SÍNDROME DE CHARLES BONNET: UMA REVISÃO INTEGRATIVA
Camila Machado Gonçalves,1 Frederico Luiz da Silva Figueirôa2
RESUMO
A síndrome de Charles Bonnet (SCB) é definida por alucinações visuais complexas em pacientes sem
comprometimento cognitivo e com doença oftalmológica acompanhada de redução na acuidade visual.
Possui caráter benigno, o paciente mantém consciência da natureza irreal do fenômeno e tem sido relatada
principalmente em idosos. A SCB é importante diagnóstico diferencial de síndromes demenciais, e seu
correto diagnóstico possui grande impacto na qualidade de vida dos pacientes, que sofrem com o estigma da
doença psiquiátrica, com o insucesso das terapias instituídas e com a possibilidade de declínio cognitivo
iminente. É possível evitar esse impacto negativo através do esclarecimento sobre a síndrome. Daí a
relevância da difusão da informação e correto diagnóstico clínico. Objetivo: Nesse contexto, foi realizada
uma revisão integrativa da literatura para melhor caracterizar a síndrome de Charles Bonnet, para contribuir
com a disseminação do conhecimento sobre assunto. Metodologia: para a seleção dos artigos utilizou-se
aqueles disponíveis nas bases de dados PUBMED e SCIELO; no período entre 2000 e 2017; nos idiomas
português e inglês; utilizando as palavras chaves no título: “Síndrome de Charles Bonnet” ou “Charles
Bonnet Syndrome”. A qualidade metodológica dos artigos foi avaliada pelos critérios do STROBE e do
CARE. Resultados e Discussão: Foram selecionados nove artigos (três séries de caso, cinco estudos de
prevalência e um estudo de incidência). A prevalência SCB mostrou-se bastante variável dentre os estudos
revisados (0,4% e 34%) e a média de idade foi entre 70 e 80 anos. As características das alucinações
identificadas foram: frequência diária, semanal ou mensal; imagens afônicas, podendo ser em cores ou preto
e brancas, estáticas ou dinâmicas; o conteúdo pode envolver pessoas, animais, objetos, construções e/ou
paisagens, em tamanho real ou miniaturas. O estudo da neuroimagem funcional revelou aumento de atividade
unilateral no lobo temporal, corpo estriado e tálamo; áreas envolvidas no processo de percepção e
interpretação do estímulo visual. Não existiu consenso sobre a terapia medicamentosa na presente revisão. A
maioria dos estudos que abordam o manejo clínico da SCB são estudos de casos individuais ou série de
casos. Entretanto, autores afirmam que o esclarecimento sobre a SCB e seu caráter benigno reduziu o
incômodo causado pelas alucinações nos pacientes e, assim, a terapia medicamentosa foi dispensada pelos
próprios pacientes. Conclusão: Mais estudos na área são necessários para que se possa conhecer a SCB e
realizar o diagnóstico diferencial de síndromes demenciais e psiquiátricas. Essa proposta possivelmente trará
grandes benefícios para o sistema de saúde e para os que vivenciam a SCB.
Palavras-chave: Síndrome de Charles Bonnet; Alucinação visual em idosos.
ABSTRACT
Charles Bonnet Syndrome (SCB) is defined by complex visual hallucinations in patients without cognitive
impairment and ophthalmologic disease accompanied by reduced visual acuity. It has benign character, the
patient is aware of the unreal nature of the phenomenon and has been reported mainly in the elderly. SCB is
an important differential diagnosis of dementia syndromes, and its correct diagnosis has a great impact on
patients' quality of life, who suffer from the stigma of psychiatric illness, failure of established therapies and
the possibility of imminent cognitive decline. It is possible to avoid this negative impact by clarifying the
syndrome. Hence the relevance of information diffusion and correct clinical diagnosis. Objective: In this
context, an integrative literature review was conducted to better characterize the CBS, to contribute to the
dissemination of knowledge about the subject. Methodology: for the selection of articles were used those
available in PUBMED and SCIELO databases; in the period between 2000 and 2017; in Portuguese and
English; using the key words in the title: "Charles Bonnet Syndrome" or "Charles Bonnet Syndrome".
Methodological quality was assessed by the STROBE and CARE criteria. Results and Discussion: We
selected nine articles (three case series, five prevalence studies and one incidence study). CBS prevalence
was very variable among the reviewed studies (0.4% and 34%) and the mean age was between 70 and 80
years. The characteristics of the identified hallucinations were: daily, weekly or monthly frequency; pictures
may be in color or black and white, static or dynamic; the content can involve people, animals, objects,
buildings and / or landscapes, full size or miniatures. The study of functional neuroimaging revealed
1
Graduanda de medicina na Escola Bahiana de medicina, Salvador, BA. Ex-estagiária da Fundação de
Neurologia e Neurocirurgia Instituto do Cérebro, Salvador, BA. E-mail: camilamachadocmg@gmail.com
2 Mestrado em Medicina e Saúde pela Fundação Para o Desenvolvimento das Ciências, Brasil(2005). Médico
da Fundação de Neurologia e Neurocirurgia, Brasil.
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increased unilateral activity in the temporal lobe, striatum and thalamus; areas involved in the process of
perception and interpretation of the visual stimulus. There was no consensus on drug therapy in the present
review. Most of the studies that address the clinical management of CBS are individual case studies or case
series. However, authors argue that clarification about CBS and its benign nature reduced the discomfort
caused by hallucinations in patients and thus drug therapy was dispensed by the patients themselves.
Conclusion: More studies in the area are necessary to know the CBS and perform the differential diagnosis of
dementia and psychiatric syndromes. This proposal will possibly bring great benefits to the health system and
to those who experience CBS.
Keywords: Charles Bonnet syndrome; Visual hallucinations in the elderly.
INTRODUÇÃO
A síndrome de Charles Bonnet (SCB) é definida por alucinações visuais complexas
em pacientes sem comprometimento cognitivo e com doença oftalmológica acompanhada
de redução na acuidade visual1-4. A SCB possui caráter benigno1-7, onde o paciente
mantém consciência da natureza irreal do fenômeno1-3,5, e tem sido relatada principalmente
em idosos4,7-10.
Foi descrita pela primeira vez no século XVIII pelo filósofo suíço Charles Bonnet
(1720-1792) que relatou tais achados em seu avô Charles Lullin (Figura 1)1,10,11. Anos mais
tarde, o próprio Bonnet cursou com deterioração da acuidade visual e desenvolveu
alucinações semelhantes às do seu avô1.
O
termo “Síndrome de Charles Bonnet” foi
primeiramente utilizado por De Morsier, em
1967, para definir a ocorrência de alucinações
visuais em pacientes idosos com função cerebral
intacta8. Hoje já se sabe que não é uma condição
exclusiva de pacientes em idade avançada,
podendo estar presentes em qualquer faixa
etária5,8,10. Uma peculiaridade dessa síndrome é
que mesmo tendo consciência da natureza irreal
Figura 1. Naturalista e filósofo Charles
Bonnet. (Figura retirada do artigo publicado
por Jacob et al, 2004).
do fenômeno, o paciente é capaz de descrever
em detalhes as imagens que vê1,5,6,9.
A alucinação visual pode ocorrer em diversas situações clínicas e é definida como
uma percepção visual na ausência de estímulo externo 5,6,9, podendo ser simples ou
complexa. As alucinações visuais simples são compostas de imagens abstratas, flashes de
luz, linhas e formas geométricas9. Já as alucinações visuais complexas são compostas de
imagens mais elaboradas, como de pessoas, animais, plantas ou objetos1,4,6,9. Os
mecanismos fisiopatológicos envolvidos no processo de alucinação visual na SCB ainda
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não foram totalmente elucidados8-10,12. A hipótese mais aceita é a de que a
hiperexcitabilidade de circuitos neurais centrais, causada pela redução de aferência visual
periférica, promova a formação de imagens complexas1,3-9,13,14. Os critérios diagnósticos
para SCB também permanecem controversos. Atualmente, os mais utilizados são: I)
Presença de alucinação visual complexa, estereotipada, persistente ou repetitiva; II)
Manutenção da consciência do caráter irreal do fenômeno; III) Ausência de alucinações em
outras modalidades sensoriais; IV) Ausência de comprometimento cognitivo 15. Todos esses
critérios devem estar presentes para que a SCB seja diagnosticada.
Estimativas da prevalência da SCB em diferentes amostras variam entre 0,4% até
36%, sendo esse valor ainda subestimado considerando o número elevado de
subdiagnósticos1,3,4,5,7,10,12. As principais razões para esse subdiagnóstico são: o
desconhecimento dessa entidade pela comunidade médica, dificultando o reconhecimento e
diagnóstico da síndrome1,2,4,5,7,9,10; e a relutância do paciente de compartilhar tais
experiências, com receio do estigma de doenças psiquiátricas1,2,5,7,9,10 ou de ser considerado
mentalmente incapaz3,5,11,12.
A Síndrome de Charles Bonnet é uma condição relativamente comum em idosos,
porém não é considerada como tal na prática clínica, sendo ainda pouco conhecida2,9,10.
Essa falta de conhecimento traz consequências negativas para o paciente, que é
diagnosticado e tratado de forma equivocada2,5,9 . Além de sofrerem com a frustração do
insucesso da terapia instituída, os pacientes enfrentam importante estresse psíquico e
emocional por se considerarem em fase inicial de quadro demencial, doença psiquiátrica
ou qualquer condição de declínio cognitivo 1-3,11. O diagnóstico precoce e informação ao
paciente sobre o caráter benigno da sua condição possui grande impacto na qualidade de
vida do paciente, reduz ansiedade dos envolvidos1,3,4,10,11, evita hospitalizações
desnecessárias e dispensa exames sucessivos que oneram o sistema5,8. Portanto, é
fundamental que o profissional de saúde seja capaz de investigar, reconhecer, diagnosticar
e informar ao paciente sobre a SCB; e para isso é necessário ampliação e aprofundamento
de estudos na área2,9.
Assim, o objetivo do presente artigo é melhor caracterizar a síndrome de Charles
Bonnet, para contribuir com a disseminação do conhecimento sobre assunto. Essa proposta
torna-se ainda mais relevante pela prevalência significativa da condição, que ainda tende a
aumentar pelo processo de envelhecimento da população7,10, associada ao impacto
negativo na qualidade de vida do paciente sub-diagnosticado1,2,9,11. Dessa forma, espera-se
que seja possível auxiliar profissionais de saúde a reconhecer e estabelecer diagnóstico
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precocemente; reduzindo os impactos psíquicos, emocionais e sociais dessa condição
através de instituição de plano terapêutico adequado10.
OBJETIVOS
Objetivo principal
Analisar características clínicas da Síndrome de Charles Bonnet.
Objetivos secundários
1. Descrever as características das alucinações visuais nos pacientes com a SCB
2. Descrever possíveis alterações de neuroimagem
3. Descrever opções terapêuticas
METODOLOGIA
Foi realizada uma revisão integrativa da literatura incluindo artigos disponíveis nas
bases de dados PUBMED e SCIELO; no período entre 2000 e 2017; nos idiomas português
e inglês; utilizando as palavras chaves no título: “Síndrome de Charles Bonnet” ou
“Charles Bonnet Syndrome”. Foi feita também busca nas referências bibliográficas dos
estudos encontrados e contato direto com pesquisadores.
Nesse contexto, foram utilizados como critérios de inclusão: estudos observacionais
de prevalência ou incidência, séries de caso a partir de cinco pacientes e ensaios
terapêuticos, que descrevessem as características clínicas, achados de neuroimagem e/ou
abordagem terapêutica em pacientes com a Síndrome de Charles Bonnet. Os critérios de
exclusão foram: baixo rigor metodológico, o uso de critérios diagnósticos inconsistentes
para seleção de pacientes com a síndrome, ausência de aplicação de instrumento validado
para avaliação cognitiva e psíquica dos pacientes. Esses critérios visam garantir a
representatividade da amostra, sendo importantes indicadores de confiabilidade e
fidedignidade dos resultados.
A qualidade metodológica dos artigos observacionais de prevalência e incidência
incluídos foi avaliada de acordo com os critérios da iniciativa STROBE (Strengthening the
Reporting of Observational Studies in Epidemiology), atribuindo para cada um dos 22
critérios uma pontuação 0 (não atende) ou 1 (atende).17 Para avaliação da qualidade
metodológica dos estudos de casos foram utilizados os critérios do CARE (Case Report
Guidelines Checklist), atribuindo para cada um dos 13 critérios uma pontuação 0 (não
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atende) ou 1 (atende)18. A pontuação global obtida no STROBE e no CARE foi convertida
em percentual e organizada em quatro categorias: Categoria A – 76 a 100%; Categoria B 51 a 75%; Categoria C - 26 a 50%; Categoria D - 00 a 25%. Artigos classificados nas
categorias C ou D seriam excluídos da revisão.
A extração de dados dos artigos selecionados foi realizada utilizando um
instrumento previamente elaborado com intuito de garantir precisão na checagem das
informações. Esse instrumento incluiu os seguintes dados: autor/ano, desenho de estudo,
número de pacientes com a síndrome, características da alucinação, descrição da
neuroimagem e abordagem terapêutica. A discussão dos resultados foi organizada em
quatro sessões: Descrição clínica da SCB; Características das Alucinações; Avaliação de
neuroimagem na SCB e Abordagem terapêutica da SCB.
Assim, esse método teve como finalidade reunir e sintetizar resultados de pesquisas
sobre a Síndrome Charles Bonnet, de maneira sistemática e ordenada, contribuindo para o
aprofundamento do conhecimento sobre o tema investigado16.
RESULTADOS
Foram identificados 103 artigos utilizando as palavras chaves nas bases de dados
Pubmed e Scielo no período entre 2000 a 2017. Após a análise dos títulos e resumos, foram
selecionados a partir dos critérios de inclusão e exclusão, 21 artigos para leitura completa.
Foi excluído um estudo por duplicidade, sete por não se enquadrarem nos critérios de
elegibilidade e quatro por indisponibilidade do trabalho na íntegra, restando nove artigos
que foram inclusos na Revisão (Figura 2).
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Os nove artigos inclusos na revisão (três séries de caso, cinco estudos de
prevalência e um estudo de incidência) foram avaliados quanto à qualidade metodológica
pelos critérios do STROBE17 e do CARE18 (Tabela 1). Dentre os estudos analisados, três
foram classificados na Categoria A, seis na Categoria B e zero nas Categorias C e D.
Nenhum estudo foi excluído; todos os artigos apresentaram qualidade metodológica
satisfatória para a proposta desta revisão, sendo únicos identificados na categoria.
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Os dados extraídos dos artigos revisados estão apresentados no Quadro 1. A
extração de elementos para análise incluiu autoria/ano, cidade/país onde ocorreu o estudo,
desenho de estudo, número de pacientes com a SCB, características das alucinações dos
pacientes, principais achados na neuroimagem e opções de abordagem terapêutica.
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Quadro 1: Estudos referentes à Síndrome de Charles Bonnet publicada no período de 2000 a 2017
AUTORIA LOCAL
/ ANO
DESENHO
DE
ESTUDO
Nº DE
PACIENTES
COM A SCB
CARACTERÍSTICAS
DA ALUCINAÇÃO
ACHADOS NA
NEUROIMAGEM
PET- TC: Aumento de
atividade unilateral no lobo
temporal, corpo estriado e
tálamo.
RM: Atrofia cerebral
difusa e áreas de gliose
ABORDAGEM E RESPOSTA TERAPEUTICA
ADACHI
et al/ 200013
Sapporo,
Japão.
Série de casos
5 pacientes
(64 a 80 anos)
Frequência diária; imagens
vívidas, estáticas e
afônicas; conteúdo
envolvendo pessoas e
animais; curso flutuante;
consciência do caráter
irreal do fenômeno.
NR
BRUCKI et
al/ 200919
São
Paulo,
Brasil.
Série de casos
6 pacientes
(50 a 93 anos)
Frequência diária;
conteúdo envolvendo
pessoas, animais, paisagens
(montanhas, campos
abertos), construções
(muros, pilastras); em
tamanho real ou
miniaturas; ausência de
comprometimento
cognitivo associado.
TC: Encefalomalácia do
lobo frontal direito; tumor
supraselar com compressão
de quiasma óptico; gliose
do lobo frontal bilateral.
GILMOUR
et al/
200920
Saskatoo
n,
Canadá.
Observaciona
l de
Incidência
87 pacientes
(41 a 99 anos)
Frequência diária, semanal
ou mensal; imagens em
cores ou preto e brancas;
conteúdo envolvendo
pessoas, animais, plantas;
com duração de segundos a
poucos minutos; ausência
de comprometimento
cognitivo associado;
consciência do caráter
irreal do fenômeno.
NR
NR
HOU et al/
201221
Changsha
, China.
Observaciona
l de
Prevalência
6 pacientes
(64 a 89 anos)
Frequência diária, semanal
ou mensal; imagens
coloridas, móveis;
conteúdo envolvendo
pessoas, animais, plantas,
objetos, cenas elaboradas;
em tamanho real ou
miniaturas; com duração
de segundos a 1 hora;
consciência do caráter
irreal do fenômeno.
NR
NR
Donezepila + Sertralina: resposta parcial
Rivastigmina + Sertralina: resposta parcial
Olanzapina: resposta parcial
Donezepila, galantamina, sertralina, risperidona e
haloperidol sem resposta.
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NALCACI
et al/
201622
Bornova,
Turquia.
Observaciona
l de
Prevalência
17 pacientes
(31 a 90 anos)
Ocorrência em qualquer
hora do dia; com duração
de alguns minutos;
consciência do caráter
irreal do fenômeno.
NR
NR
NESHER
et al/
200123
Kfar
Saba,
Israel.
Observaciona
l de
Prevalência
11 pacientes
(60 a 96 anos)
Frequência diária ou
semanal; imagens em
cores, pretas e brancas, ou
monocromáticas; conteúdo
envolvendo pessoas,
animais, plantas, objetos,
construções, cenas, seres
fantasiosos; em tamanho
real, miniaturas, ou
tamanho ampliado; com
duração de 1 a 2 minutos;
consciência do caráter
irreal do fenômeno.
NR
NR
SHIRAISH
I et al/
200424
Kitakyus
hu,
Japão.
Observaciona
l de
Prevalência
5 pacientes
(29 a 74 anos)
Frequência diária ou
semanal; conteúdo
envolvendo pessoas,
insetos, objetos e
construções; com duração
de poucos segundos a 1
hora; consciência do
caráter irreal do fenômeno.
NR
NR
TAN et al/
20043
Novena,
Singapur
a.
Observaciona
l de
Prevalência
4 pacientes
(65 a 90 anos)
Frequência diária; imagens
vívidas, em cores, com
movimento; conteúdo
envolvendo pessoas,
animais, objetos, seres
fantasiosos; em tamanho
real ou miniatura; com
duração de segundos a 1
hora.
NR
NR
VALE et
al/
20144
BeloHorizont
e Brasil.
Série de casos
8 pacientes
(35 a 81 anos)
Frequência diária ou
semanal; com duração de
segundos a minutos;
visível com ambos os
olhos, abertos ou fechados;
ocorrendo
predominantemente à
noite.
NR
NR
*NR - Não reportado
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Caracterização da amostra
A prevalência da Síndrome de Charles Bonnet mostrou-se bastante variável dentre os
estudos revisados. Valores entre 0,4%3 e 34%20 foram descritos. Gilmour et al20 identificou a
SCB presente em 87 pacientes (34%) da Low Vision Clinic LVC, Canadá, a população de
estudo incluiu indivíduos acima de 40 anos, com redução da acuidade visual, atendidos neste
serviço (n = 258 pacientes). A incidência na população em geral (com nenhuma ou baixa
perda visual) foi de <2%, segundo esse mesmo estudo 20. Nesher et al23 descreveu 11 pacientes
(12,3%) com a SCB na Glaucoma Clinic do Department of Ophthalmology Sapir Medical
Center, Israel (n = 89 pacientes). Hou et al21 encontrou seis pacientes (1,4%) com a SCB no
Department of Ophthalmology do Second Xiang Ya Hospital of Central South University,
China, a população de estudo envolveu 432 pacientes acima de 60 anos, atendidos nesse
serviço. Nalcaci et al22 relatou 17 pacientes (6,4%) numa amostra de 264 indivíduos com
comprometimento de retina. Shiraishi et al24 investigou 1000 pacientes atendidos no
Department of Ophthalmology, University of Occupational and Environmental Health,
Kitakyushu, no Japão, e identificou cinco pacientes com SCB (0,5%). E Tan et al3 identificou
a SCB presente em quatro pacientes (0,4%) no Comprehensive Ophthalmology Clinic in The
Eye Institute at Tan Tock Seng Hospital, Singapura, onde foram incluídos 1077 pacientes
acima de 50 anos atendidos nesse serviço.
A maioria dos estudos calculou a média de idade dos pacientes entre 70 e 80 anos,
com exceção de Shiraishi et al24 que obteve média de 54,6 anos e Vale et al4 que obteve média
de 52,3 anos. Todos os estudos reportaram uma predominância da SCB em pacientes com
idade superior a 60 anos, porém existiram estudos que descreveram a síndrome em pacientes
mais jovens: Shiraishi et al24 identificou a síndrome em uma paciente de 29 anos; Vale et al4
encontrou três pacientes entre 30 e 40 anos com a síndrome; Nalcaci et al22 identificou um
paciente de 31 anos; e Gilmour et al20 relatou a síndrome em um paciente de 41 anos. Foi
identificada uma discreta predominância do sexo feminino na maioria dos estudos: Shiraishi
et al24 identificou cinco pacientes todas do sexo feminino; Adachi et al13 relatou a síndrome
em cinco pacientes, três do sexo feminino; Brucki et al19 e Hou et al21 descreveram seis
pacientes com a síndrome, sendo quatro do sexo feminino; Nalcaci et al22 encontrou 17
pacientes, 10 do sexo feminino. Os estudos em que não se observou essa predominância
foram: Tan et al3 que identificou quatro pacientes com a síndrome, sendo dois do sexo
masculino; Vale et al4 identificou oito pacientes, sendo cinco do sexo masculino; e Nesher et
al23 encontrou 11 pacientes, oito do sexo masculino.
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Todos os pacientes com a SCB, incluídos nos estudos revisados, apresentaram doença
ocular ou em via óptica (desde o nervo oftálmico até a fissura calcarina no occipital),
evoluindo com redução da acuidade visual.
A cognição dos pacientes nos estudos revisados foi avaliada através do Mini-Mental
State Examination (MMSE). Pacientes que apresentaram comprometimento cognitivo
mensurado através desse instrumento foram excluídos dos estudos. A pontuação de corte do
MMSE nos estudos de Adachi et al13, Brucki et al19 e Gilmour et al20 foi de 22 pontos; no
estudo de Nalcaci et al22 foi de 18 pontos. Dentre os estudos incluídos na revisão, o autor que
não aplicou o MMSE foi Shiraishi et al24, que utilizou o Mini International Neuropsychiatric
Interview (MINI), para excluir pacientes com doenças psiquiátricas e/ou declínio cognitivo
que poderiam cursar com alucinação visual. Pacientes que apresentaram doença psiquiátrica
ou neurológica cursando com delírio ou outro tipo de alucinação foram excluídos dos estudos
revisados. Outras causas de alucinação visual, como abuso de drogas, uso de medicações
potencialmente alucinógenas, estados metabólicos graves, também foram utilizadas como
critérios de exclusão pelos autores dos estudos incluídos. As condições que poderiam levar a
alucinação visual que não foram excluídas nos artigos revisados foram: depressão20, Doença
de Parkinson20, epilepsia20 e AVC13, 19,23.
Características da alucinação
A frequência das alucinações foi relatada como diária, semanal ou mensal; as imagens
são afônicas, podendo ser em cores ou preto e brancas, estáticas ou em movimento. O
conteúdo envolve pessoas, animais, objetos, construções e/ou paisagens, em tamanho real ou
miniaturas. Um paciente no estudo de Brucki et al19 relatou ser capaz de alterar
voluntariamente o conteúdo alucinatório, transformando imagens desagradáveis em imagens
agradáveis. Nos estudos de Vale et al4, Adachi et al13 e Tan et al3, o conteúdo alucinatório não
demonstrou possuir significado ou familiaridade para os pacientes. As alucinações podem ser
sempre as mesmas ou variar. Foi descrito um curso flutuante ao longo do dia, semana ou mês;
podendo ocorrer em qualquer horário do dia, alguns estudos descrevem predominância à noite
ou pela manhã (Quadro 1). Possui duração média de minutos, podendo chegar até 1 hora. Não
foram descritos fatores desencadeantes ou associados, embora artigos descrevam alguns
pacientes que associam suas alucinações a iluminação, cansaço e estresse20. No estudo de
Gilmour et al20 67% dos pacientes referiram estar sozinhos no momento da alucinação.
Segundo resultados dos estudos de Vale et al4, Adachi et al13 e Tan et al3 as imagens vistas
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durante o episódio alucinatório são vívidas e os pacientes são capazes de descrevê-las em
detalhes, mesmo mantendo consciência do caráter irreal do fenômeno. Todos os artigos
revisados relataram ausência de comprometimento cognitivo e preservação da consciência do
caráter irreal do fenômeno (Quadro 1).
A descrição das reações psicoemocionais dos pacientes em relação à experiência
alucinatória variou entre positivas (“agradável”, “divertido”, “interessante”, “curioso”),
negativas (“irritante”, “desagradável”, “assustador”, “aterrorizante” e “estressante”) e neutras
(“indiferente”)3,13,20-23. O estudo de Gilmour et al20, identificou 87 pacientes com a SCB, e
mostrou que a maioria dos pacientes não se sentia incomodada com as alucinações. No estudo
de Hou et al21, cinco pacientes (83%) não consideraram
a experiência alucinatória
estressante. Já no estudo de Brucki et al19, apenas um paciente, dos seis entrevistados, não se
sentiu incomodado pelas alucinações. No estudo de Tan et al3, três pacientes demonstraram
reação negativa inicialmente, incomodados ou assustados, porém posteriormente se
habituaram a experiência e atualmente referem reações neutras.
Segundo alguns autores, nem todos os pacientes haviam compartilhado a experiência
com familiares ou médicos no momento da entrevista por receio de serem considerados
mentalmente doentes20-23. No estudo de Gilmour et al20, durante a entrevista, muitos pacientes
negaram os sintomas alucinatórios, mas com o esclarecimento sobre a SCB e a insistência do
questionamento sobre alucinação, eles admitiram ter tido tal experiência. Nesher et al23 refere
que, embora os 11 pacientes entrevistados morem com esposa e/ou família e já mantenham
sintomas há um ano, apenas um paciente dividiu seu problema. Nos estudos de Hou et al21 e
Nalcaci et al22 é descrito que a maioria dos pacientes não buscou ajuda médica. Gilmour et
al20 refere que apenas 9% (8/87) dos pacientes buscou ajuda médica e apenas metade recebeu
explicação sobre a SCB. Nos estudos de Hou et al21 e Tan et al3 a maioria dos pacientes
relatou diminuição da ansiedade ao saber que suas alucinações não decorriam de doença
psiquiátrica. Tan et al3 e Nesher et al23 relatam ainda que grande parte dos pacientes refere
alívio ao tomar conhecimento da SCB e sentem-se mais seguros para dividir seus problemas
com outros.
Principais achados na neuroimagem
Apenas dois estudos, Adachi et al13 e Brucki et al19 descreveram os achados na
neuroimagem, totalizando nove pacientes com neuroimagem descritas e apenas cinco com
neuroimagem funcional (PET- TC). Os principais achados estão descritos no Quadro 1.
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Segundo Adachi et al13 a PET TC revelou em todos os pacientes aumento de atividade
unilateral no lobo temporal, corpo estriado e tálamo. O exame foi realizado nos pacientes em
vigília com alucinação visual em curso. Na RM de crânio, três pacientes apresentaram atrofia
cerebral difusa e quatro pacientes apresentaram múltiplas áreas de gliose em substância
branca periventricular. No estudo de Brucki et al19 a neuroimagem de dois pacientes não
estavam disponíveis, a de um estava normal, dois apresentaram encefalomalácia do lobo
frontal direito e tumor supraselar com compressão de quiasma óptico; e um, gliose do lobo
frontal bilateral.
Abordagem Terapêutica
Apenas um estudo descreveu a abordagem terapêutica envolvendo medicação utilizada
pelo paciente. No estudo de Brucki et al19, cinco pacientes receberam medicação oral,
incluindo inibidores da acetilcolinesterase, antidepressivos e antipsicóticos (monoterapia ou
associação). Entretanto, foi observado apenas benefício parcial em todos os casos, nenhum
apresentou melhora completa do fenômeno (Quadro 1). Foi relatado nos estudos de Tan et al3,
Vale et al4, Gilmour et al20 e Nesher et al23 que nenhuma terapia medicamentosa foi instituída.
Esses autores afirmam que o esclarecimento sobre a Síndrome de Charles Bonnet e seu
caráter benigno reduziu o incômodo causado pelas alucinações nos pacientes, sendo assim, a
terapia medicamentosa foi dispensada pelos próprios3,4,20,23.
DISCUSSÃO
Descrição clínica da Síndrome de Charles Bonnet
A Síndrome de Charles Bonnet afeta geralmente idosos com redução da capacidade
visual. É importante diagnóstico diferencial de síndromes demenciais, e seu correto
diagnóstico possui grande impacto na qualidade de vida dos pacientes, que sofrem com o
estigma da doença psiquiátrica, com o insucesso das terapias instituídas e com a possibilidade
de declínio cognitivo iminente. É possível evitar esse impacto negativo através do
conhecimento de que a SCB é na verdade condição benigna. Daí a relevância da difusão da
informação e correto diagnóstico clínico.
O número de casos de pacientes com a síndrome está aumentando na medida em que a
população envelhece15 o que torna ainda mais relevante o estudo sobre o tema. A prevalência
atual já alcança valores significativos em pacientes com idade avançada e redução da
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acuidade visual2,27. A revisão realizada por Fernandez et al27, em 1998, já chegava a
considerar a síndrome relativamente comum, através da análise de estudos de prevalência no
período. Na presente revisão, esse valor alcançou 34% (87 pacientes), num estudo que avaliou
pacientes atendidos numa clínica oftalmológica no Canadá20. No estudo de Lepore26, 57% dos
104 pacientes avaliados, com perda visual de origem periférica, relataram alucinações visuais.
Alucinações visuais simples foram mais comuns do que as complexas. Estima-se que 1 a cada
7 pacientes idosos já tenha vivenciado uma experiência alucinatória desse tipo2. A variação
observada na taxa de prevalência pode ser decorrente de critérios diagnósticos ainda não
muito bem estabelecidos, associado à relutância de alguns pacientes em admitir ter vivenciado
o fenômeno 2,27.
Muitos pacientes não se sentem confortáveis em dividir a experiência com familiares e
profissionais de saúde, com receio do estigma da doença psiquiátrica ou de iminente declínio
cognitivo1-15,19-25. Nessa revisão, estudos referem que muitos pacientes não haviam
compartilhado a experiência com familiares ou médicos no momento da entrevista, e tiveram
inclusive dificuldade de relatá-la mesmo após questionamento direto. Muitos pacientes,
durante a entrevista, negaram sintomas alucinatórios e só os admitiram após esclarecimento
sobre a SCB20. Essa falta de esclarecimento não é apenas por parte dos pacientes. Muitos
profissionais de saúde, apesar de trabalharem na área, desconhecem a síndrome e não a
consideram ao fazer o diagnóstico diferencial. Alguns estudos revisados colocam que muitos
dos pacientes com a síndrome, que buscaram ajuda médica, receberam o diagnóstico
incorreto, foram submetidos a terapias medicamentosas ineficazes, expostos a frustração do
erro diagnóstico, do fracasso da terapia instituída e do estigma de doença mental. Esses
pacientes e seus familiares negaram ter recebido informações sobre a SCB. Esses dados estão
em concordância com a literatura, que reitera o impacto psicossocial da síndrome na vida do
indivíduo, sua dificuldade em lidar com a situação e compartilhar o problema, associado ao
desconhecimento sobre o assunto por parte dos profissionais de saúde1-15,19-25.
Apesar da síndrome ser mais prevalente em idosos (idade superior a 60 anos), há
relatos de experiência alucinatória semelhante em pacientes mais jovens que cursam com
redução da acuidade visual. Na presente revisão, os pacientes mais jovens encontrados com
diagnóstico de SCB foram uma jovem de 29 anos no Japão24 e um rapaz de 30 no Brasil4.
Nessa revisão, também foi identificada uma discreta predominância do sexo feminino na
maioria dos estudos. Não se pode, entretanto, afirmar que esse dado corresponda à real
distribuição da síndrome, pois fatos como a maior busca de serviços de saúde pela mulher e a
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maior facilidade da mulher de compartilhar questões de saúde, são vieses que devem ser
considerados. A revisão feita por Fenandez et al27 refere não haver diferença de prevalência
entre os gêneros de uma forma geral, porém reconhece uma ligeira predominância também do
sexo feminino em alguns estudos. Os fatores de risco descritos na literatura para a síndrome
são: isolamento social2,15 e perda visual bilateral15.
Experiências alucinatórias podem ocorrer após comprometimento de qualquer porção
das vias periféricas visuais26. Todos os pacientes com a SCB, incluídos nos estudos revisados,
apresentaram comprometimento ocular ou em via óptica (desde o nervo oftálmico até a fissura
calcarina no lobo occipital), evoluindo com redução da acuidade visual. Na verdade,
alucinações sensoriais podem ocorrer sob qualquer regime de privação sensorial, seja ele
temporário ou definitivo29. A explicação para isso estaria na desinibição periférica do sistema
nervoso central, que apresentaria atividades espontâneas provocando alucinações simples ou
complexas27,29. Isso funciona para qualquer modalidade sensorial, como é o caso da
alucinação musical, análoga a SCB, descrita no estudo de Perez et al29 realizado em 2016.
Atualmente, essa teoria é a mais aceita para explicar a origem da SCB. Entretanto fatos
curiosos na síndrome fogem aos padrões: a riqueza de detalhes das alucinações necessitaria de
ativação de redes neuronais mais complexas, que dificilmente seriam provocadas por
atividade neuronal espontânea28; e o desaparecimento da alucinação ao fechar os olhos ou
com a evolução para completa amaurose2; de acordo com essa teoria, esse incremento na
privação sensorial deveria intensificar a alucinação, entretanto não é o que ocorre. Portanto, a
fisiopatologia da SCB ainda permanece incerta.
Características das alucinações
Nesta revisão houve concordância entre os autores com relação à maioria das
características das alucinações: as imagens são vívidas, porém afônicas e os pacientes são
capazes de descrevê-las em detalhes, mesmo mantendo consciência do caráter irreal do
fenômeno. Esses aspectos parecem ser consenso também na literatura15, inclusive, a
manutenção da consciência do caráter irreal e ausência de alucinações em outras modalidades
sensoriais compõe dois dos critérios diagnósticos mais utilizados para a síndrome15. Tanto nos
artigos revisados como na literatura, a riqueza de detalhes e as imagens vívidas descritas pelos
pacientes são elementos que chamam atenção na SCB. Alguns estudos, inclusive, descrevem
que as alucinações são vistas com maior nitidez que objetos reais15,25, sendo diferenciados
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desses últimos apenas pela incoerência contextual da imagem28, como por exemplo, a
presença de animais silvestres na sala-de-estar.
Padrões relacionados à temporalidade da experiência alucinatória tiveram pouca
variação entre os autores: a frequência foi relatada como diária, semanal ou mensal; o curso
flutuante ao longo do dia, semana ou mês; podendo ocorrer em qualquer horário do dia,
(alguns estudos descrevem predominância à noite ou pela manhã); possui duração média de
minutos, podendo chegar até 1 hora. Numa revisão realizada em 2008 por Cammaroto et al15,
foi constatado que 55% dos pacientes tinham alucinação semanalmente ou mensalmente e
27% tinham diariamente; 53% das alucinações duravam entre 1 a 60 minutos e 13% menos de
5 segundos.
As variações maiores foram em relação ao conteúdo alucinatório: as alucinações
podem envolver pessoas, animais, objetos, construções e/ou paisagens; em tamanho real ou
miniaturas; em cores ou preto e brancas; estáticas ou em movimento; podendo ser sempre as
mesmas ou variar. Esse conteúdo alucinatório não demonstrou possuir significado ou
familiaridade para os pacientes. Na revisão realizada por Cammaroto et al15, constatou-se que
80% das alucinações envolviam pessoas, 38% animais, 26% plantas e 15% prédios, cenas,
objetos ou outras figuras inanimadas; 16% das alucinações eram em cores, 47% em
movimento.
Os resultados dessa revisão foram compatíveis com o exposto na literatura. Na revisão
de Fernandez et al27 foram descritas as seguintes características: o conteúdo alucinatório
envolve principalmente pessoas, animais, construções e cenas, estáticas ou em movimento; a
frequência variou entre segundos até um dia inteiro; desaparecimento da alucinação com o
fechar dos olhos e ausência de significado ou familiaridade para os pacientes. Nessa revisão
não foram constatados fatores desencadeantes, embora artigos descrevam alguns pacientes
que associam suas alucinações a iluminação, cansaço e/ou estresse20.
Avaliação de neuroimagem na SCB
Os estudos da neuroimagem nos pacientes com a SCB não evidenciaram alteração
estrutural que justificasse os sintomas19. Esse fato está de acordo com a literatura; as
pesquisas envolvendo o estudo da neuroimagem na SCB não evidenciam dano significativo
na estrutura cerebral dos pacientes13,
14,28
. Entretanto achados na neuroimagem funcional
mostraram regiões do encéfalo com maior ativação durante os fenômenos alucinatórios13,14,28.
O estudo realizado por Adachi et al13 revela um aumento de atividade unilateral no lobo
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temporal, corpo estriado e tálamo, durante a ocorrência das alucinações. No estudo de Ffytche
et al28, realizado em 1998, quatro pacientes foram submetidos a RNMf de crânio, e foi
identificado um aumento de atividade da parte anterior do lobo occipital e em área próxima ao
lobo temporal lateral inferior (Área: BA37). Outro estudo realizado em 2009 por Kazui et al14,
com duas pacientes com a SCB, identifica também essa área (BA 37), localizada entre o
córtex occipital e temporal, como a responsável pela ativação endógena espontânea durante
episódios alucinatórios. Os autores inferem que há uma compensação cortical excessiva
nessas regiões, após a redução do input visual periférico, que poderia estar relacionada com o
desenvolvimento de alucinações visuais13,14,28.
Os lobos occipital e temporal são responsáveis, no sistema nervoso central, pela
percepção e interpretação de informações visuais; sendo o lobo temporal mais especializado
no processo de percepção visual de figuras complexas25. Essa função é coerente com o tipo de
alucinação descrita na SCB e poderia explicar a ativação, detectada através da RNMf, durante
a experiência alucinatória25. Entretanto a etiologia dessa atividade ainda permanece
controversa.
Abordagem terapeutica na SCB
Não existiu consenso sobre a terapia medicamentosa na presente revisão. Na literatura,
as pesquisas nessa área ainda persistem escassas. A maioria dos estudos que abordam o
manejo clínico da SCB são estudos de casos individuais ou série de casos. Eperjesi et al2, em
2004, publicou uma revisão sobre o manejo terapêutico na SCB e afirma que a abordagem
mais eficiente para interrupção das alucinações foi a recuperação da acuidade visual, através
do tratamento da doença oftalmológica de base. A recuperação, mesmo que parcial, da função
visual já possui resultados significativos na redução dos sintomas2. Algumas técnicas para
encurtar a duração das alucinações também são descritas2: fechar os olhos; piscar os olhos
rapidamente; direcionar um foco de luz na imagem; concentrar-se em outra coisa; tentar
interagir com a alucinação.
As
medicações
geralmente
prescritas
na
SCB
incluem
antipsicóticos,
anticonvulsivantes e benzodiazepínicos2. São utilizadas por sua eficácia no tratamento de
alucinações visuais em pacientes com delírio ou esquizofrenia15. Entretanto, a eficácia na
SCB ainda é questionável, sendo demonstrada apenas por alguns estudos de caso individuais.
O estudo incluso na revisão, que instituiu terapia medicamentosa, relatou o uso de
anticolinesterásicos, antidepressivos, antipsicóticos, anticonvulsivantes, em monoterapia ou
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associação, apenas com resposta parcial ou sem resposta19. Portanto, mais estudos utilizando
um número amostral maior e ensaios clínicos randomizados são necessários para chegar a
alguma conclusão a respeito das opções medicamentosas.
Na maioria dos estudos revisados nenhuma terapia medicamentosa foi instituída. O
esclarecimento sobre a SCB e seu caráter benigno foi suficiente para reduzir o impacto
negativo dos sintomas, sendo assim, a terapia medicamentosa foi dispensada pelos próprios
pacientes3,4,20,23. Os estudos revisados mostraram que número expressivo de pacientes com a
síndrome, que inicialmente haviam se mostrado incomodados ou assustados com as
alucinações, se habituaram a experiência e atualmente referem reações neutras ou
positivas13,19,20. É consenso na literatura que o esclarecimento sobre a SCB traz alívio ao
paciente e familiares, reduzindo ansiedade e preocupações em relação à possibilidade de
doenças mentais2,15. A revisão realizada por Eperjesi et al2 está de acordo com esse fato,
conclui que a melhor forma de reabilitar esses pacientes é através do esclarecimento sobre o
caráter benigno das alucinações e suas causas, e acrescenta a relevância da psicoterapia
individual ou em grupo no suporte psicoemocional do indivíduo. Isolamento social é um fator
que pode contribuir com a piora dos sintomas2,15; por isso, pacientes com SCB podem se
beneficiar da terapia em grupo, proporcionando um ambiente sadio de interação social, onde
eles possam trocar experiências, informações e orientações de como lidar melhor com a
experiência da síndrome2,15.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A principal limitação da revisão foi a amostra reduzida, provavelmente por causa do
desconhecimento e subdiagnóstico da síndrome. A variação da prevalência (0,4 3 a 34%20)
também pode demonstrar diferenças nos critérios diagnósticos e nos métodos de avaliação da
alucinação visual utilizados, visto que ainda há controvérsias na literatura em relação a esses
aspectos2,15.
Assim, mais estudos na área são necessários para que se possa conhecer a SCB e
realizar o diagnóstico diferencial de síndromes demenciais e psiquiátricas. Essa proposta
possivelmente trará grandes benefícios para o sistema de saúde e para os que vivenciam a
SCB.
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