de
quando passei a ser essa estranha coisa, como me tornei
isto?
Não, nada. Isto sou eu, uma estranha coisa. Maldito
espelho.
125
artigos, ensaios e contos
que não sei quando passei a ser isto. Mas e agora, eu serei
126
Literaturando
DOI: https://doi.org/10.58942/eqs.84.07
Os olhos verdes fascinantes
de Giovanni, mio Romeo
Andrielly Antunes da Silva
Giovanna Victória Pilotti
Andrielly Antunes da Silva é Acadêmica do Curso de Letras da
Universidade do Oeste do Paraná.
Contato: andrielly_Antunes2011@hotmail.com
Giovanna Victória Pilotti é Acadêmica do Curso de Letras da
Universidade do Oeste do Paraná.
Contato: giovannapilotti660@gmail.com
Após inúmeros dias de tempo nublado, o sol
resolvera aparecer em meio às nuvens. O ano de 1800 mal
começara e já pressagiava tempos conturbados em um
Literaturando
futuro próximo; mas este não é nosso foco nesta história,
128
caro leitor. Em dias de clima assim, em que o astro-rei
agraciava Genova com seus raios cálidos, era comum que
as pessoas se reunissem para passear pelos Parques de
Nervi. Fora nesta tarde, aparentemente comum, de
domingo, que os doces olhos esverdeados de Giovanni
Marchetti encontraram pela primeira vez os olhos cor de
mel decididos de Aurora Giordano.
Enquanto a moça estava acompanhada de sua
família — o pai e as irmãs mais jovens, o rapaz encontravase solitário, apenas observando a bela paisagem que se
apresentava diante de si: as folhagens que caíram com a
estação fria ainda podiam ser vistas sobrepostas sobre a
grama, contrastando com as novas folhas crescendo nos
galhos ressequidos das árvores, voltando à vida com a
primavera crescente do mês de abril; além disso era
também possível ouvir as ondas do Mar Ligure quebrando
ao longe na costa. Com aquela troca de olhares, Aurora
teve, em seu íntimo, a certeza de ter encontrado o homem
com quem gostaria de passar o resto de sua vida, aquele
que viria a ser seu amado e pai de seus filhos. Não sabia
sequer seu primeiro nome, que dirá o de sua família, e a
única pista que tinha para reencontrá-lo, além da
esperança gritante em seu coração, eram os olhos
encantadores que a prenderam.
Notando o sutil brilho dourado que pintava as copas
das árvores, indicando que a tarde se estava findando e o
passeio também, o pai da moça, Piero Giordano, homem
barão pelo rei Carlo Emanuele IV há alguns anos, chamou
as três filhas, Aurora, Agnese e Alma, conduzindo-as para
a carruagem para que pudessem retornar à casa da família.
Perdida em devaneios, Aurora não deixou
escorregar da memória, durante todo o caminho, a
imagem gravada daqueles belos olhos verdes. Nem
mesmo quando seu irmão mais velho Tommaso, jovem
capitão na cavalaria do Real Exército Sardo-Piemontês, a
incomodou com leves gracejos acerca de seu ar sonhador,
a moça perdeu seu foco.
129
artigos, ensaios e contos
influente na política sarda e grande comerciante, feito
Depois de alguns dias entregue à sua ditosa utopia,
foi a mãe quem a trouxe de volta à realidade. Laura
Giordano, no alto de seus 39 anos, mãe de 4 belos filhos,
ainda era um modelo de graça, fina elegância e delicada
beleza aristocrática, contrastando com a rudeza dos traços
do marido e sua diferença etária de 18 anos. A boa mulher
recordou a filha da necessidade de comprar tecidos para
Literaturando
que se pudesse mandar fazer-lhe novos vestidos. Em meio
130
à fantasia amorosa, a moça quase esquecera-se que se
aproximava, iminentemente, o momento em que seus pais
escolheriam um pretendente com o qual ela deveria se
casar.
Desperta
de
seu
desvario,
rumou,
então,
apressadamente, até o ateliê no centro da cidade, onde,
mal sabia ela, reencontraria aquele que apelidou,
carinhosamente, de seu “amor à primeira vista”. Ao entrar
na loja e notar a presença do jovem, ficara logo corada e
Giovanni, notando a timidez em sua bela tez alva,
adoravelmente rosada pela vergonha, cumprimentou-a e
logo em seguida apresentou-se, fazendo a menina sentirse mais confortável ao responder à sua gentileza.
Enquanto Aurora pedia ao jovem atendente quais
tecidos gostaria de ver, este, por sua vez, sentindo-se tão à
vontade com a presença da moça, contava boa parte de sua
história de vida, como se a uma velha amiga. A verdade é
que não fora só ela a afetada pelos olhares no parque,
Marchetti ficara fascinado por seus olhos castanhos e já
não trabalhava, comia ou pensava direito. Ela se mostrava
cada vez mais interessada em tudo que ele lhe contava,
sem fazer mais ideia de quanto tempo se passara ou
quantos tecidos já havia visto; a conversa avançava de tal
maneira que se uma multidão marchasse nas ruas, ambos
não ouviriam. Naquele momento, só existiam os dois no
mundo.
Após selecionar os tecidos da melhor maneira
precisa ir. Giovanni acompanha a nobre menina até a porta
de sua carruagem, arrumando os tecidos e ajudando-a a
subir no veículo. O breve e leve toque, assim como os
olhares, povoaria as fantasias dos jovens amantes.
Tornando à casa, Aurora, ao entrar, se depara com
a família na sala de jantar à sua espera. Os olhos de seu pai
não desviavam de seu rosto durante toda a refeição. Ele
notava o brilho diferente nos olhos da filha e seu leve rubor,
sabia o que isso significava. Limpou a garganta antes de
começar, com a voz grave:
131
artigos, ensaios e contos
possível, um pouco anestesiada com o momento, Aurora
— Querida filha, minha bela Aurora. Gostaria de
aproveitar nosso momento em família para lhe dizer que
encontrei um bom homem com quem você deverá se casar.
Lord Giuseppe Tontodimamma.
Apesar de respeitarem grandemente o pai, foi
inevitável conter a risada diante do sobrenome (“tonto da
mamãe”).
Literaturando
— Ei! Crianças, mais respeito! – disse o pai, mesmo
132
estando tão perto do riso quando sua prole. Ele é dono de
diversas fazendas, um homem de confiança na corte do
Rei, é vantajoso para ambas as famílias que se faça essa
união e ele está encantado com a sua beleza, querida.
A notícia ceifou todo o brilho existente na garota. O
casamento deveria acontecer em 6 meses, Aurora, prestes
a completar 17 anos, já estava um pouco velha para casarse.
Durante as 4 semanas seguintes a família se viu
ocupada em preparar os últimos detalhes do enxoval de
sua primogênita. Muitas foram as visitas ao ateliê em busca
de tecidos e roupas, em uma das quais Giovanni, ciente do
casamento próximo, declarara seu amor mais profundo.
Aurora, encantada com as doces palavras, mas tímida em
reproduzi-las, deixando-as passar por seus próprios lábios,
falou ao rapaz apenas com os olhos e um belo sorriso. Ele
compreendeu que era correspondido. Os amantes
desafortunados encontravam-se às escondidas no jardim
da família Giordano, no parque, nos passeios vespertinos.
Giovanni cantarolava sobre sua janela nas noites sem lua
para não se deixar ver, e a moça perguntava a si mesma se
aquela Giulietta havia o seu Romeo. O presságio agourento
da história do casal veronês a fazia ter calafrios.
O tempo passava e as bodas aproximavam-se.
Giovanni prometera a sua amada que resolveria tudo. Ele,
com a alma inclinada à poesia e à arte, se viu infeliz, tendo
sido reconvocado ao exército. Não havia mais tempo nem
família da moça jamais o aceitaria, mas ele poderia
sustentá-la honestamente em qualquer lugar com a força
de seu trabalho. Poderiam casar-se em um convento
franciscano a caminho da casa de sua família em Parma, e
seriam bem aceitos pelos pais que sentiam faltam de seu
único filho.
Por mais que sentisse medo, a felicidade de
finalmente viver seu amor fazia Aurora vibrar. Antes de
partir deixou um bilhete de perdão à família, acompanhado
de um post scriptum:
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artigos, ensaios e contos
preparativos a fazer: o casal deveria fugir o quanto antes. A
“A despedida é uma dor tão suave que te diria ‘Boa
Noite’ até o amanhecer...”
Literaturando
William Shakespeare.
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Instituto Quero Saber
www.institutoquerosaber.org
editora@institutoquerosaber.org
Informações técnicas
formato: 14 x 21 cm
tipografia: Corbel