Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
SÍNDROME DE CHARLES BONNET: UMA REVISÃO INTEGRATIVA Camila Machado Gonçalves,1 Frederico Luiz da Silva Figueirôa2 RESUMO A síndrome de Charles Bonnet (SCB) é definida por alucinações visuais complexas em pacientes sem comprometimento cognitivo e com doença oftalmológica acompanhada de redução na acuidade visual. Possui caráter benigno, o paciente mantém consciência da natureza irreal do fenômeno e tem sido relatada principalmente em idosos. A SCB é importante diagnóstico diferencial de síndromes demenciais, e seu correto diagnóstico possui grande impacto na qualidade de vida dos pacientes, que sofrem com o estigma da doença psiquiátrica, com o insucesso das terapias instituídas e com a possibilidade de declínio cognitivo iminente. É possível evitar esse impacto negativo através do esclarecimento sobre a síndrome. Daí a relevância da difusão da informação e correto diagnóstico clínico. Objetivo: Nesse contexto, foi realizada uma revisão integrativa da literatura para melhor caracterizar a síndrome de Charles Bonnet, para contribuir com a disseminação do conhecimento sobre assunto. Metodologia: para a seleção dos artigos utilizou-se aqueles disponíveis nas bases de dados PUBMED e SCIELO; no período entre 2000 e 2017; nos idiomas português e inglês; utilizando as palavras chaves no título: “Síndrome de Charles Bonnet” ou “Charles Bonnet Syndrome”. A qualidade metodológica dos artigos foi avaliada pelos critérios do STROBE e do CARE. Resultados e Discussão: Foram selecionados nove artigos (três séries de caso, cinco estudos de prevalência e um estudo de incidência). A prevalência SCB mostrou-se bastante variável dentre os estudos revisados (0,4% e 34%) e a média de idade foi entre 70 e 80 anos. As características das alucinações identificadas foram: frequência diária, semanal ou mensal; imagens afônicas, podendo ser em cores ou preto e brancas, estáticas ou dinâmicas; o conteúdo pode envolver pessoas, animais, objetos, construções e/ou paisagens, em tamanho real ou miniaturas. O estudo da neuroimagem funcional revelou aumento de atividade unilateral no lobo temporal, corpo estriado e tálamo; áreas envolvidas no processo de percepção e interpretação do estímulo visual. Não existiu consenso sobre a terapia medicamentosa na presente revisão. A maioria dos estudos que abordam o manejo clínico da SCB são estudos de casos individuais ou série de casos. Entretanto, autores afirmam que o esclarecimento sobre a SCB e seu caráter benigno reduziu o incômodo causado pelas alucinações nos pacientes e, assim, a terapia medicamentosa foi dispensada pelos próprios pacientes. Conclusão: Mais estudos na área são necessários para que se possa conhecer a SCB e realizar o diagnóstico diferencial de síndromes demenciais e psiquiátricas. Essa proposta possivelmente trará grandes benefícios para o sistema de saúde e para os que vivenciam a SCB. Palavras-chave: Síndrome de Charles Bonnet; Alucinação visual em idosos. ABSTRACT Charles Bonnet Syndrome (SCB) is defined by complex visual hallucinations in patients without cognitive impairment and ophthalmologic disease accompanied by reduced visual acuity. It has benign character, the patient is aware of the unreal nature of the phenomenon and has been reported mainly in the elderly. SCB is an important differential diagnosis of dementia syndromes, and its correct diagnosis has a great impact on patients' quality of life, who suffer from the stigma of psychiatric illness, failure of established therapies and the possibility of imminent cognitive decline. It is possible to avoid this negative impact by clarifying the syndrome. Hence the relevance of information diffusion and correct clinical diagnosis. Objective: In this context, an integrative literature review was conducted to better characterize the CBS, to contribute to the dissemination of knowledge about the subject. Methodology: for the selection of articles were used those available in PUBMED and SCIELO databases; in the period between 2000 and 2017; in Portuguese and English; using the key words in the title: "Charles Bonnet Syndrome" or "Charles Bonnet Syndrome". Methodological quality was assessed by the STROBE and CARE criteria. Results and Discussion: We selected nine articles (three case series, five prevalence studies and one incidence study). CBS prevalence was very variable among the reviewed studies (0.4% and 34%) and the mean age was between 70 and 80 years. The characteristics of the identified hallucinations were: daily, weekly or monthly frequency; pictures may be in color or black and white, static or dynamic; the content can involve people, animals, objects, buildings and / or landscapes, full size or miniatures. The study of functional neuroimaging revealed 1 Graduanda de medicina na Escola Bahiana de medicina, Salvador, BA. Ex-estagiária da Fundação de Neurologia e Neurocirurgia Instituto do Cérebro, Salvador, BA. E-mail: camilamachadocmg@gmail.com 2 Mestrado em Medicina e Saúde pela Fundação Para o Desenvolvimento das Ciências, Brasil(2005). Médico da Fundação de Neurologia e Neurocirurgia, Brasil. Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br increased unilateral activity in the temporal lobe, striatum and thalamus; areas involved in the process of perception and interpretation of the visual stimulus. There was no consensus on drug therapy in the present review. Most of the studies that address the clinical management of CBS are individual case studies or case series. However, authors argue that clarification about CBS and its benign nature reduced the discomfort caused by hallucinations in patients and thus drug therapy was dispensed by the patients themselves. Conclusion: More studies in the area are necessary to know the CBS and perform the differential diagnosis of dementia and psychiatric syndromes. This proposal will possibly bring great benefits to the health system and to those who experience CBS. Keywords: Charles Bonnet syndrome; Visual hallucinations in the elderly. INTRODUÇÃO A síndrome de Charles Bonnet (SCB) é definida por alucinações visuais complexas em pacientes sem comprometimento cognitivo e com doença oftalmológica acompanhada de redução na acuidade visual1-4. A SCB possui caráter benigno1-7, onde o paciente mantém consciência da natureza irreal do fenômeno1-3,5, e tem sido relatada principalmente em idosos4,7-10. Foi descrita pela primeira vez no século XVIII pelo filósofo suíço Charles Bonnet (1720-1792) que relatou tais achados em seu avô Charles Lullin (Figura 1)1,10,11. Anos mais tarde, o próprio Bonnet cursou com deterioração da acuidade visual e desenvolveu alucinações semelhantes às do seu avô1. O termo “Síndrome de Charles Bonnet” foi primeiramente utilizado por De Morsier, em 1967, para definir a ocorrência de alucinações visuais em pacientes idosos com função cerebral intacta8. Hoje já se sabe que não é uma condição exclusiva de pacientes em idade avançada, podendo estar presentes em qualquer faixa etária5,8,10. Uma peculiaridade dessa síndrome é que mesmo tendo consciência da natureza irreal Figura 1. Naturalista e filósofo Charles Bonnet. (Figura retirada do artigo publicado por Jacob et al, 2004). do fenômeno, o paciente é capaz de descrever em detalhes as imagens que vê1,5,6,9. A alucinação visual pode ocorrer em diversas situações clínicas e é definida como uma percepção visual na ausência de estímulo externo 5,6,9, podendo ser simples ou complexa. As alucinações visuais simples são compostas de imagens abstratas, flashes de luz, linhas e formas geométricas9. Já as alucinações visuais complexas são compostas de imagens mais elaboradas, como de pessoas, animais, plantas ou objetos1,4,6,9. Os mecanismos fisiopatológicos envolvidos no processo de alucinação visual na SCB ainda 303 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br não foram totalmente elucidados8-10,12. A hipótese mais aceita é a de que a hiperexcitabilidade de circuitos neurais centrais, causada pela redução de aferência visual periférica, promova a formação de imagens complexas1,3-9,13,14. Os critérios diagnósticos para SCB também permanecem controversos. Atualmente, os mais utilizados são: I) Presença de alucinação visual complexa, estereotipada, persistente ou repetitiva; II) Manutenção da consciência do caráter irreal do fenômeno; III) Ausência de alucinações em outras modalidades sensoriais; IV) Ausência de comprometimento cognitivo 15. Todos esses critérios devem estar presentes para que a SCB seja diagnosticada. Estimativas da prevalência da SCB em diferentes amostras variam entre 0,4% até 36%, sendo esse valor ainda subestimado considerando o número elevado de subdiagnósticos1,3,4,5,7,10,12. As principais razões para esse subdiagnóstico são: o desconhecimento dessa entidade pela comunidade médica, dificultando o reconhecimento e diagnóstico da síndrome1,2,4,5,7,9,10; e a relutância do paciente de compartilhar tais experiências, com receio do estigma de doenças psiquiátricas1,2,5,7,9,10 ou de ser considerado mentalmente incapaz3,5,11,12. A Síndrome de Charles Bonnet é uma condição relativamente comum em idosos, porém não é considerada como tal na prática clínica, sendo ainda pouco conhecida2,9,10. Essa falta de conhecimento traz consequências negativas para o paciente, que é diagnosticado e tratado de forma equivocada2,5,9 . Além de sofrerem com a frustração do insucesso da terapia instituída, os pacientes enfrentam importante estresse psíquico e emocional por se considerarem em fase inicial de quadro demencial, doença psiquiátrica ou qualquer condição de declínio cognitivo 1-3,11. O diagnóstico precoce e informação ao paciente sobre o caráter benigno da sua condição possui grande impacto na qualidade de vida do paciente, reduz ansiedade dos envolvidos1,3,4,10,11, evita hospitalizações desnecessárias e dispensa exames sucessivos que oneram o sistema5,8. Portanto, é fundamental que o profissional de saúde seja capaz de investigar, reconhecer, diagnosticar e informar ao paciente sobre a SCB; e para isso é necessário ampliação e aprofundamento de estudos na área2,9. Assim, o objetivo do presente artigo é melhor caracterizar a síndrome de Charles Bonnet, para contribuir com a disseminação do conhecimento sobre assunto. Essa proposta torna-se ainda mais relevante pela prevalência significativa da condição, que ainda tende a aumentar pelo processo de envelhecimento da população7,10, associada ao impacto negativo na qualidade de vida do paciente sub-diagnosticado1,2,9,11. Dessa forma, espera-se que seja possível auxiliar profissionais de saúde a reconhecer e estabelecer diagnóstico 304 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br precocemente; reduzindo os impactos psíquicos, emocionais e sociais dessa condição através de instituição de plano terapêutico adequado10. OBJETIVOS Objetivo principal Analisar características clínicas da Síndrome de Charles Bonnet. Objetivos secundários 1. Descrever as características das alucinações visuais nos pacientes com a SCB 2. Descrever possíveis alterações de neuroimagem 3. Descrever opções terapêuticas METODOLOGIA Foi realizada uma revisão integrativa da literatura incluindo artigos disponíveis nas bases de dados PUBMED e SCIELO; no período entre 2000 e 2017; nos idiomas português e inglês; utilizando as palavras chaves no título: “Síndrome de Charles Bonnet” ou “Charles Bonnet Syndrome”. Foi feita também busca nas referências bibliográficas dos estudos encontrados e contato direto com pesquisadores. Nesse contexto, foram utilizados como critérios de inclusão: estudos observacionais de prevalência ou incidência, séries de caso a partir de cinco pacientes e ensaios terapêuticos, que descrevessem as características clínicas, achados de neuroimagem e/ou abordagem terapêutica em pacientes com a Síndrome de Charles Bonnet. Os critérios de exclusão foram: baixo rigor metodológico, o uso de critérios diagnósticos inconsistentes para seleção de pacientes com a síndrome, ausência de aplicação de instrumento validado para avaliação cognitiva e psíquica dos pacientes. Esses critérios visam garantir a representatividade da amostra, sendo importantes indicadores de confiabilidade e fidedignidade dos resultados. A qualidade metodológica dos artigos observacionais de prevalência e incidência incluídos foi avaliada de acordo com os critérios da iniciativa STROBE (Strengthening the Reporting of Observational Studies in Epidemiology), atribuindo para cada um dos 22 critérios uma pontuação 0 (não atende) ou 1 (atende).17 Para avaliação da qualidade metodológica dos estudos de casos foram utilizados os critérios do CARE (Case Report Guidelines Checklist), atribuindo para cada um dos 13 critérios uma pontuação 0 (não 305 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br atende) ou 1 (atende)18. A pontuação global obtida no STROBE e no CARE foi convertida em percentual e organizada em quatro categorias: Categoria A – 76 a 100%; Categoria B 51 a 75%; Categoria C - 26 a 50%; Categoria D - 00 a 25%. Artigos classificados nas categorias C ou D seriam excluídos da revisão. A extração de dados dos artigos selecionados foi realizada utilizando um instrumento previamente elaborado com intuito de garantir precisão na checagem das informações. Esse instrumento incluiu os seguintes dados: autor/ano, desenho de estudo, número de pacientes com a síndrome, características da alucinação, descrição da neuroimagem e abordagem terapêutica. A discussão dos resultados foi organizada em quatro sessões: Descrição clínica da SCB; Características das Alucinações; Avaliação de neuroimagem na SCB e Abordagem terapêutica da SCB. Assim, esse método teve como finalidade reunir e sintetizar resultados de pesquisas sobre a Síndrome Charles Bonnet, de maneira sistemática e ordenada, contribuindo para o aprofundamento do conhecimento sobre o tema investigado16. RESULTADOS Foram identificados 103 artigos utilizando as palavras chaves nas bases de dados Pubmed e Scielo no período entre 2000 a 2017. Após a análise dos títulos e resumos, foram selecionados a partir dos critérios de inclusão e exclusão, 21 artigos para leitura completa. Foi excluído um estudo por duplicidade, sete por não se enquadrarem nos critérios de elegibilidade e quatro por indisponibilidade do trabalho na íntegra, restando nove artigos que foram inclusos na Revisão (Figura 2). 306 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br Os nove artigos inclusos na revisão (três séries de caso, cinco estudos de prevalência e um estudo de incidência) foram avaliados quanto à qualidade metodológica pelos critérios do STROBE17 e do CARE18 (Tabela 1). Dentre os estudos analisados, três foram classificados na Categoria A, seis na Categoria B e zero nas Categorias C e D. Nenhum estudo foi excluído; todos os artigos apresentaram qualidade metodológica satisfatória para a proposta desta revisão, sendo únicos identificados na categoria. 307 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br Os dados extraídos dos artigos revisados estão apresentados no Quadro 1. A extração de elementos para análise incluiu autoria/ano, cidade/país onde ocorreu o estudo, desenho de estudo, número de pacientes com a SCB, características das alucinações dos pacientes, principais achados na neuroimagem e opções de abordagem terapêutica. 308 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br Quadro 1: Estudos referentes à Síndrome de Charles Bonnet publicada no período de 2000 a 2017 AUTORIA LOCAL / ANO DESENHO DE ESTUDO Nº DE PACIENTES COM A SCB CARACTERÍSTICAS DA ALUCINAÇÃO ACHADOS NA NEUROIMAGEM PET- TC: Aumento de atividade unilateral no lobo temporal, corpo estriado e tálamo. RM: Atrofia cerebral difusa e áreas de gliose ABORDAGEM E RESPOSTA TERAPEUTICA ADACHI et al/ 200013 Sapporo, Japão. Série de casos 5 pacientes (64 a 80 anos) Frequência diária; imagens vívidas, estáticas e afônicas; conteúdo envolvendo pessoas e animais; curso flutuante; consciência do caráter irreal do fenômeno. NR BRUCKI et al/ 200919 São Paulo, Brasil. Série de casos 6 pacientes (50 a 93 anos) Frequência diária; conteúdo envolvendo pessoas, animais, paisagens (montanhas, campos abertos), construções (muros, pilastras); em tamanho real ou miniaturas; ausência de comprometimento cognitivo associado. TC: Encefalomalácia do lobo frontal direito; tumor supraselar com compressão de quiasma óptico; gliose do lobo frontal bilateral. GILMOUR et al/ 200920 Saskatoo n, Canadá. Observaciona l de Incidência 87 pacientes (41 a 99 anos) Frequência diária, semanal ou mensal; imagens em cores ou preto e brancas; conteúdo envolvendo pessoas, animais, plantas; com duração de segundos a poucos minutos; ausência de comprometimento cognitivo associado; consciência do caráter irreal do fenômeno. NR NR HOU et al/ 201221 Changsha , China. Observaciona l de Prevalência 6 pacientes (64 a 89 anos) Frequência diária, semanal ou mensal; imagens coloridas, móveis; conteúdo envolvendo pessoas, animais, plantas, objetos, cenas elaboradas; em tamanho real ou miniaturas; com duração de segundos a 1 hora; consciência do caráter irreal do fenômeno. NR NR Donezepila + Sertralina: resposta parcial Rivastigmina + Sertralina: resposta parcial Olanzapina: resposta parcial Donezepila, galantamina, sertralina, risperidona e haloperidol sem resposta. 309 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br NALCACI et al/ 201622 Bornova, Turquia. Observaciona l de Prevalência 17 pacientes (31 a 90 anos) Ocorrência em qualquer hora do dia; com duração de alguns minutos; consciência do caráter irreal do fenômeno. NR NR NESHER et al/ 200123 Kfar Saba, Israel. Observaciona l de Prevalência 11 pacientes (60 a 96 anos) Frequência diária ou semanal; imagens em cores, pretas e brancas, ou monocromáticas; conteúdo envolvendo pessoas, animais, plantas, objetos, construções, cenas, seres fantasiosos; em tamanho real, miniaturas, ou tamanho ampliado; com duração de 1 a 2 minutos; consciência do caráter irreal do fenômeno. NR NR SHIRAISH I et al/ 200424 Kitakyus hu, Japão. Observaciona l de Prevalência 5 pacientes (29 a 74 anos) Frequência diária ou semanal; conteúdo envolvendo pessoas, insetos, objetos e construções; com duração de poucos segundos a 1 hora; consciência do caráter irreal do fenômeno. NR NR TAN et al/ 20043 Novena, Singapur a. Observaciona l de Prevalência 4 pacientes (65 a 90 anos) Frequência diária; imagens vívidas, em cores, com movimento; conteúdo envolvendo pessoas, animais, objetos, seres fantasiosos; em tamanho real ou miniatura; com duração de segundos a 1 hora. NR NR VALE et al/ 20144 BeloHorizont e Brasil. Série de casos 8 pacientes (35 a 81 anos) Frequência diária ou semanal; com duração de segundos a minutos; visível com ambos os olhos, abertos ou fechados; ocorrendo predominantemente à noite. NR NR *NR - Não reportado 310 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br Caracterização da amostra A prevalência da Síndrome de Charles Bonnet mostrou-se bastante variável dentre os estudos revisados. Valores entre 0,4%3 e 34%20 foram descritos. Gilmour et al20 identificou a SCB presente em 87 pacientes (34%) da Low Vision Clinic LVC, Canadá, a população de estudo incluiu indivíduos acima de 40 anos, com redução da acuidade visual, atendidos neste serviço (n = 258 pacientes). A incidência na população em geral (com nenhuma ou baixa perda visual) foi de <2%, segundo esse mesmo estudo 20. Nesher et al23 descreveu 11 pacientes (12,3%) com a SCB na Glaucoma Clinic do Department of Ophthalmology Sapir Medical Center, Israel (n = 89 pacientes). Hou et al21 encontrou seis pacientes (1,4%) com a SCB no Department of Ophthalmology do Second Xiang Ya Hospital of Central South University, China, a população de estudo envolveu 432 pacientes acima de 60 anos, atendidos nesse serviço. Nalcaci et al22 relatou 17 pacientes (6,4%) numa amostra de 264 indivíduos com comprometimento de retina. Shiraishi et al24 investigou 1000 pacientes atendidos no Department of Ophthalmology, University of Occupational and Environmental Health, Kitakyushu, no Japão, e identificou cinco pacientes com SCB (0,5%). E Tan et al3 identificou a SCB presente em quatro pacientes (0,4%) no Comprehensive Ophthalmology Clinic in The Eye Institute at Tan Tock Seng Hospital, Singapura, onde foram incluídos 1077 pacientes acima de 50 anos atendidos nesse serviço. A maioria dos estudos calculou a média de idade dos pacientes entre 70 e 80 anos, com exceção de Shiraishi et al24 que obteve média de 54,6 anos e Vale et al4 que obteve média de 52,3 anos. Todos os estudos reportaram uma predominância da SCB em pacientes com idade superior a 60 anos, porém existiram estudos que descreveram a síndrome em pacientes mais jovens: Shiraishi et al24 identificou a síndrome em uma paciente de 29 anos; Vale et al4 encontrou três pacientes entre 30 e 40 anos com a síndrome; Nalcaci et al22 identificou um paciente de 31 anos; e Gilmour et al20 relatou a síndrome em um paciente de 41 anos. Foi identificada uma discreta predominância do sexo feminino na maioria dos estudos: Shiraishi et al24 identificou cinco pacientes todas do sexo feminino; Adachi et al13 relatou a síndrome em cinco pacientes, três do sexo feminino; Brucki et al19 e Hou et al21 descreveram seis pacientes com a síndrome, sendo quatro do sexo feminino; Nalcaci et al22 encontrou 17 pacientes, 10 do sexo feminino. Os estudos em que não se observou essa predominância foram: Tan et al3 que identificou quatro pacientes com a síndrome, sendo dois do sexo masculino; Vale et al4 identificou oito pacientes, sendo cinco do sexo masculino; e Nesher et al23 encontrou 11 pacientes, oito do sexo masculino. 311 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br Todos os pacientes com a SCB, incluídos nos estudos revisados, apresentaram doença ocular ou em via óptica (desde o nervo oftálmico até a fissura calcarina no occipital), evoluindo com redução da acuidade visual. A cognição dos pacientes nos estudos revisados foi avaliada através do Mini-Mental State Examination (MMSE). Pacientes que apresentaram comprometimento cognitivo mensurado através desse instrumento foram excluídos dos estudos. A pontuação de corte do MMSE nos estudos de Adachi et al13, Brucki et al19 e Gilmour et al20 foi de 22 pontos; no estudo de Nalcaci et al22 foi de 18 pontos. Dentre os estudos incluídos na revisão, o autor que não aplicou o MMSE foi Shiraishi et al24, que utilizou o Mini International Neuropsychiatric Interview (MINI), para excluir pacientes com doenças psiquiátricas e/ou declínio cognitivo que poderiam cursar com alucinação visual. Pacientes que apresentaram doença psiquiátrica ou neurológica cursando com delírio ou outro tipo de alucinação foram excluídos dos estudos revisados. Outras causas de alucinação visual, como abuso de drogas, uso de medicações potencialmente alucinógenas, estados metabólicos graves, também foram utilizadas como critérios de exclusão pelos autores dos estudos incluídos. As condições que poderiam levar a alucinação visual que não foram excluídas nos artigos revisados foram: depressão20, Doença de Parkinson20, epilepsia20 e AVC13, 19,23. Características da alucinação A frequência das alucinações foi relatada como diária, semanal ou mensal; as imagens são afônicas, podendo ser em cores ou preto e brancas, estáticas ou em movimento. O conteúdo envolve pessoas, animais, objetos, construções e/ou paisagens, em tamanho real ou miniaturas. Um paciente no estudo de Brucki et al19 relatou ser capaz de alterar voluntariamente o conteúdo alucinatório, transformando imagens desagradáveis em imagens agradáveis. Nos estudos de Vale et al4, Adachi et al13 e Tan et al3, o conteúdo alucinatório não demonstrou possuir significado ou familiaridade para os pacientes. As alucinações podem ser sempre as mesmas ou variar. Foi descrito um curso flutuante ao longo do dia, semana ou mês; podendo ocorrer em qualquer horário do dia, alguns estudos descrevem predominância à noite ou pela manhã (Quadro 1). Possui duração média de minutos, podendo chegar até 1 hora. Não foram descritos fatores desencadeantes ou associados, embora artigos descrevam alguns pacientes que associam suas alucinações a iluminação, cansaço e estresse20. No estudo de Gilmour et al20 67% dos pacientes referiram estar sozinhos no momento da alucinação. Segundo resultados dos estudos de Vale et al4, Adachi et al13 e Tan et al3 as imagens vistas 312 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br durante o episódio alucinatório são vívidas e os pacientes são capazes de descrevê-las em detalhes, mesmo mantendo consciência do caráter irreal do fenômeno. Todos os artigos revisados relataram ausência de comprometimento cognitivo e preservação da consciência do caráter irreal do fenômeno (Quadro 1). A descrição das reações psicoemocionais dos pacientes em relação à experiência alucinatória variou entre positivas (“agradável”, “divertido”, “interessante”, “curioso”), negativas (“irritante”, “desagradável”, “assustador”, “aterrorizante” e “estressante”) e neutras (“indiferente”)3,13,20-23. O estudo de Gilmour et al20, identificou 87 pacientes com a SCB, e mostrou que a maioria dos pacientes não se sentia incomodada com as alucinações. No estudo de Hou et al21, cinco pacientes (83%) não consideraram a experiência alucinatória estressante. Já no estudo de Brucki et al19, apenas um paciente, dos seis entrevistados, não se sentiu incomodado pelas alucinações. No estudo de Tan et al3, três pacientes demonstraram reação negativa inicialmente, incomodados ou assustados, porém posteriormente se habituaram a experiência e atualmente referem reações neutras. Segundo alguns autores, nem todos os pacientes haviam compartilhado a experiência com familiares ou médicos no momento da entrevista por receio de serem considerados mentalmente doentes20-23. No estudo de Gilmour et al20, durante a entrevista, muitos pacientes negaram os sintomas alucinatórios, mas com o esclarecimento sobre a SCB e a insistência do questionamento sobre alucinação, eles admitiram ter tido tal experiência. Nesher et al23 refere que, embora os 11 pacientes entrevistados morem com esposa e/ou família e já mantenham sintomas há um ano, apenas um paciente dividiu seu problema. Nos estudos de Hou et al21 e Nalcaci et al22 é descrito que a maioria dos pacientes não buscou ajuda médica. Gilmour et al20 refere que apenas 9% (8/87) dos pacientes buscou ajuda médica e apenas metade recebeu explicação sobre a SCB. Nos estudos de Hou et al21 e Tan et al3 a maioria dos pacientes relatou diminuição da ansiedade ao saber que suas alucinações não decorriam de doença psiquiátrica. Tan et al3 e Nesher et al23 relatam ainda que grande parte dos pacientes refere alívio ao tomar conhecimento da SCB e sentem-se mais seguros para dividir seus problemas com outros. Principais achados na neuroimagem Apenas dois estudos, Adachi et al13 e Brucki et al19 descreveram os achados na neuroimagem, totalizando nove pacientes com neuroimagem descritas e apenas cinco com neuroimagem funcional (PET- TC). Os principais achados estão descritos no Quadro 1. 313 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br Segundo Adachi et al13 a PET TC revelou em todos os pacientes aumento de atividade unilateral no lobo temporal, corpo estriado e tálamo. O exame foi realizado nos pacientes em vigília com alucinação visual em curso. Na RM de crânio, três pacientes apresentaram atrofia cerebral difusa e quatro pacientes apresentaram múltiplas áreas de gliose em substância branca periventricular. No estudo de Brucki et al19 a neuroimagem de dois pacientes não estavam disponíveis, a de um estava normal, dois apresentaram encefalomalácia do lobo frontal direito e tumor supraselar com compressão de quiasma óptico; e um, gliose do lobo frontal bilateral. Abordagem Terapêutica Apenas um estudo descreveu a abordagem terapêutica envolvendo medicação utilizada pelo paciente. No estudo de Brucki et al19, cinco pacientes receberam medicação oral, incluindo inibidores da acetilcolinesterase, antidepressivos e antipsicóticos (monoterapia ou associação). Entretanto, foi observado apenas benefício parcial em todos os casos, nenhum apresentou melhora completa do fenômeno (Quadro 1). Foi relatado nos estudos de Tan et al3, Vale et al4, Gilmour et al20 e Nesher et al23 que nenhuma terapia medicamentosa foi instituída. Esses autores afirmam que o esclarecimento sobre a Síndrome de Charles Bonnet e seu caráter benigno reduziu o incômodo causado pelas alucinações nos pacientes, sendo assim, a terapia medicamentosa foi dispensada pelos próprios3,4,20,23. DISCUSSÃO Descrição clínica da Síndrome de Charles Bonnet A Síndrome de Charles Bonnet afeta geralmente idosos com redução da capacidade visual. É importante diagnóstico diferencial de síndromes demenciais, e seu correto diagnóstico possui grande impacto na qualidade de vida dos pacientes, que sofrem com o estigma da doença psiquiátrica, com o insucesso das terapias instituídas e com a possibilidade de declínio cognitivo iminente. É possível evitar esse impacto negativo através do conhecimento de que a SCB é na verdade condição benigna. Daí a relevância da difusão da informação e correto diagnóstico clínico. O número de casos de pacientes com a síndrome está aumentando na medida em que a população envelhece15 o que torna ainda mais relevante o estudo sobre o tema. A prevalência atual já alcança valores significativos em pacientes com idade avançada e redução da 314 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br acuidade visual2,27. A revisão realizada por Fernandez et al27, em 1998, já chegava a considerar a síndrome relativamente comum, através da análise de estudos de prevalência no período. Na presente revisão, esse valor alcançou 34% (87 pacientes), num estudo que avaliou pacientes atendidos numa clínica oftalmológica no Canadá20. No estudo de Lepore26, 57% dos 104 pacientes avaliados, com perda visual de origem periférica, relataram alucinações visuais. Alucinações visuais simples foram mais comuns do que as complexas. Estima-se que 1 a cada 7 pacientes idosos já tenha vivenciado uma experiência alucinatória desse tipo2. A variação observada na taxa de prevalência pode ser decorrente de critérios diagnósticos ainda não muito bem estabelecidos, associado à relutância de alguns pacientes em admitir ter vivenciado o fenômeno 2,27. Muitos pacientes não se sentem confortáveis em dividir a experiência com familiares e profissionais de saúde, com receio do estigma da doença psiquiátrica ou de iminente declínio cognitivo1-15,19-25. Nessa revisão, estudos referem que muitos pacientes não haviam compartilhado a experiência com familiares ou médicos no momento da entrevista, e tiveram inclusive dificuldade de relatá-la mesmo após questionamento direto. Muitos pacientes, durante a entrevista, negaram sintomas alucinatórios e só os admitiram após esclarecimento sobre a SCB20. Essa falta de esclarecimento não é apenas por parte dos pacientes. Muitos profissionais de saúde, apesar de trabalharem na área, desconhecem a síndrome e não a consideram ao fazer o diagnóstico diferencial. Alguns estudos revisados colocam que muitos dos pacientes com a síndrome, que buscaram ajuda médica, receberam o diagnóstico incorreto, foram submetidos a terapias medicamentosas ineficazes, expostos a frustração do erro diagnóstico, do fracasso da terapia instituída e do estigma de doença mental. Esses pacientes e seus familiares negaram ter recebido informações sobre a SCB. Esses dados estão em concordância com a literatura, que reitera o impacto psicossocial da síndrome na vida do indivíduo, sua dificuldade em lidar com a situação e compartilhar o problema, associado ao desconhecimento sobre o assunto por parte dos profissionais de saúde1-15,19-25. Apesar da síndrome ser mais prevalente em idosos (idade superior a 60 anos), há relatos de experiência alucinatória semelhante em pacientes mais jovens que cursam com redução da acuidade visual. Na presente revisão, os pacientes mais jovens encontrados com diagnóstico de SCB foram uma jovem de 29 anos no Japão24 e um rapaz de 30 no Brasil4. Nessa revisão, também foi identificada uma discreta predominância do sexo feminino na maioria dos estudos. Não se pode, entretanto, afirmar que esse dado corresponda à real distribuição da síndrome, pois fatos como a maior busca de serviços de saúde pela mulher e a 315 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br maior facilidade da mulher de compartilhar questões de saúde, são vieses que devem ser considerados. A revisão feita por Fenandez et al27 refere não haver diferença de prevalência entre os gêneros de uma forma geral, porém reconhece uma ligeira predominância também do sexo feminino em alguns estudos. Os fatores de risco descritos na literatura para a síndrome são: isolamento social2,15 e perda visual bilateral15. Experiências alucinatórias podem ocorrer após comprometimento de qualquer porção das vias periféricas visuais26. Todos os pacientes com a SCB, incluídos nos estudos revisados, apresentaram comprometimento ocular ou em via óptica (desde o nervo oftálmico até a fissura calcarina no lobo occipital), evoluindo com redução da acuidade visual. Na verdade, alucinações sensoriais podem ocorrer sob qualquer regime de privação sensorial, seja ele temporário ou definitivo29. A explicação para isso estaria na desinibição periférica do sistema nervoso central, que apresentaria atividades espontâneas provocando alucinações simples ou complexas27,29. Isso funciona para qualquer modalidade sensorial, como é o caso da alucinação musical, análoga a SCB, descrita no estudo de Perez et al29 realizado em 2016. Atualmente, essa teoria é a mais aceita para explicar a origem da SCB. Entretanto fatos curiosos na síndrome fogem aos padrões: a riqueza de detalhes das alucinações necessitaria de ativação de redes neuronais mais complexas, que dificilmente seriam provocadas por atividade neuronal espontânea28; e o desaparecimento da alucinação ao fechar os olhos ou com a evolução para completa amaurose2; de acordo com essa teoria, esse incremento na privação sensorial deveria intensificar a alucinação, entretanto não é o que ocorre. Portanto, a fisiopatologia da SCB ainda permanece incerta. Características das alucinações Nesta revisão houve concordância entre os autores com relação à maioria das características das alucinações: as imagens são vívidas, porém afônicas e os pacientes são capazes de descrevê-las em detalhes, mesmo mantendo consciência do caráter irreal do fenômeno. Esses aspectos parecem ser consenso também na literatura15, inclusive, a manutenção da consciência do caráter irreal e ausência de alucinações em outras modalidades sensoriais compõe dois dos critérios diagnósticos mais utilizados para a síndrome15. Tanto nos artigos revisados como na literatura, a riqueza de detalhes e as imagens vívidas descritas pelos pacientes são elementos que chamam atenção na SCB. Alguns estudos, inclusive, descrevem que as alucinações são vistas com maior nitidez que objetos reais15,25, sendo diferenciados 316 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br desses últimos apenas pela incoerência contextual da imagem28, como por exemplo, a presença de animais silvestres na sala-de-estar. Padrões relacionados à temporalidade da experiência alucinatória tiveram pouca variação entre os autores: a frequência foi relatada como diária, semanal ou mensal; o curso flutuante ao longo do dia, semana ou mês; podendo ocorrer em qualquer horário do dia, (alguns estudos descrevem predominância à noite ou pela manhã); possui duração média de minutos, podendo chegar até 1 hora. Numa revisão realizada em 2008 por Cammaroto et al15, foi constatado que 55% dos pacientes tinham alucinação semanalmente ou mensalmente e 27% tinham diariamente; 53% das alucinações duravam entre 1 a 60 minutos e 13% menos de 5 segundos. As variações maiores foram em relação ao conteúdo alucinatório: as alucinações podem envolver pessoas, animais, objetos, construções e/ou paisagens; em tamanho real ou miniaturas; em cores ou preto e brancas; estáticas ou em movimento; podendo ser sempre as mesmas ou variar. Esse conteúdo alucinatório não demonstrou possuir significado ou familiaridade para os pacientes. Na revisão realizada por Cammaroto et al15, constatou-se que 80% das alucinações envolviam pessoas, 38% animais, 26% plantas e 15% prédios, cenas, objetos ou outras figuras inanimadas; 16% das alucinações eram em cores, 47% em movimento. Os resultados dessa revisão foram compatíveis com o exposto na literatura. Na revisão de Fernandez et al27 foram descritas as seguintes características: o conteúdo alucinatório envolve principalmente pessoas, animais, construções e cenas, estáticas ou em movimento; a frequência variou entre segundos até um dia inteiro; desaparecimento da alucinação com o fechar dos olhos e ausência de significado ou familiaridade para os pacientes. Nessa revisão não foram constatados fatores desencadeantes, embora artigos descrevam alguns pacientes que associam suas alucinações a iluminação, cansaço e/ou estresse20. Avaliação de neuroimagem na SCB Os estudos da neuroimagem nos pacientes com a SCB não evidenciaram alteração estrutural que justificasse os sintomas19. Esse fato está de acordo com a literatura; as pesquisas envolvendo o estudo da neuroimagem na SCB não evidenciam dano significativo na estrutura cerebral dos pacientes13, 14,28 . Entretanto achados na neuroimagem funcional mostraram regiões do encéfalo com maior ativação durante os fenômenos alucinatórios13,14,28. O estudo realizado por Adachi et al13 revela um aumento de atividade unilateral no lobo 317 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br temporal, corpo estriado e tálamo, durante a ocorrência das alucinações. No estudo de Ffytche et al28, realizado em 1998, quatro pacientes foram submetidos a RNMf de crânio, e foi identificado um aumento de atividade da parte anterior do lobo occipital e em área próxima ao lobo temporal lateral inferior (Área: BA37). Outro estudo realizado em 2009 por Kazui et al14, com duas pacientes com a SCB, identifica também essa área (BA 37), localizada entre o córtex occipital e temporal, como a responsável pela ativação endógena espontânea durante episódios alucinatórios. Os autores inferem que há uma compensação cortical excessiva nessas regiões, após a redução do input visual periférico, que poderia estar relacionada com o desenvolvimento de alucinações visuais13,14,28. Os lobos occipital e temporal são responsáveis, no sistema nervoso central, pela percepção e interpretação de informações visuais; sendo o lobo temporal mais especializado no processo de percepção visual de figuras complexas25. Essa função é coerente com o tipo de alucinação descrita na SCB e poderia explicar a ativação, detectada através da RNMf, durante a experiência alucinatória25. Entretanto a etiologia dessa atividade ainda permanece controversa. Abordagem terapeutica na SCB Não existiu consenso sobre a terapia medicamentosa na presente revisão. Na literatura, as pesquisas nessa área ainda persistem escassas. A maioria dos estudos que abordam o manejo clínico da SCB são estudos de casos individuais ou série de casos. Eperjesi et al2, em 2004, publicou uma revisão sobre o manejo terapêutico na SCB e afirma que a abordagem mais eficiente para interrupção das alucinações foi a recuperação da acuidade visual, através do tratamento da doença oftalmológica de base. A recuperação, mesmo que parcial, da função visual já possui resultados significativos na redução dos sintomas2. Algumas técnicas para encurtar a duração das alucinações também são descritas2: fechar os olhos; piscar os olhos rapidamente; direcionar um foco de luz na imagem; concentrar-se em outra coisa; tentar interagir com a alucinação. As medicações geralmente prescritas na SCB incluem antipsicóticos, anticonvulsivantes e benzodiazepínicos2. São utilizadas por sua eficácia no tratamento de alucinações visuais em pacientes com delírio ou esquizofrenia15. Entretanto, a eficácia na SCB ainda é questionável, sendo demonstrada apenas por alguns estudos de caso individuais. O estudo incluso na revisão, que instituiu terapia medicamentosa, relatou o uso de anticolinesterásicos, antidepressivos, antipsicóticos, anticonvulsivantes, em monoterapia ou 318 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br associação, apenas com resposta parcial ou sem resposta19. Portanto, mais estudos utilizando um número amostral maior e ensaios clínicos randomizados são necessários para chegar a alguma conclusão a respeito das opções medicamentosas. Na maioria dos estudos revisados nenhuma terapia medicamentosa foi instituída. O esclarecimento sobre a SCB e seu caráter benigno foi suficiente para reduzir o impacto negativo dos sintomas, sendo assim, a terapia medicamentosa foi dispensada pelos próprios pacientes3,4,20,23. Os estudos revisados mostraram que número expressivo de pacientes com a síndrome, que inicialmente haviam se mostrado incomodados ou assustados com as alucinações, se habituaram a experiência e atualmente referem reações neutras ou positivas13,19,20. É consenso na literatura que o esclarecimento sobre a SCB traz alívio ao paciente e familiares, reduzindo ansiedade e preocupações em relação à possibilidade de doenças mentais2,15. A revisão realizada por Eperjesi et al2 está de acordo com esse fato, conclui que a melhor forma de reabilitar esses pacientes é através do esclarecimento sobre o caráter benigno das alucinações e suas causas, e acrescenta a relevância da psicoterapia individual ou em grupo no suporte psicoemocional do indivíduo. Isolamento social é um fator que pode contribuir com a piora dos sintomas2,15; por isso, pacientes com SCB podem se beneficiar da terapia em grupo, proporcionando um ambiente sadio de interação social, onde eles possam trocar experiências, informações e orientações de como lidar melhor com a experiência da síndrome2,15. CONSIDERAÇÕES FINAIS A principal limitação da revisão foi a amostra reduzida, provavelmente por causa do desconhecimento e subdiagnóstico da síndrome. A variação da prevalência (0,4 3 a 34%20) também pode demonstrar diferenças nos critérios diagnósticos e nos métodos de avaliação da alucinação visual utilizados, visto que ainda há controvérsias na literatura em relação a esses aspectos2,15. Assim, mais estudos na área são necessários para que se possa conhecer a SCB e realizar o diagnóstico diferencial de síndromes demenciais e psiquiátricas. Essa proposta possivelmente trará grandes benefícios para o sistema de saúde e para os que vivenciam a SCB. 319 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br REFERÊNCIAS 1. Cortizo V, Rosa AAM, Soriano DS, Takada LT, Nitrini R.. Síndrome de Charles Bonnet: alucinações visuais em pacientes com doenças oculares - Relato de caso. Arq. Bras. Oftalmol. 2005 Feb [cited 2017 May 17] ;68(1):129-132. 2. Eperjesi F, Akbarali N. Rehabilitation in Charles Bonnet syndrome: a review of treatment options. Clin Exp Optom. 2004 May;87(3):149-52. 3. Tan CS, Lim VS, Ho DY, Yeo E, Ng BY, Au Eong KG Charles Bonnet syndrome in Asian patients in a tertiary ophthalmic centre. Br J Ophthalmol. 2004 Oct;88(10):1325-9. 4. Vale TC, Fernandes LC, Caramelli P. Charles Bonnet syndrome: characteristics of its visual hallucinations and differential diagnosis. Arq Neuropsiquiatr 2014 May;72(5):333-6. 5. Jackson ML, Joseph F. Charles Bonnet syndrome: visual loss and hallucinations. CMAJ. 2009 Aug 4;181(3-4):175–176. 6. Reichert DP, Seriès P, Storkey AJ. Charles Bonnet syndrome: evidence for a generative model in the cortex? PLoS Comput Biol. 2013;9(7):e1003134. 7. García-Catalán MR., Arriola-Villalobos P, Santos-Bueso E, Gil-de-Bernabé J, Díaz-Valle D, Benítez-del-Castillo JM, García-Sánche J. Charles Bonnet syndrome precipitated by brimonidine. Arch Soc Esp Oftalmol. 2013;88:362-4. 8. Cinar N, Sahin S, Karsidag S. Eye-related visual hallucinations: Consider ‘Charles Bonnet syndrome’. Indian J Ophthalmol. 2011 May-Jun;59(3):229–230. 9. Jacob A, Prasad S, Boggild M, Chandratre S. Lesson of the week: Charles Bonnet syndrome—elderly people and visual hallucinations. BMJ. 2004 Jun 26; 328(7455):1552– 1554. 10. Maranhão-Filho, Andrade P. Síndrome de Charles Bonnet: a propósito de um caso. Rev. Bras. Neurol. 2009 abr-jun;45(2):21-24. 11. Cox TM, ffytche DH. Negative outcome Charles Bonnet syndrome. Br J Ophthalmol. 2014 Sep;98(9):1236-9. 12. Cohen SY, Bulik A, Tadayoni R, Quentel G. Visual hallucinations and Charles Bonnet syndrome after photodynamic therapy for age related macular degeneration. Br J Ophthalmol. 2003 Aug;87(8):977-9. 13. Adachi N, Watanabe T, Matsuda H, Onuma T. Hyperperfusion in the lateral temporal cortex, the striatum and the thalamus during complex visual hallucinations: single photon emission computed tomography findings in patients with Charles Bonnet syndrome. Psychiatry Clin Neurosci. 2000 Apr;54(2):157-62. 14. Kazui H, Ishii R, Yoshida T, Ikezawa K, Takaya M, Tokunaga H, Tanaka T, Takeda M. Neuroimaging studies in patients with Charles Bonnet Syndrome. Psychogeriatrics. 2009 Jun;9(2):77-84. 320 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br 15. Cammaroto S, D'Aleo G, Smorto C, Bramanti P. Charles Bonnet syndrome. Functional Neurology. 2008 Mar;23(3):123. 16. Sasso MKD, Pereira RCS, Galvão CM. Revisão integrativa: método de pesquisa para a incorporação de evidências na saúde e na enfermagem. Texto contexto - enferm. 2008 Dec [cited 2017 May 17];17(4):758-764. 17. Malta M, Cardoso LO, Bastos FI, Magnanini MMF, Silva Cosme Marcelo Furtado Passos da. Iniciativa STROBE: subsídios para a comunicação de estudos observacionais. Rev. Saúde Pública [Internet]. 2010 June [cited 2017 May 16] ;44(3):559-565. 18. Gagnier JJ, Kienle G, Altman DG, Moher D, Sox H, Riley D. The CARE guidelines: consensus-based clinical case reporting guideline development. Journal of Medical Case Reports 2013 7:223. 19. Brucki SMD, Takada LT, Nitrini R. Charles Bonnet Syndrome: Case series. Dement. neuropsychol. 2009 Mar [cited 2017 May 17];3(1):61-67. 20. Gilmour G, Schreiber C, Ewing C. An examination of the relationship between low vision and Charles Bonnet syndrome. Can J Ophthalmol. 2009 Feb;44(1):49-52. 21. Hou Y, Zhang Y. The prevalence and clinical characteristics of Charles Bonnet syndrome in Chinese patients. Gen Hosp Psychiatry. 2012 Sep-Oct;34(5):566-70. 22. Nalcaci S, İlim O, Oztas Z, Akkin C, Acarer A, Afrashi F, Mentes J. The Prevalence and Characteristics of Charles Bonnet Syndrome in Turkish Patients with Retinal Disease. Ophthalmologica. 2016 236(1):48-52. 23. Nesher R, Nesher G, Epstein E, Assia E. Charles Bonnet syndrome in glaucoma patients with low vision. J Glaucoma. 2001 Oct;10(5):396-400. 24. Shiraishi Y, Terao T, Ibi K, Nakamura J, Tawara A. The rarity of Charles Bonnet. J Psychiatr Res. 2004 Mar-Apr;38(2):207-13. 25. Santhouse AM, Howard RJ, Ffytche DH. Visual hallucinatory syndromes and the anatomy of the visual brain. Brain 2000 123.10:2055-2064. 26. Lepore FE. Spontaneous visual phenomena with visual loss 104 patients with lesions of retinal and neural afferent pathways. Neurology. 1990 40.3 Part 1: 444-444. 27. Fernandez A, Lichtshein G, Vieweg WV. The Charles Bonnet syndrome: a review. The Journal of nervous and mental disease 1997;185(3):195-200. 28. Ffytche DH, Howard RJ, Brammer MJ, David A, Woodruff P, Williams S. The anatomy of conscious vision: An fMRI study of visual hallucinations. Nat Neurosci 1998;1:738–742. 29. Perez PA, Garcia-Antelo MJ, Rubio-Nazabal E. “Doctor, I Hear Music”: A Brief Review About Musical Hallucinations. The open neurology journal, 2017;11,11. 321 Revista Brasileira de Neurologia e Psiquiatria. 2018 Set./Dez;22(3):302-321. http://www.revneuropsiq.com.br