Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS Instituto de Economia DIÁLOGOS ENTRE CAMINHA E FREI VICENTE DO SALVADOR - Construção de uma “arqueologia” da consciência da diferença entre colonos e reinóis em documentos luso-brasileiros dos séculos XVI e XVII Milena Fernandes de Oliveira Dissertação de Mestrado apresentada ao Instituto de Economia da UNICAMP para obtenção do título de Mestre em História Econômica, sob a orientação da Prof. Dr. Fernando Antônio Novais. Este exemplar corresponde ao original da dissertação defendida por Milena Fernandes de Oliveira em 12/02/2003 e orientada pela Prof. Dr. Fernando Antônio Novais. CPG, 12/02/2003 _____________________________ Campinas, 2003 i (Ficha catalográfica) Palavras-chave: arqueologia, percepção, consciência, diversidade, diferença, colono, reinol, colonizador, colônia, metrópole, Antigo Sistema Colonial, nação, Brasil. ii “Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal Ainda vai tornar-se um imenso Portugal”. (Chico Buarque, Fado Tropical) iii Agradecimentos Ao longo destes três anos de pesquisa, sete de casa, pude contar com a ajuda de muitos: colegas de trabalho, professores, funcionários. Muitos destes ao fim e ao cabo transpuseram as barreiras formais que todo trabalho impõe e acabaram tornando-se muito mais do que meros colegas. Acabaram tornando-se meus amigos e uniram-se à legião daqueles que desde muito me acompanham. Dentre estes estão funcionários da Secretaria: Alberto, Cida, Regina e Marinete, que me ajudaram na resolução de muitos problemas burocráticos, com os quais nem sequer sabia lidar. Acabei criando carinho especial por todos e até improvisando um “anjo da guarda” dentro da instituição: meu querido Alberto. Contei ainda com ajuda dos bibliotecários do instituto: Ademir, Almira e Lourdes, muitas vezes ajudando-me na procura de material ou providenciando aqueles de que a Unicamp não dispunha, como por exemplo o exemplar da Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil usado neste trabalho e emprestado da Universidade de São Paulo. Também tive a sorte - literalmente sorte porque nos dias de hoje, até mesmo os apoios financeiros aos estudantes têm de ser decididos por meio de sorteios - em receber ajuda financeira do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico de Tecnológico (CNPQ), sem a qual não poderia ter me mantido em Campinas. Agradeço ainda aos colegas de turma e de trabalho: Rogério, André, Leovigildo, Claudilei, Wolfgang, Laércio, Éder e Fernando Afonso. Pela companhia perene na lenta caminhada destes três anos. Carinho especial devoto a Rogério, pela semelhança de personalidade, e a Léo, “nosso professor”, como eu e Rogério o chamávamos e com quem tanto aprendi nestes três anos. Agradeço ainda Eduardo e Fátima, outros orientandos do Professor Fernando Novais, que me forneceram indicações preciosas de seus trabalhos. Às amigas: Adriana, Andréia, Ana Paula, Glenda, Joely e Soraia, minha família nesta cidade. Àquelas que me deram não somente força para continuar o trabalho, mas tempo para me ouvir e companhia nos momentos de solidão. v Às amigas Ângela, Luciene, Lucimara e Márcia, amigas que desde os primeiros anos de vida me acompanham e assim me acompanharam neste trabalho. Às amizades que fiz nas Faculdades de Campinas (Facamp): Andréa, Fabiana, Helena, Jackeline, Maria, Priscilla e Renata, com quem travei não somente laços profissionais, mas amizades preciosas que me ensinaram coisas para toda a vida. Aos amigos dos “timote” que reforçaram em mim a certeza de que a música é indispensável para minha vida e que por meio dela me transfundiram toda sua alegria. Em especial ao querido Melqui, hoje de volta à “terra Natal”, que não somente tocava habilmente o violão, mas a alma de todos aqueles que o rodeavam. Também a Carlos, fã inveterado de Noel Rosa, meu especial obrigado por me inspirar o gosto pela Velha Guarda e a ensinar-me um pouco mais sobre Chico Buarque, ídolo de todos nós. Ao amigo Sidinei, não mais entre nós fisicamente, mas sempre presente adoçando nossas lembranças com a sua alegria. Meus votos de força aos seus pais e à meiga Tatiane, também amiga de longa data. À minha família, que mesmo sem ter conhecimento exato sobre o meu trabalho, suportaram-me nas oscilações de que sofrem todos aqueles que escolhem o trabalho acadêmico. Serviram como sempre suas mãos para me amparar, seus ombros para chorar e seus braços para me aquecer. A professores que adotei como parte dessa família, que conheci durante a graduação e o mestrado e que se tornaram mais do que mestres: tornaram-se amigos; tornaram-se “segundos pais”. Agradeço a Frederico Mazzuchelli, José Carlos de Souza Braga, José Ricardo Barbosa Gonçalves, que me abriu as primeiras sendas rumo à História e a João Manoel Cardoso de Mello, em quem encontrei literalmente um pai: rigoroso e terno a um só tempo. Um agradecimento especial ao professor István Jancsó pela gentileza em ler meu trabalho, pela hospitalidade com que me recebeu no Instituto de Estudos Brasileiros e pelos conselhos que me abriram os olhos para graves falhas. vi Ainda aos professores Jobson de Arruda, Wilma Peres Costa e Lígia Osório por tantas outras coisas aprendidas ao longo do curso. Enfim, ao mestre Fernando Antônio Novais, que me foi mais do que orientador de um trabalho, foi-me um orientador para a vida; àquele em quem via um porto seguro que me fazia sentir a confiança de não estar só nessa difícil transição dos domínios da ciência estrita para a História. Ao longo deste trabalho lembrava-me sempre de uma frase do pequeno príncipe : “Les hommes (...) ils s’enfournent dans les rapides, mais ils ne savent plus ce qu’ils cherchent (...) Les hommes (...) cultivent cinq milles roses dans um même jardin (...) et ils n’y trouven pas ce qu’ils cherchent (...)“, que me levava a refletir a respeito da necessidade de os homens saberem sobre sua identidade, procurarem o seu ponto de referência, mesmo às vezes parecendo que “ils s’agitent et tournent em rond”. Será que também eu estaria girando em círculos sem ir a lugar algum? Acho que o que tentei procurar com esse trabalho foi saber um pouco mais sobre essa identidade difusa que é a brasileira, da qual todos nós compartimos, buscando um primeiro sentimento que fosse alguma manifestação mais definida de distanciamento em relação ao português adventício. O andar em círculos não foi inevitável, mas o resultado da tentativa em reconstituir esse sentimento, tentando fugir ao mesmo tempo do anacronismo e da inevitabilidade em se pensar como economista, está nas páginas que se seguem. Campinas, 26 de janeiro de 2003. vii ÍNDICE Agradecimentos v Introdução 1 Capítulo 1: 1500-1618: de Caminha aos Diálogos das Grandezas do Brasil 15 1.1 Da primeira carta aos Diálogos 15 1.2 Contexto histórico geral 1500-1627 20 1.3 Tipos de Documentação e percepções de diferença 25 1.3.1 Tratados 25 1.3.2 Documentação Inquisitorial 34 1.3.3 Documentação Oficial 40 1.3.4 Documentação Jesuítica 45 1.3.5 Documentação “Estrangeira” 49 Capítulo 2: 1615-1627: dos Diálogos à História de Frei Vicente 53 2.1. Consciência da diferença entre colonos e reinóis nos Diálogos das Grandezas do Brasil 53 2.1.1 A Obra 54 2.1.2 A autoria e a consciência da diferença 56 2.1.3. Da percepção da diferença à consciência de sua existência 60 2.2 Consciência da diferença entre colonos e reinóis na História do Brasil 75 2.2.1. A Obra e o autor 75 2.2.2 Natureza da “colonização” em Frei Vicente do Salvador 77 85 Capítulo 3: Novos diálogos 3.1 Diálogos entre Caminha e Frei Vicente do Salvador 85 3.2 “Arqueologia” da consciência da diferença e o Antigo Colonial 99 128 3.3 Travando novos diálogos Conclusão 135 ANEXO 145 Fontes 147 1. Fontes Editadas 147 2. Bibliografia 153 xi Resumo Inspirado no conceito foucaudiano de arqueologia, esse trabalho é uma tentativa de construir uma das condições de possibilidade da identidade nacional, qual seja, a consciência da diferença. Antes de sabermos o que somos, afirmarmos a identidade por meio de um único e mesmo caráter, fazermos parte de uma mesma comunidade imaginada que representa a nação, começamos por saber o que não somos. Nesse sentido, entre o ser português e o ser brasileiro, existe um estado fluido que é dado pela consciência de diferença do português morador da terra em relação ao morador do Reino. A construção de tal consciência de diferença é feita dentro da documentação dos séculos XVI e XVII a partir da hipótese de que essa consciência já existe nos Diálogos das Gandezas do Brasil e se completa com a História do Brasil de Frei Vicente do Salvador. O objetivo é o de entender como essa consciência de diferença foi sendo tomada pelos diversos agentes que compunham a sociedade colonial: oficiais da Coroa, senhores de engenho, jesuítas, inquisidores, não portugueses que, de passagem, deixaram seus testemunhos sobre o modo de viver colonial. O movimento é o da passagem da pura percepção para uma consciência, da diversidade para a diferença, da atenção centrada na natureza para o homem. Assim é que tentamos reconstituir as condições de possibilidade da consciência de diferença, compondo uma “arqueologia” de tal consciência. xiii Introdução “(...) e como a caravela era um pensamento (...) a nau franceza sobrecarregada finalmente foi alcançada (...)”. (Frei Vicente do Salvador, História do Brasil) “E como a caravela era um pensamento...”. Em uma metáfora maravilhosa, Frei Vicente associa a velocidade do pensamento à velocidade de navegação das caravelas lusas. A caravela desliza como o pensamento sobre as águas, enquanto o pensamento desliza como as caravelas dentro da cabeça dos homens. Um pensamento ambíguo, contraditório, primevo aos nossos olhos, mas não menos veloz. Pleno de magia. É nesse pensamento do homem dividido entre o mundo medieval e o Renascentista, entre o velho e o novo, entre o sagrado e o profano, que encontramos o ponto de partida para nossas reflexões. É nesse pensamento do século XVI que encontramos as pré-condições para a formação de um pensamento brasileiro que começa a tomar contornos em meados do século XVIII e a defini-los com maior exatidão no século seguinte. É nesse pensamento que encontramos a “arqueologia” da identidade que fez, faz, desfaz e refaz nossa própria História. E pensar que foi nos porões dessas primeiras caravelas velozes como o pensamento, que nos foram trazidas as pré-condições para nossa História, as condições para a formulação de nosso próprio pensamento, talvez não tão veloz, mas tão instável quanto aquelas primeiras caravelas... É na procura por essa História que fomos obrigados a buscar sua pré-história e recuar ainda mais, rumo à sua “arqueologia”. Afinal, quando podemos falar em Brasil? Quando podemos falar em História do Brasil? A História do Brasil se inicia com a carta de Caminha? A resposta é afirmativa para alguns historiadores. Para outros se inicia anteriormente. Ainda há os que acreditam que a História do Brasil começa a surgir em meados do século XVIII. Adotaremos essa terceira concepção e explicaremos a seguir o porquê. Quando falamos em História do Brasil, ou na História de qualquer nação, o anacronismo, o maior problema que se tem ao se estudar História, se torna imediato. Isso não somente porque o historiador é parte da identidade que originou a História que pretende estudar. O anacronismo advém do fato de que como toda nação precisa de passado para se legitimar, seu estudo acaba servindo para fundamentar tal legitimação, o que impõe um “telos” à História a partir daquilo que 1 a nação é hoje. O movimento correto seria o de entender a nação como uma construção de seu passado e não o contrário: o passado sendo moldado pela identidade presente de uma nação.1 O anacronismo se torna ainda mais agudo quando se trata de uma nação de passado colonial. Caio Prado atentou para isso em Formação do Brasil contemporâneo, em especial a respeito das interpretações da Independência enquanto um movimento formador da nação brasileira: “(...) trata-se de uma situação que ainda não existe, que não tem conteúdo próprio, mas é apenas um estado latente que se revela por alguns precursores, sintomáticos mas isolados (...) O historiador, ao ocupar-se dela, enfrenta o risco de tratar o assunto anacronicamente, isto é, conhecedor que é da fase posterior, em que ocorre seu desenlace, em que ela se define, projetar esta fase no passado. O que não raro tem sido feito. Como o processo que ora nos ocupa vai dar na separação da colônia de sua metrópole, na Independência, são as manifestações neste sentido que se procuram. (...) O final da cena, ou antes, o primeiro grande acontecimento de conjunto que vamos presenciar será, não há dúvida, a independência política da colônia. Mas este final não existe antes dela, nem está ‘imanente’ no passado; ele será apenas a resultante de um concurso ocasional de forças que estão longe, todas elas, de tenderem, cada qual só por si, para aquele fim. Algumas, possivelmente, todas certamente não. Mas como concorrem sem exceção, e têm cada qual seu papel, nenhuma pode ser desprezada. Além disto, e sobretudo, são elas e não o seu desenlace que nos devem inicialmente ocupar”. 2 Aqui estão subjacentes duas questões: a questão do que vem a ser Brasil enquanto nação e a questão subseqüente do que é História do Brasil. Para nos orientarmos com relação à primeira questão, adotamos o conceito de nação enquanto “comunidade imaginada” de Bendict Anderson.3 Baseados em tal conceito, a nação brasileira apareceria quando já existisse alguma forma de identidade capaz de unificar os membros componentes dessa “comunidade imaginada”.4 Isso é 1 Inspirado por um texto de Gramsci: “El Risorgimento”, que assinala a maneira como a história se constitui “biografia da nação”, ou seja, como a justifica, Rogério Forastieri tenta reinterpretar os “movimentos nativistas” como base para o surgimento da nação. Para isso, utiliza como parâmetro o conceito de Antigo Sistema Colonial. (Rogério Forastieri da Silva. Colônia e Nativismo: A História como “Biografia da Nação”. São Paulo, Hucitec, 2001). 2 Caio Prado Júnior. Formação do Brasil Contemporâneo- Colônia. 24a impressão. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1996, p. 357. 3 Benedict Richard O'Gorman Anderson. Nação e consciência nacional.Trad. de Lolio Louren de Oliveira. São Paulo, Ática, 1989. 4 “In an anthropological spirit, then, I propose the following definition of nation: it is an imagined political community (...) It is imagined because the members of even the smallest nation will never know most of their fellowmembers, meet them, or even hear of them, yet in the minds of each lives the image of their communion.(...) it is imagined as a community, because regardless of the actual inequality and exploitation that may prevail in each, the 2 pré-condição para a inauguração de uma História própria. Até então, os acontecimentos eram parte da História de Portugal, ou de outra forma, faziam parte de uma pré-história do Brasil. A contestação ao Antigo Sistema Colonial é o que adotamos como um indicador da passagem da pré-história para a História do Brasil. Como conseqüência imediata do fato de a História de uma nação estar relacionada à identidade que dá fundamento a tal nação, o historiador não somente se torna sujeito de seu estudo, mas também objeto. O problema é que evitar uma história totalmente “desapaixonada” é impossível.5 Tem-se de partir do reconhecimento dessa identidade e incorporá-la ao estudo da nação, sem que isso, no entanto, chegue ao extremo do anacronismo. São três os instrumentos dos quais dispomos para lidar com os dilemas engendrados pelo estudo de uma história nacional. O primeiro deles é uma metodologia baseada no conceito foucaldiano de arqueologia. Foucault inaugura um novo método baseado em uma analogia com a técnica utilizada pelos arqueólogos de trazer à tona aquilo que está em camadas mais profundas, visando explicar o que “está em cima”, o presente, a partir daquilo que “está embaixo”, ou seja, o passado. Neste caso, as camadas já sedimentadas seriam as condições de possibilidade para as camadas mais próximas do presente. No entanto, a analogia que Foucault faz com a arqueologia em seu sentido estrito, para por aí: a do resgate das condições de possibilidade. Ao passar para o campo da filosofia, ele quer estudar as condições de possibilidade para o nascimento de uma episteme, mas ele quer fazê-lo desvinculando o estudo da filosofia de uma origem, como até então tinha sido.6 O estudo da filosofia era encarado como o estudo de uma seqüência nation is always conceived as a deep, horizontal comradeship. Ultimately it is this fraternity that makes it possible”. (Benedict Anderson, Imagined Communities: reflection on the origin and spread of nationalism. 2nd ed. London; New York, Verso, 1991, p. 5-7). O termo comunidade imaginada é o que melhor casa com o nosso projeto, uma vez que buscamos a “arqueologia” de uma identidade não somente ideológica, mas política e cultural. 5 “Ao máximo que se chega (...) é admitir uma conexão entre história e política, porém sem levar em conta o filtro do presente; deste modo, a conexão estabelece-se no terreno das idéias, das concepções do mundo, em que apareça viciada pelo contágio com os interesses. Os historiadores acadêmicos, por sua parte, não chegam tão longe, ele estão convencidos de que se limitam a investigar desapaixonadamente o passado, livre de qualquer preconceito cultural ou político.” (Josep Fontana, História: Análise do Passado e Projeto Social. Trad. Luiz Roncari. Bauru, Edusc, 1998, p. 10) 6 “Esse termo não incita à busca de um começo; não associa a análise a nenhuma exploração ou sondagem geológica. Ele designa o tema geral de uma descrição que interroga o já-dito no nível de sua existência: da função enunciativa que nele se exerce, da formação discursiva a que pertence, do sistema geral de arquivo de que faz parte. A arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo”. (Michel Foucault. Arqueologia do saber. Trad. Luís Felipe Baeta Neves. Petrópolis, Vozes; Lisboa, Centro do livro brasileiro, 1972, p. 217). Reforçando o que Foucault entende por arqueologia: “A revelação, jamais acabada, jamais integralmente alcançada do arquivo, forma o horizonte geral a que pertencem a descrição das formações discursivas, a análise das positividades, a demarcação do campo enunciativo. O direito das palavras – que não coincide com o dos filólogos – autoriza, pois, a dar a todas essas pesquisas o título de arqueologia”.(Foucault, op. Cit., p. 151). 3 cronológica de autores: de Platão, passando por Aristóteles, Agostinho, Tomás de Aquino, até Descartes. A filosofia tinha a função de averiguar a contribuição de um autor em relação ao seu precedente. A arqueologia de Foucault pretende romper com essa análise diacrônica ao questionar sobre as condições de possibilidade de conhecimentos coevos. Daí partir do questionamento do que há de comum entre a psiquiatria, a biologia, a gramática e a economia, todas ciências que surgem na passagem do século XVIII para o XIX.7 Ao conjunto desses conhecimentos que coexistem e que têm parte de suas condições de possibilidade em comum, Foucault dá o nome de episteme.8 Não se trata de descartar a História, mas ao lado de uma análise diacrônica e cronológica, como até então se conhecia, apresentar uma análise sincrônica e estrutural. Ao nos apropriarmos do método foucaldiano para estudarmos a identidade nacional, estamos também fazendo uma analogia e é pela razão de ser somente um símile de seu método que empregamos sempre o termo arqueologia entre aspas. Não se trata de estudar o saber, mas a identidade; não se trata de estudar o conhecimento filosófico, mas as sensações envolvidas na formação de uma nação. O que faz a diferença não é o fato de Foucault estar dentro do campo filosófico e nós no da História, mas a natureza das idéias que são estudadas. A primeira, a ciência, se relaciona com um pensamento lógico; a outra, a identidade, é derivada do sentimento. No caso da ciência, é possível fazer um recorte que permita isolá-la das demais esferas sociais e assim estudar o discurso científico como algo contido em si mesmo, algo que se relaciona com outros discursos científicos sem necessariamente se relacionar com outras esferas. No caso da identidade, é a inter-relação específica entre as esferas num dado período de tempo e ao longo 7 “Não quisemos mostrar que os homens do século XVIII se interessavam, de uma maneira geral, mais pela ordem que pela história, mais pela classificação que pelo devir, mais pelos signos que pelos mecanismos de causalidade. Tratava-se de fazer aparecer um conjunto bem determinado de formações discursivas, que têm entre si um certo número de relações descritíveis”. (Idem, ibidem, p. 181) 8 “Por episteme entende-se, na verdade, o conjunto das relações que podem unir, em uma dada época, as práticas discursivas que dão lugar a figuras epistemológicas, a ciências, eventualmente a sistemas formalizados; o modo segundo o qual, em cada uma dessas formações discursivas, se situam e se realizam as passagens à epistemologização, à cientificidade, à formalização; a repartição desses limiares que podem coincidir, ser subordinados uns aos outros, ou estarem defasados no tempo; as relações laterais que podem existir entre figuras epistemológicas ou ciências, na medida em que se prendam a práticas discursivas vizinhas mas distintas. A episteme não é uma forma de conhecimento, ou um tipo de racionalidade que, atravessando as ciências mais diversas, manifestaria a unidade soberana de um sujeito, de um espírito ou de uma época; é o conjunto das relações que podem ser descobertas, para uma época dada, entre as ciências, quando estas são analisadas no nível das regularidades discursivas”. (Idem, ibidem, p. 151). Isto é o que Foucault entende por episteme. A respeito de saber, sobre o qual se aplica o conceito de arqueologia, tem-se: “A esse conjunto de elementos, formados de maneira regular por uma prática discursiva e indispensáveis à constituição de uma ciência, apesar de não se destinarem necessariamente a lhe dar lugar, pode-se chamar saber”. (Idem, ibidem, p. 206, grifos nossos) 4 deste, que a produz. Portanto, uma visão global da História tem de ser mobilizada para o estudo da identidade nacional, o que não é necessário no caso de um estudo arqueológico da ciência em Foucault. Isso se relaciona com a afirmação de Fontana a respeito de a História, em especial a História nacional, ser uma genealogia do presente.9 No entanto, tanto em um caso, como em outro, o que se busca são as condições de possibilidade para o surgimento do fenômeno estudado. No caso da identidade entre os indivíduos de uma sociedade, a pré-condição para sua formação é a consciência da diferença. É um suposto do trabalho que a consciência de diferença preceda a identidade, assim como aquela é precedida por uma percepção da diversidade. A identidade começa a se formar primeiramente por negação: os membros de um dado grupo identificam-se a partir da contraposição a um outro grupo, mas ainda não sabem o que são. É somente a posteriori que eles criam uma identidade positiva entre si, e os indivíduos já não mais precisam contrapor-se a um outro grupo para se sentirem como se estivessem em uma “comunidade imaginada”. A negação é pré-condição para a afirmação. Mas nem sempre a identidade positiva se segue à negativa em ordem estritamente cronológica. Na maior parte das vezes, as duas coexistem. A diferenciação em relação a um determinado grupo é concomitante à identificação com outro. Isso acontece claramente no caso da formação da nacionalidade portuguesa nas guerras de Reconquista, por exemplo. Segundo Gilberto Freyre, a partir das guerras de Reconquista surge um grupo, que dará origem aos portugueses, que não se identifica com nenhum daqueles aos quais se contrapõe. Há um ódio mortal em relação aos castelhanos e aos moçárabes, ódio que, no entanto, não impede a miscigenação.10 A partir da identidade negativa que permeava aquele grupo vai-se assumindo uma nova identidade que é consolidada pelo processo de formação do Estado Nacional, o qual 9 “Toda visão global da história constitui uma genealogia do presente. Seleciona e ordena os fatos do passado de forma que conduzam em sua seqüência até dar conta da configuração do presente, quase com o fim, consciente ou não de justificá-la (...). Apresenta-se como uma averiguação objetiva do curso que vai do passado ao presente, o que antes de tudo é, um partir da ordem atual das coisas para rastrear no passado as suas origens, isolando a linha de evolução que conduz às realidades atuais, transformando em uma manifestação do progresso, com fins legitimadores”. (Fontana, op. Cit, p. 9) 10 “O que se sente em todo esse desadoro de antagonismos são as duas culturas, a européia e a africana, a católica e a maometana, a dinâmica e a fatalista encontrando-se no português, fazendo dele , de sua vida, de sua moral, de sua economia, de sua arte um regime de influências que se alternam, se equilibram ou se hostilizam”. (Gilberto Freyre. Casa-grande & senzala : formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 28a ed. Rio de Janeiro, Record, 1996). Ainda, segundo Gilberto Freyre, a respeito da formação da identidade política portuguesa e de sua relação com a negação que assume os extremos do ódio ao espanhol e o maometano: “O ódio ao espanhol, já assinalamos como fator psicológico de diferenciação política de Portugal. Mas nem esse ódio nem o fundamental, ao mouro, separaram o português das duas grandes culturas, uma materna, outra, por assim dizer, paterna da sua. A 5 passa então a comandar a unificação territorial, alimentado pela centralização do poder. A identidade portuguesa que começou “arqueologicamente” pela negação de castelhanos e mouros se encarna agora no Estado Moderno e assume uma positividade definitiva, passando, juntamente com a religião cristã, a ser o elemento de unidade na sociedade portuguesa. É dentro dessa concepção de “arqueologia” acima definida que situamos o nosso estudo. As pré-condições que permitiram o surgimento da identidade nacional brasileira e a partir dela, de sua História, devem ser remetidas, em primeira instância às pré-condições para a tomada de consciência da diferença. Observemos que não se trata somente da percepção da diferença, mas de sua consciência, um estágio um pouco além. A consciência corresponde a uma percepção mais aguçada porque, conforme veremos depois com frei Vicente, ela não somente constata, mas mostra os porquês da existência de tal diferença. A consciência pode, portanto, influir na formação de uma identidade, ao passo que a mera percepção, não. O nosso objetivo é entender, a partir da documentação dos séculos XVI e XVII, como essa consciência da diferença vai sendo construída. Como não sabemos exatamente quando aparece, o objeto escolhido para esse estudo “arqueológico” foram os Diálogos das Grandezas do Brasil11 por acreditarmos que aí já existe uma consciência da diferença. Não queremos com isso dizer que antes não há consciência da diferença, mas aqui ela é óbvia e ultrapassa os limites da mera percepção. Isso porque ao tratar da uma discussão entre um colono e um reinol, cria-se uma situação de contraposição que os diferencia e a discussão que se trava entre um e outro desnuda o fato de viverem e conhecerem espaços diferentes. Alviano, um dos interlocutores é recémchegado à terra e reclama de sua falta de comodidade. Brandônio já aqui vive e sabe que há falta de comodidade, mas ela pode ser remediada. Alviano não acredita nisso. Seu mundo e sua cultura não abrem espaço para novas descobertas. O “novo” não é admitido dentro de seu aparato mental, que interpreta todas as coisas adaptando-as, mas jamais as incorporando como novas. Brandônio já não mais tem essa mentalidade restrita. O contato com a nova terra alargou-lhe os horizontes do conhecimento. É um homem experimentado nas coisas da terra. Sabe de seu potencial e conhece-a intimamente. O conhecimento íntimo da terra é o que o diferencia de Alviano. Mais do que isso. Ele tem consciência de que esse conhecimento o diferencia de Alviano, o qual vai hispânica e a berbere. Contra elas formou-se politicamente Portugal, mas dentro de sua influência é que se formou o caráter português”. (Freyre, op. Cit., p. 242) 11 Diálogos das Grandezas do Brasil (1618). 2a edição integral, segundo o apógrafo de Leiden, aumentada por Jose Antonio Gonsalves de Melo. Recife, Imprensa Universitária, 1966. 6 também aos poucos descobrindo isso levado pelo calor da discussão com Brandônio. A diferenciação é portanto recíproca. O capítulo segundo corresponde ao estudo minucioso da obra, combinando interpretação de texto e análise. Voltamos a repetir que o nosso estudo não quer definir os Diálogos como a primeira tomada de consciência da diferença, mas sim como um dos documentos em que a consciência é uma das mais claras. Essa evolui com o tempo. Na verdade amadurece, porque o termo evolução dá brechas para que pensemos que existe um “telos” que desembocará em uma forma de consciência pré-determinada. Desde a carta de Caminha até os Diálogos, as percepções da diferença e as formas como foram concebidas mudam. A primeira percepção da diferença emana da natureza, soprada por seus ares frescos e contida em sua aura paradisíaca. O segundo estágio da percepção da diferença se dá com a passagem da diferença da natureza para o homem. O homem se faz diferente, mais saudável, em razão dos bons ares da terra, mas também mais preguiçoso, na visão do colonizador, em razão da abundância da terra. Assim como as características da natureza passam diretamente ao homem, também o foco da percepção da diferença se transfere da natureza para o homem. Em um terceiro momento, cujo expoente é Frei Vicente do Salvador, os homens sabem que são diferentes não porque a natureza do lugar em que moram é diferente, mas a sociedade em que vivem é diferente. Os colonos são o produto de uma sociedade inteiramente nova e não de uma natureza paradisíaca. A preguiça, o comodismo, o improviso, características ressaltadas por Frei Vicente, são percebidas como valores, fenômenos sociais e não naturais. Ambrósio Fernandes Brandão, o nosso autor, está entre a segunda e a terceira etapas. Algumas das características que aparecem no colono de Ambrósio Fernandes Brandão ainda aparecem por propriedade da natureza. Outras são claramente sociais, mas a diferença com relação a Frei Vicente do Salvador é que Brandão não sabe a verdadeira natureza de tal sociedade e de sua função: a de ser complementar à metrópole. É por esse motivo que às vezes não consegue explicar algumas coisas, como a negligência dos habitantes da terra, ou faz propostas que seriam impossíveis se pensadas dentro da relação metrópole-colônia, como, por exemplo, a diversificação das atividades coloniais e a construção de um Império a partir da própria colônia, ou seja, uma negação dos pólos que compõem o sistema. É por isso que dizemos que a História de Frei Vicente fecha algumas concepções que aparecem de forma embrionária nos Diálogos. Frei Vicente tem uma visão da importância da complementaridade entre metrópole e colônia e enxerga esta última como uma sociedade nova e não como um mero prolongamento 7 da anterior. Passamos do segundo estágio da consciência de diferença supracitado, qual seja, a consciência de que os homens são diferentes por conhecerem uma natureza diferente e se relacionarem com ela de forma diferente para a terceira consciência: a de que os homens são socialmente diferentes. Frei Vicente não somente percebe isso, como percebe a gênese da sociedade colonial: montada para atender interesses bem específicos da metrópole: poder, riqueza e fé. Dessa divisão entre os estágios da consciência da diferença advém o título escolhido para esse trabalho: Diálogos entre Caminha e Frei Vicente do Salvador. Em primeiro lugar, isso é verdadeiro do ponto de vista cronológico, uma vez que os Diálogos se encontram entre a Carta de Caminha e a História de Frei Vicente. Em segundo lugar, isso também é verdadeiro do ponto de vista teórico, uma vez que a percepção dos Diálogos é mais atilada que a de Caminha, mas inferior à de Frei Vicente. Por fim, o título explora o objetivo do trabalho que é o de travar relações que vão desde a mera descrição da paisagem e suas gentes até a consciência de que o português que vive na colônia se tornou diferente daquele que continua a viver no Reino. Ao estudarmos parte da documentação que vai de Caminha aos Diálogos,12 estamos tentando montar essa “arqueologia” da consciência de diferença. As pré-condições que permitiram que essa percepção surgisse aí. O que está entre 1500 e 1618 faz parte do material “arqueológico” que desemboca na consciência da diferença presente nos Diálogos, a qual sofre um acabamento sob a pena de Frei Vicente de Salvador. A documentação que abarca o período de 1500 a 1618 é objeto de estudo do capítulo primeiro. No entanto, no período que abarca 1500 a 1627, a consciência da diferença não somente se forma, como se torna completa. Com isso, já temos um bom material para fornecer àqueles que queiram estudar a “arqueologia” da nação brasileira. O nosso estudo, por ser um trabalho de Mestrado, se restringe à “arqueologia” da consciência da diferença entre colonos e reinóis. Implícita em nossa periodização está a idéia de que a História do Brasil não se inicia com a carta de Caminha. Esta é uma polêmica que gerou e ainda continua a gerar diversos debates. Se assim fizéssemos estaríamos cometendo anacronismo ao afirmar que “Brasil” existe já a partir do momento em que é “descoberto”. Não há Brasil. Há história de uma possessão lusa, que depois se torna sua colônia. A história dessa colônia faz parte da História de Portugal, que por sua vez faz parte da História da Europa que assistia a três grandes acontecimentos: a formação dos Estados 12 A documentação se restringe àquela que seja importante para o tema da consciência da diferença entre colono e reinol. Foi com base nesse critério que selecionamos a documentação distribuída ao longo deste trabalho. 8 Absolutistas, as Reformas protestante e católica, e o Renascimento do Comércio com o capitalismo mercantil. Como dissemos acima, o poder tanto secular como religioso, que se manifesta pela busca de terras, riquezas e fiéis, respectivamente, regem a História nesse momento. A colônia aparece como uma encarnação disso. Ela se presta à acumulação de territórios, fiéis e capital mercantil. 13 Aqui já entramos no nosso segundo suporte teórico: o conceito de Antigo Sistema Colonial formulado por Fernando Novais, que será cruzado com o conceito de “arqueologia”. Poderíamos com o método “arqueológico” rastrear a documentação compreendida entre Caminha e os Diálogos, mas isso jamais nos levaria a refletir a respeito da relação de complementaridade entre este e Frei Vicente do Salvador. O conceito de Antigo Sistema Colonial permite perceber como a consciência da diferença se relaciona com a estrutura e dinâmica desse sistema. É preciso voltar à História das grandes navegações e como e porquê, a partir destas, decidiu-se ocupar e então colonizar. É preciso entender o significado disso para as duas partes do sistema, a metrópole e a colônia, ou melhor, as metrópoles e as colônias. Sim, porque não nos esqueçamos que antes das especificidades que caracterizam a relação bilateral entre a metrópole lusa e sua colônia, temos um sistema bipolar que contrapõe Europa, o centro, e América, a área em que se efetivou a colonização. Precisamos desse conceito porque, ao contrário das ciências, a História não se fundamenta tão somente na teoria. E usar o conceito “arqueológico” sem o suporte do Antigo Sistema Colonial seria explicar a História, conferir-lhe um “telos”, e não reconstituí-la.14 A História, ao contrário das ciências, possui fatos importantes que a teoria não consegue abarcar. O que procuramos, em História, não é somente explicar, mas também reconstituir. A teoria se torna, nas mãos do historiador, um instrumento para dar um sentido aos fatos, não para explicá-los ex13 Fernando Antônio Novais. “Etnocentrismo e Anacronismo no descobrimento do Brasil”. Entrevista concedida à folha de São Paulo por ocasião dos 500 anos do descobrimento. (abr./2000). 14 “Em outras palavras, a descrição arqueológica dos discursos se desdobra na dimensão de uma história geral; ela procura descobrir todo o domínio das instituições, dos processos econômicos, das relações sociais nas quais pode articular-se uma formação discursiva; ela tenta mostrar como a autonomia do discurso e sua especificidade não lhe dão, por isso um status de pura idealidade e de total independência histórica; o que ela quer revelar é o nível singular em que a história pode dar lugar a tipos definidos de discurso que têm, eles próprios, seu tipo de historicidade e que estão relacionados com todo um conjunto de historicidades diversas”. (Foucault, op. Cit., p. 189). Sempre é importante lembrarmos que a descrição de Foucault serve para a filosofia, não para a História, mas dando continuidade à analogia que estamos fazendo, o objetivo arqueológico se torna o mesmo, uma vez, que não procuramos dar uma idealidade à história, teorizá-la ou explicá-la, senão interpretá-la. Nesse caso, o projeto arqueológico casa-se perfeitamente com o conceito de materialismo histórico que estamos utilizando: o de uma teoria da história. 9 ante.15 Ela é a chave que auxilia o historiador a montar os fatos dispersos e incógnitos. Acreditamos que o materialismo histórico, quando bem interpretado, seja a melhor teoria da História. Ele consegue encontrar um equilíbrio entre a teoria pura e o historicismo, ao interpretar a História como genealogia do presente, ao misturar práxis e teoria, ao reconhecer que o historiador é ao mesmo tempo sujeito e objeto de seu estudo.16 O materialismo histórico resolve o problema da identidade sujeito-objeto partindo do pressuposto de que ele existe.17 Aquela mesma identidade de que falávamos no início dessa Introdução. É justamente por não conseguirmos montar uma “arqueologia” da mesma forma como se faz em filosofia, que tivemos de apelar para a noção de Antigo Sistema Colonial. Esta nos dá a periodização. Quando dizemos que a nação brasileira e a História nacional surgem nos séculos XVIII e XIX, estamos partindo desta concepção, como poderíamos partir de qualquer outra. Por outro lado, ao interpretarmos a sociedade que aqui se forma enquanto um modo de vida totalmente novo, que permite essa diferenciação e inclusive a tomada de consciência de que essa diferença existe, recorremos ao materialismo histórico, entendendo o modo de produção, não como forma de produzir ou como conjugação entre forças produtivas e relações de produção, mas como uma inter-relação específica entre esferas que produzem um modo de vida novo. É nessa terceira acepção do termo que entendemos a sociedade colonial enquanto um modo de produção.18 Não o entendemos como escravista ou capitalista, mas um modo de produção que surge subordinado ao capitalismo comercial e com a função de alimentar a acumulação primitiva de capital comercial autônomo na metrópole e servir para inflar o poder do Estado Nacional, ao mesmo tempo sujeito de tal acumulação, seu empreendedor, e objeto, uma vez que é o maior beneficiado. O ouro que sai das conquistas marítimas e vai para os cofres estatais se metaboliza em força e poder. E se essa 15 A respeito dessa camisa de força da teoria em relação à História, veja o que diz Fontana, em um comentário sobre o estruturalismo de Althusser: “Partindo de uma combinatória de conceitos abstratos, pode-se resolver no plano teórico todos os problemas (...) O segredo consiste em que a argumentação se mova sempre no plano da máxima abstração – da ‘teoria’ – e em que, uma vez concluída sua operação, recorra à realidade apenas para buscar exemplos com que ilustrar os resultados. Acomodada desse modo a seus esquemas pré-fabricados, a realidade não desmente nunca os resultados da teorização estruturalista (...) Com isso temos um esquema único e necessário pelo qual passarão todas as sociedades; uma armação que o historiador tem de encher de fatos. O caminho para converter o materialismo histórico numa filosofia da história – algo contra o que Marx havia lutado explicitamente (...)”. (Fontana, op Cit., pp. 226-229) 16 “A realidade é rica nas combinações mais estranhas e é o teórico quem está obrigado a buscar a prova decisiva da sua teoria nessa mesma estranheza, a traduzir em linguagem teórica os elementos da vida histórica e não vice-versa, a realidade que tem de apresentar-se segundo o esquema abstrato.” (Idem, ibidem, p. 237). 18 Fernando Antônio Novais. “Colonização e sistema colonial: discussão de conceitos e perspectiva histórica”. In Anais no IV Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História. São Paulo, 1969, p. 243-268. 10 dinâmica já é uma dinâmica capitalista, não nos convém entrar nesse debate.19 Preferimos entender essa dinâmica como uma dinâmica da transição e que é essa dinâmica que dá origem à sociedade colonial. No capítulo terceiro, retomamos o estudo “arqueológico” e como este contribui para os Diálogos. Retomamos Frei Vicente e como ele já nos dá indícios da pré-história da nação. Tudo isso visto dentro do Antigo Sistema Colonial. O trabalho que empreendemos é, portanto uma tentativa de fornecer um dos elementos necessários para a construção de uma “arqueologia” da nação, qual seja, a consciência da diferença. Utilizamos Frei Vicente porque é este que percebe a genealogia social de tal diferença e nos ajuda inclusive a compor as esferas que montam o modo de vida colonial. Não é isso que faz quando relaciona as esferas privada e pública na colônia dizendo que aqui as coisas estão invertidas? Ao mesmo tempo percebe a lógica que rege a sociedade colonial e que esta lógica é uma lógica diferente da metropolitana. Sua noção sistêmica é de tal ordem que não somente percebe a sociedade que aqui se forma, mas também a estreita relação que guarda com a sociedade metropolitana, os interesses que regem a montagem da colônia, dando-nos os primórdios de um sistema colonial, que é o que precisávamos para fechar a relação entre teoria e História. Um estudo do qual nos servimos largamente como guia nessa longa jornada foi o estudo de Laura de Melo e Sousa. Este é um estudo sobre a feitiçaria na colônia também dentro dos quadros do Antigo Sistema Colonial. Foi importante para nós não somente do ponto de vista teórico, mas também metodológico, uma vez que também constrói uma “arqueologia”. A feitiçaria, quando vista dentro da colônia pelos olhos dos reinóis, corresponde à frustração do projeto de Nova Lusitânia pelo lado religioso. Aqui, em razão das próprias condições que engendraram e que regiam o cotidiano da colônia, criaram-se práticas religiosas que fugiam ao catolicismo duro emergente da Contra-Reforma. Resgataram-se antigas práticas medievais. Incorporaram-se práticas indígenas e africanas de feitiçaria. Não somente as esferas privada e pública parecem estar invertidas. A própria religião parece estar sendo virada de ponta-cabeça na colônia. Se Laura analisa a ruptura por esse ponto, nós tentamos analisá-la do ponto de vista da identidade que aqui se cria. Ambos os estudos acabam tratando de uma mesma temática, a da 19 Debate Dobb “versus” Sweezy. Para maior detalhes vide as obras clássicas dos autores: Maurice Dobb, A evolução do capitalismo. 7a ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1980; Paul Sweezy, A transição do feudalismo para o capitalismo, tradução de Isabel Didonnet, 3a ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983; Eduardo Barros Mariutti, A 11 formação do Brasil, mas a partir de perspectivas diferentes. Embora analisem esferas diferentes da sociedade colonial, isso é feito com o mesmo intuito: o de resgatar e reconstituir o modo de vida desta. No entanto, nossa “arqueologia” se restringe à tomada de consciência da diferença nos Diálogos, ou seja, vai até 1618, ao contrário do estudo de Laura de Melo e Souza, que faz uma “arqueologia” de meados do século XVIII. Um estudo que toca, portanto, o começo da História Nacional e se confunde com o nascimento da identidade nacional propriamente dita. Não há tempo nem recursos para que façamos o mesmo com a identidade nacional. O que tentaremos mostrar nas páginas a seguir é como essa consciência da diferença vai nascendo e se torna muito clara com Frei Vicente. Essa é a percepção diacrônica: como ela evolui ao longo do tempo. No entanto, dissemos que a sociedade é um compósito de esferas e tais esferas se movimentam tanto sozinhas, como se relacionando umas com as outras. A sociedade colonial cria uma dinâmica própria caracterizada pelo movimento de tais esferas ao longo do tempo. No entanto, elas também se relacionam entre si num mesmo tempo. Ao discriminarmos a documentação colonial por tipos, os Tratados, a documentação Inquisitorial, a Oficial, a documentação Jesuítica e a dos viajantes, tentamos verificar como a percepção da diferença vai sendo engendrada em diferentes esferas, para então defrontar uma percepção com outra. Os interesses que conduzem um cronista a escrever sobre dado fato acabam por influenciar a visão que tem desse fato. Um jesuíta relata esse mesmo fato de forma distinta da do cronista e um funcionário da Coroa ou de um senhor de engenho vêm esse fato de forma diferente de todos os observadores anteriores. A percepção da diferença evolui no tempo e é diferente na medida em que é constatada por diferentes camadas sociais. Temos, portanto um movimento sincrônico, dado pelos tipos de documentação, que representam a percepção da diferença nas várias instâncias da sociedade colonial, em um mesmo tempo. Faço minhas aqui as belas palavras de Gândavo, que, escrevendo há quinhentos anos atrás, tendo outras preocupações e outra mentalidade, talvez não tivesse outros desejos: “Como, pois a escritura seja vida da memória, e a memória uma semelhança da mortalidade a que todos Transição do Feudalismo ao Capitalismo: um balanço do debate. Campinas, SP, 2000 - Dissertação de Mestrado em História Econômica - Instituto de Economia, Unicamp. 12 devemos aspirar, pela parte que dela nos cabe,quis, movido destas razões, fazer esta breve história...”20 20 Pero de Magalhães Gandavo. História da Província de Santa Cruz (1576). Advertência de Afrânio Peixoto. Nota bibliográfica de Rodolfo Garcia. Introdução de Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro, Anuário do Brasil, 1924. 13 Capítulo 1: 1500-1618: de Caminha aos Diálogos das Grandezas do Brasil “Somente deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas como de papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer de aljaveira”. (Pero Vaz de Caminha. Carta de Pero Vaz de Caminha) 1.1 Da primeira carta aos Diálogos Um barrete vermelho por um ramal de continhas brancas. Nessa singela troca de presentes se contém o primeiro contato do português com a cultura da terra recém-descoberta. Neste momento são os sentidos que predominam, em especial o tato. O tocar aquilo que o outro lhe dá como presente é uma forma de entender o outro. O ouvir cede ao ver e o ver ao tocar. O tato, a audição, o olfato, a visão e o paladar compõem a experiência que neste contexto e nessa terra começa a se tornar o princípio de todo o conhecimento. É nessa experiência que reside o primeiro embrião da diferenciação entre aquele que tem oportunidade de pisar essa terra e aquele que permanece em Portugal; entre aquele que passa por essa experiência concreta e aquele que se restringe a imaginar aquilo que ouve dos contadores de história. É nesta terra, portanto, que o tocar começa a sobrepujar o ouvir, que até então era o sentido mais valorizado na cultura ocidental.1 E isso já indica uma ruptura. Aqui, no entanto, não há e nem pode haver uma consciência de que se começa uma ruptura sutil do português em relação a suas próprias tradições. A construção dessa consciência é lenta e vai depender de outros contatos. Em primeiro lugar, do contato com a natureza. Embora ainda enxergue a natureza como espelho das imagens míticas que compõem o imaginário renascentista, aos poucos vai se percebendo que ela não é mero reflexo da mitologia, mas uma 1 “Numa época em que o ouvir valia mais do que ver, os olhos enxergavam primeiro o que se ouvira dizer; tudo quanto se via era filtrado pelos relatos de viagens fantásticas, de terras longínquas, de homens monstruosos que habitavam os confins do mundo conhecido”. (Laura de Melo e Souza. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e Religiosidade Popular no Brasil Colônia. 4a Reimpressão. São Paulo, Cia. Das Letras, 1994, p. 21/22) 15 outra natureza. O primeiro rompimento se dá, portanto, com a percepção de que a natureza é diferente. Esta percepção conduz à especulação em torno da origem de tal diferença, o que desacredita antigas especulações a respeito do clima e da topografia dos trópicos. No entanto, a ruptura convive com a continuidade em relação ao Velho Mundo em todos os elementos da terra: a eterna primavera, a perene verdura das folhas, animais belos e outros monstruosos.2 É uma descoberta lenta e bela a do Novo Mundo. Lenta porque antes de tudo se vê o “novo” já no “velho”, antes de romper com esse velho por inteiro. Bela porque mistura ao mesmo tempo imagens reais e míticas, a experiência concreta com aquela que existe somente na imaginação, o que é, em certa medida, exótico para nós, homens modernos. Ao lado da dicotomia entre os planos imaginário e real, nesse último plano, uma outra dicotomia se faz presente: a que existe entre uma natureza farta e uma terra crua e vil, sem comodidades. Essa dicotomia advém tanto de opiniões divergentes a respeito da terra, 3 como da própria personalidade dividida do homem renascentista. Este pode pensar que a nova terra é o Paraíso em um dado momento e o inferno em outro. Fonte em que bebe as mais doces delícias e lugar em que purga os pecados. Sente ao mesmo tempo prazer e dor, se delicia para depois se culpar, dividido como está entre o sagrado e o profano. O segundo contato é o contato com uma humanidade diferente. Este contato, em primeira instância, faz com que o português reforce sua identidade. 4 Ele se sente diferente da humanidade descoberta por dois motivos: em primeiro lugar porque esta não é civilizada, não se veste como 2 Veja o que diz Cardim a respeito dos beija-flores, um ser ao mesmo tempo belo e assustador, que apresenta algo de já conhecido, que é o voar, e desconhecido, que é pairar no ar ante as flores. Mistura de pássaro e borboleta? Para quem jamais havia visto algo assim, o observar e o especular seriam as únicas formas de trazer a explicação que não se encontrava dentro do “já visto” ou “já ouvido”. “(...) têm dois princípios de sua geração, uns se geram de ovos como outros pássaros, outros de borboletas, de é coisa prá ver uma borboleta começar-se a converter neste passarinho, porque juntamente é borboleta e pássaro, e assim se vai convertendo até ficar neste formosíssimo passarinho, coisa maravilhosa e ignota aos filósofos, pois um ser vivente sem corrupção se converte em outro”. (Fernão Cardim, Tratados da Terra e Gente do Brasil (1583). Introd. e notas de Batista Caetano, Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. 3a edição. São Paulo, Cia. Ed. Nacional; Brasília, Instituto nacional do Livro, 1978, p. 36) 3 “A terra da colônia ‘é muito pobre e miserável, ‘nada se ganha com ela’ por serem também muito pobres os seus habitantes, escrevia Nóbrega ao Geral da Companhia, padre Diogo Láinez. ‘Aqui não há trigo, nem vinho, nem azeite, nem vinagre, nem carnes, senão por milagre’, continuava, decepcionado: ‘o que há pela terra, que é pescado, e mantimento de raízes, por muito que se tenha, não deixaremos de ser pobres, e mesmo isto não o temos.’(...) Ainda, segundo o padre Jerônimo Rodrigues, as pulgas foram a ‘perdição’ das ceroulas e das camisas dos padres, que ficaram inteirinhas pintadas de sangue. Numa noite, às apalpadelas, diz o padre Jerônimo que chegou a matar 450 pulgas em sua cama, sem falar nas que fugiram.” (Souza, op. Cit., p. 47) 4 “A história do globo é feita de conquistas e derrotas, de colonizações e descobertas dos outros; mas (...) é a conquista da América que funda nossa identidade presente. (...) A partir dessa data [1492] os homens descobriram a totalidade de que fazem parte. Até então, formavam uma parte sem todo”. (Tzvetan Todorov. A conquista da América: a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone Moisés. São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 6). 16 gente, come carne humana, como bicho; em segundo lugar porque não crê em Deus, é gentílica, chegando aos extremos de ser demônio. O termo “nova humanidade” não é adequado porque é somente no começo que os índios são assim vistos. Diria Nóbrega que seriam como o papel branco a ser escrito. Outros usariam o termo noble salvage. Mas do papel em branco de Nóbrega passa para o ferro a ser forjado de Anchieta. Do noble salvage também se passa facilmente ao perro cochino. Assim como a natureza é dotada de uma série de contradições, o índio também pode ser gentio ou bicho, anjo ou demônio, inocente ou culpado. As contradições estão dispersas por todos os lugares, mas elas têm origem, como já dissemos, no conflito permanente que vive o homem renascentista, dividido entre o arcaico e o moderno.5 Mas é num terceiro contato que surgem as pré-condições para o nascimento de uma outra identidade. Não queremos com isso dizer que aqui surge uma identidade diferente da portuguesa. O sentido dessa nova identidade é o de criar, dentro da própria identidade portuguesa, possibilidades para o rompimento com esta a partir da criação de mentalidades diferentes decorrentes da experiência de vida em um espaço diferente da metrópole. O nosso objeto de estudo é esse processo de tomada de consciência da diferença. Falamos em processo, não momento. Consciência, não percepção. Diferença e não diversidade. Podemos olhar a “arqueologia” desse processo a partir em três pontos de vista: lógico, cronológico e metodológico. Do ponto de vista lógico, a percepção da diversidade é pré-condição para a consciência da diferença e são as passagens e contradições entre uma e outra etapa que vão compondo um processo. A consciência é um estágio além da percepção, que corresponde à mera constatação. Pode-se ter consciência ou percepção da diferença ou da diversidade. A percepção da diversidade implica em notificar que existem objetos distintos dentro de uma mesma unidade. A consciência implica não somente em notificar como estabelecer o porquê e as relações entre as partes. Quando uma unidade se rompe gerando uma nova, então temos o surgimento da diferença. De forma análoga, a percepção constata o diferente sem maiores envolvimentos. O mesmo não acontece com a consciência, que procura os porquês dessa ruptura. No caso da identidade nacional, a consciência daquilo que não sou vai aos poucos se convertendo na consciência daquilo que sou; a identidade negativa se converte em identidade positiva: o português se converte em brasileiro, que são duas unidades diferentes. Do ponto de vista cronológico, o brasileiro surge no século XIX, mas as pré-condições para sua formação 17 estão sendo engendradas desde o século XVI. A consciência da diferença entre o reinol e o colono é uma dessas pré-condições e é sua “arqueologia” que pretendemos estudar. Para nós, essa consciência da diferença em relação ao português adventício está manifesta nos Diálogos das Grandezas do Brasil de 1618. Não queremos com isso dizer que a consciência começa ou termina neste documento, mas simplesmente que aí ela é clara. Por fim, do ponto de vista metodológico, no que se refere ao tratamento das fontes, estudar a “arqueologia” de uma sensação em um dado documento implica em buscar as condições de possibilidade dessa sensação nos documentos anteriores a ele. O estudo “arqueológico” que agora apresentamos tenta fundir essas três dimensões, a lógica, a cronológica e a metodológica em uma só. No entanto, como essa consciência da diferença não é uma consciência qualquer, mas a consciência do colono que se percebe diferente de seu antecessor, o colonizador, precisamos de um conceito que trate dessas três dimensões dentro de um sistema dividido entre metrópole e colônia. Foi por isso que recorremos ao conceito historicizado de Antigo Sistema Colonial, definido por Fernando Novais.6 Com isso amenizamos o dilema em torno do que viria a ser nação, já que nosso estudo depende dessa definição para que possamos estudar a consciência da diferença que é sua condição de possibilidade. De acordo com esse conceito, a nação surgiria no momento em que se tomasse consciência da exploração dentro do Sistema Colonial, consciência essa fundamentada em uma identidade positiva.7 A consciência da diferença é o que precede essa identidade que está na base da contestação desse sistema. Essa identidade não é tão somente uma identidade ideológica, mas também política e cultural, sentimentos que promovem a coesão da colônia e que se manifestam politicamente pela contestação à exploração metropolitana. Teoricamente, nos fundamentamos no conceito de Benedict Anderson que vê a nação como uma 6 “Absolutismo, sociedade estamental, capitalismo comercial, política mercantilista, expansão ultramarina e colonial são, portanto, partes de um todo, interagem reversivamente neste complexo que se poderia chamar, mantendo um termo da tradição, Antigo Regime. São no conjunto processos correlatos e interdependentes, produtos todos das tensões sociais geradas na desintegração do feudalismo em curso, para a constituição do modo de produção capitalista. (...) É nesse contexto e inseparavelmente dele que se pode focalizar a expansão ultramarina européia e a criação das colônias do Novo Mundo. A colonização européia moderna aparece, assim, em primeiro lugar como um desdobramento da expansão puramente comercial (...) Se combinarmos (...) esta formulação – o caráter comercial dos empreendimentos coloniais da Época Moderna – com as considerações anteriormente feiras sobre o Antigo Regime – etapa intermediária entre a desintegração do feudalismo e a constituição do capitalismo industrial – a idéia de um “sentido” da colonização atingirá seu pleno desenvolvimento”. (Fernando A. Novais Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 6a edição. São Paulo, HUCITEC, 1995, p. 66-68) 7 Seguimos algumas das sendas abertas por Rogério Forastieri que adotou o conceito de Sistema Colonial guia-lo na redefinição do nativismo. Para ele, a cadeia: colônia-nativismo-nação é desprovida de significado porque os movimentos considerados “nativistas” deixam de ser compreendidos em seu significado histórico para servirem de 18 comunidade imaginária.8 Deixemos claro que ao propormos fazer uma “arqueologia”, não estamos querendo dizer que os sentimentos que compõem a identidade brasileira do século XIX já existissem no século XVI, mas sim que existiam formas primevas de identidade que desembocaram nessa identidade do século XIX. Os sentimentos vão sendo construídos e não prédeterminados. Foi somente pelas primeiras formas de identificação de uns com os outros que foi possível o nascimento da identidade nacional e não o inverso. Os colonos se sentiam tão ou mais portugueses quanto os próprios reinóis. Eles se sentiam diferentes e não não-portugueses. Em síntese, o conceito de Antigo Sistema Colonial nos serve de apoio para o conceito de “arqueologia”. O ponto de partida não é o conceito em si, mas a documentação. O Antigo Sistema Colonial fixa o nascimento de uma identidade nacional no século XIX e a “arqueologia” busca formas primevas de identidade anteriores a essa, sentimentos de diferença que os cronistas, jesuítas, inquisidores, oficiais da Coroa e viajantes, expressaram no século XVI, e que no cruzamento de uns com os outros gerariam essa identidade.9 Nesse sentido, essa primeira etapa da consciência de diferença, dentro da qual estão inseridos os Diálogos, termina quando se descobre que a natureza da diferença entre colonos e reinóis guarda alguma relação com a condição subordinada da colônia à metrópole e que essa condição produziu uma sociedade bem peculiar, com instâncias e uma lógica que as regula específicas. Não há qualquer forma de contestação ainda. Tão somente a descoberta de que vivem em um sistema dividido entre um espaço que controla e um que é controlado, e que um espaço é condição para a existência do outro. Para nós, isso já acontece com Frei Vicente do Salvador e a manifestação dessa percepção aparece na sua História do Brasil. Neste capítulo, tentaremos construir a “arqueologia” da tomada de consciência presente nos Diálogos, por meio de uma retrospecção das percepções de diferença anteriores a ele. A percepção da diferença dos Diálogos e o acabamento dado a ela por Frei Vicente do Salvador é apoio ideológico à formação da nação. (Rogério Forastieri da Silva. Colônia e nativismo: A História como “biografia da nação”. 2a edição. São Paulo, Hucitec, 2001). 8 Vide Introdução, nota 2. 9 Partimos do pressuposto que a identidade nacional começa a dar seus primeiros passos a partir do século XVIII porque temos como parâmetro o Antigo Sistema Colonial. Não estamos querendo dizer que os demais estejam errados. A nossa preocupação é trabalhar com a documentação e construir a “arqueologia” de tal identidade; não estamos preocupados com a inserção dentro de um debate historiográfico. Seria possível construir-se outras “arqueologias” a partir de outras noções de sistema. A de Império, por exemplo. Um dos últimos trabalhos a tratar sobre o Império ultramarino e as relações que as colônias estabelecem entre si foi O Antigo Regime nos TrópicosA dinâmica imperial portuguesa (sécs. XVI- XVII). Org. de João Fragoso, Fernanda Bicalho, Maria de Fátima Gouveia. Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 2001. 19 objeto de estudo do próximo capítulo. Para isso, dividiremos a documentação em cinco tipos: Tratados, documentação Inquisitorial, documentação Jesuítica, documentação Oficial e documentação “Estrangeira”. A divisão em tipos de documentação, ao mesmo tempo em que nos facilita o trabalho, também permite-nos ver como cada classe envolvida no projeto colonizador paradoxalmente o tratava ao mesmo tempo como continuidade e ruptura com Portugal. 1.2 Contexto histórico geral 1500-1627 Apesar de a obra na qual se assenta nossa hipótese ter sido escrita em 1618, o recorte é antecipado para 1500, data do primeiro documento informativo sobre o Brasil, a carta de Pero Vaz de Caminha. Utilizamo-nos ainda da História do Brasil de Frei Vicente do Salvador porque nesta obra a consciência da diferença, que é algo ainda fluido e contraditório nos Diálogos, parece assumir contornos mais definidos. Poderíamos explicar isso pelo fato de que Frei Vicente já explicita uma certa relação entre as diferenças colono versus reinol e a subordinação do “Brasil” 10 a Portugal. Há em Frei Vicente elementos muito fortes a respeito da percepção de um sistema composto entre uma parte dominante e uma parte dominada que se complementam.11 Acreditamos que em razão disso, não somente tem consciência de que existe uma diferença entre 10 Não queremos associar o significado de Brasil à nação e é por isso que optamos por colocar o termo entre aspas. No entanto, os próprios cronistas do século XVI e XVII já utilizavam o termo Brasil para designar a terra, embora ainda estivessem indignados pela substituição do nome de Santa Cruz por este. Preferimos, no entanto, o termo América Portuguesa. “Brasil” assume outros significados neste momento. Comenta Afrânio Peixoto sobre tais significados com base nas cartas jesuíticas: “Nestas cartas há 4 acepções de Brasil. Pau-brasil: ‘cá há açúcar’e algodão, brasil e ambre e resgates’; ‘pera ali carregarem de brasil’. A terra: ‘todo o Brasil que assim se pode dizer’; ‘Nestas partes podemos dizer com verdade que ajudamos a levar a crus do Cristo’. A gente: Os que tangiam eram os meninos brasis’. A língua: ‘Espera em pouco tempo falar tão bem brasil como agora italiano’.” (Afrânio Peixoto. Introdução a Cartas Avulsas: 1556-1568- Azpilcueta Navarro e outros. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1998, p. V). Mais comentários a respeito do nome Brasil, vide Pedro Calmon, História do Brasil. Rio de Janeiro, Cia. Ed. Nacional, 1939-1956, vol. I, cap. VIII, pp. 101-103. É incrível como no século XVIII, essa posição ante o nome de Santa Cruz vis a vis o de Brasil se inverte radicalmente. Nas palavras de João de Barros: “Brasil em vez de Santa Cruz deplorou João de Barros”. (Calmon, op. Cit, p. 103). 11 Não queremos dizer que Frei Vicente tem uma noção de antigo sistema colonial porque se assim fizéssemos estaríamos cometendo anacronismo e impondo os fatos à camisa de força de uma teoria. O que podemos fazer é o oposto: ver como alguns conceitos que utilizamos aparecem lá de uma outra forma. A mesma intenção tem Fernando Novais ao refletir a respeito de como a ‘externalidade da acumulação primitiva de capital comercial autônomo’ aparece em Frei Vicente: “(...) quanto a Frei Vicente, dizia, na terceira década do século XVII simplesmente: ‘tudo querem para lá’. É claro que essa frase, límpida e direta, contém todo o conceito longamente elaborado. Mais ainda: liga este fundamento geral com os comportamentos, as práticas, esse ‘modo’ com que ‘se hão’ os colonizadores; e não só os reinóis, como também os nativos”. (Fernando A. Novais. “Condições de privacidade na colônia”. Introdução à Cotidiano e vida privada na América portuguesa, org. por Laura de Melo e Souza. Vol. I de História da Vida Privada no Brasil. Coleção org. por Fernando Antônio Novais. São Paulo, Cia. das Letras, 1997, p. 32). 20 as partes, como, ao perceber a complementaridade entre estas partes de um sistema, percebe a natureza de tal diferença. Daí escolhermos a data de 1627, ano em que foi escrita a obra, como data para fechamento do recorte. Para facilitar a análise que será feita no capítulo terceiro, qual seja, a da relação entre “arqueologia” e Antigo Sistema Colonial, tentaremos já colocar neste capítulo, na medida em que se reconstitui o período, uma análise mais geral do que seria Antigo Sistema Colonial. Afinal, conforme dissemos na Introdução, não queremos tão somente explicar a História, mas também reconstitui-la. O conceito de Antigo Sistema Colonial, ao ser um conceito historicizado, tanto apreende a realidade histórica como lhe dá um sentido por meio do conteúdo teórico que nele se encontra. Nessa reconstituição há que se ressaltar quatro fenômenos divididos em três níveis. Os fenômenos são: a formação dos Estados Nacionais; o Renascimento Cultural; as Reformas Protestante e Ortodoxa Católica e a abertura do comércio no Atlântico. Estes fenômenos são gerais ao mundo ocidental durante o período que abrange os séculos XIV ao XVII. Os três níveis dos quais falamos nada mais são do que os três espaços que compõem o Ocidente: a Europa, Portugal e América, no nosso caso, a América Portuguesa. Começaremos pelo fenômeno político que corresponde à formação dos Estados nacionais. A centralização de poder nas mãos do rei é feita usurpando-se poder das hierarquias inferiores (vassalos) e das superiores (o imperador). Com a desintegração do feudalismo torna-se impossível recompor aquela universalidade que se dava na Idade Média pela cristandade ocidental. Os próprios imperadores dependiam da chancela do papa para serem coroados e a coroação guardava por detrás de si toda uma simbologia cristã. Na passagem da suserania para a soberania, da dispersão para a concentração e centralização de poderes nas mãos do rei, são três os tipos de poderes envolvidos: o fiscal, o judiciário e o militar, respectivamente, o monopólio da apropriação do excedente, da justiça e da violência. Para se fortalecer e ao mesmo tempo enfraquecer os outros componentes da hierarquia feudal e a Igreja, o rei realiza uma série de alianças que resulta na formação de um equilíbrio em que ao mesmo tempo em que beneficia uma classe em um dado momento, a pune em outro por privilegiar uma outra classe. Vê-se desde logo que as bases em que se assentam os estados nacionais absolutistas são um tanto quanto frágeis e duram enquanto essas alianças são possíveis e enquanto não surja nenhum poder tão forte quanto o do rei. Com a ascensão da burguesia, esse 21 poder do monarca vai claramente se fragilizando e essas frágeis bases em que se assentava vão sendo corroídas. Mas esse fortalecimento da burguesia somente ocorrerá mais claramente no século XVII, em especial com a Revolução Puritana de 1640 e a Gloriosa de 1680. Finalmente, com a Revolução Industrial nos séculos XVIII e XIX, a burguesia assume total controle do processo de acumulação, que se torna especificamente capitalista, e a monarquia absoluta perde toda a sua força. O Estado termina o seu processo de modernização, passando de um Estado Absoluto para um Estado Liberal Abstrato, que abole todas e quaisquer relações pessoais que antes o perpassavam.12 Esse mesmo Estado Nacional Absolutista utiliza-se de alguns outros instrumentos para se manter. Em primeiro lugar, subordina a Igreja. As longas lutas entre o poder secular e o religioso que na Idade Média eram claras porque o poder temporal estava concentrado no Império e o poder sacro no Papado se minimizam porque os conflitos entre a instância política e a religiosa passam a ser internos ao Estado. Essa subordinação da Igreja ao Estado se relaciona com a perda de seu caráter universal, o que já começa quando o papado pede apoio ao Reino dos francos nas guerras contra os longobardos no século XIV, ao invés de pedir apoio ao Império Bizantino. Em segundo lugar, perde seu caráter universal pela perda de espaço na justificação do mundo e da sociedade medieval. Esta é uma sociedade estamental, em que os estados são definidos por uma concepção divina do mundo: a de que existe uma ordem imposta por Deus que não deve ser contestada. No entanto, essa própria rigidez imposta pelo cristianismo, contrasta com uma outra característica sua: o seu forte tom igualitário. Como justificar uma sociedade desigual se no plano ético se preconiza a igualdade entre os homens? Isso começa a ser contestado por dentro da própria doutrina cristã, seja na forma como faz São Francisco de Assis, que prega uma reforma, não da doutrina, mas da moral cristã, seja na forma como o fazem as heresias, que pregam um retorno ao cristianismo primitivo.13 As Reformas heterodoxas, primeiro a de Lutero e depois a de 12 O fenômeno da abstração do Estado é resumido sociologicamente pelo conceito weberiano de dominação legal. Na “dominação legal (...) todo direito pode ser estatuído de modo racional (...) todo direito é, segundo sua essência, um cosmos de regras abstratas, normalmente estatuídas com determinadas intenções; que toda judicatura é a aplicação dessas regras ao caso particular e que a administração é o cuidado racional de interesses previstos pelas ordens da associação, dentro dos limites das normas jurídicas e segundo princípios indicáveis de forma geral (...); que, portanto, o senhor legal típico, o “superior”, enquanto ordena e, com isso, manda, obedece por sua parte à ordem impessoal pela qual orienta suas disposições”. (Max Weber. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.Trad. de Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Revisão técnica de Gabriel Cohn. 3a edição. Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1994, p. 142). 13 As primeiras heresias, situadas nos séculos I e II, não são propriamente heresias porque são doutrinas não cristãs, como o maniqueísmo, por exemplo. Nos séculos IV e V, surge um misto entre doutrinas que cultuam o primitivo e o judaísmo. Somente nos séculos XIV e XV é que a Europa é invadida pela onda herética que prega o resgate do 22 Calvino, enfraquecem ainda mais a Igreja porque a cristandade ocidental se cinde, abrindo caminho para o fortalecimento do poder temporal. Como resposta, a Igreja Católica também sofre uma reforma interna, sendo suas duas principais dimensões: a reunião do Concílio Tridentino e a criação da Cia. de Jesus em 1540 pelo padre Ignácio de Loyola. O principal objetivo é o de evitar a perda de fiéis para as Igrejas reformadas e tentar resgatar aqueles que foram perdidos. Podemos dizer que as reformas, tanto a heterodoxa, como a ortodoxa católica, deixam a cristandade ocidental cindida em duas: uma cristandade herética e uma cristandade ortodoxa. O terceiro movimento que reforça a perda do caráter universal da cristandade ocidental é o nascimento do racionalismo moderno. A Igreja perde o monopólio do saber com as mudanças culturais que se processam no período. O Renascimento Cultural traz consigo a laicização do mundo ocidental que contesta as justificativas transcendentes do mundo dadas pela religião cristã. Do aristotelismo passa-se ao platonismo. Da Escolástica Medieval e do estudo da Suma Teológica de São Tomás de Aquino, passa-se ao estudo dos exemplares originais de Ovídio, de Virgílio, de Homero. O homem começa a ser valorizado tanto fisicamente como intelectualmente; começa a ser o objeto central na arte e na filosofia.14 No entanto, é claro o conflito que vive esse homem moderno, dividido entre o sagrado e o profano, entre Deus e a humanidade, entre a sobrenatureza e a natureza. Ao lado do humanismo, o desejo de descoberta é uma outra característica do Renascimento Cultural. É daí que emergem as inovações técnicas do período. O astrolábio, a bússola, a vela triangular combinada com o sistema de velas dos navegadores do norte e a caravela são alguns dos principais empreendimentos levados a cabo pelo primeiro Estado que se fez centralizar: o Estado português. É a centralização política que disponibiliza os fundos necessários para os empreendimentos de alto risco que exigem as navegações no Atlântico. O Estado português, que adquire contornos de Estado centralizado desde 1383 com a Revolução de cristianismo em suas formas originárias, como é o caso dos cátaros, dos jansenistas, dos albigenses, e finalmente das reformas propostas por Lutero e Calvino. 14 “Conforme já vimos, este período primeiro deu o mais alto desenvolvimento à individualidade, e depois levou o indivíduo ao estudo mais zeloso e completo de si mesmo, em todas as suas formas e sob todas as condições. Na realidade, o desenvolvimento da personalidade se acha essencialmente envolvido no reconhecimento dela mesma dentro de nós e dos outros. Nossa narrativa colocou a influência da literatura antiga entre esses dois grandes processos, pois o modo de conceber e representar tanto a natureza humana quanto a individual foi definido e colorido por tal influência. O poder de concepção e representação, porém, está na época e nas pessoas”. (Jacob Buckhardt. A cultura do Renascimento na Itália: um ensaio. Trad. Vera Lúcia de Oliveira Sarmento e Fernando de Azevedo Corrêa. Brasília, Ed. da Universidade de Brasília, 1991, p. 184). 23 Avis e a coroação de D. João como rei de Portugal, é o único Estado capaz de agarrar esse empreendimento. Não é a posição privilegiada que o empurra para a navegação no Atlântico, mas principalmente sua centralização precoce. A história das grandes navegações é paralela ao nascimento do capitalismo mercantil. Nessa etapa, a acumulação se dá de forma primitiva. Primitiva porque dará origem ao próprio capitalismo. Daí também o outro termo ser “originária”. Primitiva porque ainda não dispõe de meios para efetuá-la estritamente pelos meios econômicos e necessita de forças extra-econômicas para que se efetue. Ela ainda não se faz na produção, mas na circulação. O mecanismo é o de “comprar barato para vender caro”. Com a montagem do sistema colonial, é o sistema como um todo que promove a acumulação. O capital acumula-se na metrópole, mas o processo de criação de mais valiamercantil depende exclusivamente da natureza da relação que a metrópole trava com sua colônia. Daí falar-se em externalidade da acumulação.15 Não somente se comercializam produtos, como se produz para a comercialização. O Estado Nacional, o exclusivo comercial e a compulsão do trabalho são os elementos que, dentro do projeto colonizador, garantem a acumulação primitiva.16 No entanto, em relação à pura comercialização, algumas mudanças já se fazem, como por exemplo, quanto à mentalidade. Um dos princípios em que se assentava o mercantilismo era o metalismo: a riqueza se fundamenta na quantidade de metal nobre que um país consegue reunir dentro de suas fronteiras. Com o passar do tempo, essa concepção de riqueza vai mudando e de metal amoedável vai passando para bens que se pode produzir. É nesse contexto que começa a história de um domínio luso na América que depois viria a se chamar Brasil. Brasil aqui significa pau de tinta, índio, terra, língua, mas não nação, cujo sentido somente adquire nos séculos XVIII-XIX a partir da formação de uma identidade especificamente nacional e de uma ideologia anti-metropolitana. O que tentaremos reconstituir a Fernando Antônio Novais. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 6a edição. São Paulo, HUCITEC, 1995. 16 Uma descrição do funcionamento da concorrência do século XVI, fundamentada nos monopólios: “Da mesma maneira que, na sociedade capitalista do século XIX e, acima de tudo, do século XX, a tendência geral para a monopolização econômica revela-se claramente, pouco importando qual competidor particular triunfe e supere os outros; da mesma maneira que uma tendência análoga para a dominação mais clara, que precede cada caso de monopolização, cada caso de integração, está se tornando cada vez mais visível na competição entre os ‘Estados’, acima de tudo na Europa, da mesma maneira, ainda, as lutas entre as Casas medievais e, mais tarde, entre os grandes senhores feudais e territoriais, demonstravam uma clara tendência para a formação de monopólios”. (Norbert Elias. O processo civilizador - Formação do Estado e Civilização. v. 2. Trad. Da versão inglesa Ruy Jungman. Revisão, apresentação e notas Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1993, p. 135). 15 24 seguir são as pré-condições para a formação da tomada de consciência de uma identidade negativa, que por sua vez é um dos sentimentos que é pré-condição para a identidade nacional. Em conjunto, todos os sentimentos anteriores ao século XIX, inclusive essa consciência da diferença, correspondem ao que chamamos de “arqueologia da nação”, mas este estudo se restringe às dimensões lógica e histórica dessa primeira etapa. O estudo da consciência da diferença nesse trabalho está fundamentado em pesquisa documental. Discriminamos a documentação por tipos a fim de verificar como as percepções se distribuem nos diferentes tipos de documentos e como todas essas percepções em seu conjunto caminham para uma consciência da diferença entre colonos e reinóis. 1.3 Tipos de Documentação e percepções de diferença 1.3.1 Tratados Segundo José Honório Rodrigues os Tratados seriam crônicas ou elementos informativos da nova terra, que não fazem parte da Historiografia do Brasil. 17 Embora Honório Rodrigues considere tratado e crônica a mesma coisa, também acreditamos que não fazem parte a Historiografia do Brasil, mas por motivos diferentes. Em primeiro lugar, não compõem uma História propriamente dita, mas um aglomerado de informações que têm uma intenção mais propagandística que histórica: atrair povoadores para a terra. Em segundo lugar, ainda não se trata de Brasil enquanto nação, mas de “Brasil”, enquanto uma possessão portuguesa na América. Uma das características que perpassam os Tratados é a brevidade, que segundo Emmanuel Pereira Filho constituiria um traço marcante do estilo da época. Acreditamos que não somente isso seja motivo das rápidas informações a respeito da terra, mas também o intuito com que se escrevia. Não somente se tinha o objetivo de informar, mas informar para povoar. Daí o estilo limpo, atraente e objetivo. Entretanto, ao lado destas informações breves sobre a terra, têm-se também informações longas e detalhadas e respeito de sua fertilidade e riquezas concretas ou potenciais. Páginas e páginas são escritas por Fernão Cardim detalhando minuciosamente os finos 17 O tratado é definido em José Honório Rodrigues como uma crônica geral: “É certo que a crônica é mais narração do instante do acontecimento, que recriação e compreensão da estrutura factual e espiritual, tarefa da História (...) mas como a crônica geral é a apreensão narrativa no momento da produção, quando também surge a documentação, cabe-lhe a primazia da apreciação crítica. Já a História geral representa uma recriação posterior, que se nem sempre aguarda a crônica, espera utilizar-se dos documentos acessíveis”. (José Honório Rodrigues. História da história do Brasil. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1979, p. 425). 25 tecidos com que se vestiam os santos nas festas religiosas: “Estava todo o pátio enramado, as classes bem armadas com guadamecins, painéis e várias sedas (...) O padre visitador lhes mandou dar a todos Agnus Dei, relíquias e contas bentas, de que ficaram agradecidos (...) trouxe o padre uma cabeça das onze Mil Virgens com outras relíquias engastadas em um meio corpo de prata, peça rica e bem acabada”.18 Encher os olhos dos leitores com as maravilhas das viagens é um dos recursos para se atrair pretensos povoadores. O nosso primeiro cronista é Pero de Magalhães Gândavo. Segundo Barbosa Machado, era de ascendência flamenga, natural de Braga, , humanista latino e professor de latim em uma escola entre o Douro e Minho. A primeira tiragem da História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil foi feita em 1576 na oficina de Antônio Gonsalves em Lisboa, o mesmo local onde, em 1572, publicara Camões a sua primeira edição de Os Lusíadas. Antes da redação definitiva da História, no entanto, passa-se por outras três redações. A do Tratado da Província de Santa Cruz, a do Tratado da Terra do Brasil, um terceiro texto que corresponde à fusão destes dois e que é uma forma preliminar da História e finalmente esta. A nossa questão é se a passagem do Tratado para a História da Província de Santa Cruz implica em alguma forma de tomada da consciência da diferença entre colonos e reinóis. Na opinião de Leonardo Dantas,19 as informações do Tratado foram somente remanejadas para a composição da História. Para nós, a grande diferença é que nesta última, Gândavo situa o descobrimento no tempo quando no Tratado, ele aparece como um dado. Tanto, que Gândavo já parte da descrição das capitanias hereditárias não se preocupando em descrevê-lo, como faz no primeiro capítulo da História. Mesmo assim, a importância dos feitos pessoais sobrepassam a do fato histórico e o objetivo, tanto no Tratado, como na História, permanece o mesmo: “terem também os nossos naturais a mesma notícia, especialmente para que todos aqueles que nestes Reinos vivem em pobreza não duvidem escolhê-la para seu amparo: porque a mesma terra é tal, e tão favorável aos que a vão buscar, que a todos agasalha e convida com remédio por pobres e desamparados que sejam”.20 Fernão Cardim. Tratados da Terra e Gente do Brasil (1583). 3a ed. São Paulo, Cia. Editora nacional, 1971, p. 174. Pero de Magalhães Gândavo. Tratado da Terra do Brasil, 5a edição. História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil, (1576). 12a edição. Ed. De Leonardo Dantas. Recife, Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 1995. 20 Gândavo, op. Cit, p. 47. Segundo José Honório Rodrigues a História é ainda um livro de circunstância, como o Tratado: “Com ele temos a primeira revelação histórica do Brasil nos seus 70 primeiros anos, quando estávamos no quarto governo feral e já possuíamos um bispado. A História é um livro de circunstância, embora o primeiro a assumir o caráter de composição histórica, superior em elaboração às cartas e relatórios jesuítas”. (José Honório 18 19 26 Embora o mesmo objetivo apareça em Cardim, o caráter propagandístico não parece ser tão forte. A propaganda aparece mais como uma conseqüência do que como ponto de partida da obra. O estilo doce e envolvente do jesuíta chegado à terra em 1583 parece ser derivado de uma preocupação mais descritiva, conduzido pela necessidade em se relatar o desconhecido, o belo e o estranho não somente para os portugueses em geral, mas também para os outros jesuítas. Desse último ponto de vista, a narração de Cardim não serviria somente para propagar as características da terra, como para mostrar os desafios que ela lançava para os soldados de Cristo. Foram três os tratados escritos por Cardim e publicados em conjunto sob o título Tratados da Terra e gente do Brasil. O primeiro, Do clima e terra do Brasil e de algumas coisas notáveis que se acham assim na terra como no mar, trata mais especificamente da descrição geográfica e corográfica da terra, do habitat animal e vegetal. Descreve tudo em minúcias, incorporando inclusive a linguagem da terra, mas usando-se dos recursos comparativos para se fazer entender pelos leitores na metrópole. O segundo tratado, Do princípio e origem dos índios do Brasil e de seus costumes, adoração e cerimônias, traz uma especulação a respeito das tribos indígenas, os costumes gentílicos e a visão que Cardim tem do índio. No entanto, é no último tratado, a Narrativa Epistolar de uma Viagem e Missão Jesuítica, que se situa a descrição que mais nos interessa, qual seja, a respeito da organização social e econômica da colônia. Procuraremos nos deter neste último porque os outros tratados não apresentaram novidades em relação aos demais tratados no que se refere à diferenciação entre colono e reinol, ao passo que este último levanta algumas questões essenciais a respeito dos costumes dos moradores da nova terra. O terceiro autor com que estamos trabalhando é Gabriel Soares de Sousa e sua obra, o Tratado descritivo do Brasil, em 158721. Divide-se em duas partes: o Roteiro Geral da Costa Brasílica e Memorial e Declaração das Grandezas da Bahia. O autor é um senhor de engenho, de posse dos de Jaguaribe e Jequiriçá, chegado à Bahia em 1570, durante o reinado de D. Sebastião. Tinha um projeto de chegar às lendárias cabeceiras do rio São Francisco, mas morreu na empresa em 1587. Passamos agora à análise das obras dos autores supracitados. A História da Província de Santa Cruz de Gândavo não altera a essência do conteúdo do Tratado da terra do Brasil, embora se preocupe em dar uma gênese à terra descoberta. No entanto, a despeito dessa gênese, não se Rodrigues. História da História do Brasil. São Paulo, Cia Ed. Nacional; MEC, 1979, p. 431). O que está em jogo, portanto, é o que se considera como história. 21 Gabriel Soares de Sousa. Tratado Descritivo do Brasil em 1587.4a edição. São Paulo, Ed. Nacional, 1971. 27 tem um desdobramento histórico da ocupação na terra: o autor situa o descobrimento e então prossegue na pura descrição que permeava o Tratado. Descreve as capitanias, o número de seus habitantes, a geografia, a corografia, a etnografia, todas elas observações de caráter natural. A dinâmica da sociedade se restringe aos números: o número de engenhos, o número de habitantes, o número de escravos... O autor descreve o estado presente da terra, mas não o seu desenvolvimento. As descrições aparecem soltas no tempo, sem que haja uma relação entre umas e outras. Para facilitar análise, organizaremos a apresentação dos tratados por temas. Colocaremos alguns pontos que encontramos nestes textos e que consideramos pré-condições para o aparecimento da consciência da diferença entre colonos e reinóis presente nos Diálogos. Primeiramente, tal consciência nasce na natureza, porque é o que salta aos olhos como mais diferente. Mesmo assim, a tendência do cronista, em primeira instância, não é enxergar o diferente, mas o diverso, ou seja, elementos que ainda pertencem a uma mesma unidade. Mesmo na natureza, o cronista usa os padrões metropolitanos para entender e se fazer entender. Como explicar o gosto do ananás? Como explicar o que é um peixe boi? Seria uma sereia, como o viu Colombo? O que muda são as medidas: a cor, a forma, o tamanho... Tudo na colônia aparece maior e mais abundante do que na metrópole, mas não deixa de ser uma exponenciação do que já existe na metrópole. Já o “diferente” implica na percepção de uma unidade diversa à da metrópole. No caso da natureza, é quando os homens começam a percebê-la em suas particularidades, sem necessitar de padrões ou de analogias22 para se fazer entender. O rompimento da continuidade em relação a Portugal depende da intimidade que se vai criando com a terra. Esse conhecimento mais íntimo da terra obtido a partir da especulação, da 22 A interpretação do mundo por meio de analogias é, segundo Sérgio Buarque de Holanda uma característica do homem renascentista. “A mentalidade da época acolhe de bom grado alguns modos de pensar de cunho analógico, desterrados hoje pela preeminência que alcançaram as ciências exatas. Em tudo se discernem figura e signos: o espetáculo terreno fornece, em sua própria evanescência, lições de eternidade. A Natureza é, em suma, ‘o livro da Natureza’, escrito por Deus e como a Bíblia, encerra sentidos ocultos, além do literal. Até a razão discursiva, feita para uso diário, deixa-se impregnar, não raro, da influência o pensamento mítico, e entre os espíritos mais realistas encontram-se as marcas dessa atitude, que traz no bojo um sentimento vivo da simpatia cósmica.” (Sérgio Buarque de Holanda. Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos do Descobrimento e Colonização do Brasil. 3a edição. São Paulo, cia. Editora nacional, 1977, p. 64. Grifos nossos). Há um trecho ilustrativo em Cardim quanto ao modo de pensar por cunho analógico: “Também tem um poço, fonte e tanque, ainda que não é necessário para as laranjeiras porque o céu as rega; o jardim é o melhor e mais alegre que vi no Brasil, e se estiveram em Portugal, pudera chamar jardim”. (Cardim, op. Cit., p. 33) 28 observação, da experiência,23 implica em uma outra ruptura com a metrópole: com as teorias ocidentais sobre a interpretação do mundo. Isso já está claramente posto nos Diálogos das Grandezas do Brasil. Além da passagem do diverso para o diferente, temos a passagem da percepção para a consciência da diferença. A percepção é a mera constatação. A consciência é um estágio além. Não importa tanto a descrição, como o significado de sua existência e a relação entre os objetos dos quais se toma consciência. Sua existência tem um sentido seja social, seja individual. Há ainda uma terceira passagem, que é a fusão das considerações anteriores: a da percepção da diferença na natureza para a consciência da diferença entre os homens; o português se cindindo entre um homem vivendo na metrópole e um vivendo na colônia. É essa consciência de diferença que já acreditamos existir nos Diálogos, e que foi sendo criada durante os primeiros anos da montagem da sociedade colonial. Em síntese, passa-se de uma mera percepção para uma consciência do diferente, cujo objeto é primeiro a natureza e depois a sociedade. Passemos agora à descrição detalhada de como essa passagem é feita. A primeira constatação de diferença é com relação à fertilidade da terra, cuja descrição é um recurso propagandístico para atrair povoadores para a terra. Daí o exagero de suas medidas, do maravilhoso, do inusitado, do estranho... O que se procura é despertar os sentidos por meio da exaltação das qualidades de Portugal na nova terra, exagerando-as ao limite.24 A partir do momento em que uma terra é percebida na outra, o que é diferente na realidade se torna diverso na imaginação do colonizador. Já existe uma percepção de diversidade: a das medidas.25 Num estágio anterior, os dois espaços, metrópole e colônia, eram exatamente iguais.26 Aos poucos, a 23 “Muito mais do que as especulações ou os desvairados sonhos, é a experiência imediata o que tende a reger a noção de mundo destes escritores e marinheiros, e é quase como se as coisas somente existissem verdadeiramente a partir dela (...) Podiam admitir o maravilhoso e admitiam-no de bom grado, mas só enquanto se achasse além da órbita de um saber empírico.” (Holanda, op. Cit., p. 5. Grifos nossos). Quando é a experiência própria que passa a dar sentido às coisas e inclusive explicá-las, a relação entre o ouvir e o ver, se inverte. É agora “o ver” que antecede o crer e o explicar, ao contrário das antigas formulações, que eram constituídas a partir daquilo que se ouvira e do colorido que a imaginação dava a isso que fôra ouvido. 24 “(...) há muito peixe em extremo e junto dele muita infinita caça de porcos e veados. Aqui se pode fazer uma povoação, onde os homens vivam abastados e façam muitas fazendas”. (Gândavo, op. Cit., p. 7). Quando esse potencial começa a ser aproveitado no decorrer da ocupação da terra, a fertilidade se mostra na alta produtividade desta. A respeito das novilhas: “no qual engordam tanto que do muito viço dizem que morrem todas”. O exagero é das figuras de linguagem mais usadas nas descrições. 25 “Esta terra sempre é quente quase tanto no inverno quanto no verão. A viração do vento geral dura até o meio dia pouco mais ou menos, é tão fresco este vento e tão frio que não se sente mais calma, e ficam recreados os corpos das pessoas”. (Idem, ibidem, p. 18) 26 “Colombo (...) acredita também (e não é o único na época) em ciclopes e sereias, em amazonas e homens com caudas, e sua crença (...) permite que ele os encontre: ‘O Almirante diz que na véspera, a caminho do rio do Ouro, 29 projeção vai deixando de pertencer somente ao plano do imaginário, para pertencer ao plano material também. Os primeiros povoadores desejam que este espaço seja em tudo uma réplica daquele de onde vieram. Quando não se consegue reproduzir “um outro Portugal”, justifica-se pelos limites da terra. Há, portanto, uma iminente contradição dentro da própria percepção da fertilidade. Ora a terra é considerada fértil, ora fraca: “Nunca faltou um copinho de vinho de Portugal, sem o qual se não sustenta bem a natureza por a terra ser desleixada e os mantimentos fracos, vestem e calçam como em Portugal”.27 A opinião sobre a terra depende da continuidade do projeto. Se ela consegue reproduzir Portugal, ela é boa, se ocorre o contrário, ela é má. Esse comportamento ambíguo se relaciona com a dificuldade de percepção que tanto a natureza, como os seus usos são diferentes (e não somente diversos) conforme se trate de uma colônia ou de uma metrópole. Quando passamos para a descrição dos homens que povoam as capitanias, vê-se que a abundância passa da terra para os homens e a diferença entre um morador desta terra e um morador em Portugal continua a residir nas medidas de corpo e nas suas posses: “Os moradores destas capitanias tratam-se muito bem e são mais largos que a gente deste Reino, assim no comer como no vestir de suas pessoas e folgam de ajudar uns aos outros com seus escravos e favorecem muito os pobres que começam a viver na terra e fazem muitas obras pias, por onde todos têm remédio de vida e nenhum pobre anda pelas portas a pedir como neste Reino”.28 Aqui já vemos uma passagem sutil da mera diferença quantitativa para a qualitativa: a maior riqueza dos homens justifica sua maior caridade, e isso é uma coisa que só acontece nestas partes. O mesmo valor, a caridade, tem manifestações diferentes em lugares diferentes. O mesmo movimento de transferência dos atributos da terra para os homens é visto em Cardim: “A gente da terra é honrada: há homens muito grossos de 40, 50 e 80 mil cruzados de seu: alguns devem muito pelas grandes perdas que têm com a escravaria de Guiné, que lhe morrem muito, e pelas demasias e gastos grandes que têm em seu tratamento (...) Enfim, em Pernambuco há mais vaidade que em viu três sereias que saltaram alto, fora do mar. Mas elas não eram tão belas quanto se diz, embora de um certo modo tivessem forma humana de rosto’ (...) As crenças de Colombo influenciam suas interpretações. Ele não se preocupa em entender melhor as palavras dos que se dirigem a ele, pois já sabe que encontrará ciclopes, homens com cauda e amazonas. Ele vê que as ‘sereias’ não são, como se disse, belas mulheres: no entanto, em vez de concluir pela inexistência das sereias, troca um preconceito por outro e corrige: as sereias não são tão belas quanto se pensa”. (Tzvetan Todorov. A conquista da América: a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone Moisés. São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 16/17. Grifos nossos). 27 Cardim, op. Cit., p. 176. 28 Gândavo, op. Cit, p. 17. 30 Lisboa”.29 A abundância passa da terra para os homens. Nesse momento ela é produzida pelo contato físico do homem com a terra: a terra produz um tipo melhor porque ela é melhor. Nos documentos posteriores, isso vai aparecendo como um valor, uma herança dos antepassados. A abundância aparece pelo contato entre os homens e não somente entre homem e natureza. Por exemplo, nos Diálogos, não se sabe como os homens chegam a ser negligentes. Desconfia-se que é por causa da facilidade em se produzir as coisas, mas essa relação fica implícita. A certeza só vem realmente com o estudo “arqueológico” da documentação, que mostra que a lassidão da terra vai se passando lentamente para os homens até que aparece não mais de um valor natural, mas social; não mais como uma diferença quantitativa, como as proporções dos homens, mas de uma diferença qualitativa: a terra permite que os homens cultivem o ócio e o comodismo porque ela lhes dá de tudo com pouco esforço. Um outro valor que já começa a se verificar nos homens e que surge das condições da terra, e principalmente do contato com os nativos, é a hospitalidade. Esse valor aparece pela primeira vez em Cardim ainda dentro do tema da abundância. Há uma sutil diferença entre fertilidade e abundância. A fertilidade era ressaltada como um potencial do que a terra poderia produzir. A abundância é uma característica do que a terra produz. Essa mudança vai se fazendo na medida em que se vai definindo uma base material para a colônia. Por meio da comparação entre dois trechos, um que fala sobre o indígena e outro sobre o português, chegamos à conclusão de que a hospitalidade é um valor desta terra. É como se pelo contato com as características da terra e do índio, ela passasse aos novos moradores: “Nunca entre eles há desavença ou peleja (...) mas em tudo são muito amigos e conformes. (...) saímos de casa algumas 40 pessoas, sem coisa alguma de comer, nem dinheiro, porém, onde quer que chegávamos e a qualquer hora éramos agasalhados por toda a gente de todo o necessário de comer, carnes, pescados, mariscos, com tanta abundância, que não fazia falta a ribeira de Lisboa. Nem faltavam cama, porque as redes, que servem de cama, levávamos sempre conosco, este é cá o modo de peregrinar, sine pena, mas Nosso Senhor a todos sustenta nestes desertos com abundância”.30 O outro trecho, que fala da mesma característica, mas constatada nos portugueses, é o seguinte: “Os engenhos deste recôncavo são 36 (...) com muitas fazendas para ver. De uma cousa me maravilhei nesta jornada, e foi a facilidade que têm em agasalhar os hóspedes, porque a qualquer hora da noite ou do dia 29 30 Cardim, op. Cit., p. 201. Idem, ibidem, p. 178. 31 que chegávamos em brevíssimo espaço nos davam de comer a cinco da companhia (afora os moços) todas as variedades de carnes, galinhas, perus, patos, leitões, cabritos, e outras castas e tudo têm de sua criação, com todo o gênero de pescado e mariscos de toda a sorte, dos quais sempre têm a casa cheia, por terem deputado certos escravos para isso, e de tudo têm a casa tão cheia, que na fartura, parecem uns condes, e gastam muito”.31 A mesma característica que se vê nas tabas, se vê nos engenhos. Como veremos no próximo capítulo, o fundamento dessa questão é o mesmo da discussão de Frei Vicente do Salvador a respeito da inversão entre os espaços público e privado. A propaganda aparece, portanto, com uma dupla função: em primeiro lugar minorar os problemas do reino: “Minha intenção não foi outra (...) senão denunciar em breves palavras a fertilidade e abundância da terra do Brasil, para que esta fama venha à notícia de muitas pessoas que nestes reinos vivem com pobreza, e não duvidem escolhê-la para seu remédio: porque a mesma terra é tão natural e favorável aos estranhos que a todos agasalha e convida com remédio, por pobres e desamparados que sejam”.32 Em segundo lugar, promover a povoação do domínio português na América usando como instrumento a exaltação de suas qualidades: “(...) e esperam o cavalo poldras de um ano, como as vacas a algumas vezes parem duas crianças juntas. São tão formosas as éguas da Bahia como as melhores da Espanha; das quais nascem formosos cavalos e grandes corredores, os quais, até a idade de cinco anos, são bem acondicionados, e pela maior parte como passam daqui criam malícia e fazem-se mui desassossegados, mal arrendados e ciosos”.33 No primeiro caso, o problema está na metrópole e a solução na colônia; no segundo caso, o problema está na colônia e a solução na metrópole. Ao resolver-se um problema, o outro fica automaticamente resolvido. O maior obstáculo à harmonia geral é o da escassez de povoadores: “muitas terras perdidas por falta de moradores, das quais se conseguiria muito proveito se as povoassem (...) as quais também se perdem por não haver gente que as vá povoar”.34 O segundo problema que poderia atravancar a ocupação é a presença do indígena. Poderia parecer contraditório porque ao mesmo tempo em que o autor diz atrocidades a respeito dos 31 Idem, ibidem, p. 193. Gândavo, op. Cit, p. 3. 33 Gabriel Soares de Sousa. Tratado Descritivo do Brasil em 1587.4a edição. São Paulo, Ed. Nacional, 1971, p. 164. 34 Gândavo, op. Cit., p. 7 32 32 gentios que ocupam esta terra35, ele convida os conterrâneos a povoá-la. No entanto, a solução está posta no próprio texto por dois meios: o primeiro é que o gentio vive em guerras intestinas que se desenvolvem entre as tribos, uns comem aos outros36. O segundo, e mais importante, é o projeto da conversão de almas, que está imbricado ao do povoamento. Ao povoar, o português não somente não precisa temer o indígena, justamente pela sua condição gentílica e pelo trabalho do jesuíta37, como também estará ajudando a salvar muitas almas ao servir como exemplo notável àquele que desconhece a doutrina. Logo aqui já se vê como o projeto de colonização e catequização se encontram imbricados, mas isso é objeto de estudo do capítulo 3. Assim que se efetiva a povoação, qualquer falha que o projeto colonizador venha a apresentar, a culpa é atribuída ao índio ou à terra, conforme vimos anteriormente, e jamais ao português: “(...) e uma das coisas porque o Brasil não floresce muito mais, pelos escravos que se levantaram e fugiram para suas terras e fogem cada dia; e se estes índios não foram tão fugitivos e mudáveis, não tivera comparação a riqueza do Brasil”.38 Dessa forma, justificam-se as possíveis frustrações que poderiam afastar os povoadores. Nos Diálogos, conforme veremos, a culpa pela frustração do projeto está no próprio caráter do português que se transmudou em colono. Vê-se que conforme avança o projeto colonizador, as justificativas de seu sucesso ou de sua frustração são endógenas à própria sociedade colonial. Em Gabriel Soares de Sousa, o conhecimento mais íntimo da terra já começa a ser um dos motivos de diferenciação. Na nova terra, a experiência é o que passa a compor o conhecimento, porque afinal, as antigas teorias caem em desuso com os grandes descobrimentos. Essa nova postura perante o conhecimento e a forma como ele é gerado é uma das principais diferenças entre Alviano e Brandônio. Em Gabriel Soares de Sousa essa postura pode ser vista nas diferenças de atitude entre a Rainha D. Catarina e o governador Mem de Sá ante a expulsão dos franceses do Rio de Janeiro: “mas como a Rainha soube desta vitória, e entendendo quanto 35 “(...) vivem entre os matos como brutos animais, são forçosos em extremo, trazem uns arcos muito compridos e grossos, conforme as suas forças e as flechas da mesma maneira. Estes índios têm feito muito dano aos moradores depois que vieram a esta costa e morto alguns portugueses e escravos, porque são inimigos de toda gente (...) Finalmente, que não têm medo rosto direito a ninguém, senão à traição que fazem a sua”. (Idem, ibidem, p. 10) 36 “(...) e assim, como são muitos permitiu Deus que fossem contrários uns aos outros, e que houvesse entre eles grandes ódios e discórdias, porque se assim não fosse, os portugueses não poderiam viver na terra nem seria possível conquistar tamanho poder de gente”. (Idem, ibidem, p. 24). 37 “Aqui e nas mais capitanias têm feito estes padres da Companhia grande fruto e fazem com que a terra vá em muito crescimento, trabalham por fazer cristãos a muitos índios e metem muitas pazes entre os homens; também fazem restituir as liberdades de muitos índios que alguns moradores da terra têm mal resgatados. Assim que sempre acodem as que se desviam do serviço de Deus e de Sua Alteza”. (Idem, ibidem, p. 13) 38 Idem, ibidem, p. 16. 33 convinha à coroa de Portugal povoar-se e fortificar-se o Rio de Janeiro, estranhou muito a Mem de Sá o arrasar a fortaleza que tomou aos franceses e não deixar gente nela que a guardasse e defendesse, para se povoar este Rio (o que ele não fez por não ter gente que bastasse para poder defender esta fortaleza)”.39 Temos uma passagem clara da diferença de postura entre Mem de Sá e a rainha para a diferença entre Alviano e Brandônio. Aqui, o conhecimento é algo construído pela experiência cotidiana e vai sendo incorporado ao colono, tornando isso um traço de caráter seu. A forma de interpretar o cosmos torna-se diferente. Já no primeiro caso, que é sua condição “arqueológica”, trata-se não tanto de conhecimentos diferentes, mas de diferentes graus de acesso a uma determinada informação. Passou-se de algo puramente circunstancial para algo que foi incorporado como traço de personalidade do colono. É também em Gabriel Soares de Sousa que encontramos as informações mais bem acabadas sobre a organização material da terra, indo desde a descrição dos engenhos já montados, passando pelas vilas, cidades40 e Igrejas já de cal e pedra e não mais de taipa, e chegando até às armas da terra, construídas especialmente guerrear contra o indígena: “saibamos que tem alguns aparelhos naturais da terra com que se possam ofender seus inimigos, não falando nos cercos e flechas dos gentios (...) mas digamos das maravilhosas armas de algodão que se fazem na Bahia (...) do que se os portugueses querem antes armar que de cassoletes, nem couraças, porque a flechada que dá nestas armas resvala por elas e faz dano aos companheiros”.41 Passemos agora à introdução à documentação Inquisitorial. 1.3.2 Documentação Inquisitorial São seis os documentos discriminados na documentação Inquisitorial. Quatro deles correspondem à visitação feita por Heitor Furtado de Mendonça, que esteve na Bahia entre 1591 a 1593 e em PE, Paraíba e Itamaracá, em setembro de 1593 e fevereiro de 1595. Tanto a 39 Gabriel Soares de Sousa, op. Cit., p. 105. A organização material na colônia e sua incipiente divisão do trabalho: “A terra que esta cidade tem, uma e duas léguas à roda, está quase toda ocupada com roças, que são como os casais de Portugal, onde se lavram muitos mantimentos, frutas e hortaliças, de onde se remedeia toda a gente da cidade que o não de sua lavra, a cuja praça se vai vender, do que está sempre mui provida, e o mais do tempo o está do pão que se faz das farinhas que levam do reino a vender ordinariamente à Bahia, onde também levam muitos vinhos da ilha da Madeira, das Canárias, onde são mais brandos, e de melhor cheiro, e cor e suave sabor que nas mesmas ilhas de onde levam; os quais se vendem em lojas abertas, e outros mantimentos de Espanha, e todas as drogas e sedas e panos de toda a sorte, e as mais mercadorias acostumadas”. (Idem, ibidem, p. 139). 40 34 passagem pela Bahia, como por Pernambuco, resultou cada qual dois livros: um de confissões e um de denunciações.42 A segunda visitação em 1618 foi feita por Marcos Teixeira na Bahia.43 A 13 de setembro de 1543 aparece a primeira acusação no Novo Mundo: João Barbosa Paes denuncia Pero de Campos Tourinho, o qual é capturado em 1546 e em 1555 responde interrogatório. Campos Tourinho é condenado “por se dizer papa e rei e fazer trabalhar aos domingos”.44 A 9 de março de 1591, aporta na capital baiana, junto com o governador Francisco de Sousa, o visitador Heitor Furtado de Mendonça. Também eram nomeados para cargos do Santo Ofício, um notário e um meirinho. As funções destes, de início pré-fixadas, começam a variar conforme o surgimento de novas heresias não abarcadas pelo monitório. “Sobre as atribuições do notário e do meirinho devia ter influído de qualquer modo o novo meio a que vinham transferidos”.45 A alteração no quadro de cargos e mesmo no formato das instituições, que têm de se adaptar às condições locais, contribui para o movimento de diferenciação mais geral entre colonos e reinóis que estamos discutindo. O monitório enumerava as heresias e apostasias condenáveis pelo Santo Ofício. O grande problema era que este monitório feito para a visitação no Brasil fora baseado nos monitórios europeus.46 Vários dos casos que aparecem nas denunciações e confissões dos colonos não se 41 Idem, ibidem, p. 348. Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Confissões da Bahia – 1591-1592. Prefácio de Capistrano de Abreu, Rio, F. Briguiet, 1935. Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Denunciações da Bahia – 1591-1593. Prefácio de Capistrano de Abreu, São Paulo, Ed. Paulo Prado, 1925. Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Denunciações de Pernambuco – 1593-1595. Introdução de Rodolfo Garcia. São Paulo, Ed. Paulo Prado, 1925. Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil – Confissões de Pernambuco – 1591-1592. J. A. Gonsalves de Melo (Ed.). Recife, Universidade Federal de Pernambuco, 1970. 43 Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil – Denunciações da Bahia (1618-Marcos Teixeira). Introdução de Rodolfo Garcia. Anais da Biblioteca Nacional do Rio De Janeiro, vol. 49, 1927. Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador o licenciado Marcos Teixeira. Livro das Confissões e Ratificações da Bahia (1618-1620). Introdução de Eduardo de Oliveira França e Sonia Siqueira. Anais do Museu Paulista, tomo XVII. 44 Capistano de Abreu. Prefácio à Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Confissões da Bahia – 1591-1592. Prefácio de Capistrano de Abreu. Rio, F. Briguiet, 1935, p. I. 45 Capistrano de Abreu, Op. Cit., p. XIII. 46 “O monitório de D. Diogo servia ao duplo fim de facilitar o exame de consciência dos confidentes e de indicar o caminho aos espiões e delatores”. (Idem, ibidem, p. XIII) 42 35 encontram previamente decodificados no monitório.47 O visitador muitas vezes não sabia como lidar com estes casos. E será mesmo que o monitório realmente “facilitava o exame de consciência” dos réus, conforme preconizava? Será que eles realmente se sentiam culpados? Muitos nem sabiam porque estavam sendo condenados. Na maior parte das confissões, quando o Santo Ofício pergunta se o réu tinha consciência de que aquilo que fazia era errado, este responde imediatamente que não48. E não estão mentindo. Segundo Sônia Siqueira, “os cristãos não viam aqui [na colônia] necessidade de militância. Não percebiam a erosão do Paganismo no terreno de suas convicções religiosas”.49 A visitação de 1618 foi ordenada pelo inquisidor geral Fernão Martins Mascarenhas, e teve Marcos Teixeira como visitador. Dessa visitação, diz Capistrano haver um códice de 322 folhas, sendo que algumas das pessoas que falam já haviam sido autuadas na Visitação de Heitor Furtado de Mendonça. Ana Roiz, que no livro das Confissões da Bahia é acusada por ser cristã nova, aqui, já octogenária é condenada à fogueira. A única condenação, aliás, que foi feita aqui no Brasil. Quanto às características internas ao tribunal do Santo Ofício colonial, é de se acrescentar que na colônia, sua estrutura adquiriu contornos mais seculares do que religiosos.50 Isso acontece porque os tribunais do Santo Ofício configurados especialmente para atuar nos domínios d’alémmar são antes de tudo um aparelho de Estado, conseqüência da subordinação da Igreja a este durante o processo de centralização política: “A Inquisição, tal qual a impetrou D. João III e a concedeu o papa Paulo III, era um tribunal régio, como o patenteia o fato do primeiro inquisidor geral ter sido de nomeação del rei independentemente da Sé Apostólica. A pravidade dos jesuítas arrancou a prerrogativa da Coroa, que só a reouve em 1771, quando nomeou a ele cardeal para o cargo”.51 Não é à toa que seu ápice de atuação acontece justamente nos começos do século XVIII, com a febre da mineração e a necessidade de permanente vigília sobre os colonos.52 47 “O monitório de D. Diogo facilitava as confissões e denunciações judaizantes, mas era deficiente. Clara Fernandes previne ao inquisidor que a Boca Torta a infamava de ter um crucifixo que açoitava. Esta abominação, a mais freqüente nas denúncias contra os cristãos novos, não figurava no monitório de D. Diogo”. (Idem, ibidem, p. XVII) 48 “e sendo perguntada respondeu que a sua tenção era entender que se o dito mestre e que o fora queimado teria morte mais desonrada e que não teve outra tenção nem malícia e que não sabe que algum parente seu fosse penitenciado ou preso pelo Santo Ofício”. (Primeira Visitação-Confissões da Bahia, p. 39). 49 Sônia Aparecida de Siqueira. A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo, Ática, 1978, p. 44. 50 “Os escritores que negam a participação da igreja na estrutura inquisitorial e tudo atribuem ao então ávido de preia, poderiam ainda afirmar que ao fisco não convinha repartir os bens dos condenados entre a metrópole e a colônia: a metrópole queria a fazenda inteira para seu proveito exclusivo”. (Capistrano de Abreu, op. Cit., p. VIII) 51 (Idem, ibidem, p. X). Os regimentos do Santo Ofício formulados entre os séculos XVI e XVIII são as principais fontes que demonstram a inversão de poderes que se sucedeu na Europa durante o período de vigência do 36 Entre os cargos que foram criados pelo Santo Ofício para a sua atuação na colônia está o de “familiar do Santo Ofício”, o qual concentra todo o poder que pertenceria à alçada dos tribunais, inexistentes no mundo colonial: “Com a falta de tribunais no Brasil não folgou nem lucrou o gado humano marcado para a Inquisição. Supria-os pelo seu fervor e por sua ubiqüidade o familiar do Santo Ofício, título muito cobiçado, porque explicitamente afirmava a limpeza de sangue e implicava numerosos privilégios”.53 Tornar-se familiar era uma das formas de obtenção de nobreza e prestígio, o que, para aqueles que deixavam Portugal e vinham para uma “terra de ninguém” era de extrema importância. Daí a proliferação dos meios de enobrecimento dentro da sociedade colonial. Embora não possamos dizer que os depoimentos presentes nas visitações sejam portadores de uma consciência de diferença entre colonos e reinóis, o exame minucioso de tais depoimentos flagra algumas das pré-condições para o surgimento de tal consciência. Como dissemos na introdução a este trabalho, antes que exista a consciência, é preciso que apareça a percepção. Desse ponto de vista, os depoimentos ao Tribunal do Santo Ofício na colônia se configuram em fontes bastante ricas porque captam o nascimento do movimento de diferenciação dentro do âmbito da religião. Enumeraremos abaixo, alguns dos pontos que anunciam essa percepção que se encontram tanto na primeira Visitação, como na segunda.54 Todos esses pontos giram em torno do perfil mais popular que a religião cristã adquiriu na colônia. Fernão Gomes, por exemplo, é acusado de dizer “coitada de nossa senhora”.55 O colono absolutismo. E demonstram como a Inquisição passa de um órgão subordinado à Igreja para um órgão de Estado. Houve quatro regimentos ao todo: um em 1552, feito por D. Henrique, cardeal inquisidor geral; o segundo foi feito por Pedro de Castilho em 1613; o terceiro em 1640 por D. Francisco de Castro; e finalmente, o quarto foi feito em 1774, por ordens do Marquês de Pombal ao Cardeal João Cosme da Cunha. 52 “No começo do século XVIII a Inquisição lavrou sobre tudo nas terras fluminenses e suas vizinhas, já porque a proximidade das minas de ouro para elas atraísse gentes das mais diversas procedências (...)”. (Idem, ibidem, p. IX) 53 A respeito dos privilégios de que gozava o familiar: “Basta citar a C. R. de D. Sebastião, datada de 14 de dezembro de 1562. Por ela o familiar ficava isento de pagar fintas, talhas, etc., de ser constrangido a ir com presos e dinheiros, de ser tutor ou curador, exceto si as tutorias fossem lidimas, de exercer contra a vontade ofícios de concelho, de lhe serem tomadas para a aposentadoria a casa de morada, cavalariças, etc., de lhe tomarem pão, vinho, roupa, palha, cevadas, lenhas, galinhas, ovos, bestas de selas ou albarda; podia trazer armas ofensivas; a mulher, o filho e a filha do familiar, enquanto sob o pátrio poder, podiam usar seda em seus vestidos”. (Idem, ibidem, . IX). 54 Alertados para o fato de que os depoimentos misturam a visão daquele que depõe e daquele que notifica, respectivamente, o colono e o notário do Santo Ofício, o que privilegiamos na documentação Inquisitorial foram os pontos de percepção, a qual muitas vezes se limita a uma simples notificação de um fato do cotidiano colonial, sem que o colono saiba que isso se constitui num ponto de diferenciação. Pelo fato de os depoimentos da segunda visitação não acrescentarem nada de essencial à primeira visitação; não havendo nenhuma ruptura entre 1591, ano da primeira visitação, e 1618 no que concerne ao tema da diferenciação, ano da segunda, privilegiamos uma distribuição menos cronológica que temática desses pontos. 55 Primeira Visitação- Confissões da Bahia... p. 24. 37 tem uma tal intimidade com os santos que se permite xingá-los, chantageá-los e questionar a eficácia de seus poderes. Dizia Gonçalo Rebelo “que não havia purgatório, mas que somente quando as pessoas morriam dava Deus às almas as penas em uma parte ou na outra onde Deus queria e que não havia purgatório nenhum”.56 Já Álvaro Sanches foi mais além: “(...) tomou um Flox Sanctorum e com um alfinete picou uma figura que estava debuxada no dito Flox Sanctorum de Nossa Senhora e (...) picava a dita imagem para tirar em debuxo e lhe ser molde para por ele tirar outros debuxos semelhantes e isto fez com esta tenção boa, sem ter tenção nenhuma ruim nem pensamento dela (...)”.57 Esse tipo de intimidade jamais passaria em branco pela Igreja católica recém reformada, que mantém o rigor quanto aos mínimos detalhes dos ritos: “e assim lhes ensinava o dito frade seu mestre que quando se benzessem haviam de nomear o filho a destra no ombro direito e não abaixo do peito, como Gênesis Alfonso em um seu livro ensina (...) e que depois que ouviu esta doutrina ele confessante sempre usou do dito modo de benzer nomeando o filho no ombro direito, até haverá quatro ou cinco anos segundo sua lembrança que (...) um padre da companhia de Jesus lhe ouviu dizer nela que Deus não tinha mão direita nem esquerda, e ouvindo ele isto foi ao mosteiro falar com o dito pregador e outros padres e lhe declarou este escrúpulo e eles lhe ensinaram que deixasse o dito modo de benzer e que se benzesse da maneira que os cristãos todos se benzem nomeando o padre na testa e o filho no peito”.58 Fica claro que nestes casos, aquilo que os réus fazem não tem uma real intenção herética ou apóstata. Fazem-no porque a popularidade da religião colonial dá azo a uma certa flexibilidade tanto nos ritos como em outras relações com o sagrado. Tanto o diabo, quanto Deus estão presentes no cotidiano e a relação que guardam tanto com um como com o outro é a mesma: “(...) disse o dito Pero Fernandes que estava segundo lhe a ele parece perdendo para os circunstantes, Deixe-me jogar, parece-lhe que disse pelo amor de Deus. E depois disto tendo já jogado três ou quatro mãos disse o dito Pero Fernandes para os circunstantes, Deixe-me jogar por amor do Diabo”.59 A relação que estabelecem com o sobrenatural é muitas vezes uma relação de troca. O colono negocia com Deus e com o diabo para conseguir aquilo que quer: “(...) primeiro pegara com Deus para isto, porém depois que viu que Deus não quisera melhorar-lhe seu marido pegou 56 Primeira Visitação- Denunciações da Bahia, p. 497. Primeira Visitação- Confissões da Bahia..., p. 46. 58 Idem, pp. 30/31. 59 Idem, p. 509. 57 38 com os diabos”.60 A relação que se estabelece com o sagrado não é uma relação puramente espiritual ou transcendental, mas também material: “disse o dito Álvaro Velho as palavras seguintes, descreio de Deus e da Virgem Maria se vos não hei de fazer tal e tal, e me haveis de pagar não me dando a obra feita pela manhã”.61 A mesma mentalidade mercantil que perpassa a relação entre homens e os santos “contamina” ainda a própria hierarquia clerical: “e lendo-se assim a dita bula ele confessante disse que aquelas bulas se passavam para ajuntar dinheiro e fazer algumas esmolas e que para isto as passavam aos papas”.62 Muitos desses traços populares da religião colonial foram legados pelas tradições judaicas ou mouriscas que agiam num sentido “deseuropeizante”.63 Por exemplo, a prática de deitar água fora quando morre alguém em casa: “e estas cousas [não] saber que eram de judia porque lhas ensinou uma sua comadre cristã velha, Inês Roiz (...) dizendo ser bom e por isso o fez e cuidando ela se isto bom o ensinou também neste Brasil a suas filhas Lianor mulher de Henrique Monis e Beatriz Antunes mulher de Bastião de Faria”. 64 No cotidiano colonial, a supertição, que havia sido banida da religião cristã pela reforma ortodoxa, volta a se fundir com a fé. Tanto cristãos novos como cristãos velhos são acusados de tais práticas: “e ela confessante entrou no dito tempo na dita sinagoga uma vez somente em companhia de Catarina Afonso (...) e entrando na dita sinagoga sem fazer mesura nem reverência disse estas palavras Deus nos salve lei bem escrita e mal entendida parecendo-lhe que dizia uma boa oração por assim lhe ensinar que dissesse a dita Catarina Afonso”.65 O colono ainda não vê qualquer problema em substituir um culto por outro. O que realmente vale para ele é a intenção e não o ritual. Esse é o caso das seitas heréticas. Uma seita herética que é específica da América Portuguesa é a seita da Santidade. Nesta seita, misturam-se rituais católicos com rituais indígenas. Fernão Cabral de Tayde “(...) confessando disse que haverá seis anos pouco mais ou menos que se levantou um gentio no sertão com uma nova seita que chamavam Santidade havendo um que se chamava papa e uma gentia que se chamava mãe de Deus e o sacristão, e tinham um ídolo a que chamavam Maria que era uma figura de pedra que 60 Confissão de Paula de Siqueira. Idem, p. 50. Primeira Visitação, Denunciações da Bahia..., p. 83. 62 Primeira Visitação, Confissões de Pernambuco, p. 34. 63 “Tanto quanto o contato com os mouros, resultaram da convivência com os judeus traços inconfundíveis sobre os portugueses colonizadores do Brasil. Sobre sua vida econômica, social e política. Sobre seu caráter. Influência que agiu no mesmo sentido deseuropeizante que a moura”. (Gilberto Freyre. Casa-grande & senzala : formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 28a ed. Rio de Janeiro, Record, 1996, p. 226) 64 Primeira Visitação- Confissões da Bahia, p. 139. 61 39 nem demonstrava ser figura de homem nem de mulher nem de outro animal, ao qual ídolo adoravam e rezavam certas cousas per contas e penduravam numa casa que chamavam igreja umas tábuas com uns riscos que diziam que eram contas bentas e assim ao seu modo, contrafaziam, o culto divino dos cristãos(...)”.66 Não se trata aqui de um culto indígena mascarado sob a forma católica, como aconteceu muitas vezes na América espanhola, em que os nativos continuavam a cultuar os mesmos deuses mascarados pelo cristianismo. Aqui, os indígenas realmente aderem ao cristianismo, mas na forma que ele mais se adapta ao seu próprio cotidiano. E não somente os índios aderem a esse ritual mais simplificado, como também os católicos. Diz Capistrano: “Aos índios não repugnavam os assessórios cristãos acumulados sobre a solidez do fundo nativo, como adiante se verá a mais de um passo. Estranho seria que os acessórios cristãos obscurecessem e tornassem aceitável aos católicos o gentilismo do fundo. Pois deste sincretismo apareceram casos...”. 67 Essa mesma despreocupação com o rigor da prática cristã é vista na prática da feitiçaria. A magia está relacionada com a vida amorosa do colono, com as relações vicinais, com a colheita da cana, enfim, com todas as esferas do privado e do cotidiano. Guiomar d’Oliveira confessou que “outrossim lhe deu também a dita Antonia Fernandes outros pós não sabe de que e outros pós de osso de finado os quais pós ela confessante deu a beber em vinho ao dito seu marido Francisco Fernandes para ser seu amigo e serem bem casados e que todas estas coisas fez tendo lhe dito a dita Antonia Fernandes ensinado e declarado que eram diabólicas e que os diabos lhas ensinavam.”.68 Na seqüência, passamos à documentação oficial. 1.3.3 Documentação Oficial A documentação oficial selecionada para o trabalho é composta por regimentos, forais, traslados, provimentos, alvarás e cartas. São estas últimas que descrevem com maior riqueza de detalhes elementos do cotidiano colonial, ocultos nas ordens dadas nos regimentos e nas operações contábeis dos provimentos seculares e eclesiásticos. Nos regimentos, embora não haja percepção de diferença porque são ordens da metrópole para a colônia, imposição tão somente de 65 Op. Cit., p. 56. Idem, p. 28. 67 Capistrano de Abreu, op. Cit., p. XIX. 68 Primeira Visitação, Confissões da Bahia, p. 60 66 40 um lado sobre o outro, aparecem alguns dos objetivos mais gerais da colonização: “(...) procurará por todos os modos lícitos descobrir todas as minas, assim de ouro, como de prata ou de pedras, e tudo me irá avisando (...) fará povoações e fortes nos lugares e portos que melhor parecerem, procurando a amizade dos índios, oferecendo-lhes a paz e a lei evangélica, sem os induzir nem lhes prometer cousa que se não lhe cumpra (...) achando alguns índios que tenham cativos contrários a uns que costumam matar em terreiro e comer, pelas guerras que com outros incitem, os poderá mandar resgatar e assim poderá fazer nas mais ocasiões, não oferecendo força nem violência (...) procurará em cada aldeia que receber a paz, se levante uma cruz com muito acatamento e veneração, declarando-se o mistério dela”.69 A figura do Estado controla todo e qualquer movimento dentro do projeto colonizador. Começaremos pela carta de Caminha, que, cronologicamente corresponde ao primeiro documento oficial sobre a terra. 70 Como acontece com os Tratados que a seguem, a carta de Pero Vaz de Caminha mais escreve o que quer ver e ouvir do que realmente aquilo que vê e ouve. O relato é mais feito para entreter do que para informar. Assemelha-se em muito às narrativas maravilhosas do período. Sendo a carta de Caminha o ponto de partida, qual seria o passo lógico para que ocorresse uma primeira percepção de diferença? Como dissemos, a percepção da diferença surge primeiramente na constatação de que as naturezas são diferentes. Primeiramente diversas, depois diferentes. Isso vai no movimento contrário ao da Carta de Caminha que descreve um mundo idêntico ao europeu, e não um outro mundo. Na carta de Caminha, e mesmo nos primeiros tratados, apesar da natureza ser paradisíaca, em tudo lembra a Europa. Na verdade, é como a Europa seria na idealidade. O clima, os troncos, as folhas, as cores, a umidade somente se diferenciam pelo tamanho, espessura, forma e intensidade em relação à Europa. A diferença é puramente quantitativa. O fato de a carta ter sido escolhida para definir o marco inicial do recorte não segue um motivo estritamente cronológico, o primeiro documento informativo sobre o Brasil, 69 “Regimento que há de seguir o capitão-mór Pero Coelho de Souza nesta jornada”. In RIHGB, 1910, t. 73, pt. 1, p. 45. Pero Coelho de Souza foi capitão-mór da expedição enviada ao Ceará em 1603 durante governo de Diogo Botelho (1602-1608). A bandeira de Pero Coelho de Souza fundou o Forte de São Tiago na Barra do Ceará, sede das atividades de exploração das terras conquistadas. A posse oficial do Ceará deu-se com Martins Soares Moreno, imortalizado por José de Alencar, como o Guerreiro Branco, em seu romance Iracema; que aqui chegou, em 20 de janeiro de 1612, levantou o fortim de São Sebastião, no antigo local onde fora erguido o Forte de São Tiago, introduzindo grandes melhorias na nova concessão. 70 Pero Vaz de Caminha. Carta de Pero Vaz de Caminha. In Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil: Carta de Pero Vaz de Caminha, Carta de Mestre João Faras, Relação do Piloto Anônimo. Organização, introdução, comentários, notas e bibliografia de Paulo Roberto Pereira. Rio de Janeiro, Ed. Lacerda, 1999. 41 mas também lógico: é nesse documento que a projeção da Europa sobre a terra descoberta é máxima.71 O primeiro passo para a percepção da diferença depende, portanto, que os portugueses percebam este mundo como diferente e não somente uma variação em grau da Europa. A humanidade, seja ela demoníaca ou gentílica, também é uma outra humanidade. A percepção de que o português que mora na terra é diferente do português que mora no Reino depende dessas percepções de diferença: a que existe em relação à terra e a que existe em relação ao índio. É a partir dessas percepções primeiras que se rompe com as antigas concepções sobre o mundo e os homens. Brandônio se diferencia de Alviano por ter esse horizonte de conhecimento muito mais largo que o do seu interlocutor. O índio, apesar de muitas vezes ser visto como uma continuidade da natureza, é humano, vive em sociedade e também é um parâmetro para entender o colono. Este afirma a diferença em relação àquele porque não quer se sentir índio, como também não quer se sentir escravo. Muitas vezes, a reafirmação de alguns valores portugueses é fruto da tentativa dos colonos de negar a todo custo que pertençam a alguma condição mais baixa. Mas, a despeito de todo esforço em conservar ou adquirir costumes tradicionais, aqueles que residem na terra há um certo tempo já vão se percebendo diferentes daqueles que acabam de chegar. Na medida em que se começa a conhecer melhor o que antes era desconhecido, é inevitável que com esse conhecimento venha o medo e com o medo novas imagens do índio: índio demônio, índio animal, índio irracional. O contato já não é mais tão tranqüilo e as situações começam a se inverter: “Andavam já mais mansos e seguros entre nós, do que nós entre eles”.72 Isso já indica uma percepção mais real do outro. Na verdade, a percepção da diferença envolve perceber o outro como ele é.73 Isso também já fica indicado na percepção de que a nudez do indígena não se deve à sua imoralidade, mas à sua inocência: “(...) e suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descobertas que nisso não havia nenhuma vergonha”.74 A imagem daquele que chega na carta de Caminha não é ainda a do colonizador, mas a do conquistador. É somente a partir de 1530, ano da primeira expedição colonizadora de Mem de Sá, que a imagem do povoador começa a substituir a do colonizador nas narrativas. Da aventura da 71 Tanto a negação do desconhecido em primeira instância, enquadrando-o dentro do já conhecido, como sua gradual descoberta, aparecem de forma mais sutil, quase que num tom de conformidade, na Relação do piloto anônimo, um documento muito semelhante ao de Caminha, escrito em 1520. (Relação do Piloto Anônimo. In Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil. Org, de Paulo Roberto Pereira. Rio de janeiro, Lacerda Ed., 1999). 72 “Carta de Pero Vaz de Caminha”, op. Cit., p. 7. 73 A respeito do fato de que a descoberta do mundo é a descoberta do outro, vide Todorov, op. Cit., p. 6. 42 colonização, que passa a sobrepujar a aventura da conquista,75 surge uma sociedade ainda móvel, instável, transitória e um tipo humano que tanto possui traços dessa sociedade, como da natureza que o cerca. Aqui, começam a aparecer algumas diferenças em relação ao reinol, em decorrência do tipo de vida empreendido para a fixação na terra. Um dos aspectos principais é a função que a guerra contra o gentio passa a ter para o modo de vida do colonizador: “(...) e para fazer estes assaltos me despia nu e me rapava a barba fingindo de negro com um arco e flechas e ajudandome dos índios falando-lhes e contínuo a língua e perguntando-lhe o que já sabia bem fazer”.76 As experiências que aqui se têm com o gentio são um elemento de diferenciação: “Porque convém que o governador que ali há de haver seja pessoa que tenha experiência com o gentio”.77 Novos alimentos, novas técnicas de navegação, novas técnicas militares. O cultivo da cana abre espaço para que rotina e aventura convivam lado a lado. A partir daqui o colonizador se desdobra em duas figuras: o colono, associado ao povoamento e o colonizador, associado à exploração. Essa divisão já se encontra bastante clara nas cartas de Duarte Coelho a el-rei D. Manuel. E isso não é à toa porque afinal, Duarte Coelho é donatário da capitania que mais prosperou. As cartas que escreve, de 1542 a 1549, mostram uma sociedade que se tenta implantar. Duarte Coelho divide os portugueses entre moradores/povoadores e saqueadores, entre aqueles que estabelecem agricultura, morada e família na terra e aqueles que somente vêm para explorar o pau-brasil e destruir o que foi construído: “(...) algumas outras desordens de que aqui usam e praticam por estas outras terras e capitanias de mim para baixo, para o sul, e não sei se lhes chame povoadores ou se lhes diga e chame salteadores (...)”. 78 Duarte Coelho encarna os valores de uma sociedade que deixa de dar ênfase somente à riqueza mercantil, para valorizar também a terra que a produz: “(...) e embora me saia mais custoso, é necessário, Senhor, sofrê-lo pelo que 74 “Carta de Pero Vaz de Caminha”, op. Cit., p. 5. Apesar da colonização sobrepujar a conquista, ambas são aventuras porque mesmo a empresa da colonização envolve um risco, embora seja um risco planejado. (Fernando Novais. “O Brasil de Hans Staden”. Capítulo de Hans Staden: primeiros registros e escritos ilustrados sobre o Brasil e seus habitantes (1587). Trad. De Angel Bojadsen. São Paulo, Ed. Terceiro Nome, 1999. 76 “Relação do Ceará de Martim Soares Moreno” (1612). In Documentos para a História do Brasil e especialmente a do Ceará. (1608-1625). Fortaleza, tipografia Studart, 1904, vol. 1, p. 135. No mesmo ano também se faz a conquista do Maranhão e a narrativa da viagem se encontra no Livro que dá Razão ao Estado do Brasil de Diogo de Campos Moreno. (Diogo de Campos Moreno. Livro que da razão do estado do Brasil (1612). Edição crítica, com introdução e notas de Helio Vianna. Recife, Arquivo Público Estadual, 1955). 77 “Relação do Ceará ...”, p. 141. 78 Cartas de Duarte Coelho a el-rei D. Manuel . Ed. José Antônio Gonsalves de Melo e Cleonir Xavier de Albuquerque. Recife, Imprensa Universitária, 1967, p. 91. Outro trecho significativo a respeito da diferença de interesses entre puramente exploradores e aqueles que ele chama de povoadores: “que proveja e mande a todas as 75 43 importa ao bem da terra. Mas a esses a quem Vossa Alteza aí faz mercê de brasil, como lhes custa pouco, nem estão com os trabalhos e nos perigos e derramamentos de sangue em que eu, Senhor, estou e ando, não lhes dá nada, Senhor, de cousa alguma do que a mim dá, e o que eu sinto não o sentem eles, nem a perda que Vossa Alteza terá”.79 O trabalho, juntamente com a terra que este lavra, é ressaltado como um dos valores dessa estirpe de povoadores, uma outra ruptura, agora no plano moral, entre colonos e reinóis. Há aqueles que continuam a cultivar os valores metropolitanos, em especial os da nobreza, e há aqueles que rompem com eles. O abandono do ócio como um valor em absoluto, fica explicado pelo próprio desejo de continuidade em relação a Portugal no plano material: se essa colônia deseja ser uma continuidade perfeita em relação a Portugal, como isso pode surgir sem o trabalho? Todos que assim se sentem, jamais deixaram de se sentir portugueses. A diferença reside nos interesses e atitudes com relação à terra: “Convém muito a seu serviço e ao bem e salvação das cousas daqui, mandar que, pois todos somos portugueses e seus vassalos e súditos, não procedam uns como se fossem portugueses e outros como franceses e outros como se fossem castelhanos”.80 Devemos ressaltar que estas percepções vêm do donatário da capitania que mais prosperou, Pernambuco, doada a Duarte Coelho em 1534. Aliás, além desta capitania, somente a de São Vicente, doada a Martim Afonso de Sousa em 1532, também tinha prosperado até o início do século XVII. Mesmo assim, o segundo núcleo é radicalmente diferente do primeiro quanto a valores que surgem, formas de organização da sociedade e da base material. O que buscamos não são as diferenças regionais entre si ou uma base comum a todas as regiões - mesmo porque nem com a instituição do governo geral em 1549 isso foi possível. As peculiaridades das regiões foram mantidas em razão da manutenção da força política local, o que era de se esperar em terras tão vastas. O que buscamos são alguns dos indícios da diferenciação entre colono e reinol, pessoas a quem deu terras no brasil, que venham povoar e residir nelas (...) porque estes não fazem , mas desfazem no bem que se deve fazer, porque mercenarius mercenarius sum”.(op. Cit., p. 89) 79 Idem, pp. 87/88. Nas palavras de Evaldo Cabral de Melo, essa mesma idéia da mudança de direção do projeto de ocupação da terra: “Nas entrelinhas das suas cartas dá para perceber que sua resistência às pressões da Coroa visando à busca de metais preciosos e sua oposição ao corte de pau-brasil, atividades eminentemente dispersivas do esforço colonizador, por conseguinte, comprometedoras da estabilidade da capitania, resultavam do seu projeto de criação de uma colônia baseada na produção de açúcar por número reduzido de engenhos, que concentrariam a etapa fabril e que moeriam a cana de uma classe média de agricultores, encarregados do cultivo da cana”. (Evaldo Cabral de Mello, “Uma Nova Lusitânia”. Capítulo terceiro de Carlos Guilherme Mota (org.). A viagem incompleta : a experiência brasileira (1500-2000). Vol. I. Formação: Histórias. São Paulo, ed. Senac São Paulo, 2000, 2vols, p. 75). 80 Cartas de Duarte Coelho..., p.88. 44 presentes nestes valores gerados a partir de certo rompimento com o projeto de colonização nos moldes impostos pela metrópole. Passemos agora a algumas considerações sobre a documentação jesuítica. 1.3.4 Documentação Jesuítica Nas cartas jesuíticas a percepção da diferença tem um movimento inverso ao que aparece nos outros tipos de documentação. Se nos tratados, o foco da tomada de consciência se transfere da natureza para os homens, na documentação jesuítica, esta passagem é um pouco confusa, em razão dos interesses religiosos que moldam a figura do índio e do colono a seu bel prazer.81 Não estamos dizendo que nas cartas jesuíticas não existe percepção de diferença, mas esta percepção se concentra no sentido de diferenciar o colono do reinol a partir da deturpação da figura do primeiro. Na prática, parte do trabalho do jesuíta é canalizado para uma “des”-diferenciação, ou seja, o retorno ao estado moral dos primeiros portugueses que pisaram na terra82. As visões jesuíticas do índio, tal como o “papel em branco para neles escrever à vontade”83, a cera macia para se imprimir o que quiser, não somente servem para levar a cabo o projeto catequizador, mas também o evangelizador, que representa a salvação da sociedade colonial dessa decadência moral. O projeto catequizador é um projeto utópico em todos os sentidos, inclusive o literal: fora do lugar. Mas ao pretender uma sociedade nova, isolada da anterior, o jesuíta se vê obrigado a construir uma imagem do colono que possa dar suporte a essa utopia da catequização. Daí a degradação moral à que submetem o colono. Analisaremos a documentação jesuítica à luz de três significados que o termo conversão adquire aqui na América. Conversão significa mudar, significa inverter e significa ainda, pela 81 “O grande estrago que o demônio nestas almas fazia - porque quase todos os moradores destas 3 vilas estavam em grandíssimos pecados ofuscados, assim casados como solteiros e muitos mais os sacerdotes (...) estava alguma gente cristã derramada e passava-se o ano sem ouvirem missa e sem se confessarem e andavam em uma vida de selvagens”. “Extrato de uma carta do Padre Leonardo Nunes do Porto de São Vicente no ano de 1550”. In Cartas Avulsas: 1550-1568- Azpilcueta Navarro e outros. Cartas Jesuíticas, vol. 2. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1998. 82 “Os escravos dos cristãos e os mesmos cristãos muito se tem emendado e certo que nas capitanias, que temos visitado, têm tanta diferença do que dantes estavam, assim no conhecimento de Deus, como em obrar virtude, que parece uma religião”. (“Carta do Padre Manoel da Nóbrega, mandada da mesma capitania de Pernambuco, o ano de 1551”. In RIHGB, 1865, t 4, 2a ed., p. 13). A ruptura na visão do jesuíta é de tal forma forte que a capitania não vivia em religião. Graças a eles, ela voltou a caminhar nos bons caminhos da fé. 83 “Carta do Padre Manoel da Nóbrega”. In RIHGB, 1865, p.287. 45 física nuclear, quebrar.84 No que se refere aos colonos, o trabalho do jesuíta é fazer com que tornem à moral cristã. É preciso convertê-los, no sentido de inverter, porque afinal, nunca deixaram de ser cristãos, mas nesta terra, os bons costumes desapareceram: “O jurar por Deus e por seus santos, que nesta terra era moeda corrente e a menos jura que juravam era pela Trindade, nem lhe ficando tripas, nem bofes de Deus por que não jurassem (...) e era isto tão comum que meninos, que quase não sabiam falar, juravam pela hóstia consagrada, aprendendoo a seus pais”.85 No caso dos índios, os missionários nutrem uma esperança de constituição de uma sociedade em que se anule o pecado originário. Uma sociedade sem mácula. Aqui, é o significado de quebra que predomina. Em primeira instância há uma quebra com a realidade, exatamente por ser um projeto utópico. Quando colocado em prática, outras quebras vão se fazendo e a partir delas, os próprios jesuítas vão se diferenciando dos reinóis porque são obrigados a romper com certos preceitos da religiosidade ocidental para que possam se fazer entender dentro de uma cultura diferente. Essa quebra é feita tanto do ponto de vista das práticas religiosas, como dos rituais (azeite de copaíba no lugar de azeite de oliveira durante a unção), como ainda nos instrumentos de conversão, que é a mudança mais radical: os jesuítas têm de se adaptar à língua indígena86 e aos seus deuses para se fazer entender: “Essa gentilidade nenhuma cousa adora, nem conhecem a Deus; somente aos trovões chamam tupane, que é como quem diz cousa divina. E assim nós não temos outro vocábulo mais convincente para os trazer ao conhecimento de Deus que chamar-lhe pai Tupane”.87 Se por um lado, a diferenciação entre os jesuítas que trabalham na colônia e àqueles que permaneceram na metrópole é desfavorável aos primeiros, por outro, muitas vezes o árduo trabalho que empreendem lhes conferem status de santos. Nas palavras do padre Antônio Quadros: “Disse-nos [Thomé de Sousa] e penso que dissera a el-rei, que o Brasil não era senão nossos padres: que se lá estivessem seria a melhor cousa que el-rei teria, e se não, que nada 84 Contribuição da colega Fátima Maria de Melo Toledo. “Carta de Porto Seguro (1566), Antônio Gonçalves”. In Cartas Avulsas..., p. 500. 86 O não entendimento da língua indígena acaba virando um óbice à própria catequização: “(...) e não saber declarar o que queremos, por falta de intérpretes que o saibam explicar e dizer como desejamos”. (“Carta que o padre Antônio Pires escreveu do Brasil da Capitania de Pernambuco aos irmãos da Cia., de 2/08/1551”, Op. Cit., p. 102). 87 Manoel da Nóbrega, “Informação das Terras do Brasil”. RIHGB, t. VI, 1865, 2a ed., p. 92. “Te mandei um passarinho Patitá mirim pupé, Pintadinho de amarelo Iporanga né iané”. (“Cantos do Padre José de Anchieta”. In RIHGB, 1918, t.84, p. 574). 85 46 teria no Brasil. Claramente nos disse que nós aqui, em comparação com os irmãos do Brasil, éramos ruins e homens, a respeito a eles que eram anjos”.88 É o objetivo da conversão, nas três dimensões propostas acima, que faz com que a consciência da diferença tome um rumo inverso ao visto nos Tratados. A imagem do colono enquanto um demônio justifica a distância que estes devem manter do gentio, o caminho pelo qual se pode construir uma sociedade ideal. A visão que os jesuítas têm da natureza, assim como a que têm do índio, também é uma visão contrária àquela que se encontra nos Tratados. Aqui, a terra pode produzir tudo e quanto se queira. Basta que existam pessoas dispostas a povoá-la. Já na documentação jesuítica, freqüentemente associam-se descrições da terra a imagens do inferno. Já reclamava o padre Torres pela falta de comodidade da terra: “(...) por também não virem aqui navios do Reino, por não haver aqui engenhos de açúcar deixam os padres muitas vezes de dizer missa por falta de vinho e padecem outras necessidades que seria largo contá-las”. 89 A despeito de visões diferentes da natureza, o movimento de transferência das qualidades da natureza para os homens é o mesmo. Se nos Tratados, a natureza é vista como produtora de uma raça robusta e saudável, na documentação jesuítica, os colonos são contaminados pelas qualidades mais torpes da terra.90 A degradação moral na colônia ora é decorrente da pobreza da terra, ora de sua abundância, que faz o homem se deleitar em prazeres da carne e ceder ao pecado da preguiça, ora está justificada no próprio tipo que povoa a terra: o degredado.91 Existe ainda uma visão intermediária a respeito da terra: a colônia como purgatório. Purgatório moral, material e político. Correção de todos os desvios da metrópole: do pecado, da pobreza e do crime. Aqui vemos com clareza o primeiro sentido da conversão atuando: o sentido de mudança.92 A mudança espacial como sinônimo de correção moral: “(...) porque a terra é 88 Cartas Avulsas..., p. 45. “Cópia de uma carta do Brasil do Espírito Santo para o Padre Dr. Torres por comissão do Padre Brás Lourenço de 10 de junho de 1562. Registrada a 20 de setembro do mesmo ano”. RIHGB, 1840, t. 2, 3a ed., Rio de Janeiro, Imprensa nacional, 1916, p.432. 90 “(...) o demônio, inimigo da salvação dos homens, não podendo sofrer fazer-se tão grande desonra em terra onde ele é tão honrado”. (Cartas Avulsas..., p. 217). 91 “mal empregada esta terra em degredados”. (Nóbrega Cartas do Brasil (1549-1560). Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1988, p.64) 92 “Parece-me coisa mui conveniente mandar Sua Alteza algumas mulheres que lá têm pouco remédio de casamento a estas partes, ainda que fossem erradas porque casarão todas mui bem, com tanto que sejam tais que não tenham perdido vergonha a Deus e ao mundo”. (Nóbrega, op. Cit., p. 80). 89 47 muito grossa e larga (...) de maneira que logo as mulheres teriam remédio de vida e estes homens remediariam suas almas, e facilmente se povoaria a terra”.93 Um outro meio de correção moral apontado como solução não mais do Reino, mas da colônia, é o casamento. Daí o fato de as órfãs da metrópole e mesmo as mulheres de moral duvidosa serem tão requisitadas para a colônia. Da mesma forma como Brandônio acredita que a negligência dos homens possa ser corrigida pelo seu trabalho, ampliando as oportunidades econômicas na terra, diversificando as atividades, acentuando a divisão do trabalho, os jesuítas acreditam que os desvios possam ser corrigidos pelo casamento oficializado pela Igreja. As diferentes visões que têm do colono e da terra criam diferentes propostas para corrigí-los. O casamento não somente é importante dentro do projeto de conversão, como dentro também da colonização, como uma forma de estabilização na terra. A constituição de família significa uma forma de enraizamento. Na medida em que o projeto utópico vai por água abaixo e acaba se restringindo unicamente às missões, colonização e catequização acabam se cruzando. Na idealidade, o projeto catequizador pretendia-se separado do colonizador. Quando perceberam que não poderiam prescindir deste desde logo pela força militar que com ele traz, o projeto catequizador se frustra e então ocorre a quebra com a utopia de que havíamos falado94: “O maior trabalho que agora temos é que haverá em esta povoação algumas 50 negras, ou mais (...) Não sabemos dar a isso talho, porque se lh’as tirarmos, hão-se de tornar às aldeias e assim faz-se injúria ao sacramento do Batismo; e se não lh’as tirarmos estarão uns e outros em pecado mortal”.95 Tanto a colonização precisa da catequização, pela tranqüilidade que os jesuítas conseguem impor à terra, como a catequização precisa da colonização, principalmente por causa da força militar, um dos métodos da Companhia de Jesus para efetuar a conversão.96 A partir do momento em que a sociedade 93 “Carta que o padre Manoel da Nóbrega... Escreveu ao Pe. Simão... 1549”. RIHGB, 1886, p. 464. A preguiça é um dos vícios largamente apontado na documentação jesuítica: “Os cristãos tão pouco tinham, senão alguns poucos, porque os desta terra mais se dão a folgar e jogar e passear, fizeram nesta terra antes de tempo de côrte de príncipes, havendo nela agora mister quem habite e trabalhe com foices e enxadas”. (Cartas Avulsas...,, p. 214) 94 “In social or religious terms Brazil was created to reproduce Portugal, not to transform or transcend it (...) Instead, traditional forms of governance and settlement, modified to the new reality, were implanted in the colony. Catholicism and Portuguese law provided uniformities in each of the settlements and the donatarial captaincies and land grants (sesmarias) provided the means by which a reproduction of Portuguese seigneurialism could be created”. (Stuart Schwartz. “The formation of a Colonial Identity in Brazil”. Ed. by Nychols Canny & Anthony Pagden. Colonial identity in the Atlantic world : 1500-1800. Princeton; N.J., Princeton University Press, 1989, p. 19). 95 Nóbrega, Cartas do Brasil..., p. 109. 96 A Companhia de Jesus realmente tinha uma mentalidade militar misturada à religiosa. Tanto que se auto-intitulam “soldados de Cristo”. (Idem, ibidem, p. 137) 48 colonial vai adquirindo contornos próprios, a catequização e os valores que tenta impor começa a obstar os valores mercantis que vão se instalando. Conflitos entre jesuítas e colonos, em especial pela mão-de-obra indígena são um exemplo disso e indicam a sobreposição dos valores mercantis sobre os cristãos: “a contradição de todos os cristãos d’esta terra que era quererem que os índios se comessem porque nisso punham a segurança da terra e quererem que os índios se furtassem uns aos outros para eles terem escravos”. Não diria Nóbrega estupefato “são criaturas humanas estas peças?”.97 1.3.5 Documentação “Estrangeira” 98 O primeiro documento que trataremos como “estrangeiro” é a obra de Hans Staden, publicada em português com o título de Duas Viagens à terra do Brasil. O primeiro relato que compõe a obra foi escrito em 1549, por ocasião da primeira viagem de Hans Staden ao Brasil. Essa primeira expedição dura de 1548 a 1549, quando o navio aporta em Pernambuco, capitania de Duarte Coelho. A segunda expedição, que compreende o período em que Hans é feito prisioneiro dos tupinambás, dura de 1550 a 1555, acabando em São Vicente. Ainda em 1555, Hans Staden chega a Honfleur e publica sua História Verídica em 1557 em Marburgo. A visão que Hans tem do índio não é diferente da visão que o português, enquanto colonizador, tem.99 Em todos os relatos feitos por “estrangeiros” a respeito do Brasil colônia, não há um sequer que use algum termo equivalente a colono ou a reinol. Falam tão somente de “portugueses”. A diferença constatada pelo “estrangeiro” é a dos portugueses em relação aos índios. No limite, a diferenciação entre os portugueses daqui e os do reino se dá porque os daqui se aproximam mais dos índios, inclusive em termos biológicos, já que muitos dos colonos são mestiços. Mas a diferença, dificilmente ultrapassa esses limites biológicos. Para Knivet, trata-se 97 Nóbrega, Cartas do Brasil, p. 34. A análise da documentação estrangeira é importante para perceber porque reinol e colono somente fazem sentido dentro da identidade portuguesa. Isso pode parecer banal, mas não é. As diferenças que advêm do convívio na terra não são enxergadas pelo estrangeiro. Isso acontece porque a percepção da diferença é uma sensação: somente podem ser sentidas por aqueles que sofreram ou estão sofrendo as mudanças; somente quem é português pode perceber que sem deixar de ser português, já não é mais como aquele que vive no reino. É por isso, e também porque é saído do mesmo mundo do português, o mundo da cristandade ocidental e do renascimento, que o estrangeiro dá tanta ênfase ao índio. 99 “Também, não podíamos confiar neles plenamente”. (Hans Staden. In Hans Staden: primeiros registros e escritos ilustrados sobre o Brasil e seus habitantes.(1587) Trad. De Angel Bojadsen. São Paulo, Ed. Terceiro Nome, 1999, p. 48). 98 49 de uma visão racial: indeciso entre português e índio.100 Para Hans Staden, a visão do mestiço é uma visão religiosa: “descendentes de selvagens e cristãos”.101 Quando a percepção da diferença ultrapassa os limites biológicos, ela fica detida no plano da religião. Léry, em seu Viagem á Terra do Brasil,102 livro dedicado aos amantes de livros de aventura,103considera os portugueses tão imorais quanto os índios, com a diferença de que têm consciência do pecado que cometem, ao passo que os índios, não. Tanto é assim, que teme que estes mesmos vícios, que já foram transmitidos aos portugueses, passem aos franceses também durante o projeto de construção da França Antártica, cujo malogro conta neste livro: “(...) não tinha eu outra solução, pois temia que os artesãos que eu contratara e para cá trouxera se deixassem contaminar pelos vícios do gentio, ou que, em não encontrando oportunidade de praticar a religião caíssem em apostasia, e esse temor findou com a chegada dos irmãos”.104 Portanto, a forma como se enxerga o português que aqui vive depende muito da religião daquele que escreve. No caso de Staden, a visão do português é positiva, uma vez que também é cristão, ao passo que a visão do índio é negativa. No caso de Léry e Knivet, a visão do português é que se deturpa, em especial em Knivet, que teve certos problemas com o capitão Martim de Sá o que de certa forma o fez montar uma imagem gloriosa do índio. Léry oscila entre uma visão negativa, uma visão satírica e uma visão ideal do índio. Percepções de diferenças mais concretas entre colono e reinol só serão feitas mais para frente, por exemplo, com os frades capuchinhos Claude de Abbeville e Yves de Evreux, que por sinal, possuem uma visão muito próxima à de Frei Vicente do Salvador a respeito da terra: “Encantadores, os dois capuchinhos franceses na simplicidade de sua linguagem, dos seus 100 “Estava eu às ordens do sujeito que, na noite em que me aprisionaram, salvou-me a vida. Era esse sujeito um mestiço, o que quer dizer meio português, meio índio”. (Anthony Knivet. Narração da Viagem que nos anos de 1591 e seguintes fez Antônio Knivet da Inglaterra ao mar do Sul em companhia de Thomaz Cavendish. In RIHGB, 1865, p. 108). Knivet precisa explicar para os seus interlocutores o que vem a ser um mestiço. Provavelmente entendessem o que é um “mestiço”, mas não significava a mesma coisa aqui e na Europa, uma vez que esse mestiço tinha o sangue índio correndo dentro de si. 101 Staden, op. Cit., p. 48. 102 O tempo todo, Léry dialoga com André Thevet (André Thevet. Singularidades da França Antártica a que os outros chamam de América. (1558). Prefácio, tradução e notas de Estevão Pinto. São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1944), chegando aos extremos de chamá-lo de “refinado mentiroso e um imponente caluniador”. (Jean de Léry. Viagem à Terra do Brasil (1563). Trad. E notas de Sérgio Milliet. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1933, p. 15). Aliás, tanto a este como ao próprio Villegaignon, a quem acusa de falso calvinismo. 103 Segundo o introdutor à obra, Sérgio Milliet: “Para os homens do século XVI, tais relatos de viagem tinham um sabor inédito capitoso. Satisfaziam um dos quatro desejos fundamentais a que alude W. E. Thomas: o desejo da novidade, talvez o mais irresistível de todos, aquele que drena para si todas as forças ativas do indivíduo”. (Sérgio Milliet, Introdução à Jean de Léry, op. Cit., p. XVI) 104 Léry, Op. Cit., p. 8. 50 dizeres. Ora é um que nos aponta ‘os claros sinais do reino do diabo no Maranhão’ e outro que nos fala dos ‘animais imperfeitos ali existentes’”.105 Quanto à descrição do modo de vida na América, com Pyrard de Laval, em 1610, aparecem algumas descrições do cotidiano na América Portuguesa: “Fala-nos dos engenhos de açúcar da Bahia, da pesca da baleia, das moléstias da terra, dos bichos de pé, mil e um assuntos em poucas páginas”,106 percepções estas ainda impossíveis de serem notadas na precoce colônia de Hans Staden. A respeito da vida material, algo de muito próximo ao que se vê nos primeiros tratados é dito em 1567 por Jean de Léry: “(...) advertiu Du Pont que, em chegando a essa terra da América, seria necessário contentarem-se com certa farinha feita de raízes em lugar de pão; que não teria vinho, nem notícias dele pois não havia aí parcerias e finalmente, que no Novo Mundo (conforme informava Villegaignon) far-se-ia mister levar uma vida em tudo e por tudo diferente da nossa Europa”.107 O modo de vida difícil na América, livre das comodidades do Velho Mundo, atinge dimensões utópicas também no calvinismo porque era um mundo que se oferecia para ser transformado pelo trabalho. Curiosa é a observação de Taunay a respeito de Franz Post. Sua arte, que abrange o período das invasões holandesas a partir de 1624, também é significativa do ponto de vista da captação das diferenças entre o mundo europeu e o mundo americano. Cores desconhecidas pelo europeu são por Post criadas para se pintar um engenho, a natureza americana, o trabalho do negro. Até então se desconheciam certas cores, formas e técnicas, que foram criadas em razão de sua visita à América. “Assim, portanto, as Vistas da América, do ilustre pintor de Harlem, ninguém lhes compreendeu o colorido: uns tons rubros incandescentes, os verdes e azuis ofuscantes, os amarelos ferozes tão distantes das escalas cromáticas e finas dos mestres neerlandeses.”108 O sentimento de incompreensão do europeu ante o quadro torna evidente sua diferença em relação àquele que um dia já passou pela América. 105 Afonso de E’ Taunay. “Viagens e Viajantes do Brasil Colonial”. In RIHGB, 1922, v. 146, t. 92, p. 328. Ainda a respeito dos relatos dos viajantes sobre os animais da terra recém-descoberta, Taunay compôs uma rica iconografia dos viajantes dos séculos XVI e XVII, que mostram a influência fantástica do bestiário da Idade Média e da Antigüidade sobre esses primeiros viajantes, e a projeção desse imaginário sobre a fauna local. Vide Afonso de E’ Taunay. Zoologia Fantástica Brasileira. São Paulo, Edusp, 2002. 106 Taunay, “Viagens...”, p. 327. 107 Léry, op. Cit., p. 24. 108 Taunay, op. Cit., p. 329. Nota-se ainda a diferença na dificuldade em se captar este mundo em sua peculiaridade: “Quantas dificuldades aliás a vencer na reprodução da paisagem brasileira e de suas energias, o sol vivíssimo, as sombras carregadíssimas, com todo o seu cortejo de extraordinárias pompas em que há muita riqueza, mas ao mesmo tempo muita calma e serenidade”. (Idem, ibidem, p. 328). 51 No próximo capítulo tentaremos fazer algumas relações entre a documentação aqui estudada e a consciência da diferença entre colonos e reinóis presente nos Diálogos. A esse respeito, o trecho mais significativo é o que diz Alviano: “O ser ainda reinol e vindo de pouco a esta terra me faz ignorar em muitas coisas que aos antigos nela são patentes (...)”.109 Percebe Alviano não somente que desconhece a terra, como utiliza o termo reinol para expressar tal desconhecimento, com isso dando uma razão para tal diferença. Não há em toda a obra qualquer termo de oposição ao termo reinol, mas o que importa é o distanciamento que Alviano cria entre si e Brandônio ao se intitular “reinol”. Nos Diálogos, a percepção, embora enfoque a natureza e as características que esta transfere ao homem, também abrange a diferença que o colono começa a adquirir a partir da vivência com outros homens: tanto com o índio, ao qual se contrapõe pela religião e pelos costumes, mas principalmente com aqueles que têm a mesma experiência que a sua: o viver na colônia. 109 Diálogos das Grandezas do Brasil. Ed. Ampliada e revista por Capistrano de Abreu. Salvador, Progresso, 1956, p.56. 52 Capítulo 2: 1615-1627: dos Diálogos à História de Frei Vicente “O ser novo ainda neste Estado me faz ignorar dessas grandezas, que me afirmais poder nele haver, e para que fique melhor inteirado delas a me poder retratar da minha opinião, vos peço que me digais como ou de que maneira pode haver todas essas coisas que tendes dito ser o Brasil capaz de produzir?” (Diálogos das Grandezas do Brasil) “Era Thomé de Sousa homem muito avisado e prudente e muito experimentado, nas guerras da África e da Índia, onde estivera, tinha mostrado valoroso cavaleiro; mas estava isto cá tão em agro e enfadava-se de labutar com degradados, vendo que não eram como o pêssego, ‘o pomo que da pátria persa veio, melhor tornado no terreno alheio’, que pediu com muita instancia por muitas vezes a el-rei que lhe desse licença pêra se tornar ao reino. Contudo é muito para notar um dito (que entre outros que tinha mui galantes) disse quando lhe veio a licença: ‘Vedes isso meirinho? Verdade é que eu o desejava muito, e me crescia a água na boca quando cuidava em ir para Portugal; mas não sei o que é que agora se me seca a boca de tal modo que quero cuspir e não posso’. Não deu o meirinho resposta a isto, nem eu a dou, porque os leitores dêem a que lhes parecer..” (Frei Vicente do Salvador. História do Brasil.) 2.1. Consciência da diferença entre colonos e reinóis nos Diálogos das Grandezas do Brasil O que procuramos estudar com os Diálogos das Grandezas do Brasil não é a diferença entre colonos e reinóis, e sim a consciência de que essa diferença existe. Isso porque as diferenças aparecem desde os primeiros documentos, mas os “conquistadores” da América são, na verdade, seus “inventores”, ou seja, não enxergam aqui um mundo diferente, mas adaptam 53 esse mundo ao aparelho mental que possuem.1 E a tomada de consciência não somente tem a ver com a conscientização de que a América é um mundo novo, mas principalmente com o fato de que as pessoas, por viverem neste mundo novo, se tornaram diferentes. 2.1.1 A Obra Os Diálogos são em número de seis e foram escritos em 1618. São travados entre um português já residente aqui desde 15832, Brandônio, e um português recém-chegado da Europa, Alviano, que faz questões a respeito da terra ao primeiro. Há indícios de que seriam cristãosnovos, mas essa afirmação ainda não foi comprovada.3 Existem dois apógrafos dos Diálogos guardados em bibliotecas da Europa. O primeiro apógrafo é o da biblioteca da Real Universidade de Leiden, e o segundo é o da Biblioteca Nacional de Lisboa. De acordo com Antonio Gonsalves de Melo, organizador da edição dos Diálogos feita pela Universidade de Pernambuco, o primeiro apógrafo foi sujeito a correções, em razão de uma encadernação que recortou algumas partes do texto, que tiveram de ser reconstituídas e o apógrafo da biblioteca de Lisboa apresenta alguns defeitos de cópia4 mal feita a partir do outro apógrafo. Quatro das edições da obra, por seguirem o apógrafo lisbonense, apresentam os mesmos vícios deste. Os defeitos foram transmitidos através das sucessivas cópias dos Apógrafos. “Desses defeitos enormes das edições anteriores (...) parece ser dupla a responsabilidade. Em 1874, Francisco de Adolfo Varnhagen encontrou na biblioteca da Universidade de Leinden o 1 Edmundo O’Gorman. A invenção da América: reflexão a respeito da estrutura histórica do Novo Mundo e da consciência histórica do seu devir. Trad. De Ana Maria Martinez Correa e Manoel Lelo Belotto. São Paulo, Ed. Unesp, 1992. 2 Há dúvidas se o residente seria português ou não, mas pelo correr dos diálogos se torna clara essa sua origem. O ponto é que ele se sente diferente não pela sua procedência, mas pelo local de residência e conhecimento deste local, conhecimento este que o recém-chegado não tem. 3 Ambrósio Fernandes Brandão aparece em uma das confissões de Pernambuco durante a primeira visitação, acusado de adotar costumes judaicos. De biografia ainda obscura, provavelmente cristão-novo português, teria ido ao Brasil em 1583 e lá permanecido até 1618, de início como arrecadador dos dízimos do açúcar em Pernambuco, e mais tarde como senhor de engenho na Paraíba. Aí construiu ao todo três engenhos na várzea do Paraíba. Também tornou-se precursor da medicina tropical, o que fica comprovado em muitas passagens de sua obra. Seus conhecimentos farmacopéicos foram depois aproveitados pelo holandês Piso. Fonte: http://www.pbnet.com.br/openline/mfarias/ambrosio.htm). 4 “Apresenta vários defeitos de cópia e, elemento importante a considerar, incorpora ao texto quase todos os acréscimos e correções feitos ao texto de Leiden (...) Da incorporação comprova-se que o apógrafo de Lisboa é uma cópia do de Leiden, fato já salientado por Varnhagen, do que a princípio duvidei.” (José Antônio Gonsalves de Melo. Introdução a Diálogos das Grandezas do Brasil. 2a edição integral, segundo o apógrafo de Leiden, aumentada por José Antônio Gonsalves de Melo. Recife, Imprensa Universitária, 1966, p. XXVI). 54 apógrafo dos Diálogos cuja existência, ali, era até então desconhecida dos brasileiros, e o copiou ou fez copiar. Três anos depois, ao passar por Pernambuco, ofereceu uma cópia deles ao amigo José de Vasconcelos (...) Das mãos de Vasconcelos, parte da cópia foi parar ao Instituto Arqueológico, pois em sessão de 11 de dezembro de 1882, José Higino Duarte Pereira propôs ‘que se mande extrair a expensas do Instituto uma cópia do manuscrito intitulado Diálogos das Grandezas do Brasil, existente na Biblioteca de Leiden, na Holanda, da parte que falta cópia existente neste Instituto.”5 Em 1886 publica-se na Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, o Diálogo II, que não havia sido publicado na edição anterior de 1883. No entanto, Gonsalves de Melo diz não saber se a maior parte dos erros que a cópia dos Diálogos apresenta é devida a Varnhagen ou José Higino, ou ainda, em razão da revisão descuidada da revista. Além disso, novos defeitos foram agravados nas edições subseqüentes da revista e ainda, mesmo a edição da Academia Brasileira de Letras, sob responsabilidade de Afrânio Peixoto e Rodolfo Garcia é carregada de erros.6 No entanto, estes erros, conforme análise detalhada, não influenciaram o estudo da diferenciação. Fizemos uma análise comparada das duas edições e verificamos isso. O que importa para nós é como a consciência da diferença aparece na contraposição entre Brandônio e Alviano.7 Os erros das edições não afetam este nosso objetivo, embora cuidássemos o tempo todo de contrapô-las. Utilizamos duas edições, uma baseada no apógrafo lisbonense, que é a de Capistrano de Abreu, e outra baseada no apógrafo de Leiden, que é a da Universidade Federal de Pernambuco organizada por Antonio Gonsalves de Melo. As correções que este faz às outras edições8 estão na Introdução ao livro.9 5 Melo, op. Cit., p. XXVIII. Entre os erros encontrados por Gonsalves de Melo e confirmados pela nossa pesquisa estão: “’mais’ quando é ‘demais’; ‘haver’ por ‘a ver’, ‘até’ por ‘a lhe’, etc.” (Idem, ibidem, p. XXIX), todos no Diálogo II. O erro mais crasso é aquele que retira uma parte do Diálogo II da edição original: “Na Revista no 31, citada, página 376: ‘ALVIANO – Dou-me por concluído, porque pelas razões que me destes conheço ser este clima do Brasil o melhor do mundo, pela parte por onde o não corta a linha equinocial, porque ali de força há-de ser de mau temperamento, como o são todas as demais partes por onde ela passa.’ (...) Na edição da Academia, página 101: ‘ALVIANO – Dou-me por concluído, porque ali de força há-de ser de mau temperamento como são todas as demais partes por onde ela passa. Falta, como se vê, largo trecho da frase (...).” (Idem, ibidem, pp. XXIX/XXX) 7 Para maior detalhes sobre os erros dos apógrafos e das edições, consultar Gonsalves de Melo, op. Cit., Introdução. 8 Essas quatro edições são: a da Revista do Instituto Arqueológico Pernambucano, nos números 28 (1883), 31 (1886) 32 e 33 (1887); a edição da Academia Brasileira de Letras-Officina Industrial Graphica em 1930, com Introdução de Capistrano de Abreu; a edição da Academia Brasileira de Letras sob cuidados de Afrânio Peixoto e Rodolfo Garcia em 1933; a edição da Academia Brasileira de Letras-Ed. Dois Mundos, em 1943, com introdução de Jaime Cortesão e Capistrano de Abreu e notas de Rodolfo Garcia. Por fim, a edição de Gonsalves de Melo em 1966, que foi baseada no apógrafo de Leiden. 9 Gonsalves de Melo, op. Cit., p. VII-XLIV. 6 55 Há fortes probabilidades de que os Diálogos tenham sido compostos na Paraíba. Tanto as referências naturais como as sócio-políticas desta capitania se encontram presentes ao longo da obra.10 De forma resumida, o primeiro diálogo trata das capitanias, desde o rio Amazonas, até São Vicente e das características gerais de cada uma delas; o segundo trata do clima e enfermidades do Brasil, e dos remédios que se usam contra tais enfermidades; o terceiro, das quatro fontes de riqueza da terra, em especial as mercantis: o açúcar, o pau-brasil, o algodão e a madeira; o quarto diálogo, dos mantimentos, hortaliças, frutas, legumes e tudo o que a terra produz de si mesma; o quinto, das aves, peixes e animais terrestres, segundo os elementos a que estão relacionados: ar, água e terra; o sexto trata, enfim, das gentes que habitam a terra, tanto gentios, como portugueses, assim como dos costumes de cada um. Apesar de o sexto diálogo parecer o mais importante para os nossos propósitos, por se propor a falar dos colonos, grande parte do capítulo é dedicada ao gentio. Além disso, a análise da obra como um todo é de particular importância porque a consciência da diferença vai sendo construída ao longo do texto. Nem sempre o autor tem consciência de algumas coisas que fala e há outras que fala sem perceber e que ficam perdidas nos vãos do texto. Na verdade há mais coisas nas entrelinhas do que nas linhas propriamente ditas. Daí a importância da análise global do texto. 2.1.2 A autoria e a consciência da diferença Existem controvérsias quanto à autoria dos Diálogos, bem como quanto ao número de autores. A controvérsia que mais nos interessa não é tanto quanto a quem é o autor,11 mas quanto 10 “Entre estas podem enumerar-se primeiramente as numerosas referências a ela feitas, o modo desenvolvido por que é tratada: pouco mais de três páginas tratam de Pernambuco; menos de quatro tratam da Bahia, ao passo que quase cinco cabem à Paraíba. À Paraíba atribui-se o terceiro lugar entre suas irmãs e aproveita-se qualquer pretexto para salientá-la: o administrador eclesiástico, prelado quase igual aos bispos nos poderes, é da Paraíba, esta, por conseguinte, a cabeça espiritual das capitanias do Norte, a começar de Pernambuco; na organização judiciária proposta para substituir a Relação da Bahia, um corregedor com amplos poderes deve residir na Paraíba, por ser cidade real, e a ele serem subordinadas todas as justiças desde Pernambuco até Maranhão e Pará. Essa preferência pela Paraíba não indica que à Paraíba o autor estava preso por laços muito particulares? Uma frase escrita incidentemente legitima a resposta pela afirmativa. ‘Vos hei de contar, diz um dos interlocutores, uma graça ou história que sucedeu há poucos dias neste Estado sobre o achar o âmbar. Certo homem ia a pescar para a parte da Capitania do Rio Grande em uma enseada que aí faz a costa...’ A menos que não se provasse que o autor escrevia no Ceará, o que está fora da questão, para a parte da Capitania do Rio Grande, só se podia escrever na outra Capitania contígua, isto é, na Paraíba’”. (Capistrano de Abreu. Introdução a Diálogos das Grandezas do Brasil. Ed. Ampliada e revista por Capistrano de Abreu. Salvador, Progresso, 1956, p. 2) 56 ao número de autores. Se for um único autor, a consciência da diferença se torna imediata: um mesmo colono foi capaz de separar o português em duas outras denominações contrapostas entre si: o colono e o reinol. 12 Já se fossem dois autores, a consciência da diferença poderia ser questionada, porque o fato de duas pessoas se contraporem em um diálogo e falarem sobre as diferenças que existem entre as terras e entre as pessoas que moram nestas, não significa que tenham consciência de tais diferenças. Muito menos que façam parte de grupos diferentes. Podem se limitar à percepção, somente. Há hipóteses de que um tal Nuno Álvares, que exercia funções idênticas à de Brandão, teria sido Alviano, o interlocutor de Brandônio.13 Mesmo com dois autores, a conscientização da diferença acontece e ocorre por meio do discurso de Brandônio. Ele demonstra conhecer a terra, e utiliza para isso expressões muitas claras que o colocam em uma posição ativa dentro do diálogo, submetendo Alviano ao seu conhecimento.14 Brandônio tem consciência de que é diferente. Em 11 Bento Teixeira, o mesmo autor de Prosopopéia, era o mais cotado para autoria dos Diálogos, até que Capistrano de Abreu verificou que os Diálogos não eram de autoria deste, mas de Ambrósio Fernandes Brandão, um senhor de engenho com propriedades de terra em Pernambuco e Paraíba, nascido em 1560 e morto em 1630. 12 Segundo Capistrano, os personagens se complementam, compondo antes um discurso com uma única tese do que dois discursos com teses diferentes, o que poderia confirmar a hipótese de uma única autoria. “Parecem antes personagens simbólicos: um representa o reinol vindo de pouco, impressionado apenas pela falta de comodidades da terra; o segundo é o povoador, que desde 1583, veio para o Brasil, e, com as interrupções de várias viagens alémmar, ainda aqui estava em 1618, data da composição do livro. Tão abstratos os personagens, que às vezes saem dos lábios de um palavras que melhor condiriam nos do outro.” (Capistrano, op. Cit., p. 2). 13 Informação dada por Rodolfo Garcia na edição dos Diálogos feita pela Academia Brasileira de Letras, op. Cit., p. 21/22. 14 Algumas das expressões que demonstram como a consciência da diferença vai sendo mostrada pelo jogo que criam entre si ao serem proferidas pela boca de seus respectivos personagens (somente retiramos as presentes no primeiro capítulo, uma vez que é suficiente para mostrar a contraposição e elas se repetem nos demais): Alviano, em momentos de curiosidade: “e o que é que vos disse esse fidalgo?” (Diálogos das Grandezas do Brasil. Ed. Ampliada e revista por Capistrano de Abreu. Salvador, Progresso, 1956, p. 19), “pois dizei-me agora da grandeza (...) desta província” (Op. Cit., p. 20), “E o que é que haveis ouvido?” (Idem, p. 21), “E de que modo?” (Idem, p. 24), “e qual é a razão?” (Idem, p. 27), “pois não me encubrais”(Idem, p. 28), “pois dizei-me dela”( Idem, p. 30), “folgarei que me digais” (Idem, p. 35), “pois dizei-me das grandezas” (Idem, p. 33); em certos momentos em que não acredita no que Brandônio diz: “boa graça é essa” (Idem, pp. 12), “não posso me persuadir disso” (Idem, p. 12), “peregrina opinião é essa vossa” (Idem, p. 14), “isto tenho eu por fábula” (Idem, p. 32), “isso entendo eu pelo contrário” (Idem, p. 39); em certos momentos que acata ao conhecimento de Brandônio e é por ele persuadido a acreditar: “confesso ser isso assim” (Idem, p. 13), “confesso o que dizeis” (Idem, p. 13); “fico já bem inteirado” (Idem, p. 38). Brandônio, em momentos que demonstra conhecimento, chegando a se irritar às vezes: “quando vossa opinião tivera lugar” (Idem, p. 13), “pois assim vos enganais” (Idem, p. 17), “já me há de ser forçado a fazer-vos retratar dessa erronia em que estais” (Idem, pp. 19); em raros momentos que concorda com que Alviano diz: “tudo isso é verdade (...) contudo (...)” (Idem, p. 14). Para Brandônio, não existe uma verdade absoluta, senão a que há por se descobrir. Em dado momento do texto diz: “porque isso seria querer encontrar a verdade”. (Idem, p. 56). Por que para Brandônio não há uma verdade absoluta? Talvez isso se relacione com sua idéia a respeito do “sempre haver algo para ser descoberto”. Sabe que o conhecimento do homem é limitado e acatar a uma dada verdade, seria o mesmo que apostar no erro. Não busca a verdade, senão explicações para as coisas e tem plena consciência de que essa explicação é efêmera. É essa sua atitude que abre espaço para incredulidade e esta à permanente especulação. A dúvida se manifesta em Alviano com um caráter de curiosidade. Em Brandônio, com um caráter de rompimento ou contestação. 57 várias situações identifica-se com aqueles que moram na terra e faz questão de ser diferente de Alviano. Segundo Capistrano de Abreu: “O autor era português. A leitura cuidadosa o atesta a cada passo e o próprio Brandônio o confirma explicitamente. Interrogado por que não secundou as experiências de plantação de trigo, responde: ‘Porque se me comunica também o mal da negligência dos naturais da terra’”.15 Brandônio incorporou uma característica da terra que o distingue dos portugueses do Reino, e, embora não deixe de português, já não se sente como reinol. A forma como ele fala denota a plena consciência que tem desse fato. O interessante é que se for realmente um único autor, como as análises têm mostrado, teremos dois níveis de consciência da diferença: a consciência que o autor tem de sua condição de colono, como se identifica com essa condição e se sente diferente por sua causa, e a consciência que é construída pela contraposição entre Brandônio e Alviano, entre colono e reinol, que é um alargamento dos horizontes do primeiro nível de consciência, que ultrapassa as sensações individuais para torná-las gerais. Ambrósio Fernandes Brandão, o autor segundo Capistrano de Abreu, conhece os dois lados de que fala e então pode construir os dois vetores de que se compõe a diferenciação: dos colonos em relação aos reinóis, e destes em relação aos colonos. A contraposição é o que dá a dinâmica do diálogo e consistência ao argumento da diferenciação. Como para os nossos propósitos, a discussão quanto ao número de autores não é importante, passemos às discussões que surgiram dentro da historiografia a respeito de quem seria o autor. Começaremos pela polêmica. Depois, passaremos à descrição do autor. Capistrano de Abreu, Rodolfo Garcia e Gonsalves de Melo atribuem a autoria dos Diálogos a Ambrósio Fernandes Brandão, um senhor de engenho da Paraíba, que possui uma série de características coincidentes com Brandônio.16 Varnhagen atribui a autoria à Bento Teixeira, o mesmo autor de Prosopopéia17 e o Professor Eládio Ramos apresenta um outro nome: o padre Travaços, da companhia de Jesus da Paraíba. Uma leitura atenta dos Diálogos descartaria essa hipótese imediatamente. Fica claro que o autor é um senhor de engenho e não um jesuíta, como afirma o professor Eládio. O viés mercantil que perpassa sua forma de pensar não condiz 15 Idem, p. 3. Veja que isso não elimina a possibilidade de dupla autoria, mas tanto Capistrano, como Gonsalves de Melo não discutem isso. Somente citam em algum ponto das respectivas introduções. Procuram somente as coincidências entre o suposto autor e Brandônio. 17 Bento Teixeira. Prosopopéia (circa 1601). Introdução, estabelecimento de texto e comentários de Celso Cunha e Carlos Durval. São Paulo, Melhoramentos; Brasília, INL, 1977. 16 58 com a forma de pensar de um jesuíta. Resta a atribuição de Varnhagen à Bento Teixeira, mas as informações também não procedem.18 Assim, resta a autoria de Ambrósio Fernandes Brandão. Em primeiro lugar, os autores supracitados confrontaram as informações dadas pelo texto do hipotético autor com os dados que se tinha sobre Ambrósio Fernandes Brandão. As afirmações são bastante convincentes e detalhadas, mas não há espaço aqui neste trabalho para nos alongarmos neste tema.19 Melhor que sigamos os conselhos do Mestre Capistrano de Abreu: “Os esforços até agora tentados para levantar o anonimato dos Diálogos das Grandezas do Brasil têm sido perdidos. Para que aventar novas hipóteses? Antes tomar do livro e penetrar em sua intimidade se pudermos”.20 Passaremos então a indicar algumas características pessoais do autor, como sua formação pessoal e social, sua condição dentro da colônia, elementos que delineiam o seu pensamento e dão forma à sua obra. O autor era português e provavelmente recebera a formação literária e científica da época: conhecia o latim (como se pode ver por muitas de suas citações) e lêra autores clássicos como Aristóteles, Dioscórides, Vatablo, Juntino, com quem debate certas teorias que ele próprio caracteriza como inadequadas à explicação da nova terra. Tem uma concepção extremamente clara da história, geografia e a economia de Portugal e de suas colônias. Fundamenta-se na experiência como mestra das coisas.21 Dotado de um espírito crítico extremamente aguçado, questiona as crenças da terra, em especial a dos gentios. Segundo palavras célebres de Capistrano de Abreu: “a credulidade, para ele, era o princípio da crítica e da sabedoria”.22 É dessa mente astuta, de imaginação colorida e fértil, dotada de espírito crítico e capacidade em romper com tabus, que emerge a consciência da diferença entre colono e reinol. 18 Gonsalves de Melo apresenta três hipóteses para refutar a tese de Eládio Ramos. (Gonsalves de Melo, op. Cit., p. XX). Da mesma forma, um confronto entre dados biográficos de Ambrósio Fernandes Brandão e Bento Teixeira é feito à p. XVII. 19 Para os que se interessarem pelo tema, as informações estão em Gonsalves de Melo, op. Cit., p.VII-XXIV e Capistrano de Abreu, op. Cit., pp. 9-10. 20 Capistrano de Abreu, op. Cit., p. 2. 21 “Os casos vi, que os rudos marinheiros, Que têm por mestra a longa experiência, Contam por certos sempre e verdadeiros, Julgando as cousas só pola aparência, E os que têm juízos mais inteiros, Que só por puro engenho e por ciência, Vêm do mundo os segredos escondidos, Julgam por falsos ou mal entendidos”. (Luís Vaz de Camões. Os Lusíadas. Comentários de Francisco Silveira Bueno. São Paulo, Saraiva, 1960, canto V, estrofe 16). 59 2.1.3. Da percepção da diferença à consciência de sua existência Dada a polêmica sobre a autoria, podemos passar então à análise de como a consciência da diferença aparece na obra. Seguiremos a mesma ordem temática que o autor apresenta nos Diálogos. Tentaremos, ao concluir, dar uma forma mais acabada aos respectivos temas complementando-os com algumas reflexões de Frei Vicente do Salvador. O Diálogo Primeiro trata da fertilidade da terra e da sua divisão em capitanias hereditárias. Começa com uma discussão entre Alviano e Brandônio a respeito de uma certa lanugem que este tem revolvida em um papel. Em torno dessa discussão, surge uma primeira diferença entre Alviano e Brandônio, que é sobre a concepção de riqueza.23 Alviano pensa que somente “diamantes ou rubis” deveriam demandar tanta atenção e não uma mera lanugem. Brandônio tem uma outra concepção de riqueza, associada à terra e ao comércio, o que o torna mais próximo da mentalidade mercantil emergente. Para Brandônio, o açúcar que esta terra produz, é mais valioso do que ouro e prata.24 A percepção da diferença aparece na descrição da terra e de como as coisas funcionam; de sua fertilidade e de como a terra é capaz de produzir açúcar. A consciência aparece no fato de que Brandônio não somente conhece coisas novas, como sabe que esse é um ponto que o diferencia de Alviano. E ainda: sabe que essa característica não é somente dele, mas de todos os moradores desta terra. O próximo trecho a ser ressaltado é o que fala sobre as gentes do Brasil. Brandônio monta uma sociedade discriminando-a em grupos conforme o laço material que os unem à terra: 22 Capistrano de Abreu, op. Cit., p. 4. “ALVIANO:(...) e assim me torno a afirmar, como já disse, que melhor fôra ser esse bisalho de diamantes ou rubis, que são pedras descobertas e tidas por preciosas desde o princípio do mundo. BRANDONIO: E quem vos há de negar que isso fôra de mais proveito pela reputação em que o mundo as tem, por serem reluzentes e campearem muito, com alegrarem a vista com sua formosura; porque delas não sei outra excelência, posto que nunca me inclinará a ter minha fazenda embaraçada nessa mercadoria; porque, quando assim fôra, a teria por pouco segura.” (Diálogos..., p. 13). A concepção de Alviano é a concepção unânime da época. Brandônio inova ao adotar uma posição anti-metalista. Isso é revolucionário para uma época em que o metal e a pedraria eram a principal forma de riqueza, inclusive este é um dos princípios que regem a acumulação de riqueza num Estado Absolutista. 24 “(...) contentando-se de, nas fraldas do mar, se ocuparem somente em fazer açúcares? BRANDONIO: E tendes essa ocupação por pequena? Pois eu a reputo por muito maior que a das minas de ouro e de prata; como alguma hora vo-lo mostrarei provado claramente. (....) E este é o respeito por onde no Brasil seus moradores se ocupam somente na lavoura das canas de açúcar, podendo se ocupar em outras muitas coisas. ALVIANO: (...) o lançarem-se no Brasil somente seus moradores, a fazer açúcares é por não acharem a terra capaz de mais benefícios: porque eu a tenho pela mais ruim do mundo (...) 23 60 “ (...) porque deveis de saber que este estado do Brasil todo, em geral, se forma de cinco condições de gente, a saber: marítima, que trata de suas navegações,(...) mercadores, que trazem do reino as suas mercadorias a vender a esta terra, e comutar por açúcares, do que tiram muito proveito;(....) oficiais mecânicos de que há muitos no Brasil de todas as artes, os quais procuram exercitar, fazendo seu proveito nelas, sem se lembrarem por nenhum modo do bem comum. A quarta condição de gente é de homens que servem a outros por soldada que lhe dão, ocupando-se em encaixamento de açúcares, feitorizar canaviais de engenhos e criarem gados, com nome de vaqueiros, servirem de carreiros e acompanhar seus amos; e de semelhante gente há muita por todo este Estado, que não tem nenhum cuidado do bem geral.(...) A quinta condição é daqueles que tratam da lavoura, e estes tais se dividem ainda em duas espécies: uma dos que são mais ricos, têm engenhos com títulos de senhores deles, nome que lhes concede Sua Majestade em suas cartas e provisões, e os demais têm partidas de canas; a outra, cujas forças não abrangem a tanto, se ocupam em lavrar mantimentos legumes”. 25 Ao classificar a população em cinco tipos, Brandônio os especifica pela ligação que os homens guardam com a terra e uma especial ligação que guardam uns em relação aos outros. Os contornos da base material na colônia começam a ser definidos e isso vai moldando os grupos humanos de uma forma peculiar. Paradoxalmente, o colono é negligente e desafeito à mesma terra que produz sua sobrevivência: “E daqui nasce haver carestia e falta destas coisas, e o não vermos no Brasil quintas, pomares e jardins, tanques de água, grandes edifícios, como na nossa Espanha, não porque a terra deixe de ser disposta pára estas coisas; donde concluo que a falta é de seus moradores, que não querem usar delas”. 26 A negligência, que como vimos, foi um traço de caráter bastante ressaltado na documentação anterior aos Diálogos mantém aqui sua força. Por fim, o autor se propõe a falar das capitanias por ordem geográfica, desde o Pará até São Vicente. Os trechos principais falam sobre a opulência da terra, sobre sua fertilidade, sobre alguns fatos específicos ocorridos em cada capitania. Algumas lendas que compõem o imaginário colonial, como a do Eldorado, do outro Peru,27 alguns heróis, como João Ramalho, e seus feitos BRANDONIO: Certamente que tenho paixão de vos ver tão desarrazoado nessa opinião; e porque não fiqueis com ela, nem com um erro tão crasso, quero-vos mostrar o contrário do que imaginais”. (Op. Cit., p. 15-16) 25 Idem, p.18. 26 Idem, p. 18. Ele associa ainda essa característica dos moradores às condições sociais em que se encontra a terra: a carestia e a pobreza. No entanto, não sabe explicar, a despeito de Alviano lhe perguntar diversas vezes, de onde vem esse comportamento, que inclusive se comunica a ele (Vide nota 15 à página 63). Aqui, a montagem da sociedade e do sistema colonial se encontram de uma forma ainda rústica. Só em Frei Vicente se encontram de forma acabada e então realmente fazem sentido. 27 “No ano de oitenta e seis veio a Pernambuco este homem de que trato, o qual (...) se meteu pelo sertão adentro (...) até desembocarem neste rio, de que tratamos, das Amazonas; de onde por ser verão, na mesma canoa, ao longo da costa, passaram às Índias, levando por mantimento do muito peixe que sempre pescavam, e alguma água que 61 ou curiosidades, a natureza edênica, vão aparecendo como novidades que existem somente nesta terra. São criadas e permanentemente recriadas pelas condições que somente esta e sua gente apresentam. Os moldes podem ser europeus, mas o colorido é tipicamente local.28 Entre maravilhoso ao miraculoso tem-se um limite muito tênue. A abundância e a fertilidade da terra ficam no limite entre o material e o fictício, chegando ao extremo de serem divinas: “ALVIANO: E de que modo se toma esse pescado, que dizeis não custar trabalho o haver-se de pescar? (...) BRANDONIO: Mandam duas ou três canoas, (...) se põem inclinadas com a borda pendente contra aquela parte donde a maré vem enchendo, e basta para o fazerem assentarem-se os índios, que vão nelas, no bordo que pretendem que se incline; e estando assim inclinadas por espaço de duas horas, sem mais outro beneficio, se enchem de peixe excelentíssimo, que por si salta nelas; ALVIANO: (...) poderiam dizer que estavam na idade dourada, da qual fabulavam os poetas que manavam rios de mel e de manteiga”.29 A capitania de Pernambuco é a que o autor descreve com maiores detalhes, talvez porque aqui, não somente a base material, como a organização militar e a política tenham se instalado de forma mais plena.30 Uma das características da particular organização política da colônia é como ajuntavam em cabaços”. (Idem, p. 21). O outro Peru ou o Eldorado: mitos antigos, resgatados da Antigüidade Clássica, e que desembocam em uma nova mitologia americana ou luso-brasileira, como descreve Sérgio Buarque de Holanda em Visão do Paraíso. (Sérgio Buarque de Holanda. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1994). 28 Outras lendas e mistérios, como aquele de que trata à página 28 deste mesmo diálogo, têm origem puramente local. O mito é inédito, mas sempre se tenta encontrar nesse novo algo familiar ou antigo (mesmo que tal aproximação exista somente no imaginário do colonizador ou do colono): “Relatou-me por coisa verdadeira que, andando Feliciano Coelho de Carvalho, capitão-mor que foi da dita capitania pela mesma serra, fazendo guerra ao gentio Potiguar, aos 29 dias do mês de dezembro do ano de 1598, se achara junto a um rio chamado Aragoagipe, que, por ir então seco, demonstrava somente alguns poços de água, que o calor do verão não tinha ainda gastado, e que alguns soldados, que foram por ele abaixo, toparam nas suas fraldas, com uma cova, (...) e ali por toda a redondeza que fazia na face da pedra se achavam umas molduras (...) que tomavam princípio debaixo para cima de um tamanho, que semelhavam, no modo com que estavam arrumadas o em que se pinta por retábulos o rosário de Nossa Senhora (...)e no cabo destas mossas se formava uma moldura de rosa.” (Diálogos..., p. 28). 29 Op. Cit, p. 23. É preciso reparar que a propriedade divina da terra se aplica à natureza, mas nem sempre às suas gentes: “A percepção do índio como uma outra humanidade, como animais e como demônios corresponde a três níveis possíveis através dos quais se expressaram as considerações européias acerca dos homens americanos. Para efeito de análise, pode-se dizer que, num primeiro nível, o europeu vê no ameríndio uma outra humanidade. (...) [mas] como colonizar terra tão paradisíaca com homens que agiam como irracionais, ou, em outras palavras, agiam como se não fossem homens? (...) A humanidade anti-humana se manifestava ainda no estado de pecado em que, para o europeu católico, vivam os naturais da terra. (...) Vícios da carne – o incesto com lugar de destaque, além da poligamia e dos concubinatos – nudez, preguiça, cobiça, paganismo, canibalismo. (...) Só assim cessaria ‘a boca infernal de comer a tantos cristãos quantos se perdem em barcos e navios por toda a costa’, diria ainda Nóbrega, apontando já o terceiro nível de expressão das considerações européias acerca dos homens americanos: o dos índios como demônios”. (Laura de Melo e Sousa. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e Religiosidade Popular no Brasil Colônia. 4a Reimpressão. São Paulo, Cia. Das Letras, 1994, pp. 56-65). 30 “Essa capitania é tal que se antecipa a sua riqueza e abundância à fama que dela dão os que a viram pelo olho: é de senhorio, porque de presente é capitão e governador dela, por Sua Majestade, Duarte de Albuquerque Coelho; (...) há 62 esta se encontra perpassada por relações familiares: “(...) todos os moradores deste Estado, como nas capitanias onde moram são liados uns com outros por parentesco ou amizade, nunca levam seus preitos tanto ao cabo, que lhes seja necessário concorrerem por fim com a apelação deles à Relação da Bahia; porque, antes disso, se metem amigos e parentes e por meio, que os compõem e concertam; de maneira que põem fim às suas causas, e daqui nascem ir poucas por apelação à Bahia (...)”.31Aqui já estamos no âmbito dos laços criados dentro da colônia. Não somente críticas são apresentadas, mas também sugestões para certos problemas da colônia. Alviano, em diversas ocasiões pergunta a Brandônio como um ou outro problema poderiam ser sanados e Brandônio lhe responde indo ao cerne deste problema.32 A solução que apresenta é a prova cabal do seu conhecimento. Além disso, embora critique o comodismo dos moradores da terra, ele sabe que padecem por grandes opressões. Ele não somente se mostra conhecedor da organização da colônia, como das implicações decorrentes da forma como está organizada e é nesse ponto que suas críticas e soluções mais se fazem presentes33. Todas estas atitudes de Brandônio não demonstram uma simples percepção, mas uma consciência da diferença entre colonos e reinóis. infinitos engenhos de fazer açúcares, muitas lavouras de mantimentos de toda a sorte, criações sem conta de gado vacum, cabras, ovelhas, porcos, muitas aves de bolateria e outras domésticas, diversos gêneros de frutas, tudo em tanta copia que causa maravilha a quem o contempla e com curiosidade o nota. Dentro da vila de Olinda habitam inumeráveis mercadores com suas lojas abertas, colmadas de mercadorias de muito preço, de toda a sorte, em tanta quantidade que semelha uma Lisboa pequena (...) há o [colégio] dos padres da Companhia de Jesus, o dos padres de S. Francisco, da ordem capucha da província de Santo Antonio, o mosteiro dos carmelitas, e o mosteiro de S. Bento com religiosos da mesma ordem; em todos estes mosteiros assistem padres de muita doutrina, letras e virtudes (...).É capaz toda a capitania de Pernambuco de pôr em campo seis mil homens armados com oitocentos de cavalos; porque toda a gente nobre são por extremo bons cavaleiros, e, por se prezarem muita disso, costumam a ter seus cavalos bem ajaezados e paramentados.”. (Diálogos..., p. 31) 31 Op. Cit., p. 35. 32 “ALVIANO: E que meio é esse que poderá Sua Majestade tomar? BRANDONIO: Tirando e extinguindo de toda a casa da Relação da Bahia, podia em seu lugar criar no Estado três corregedores com título de comarca, da maneira que os há no Reino, e com a mesma alçada; e quando se lhe acrescentassem mais alguma quantidade, não o teria por desacertado”. (Idem, p. 35) 33 “BRANDÔNIO: (...) ficando remediadas grandes opressões que os moradores deste Estado de presente padecem.” (Idem, p. 35). Em um outro trecho, Brandão associa a pobreza da população à ganância e negligência de outros. Percebe que existem algumas desigualdades: “A pobreza dos moradores, que habitam no distrito da capitania, sem se ajuntar também a isso pouca indústria, é causa de se não colher de suas minas muito ouro. E os que as poderão lavrar, com levarem à dita capitania fábrica de escravos e mais cousas para o efeito necessárias, o não querem fazer. E por este respeito estão essas minas quase desertas; (...) porque o primeiro que se devia de fazer, antes de se bolir nelas, depois de estarem certos que eram de proveitos, houvera de ser plantarem-se muitos mantimentos ao redor do sítio onde elas estão, e como os houvesse em abundância, tratar-se da lavoura das minas; mas isto se fez pelo contrário, porque, sem terem mantimentos, entenderam em tirar o ouro, e como as minas estão muito pelo sertão, os que vão levam de carreto o mantimento necessário, e como se lhe acaba, tornam-se, e deixam a lavoura, que tinham começada.”(Idem, p. 39) 63 O diálogo seguinte se intitula “sobre o clima e enfermidades do Brasil e dos medicamentos com que se curam”. Discute o bom temperamento da terra e seu maior reflexo: a longevidade.34 Da mesma forma que Frei Vicente, Brandônio também percebe que aqui as coisas se encontram muitas vezes invertidas. Esse é o caso da saúde dos habitantes: “(...) mas no Brasil se acha isto ao revés, porque toda gente de qualquer nação que seja prevalece nele com saúde perfeita, e os que vêm doentes cobram melhoria em breve tempo. E a razão é o serem estas terras do Brasil mais sadias e de melhor temperamento que tôdas as demais”.35 Mas reparemos que não se trata de uma diferença social, mas tão somente biológica ou fisiológica. Estas abundam dentro dos Diálogos, ao passo que em Frei Vicente, elas são minoria. Neste diálogo se encontra um dos principais trechos da obra porque Alviano utiliza o termo “reinol” para definir aquele que desconhece as coisas da terra: “O ser ainda reinol e vindo de pouco a esta terra me faz ignorar em muitas coisas que aos antigos nela são patentes, e por isso não vos maravilheis se vos perguntar algumas já muito notórias (...)”. 36 Ainda neste diálogo, Brandônio mostra ter conhecimento das plantas e suas propriedades curativas37. Mostra-se adepto de tais costumes e confessa ter rompido com antigas práticas curativas, reforçando a consciência de que é parte desse mundo novo: “(...) porque em Portugal a dois outros enfermos, que estavam muitas vezes sangrados, e os físicos determinaram de os consumir ainda com mais sangrias, aconselhei o haverem-se de curar com água morna, porque 34 “Acham-se muitos índios por toda esta costa do Brasil, que têm de idade, mais de cem anos, e eu conheço alguns destes, aos quais lhes não falta dente na boca, e gozam ainda de suas perfeitas forças, com terem três e quatro mulheres, as quais conhecem carnalmente, e me afirmaram não haverem sido em todo o decurso da sua vida doentes; e assim geralmente todo este gentio é muito bem disposto, do que tudo é causa os bons céus e bom temperamento da terra.” (Idem, p. 54). 35 Idem, p. 55. 36 Idem, p. 56. A diferenciação é um vetor de dupla face. Tanto os daqui se diferenciam em relação aos de lá (embora muitas vezes contrariem esse movimento), como os de lá se diferenciam em relação aos daqui - o que fazem propositadamente, (principalmente pela adoção de novos costumes). 37 A discussão sobre o óleo de copaíba desnuda uma percepção de diferença entre colonos e reinóis quanto aos hábitos medicinais e às reações a doenças da terra: “ALVIANO: E os nossos Portugueses que habitam por estas partes usam do próprio remédio desse azeite de copaíba e bálsamo? (...) BRANDONIO: Sim, usam porque têm experimentado ser excelente remédio para feridas; mas nas mais enfermidades guardam na cura delas diferente estilo, porque se curam com médicos, barbeiros e cirurgiões Portugueses (...) Os Portugueses depois que vêm do Reino os costuma apalpar a terra com uma febre e frio de pouca importância, porque com duas ou três sangrias saram delas, e quanto mais se dilatam em serem apalpados do clima, se lhe comunica a mesma febre e frio com mais força, mas de modo que nunca chega a ser doença de consideração. Também os antigos da terra são visitados das mesmas maleitas, terçãs e ainda quartãs (...) mas morre muito pouca gente de semelhante enfermidade, a qual se cura pelos médicos com purgas e sangrias.” (Idem, p. 61) 64 podia bem ser que fossem doentes do bicho, os quais, seguindo meu conselho, cobraram perfeita saúde”.38 O poder curativo provém da própria natureza, que é milagrosa per se.39 O diálogo terceiro trata mais detidamente das riquezas da terra. Divide as riquezas do Brasil em seis: “a primeira a lavoura do açúcar, a segunda a mercancia, a terceira ao pau a que chamam do Brasil, a quarta os algodões e madeiras, a quinta a lavoura de mantimentos, a sexta e última a criação de gados. De todas estas cousas o principal nervo e substância da riqueza da terra é a lavoura dos açúcares.”40 Brandônio e Alviano recaem na discussão sobre o que seria mais valioso: se açúcar, se pedraria. Para Alviano, o açúcar não deve merecer tanta consideração quanto “drogas prestantíssimas, roupas muito finas, ouro, prata, pérolas, diamantes, rubis, e topázios, almíscar, âmbar, sedas, anil e outras mercadorias”41 que a Índia produz. E Brandônio não somente diferencia as riquezas a partir de suas fontes, como diferencia os homens que destas fontes cuidam: “(...) os homens da Índia, quando de lá vêm para o Reino trazem consigo toda quanta fazenda tinham, porque não há nenhum que tenha lá bens de raiz e se os têm são de pouca consideração; e como todo o seu cabedal está empregado em cousas manuais embarcam-nas consigo, e do preço por que as vendem no Reino compram essas rendas e fazem essas casas; mas os moradores do Brasil toda a sua fazenda têm metida em bens de raiz, não é possível serem levados para o Reino, e quando algum para lá vai os deixa na própria terra, e desses deveis de conhecer muitos em Portugal, e assim não lhes é possível deixarem cá tanta fazenda e comprarem lá outra, contentando-se mais de a terem no Brasil pelo grande rendimento que colhem dela. (...) e, se os que vivem no Brasil, fossem mais curiosos, de maiores cousas poderiam lançar mão para se fazerem ricos e Sua Majestade colher mais rendimento dele.42 Brandônio não somente 38 Idem, p. 57. Alviano chama “de oculto segredo” às propriedades miraculosas das plantas (Idem, p. 57). “(...) porquanto na memória dos homens não há lembrança que semelhante enfermidade se achasse nunca nestas partes, antes o seu clima é tanto contra ela, que, vindo muitas pessoas do nosso Portugal no tempo que nele havia febre, iscadas e ainda doentes do mesmo, em passando a linha equinocial para esta parte do Sul, logo convalescessem, e os ruins ares que trazia o navio se desfazem e consomem, e, quando fica algum rasto dele, totalmente se extingue e acaba em o navio tomando terra nesta costa, que não pode ser melhor temperamento da terra”. (Idem, p. 58). 40 Idem, p. 65. 41 Idem, p. 65. Brandônio mergulha nessa discussão, comparando o comércio de açúcar ao das especiarias da Índia: “BRANDONIO: (...) me esforço a provar que, com se não tirar do Brasil senão somente açúcares, é mais rico e dá mais rendimento para a fazenda de Sua Majestade de que são todas essas Índias Orientais. (...) ALVIANO: Estou já bem nessa causa, mas não nessa longa computação que ides fazendo (...) BRANDONIO: Faço-a para provar minha tenção que o Brasil é mais rico e dá mais proveito à fazenda de Sua Majestade, que toda a Índia (...). Pois o Brasil, e não todo ele, senão três capitanias, que são a de Pernambuco, a de Tamaracá e a da Paraíba, que ocupam pouco mais ou menos (...) lavram e tiram os portugueses das entranhas dela, à custa de seu trabalho e indústria, tanto açúcar que basta para carregar, todos os anos, cento e trinta ou cento e quarenta naus (...)”. (Idem, pp. 66/67) 42 Idem, p. 70. 39 65 diferencia os moradores do Brasil em relação aos do reino, mas também em relação a outras colônias. Nesse estágio do capitalismo, o capital mercantil avança em direção ao âmbito da produção. Brandônio já possui uma idéia primeva de que a produção é tão importante quanto a comercialização. Na verdade, a produção para a comercialização. Por isso que, a o contrário de Alviano, valoriza mais o açúcar do que qualquer outra espécie de riqueza. E além do mais, se a pimenta e outras especiarias são importantes, por que não plantá-las no próprio Brasil? Afinal, “(...) toda a terra deste Brasil é tão caroável de dar pimenta que, de por si sem benefício algum, nasce grande quantidade dela pelos campos de diferentes castas”.43 Descreve a seguir a disposição espacial dos engenhos e o processo de fabricação do açúcar. Ao longo de toda a obra são comuns os questionamentos do autor a respeito de algumas contradições presentes na natureza e na sociedade. E isso não é um traço exclusivo de Brandônio, mas uma inquietação de todos os autores que escrevem nesta época. A purgação que branqueia o açúcar é feita pelo barro escuro. 44 A mandioca é nutritiva, mas ao mesmo tempo peçonhenta.45 Essa dubiedade é um traço típico do homem renascentista, tanto de sua própria personalidade, como da forma como vê as coisas. Suas percepções, embora não tenha consciência disso, estão sempre divididas em duas partes em permanente conflito entre si. Brandônio imputa ao Brasil a especificidade de ser “praça do mundo”: “Haveis de saber que o Brasil é praça do mundo, se não fazemos agravo a algum reino ou cidade em lhe darmos tal nome; e juntamente academia pública, onde se aprende com muita facilidade toda a polícia, bom modo de falar, honrados termos de cortesia, saber bem negociar, e outros atributos desta qualidade”.46 Isso gera um certo desentendimento entre Alviano e Brandônio a respeito da estirpe das pessoas que povoaram o Brasil. O movimento de diferenciação se inverte. Alviano procura diferenciar, porque afinal não quer ser igualado à estirpe das pessoas que povoaram a terra: “pois sabemos que o Brasil se povoou primeiramente por degredados e gente de mau viver, e pelo conseguinte pouco política; pois bastava carecerem de nobreza para lhes faltar a polícia.”47 Para 43 Idem, p. 70. “ALVIANO: E como é possível que o barro, que, por razão o devia sujar e fazer preto, o embranqueça, é para mim um segredo dificultoso de entender”. (Idem, p. 75). 45 “Pois também vos direi mais que também a raiz, antes de se lhe fazer o benefício que tenho dito, é veneno e mata a quem a come (...) e, contudo a de outra sorte, posto que é tão peçonhenta, preparada como tenho dito, fica sendo mantimento assás sadio e muito acomodado para a natureza humana, e não se sabe haver nunca feito mal a ninguém por nenhuma via”. (Idem, p. 95). 46 Idem, p. 77. 47 Idem, p. 77. 44 66 contestá-lo, Brandônio imputa um valor diferente àquele que povoa e que é dado pela a riqueza que ele produz com seu trabalho na terra. Ao fazer isso, ele está diferenciando o colono do reinol: “(...) deveis de saber que esses povoadores, que primeiramente vieram a povoar o Brasil, a poucos lanços, pela largueza da terra deram em ser ricos, e com a riqueza foram largando de si a ruim natureza, de que as necessidades e pobrezas que padeciam no Reino os faziam usar. E os filhos dos tais, já entronizados com a mesma riqueza e governo da terra despiram a pele velha, como cobra, usando em tudo de honradíssimos termos, com se ajuntar a isto o haverem vindo depois a este Estado muitos homens nobilíssimos e fidalgos, os quais casaram nele, e se liaram em parentesco com os da terra, em forma que se há feito entre todos uma mistura de sangue assás nobre. E então, como neste Brasil concorrem de todas as partes diversas condições de gente a comerciar, (...) tomam dos estrangeiros tudo o que acham bom, de que fazem excelente conserva para a seu tempo usarem dela (...)em tanto que os filhos de Lisboa e as das mais partes do Reino vêm a aprender a ele os bons termos, com os quais se fazem diferentes na polícia, que dantes lhes faltava”.48 O valor que constitui o homem daqui tem uma outra natureza, que não é o nascimento. A relação entre as riquezas que a terra produz e um novo homem, cujo valor e honra derivam da simbiose que guardam com aquela, é o principal indício da consciência de diferença presente neste diálogo. No quarto diálogo, que trata dos mantimentos, tintas, hortaliças, frutas, lãs e legumes, uma das formas pelas quais a diferenciação se manifesta é a culinária. Embora a forma de preparo dos alimentos continuasse a ser tipicamente portuguesa, vários ingredientes foram substituídos por ingredientes locais. O mais curioso é que os hábitos alimentares se tornam também uma forma de diferenciar o colono do reinol. Diz Alviano que “(...) quando querem vituperar o Brasil, a principal coisa que lhe opõem de mau é dizerem que nele se come farinha de pau”.49 A consciência da diferença vai ainda além neste diálogo. Brandônio já percebe algumas das peculiaridades dos homens desta terra em sua relação com esta em com os outros homens que cá vivem. Sente até mesmo que tais peculiaridades “já se lhe comunica”: “Por não me envergonhar a mim e aos demais moradores deste Estado, desviava-me de mover prática sobre esses mantimentos, os quais não produz a terra, não por culpa sua, senão pela pouca curiosidade e menos indústria dos que a habitam; porque eu semeei já por duas ou três vezes na capitania de 48 49 Idem, p. 78. Idem, p. 94. 67 Pernambuco trigo (...) ALVIANO: Pois, porque não tornaste a secundar com a experiência? (...) BRANDONIO: Porque se me comunica também o mal da negligência dos naturais da terra (...) porque a gente da terra se contenta somente com aquilo que os passados deixaram em uso, sem quererem anadir outras novidades de novo, ainda que entendam claramente que se lhes há de conseguir do uso delas muita utilidade, de maneira que se vem a mostrar nisto serem todos padrastos do Brasil, com lhes ser ele madre, assás benigna”.50 O Diálogo Quinto trata das criaturas conforme o elemento ao qual se associam: o ar, a água e terra51. Uma das características do Renascimento que se manifesta aqui é a atribuição de atitudes e feições humanas aos animais, como é o caso dos bugios. 52 Pássaros têm vozes humanas ou cantos que se assemelham a choros de crianças; alguns, como as emas, têm certas propriedades fabulosas de comerem ferro; outros são tão belos que parecem ter sido pintados a mão; outros, como o gavião, ferozes a ponto de destroçarem um gato. Borboletas, aqui consideradas aves (e por que não seriam se pertencem ao reino do ar?), que voam rumo ao Norte, sem se desviarem um milímetro sequer de suas rotas. Nos domínios do elemento água, muitos casos prodigiosos também são contados, como dos caramopins, “me mostraram claramente haver também amor entre estes mudos nadadores”; 53 a estranheza do peixe-boi; a peçonha dos baiacus, que da mesma forma que a mandioca, são venenosos, mas se bem preparados, de delicioso sabor; os jacarés, que produzem ovos dos quais, ao tempo, saem lagartinhos; as baleias e o âmbar, e as diversas histórias que em torno deste se criaram; mariscos estranhos, a quem acodem o mênstruo, como nas mulheres54. Quanto aos seres que habitam a terra, Brandônio fala tanto dos selvagens como daqueles que já foram domesticados pelo colono. Refere-se à cobra como um ser místico, 50 Idem, p. 99/100. Do fogo não diz tratar porque diz ser estéril: “(...) com discorrer por aquelas coisas que os elementos que rodeiam a terra do Brasil encerram dentro de si, sem tratar do mais alevantado deles, que é o fogo, porque de todo o tenho por estéril, que a salamandra, que se diz criar-se nele, entendo por fabulosa; porque, quando as houvera, nas fornalhas dos engenhos de fazer açúcares do Brasil, que sempre ardem em fogo vivo, se deveram de achar”.(Idem, p. 117). 52 “Antes de descerem das árvores, elegem dentre si três ou quatro espias (...) e os demais bugios, havendo-se com esta prevenção por seguras, descem abaixo a fazer seu furto, levando cada um deles, por uma estranha invenção, a três e quatro espias, e se não forem sentidos, se recolhem com elas; mas, se acaso vem gente, estando ainda ocupados no furto, lhes fazem sinal as espias, com darem certos brados, que como são ouvidos dos demais, se recolhem com presteza no estado em que se acham; e se acaso as espias se descuidaram, e sobreveio gente, sem lhes haverem dado sinal, estando eles ocupados no furto, fazem o melhor que podem; e o primeiro que fazem é arremeterem às sentinelas, e aos bocados as espedaçam, com lhes darem por esta via o castigo do seu descuido”(Idem, pp. 141/ 143) 53 Idem, p. 124. 54 “Diferente da que têm todos os mais, porque se acha nele sangue, na forma que o têm os pescados, sem embargo de estar encerrado na sua concha, coisa de que todo outro semelhante marisco carece, e sobretudo o que mais espanta é que, nas conjunções das luas, lhe acode o mênstruo, como costuma a vir às mulheres”. (Idem, p. 130). 51 68 ligado à capacidade de regeneração e ressurreição55. O real e o maravilhoso se misturam na narrativa que Brandônio tece para Alviano. A consciência da diferença se mostra no fato de que aquele acredita nas coisas fabulosas que conta, embora deixe de acreditar em outras lendas em que antes, como reinol, acreditava. Isso significa que incorporou certas coisas do imaginário popular da colônia. No caso de Alviano, a situação se inverte: duvida de certas coisas que Brandônio narra, em outras acredita com ressalvas, mas tem consciência de que se contar tais histórias em Portugal passará por tolo. O imaginário português não somente se enriquece com as descobertas, como se cinde em dois: um antigo e um novo, que desloca os limites entre o possível e o impossível. O Diálogo Sexto fala dos costumes dos naturais da terra. Nessa categoria se enquadram tanto portugueses, como indígenas. Descreve as formas de organização espacial desenvolvidas pelos primeiros: “(...) têm suas casas de moradas nas vilas e cidades, não fazem residência nelas, porque no campo é a sua ordinária habitação, onde se ocupam em granjear suas fazendas e fazer suas lavouras, com a sua boiada e escravos de Guiné e da terra, que para o efeito têm deputados, porque a maior parte da riqueza dos lavradores desta terra consiste em terem poucos ou muitos escravos”.56 Quanto à forma de locomoção, diz Brandônio a respeito da impossibilidade de se usar dos tradicionais palanquins: “(...) porque a rede é excelente para se andar nela por caminhos e da cadeira seria trabalhoso usar-se, com respeito que sucedem estarem as igrejas desviadas (...)”.57 Fala ainda de alguns dos costumes que os portugueses aqui desenvolveram: “ALVIANO: Tudo isso tenho bem enxergado nas pessoas com quem conversei; demais que os acho a todos muito bem falantes.(...) BRANDONIO: Assim é; porque já vos disse que o Brasil era academia aonde se aprendia o bom falar, e isto baste por agora acerca dos brancos”.58 55 “E destas semelhantes cobras vi uma tão grande que tenho temor de dizer a sua grandeza, temendo de não ser crido, e se afirma também delas uma cousa assás estranha, a qual é que, depois de mortas e comidas dos bichos, tornam a renascer como a Fênix, formando novamente sobre o espinhaço carne e espírito”. (Idem, p. 144) 56 Idem, p. 147. 57 Idem, p. 148. 58 Idem, p. 148. Nas indumentárias, a tradição conspícua permanece. Isso acontece menos porque as classes que para cá se transferem queiram preservar suas raízes do que em razão do desejo das classes que na colônia enriquecem serem reconhecidas como nobres. Existe um rompimento no plano material e social, mas uma continuidade no plano mental: “(...) colmadas de mercadorias de muito preço, como são toda sorte de louçaria, sedas riquíssimas, panos finíssimos, brocados maravilhosos, que tudo se gasta em grande copia na terra, com deixar grande proveito aos mercadores que os vendem”. (Idem, p. 150). O mesmo acontece com algumas ervas medicinais: “Pois aqui nem para isso se aproveitam dele, e menos da virtude de muitas raízes e ervas medicinais e proveitosas, assim para purgas, com cura de chagas, havendo por melhores as que vêm de Portugal já corruptas, porque custam dinheiro”. (Idem, p. 110). 69 Quanto aos indígenas, a consciência da diferença aqui apresenta um outro lado. Brandônio sabe que os colonos não são mais iguais aos portugueses, mas também não se tornaram iguais aos gentios, que ele considera bárbaros: “E por isso se diz geralmente que este gentio do Brasil carece na sua língua, de três letras principais; as quais são F, L, R - em sinal de que não tem fé, lei, nem rei; são todos inclinadíssimos a guerras, e entre si as têm sempre travadas uma nação com a outra; comem carne humana, o que mais fazem por vingança, como adiante direi, que para sustentação”.59 De uma forma geral, no entanto, os portugueses ainda se encontram indecisos entre a natureza inocente e bárbara desse povo.60 Enquanto parte da natureza, o índio simboliza a inocência de uma era dourada que não se vê mais em nenhum lugar do planeta: “(...) em forma que se não enxerga entre eles, rosto nenhum de ambição, (...) ALVIANO: Disso se lhe pode ter grandes invejas, por ser coisa de que a nossa Espanha anda muito desviada.(...) Esse costume me faz grandes invejas, porque se me representa nele a idade dourada”.61 Enquanto parte de uma nova humanidade, ele é gentio ou herege: “Não a têm eles por pequena; e depois do desaventurado morto por esta via, o entregam às velhas, a quem pertence o dividirem-lhe os quartos, e porem-nos a coser e assar, espedaçados para servirem de iguarias aos circunstantes, repartindo-se por todos, que comem aquela humana carne com grande gosto, mais por vingança que por matarem com ela a fome. (...) Por vingança se tela entendido que o fazem. E as tripas e intestinos botam as velhas em uns alguidares e com grandes cantos e bailes andam à roda deles com umas canas nas mãos, nas quais trazem atados alguns anzóis que lançara sobre as tripas, fingindo com grandes risos que estão pescando dentro nelas.”62 Na documentação que antecede os Diálogos, a diferença é constatada, mas não faz parte da consciência como acontece nesta obra. No entanto, há que se caracterizar como a diferença 59 Idem, p. 170. Diz Laura de Melo e Souza a respeito dessa indecisão entre a inocência e a demonização do indígena: “Lembrou Sérgio Buarque de Hollanda que, durante o primeiro século da conquista, os espanhóis que estiveram nas Índias ‘tenderam a ver os índios sob o aspecto, ora de nobles salvajes, ora de perros cochinos’. No Brasil, mostraram os documentos que a segunda vertente levou a melhor, os antigos missionários do Brasil aproximando-se mais de um Sepúlveda do que de um Las Casas”. (Souza, op. Cit, p. 63). 60 61 Diálogos..., Op. Cit, p. 168. Op. Cit, p. 169. Explica Laura como o imaginário europeu lida com esses comportamentos aberrantes do gentio: “Assaltados por ilusões fantásticas, os pobres índios vivem aterrorizados, temendo o escuro e levando consigo um fogo quando saem à noite. As ilusões não podem ser explicadas pelo raciocínio, pois os índios são destituídos da verdadeira razão: explicam-se pela incansável perseguição que move o maligno contra aqueles que não conhecem Deus. Induzidos ao erro pelo Maligno, incapazes de discernimento por serem privados da razão, os indígenas atolamse mais e mais no engano da idolatria: adoram o Diabo através de seus ministros, os pajés, ‘pessoas de má vida, que se dedicaram a servir o diabo para receber seus vizinhos’”. (Souza, op. Cit., p. 70) 62 70 entre colono e reinol aparece para Brandônio. A diferença é mais uma decorrência de os homens viverem em espaços geograficamente diferentes do que do fato de viverem em sociedades diferentes. A diferença entre colono e reinol se deve mais às características da natureza brasílica que foram incorporadas no adventício do que às relações que se estabeleceram entre os homens para que a colônia se fizesse. Não que isso não aconteça nessa obra. Mas aqui, a vivência em sociedade não gera diferenças, mas tão somente as reproduz. Não se sabe exatamente a origem das diferenças que ali existem e a natureza entra como a principal responsável por isso. As menções sobre a relação metrópole e colônia e sobre as relações dos colonos entre si são pontuais e desintegradas. A integração de todos esses planos: entre a natureza e a sociedade colonial, entre esta e a metrópole e entre os elementos que compõem a sociedade colonial é feita de forma mais completa em Frei Vicente do Salvador. Portanto, as consciências de diferença de Brandão e de Frei Vicente pertencem a estágios diferentes. O último já consegue estabelecer algumas relações de ordem sistêmica e isso é demonstrado pela forma como se relaciona com a história. Nos Diálogos, são dois os níveis em que a consciência da diferença se manifesta. O primeiro nível é o explícito. Corresponde às diferenças apontadas por Brandônio ao longo das discussões com Alviano, o qual vai sendo envolvido pela argumentação daquele de tal forma, que no decorrer dos diálogos, ele próprio passa a enumerar as diferenças que sente em relação ao outro enquanto colono, tanto, que usa o termo “reinol” para denotar esse sentimento.63 Ele mesmo admite, ao final, conhecer um mundo muito mais restrito que Brandônio. É esse nível explícito que discutimos no item anterior, ao rastrear as diferenças e a consciência delas ao longo dos Diálogos. O segundo nível é o implícito. Este nível não tem somente a ver com “o que” se fala, mas com “o como” se fala, o que remete à formação, forma de pensar, posição política e social do autor dentro da colônia. Muitas vezes, o autor não tem consciência das diferenças que se processam neste nível, mas estas aparecem ao longo de seu discurso e de seu estilo. Nesse nível das diferenças implícitas, a primeira diferença é quanto à concepção de mundo. Alviano ainda é um “Colombo”.64 Ele não vê a América como um mundo diferente, mas ele a inventa, ele a 63 “O ser ainda reinol e vindo de pouco a esta terra me faz ignorar em muitas coisas que aos antigos nela são patentes, e por isso não vos maravilheis se vos perguntar algumas já muito notórias”. A respeito dos termos que designavam o morador da terra diferenciando-o do adventício, vide anexo. (Diálogos... , p.56) 64 “A descoberta da América talvez tenha sido o feito mais espantoso da história dos homens: abria as portas de um novo tempo, diferente de todos os outros (...). Entretanto, o achado não foi, de imediato, apreendido na sua novidade: nas ilhas caribenhas, Colombo buscava, inquieto, os traços asiáticos que lhe assegurassem ter chegado à terra do 71 encaixa em seu aparato mental prévio. Da mesma forma, ele não acredita que novas coisas possam ser descobertas “(...) porque o mundo é tão velho e os homens tão desejosos de novidades, que tenho para mim que não há nele coisa por descobrir, nem experiência que se haja de fazer de novo que já não fosse feita”.65 As descobertas de uma nova natureza e de uma nova humanidade recriam e ampliam o imaginário europeu. O conflito entre natural e sobrenatural, embora presente em Brandônio, é mais sutil do que em Alviano. A natureza não mais é fonte incontestável de ensinamento moral e manifestação de milagres.66 Certos fenômenos podem ser questionados e sua resposta não mais está no âmbito do sagrado, mas no do racional, que neste momento é representado pela experiência. Esta abre espaço para a especulação, que permite buscar, ou pelo menos sofismar a respeito das causas das coisas. O diálogo que se trava entre os interlocutores desdobra-se em dois tempos, tempo aqui entendido enquanto época, diferentes: um corporificado em Alviano, um homem tipicamente tradicional, e outro em Brandônio, um homem que realmente incorpora o espírito renascentista. Além disso, a concepção do tempo que aparece em um e noutro não é a mesmas. Para o primeiro, o tempo parece compacto e as descobertas se efetuam todas de uma vez. Não há mudança. É o tempo estacionário, típico da mentalidade medieval, improdutivo. Brandônio, ao contrário, tem uma concepção de tempo ativa, em que se insere a mudança, a descoberta e o aperfeiçoamento.67 Grande Cã, chamando os índios aborígenes que encontrava, procurando associar o que via às narrativas de viagem de Montecorvino, Pian del Carpine, Polo (...) Todo um universo imaginário acoplava-se ao fato novo, sendo, simultaneamente fecundado por ele: os olhos europeus procuravam a confirmação do que já sabiam, relutantes ante o reconhecimento do outro. Numa época em que ouvir valia mais do que ver, os olhos enxergavam primeiro o que se ouvira dizer (...).” (Souza, op. Cit., p. 21). 65 Diálogos..., p.12. 66 Uma das formas pelas quais a relação entre natural e sobrenatural passa a se dar nesse contexto é a relação que o homem trava com a natureza por meio de seu trabalho: “Quando essa vossa opinião tivera lugar, parece que se devia também conceder que os homens fossem os criadores desses frutos, a que seria tirar a Deus o haver criado tudo, e pelo mesmo caso blasfêmia; pois sabemos bem que Deus criou esse trigo, linho e legumes pelos campos, e depois a indústria humana os cultivou para se poder melhor aproveitar deles; porque nem pela Escritura dizer que Noé plantou vinha, se deve de cuidar que ele fosse o criador dela, senão que tomou o vidonho, donde estava agreste, criado por Deus nos campos, e o pôs em uso de se cultivar; com o qual levou o fruto mais perfeito. E se o trigo e mais legumes não nascem de per si nos campos, é porque lhe falta a semente; e quando alguma cai, de onde se produz, o gado e as aves a trilham e comem; mas, se fôra semeado em parte onde não pudesse ser destruído das alimárias, ele por si produziria da semente que lhe fosse caindo ao pé, como fazem as demais plantas.” (Op. Cit., p. 13). Aqui, descortina-se claramente um fenômeno que é típico do Renascimento do século XVI. Deus é visto na natureza e não como uma entidade fora dela. Natural e sobrenatural se fundem, mas o natural, agora não mais corresponde a uma natureza bela que deve ser somente admirada, mas a uma natureza que também deve ser transformada pelo homem. 67 O que responde Brandônio a Alviano quando este diz que não há mais coisas a serem descobertas: “Essa opinião é nova, e como tal engano manifesto; porque quem vos amostrara, há hoje trezentos anos, uma cana de que se faz 72 Embora essa ruptura da forma de pensar esteja presente em toda a obra, ela se torna mais clara no diálogo segundo, que trata da polêmica da inabitabilidade das zonas tórridas. Brandônio contesta a teoria clássica e propõe uma nova, baseada em sua própria experiência.68 É essa nova forma de pensar, clara, aberta e a capacidade em admitir o novo, que abre espaço à conscientização. Existe uma relação biunívoca entre consciência e diferença. A percepção desta é o primeiro passo para que se crie uma consciência de que se pertence a uma totalidade diferente. Por outro lado, a consciência de que essa totalidade existe, torna o homem suscetível a novas transformações e portanto, gestação de novas diferenças. A mudança no imaginário é de tal ordem que até mesmo uma mitologia especificamente colonial começa a aparecer. Durante a conquista da terra, os contatos com os gentios modificavam antigas crenças e criavam novas. Novos heróis, novos feitos, novas lendas, novos santos, novos lugares sagrados e relíquias. Tudo conflui para um novo imaginário.69 O segundo traço da consciência implícita de diferenciação é a postura de defesa das qualidades da terra. Na maior parte da documentação anterior aos Diálogos, a postura que se tem ante a terra é, pelo contrário, totalmente hostil. Mas Brandônio tem uma concepção de riqueza diferente da de seus antecessores. Defende a terra por suas potencialidades, embora seus habitantes não estejam muito preocupados com tal potencial. Não estamos dizendo que a defesa açúcar, e vos dissera que daquela cana se havia de formar com a indústria humana, um pão de açúcar tão formoso como hoje o vemos, tê-lo-eis por causa ridiculosa; e por conseguinte, se vos fosse mostrado pedaço de pano velho de linho, e vos afirmassem que daquele pano se havia de fazer o papel, em que escrevemos, quem duvida que o teríeis por zombaria? E da mesma maneira, se vos pusessem diante um pouco de salitre, enxofre e carvão, com vos jurarem que daqueles materiais se havia de compor uma coisa que, chegada ao fogo, derrubasse muros e fortalezas, e matasse homens de muito longe, não me fica dúvida que, quanto mais vô-lo afirmassem, menos o creríeis; porque haveis de saber que os primeiros inventores das coisas as acharam toscamente com um princípio mal limado, e depois os que lhe sucederam as foram apurando, até as porem no estado de perfeição em que hoje as vemos”. (Idem, pp. 12/13) 68 “ALVIANO: Pois em que estava o segredo desses filósofos haverem errado? BRANDONIO: Em nenhuma outra coisa senão que, como lhes faltava a experiência desta zona, ignoraram os ventos frescos que nela de ordinário cursam, exceto em pequeno espaço da costa, e que chamamos de Guiné; os quais são poderosos para resfriarem os ares; de maneira que causam um temperamento tão singular, para a humana natureza, que tenho por sem dúvida, ser esta zona mais sadia e temperada que as mais; porque o calor, que nela causa o sol de dia, é temperado com a umidade da noite; e também porque Saturno e Diana, planetas por qualidade frios, fazem nestas partes mais influência, por se comunicarem nelas por linhas mais retas”. (Idem, p.12/13) 69 Esse processo de formação do imaginário colonial, que já tem seus contornos quase definidos no século XVIII, encontra aqui suas condições de possibilidade: “Aos poucos, talvez com traumatismos, as evidências da novidade cresceriam sobre o acervo milenar do imaginário europeu, destruindo sonhos e fantasias, somando-se a outros elementos desencantadores do mundo: em 1820, Leopardi acusou e lamentou esse movimento. Europeu, como tal se perdia na incapacidade de reconhecimento do outro: o universo novo que se constituiu em torno da imagem americana. Haviam-se passado trezentos anos, tempo suficiente para que as projeções mentais dos europeus quinhentistas se espraiassem pelo continente recém-descoberto, somando-se ao universo imaginário de povos de outras culturas e, finalmente, fundindo-se a eles. Com o processo colonizador, tecer-se-ia um imaginário colonial americano, do qual outros europeus, além de Leopardi, não dariam conta”. (Souza, op. Cit., p. 22). 73 da terra não apareça na documentação anterior. Ela aparece sim em uma ou outra documentação, mas são opiniões isoladas e até mesmo contraditórias: um mesmo autor pode defender e atacar a terra ao mesmo tempo. Somente nos Diálogos é que se tem uma postura totalmente a seu favor. Mas o que isso teria a ver com a consciência da diferença entre colonos e reinóis? A consciência não seria da diferença entre as naturezas? Não, porque ao mesmo tempo em que defende a terra por suas qualidades, o autor condena os habitantes por sua negligência, que é um traço de caráter que os diferencia dos reinóis. São negligentes porque a única coisa que fazem é plantar açúcares. O valor que se imputa à terra está em íntima comunicação com o valor que se imputa aos seus habitantes. Entretanto, Brandão tem uma visão distorcida de como as coisas funcionam exatamente por não conseguir visualizar seu funcionamento dentro de uma ordem sistêmica. Para ele, a negligência dos habitantes e a produção de açúcares são questões de escolha. O desvio de caráter provém da natural abundância da terra que, por produzir tudo com facilidade, torna os homens acomodados e menos engenhosos. Em Frei Vicente, não se trata de uma questão de escolha: é a forma como a colônia está organizada para atender aos interesses metropolitanos que dita o que será produzido e o tipo de relação que o homem tem com a terra e com outros homens. Sabe-se a origem da diferença de caráter e por isso dizemos que a consciência da diferença se torna completa. Falamos tanto em diferenças, que a impressão que se tem é que Brandônio é um homem localizado no extremo oposto de Alviano. Não é bem assim. Na verdade, é como se eles se complementassem, fossem desdobramentos de uma mesma mentalidade em tempos diferentes. Afinal, ambos são saídos de um mesmo mundo, um mesmo contexto, um mesmo espaço e como diria Capistrano de Abreu, “às vezes saem dos lábios de um palavras que melhor condiriam nos do outro”.70 E isso não é válido somente para Alviano, que complementaria Brandônio, mas para este último também, que reforça algumas concepções tradicionais de Alviano. Afinal, ainda não é um homem totalmente liberto delas. A opinião de Brandônio a respeito do nome Brasil, dado “por respeito de um pau chamado desse nome, que dá uma tinta vermelha, estimado por toda a Europa, e que só desta província se leva para lá”,71 é uma das provas de que continua atrelado a certas concepções tradicionais. Apesar de ter uma concepção de riqueza tipicamente comercial, não concorda que o nome da terra deva ter sua origem neste fato. Antes crê que o nome Santa 70 71 Diálogos..., p. 2. Op. Cit., p. 20. 74 Cruz haveria de dar-lhe maior opulência, uma vez que foi primeiramente colocado por seu descobridor Pedro Álvares Cabral.72 Da mesma forma, em muitos dos mitos “luso-brasileiros” que Brandônio narra, ainda persiste o velho. A religião cristã ainda é o que dá coerência aos elementos do imaginário e o que legitima os novos que vão sendo agregados. É a religião que organiza essa mentalidade conflituosa do homem renascentista. A razão aparece somente na forma prática, jamais abstrata. O homem renascentista, como o medievo, é incapaz de abstrair. A única abstração em que acredita, é Deus, e mesmo assim, este se manifesta por meio de elementos bastante concretos. 73 A diferença é que além da religião, a experiência também passa a definir a ordem das coisas. Brandônio descobre que alguns elementos que antes eram fabulosos, realmente existem. A descoberta do Novo Mundo desloca o limite entre o real e o fabuloso. Na verdade, ambos os domínios são inflados: descobre-se uma nova natureza e uma nova humanidade que contêm inúmeros elementos que exponenciam a capacidade imaginativa do homem deste tempo. Abre-se espaço ao conhecimento concreto, ao mesmo tempo em que esse conhecimento quando falha, deixa certos vácuos onde a capacidade imaginativa do homem do Renascimento encontra um campo fértil para criar e recriar. 2.2 Consciência da diferença entre colonos e reinóis na História do Brasil 2.2.1. A Obra e o autor Pouco se sabe sobre Frei Vicente do Salvador. As fontes que dele tratam são: sua própria História do Brasil escrita em 1627, o Novo Orbe Seráfico Brasílico74 e o catálogo genealógico de Jaboatão.75 Este diz que provavelmente nasceu em 29 de janeiro de 1567 na sé da cidade de Salvador. Seu pai, João Rodrigues Palha, era fidalgo vindo com uma expedição para as terras brasílicas organizada pelo amigo Luis de Mello Silva. 72 De três naus e duas caravelas que Idem, p. 19/20 Para os elementos míticos, vide Holanda, op. Cit. e Souza, op. Cit. A manifestação de Deus na natureza é clara na sensitiva, ou pudicícia, de grande admiração entre os cronistas. Tanto aqui, como em Frei Vicente, ela é citada. “há mais uma erva ou planta que chamam viva, a qual, em lhe tocando uma pessoa com a mão, se marcheta e torna seca, e assim persevera por um espaço, até que, pouco a pouco, toma a reverdecer, tanto aborrece ser tocada. E posto que se trabalhado por se saber a teoria da causa disso, não se há podido até agora alcançar (...)”. (Idem, p. 108). 74 Antonio de Santa Maria Jaboatão. Novo Orbe Seráfico Brasílico ou Crônica dos frades menores da Província do Brasil (1761). Rio de Janeiro, Tipografia Brasiliense de Maximiano Gomes Ribeiro, 1858. 75 Impresso pelo Instituto Histórico, Revista Trimestral, 52, 1. Também Frei Venâncio Willeke apresenta a biografia de Frei Vicente do Salvador por meio da história das as gestões individuais da ordem de São Francisco na Bahia . Frei Venâncio Willeke. Livro dos guardiães do convento de São Francisco na Bahia (1587-1862). Rio de Janeiro, 73 75 partiram, só uma se salvou. E em uma destas estava João Rodrigues Palha. O Naufrágio ocorreu no dia 11 de novembro de 1554. Provavelmente foi iniciado nas letras por algum capelão de engenho, continuando os estudos na cidade de Salvador, onde nosso autor tomou um maior contato com a vida urbana na colônia. Foi instruído pelos padres da Companhia de Jesus. Em 1606, após missionar os índios na Paraíba, entrega-se à direção das obras do convento dos capuchos de Santo Antônio no Rio de Janeiro. “Os signatários da doação, datada de 4 de Abril, obrigaram-se a desabafar o mato da várzea, a fazer uma rua até o mar, com largura comum de trinta palmos, e levar á praia uma vala para sangrar a lagoa, de modo a não ser nociva aos religiosos que habitassem sua vizinhança. (...) a 4 de junho de 1608 frei Leonardo de Jesus pôde lançar no fundo dos alicerces a primeira pedra dos corredores do atual convento de Santo Antonio”.76 Parte para Olinda em 1609, por ocasião da vinda do governador D. Francisco de Sousa. Aí leciona até 1612, quando parte para o convento da Bahia, onde exerce a função de guardião do convento e depois de custódio (15 de fevereiro de 1614). Torna ao Reino onde se dedica à publicação de sua Crônica da Custódia do Brasil, em que fala sobre as missões indígenas confiadas aos capuchinhos e de outros assuntos mais gerais sobre a colônia. Alguns historiadores afirmam que na História encontra-se parte da Custódia, mas Capistrano de Abreu diz que foram escritas com objetivos diferentes. Já para Varnhagen, Frei Vicente teria aproveitado parte da Custódia para escrever a História, trabalho esse que foi todo feito em Portugal. 77 De retorno à Évora, conhece o chantre Manuel Severim de Faria. Muito do estilo do nosso autor foi influenciado por Severim de Faria, esse erudito com quem Frei Vicente trava conhecimento em Évora. É inclusive Severim de Faria que incita o frei à história. E para isso põe à disposição deste sua seleta biblioteca. Frei Vicente do Salvador voltou ainda uma vez ao Brasil, onde ficou pouco tempo. Ao retornar a Portugal, seu navio foi aprisionado pelos holandeses, de quem ficou refém até 1627. Após a Reconquista da Bahia, termina de escrever sua História em 27 de dezembro de 1627, dedicando-a a Severim de Faria. Instituto Pastrim de História Nacional, 1978. Tem-se também um artigo saído na RIHGB: “Frei Vicente do Salvador: Pai da História do Brasil”, RIHGB, v. 227 (1967), p. 99. 76 Capistrano de Abreu, op. Cit, p. XIII. 77 “Considerar a Crônica da Custodia primeira parte deste Historia, como fez Varnhagen, é esquecer o tamanho das duas, as datas das respectivas publicações, o intuito bem definido de cada uma”. (Idem, ibidem, p. XIV). 76 Em 1630 é eleito pela terceira vez guardião de sua ordem na Bahia e desta vez, diferentemente das outras, tomou posse. Deve ter falecido entre 1636 e 1639. 2.2.2 Natureza da “colonização” em Frei Vicente do Salvador Conforme já vínhamos discutindo, a consciência da diferença se completa em Frei Vicente do Salvador porque ele não somente a constata, como sabe conhece sua natureza. Percebe que a sociedade colonial tem uma organização específica, completamente diferente da sociedade metropolitana e as diferenças entre colonos e reinóis advêm dessa forma específica de organização. Isso está claro no trecho em que fala da inversão das esferas pública e privada na sociedade colonial: “Era grande canonista, homem de bom entendimento e prudência e assim ia muito rico. Notava as cousas e via que mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe para comer e nada lhe traziam, porque não se achava na praça nem no açougue e, se mandava pedir as ditas cousas e outras mais às casas particulares, lhas mandavam. Então disse o bispo: verdadeiramente que nesta terra andam as cousas trocadas, porque toda ela não é republica, sendo-o cada casa.” 78 Não somente percebe as relações endógenas à sociedade colonial, como também a relação de complementaridade entre colônia e metrópole. A gênese da colônia reside no fato de que ela deve atender a interesses específicos da metrópole e por isso jamais poderá se tornar sua réplica, ou seja, uma Nova Lusitânia. Daí o fato de as coisas se encontrarem invertidas. Ao perceber que a colônia nasce a partir de certos interesses metropolitanos específicos, em especial o de acumulação de riqueza nos cofres reais, e que isso determina inclusive a forma como as instâncias se relacionam dentro da colônia, Frei Vicente alcança um nível de consciência superior ao de Brandão. As diferenças entre colonos e reinóis não advêm somente da forma como os primeiros se relacionam com a natureza, a qual lhe transfere seus atributos, mas principalmente da forma como se relacionam entre si para atender aos desígnios da metrópole. Ao discutir a mudança de nome de Santa Cruz para Brasil, Frei Vicente faz um ataque sarcástico a tais interesses: “Porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens, receando perder o muito que tinha em os desta terra, trabalhou que se 78 Frei Vicente do Salvador. História do Brasil (1627). 3a edição, revista por Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. Cia. Melhoramentos de São Paulo, São Paulo/Caieiras/Rio de Janeiro, 1931, p. 17. 77 esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado de cor abrasada e vermelha com que tingem panos, que o daquele divino pau, que deu tinta e virtude a todos os sacramentos da Igreja, e sobre que ela foi edificada e ficou tão firme e bem fundada como sabemos”. 79 A revolta de Frei Vicente reside no fato do interesse mercantil estar sobrepujando o da Igreja. Como vimos nos trechos precedentes, o litígio entre secular e religioso parece ser uma característica comum do período. A religião vai sendo subjugada pelo secular em três frentes: no plano mental, o pensamento escolástico vai cedendo lugar a uma forma pré-moderna de pensar; no plano político e institucional, os Estados absolutistas em formação subordinam a Igreja como forma de reafirmar o seu poder; no plano material, o capitalismo mercantil vai criando novos valores que entram em choque com valores tradicionais. É na colônia que muitos desses conflitos, que se encontram encobertos na metrópole, chegam a se externar o que torna mais fácil sua visualização. Até mesmo os padres designados para propagar a fé nestas terras cedem aos imperativos da ganância: “E assim iam em barcos por esses rios e os traziam carregados deles [de índios] a vender por dois cruzados, ou mil reis cada um, que é o preço de um carneiro. Isto não faziam os que temiam a Deus, senão os que faziam mais conta dos interesses desta vida que da que haviam de dar a Deus. E principalmente veio um clérigo a esta capitania, a que vulgarmente chamavam o Padre do Ouro, por ele se jactar de grande mineiro e por esta arte era mui estimado de Duarte de Albuquerque Coelho e o mandou ao sertão com trinta homens brancos e duzentos índios, que não quis ele mais. Nem lhe eram necessários porque, em chegando a qualquer aldeia do gentio, por grande que fosse, forte e bem povoada, depenava um frangão, ou desfolhava um ramo, e quantas penas ou folhas lançava pêra o ar tantos demônios negros vinham do inferno lançando labaredas pela boca, com cuja vista somente ficavam os pobre gentios, machos e fêmeas, tremendo de pés e mãos e se acolhiam aos brancos que o padre levava consigo, os quais não faziam mais que amarrá-los e levá-los aos barcos e aqueles idos, outros vindos, sem Duarte de Albuquerque, por mais repreendido que foi de seu tio e de seu irmão, Jorge de Albuquerque, do reino, querer nunca atalhar com tão grande tirania, não sei si pelo que interessava nas peças que se vendiam, si porque o padre mágico o tinha enfeitiçado”.80 79 80 Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. 15. Idem, ibidem, p. 204. 78 Um dos primeiros trechos em que Frei Vicente exprime sua consciência da diferença entre colonos e reinóis é aquele em que chama pejorativamente os povoadores de caranguejos.81 Quando aqui se instalam, os portugueses parecem perder certas qualidades de conquistadores, tão aclamadas por Camões nos Lusíadas.82 Esse comodismo é uma característica geral que atinge também os governantes da terra: “Mas o que fez mal a estes senhores, depois das guerras, foi não seguirem o descobrimento das minas de ouro e prata, como determinavam. E parece que herdavam deles esses descuidos seus sucessores”. 83 Algumas das características gerais são muitas vezes ilustradas por Frei Vicente por meio de casos particulares. Ao descrever Tomé de Sousa, Frei Vicente o faz considerando-o uma exceção à negligência, um traço da personalidade do colono: “Onde ouvi dizer a homens do seu tempo (que ainda alcancei alguns) que ele era o primeiro que lançava mão do pilão para os taipais e ajudava a levar a seus ombros os caibros e madeira pêra as casas, mostrando-se a todos companheiro afável (parte mui necessária nos que governam novas povoações)”.84 Tomé de Sousa é uma figura extremamente importante na percepção da diferença.85 Para descrever a ruptura de caráter que se dá entre reinóis e colonos, o governador utiliza uma metáfora camoniana, que utilizamos como epígrafe deste capítulo: “Era Thomé de Sousa homem muito avisado e prudente e muito experimentado, nas guerras da África e da Índia, onde estivera, tinha mostrado valoroso cavaleiro; mas estava isto cá tão em agro e enfadava-se de labutar com degradados, vendo que não eram como o pêssego, ‘o pomo que da pátria persa veio, melhor 81 “Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve quem a andasse por negligência dos portugueses, que, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentamse de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos”. (Idem, ibidem, p. 19) 82 “Ouvido tinha os fados que viria uma gente fortíssima de Espanha Pelo mar alto, a qual a sujeitaria Da Índia tudo quanto Dóris banha, E com novas vitórias venceria A fama antiga, ou sua ou fosse estranha. Altamente lhe dói perder a glória De que Nisa celebra inda a memória”. (Luís Vaz de Camões. Os Lusíadas. Comentário de Francisco Silveira Bueno. São Paulo, Saraiva, 1960, canto III, estrofe 57) 83 Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. 96. Já diria Anchieta em 1586: “Os estudantes nesta terra, além de serem poucos também sabem pouco, por falta dos engenhos e não estudarem com cuidado, nem a terá o dá de si, por ser relaxada, remissa e melancólica, e tudo se leva em festa, cantar e folgar”. (Capistrano de Abreu, op. Cit., p. XI) 84 Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. 151. 85 Também outras figuras como Mem de Sá, João Ramalho, Jerônimo de Albuquerque e Duarte Coelho são citadas. Meio homens, meio deuses, contribuem, juntamente com outros mitos, para a formação de uma “cosmogonia” colonial. 79 tornado no terreno alheio’”. 86 É também sua a fala da epígrafe inicial em que se mostra o forte apego à terra e o receio em se sentir deslocado na própria terra natal justamente por já se sentir diferente. O mesmo sentimento que Tomé de Sousa tem em relação à terra o demonstra D. Francisco de Sousa, governador do Brasil em 1591: “(...) chegou uma caravela de Lisboa que trouxe cartas ao governador da morte de sua mulher, com o que ele se resolveu em não tornar ao reino, mas ficar cá até á morte e assim o publicava. Nem o dizia ociosamente, senão, que, como era prudente e por isso chamado já de muito tempo D. Francisco de Manhas, entendeu que era boa esta para cariciar as vontades dos cidadãos e naturais da terra, fazer-se cidadão e natural com eles”.87 O tema da abundância também é uma constante em Frei Vicente. Mas sofre algumas nuanças quando comparado a Ambrósio Fernandes Brandão. Em Frei Vicente, a admiração pela terra parece não ser um sentimento exclusivo do autor, mas de todos que aqui moram: “Quis um pintar uma cidade mui abastecida e abastada e pintou-a com as portas cerradas e ferrolhadas, significando que tudo tinha em si, e não era necessário vir-lhe alguma de fora (...) Mas não faltou quem contrafizesse e pintasse outra com as portas abertas, e por elas entrando carretas carregadas de mantimentos, dizendo que aquela era mais abastecida e abastada (...) Conforme a isto digna é de todos os louvores a terra do Brasil, pois primeiramente pode sustentar-se com seus portos fechados, sem socorro de outras terras.” 88 Na direção oposta à da abundância, a falta de condições da terra faz com que surja um outro comportamento específico de seus moradores: o improviso. Foi o que sucedeu ao governador Martim de Sá no dia do outeiro: “E porque haviam ido na armada mercadores, que entre outras mercadorias levaram algumas pipas de vinho, mandou-lhes o governador que o vendessem atavernado e, pedindo eles, que lhes pusesse a canada por um preço excessivo, tirou ele o capacete da cabeça com cólera e disse que sim, mas que aquele havia de ser o quartilho. E assim foi e é, ainda hoje, por onde se afilam as medidas, donde vem serem tão grandes que a maior peroleira não leva mais que cinco quartilhos.”89 Essa mesma característica do improviso aparece de uma forma mais consistente no trecho a seguir, em que não somente se trata de um feito individual, mas de uma característica geral da terra: “(...) porque no Brasil tudo se compra 86 Idem, ibidem, p. 156. Idem, ibidem, p. 348. 88 Idem, ibidem, p. 50. 89 Idem, ibidem, p. 193. 87 80 fiado, e estes nestas cousas querem superabundâncias, a que os mercadores já não acudiam e era necessário fazê-los ele prover, e aviar uns e outros era infinito”.90 Aqui também se encontra uma inversão de costumes em correspondência àquela da inversão entre a esferas pública e a privada. O improviso é algo que passa a se tornar, com o tempo, um rótulo do colono, e sempre vem associado a um outro traço que o diferencia do reinol: a malícia: “(...) dizendo-lhes mais que o general era homem do reino, fora de malicias e enganos que com eles usavam os do Brasil, e estava muito bem informado de sua amizade antiga com os brancos, pelos quais sabia que quebrara a paz, e que, si os capitães Ataíde e Caldas foram vivos, os mandara el-rei castigar”.91 Uma outra diferença com relação a Brandônio é quanto à postura perante alguns valores tradicionais, como a honra, por exemplo. Nos Diálogos a “honra” aparece relacionada ao trabalho na terra e é tão valiosa quanto àquelas obtidas pelos meios tradicionais. Em Frei Vicente, esses meios tradicionais são esvaziados por completo. Esse conflito entre a cultura metropolitana tradicional e a cultura emergente na colônia fica claro no atrito entre o português doutor Antônio de Salema, designado para governar as capitanias do sul, por volta de 1575, e o mameluco Martim Afonso de Sousa: “E foi bem recebido no Rio de Janeiro (...) o primeiro e principalíssimo Martim Afonso de Sousa, Araribóia, (...). Ao qual, como o governador desse cadeira e ele, em assentando, cavalgasse uma perna sobre a outra segundo o seu costume, mandou-lhe dizer o governador pelo intérprete que ali tinha que não era aquela boa cortesia quando falava com um governador, que representava a pessoa de el-rei. (...) Respondeu o índio de repente, não sem cólera e arrogância, dizendolhe: ‘si tu souberas quão cansadas eu tenho as pernas das guerras em que servi el-rei, não estranharas dar-lhe agora este pequeno descanso; mas, já que me achas pouco cortesão, eu me vou pêra minha aldeia, onde nós não curamos destes pontos e não tornarei mais á tua côrte’. Porém, nunca deixou de se achar com os seus em todas as ocasiões que o ocupou”. 92 A passagem em que Frei Vicente discute a confusão criada em torno do testamento de Mem de Sá93 toca num ponto importante que é o do conflito entre as instituições políticas e a Igreja na colônia: “Porém, depois que tiveram experiência no julgar, e expediência nos negócios que dantes um só não podia ter, não sei eu quem pudesse queixar-se com razão, senão o juízo 90 Idem, ibidem, p. 287. Idem, ibidem, p. 292. 92 Idem, ibidem, p. 229. 93 Idem, ibidem, p. 208. 91 81 eclesiástico, porque eram nesta materia demasiadamente nímios e, à conta de defenderem a jurisdição de el-rei, totalmente extinguiam a da Igreja, o que Deus não quer, nem o próprio rei, antes el-rei D. Sebastião, que Deus tenha no céu, mandou que em todo o seu reino se guardasse o concílio tridentino, o qual manda aos bispos que na execução de suas sentenças contra clérigos e leigos não usem facilmente de excomunhões, senão que primeiro prendam e procedam por outras penas, pelos seus ministros ou por outros”.94 Para finalizar, é importante que coloquemos como Frei Vicente vê a relação que existe entre as classes dominantes de ambos os lados. Isso porque a diferenciação geral que se dá entre colono e reinol é reforçada pelos conflitos que se estabelecem entre tais classes dominantes. Na metrópole, a classe dominante está dividida entre a nobreza tradicional e a burguesia mercantil. Na colônia, ela é representada pelos senhores de engenho. Há uma dinâmica de diferenciação entre essas três classes. A nobreza tenta se diferenciar da burguesia, que compra títulos nobiliárquicos como forma de obtenção de status, mas que por outro lado quer se diferenciar ao máximo do senhor de engenho, que por sua vez também quer adquirir valores nobiliárquicos.95 Embora as mentalidades convirjam para uma só, a do nobre, este nada representa do ponto de vista das transformações que vêm acontecendo, inclusive as mentais. Tornou-se uma classe simplesmente decorativa e os valores que preconizam têm seu tempo contado. O que importa para nós realmente é a relação entre as duas últimas classes: a burguesia mercantil metropolitana e os senhores de engenho. Trata-se de uma relação contraditória: ora de convergência, ora de divergência. A acumulação de capital é um desses interesses convergentes: “(...) nem depois da morte de el-rei D João Terceiro, que o mandou povoar e soube estimá-lo, houve outro que dele curasse, senão para colher as suas rendas e direitos. E deste mesmo modo se hão os povoadores, os quais, por mais 94 Idem, ibidem, p. 416/417.Veja como o trecho a seguir complementa a percepção da inversão entre os domínios público e privado. “Uma cousa vi nesta materia com a qual concluirei o capitulo (...), e foi que tendo o dito bispo declarado por excomungado nominatim a um homem, agravou para a relação, e saiu que era agravado e não se obedecesse á excomunhão menor, que se incorre por tratar com os tais, e como fugiam por não se encontrar e falar com ele, mandou-se lançar bando que sob pena de vinte mil cruzados todos lhe falassem, cousa que antes da excomunhão não faziam senão os que queriam, porque era um homem particular.” (Idem, ibidem, p. 417) . O que ele viria aqui a dizer com a expressão “homem particular”? Ainda, sobre o mesmo tema, o conflito de interesses entre a esfera secular e a religiosa, vide páginas 506/507. 95 Como o desejo de atingir determinado “status” se mostra pela Indumentária: “E o governador se foi de São Vicente á vila de São Paulo, que é mais chegada ás minas, até então os homens e mulheres se vestiam de pano de algodão tinto e, si havia alguma capa de baeta e manto de sarja, se emprestava aos noivos, e as noivas pêra irem á porta da Igreja; porém, depois que chegou D. Francisco de Sousa e viram suas galas e de seus criados e criadas, houve logo tantas librés, tantos periquitos e mantos de soprilhos que já parecia outra cousa.” (Idem, ibidem, p. 382) 82 arraigados que na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal e, si as fazendas e bens que possuem souberam falar, também lhe houveram de ensinar a dizer como os papagaios, ao quais a primeira cousa que ensinam é: papagaio real pêra Portugal, porque tudo querem para lá. E isto não têm só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída.”96 No momento em que alguns passam a divergir dessa mentalidade puramente exploratória e até mesmo a criar certa afeição em relação à terra, como foi o caso de Tomé de Souza e D. Francisco de Souza, começa a surgir a diferenciação entre o colono e o reinol e o morador da terra já começa a ser identificado como colono e não mais como colonizador. A posição do governador Manuel Telles Barreto já é um indício dessa mudança: “Foi este governador mui amigo e favorável aos moradores e o que mais esperas lhe concedeu para que os mercadores os não executassem nas fabricas de suas fazendas e, quando se lhe iam queixar disso, os despedia asperamente, dizendo que eles vinham destruir a terra, levando dela em três ou quatro anos que cá estavam quanto podiam e os moradores eram os que a conservavam e acrescentavam com seu trabalho e haviam conquistado á custa do seu sangue”. 97 Ao contrapor as diferentes posturas que morador e mercador têm ante a terra, o autor está implicitamente contrapondo colono a reinol e diferenciando-os. Morador é aquele que não somente reside na terra, ou seja, na colônia, como a cultiva. O mercador, que é aquele que vem do reino, simplesmente se preocupa em desbastá-la. O fato de haver uma sociedade já minimamente consolidada, conforme se conclui do trecho anterior, muda radicalmente as coisas. Em Brandônio, a defesa da terra era uma defesa contra a exploração indiscriminada de seus recursos. Reclamava-se a falta de moradores porque ninguém queria vir para ficar permanentemente. Em Frei Vicente, a defesa da terra é a defesa de algo construído pelo homem contra aqueles que vêm para destruir essa organização. Não se trata mais somente da defesa dos recursos naturais. O que diferencia um do outro não é como vêem a 96 Idem, ibidem, p.15. “E assim é que, estando as casas dos ricos (ainda que seja á custa alheia, pois muitos devem quanto têm) providas de todo o necessário, porque têm escravos, pescadores e caçadores que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de vinho e azeite que compram por junto, nas vilas muitas vezes se não acha isto de venda. Pois o que é fontes, pontes, caminhos e outras coisas públicas é uma piedade, porque, atendo-se uns aos outros, nenhum as faz, ainda que bebam água suja e se molhem ao passar os rios ou se orvalhem pelos caminhos, e tudo isto vem de não tratarem do que há de ficar, senão do que hão de levar para o reino. (...) Estas são as razões por que alguns com muita dizem que não permanece o Brasil nem vai em crescimento; e a estas se pode ajuntar a que atráz tocamos de lhe haverem chamado estado do Brasil, tirando-lhe o de Santa Cruz, com que pudera ser estado e ter estabilidade e firmeza”. (Idem, ibidem, p. 17). 97 Idem, ibidem, p. 329. 83 ligação entre o homem e a terra, e sim, a ligação que o homem guarda com seus semelhantes em busca de um objetivo comum: dar continuidade ao projeto de construção de uma sociedade nova nesta terra. 84 Capítulo 3: Novos diálogos “Esta terra é a nossa empresa”. (Padre Manoel da Nóbrega) Neste capítulo retomaremos algumas considerações importantes dos discursos estudados remetendo-as ao conceito de Antigo Sistema Colonial. Na primeira parte deste capítulo faremos um estudo mais colado aos documentos, relacionando suas percepções com alguns dos principais acontecimentos que a formação do Antigo Sistema Colonial envolveu. Na segunda parte, trataremos desses acontecimentos em nível mais amplo: o das esferas a que pertencem e cujo movimento compõe a dinâmica do Antigo Sistema Colonial, e como isso se relaciona com a consciência da diferença presente nos Diálogos. Finalmente, na terceira parte, tentaremos dialogar com outras questões. O título do capítulo, “Novos Diálogos”, refere-se ao conjunto de reflexões de que tratamos neste capítulo: às relações travadas entre a “arqueologia”, os Diálogos e Frei Vicente do Salvador; às relações entre as percepções dos documentos e os principais acontecimentos do período, que determinam a estrutura e a dinâmica do Antigo Sistema Colonial1 e, por fim, como o movimento das esferas que o compõem se relaciona com a tomada de consciência da diferença. 3.1 Diálogos entre Caminha e Frei Vicente do Salvador Antes de nos fixarmos nas considerações sobre os documentos, tratemos de um fato que pré-existe o problema: a União das Coroas Ibéricas, que abarca o período estudado, teria 1 “Temos assim os dois elementos essenciais à compreensão do modo de organização e dos mecanismos de funcionamento do antigo Sistema Colonial: como instrução de expansão da economia mercantil européia, em face das condições desta nos fins da Idade Média e início da Época Moderna, toda atividade econômica colonial se orientará segundo os interesses da burguesia comercial da Europa; como resultado do esforço econômico coordenado pelos novos Estados modernos, as colônias se constituem em instrumento de poder das respectivas metrópoles (...) Para se completar o quadro, falta, porém um elemento, e essencial (...): a política econômica mercantilista. Efetivamente, a expansão da economia de mercado para assumir o domínio da vida econômica européia, esbarrava em uma série de óbices institucionais legados pelo feudalismo; ao mesmo tempo, como vimos, o grau de desenvolvimento espontâneo da economia mercantil não a tinha capacitado para ultrapassar os limites geográficos em que até então se vinculava o comércio europeu (...) A política do mercantilismo ataca simultaneamente todas as frentes, preconizando a abolição das aduanas internas, tributação em escala nacional, unidade de pesos e medidas, política tarifária protecionista, balança comercial favorável com conseqüente ingresso do bulhão, colônias para complementar a economia metropolitana”. (Fernando Antônio Novais. “O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial”. Capítulo 2 de Brasil em perspectiva. Prefácio de João Cruz Costa; organização de Carlos Guilherme Mota. 20a edição. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995, p. 50) 85 influenciado o aparecimento da diferenciação? Em primeiro lugar, devemos ressaltar que o conceito que temos hoje de nacionalidade, e que implicaria nesta “rivalidade” como possível motor da diferenciação e de sua conscientização, não existia ainda nesta época, pois surge somente no século XIX com a finalização do processo de formação dos Estados Modernos, agora não mais absolutistas, mas liberais. Essa nacionalidade do século XIX implica em uma identidade abstrata, assim como o Estado, cujo elemento-base é o cidadão. O sentimento da nacionalidade está essencialmente ligado a esse Estado abstrato e ao território nacional, e não ao chefe de Estado. Não estamos com isso querendo dizer que no século XVI não havia nacionalidade. Havia, mas ela não era o princípio unificador do Estado e da nação. O princípio unificador é o rei e a nacionalidade é tão somente um instrumento para legitimar a unificação e a centralização. A nacionalidade aparece mais como um produto do próprio Estado centralizado do que como seu princípio. A identidade entre aqueles que compõe o Estado são feitas por intermédio deste, pelas relações de soberania, não mais pela suserania e não ainda pela cidadania. Este Estado se resume à figura divinizada do rei e a identidade está ligada à lealdade que se presta a esse rei. O Estado Absolutista é um estado de equilíbrio entre as classes. Ora, o monarca concede privilégios a tais classes, ora os retira e é essa política que mantém as classes sob seu controle. A crise do Estado Absolutista entre 1777 e 1808 está ligada ao rompimento desse equilíbrio em razão do fortalecimento da classe burguesa e da Revolução Industrial. O capitalismo mercantil, um dos elementos que alimentava permanentemente o poder do Estado cedeu lugar ao capitalismo industrial e o Estado deixou de ser Absolutista para ser burguês. 2 Portanto, se a identidade está ligada ao rei, e não ao povo, a União das Coroas Ibéricas não influencia a diferenciação entre colonos e reinóis. O Estado passa a ser visto da mesma forma, porém incorporado em um Habsburgo e não mais em um Avis. Os súditos somente devem fidelidade a um outro soberano. E isso é visto largamente na documentação estudada. Todos os cronistas falam em “nossa Espanha”, e em nenhum documento, menciona-se Portugal em separado da Espanha. O que continua a existir é a rivalidade da Espanha em relação aos demais Estados em formação: a Holanda, principalmente. A formação dos Estados uns contra os outros é conseqüência da associação entre centralização de poder, conquista de territórios e acumulação 2 “(...) o Estado centralizado, capaz de mobilizar recursos em escala nacional, tornou-se um pré-requisito à expansão ultramarina; por outro lado, desencadeados os mecanismos de exploração comercial e colonial do ultramar, fortalecese reversivamente o Estado colonizador. Em outras palavras, a expansão marítima, comercial e colonial, postulando 86 de riquezas. A rivalidade não emana dos súditos, mas do próprio Estado corporificado na figura do rei.3 Tendo explicado que a consciência da diferença não proviria da União das Coroas Ibéricas, de onde ela proviria? Isso talvez seja uma pergunta que pertença ao domínio da ciência e não ao da História. Nosso objeto de estudo é a tomada de consciência da diferenciação e sua “arqueologia” e não a busca de uma causa única para que essa conscientização aconteça. Não há uma causa. Há, sim, instâncias que se movem e produzem a consciência da diferença mais como parte orgânica do movimento do próprio sistema colonial do que como um resultado imediato e isolado de suas partes. É a própria situação em que o Sistema Colonial se encontra nesse momento e o grau de maturidade da sociedade colonial que permite que a consciência da diferença apareça. Ela é algo intrínseco ao Sistema. Ao compararmos a precocidade da tomada de consciência na América espanhola com a tomada de consciência mais tardia na América portuguesa – o que faremos na conclusão desse trabalho - poderemos entender melhor que a tomada de consciência é um fenômeno social que não pode ser estudado isoladamente nem da sociedade em que se encontra, nem do Sistema que produziu tal sociedade. Cabe ainda um último adendo antes que comecemos a fazer as relações entre os Diálogos e sua “arqueologia”. Deixemos bem claro que estamos trabalhando com a consciência da diferenciação e não da diversidade. Também não estamos trabalhando com uma percepção, mas com uma conscientização, que está um passo adiante: não significa somente a aquisição de um conhecimento por meio dos sentidos, do ouvir, do ver, do tocar. No caso simplesmente da percepção, a diferença pode existir, mas continuar no nível do subconsciente; realidade existente, porém insignificante para o observador. A consciência vai além porque incorpora esse conhecimento como um valor desse observador. No caso diversidade/diferença, a primeira indica nuanças dentro de uma mesma unidade. Já a segunda implica em unidades diferentes. Os Diálogos, ao diferenciar o português entre colono e reinol, demonstra a consciência da cisão de uma unidade se partiu. Não há mais tão somente colonizadores. A passagem de uma sociedade móvel para uma estável implica no aparecimento de uma nova dicotomia: o colono e o reinol. um certo grau de centralização do poder para tornar-se realizável, constitui-se, por seu turno, em fator essencial do poder do Estado metropolitano”. (Novais, op. Cit., p. 49). 3 “Na medida em que os velhos reinos medievais se organizam em Estados, de tipo moderno, unificados e centralizados, vão, uns após outros abrindo caminho no ultramar e participando da exploração colonial: Portugal, Espanha, Países Baixos, França, Inglaterra, do século XV ao XVII, realizam, sucessivamente a transição para a forma moderna de Estado, e se lançam à elaboração de seus respectivos impérios coloniais”. (Idem, ibidem, p. 50). 87 Essa dicotomia está fundamentada na habitação de espaços diferentes e tudo o que isso implica, inclusive os valores que surgem na sociedade colonial nascente. Respondidas essas questões preliminares, passemos agora ao estudo das considerações “arqueológicas” a respeito da consciência da diferença presente nos Diálogos. A primeira percepção que é comum entre a “arqueologia” e os Diálogos é sobre as disputas entre o poder temporal e o poder religioso na colônia, que se tornam ainda mais contundentes em Frei Vicente do Salvador. O que há de comum é o enlevo do poder local em relação ao estatal. Isso chega ao máximo na percepção de Frei Vicente do Salvador de que “toda casa é uma república”.4 A corrupção, tanto no secular como no religioso, é exacerbada pelas condições de vida na colônia, na visão dos escritores. As relações familiares, que contaminam todas as outras ordens de relações que se estabelecem entre os homens, são um forte indício disso: “(...) os moradores deste Estado, como nas capitanias onde moram são liados uns com outros por parentesco ou amizade, nunca levam seus preitos tanto ao cabo, que lhes seja necessário concorrerem por fim com a apelação deles à Relação da Bahia; porque, antes disso, se metem amigos e parentes e por meio, que os compõem e concertam; de maneira que põem fim às suas causas, e daqui nascem ir poucas por apelação à Bahia (...)”.5 Entretanto, nos Diálogos não aparece aquele exagero dos primeiros jesuítas que pareciam apontar isso como algo exclusivo da colônia, tendência da qual a metrópole escapava incólume. No que se refere à temática dos potenciais da terra, os Diálogos já não fazem somente propaganda da fertilidade, como seus antecessores, mas já divulga um modo de vida diferente e melhor que o da metrópole. O tema da fertilidade vai aos poucos cedendo lugar ao da produtividade, à medida que a base material começa a definir seus contornos. O objetivo da propaganda passa mais efetivamente a ser o de arregimentar moradores efetivos para terra, colonos. A diferenciação entre o colonizador e colono já aparece em Duarte Coelho na forma da oposição entre moradores/povoadores e salteadores. A conotação é a mesma à que aparece nos Diálogos, quando Brandão se refere aos primeiros povoadores: “Nesse nosso Brasil os seus 4 “Notava as cousas e via que mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe para comer e nada lhe traziam, porque não se achava na praça nem no açougue e, si mandava pedir as ditas cousas e outras mais às casas particulares, lhas mandavam. Então disse o bispo: verdadeiramente que nesta terra andam as cousas trocadas, porque toda ela não é republica, sendo-o cada casa”. (Frei Vicente do Salvador, História do Brasil (1627). 3a edição, revista por Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. Cia. Melhoramentos de São Paulo, São Paulo/Caieiras/Rio de Janeiro, 1931, p. 17) 5 Diálogos das Grandezas do Brasil (1618). Introdução de Capistrano de Abreu e notas de Rodolfo Garcia. Rio de janeiro, Academia Brasileira de Letras, 1930, p. 35. 88 primeiros povoadores deram em lavrar açúcares (...)”.6 Aqui, no entanto, ele associa diretamente o povoador àquele que se liga à atividade econômica principal da terra. A percepção de diferença expressa na forma povoador/morador é um dos eixos da consciência da diferença expressa na forma colono-reinol. Neste sentido, a primeira é pré-condição da segunda. A mesma mentalidade mercantil que norteia a plantação de açúcares transforma também o conceito de riqueza que nos Tratados se ligava não tanto à produção, mas principalmente às descobertas de metais preciosos. Os primeiros mitos, ligados mais ao povoamento do que à colonização efetiva, relacionam-se ao Eldorado, à montanha de Esmeraldas. Não que a busca de minas não exista em Brandão, mas aqui, a riqueza que o homem colhe por meio de seu trabalho é mais valiosa do que a riqueza brota espontaneamente da terra. Além disso, as minas só não se desenvolvem porque primeiro, o homem não está disposto a trabalhar nelas, segundo, não se criam condições para que elas se desenvolvam, ou seja, o trabalho continua a ser o meio para a produção de riqueza, mesmo no caso da mineração: “porque o primeiro que se devia de fazer, antes de se bolir nelas, depois de estarem certos que eram de proveitos, houvera de ser plantarem-se muitos mantimentos ao redor do sítio onde elas estão, e como os houvesse em abundância, tratar-se da lavoura das minas; mas isto se fez pelo contrário, porque, sem terem mantimentos, entenderam em tirar o ouro, e como as minas estão muito pelo sertão, os que vão levam de carreto o mantimento necessário, e como se lhe acaba, tornam-se, e deixam a lavoura, que tinham começada”.7 A lavoura que se constrói ao redor da mina não é menos importante do que a mina em si. A exploração já não mais se restringe à extração metais preciosos da terra, mas é uma exploração que exige a construção de uma base material estável, fixada na lavoura e nos engenhos de cana e que, portanto, exige uma fixação mínima do homem à terra. O povoamento para a exploração traz uma nova mentalidade. Uma mentalidade que demonstra o anseio da fixação na terra que é clara tanto em Duarte Coelho, como em Brandônio, como depois em Frei Vicente do Salvador. Afinal, não condenam aqueles que vêm à terra tão somente para explorar? Até mesmo Nóbrega é contagiado por essa forma de pensar: “Não querem bem à terra, pois têm sua afeição em Portugal, nem trabalham tanto para a favorecer como por se aproveitarem de qualquer maneira que puderem”.8 Tanto o senhor de engenho, como o donatário, como ainda o 6 Diálogos..., op. Cit., p. 15. Brandônio praticamente desconsidera a etapa da exploração do pau-brasil. Para ele, a terra tem início quando se começa o povoamento efetivo e a organização da produção açucareira. 7 Idem, p. 39. 8 Manoel da Nóbrega. Cartas do Brasil (1549-1560). Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1988, p. 32. 89 jesuíta percebem os interesses que movem os homens a vir para cá. A percepção disso tanto por um leigo como por um membro da Igreja, já é um indício de que os projetos de catequização e colonização não mais são totalmente díspares, mas começam a confluir em alguns pontos: tanto um como o outro quer acabar com a exploração sobre a terra levada às últimas conseqüências; ambos querem acabar com a corrupção moral que se fez no ser que colonizou a terra. A percepção comum de um mesmo fato pelos dois lados, o secular e o religioso, é outra précondição para a tomada de consciência da diferença. A percepção do sentido da exploração vai aos poucos engendrando uma consciência de que todos são explorados, pertençam eles ao projeto colonizador ou catequizador. Essa consciência de exploração atingirá contornos mais definidos no século XVIII. Aqui já se pode falar em uma ideologia contestatória ao sistema colonial e não mais tão somente às ações do governo.9 Outra das percepções comuns entre a “arqueologia” e os Diálogos é a percepção da religião enquanto um locus em que se resolvem problemas práticos do cotidiano. Tanto os Tratados, como a documentação jesuítica, mas principalmente a Inquisitorial tratam do caráter popular da religião colonial. Nos Diálogos, isso não aparece pela discussão da religião em si, mas pela descrição de certos elementos materiais e certos atos que a aproximam de uma religião primitiva; aparece também por meio das propriedades curativas de determinadas ervas, de certas curas misteriosas feitas por negros e índios, por meio dos feitiços.10 Brandônio fala dos casos de mandinga, como por exemplo, o caso do negro que enfeitiçou uma negra sua. No caso dos mitos associados à colonização, as discussões entre Alviano e Brandônio tornam explícita a diferença entre colono e reinol no campo da mentalidade. Na verdade, aqui existe mais uma diversidade do que uma diferença porque o imaginário continua ser o mesmo, 9 “(...) o objeto das manifestações de desagrado, freqüentes desde os primeiros séculos de colonização, deslocava-se, nitidamente, de aspectos particulares de ações de governo para o plano mais geral da organização do Estado. Não se tratava mais, nesse final do século XVIII, do constante irromper das contradições e tensões a desaguarem nos violentos conflitos que pontuaram a história do sistema colonial português na América”. (István Jancsó. “A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII”. Cap. 9 de “Condições de Privacidade na Colônia”. Introdução à Cotidiano e vida privada na América portuguesa. Vol. Organizado por Laura de Melo e Souza. In História da Vida Privada no Brasil, Coleção organizada por Fernando Antônio Novais. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 387). 10 “(...) e para isso vos direi o que vi por próprios olhos, que não ousava de afirmar em parte onde me faltassem os testemunhos, que aqui tenho: um negro de Guiné, meu escravo, chamado Gonçalo, se lhe cerrou de todo as vias ordinárias que temos para fazer câmara e urinas, e se lhe abriu pelo umbigo um buraco, por onde por muitos dias fez semelhante exercício, o qual se lhe tornou também a cerrar de per si com se lhe abrir outro igual buraco na ilharga direita, pelo qual obrou também suas necessidades mais de seis meses, ao cabo dos quais, sem nenhuma cura, nem medicamento, tornou a sarar, abrindo-se-lhe de novo as vias ordinárias, pelas quais foi purgando, como de antes, 90 adquirindo colorido local. No entanto, o imaginário que é exposto na documentação “arqueológica”, em especial nos Tratados, adquire a forma de consciência da diferença nos Diálogos, por meio da cisão que Ambrósio Fernandes Brandão faz entre o colono e o reinol. Extensas discussões entre Alviano e Brandônio giram em torno da veracidade dos acontecimentos. O fato de acreditarem em coisas diferentes comprova que primeiro a conquista e depois a colonização alteraram definitivamente os limites do possível e do impossível para o homem renascentista. Os mitos presentes nos Diálogos já não se relacionam tanto às heranças deixadas pela Antigüidade Clássica, mas já adquirem colorações locais. Os primeiros heróis da colonização, Tomé de Souza, Martim Afonso de Souza, Diogo Álvares Caramuru, João Ramalho já começam a compor uma mitologia local. O colonizador teve de enfrentar uma natureza íngreme e uma humanidade selvagem para que conseguisse se fixar na terra. Fixados, o colonizador convertido em colono preserva na memória estes primeiros heróis que tanto fizeram pela sociedade que agora vê tomar contornos. Nos mitos narrados pelos Diálogos, diferentemente dos mitos dos tratadistas em que o paraíso era uma dádiva da natureza, há uma idéia de paraíso construído, semelhante àquela falada por Sérgio Buarque em Visão do Paraíso.11 As obras humanas se mesclam às obras de Deus. Da mesma forma como acontece com a discussão em torno do verossímil, aqui, o novo e o velho também se desdobram na figura de Alviano e Brandônio. Nos primeiros anos de colonização, a documentação jesuítica trata esta terra como se fosse um inferno. Se Brandônio representa o novo, a defesa da terra, adotando em sua argumentação o tom otimista dos Tratados, Alviano representa o velho, ao incorporar o estilo tosco e desiludido dos primeiros jesuítas: “porque eu a tenho [a terra] pela mais ruim do mundo, onde seus habitadores passam a vida em contínua moléstia, sem terem quietação, e, sobretudo faltos de mantimentos regalados que em outras partes costuma haver”.12 Tanto a idéia de paraíso relacionada à construção de um outro Portugal como os mitos que dela derivam aparecem nos Diálogos na forma da contraposição entre Brandônio e Alviano, mas as pré-condições para que essa idéia aí surgisse estão colocadas na documentação anterior. O paraíso, antes de ser construído, é uma dádiva terrena de Deus. Antes disso, ainda, era extraterreno e é só com as influências da leitura dos antigos clássicos que ele se torna terreal. Os mitos, antes de serem com ter perfeita saúde e viver muitos dias”. (Diálogos..., p. 59). Nessa religiosidade popular não se separam práticas mágicas e doutrina religiosa. 11 Sérgio Buarque de Holanda. Visão do Paraíso: Os Motivos Edênicos do Descobrimento e Colonização do Brasil. 3a edição. São Paulo, cia. Editora nacional, 1977, p. XIX. 91 locais, são as mais puras heranças da Antigüidade Clássica. Essa fluidez entre antigo e novo, herdado e construído vai sendo mostrado pelo estudo da documentação anterior aos Diálogos. Em Frei Vicente do Salvador, essas diferenças também aparecem, sem que haja uma alteração muito profunda do conteúdo dos Diálogos. Os milagres e os santos estão presentes em quase todas as conquistas: “(...) deram graças a Deus por tão grande benefício, e por os haver livres de perigo tão grande pela voz e assombro de uma fraca mulher, ainda que depois declararam os mesmos inimigos que não fôra por isto, senão por haverem visto um combatente estranho, de notável postura e beleza que, saltando atrevidamente de suas canoas, os enchera de medo. Donde creram os portugueses que era o bem-aventurado s. Sebastião, a quem haviam tomado por padroeiro desta guerra”.13 A ética da aventura também colore suas narrativas.14 As estratégias militares mudam para se adaptar às novas condições da terra.15 O mito do Eldorado, da Serra de Esmeraldas também estão presentes em Frei Vicente.16 A cobra como símbolo da ressurreição e da sobrevida.17 Algo, portanto bastante distinto do que se encontra na Europa Ocidental e que foi engendrado por condições especificamente coloniais. 18 12 Diálogos..., p. 35. Frei Vicente do Salvador. História do Brasil (1627). 5a edição, São Paulo, Melhoramentos, 1965, p. 183. 14 “Vendo Duarte Coelho que a terra estava quieta e os moradores contentes, determinou-se a ir para Portugal (...) O intento que o levou devia ser para requerer seus serviços (...) devia estar mexericado com el-rei que lhe tomara a jurisdição, quando lhe foi beijar a mão lho remoçou e o recebeu com tão pouca graça que, indo-se para casa, enfermou de nojo e morreu daí a poucos dias. Pelo que, foi indo Afonso de Albuquerque com dó ao paço, e sabendo el-rei dele por quem o trazia, lhe disse: Pesa-me ser morto Duarte Coelho, porque era mui com cavaleiro. Esta foi a paga de seus serviços, mas muito diference a que de Deus receberia, que é só o que para dignamente, e ainda ultra condignum, aos que o servem.” (Salvador, op. Cit., p. 114/115) 15 “E não se espantem falar dessa maneira sendo tão poucos, porque, como as guerras destas partes são nos matos, sempre vão enfiados por ruim o caminho uns atrás dos outros, e assim ainda que poucos, como não podem ir em fileira nem ordem de guerra, ocupam muita terra ao comprido. Por esta causa á grita da vanguarda se concertou cada um em seu lugar e começaram a marchar depressa.” (Idem, ibidem, p.310) 16 Idem, ibidem, p. 27. 17 As cobras “(...) que depois de fartas rebentam e corrupta a carne se gera outra do espinhaço, porque já aconteceu achar-se alguma presa com um vime que tinha em sai incorporado. O que não podia ser, senão que ficou junto ao vime quando rebentou e se lhe corrompeu a carne e depois, criando outra de novo, o colheu de dentro e incorporou em si. Porém não se há de dizer que morrem (como os índios cuidam), senão que com a carne corrupta ficam ainda vivas, e assim não ressuscitam mas saram, e algumas se viram já de sessenta palmos de comprido. (...) Também me contou uma mulher de credito na mesma capitania de Pernambuco que, estando parida, lhe viera algumas noites uma cobra mamar em os peitos, o que fazia com tanta brandura que ela cuidava ser a criança (...)”. (Idem, ibidem, pp. 43/44). A cobra sempre aparece ligada à morte e ao nascimento ao mesmo tempo. (Holanda, op. Cit. 74) 18 “Descoberto, o Brasil ocupará no imaginário europeu posição análoga à ocupada anteriormente por terras longínquas e misteriosas que, uma vez conhecidas e devassadas, se desencantaram. Como escravismo, este acervo imaginário seria refundido e reestruturado, mantendo, entretanto, profundas raízes européias. Prolongamento modificado do imaginário europeu, o Brasil passava também a ser prolongamento da Metrópole, conforme avançava o processo colonizatório. Tudo que lá existe, existe aqui, mas de forma específica, colonial. Mais uma vez, é o argutíssimo frei Vicente quem percebe a semelhança na diferença: ‘de Portugal vem farinha de trigo? A da terra basta. Vinho? De açúcar se faz muito suave, e, para quem o quer rijo, com o deixar ferver dois dias embebeda como de uvas. Azeite? Faz-se de cocos de palmeiras. Pano: faz-se de algodão com menos trabalho do que lá se faz de linho 13 92 A “arqueologia” da consciência da diferença presente nos Diálogos é uma “arqueologia” que se compõe de diversas partes, diversas percepções diferentes da sociedade colonial, que dependem da instância da qual provém o observador dos acontecimentos. Dessa forma, a “arqueologia” da consciência da diferença se fragmenta em uma série de peças que se contrapõem, se contradizem e se complementam. A “arqueologia” da consciência da diferença vai sendo montada não somente pela confluência e harmonia de toda a documentação anterior aos Diálogos, mas pelo próprio jogo de uma contra a outra. E tudo isso disperso no tempo e sendo modificado por ele e pela própria sociedade em que se inserem: “A presença de um representante da Inquisição em Pernambuco veio revelar a vida dos residentes em Pernambuco, Itamaracá e Paraíba de forma crua, de maneira totalmente diferente da que era vista pelos primeiros cronistas que aqui aportaram. Sob ameaça de penas espirituais foram reveladas (...) importantes informações sobre as primeiras famílias, as festas de igreja, o ensino das primeiras letras, os primeiros advogados, médicos e boticários, as manifestações de música e teatro, a prostituição, as normas morais e religiosas, a guerra pela posse da terra, a guerra contra os corsários (...)”.19 No conjunto, cronistas, tratadistas, inquisidores, jesuítas, oficiais da Coroa, recompõem as diferentes instâncias da sociedade colonial. O que os cronistas não viram, em razão dos seus interesses em relação à terra, a visitação do Santo Ofício o mostrou por meio de depoimentos. “A Inquisição escancarou sobre nossa vida íntima da era colonial seu olho enorme, indagador”.20 Há ainda coisas que o Santo Ofício não conseguiu ver. Então entram em cena os oficiais e os jesuítas e os demais observadores da terra. Os diversos tipos de documentação se complementam na percepção da sociedade colonial e no conjunto compõem as pré-condições para a consciência da diferença dos Diálogos. e de lã... Amêndoas? Também se excusam com a castanha de caju, et sic ceteris’”.(Laura de Melo e Souza. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e Religiosidade Popular no Brasil Colônia. 4a Reimpressão. São Paulo, Cia. Das Letras, 1994, p. 31) Temos aqui presentes vários elementos da temática que estamos tratando. Em primeiro lugar, a crença quase ingênua de que o prolongamento do espaço europeu produziria uma sociedade idêntica, uma Nova Lusitânia. Laura de Melo e Souza começa por analisar esse prolongamento no imaginário, mas percebe que na verdade essa tentativa em prolongar produz o seu contrário, o rompimento com ele, embora persistam alguns traços. Em segundo lugar, a sensibilidade de um Frei Vicente do Salvador em perceber essa descontinuidade. Da descontinuidade do imaginário, passamos imediatamente para uma descontinuidade da esfera material, que, embora pertencendo a domínios diferentes, são perpassadas por algo em comum: o modo de vida colonial, que ao mesmo tempo as engloba e as une em um todo diferente. 19 Leonardo Dantas. Nota à Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Confissões de Pernambuco – 1591-1592. J. A. Gonsalves de Melo (editor). Recife, Universidade Federal de Pernambuco, 1970. Nota do Editor Leonardo Dantas. 20 Gilberto Freyre. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 28a ed. Rio de Janeiro, Record, 1996, p. LXVI. 93 Todas essas pré-condições expressas na documentação anterior aos Diálogos das grandezas do Brasil, e que caminham no sentido de uma conscientização da diferença entre colonos e reinóis, também estão presentes de forma ainda mais acabada na História do Brasil de Frei Vicente do Salvador. Em Brandão, a consciência da diferença advém do contato entre o homem e a natureza da terra, que por suas características especiais, principalmente a abundância, produz um homem diferente. Os sintomas sociais dessa diferença, embora presentes, não possuem uma lógica social que lhes confira coesão. Já em Frei Vicente, a natureza da diferença já possui uma explicação social. Frei Vicente percebe que aqui se monta uma sociedade diferente não em decorrência do fato de a natureza ser diferente, mas porque isso propicia a montagem de uma economia complementar à da metrópole, e é na exploração dessa economia que reside a diferença. A economia colonial é voltada para o mercado externo, primeiro, com a extração do pau-brasil, depois, com a produção de açúcar com base na mão-de-obra escrava. Esse “sentido da colonização”21 já está expresso de forma um pouco mais simples em Frei Vicente do Salvador: “E deste mesmo modo se hão os povoadores, os quais, por mais arraigados que na terra estejam e mais ricos que sejam, tudo pretendem levar a Portugal e, si as fazendas e bens que possuem souberam falar, também lhe houveram de ensinar a dizer como os papagaios, ao quais a primeira cousa que ensinam é: papagaio real pêra Portugal, porque tudo querem para lá. E isto não têm só os que de lá vieram, mas ainda os que cá nasceram, que uns e outros usam da terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para a desfrutarem e a deixarem destruída”.22 É esse quadro histórico que produz uma nova sociedade e não simplesmente as características diferentes da terra ou a relação que o homem trava com esta. A base material que se constitui visa a complementar a economia da metrópole, oferecendo matérias-primas baratas para a manufatura e outros produtos de alto valor lucrativo no mercado europeu, como o açúcar, por exemplo. A domínio das rotas de comércio com o Oriente pelos holandeses torna a colonização na América a principal via de acumulação de capital para o Estado português.23 Ao dizer que os homens da colônia são negligentes porque poderiam produzir tudo o que quisessem, mas não produzem porque preferem o ócio ao trabalho, Brandônio não percebe a verdadeira natureza da sociedade colonial, o que Frei Vicente percebe, conforme atesta o trecho supracitado. A própria Caio Prado Jr. Formação do Brasil Contemporâneo. 22a edição. São Paulo, ed. Brasiliense, 1992. Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. 15. 23 Charles Boxer. Os holandeses no Brasil-1624-1654. Trad. Olivário M. de Oliveira Pinto. São Paulo, Nacional, 1961. 21 22 94 intenção em se fazer uma História e não mais um mero tratado ou uma crônica, é sintoma disso. A História se diferencia dos outros documentos por pretender relatar um modo de vida dinâmico composto pela relação entre homem e natureza, dos homens entre si no espaço da colônia e, num âmbito mais amplo, entre metrópole e colônia. Brandônio dedica páginas para discursar a respeito disso. Não entende porque não se produz pimenta no Brasil uma vez que isso eliminaria a navegação para as Índias “que tanto tem custado a Portugal”. Para ele, isso é “um mal velho do nosso Portugal que não leva remédio”.24 No entanto, o que Brandônio não percebe é que essa característica estrutural não é somente um defeito de caráter como aparece na sua formulação. Ela adquire força ainda maior nesse momento da história do capitalismo ocidental. Em primeiro lugar, a navegação para as Índias, mesmo que custosa, tem um outro significado dentro desse contexto, que é o fortalecimento do poder do Estado Absolutista. Os Estados Nacionais estão se formando uns contra os outros e o período que abarca o Antigo Sistema Colonial é um período de conflitos entre os Estados em formação pela conquista da hegemonia ultramarina. Portanto, do ponto de vista político, não tem qualquer sentido abandonar a navegação para as Índias. Em segundo lugar, olhando agora pelo ponto de vista econômico, a colonização se caracteriza pela produção de um único produto, altamente lucrativo, comercializado no mercado externo. É o mercado, portanto, que dita os produtos que serão produzidos e seus preços. Nos séculos XIV e XV, o açúcar torna-se um produto altamente valioso dentro do mercado europeu, embora sua entrada na Europa date de 995 pelos portos de Veneza. Portugal faz uma primeira experiência nas Ilhas da Madeira em 1450, mas é em 1485, durante o governo de D. Manuel, que uma série de medidas são tomadas para garantir reservas de mercado na Europa e a boa qualidade do açúcar madeirense, o que mostra a forte ligação entre o 24 Veja que aí temos na fala de Brandônio, ao mesmo tempo, capitalismo comercial, atuação de Estados nacionais, percepção de diferenças: “(...) à imitação de el-rei D. Manuel a poderia mandar vender por preço que ficassem os Holandeses perdendo muito dinheiro, se vendessem a sua que vão buscar à Índia. A esse respeito e por esta maneira, como a essas gentes se lhe não seguisse proveito de seu comércio, não tinham para que continuar com semelhante navegação, e se acabaria sem despesa nem sangue porfia, que tanto tem custado a Portugal, e Sua Majestade, mandando vender a sua pimenta mais barato, perdia pouco, se não ganhasse dinheiro, pelo menos custa que lhe havia de fazer em a levar para o reino, e o menos preço por que a havia de comprar no Brasil. (...) Já o pratiquei com um ministro que tinha grande lugar em sua fazenda, e com lhe parecer a traça maravilhosa, me respondeu que estava já tão introduzido em Portugal o modo da navegação da pimenta, que custaria muito trabalho o querer-se tratar agora de remover noutro modo; e assim como entendi ser aquilo mal velho no nosso Portugal que não leva remédio, desisti da minha prática, e da mesma maneira o farei agora, deixando a cargo aos que lhe toca remediar semelhante necessidade, se o quiserem fazer.”(Diálogos..., p. 73) 95 Estado e os empreendimentos colonialistas. 25 Ao pregar a diversificação da colônia, Brandônio não vê esses fins específicos para os quais fôra erigida.26 Tanto esse “mal velho do nosso Portugal”, como a “negligência dos habitantes” têm sua natureza aí. Ao imputar dois vícios, respectivamente a reinóis e colonos, ele tem consciência da diferença, mas não percebe que tais “vícios” têm uma mesma raiz: o sistema colonial. “não há homem em todo este Estado que procure nem se disponha a plantar árvores frutíferas, nem fazer as benfeitorias acerca das plantas, que se fazem em Portugal, e por conseguinte se não dispõem a fazerem criações de gados e outras; e se algum o faz, é em muito pequena quantidade, e tão pouca que a gasta toda consigo mesmo e com a sua família. E daqui nasce haver carestia e falta destas coisas, e o não vermos no Brasil quintas, pomares e jardins, tanques de água, grandes edifícios, como na nossa Espanha, não porque a terra deixe de ser disposta pára estas coisas; donde concluo que a falta é de seus moradores, que não querem usar delas”.27 Em Frei Vicente, essa negligência dos moradores existe, mas a falta e carestia das coisas não decorrem desse fato, e sim, do fato de que os portugueses, tanto os daqui, como os de Portugal, tudo querem para lá.28 A diferença provém não da natureza, mas da própria função social desta e dos homens que aqui residem. Esse passo “além” pode ser percebido na forma como ele e Brandônio organizam a sociedade colonial. Brandônio a divide em tipos humanos,29 que são quase que um prolongamento imediato da relação que o homem trava com a natureza nos trópicos. Já Frei Vicente faz uma organização um pouco mais complexa. Trata a sociedade como se estivesse dividida em instâncias com uma dada função social. Na colônia, as esferas do público 25 “D. Manuel (...) ordenara, em 1485, que todo o mestre de açúcar deveria ser examinado e aprovado por três homens bons, ao mesmo tempo que estipulava a obrigatoriedade de uma vistoria qualitativa ao açúcar, após a sua laboração, por oficiais competentes: os alealdadores”. (Fonte: Site do Centro de Estudos de História do Atlântico (CEHA): http://www.ceha-madeira.net/sugar/introd.htm). 26 “(...) quando a gente que houver no Brasil for mais daquela que de presente se há mister para o grangeamento dos engenhos de fazer açúcares, lavoura e mercearia, porque então os que ficarem sem ocupação de força hão de buscar alguma de novo de que lancem mão, e por esta maneira se farão uns pescadores, outros pastores, outros hortelões e outros tecelões, e exercitarão os demais ofícios, dos que hoje não há nesta terra na quantidade que era necessária houvesse; e como isto assim suceder, logo não haveria falta de nada, e a terra abundaria de tudo o que lhe era necessário, enxergando-se ao vivo a sua grande fertilidade e abundância, com não ter necessidade de coisa nenhuma, das que se trazem de Portugal, e quando a houvesse, fôra de poucas”. (Diálogos ..., p. 146) 27 Diálogos..., op. Cit., p. 18. 28 Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. 15. 29 A divisão que Brandônio faz está no capítulo segundo, à página 66 deste trabalho. 96 e privado não somente estão imbricadas, como têm suas funções trocadas.30 A percepção de Brandônio em relação à sociedade colonial aparece assim como uma percepção intermediária entre um aglomerado humano, cujas características são dadas pela natureza, tal qual aparece nos Tratados, e uma sociedade colonial já praticamente formada como aparece em Frei Vicente do Salvador. É em torno do açúcar que se organiza a sociedade colonial. Os detentores dos meios de produção, os senhores de engenho, compõem a aristocracia da terra. A sociedade é fortemente estratificada e tanto os estratos inferiores, como os meios de reprodução do poder, como os espaços desta sociedade são controlados por essa aristocracia. É em razão disto que as esferas pública e privada se apresentam invertidas. Na colônia, os interesses pessoais perpassam as relações sociais em todos os sentidos. Tanto os Diálogos como a História do Brasil discutem longamente as capitanias hereditárias. A colônia precisava se organizar de uma forma que efetivasse o projeto da colonização. Embora o Estado seja o verdadeiro empreendedor de tudo isso, muitas vezes é do âmbito privado que saem os recursos para levar a cabo essa empresa. Já não diria Gabriel Soares de Sousa que muitos donatários tiveram seu cabedal totalmente esvaído com tais empreendimentos? Os poucos que conseguem se fixar na terra vêem sua esfera de influência aumentada por sua capacidade de organização em uma terra tão inóspita e extensa. Esse é o caso de Tomé de Sousa, de Duarte Coelho, de João Ramalho.Tanto os conflitos entre Estado e poder local, como entre a Igreja e o Estado, aparecem também na obra de Frei Vicente do Salvador. Enfim, aqui temos montada a sociedade colonial segundo as visões de Brandônio, ainda de forma primeva, e de Frei Vicente que possui uma visão mais coesa dessa sociedade. Por isso utilizamos a sua História para fechar o recorte cronológico. Talvez sejamos obrigados a discordar do grande Mestre Capistrano de Abreu, que diz que sua obra seriam mais histórias do que História.31 Realmente, há momentos em que sua história se confunde com o mito. 32 No entanto, 30 Fernando Antônio Novais, “Condições de Privacidade na Colônia”. Introdução à Cotidiano e vida privada na América portuguesa. Vol. Organizado por Laura de Melo e Souza. In História da Vida Privada no Brasil, Coleção organizada por Fernando Antônio Novais. São Paulo, Companhia das Letras, 1997. A respeito do trecho de Frei Vicente que expressa essa inversão e imbricamento entre as esferas, vide nota 4 deste mesmo capítulo. 31 “Seu livro é afinal uma coleção de documentos, antes reduzidos que redigidos, mais histórias do Brasil do que História do Brasil”. (Capistrano de Abreu. Introdução a Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. XXI) 32 “E assim não havia branco, por pobre que fosse, nesta capitania, que não tivesse vinte ou trinta negros destes, de que se serviam como cativos, e os ricos tinham aldeias inteiras. (...) Durou esta era, que ainda hoje os moradores antigos chamam de dourada, enquanto viveu o capitão velho (...)”. (Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. 128). Ainda, sobre a idade de ouro: “(...) só sei que ouvi dizer a um dali a muitos anos que aquele fôra o tempo dourado 97 essa história nos dá o mapa social da colônia e de sua relação com a metrópole. E é isso que nos permite visualizar o colono como “ente” distinto do reinol. São suas percepções da colônia como um locus explorado pela metrópole que explicam as tantas diferenças enumeradas nos Diálogos. Frei Vicente é um natural da terra, que ao compor sua história, toma consciência de sua própria diferença em relação ao reinol. E essa consciência chega ao paroxismo do amor pela terra. Nas palavras de Capistrano: “Para tentar a História habilitava-o o amor á terra natal, a certeza no seu futuro e tais sentimentos eram raros naquele tempo, como se pode ver também nos Diálogos das Grandezas. Seu amor à terra natal estendia-se a tudo nela existente. Conta a história de índios sem revelar antipatia ou menosprezo. Um negro do convento baiano acha nele seu Homero. No principio Bastião pendia para os holandeses quando foi tomada a Bahia; mas quiseram tirar-lhe um facão e ele tratou de escondê-lo no peito de um dos invasores e ganhou gosto pelo sangue flamengo. Nos encontros avançava o mais possível, pretextando o pequeno alcance de sua flecha e bradava na sua meia língua que o bom do cronista conservou: sipanta, sipanta, incitando os companheiros a recorrerem á espada pois a arma de fogo mentia.”33. Protegidos devidamente contra os assomos de patriotismo e os riscos do anacronismo, consideramos que Frei Vicente sente-se aqui tão português quanto qualquer outro que nascera em Portugal. O grupo ao qual está se opondo não é o dos portugueses e sim, o dos holandeses. No entanto, a sua narrativa engloba a diferenciação entre colono e reinol, subjacente às guerras contra os “estrangeiros”. A esta altura já é possível comentar a nossa epígrafe: “Esta terra é nossa empresa”? Essa frase de Nóbrega parece resumir nos múltiplos significados de empresa todo o Antigo Sistema Colonial. O sentido de Nóbrega está relacionado exatamente ao trabalho que se empreende na terra: uma ação árdua que enobrece o homem. Em segundo lugar, o sentido de empresa é o sentido de negócio. E o que é este senão a negação do ócio, uma ruptura radical com os valores da nobreza metropolitana? A terra é o negócio de muitos e serve para enriquecer e produzir lucros que serão acumulados na metrópole de forma primitiva. O sentido de empresa adquire aqui sua conotação burguesa. A burguesia do capitalismo mercantil, claro. Também o Estado se lança a esta empresa, fundindo o conteúdo ideológico, a ideologia da catequização, ao seu conteúdo pêra esta Bahia pelo muito dinheiro que então nela corria e muitos índios que desceram do sertão, e bem dizia dourado, e não de outro, porque para este outras cousas se requeriam.”(Idem, ibidem, p. 223). 98 econômico, a política mercantilista. Portanto, o fato de a terra ser uma empresa, reúne uma conotação religiosa, uma econômica e uma política, ou seja, esta terra é a empresa que produz fiéis, riqueza e poder para sua metrópole. 3.2 “Arqueologia” da consciência da diferença e o Antigo Colonial Retomaremos aqui alguns pontos importantes para a gestação da consciência da diferença que foram tratados no primeiro capítulo remetendo-os ao conceito de Antigo Sistema Colonial. Tentaremos reconstituir essa consciência de diferença, relacionando-a com as esferas sociais que compõem o sistema colonial, tanto em suas dimensões metropolitanas como coloniais, bem como as relações de continuidade e ruptura que essas esferas estabelecem entre si e que compõe a própria dinâmica do Antigo Sistema. O intento é o de perceber o processo de diferenciação e a tomada de sua consciência em dimensões mais amplas que as mostradas pelos documentos. Isso também é necessário porque além de uma diferenciação geral entre colono e reinol, existem diferenciações mais restritas, que ocorrem dentro de uma mesma esfera, como por exemplo, entre os jesuítas daqui e os de lá34, os oficiais da Coroa que atuam na colônia e os que atuam na metrópole, a Inquisição Colonial e sua equivalente metropolitana. Isso acontece porque a adaptação de certas instituições e funções na colônia gera uma tensão permanente que acaba por romper com o padrão metropolitano, gerando uma diferenciação, que é explicada pela função da colônia para aquela instância do Antigo Sistema Colonial. Dessa forma, a consciência da diferença pode assumir direções diferentes, dependendo da classe a que pertence o observador, da instância na qual se insere e do significado de tal classe para o Antigo Sistema Colonial. É por isso que nos jesuítas a direção da percepção da diferença é inversa à dos Tratados. A visão que o observador tem da sociedade colonial e de seus aspectos depende do projeto ao qual pertence: catequização ou colonização. Por exemplo, o índio, na visão do jesuíta, é gentio, inocente porque o interesse de seu projeto reside na construção de uma 33 Capistrano de Abreu, op. Cit., pp. XIX/XX. “(...) não me sei determinar quanto ao espiritual se parece na observância, com concerto e ordem com qualquer dos bem ordenados de Portugal: e estes padres velhos são a mesma edificação e desprezo do mundo, e esta fruta colheram cá por estes matos sem prática nem conferências, e são um espelho de toda virtude e muito temos os que de lá viemos para andar, se havemos de chegar a tanta perfeição da sólida e verdadeira virtude da Companhia”. (Fernão Cardim, Tratados da Terra e Gente do Brasil (1583). Introdução e notas de Batista Caetano, Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. 3a edição. São Paulo, Cia. Ed. Nacional; Brasília, Instituto nacional do Livro, 1978, p. 211). Ainda 34 99 sociedade ideal, sem a mácula do pecado. Nesse caso, é o português quem aparece como o imoral e atrapalha o projeto da catequização. Para o cronista, cujo interesse reside no desenvolvimento da terra para o bem do Reino, o índio é o imoral e é este que aparece como óbice ao projeto colonizador: “causa de escândalo e prejuízo às consciências dos moradores da terra. Porque como estes índios cobiçam muito algumas coisas que vão deste Reino, convém a saber, camisas, pelotes, ferramentas, e outras peças semelhantes vendiam-se a troco delas uns aos outros aos portugueses”.35 Portanto, a ocupação da terra envolve dois projetos utópicos: um que se relaciona com o objetivo de catequizar, que encontra sua realização máxima nas missões jesuíticas, e o outro que tem como meta a colonização, que no plano ideal corresponde ao desejo de reprodução de Portugal, na forma de uma Nova Lusitânia. Construídos no plano ideal, na prática tanto um quanto outro se frustra e o que acontece é que um projeto se torna complementar ao outro e precisa dele para dar continuidade ao seu próprio projeto. Muitos dos jesuítas defendiam o uso da força militar na correção do ânimo gentio, embora se opusessem à utilização destes como força de trabalho. Os colonizadores, por outro lado, precisam do trabalho catequético porque pela conversão do gentio à doutrina católica, põe-se fim às guerras que destruíram muitas das primeiras tentativas de colonização.36 Para cada projeto, existe um “Brasil” diferente, tanto no sentido de idéia, como no sentido de lugar geográfico.37 A colônia é o locus de disputa entre esses diferentes projetos e a imposição de um sobre o outro. A nação aparece quando esses projetos não mais pretendem dominar os outros, mas conciliar-se com eles, caminhando no mesmo sentido que os demais na construção de um só projeto para o Brasil.38 não há uma diferenciação, mas somente uma separação de um mesmo grupo segundo o espaço que atuam. As virtudes são as mesmas. 35 Cardim, op. Cit., p. 122. Há um trecho em Gabriel Soares de Sousa em que isso fica ainda mais evidente: “(...) também são [estes caetés] mui cruéis uns com os outros para se venderem, o pai aos filhos, os irmãos e parentes uns aos outros”. (Gabriel Soares de Sousa. Tratado Descritivo do Brasil em 1587.4a edição. São Paulo, Ed. Nacional, 1971, p. 63). 36 Realmente, as guerras contra os índios adiaram em muito o projeto colonizador. O povoamento é instável e há uma imensa dificuldade em se recompor: “E quando o governador se recolheu, se despovoou este princípio de povoação, sem se contar mais a bulir nisto”. (Gabriel Soares de Sousa, op. Cit., p. 68) 37 Sobre o significado de “Brasil”, tanto enquanto idéia, quanto lugar; tanto projeto, quanto realidade. As duas coisas convivem ao longo de toda sua história: “Desde os primórdios de sua existência, o Brasil tem sido tanto uma idéia quanto um lugar (...). O Brasil, enquanto idéia, foi freqüentemente mais um projeto do que uma realidade, às vezes geográfica, às vezes nacional ou até social”. (Stuart B. Schwartz, “’Gente da terra braziliense da nasção’. Pensando o Brasil: a construção de um povo”. Cap. 4 de MOTA, Carlos Guilherme. A viagem incompleta- a experiência brasileira (1500-2000). Vol II Formação-Histórias. São Paulo, Ed. Senac, 2000, p. 106) 38 “De alguma forma, sempre houve uma variedade de ‘Brasis’ que se disputavam, projetos diferentes para o que o Brasil deveria ser ou representar. Essas concepções diferentes dependiam, em especial, das divisões sociais, das 100 Também as demais Igrejas nascidas da Reforma protestante carregam consigo um projeto utópico quando para cá vêm: o da reconstrução de um mundo novo baseado na fé reformada.39 No entanto, ao contrário dos portugueses em que os projetos religioso e material, de catequização e de colonização, possuem limites próprios, o projeto de fundação da França Antártica é um projeto único, devido à ética calvinista, que funde conquista material e espiritual.40 A conquista material não é destoante do projeto espiritual. Este não se caracteriza pela ampliação do número de conversos, senão pela conquista de um espaço para aqueles que seguem tal fé a possam exercê-la em liberdade: “Em 1555 [Villegaignon] manifestou a vários personagens notáveis do reino o desejo, que de há muito alimentava, não só de retirar-se para um país longínquo, onde pudesse livremente servir a Deus de acordo com o evangelho reformado, mas ainda preparar um refúgio para todos os que desejassem fugir às perseguições”.41 A utopia reside na tentativa do isolamento total dos vícios que a terra impõe: “E parece-me que só o conseguiria afastando do convívio do gentio os artesãos que comigo trouxera. E refletindo sobre isso compreendi que não fora sem audiência de Deus que nos metêramos nesses negócios e tudo ocorria em virtude de nos levar o ócio a dar rédeas aos nossos desordenados apetites”.42 À cada esfera social está associado um acontecimento importante que integra a gênese do Antigo Sistema Colonial. À esfera política se relaciona a formação dos Estados Nacionais Absolutistas. À esfera religiosa, as Reformas Protestante e Católica. À esfera cultural, o Renascimento dos séculos XIV, XV e XVI. Enfim, à esfera econômica, o nascimento do capitalismo, expresso na forma mercantil ou também chamada acumulação primitiva. O intuito é o de analisar como a percepção da diferença vai se formando dentro dessas esferas e como se expressa nos diferentes tipos de documentação. Enfim, como essas diferentes percepções se identidades e das expectativas da população colonial. Antes que pudessem existir os brasileiros, um povo que se via enquanto comunidade política, essas diferentes concepções de Brasil tiveram de ser reconciliadas de alguma forma, embora a realização desse objetivo numa sociedade multirracial e escravista tenha sido um processo extremamente complexo”. (Schwartz, op. Cit., p. 106). A nação aparece quando estes diferentes “Brasis” confluem em um só. 39 “Por isso nos transportamos para uma ilha situada a duas léguas mais ou menos da terra firme e aí nos estabelecemos de modo que impossibilitados de fugir, ficassem os nossos homens no caminho do dever. E como as mulheres só vinham a nós com seus maridos, a oportunidade de pecar contra a castidade se achava afastada”. Jean de Léry. Viagem à Terra do Brasil (1563). Trad. E notas de Sérgio Milliet. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1933, p. 10. 40 Léry usa as belas palavras de Virgílio para resumir o ethos que o guia: “Os apetites que guiam o homem são, em suma, seu principal Deus”. (Léry, op. cit., p. 9) 41 Idem, ibidem, p. 22. 42 Idem, ibidem, p. 10. 101 fundem em uma consciência da diferença, uma sensação um pouco mais aprimorada que a percepção, presente nos Diálogos e em Frei Vicente do Salvador. Começaremos pela esfera política. No entanto, torna-se difícil definir com exatidão os domínios das esferas em razão do próprio caráter transitório entre o feudalismo e o capitalismo: as esferas e seus domínios ainda estão fortemente imbricados e um mesmo fenômeno pode ter uma ou mais facetas. Dentro desse domínio, daremos especial atenção à documentação “estrangeira” e oficial, que se relacionam na sua maior parte, com os acontecimentos políticos do período, embora no caso da documentação Inquisitorial, haja um misto entre as esferas política e religiosa, uma vez que o Tribunal do Santo Ofício no século XVI é um tribunal mais pertencente ao Estado que à Igreja. A documentação “estrangeira” está, em sua maior parte, relacionada à atividade de corsários e piratas nas costas do “Brasil” e que durante sua ação ou em tentativas de estabelecer um domínio na América deixaram relatos sobre o cotidiano colonial. Transparece, portanto, o fenômeno da formação dos Estados Absolutistas e a rivalidade entre uns e outros pela conquista de territórios e poder. Na documentação oficial, o que fica mais evidente são as relações internas ao Estado português e a ligação entre os monarcas e seus súditos. As primeiras invasões “estrangeiras” da América Portuguesa já datam do século XVI. Dentre os inúmeros saques de pau-brasil, tentou-se, pela primeira vez, a montagem de uma colônia por membros de uma Igreja Reformada. Em 1557, Villegaignon e toda sua frota aportam no Rio de Janeiro, na tentativa de constituir a França Antártica. Antes disso, em 1548, Hans Staden aporta na capitania de Pernambuco, doada a Duarte Coelho em 1534. Em 1555, o mesmo navio aporta na capitania de São Vicente, doada a Martim Afonso de Sousa em 1532. Entre a primeira e segunda viagens, acontecera a unificação política da colônia por meio do governo geral de Tomé de Sousa (1549). Segundo Fernando Novais, uma tentativa de se efetivar o projeto colonizador impondo um mínimo de centralização na colônia.43 A questão a ser feita é em que medida contribuem os viajantes para a percepção da diferença entre colonos e reinóis. O problema é que quase todos vêem não o português se 43 “Entre 1548 e 1555, efetivamente, joga-se o destino da implantação portuguesa; a criação do governo geral (1549) e a ação dos primeiros governadores (Tomé de Sousa, Duarte da Costa) consolidam a posição lusitana na Bahia e no Rio de janeiro (...). Com isso estabelecia-se uma relativa articulação dos núcleos até então implantados ao sul (São Vicente, desde 1532, por Martim Afonso de Sousa) e ao norte (Pernambuco, 1534, pelo donatário Duarte Coelho). Note-se, desde logo, que ‘as duas viagens’de Hans Staden, incidem, precisamente sobre esses dois núcleos (...)”. (Fernando A. Novais. “O Brasil de Hans Staden”. Capítulo de Hans Staden: primeiros registros e escritos ilustrados sobre o Brasil e seus habitantes(1587). Trad. De Angel Bojadsen. São Paulo, Ed. Terceiro Nome, 1999, p. 17). 102 desdobrando em colono e reinol, mas somente o português enquanto colonizador, conquistador. Por que isso acontece? Por que o índio é a figura mais ressaltada na documentação “estrangeira”? Tanto portugueses, como franceses, como holandeses, ingleses ou o tedesco Hans Staden, são saídos de um mundo no qual as transformações que se processam - seja o renascimento, a reforma ou a formação do Estado nacional e com este o capitalismo - 44 têm uma tendência à expansão da esfera em que se manifesta pela dominação de outro território. Dominação cultural por meio da imposição do civilizado e de suas próprias formas de interpretar o mundo; dominação religiosa, por meio da propagação da fé: seja na forma de catequização, seja na de evangelização; dominação política, ampliando o número de súditos e territórios em poder do Estado Nacional; e, por fim, dominação econômica. Nas primeiras expedições, o tipo que se destaca é o do aventureiro45. Aqui, é a mobilidade, as guerras contra os indígenas, disputas entre os corsários e os portugueses, que compõem o modo de vida. À bravura exigida pelo empreendimento aventureiro, associa-se a honra da conquista: “Se não nos resolvermos a transpor esta montanha, poderemos viver aqui, é certo, enquanto, aprouver a Deus, mas sem honra, sem fama e sem religião, viveremos quais brutas alimárias”.46 O exótico, o diferente é o índio. Não há ainda como contrastar colono e reinol porque esses tipos ainda não existem. Somente com a capitania de Pernambuco é que aparece um modo de vida diferente, mais estável, 44 Como ilustração da íntima relação entre formação dos Estados Nacionais e expansão ultramarina, é brilhante a observação de Taunay a respeito do atraso em a França se lançar à corrida por territórios ultramarinos: Por que, a despeito de serem valente cruzadistas foram medíocres navegadores? Embora muitas vezes o valor pessoal seja ressaltado nas grandes navegações, o motivo é menos individual que estatal. É pela centralização estatal que as navegações se fazem. O próprio Camões percebe isso pela usa frase “fraco rei, fraca gente”. Se o Estado é o rei, é este rei que faz a história da expansão ultramarina e não as características individuais: “reforçando o conceito camoneano de que ‘um fraco rei fraca a gente’diz um grande historiador que o alheamento da França ao enorme movimento quinhentista das navegações e descobertas foi devido à ignorância prodigiosa e à absoluta certeza de espírito de Carlos VII, contemporâneo de Colombo e à grande leviandade de Francisco I”. (Afonso de E’ Taunay. Viagens e Viajantes do Brasil Colonial. In RIHGB, 1922, v. 146, t. 92, p. 311). Outro trecho elucidativo a respeito desse fenômeno é a resposta que D. João III a Saint Blancard quando este diz que o mar é livre pelo próprio fato de os portugueses terem tomado a nau Pelerine, que saqueava os navios portugueses: “Os mares que todos devem e podem navegar são aqueles que sempre foram sabidos de todos e comuns a todos, mas os outros, que nunca forma sabidos e nem parecia que se poderiam navegar, e foram descobertos com tanto trabalho, por mim, estes, não”. (Taunay, op. Cit., p. 313). 45 “Nesta etapa, por assim dizer a pré-história da colonização, a figura que se destaca como um tipo ideal é a do aventureiro, pois todas essas atividades constituíam uma autêntica aventura nos trópicos: aventureiros, evidentemente, os piratas e corsários que disputavam o comércio do pau-brasil, aventureiros, também, os capitães e as tripulações portuguesas (...) aventureiros, enfim os missionários que se enterravam por esses confins, para engajar o diálogo de conversão do gentio. Dominação política, exploração econômica, missionação, as três vertentes básicas da colonização; três esferas da mesma aventura, porque absolutamente imprevisível”. (Novais, op. Cit., p. 19). 46 Anthony Knivet. “Narração da Viagem que nos anos de 1591 e seguintes fez Antônio Knivet da Inglaterra ao mar do Sul em companhia de Thomaz Cavendish”. In RIHGB, 1865, p. 240. 103 assentado no engenho47. Em São Vicente, no planalto de Piratininga, a instabilidade, a mobilidade e a provisoriedade, continuará sendo ainda por muito tempo a lei que rege a vida bandeirante.48 São três os focos de diferença encontrados na documentação “estrangeira”. O primeiro é o da diferença entre o “estrangeiro” e o índio. Neste caso, a percepção de diferença entre colono e reinol se apaga porque os “estrangeiros” são tão iguais aos portugueses quando comparados ao índio que não faz sentido dividi-los.49 Afinal, todos são civilizados e professam uma fé, seja ela católica, seja ela protestante, ou calvinista. O segundo foco é o da diferença entre os “estrangeiros” e os portugueses, menos pelo caráter nacional, porque não é esse o eixo principal da identidade, do que pela religião. Por isso a percepção do português varia tanto de um Hans Staden para um Léry, conforme visto no capítulo primeiro. Nesse caso, embora não haja uma diferenciação entre colono e reinol, o português é equiparado ao índio pelos seus costumes vis que chegam ao limite da crueldade em um Knivet. É preciso separar estes níveis de diferença em que o “estrangeiro” se coloca porque é a partir destes níveis que ele pode chegar a ver uma diferença entre colono e reinol. Por exemplo, quando percebe que os colonos são mais próximos dos índios do que os reinóis, em razão de alguns costumes seus. Este terceiro foco de diferença muitas vezes aparece como mestiçagem. Tanto Staden, como Knivet dela falaram. Não chegam a dividir os portugueses em colonos e reinóis, como faz Brandônio, mas muitas vezes diferenciam o português do mestiço. Dessa forma, é preciso ver antes a diferença que o próprio “estrangeiro” 47 “Pouco a pouco, com enormes esforços, transita-se do comércio para a produção (produção para o comércio, é certo – tratava-se da agroindústria do açúcar), que envolve fixação, povoamento, organização dessa nova vida; o navegante, o mercante, o combatente, vai se transformando em povoador, produtor, colonizadores, enfim. O empreendimento continua dificultoso e arriscado, exigindo tenacidade e espírito de aventura; mas nessa transição, lentamente, esse espírito, vai cedendo o passo à mentalidade da rotina”. (Novais, op. Cit., p. 20) 48 “O povo da terra não se mostrou animado ante as perspectivas de introdução dessa nova granjearia, receoso de que se convertesse em causa de novas obrigações". (Sérgio Buarque de Holanda. Caminhos e Fronteiras. São Paulo, Cia. das Letras, 1994, 176). Este modo de vida instável conduz a um livre-arbítrio que contradiz a obediência ao poder central. A vontade individual sobrepuja a vontade estatal. Isso fica claro no episódio em que Martim de Sá condena Léry à morte. A respeito disso se manifestam João de Sousa, Graned del Galbo, Fortino Albano: “Que poder tem um capitão para dar morte a este homem? Não viemos a estes sertões em serviço do rei, senão em proveito próprio, e o capitão não é mais que um bastardo do governador”. (Knivet, op. Cit., p. 237). 49 Cremos que esse comportamento é semelhante à percepção que aconteceu na guerra dos emboabas. A consciência ocorre porque no contato com o holandês durante a expulsão de Pernambuco, o colono percebe que há interesses regendo a invasão e que estes interesses não são diferentes dos motivos porque os portugueses ocuparam a terra. Aqui, o processo é o inverso, e não podemos falar ainda em consciência, mas tão somente uma percepção: na visão do estrangeiro, os colonos não se diferenciam do indígena porque todos fazem parte de um espaço em que tudo e todos são explorados para atender aos interesses da Coroa a que pertencem. O colono se torna sem identidade, ou quando muito assume a identidade do índio, porque dentro do lado colonial, não interessa saber quem é quem, mas que todos sejam dominados. 104 tem em relação ao português, para depois perceber que o português daqui é diferente do de lá. Por isso fizemos a discriminação da diferença em três níveis. Para o “estrangeiro” , os portugueses daqui, pelo contato com o gentio, tornam-se muito próximos destes; os portugueses recémchegados da Europa são mais próximos destes “estrangeiros” que relatam as viagens. Antes de analisar como a documentação “estrangeira” manifesta as percepções de diferença dentro do Antigo Sistema Colonial, comentemos algumas passagens dos regimentos50 porque é nestes que mais se mostra o fenômeno da centralização de poder e formação dos Estados Absolutos. A visão que se depreende dos Regimentos é a visão do Estado português seiscentista e seus projetos para a colonização. Não há aqui percepção de diferença, mas uma imposição dos interesses do Estado sobre a colônia. Ainda nos regimentos, outras relações que são mostradas são as relações entre Estado e Igreja e entre o Estado e seus súditos. Transplantadas da metrópole para a colônia, estas relações entre o Estado e seus oficiais, Estado e Igreja, Estado e seus súditos, têm de se adaptar. É nesse processo de adaptação que muitas vezes nasce a diferença. Durante o processo de formação dos Estados Absolutistas, o rei concentra em sua pessoa três poderes, retirando-os das instituições que antes os detinham: o poder judiciário, o poder fiscal e o poder militar. Ao usurpá-los, tenta estabelecer um equilíbrio entre a nobreza, a burguesia e a Igreja, cujos interesses caminham muitas vezes em direções opostas. Na verdade, o Estado absolutista se alimenta do próprio conflito que engendra entre essas classes, o que acaba por enfraquecê-las, facilitando o seu controle sobre elas. Quando um novo território é incorporado aos domínios deste Estado Absolutista, as classes que aí surgem entram também para a mesma política de equilíbrio deste Estado. Na documentação “estrangeira” exposta no capítulo primeiro, pudemos ter uma ilustração das relações de rivalidade que um Estado trava com o outro. O embate de uns contra os outros é fundamental para a acumulação de poder. Com a expansão marítima, resultado da centralização, outros tipos de relações e conflitos são trazidos para dentro do Estado. Estas relações são, na verdade, as mesmas que se processam em nível nacional, mas ampliadas agora para a colônia. Ao serem ampliadas para a colônia, os domínios aos quais tais relações pertencem, quer seja o político, o religioso, o administrativo, o econômico, não somente aumentam, mas sofrem modificações. Não somente apresentam continuidade, mas rupturas. A ruptura se percebe quando 50 Enquadrados da documentação oficial. 105 comparamos as esferas que pertencem aos domínios da metrópole com suas análogas nas colônias. Ela é uma ampliação e uma continuidade do projeto, mas na prática é uma mudança e uma ruptura. Um exemplo é a própria centralização de poder do Estado. Na colônia, ela se manifesta espacialmente pela forma como os núcleos de povoamento estão distribuídos. A esse respeito, é bastante ilustrativa a comparação de Frei Vicente do Salvador entre os colonos e os caranguejos, tão pregados à costa ficam51. Essa mesma centralização, em torno do poder real é mostrada no “Instrumento de Serviços” de Mem de Sá, quando observa a organização das fazendas em torno das cidades, centros militares e administrativos, nos primeiros séculos de colonização: “Achei toda a terra de guerra sem os homens ousarem fazer suas fazendas senão ao redor da cidade pelo que vivam apertados e necessitados por não terem peças e descontentes da terra”.52 Mas não há somente centralização de poder, como também seu oposto, a dispersão. A dispersão dos núcleos enfraquece o controle do Estado português sobre a colônia, abrindo brechas para a ação do poder local: “e porque se segue muito prejuízo de as fazendas e povoações deles se fazerem longe das vilas de que ande ser favorecidos e ajudados quando desse houver necessidade, ordenareis que daqui em diante se façam mais perto das vilas que puder ser e aos que vos parecer que estão longe, ordenareis que se fortifiquem de maneira que se possam defender quando cumprir”.53 Aqui reside a ruptura em relação ao projeto metropolitano. Parece ser uma ambigüidade essa centralização coeva à dispersão, ambigüidade essa, que se faz presente em todas as esferas sociais e não somente a política. Isso acontece porque a própria colonização é ao mesmo tempo continuidade e ruptura: ao mesmo tempo reproduz a metrópole e cria algo novo. O governo geral, instalado na colônia portuguesa em 1549, tendo como governador geral Tomé de Sousa, é uma tentativa de centralizar o poder em nível colonial, facilitando o controle da metrópole sobre a colônia. A despeito das tentativas de centralização, o fato de ser uma colônia muito grande, impede o controle total da metrópole sobre o seu domínio e o poder local acaba 51 “Da largura que a terra do Brasil tem para o sertão não trato, porque até agora não houve quem a andasse por negligência dos portugueses, que, sendo grandes conquistadores de terras, não se aproveitam delas, mas contentamse de as andar arranhando ao longo do mar como caranguejos”. (Frei Vicente do Salvador, Op. Cit., p. 19). 52 Wanderley Pinho, “Testamento de Mem de Sá”. RIGHB, V.3, 1941, pp. 3-161. A esse respeito vide também Stuart Schwartz. Segredos internos : engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 238. Schwartz diz que a vida urbana na Bahia tem presença marcante até meados do século XVII, quando o meio rural começa a tomar importância em razão da expansão da zona açucareira. Alguns dos proprietários de terra abastados que mantinham residência em Salvador, e uma participação ativa na vida urbana, passam a residir no campo, embora muitos deles delegassem a administração do engenho a algum feitor ou agente. (Schwartz, op. Cit., p. 238). 53 “Primeiro Regimento que levou Tomé de Sousa governador do Brasil”. RIHGB, 1898, T. XI, p. 58. 106 substituindo o central na resolução de muitas contendas. 54 Na documentação oficial, essa dificuldade de controle aparece nas inversões entre poder local e poder geral, entre o privado e o público, entre o senhor de engenho e o rei. Pois não dissera Frei Vicente do Salvador “verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa”?55 E a respeito das tentativas frustradas do Estado em constituir armazéns públicos: “E quando algumas das ditas se queiram prover das ditas cousas ou de algumas delas, hei por bem que vós lh’as façais dos meus armazéns, havendo-as e n’eles, pelos ofícios que se achar que me custam lá postas”.56 A dificuldade em centralizar o poder na colônia, além do fator extensão territorial, deve-se também ao fato de as esferas pública e privada estarem imbricadas nesse período de transição entre o feudalismo e o capitalismo. Com a criação do governo geral externaliza-se um conflito que até então tinha ficado em estado de latência: o conflito entre o Estado português e os principais da colônia. Isso fica bastante claro por algumas das cartas de Duarte Coelho, que reclamam o fim dos privilégios concedidos no foral de doação da capitania (1534) por ocasião da criação do governo geral em 1548.57 Parte desse conflito é às diferenças que o Estado faz entre os nobres do reino e os fidalgos da colônia. Essa insatisfação não a tem somente Duarte Coelho, mas muitos dos funcionários da Coroa58 também reclamam que não estar sendo devidamente recompensados por seus serviços.59 54 Isso até mesmo se manifesta pelo contato e conhecimento do índio. Muitas figuras adquiriram grande poder local, justamente pela estabilidade que conseguiram dar aos primeiros núcleos de povoamento ao adquirirem respeito tanto frente ao gentio quanto frente ao colono. Os grandes patriarcas são a mais profunda expressão desse forte localismo. João Ramalho, Jerônimo de Albuquerque, Duarte Coelho são exemplos disso: “(...) o que o dito Jerônimo de Albuquerque por ser pessoa tão conhecida entre todos os índios desta costa mui amado e desejado deles poderia alteá-los a fazerem pazes conosco o que lhe não seria mui dificultoso assim por seu respeito como pelo dos nossos índios amigos (...)”. (“Regimento dado pelo governador Gaspar de Moura A Jerônimo de Albuquerque”. In Documentos para a História do Brasil e principalmente do Ceará (1608-1625). RIHGB, vol. 1. Fortaleza, Tipografia Studart, 1904, p. 95). 55 Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. 17. 56 “Regimento dado a Antônio Cardozo de Barros” (1548). RIHGB, 1896, t. XVIII, p. 181. 57 Cartas de Duarte Coelho a el-rei D. Manuel. Ed. José Antônio Gonsalves de Melo e Cleonir Xavier de Albuquerque. Recife, Imprensa Universitária, 1967, p. 11. 58 O quadro de funcionários especializados nos serviços da Coroa surge também durante a formação dos Estados nacionais absolutistas, O Estado absoluto forma consigo uma burocracia especializada nos serviços administrativos. Isso se deve à necessidade de organizar tanto as receitas de ordem fiscal, quanto as de ordem estritamente econômicas, oriundas da acumulação primitiva de capital. Essa burocracia também se estende aos domínios coloniais, à medida em que as conquistas vão se fazendo. Ao quadro administrativo burocrático se associa, segundo Weber, uma “(...) qualificação profissional. Normalmente, portanto, só estão qualificados à participação no quadro administrativo de uma associação os que podem comprovar uma especialização profissional, e só estes podem ser aceitos como funcionários”. (Max Weber. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.Trad. de Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Revisão técnica de Gabriel Cohn. 3a edição. Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1994, p. 143) 107 Esse é um conflito entre a nobreza metropolitana e a classe dominante na colônia e que se expressa pela dose de menosprezo dessa mesma nobreza em relação aos fidalgos que se tornam capitães donatários e colonizadores. A nobreza tradicional se nega a igualar em status à nobreza colonial. Esta, por outro lado, pretende adquirir os mesmos títulos, embora por meios diferentes. Com a expansão marítima, a aventura por mares desconhecidos torna-se um dos meios para a conquista de honrarias. Com a conquista da América, a aventura, primeiro a da conquista e depois a da colonização, também se configuram em outros meios. No entanto, o fim continua a ser o mesmo da nobreza metropolitana: o reconhecimento estatal e a percepção de privilégios e honras. Este ritual tem raízes nas relações vassálicas da Idade Média e das Cruzadas e que se preserva na forma de tradição. Com a implantação da empresa colonizadora, o lucro mercantil, associado à aventura do empreendimento, passa a ser o meio para se conseguir esse reconhecimento. O fim é político e social, mas o meio é econômico. A aventura vai, aos poucos, cedendo lugar à rotina, à medida em que se constitui a base material organizada em torno do engenho, mas ainda aqui a mentalidade senhorial é cultuada. No entanto, ao lado de alguns de seus mais fortes valores, como o ócio, começam a aparecer outros aparentemente contraditórios, como o esforço oriundo do trabalho na terra, claro que feito por escravos, mas organizado por essa aristocracia colonial60. Essa sutil mudança de mentalidade é conseqüência da mudança de interesses frente à terra: a colonização substitui a conquista e aos poucos o colonizador vai cedendo lugar ao colono, embora não deixe de existir.61 A cada nova vinda de portugueses, esse grupo é renovado, e conseqüentemente, a contraposição entre colono e reinol, expressa pela oposição exploração/construção, também vai sendo reciclada. Vê-se que essas categorias não são fixas, mas envolvem permanentes movimentos populacionais em sua renovação. Diferenças de opiniões 59 “Vinte de agosto de 1614. Carta de Gaspar de Sousa a el-rei queixando-se de ser tratado de modo diverso do que merece por seus serviços e procedimentos”. (“Carta de Gaspar de Sousa a el-rei”. In Documentos para a História do Brasil e especialmente a do Ceará. (1614). RIHGB, vol. 1. Fortaleza, tipografia Studart, 1904, vol. 1, p. 102). 60 No culto ao trabalho existe uma continuidade material em relação à metrópole e uma descontinuidade em relação aos antigos valores cultivados pela nobreza decadente da qual brota estes primeiros aventureiros que para cá vieram: “Quanto, Senhor, a esta Nova Lusitânia, posto que com muito trabalho e assaz fadiga, tanta quanta o Senhor sabe, a cousa está bem principiada.” (Cartas de Duarte Coelho ... Op. Cit., p. 87) 61 “O propósito de fundar colônia de plantação, com a transmigração e fixação de um grupo de portugueses em terras tropicais, o convívio com os nativos da terra colonizada, a intenção de estabelecer uma sociedade baseada na justiça e na qual os interesses dos povoadores prevalecessem sobre os dos armadores e mercenários, são alguns dos aspectos daquele esforço, bem documentados na correspondência de Duarte Coelho”. (Gonsalves de Melo. Introdução a Cartas de Duarte Coelho..., op. Cit., p. 9). 108 surgem entre um grupo e outro em decorrência de posturas diferentes frente à terra. Opiniões por exemplo a respeito do que seria um legítimo morador da terra.62 Uma outra implicação da centralização de poder durante o processo de formação dos Estados absolutos é que a Igreja passa a ser subordinada ao Estado. A Igreja transforma-se em uma Igreja de Estado, e inclusive torna-se um poderoso instrumento na montagem do sistema colonial, em especial pela ideologia que o catolicismo reformado oferece à colonização.63 Da mesma forma como acontece com os espaços público e privado, as esferas religiosa e política se encontram imbricadas. Se na Idade Média, a religião organizava o modo de vida e dava coesão à sociedade feudal, nessa sociedade de transição rumo ao capitalismo, a política do Estado Absoluto é o que dá sentido às demais instâncias. É do movimento destas que depende sua dinâmica. O Estado precisa tanto da Igreja, como do mercantilismo para alimentar o seu poder. Essa imbricação entre as esferas política e religiosa de que falamos pode ser vista, por exemplo, pela confusão entre o crime e o pecado nesta época. 64 Na sociedade colonial, essa indefinição entre o sagrado e o profano se acentua. É comum a confusão entre transgressão civil e culpa. Em outros casos, membros da hierarquia religiosa utilizam alguns instrumentos que têm à mão para se livrarem de alguns problemas no secular: “porque, se o bispo presume que algum homem testemunhou alguma coisa no secular contra ele, na confissão lhe perguntam os seus clérigos por isso e ainda que chegam que testemunharam verdade ou que não foram nisso, não os querem 62 Os funcionários utilizam a definição formal, que está no “Regimento dos provedores da fazenda Real, redigido quando na criação do governo geral em 1548”, que definia o morador ou o povoador, somente enquanto detentor de uma sesmaria doada pela Coroa. Duarte Coelho, de uma maneira análoga à figura de Brandônio associa o morador à figura do povoador, definindo-o não como aquele que possui, mas aquele que reside, constitui família e contribui para o bem estar material da colônia: “A esses tais não os queriam reconhecer por ‘moradores e povoadores’ contra o que protesta Duarte Coelho, alegando que a ele e não aos funcionários da Coroa cabia decidir se eram ou não moradores e povoadores ‘querem aí entender por moradores e povoadores o que eles querem, e não os que eu aqui por minha ordem e por meu trabalho e indústria, ando adquirindo para a terra e mando assentar no livro da matrícula e tombos das terras todos aqueles que são moradores e povoadores’”. (Idem, p. 12). 63 Fé e poder político andam juntos: “para exalçamento de nossa santa fé e proveito de meus reinos e senhorios e dos naturais deles”. (“Primeiro Regimento que levou Tomé de Sousa governador do Brasil”. RIHGB, 1898, T. LXI, , p. 39). 64 O processo de separação entre crime e pecado somente se concluirá nos séculos XVIII/XIX, quando o pecado fica restrito à esfera religiosa e o crime restrito à esfera jurídica. O pecado é uma violação, consciente, ou não, de alguns princípios religiosos. O crime, uma violação da liberdade civil. A punição da alma é diferente da punição do corpo, o que ainda não se via quando o pecado era idêntico ao crime. Punia-se a alma e o corpo pelo suplício e o espetáculo visual deste era fundamental para a correção moral. Neste momento situamos num eixo intermediário entre crime e pecado; entre o suplício e a prisão: “Mas a relação castigo-corpo não é idêntica ao que ela era nos suplícios. O corpo encontra-se aí em posição de instrumento ou de intermediário: qualquer intervenção sobre ele pelo enclausuramento, pelo trabalho obrigatório visa privar o indivíduo de sua liberdade considerada ao mesmo tempo como um direito e como um bem”. (Michel Foucault. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 16). 109 absolver nem dar comunhão”.65 O bispo usa a confissão como forma de punir àquele que o prejudicou e o ameaça a não receber um dos sacramentos da Igreja. Em razão da perda de poder ao temporal e de sua sujeição ao estado, a Igreja passa a se utilizar de seus meios para não ser punida pela lei secular. Secular e religioso estão em processo de separação, mas como se vê, tanto na metrópole, como na colônia, os domínios ainda se interseccionam. 66 Se muitas vezes a instância religiosa caminha em sentido oposto à política, há momentos em que caminham no mesmo sentido. Essa hesitação se dá em razão do próprio fato das esferas ainda não estarem separadas. Um dos exemplos em que essa harmonia se dá, é pela função corretora que a colônia tem dentro do Sistema Colonial. O degredo não serve somente para povoar a terra, mas também corrigir as almas e os corpos desvirtuados.67 E não somente nos planos religioso-moral e político-jurídico, a colônia exerce essa função corretora. Também no econômico porque a colônia funciona como solução para a pobreza do reino e de seus habitantes. Isso é a contrapartida da dominação efetuada nos planos político, econômico e religioso: um espaço onde as instâncias não somente possam se completar, mas também possam se expandir, conquistando riqueza, poder e fiéis. A esse respeito, o casamento parece ser uma instituição que soluciona estes três problemas e funde as intenções provenientes das diferentes instâncias: a política, a religiosa e a econômica. O casamento segue a lei dos homens e de Deus e além de fundamentar uma família, serve como instrumento para ampliar o povoamento no território conquistado, assegurando o domínio do Estado e da Igreja. O casamento e a constituição de uma família servem para que a colônia ganhe estabilidade moral, política e econômica, ao mesmo tempo em que livra a metrópole das instabilidades nestas três instâncias. Daí o fato de ser um tema recorrente na documentação oficial, Inquisitorial, jesuítica e nos Tratados. 65 “Carta de 20/05/1551 de Duarte da Costa a el-rei D. João III”. In RIHGB, 1886, vol. 1, p. 575. São bastante conhecidas as disputas que se travam neste sentido entre o governador Duarte da Costa, que vem para a o “Brasil” em 1553 e o bispo D. Pero Fernandes Sardinha: “Não ignora quem estuda a nossa história, as desavenças havidas entre D. Duarte da Costa, segundo governador do Brasil de uma parte, e o primeiro bispo do Salvador D. Pedro Fernandes Sardinha e o provedor-mór da fazenda Antônio Cardozo de barros, de outra. Dentre as cartas (...) aviltam as em que o governador e o prelado se acusam reciprocamente perante a corte de Lisboa. Elas poderão trazer alguma luz à questão que entre a autoridade civil e a eclesiástica se estabelecera, causando não pouco alvoroço entre os ânimos dos habitantes da nascente colônia (...)”. “Documentos Históricos Extraídos da Torre do Tombo”. In RIHGB, 1886, vol. 1, p. 554. 67 O degredo é visto de forma positiva pela metrópole, mas de forma negativa pela colônia: “(...) e como é pouco serviço de Deus e de Vossa Alteza e do bem e aumento desta Nova Lusitânia, mandar para aqui tais degredados (...) Porque certifico a Vossa Alteza e lhe juro pela hora da morte que nenhum fruto nem bem fazem na terra, mas muito mal e dano, e por sua causa se fazem cada dia males”. (Cartas de Duarte Coelho..., op. Cit., p. 89) 66 110 A imagem da colônia como purgatório coexiste com a imagem da colônia como um inferno.68 Não nos diria frei Vicente que essa terra foi a terra em que o diabo conseguiu vencer? Vence pela corrupção moral e política decorrente da cobiça que movimenta os homens para a mercancia: “Porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens, receando perder o muito que tinha em os desta terra, trabalhou que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado de cor abrasada e vermelha com que tingem panos, que o daquele divino pau, que deu tinta e virtude a todos os sacramentos da Igreja, e sobre que ela foi edificada e ficou tão firma e bem fundada como sabemos. E por ventura por isto, ainda que ao nome de Brasil ajuntaram o de estado e lhe chamam estado do Brasil, ficou ele tão pouco estável que, com não haver hoje cem anos, quando isto escrevo, que se começou a povoar, já se hão despovoados alguns lugares e, sendo a terra tão grande e fértil como ao diante veremos, nem por isso vai em seu aumento, antes em diminuição.”69 Parece ser contraditório que uma terra que serviria para a purgação nestes três planos, acabe produzindo o seu contrário: a corrupção. Aqui, mais uma vez continuidade convive com ruptura. Indecisa entre a esfera política e a religiosa, situa-se a Inquisição, uma instituição que na Idade Moderna torna-se mais um órgão do Estado do que um órgão da Igreja, fato esse que se manifesta também na colônia e se reflete claramente na documentação Inquisitorial selecionada. Em razão do caráter mais flexível da religião colonial, contraposto ao caráter mais rígido do catolicismo reformado, o colono e o Santo Ofício falam linguagens diferentes. Algumas práticas, como a feitiçaria, podem ser heresias aos olhos do reinol, mas são práticas tradicionais70 68 “Lembro também a Vossa Alteza quão necessários são nesta terra os casos do papa para dispensão, porque, como estamos tão desviados dos remédios de Roma e não se pode dela haver recurso sem passarem 3, 4 anos, ficam as almas desta maneira embaraçadas e em muito perigo, como lhe dirá o vigário geral, e das necessidades que viu visitando a costa.” (“Carta do Bispo do Salvador para a Rainha Dona Catarina de 13/09/1560”. In RIHGB, 1886, vol. 1, p. 589). 69 Frei Vicente do Salvador, op. Cit., p. 15. 70 Veja como se mostra o caráter tradicional de certas atitudes na confissão de João Roiz Palha, o que nos leva a questionar o seu caráter pecaminoso dentro do contexto colonial: “o qual encantamento era para os bichos caírem ao gado da maneira seguinte, tomava nove pedras do chão e diziam as palavras seguintes, encanto bisando com o diabo maior e com o menor, e com os outros todos, que aos três dias caíram todos (...) e foi perguntado se entendia ele que nisto avia contrato com o diabo, respondeu que sim (...) e que o fazia por que naquele tempo o viu fazer geralmente a quase todos os pastores daquela terra (...)”. (Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado 111 para o colono. Não é a religião que muda com a condição colonial, mas a religiosidade, e com esta mudança vêm os conflitos inerentes à dificuldade em se entender o outro. O colono não vê culpa ou crime em atos que são considerados heresias na Europa porque estes já fazem parte do seu cotidiano. O colono alega a ignorância para tais atos não porque mente, mas porque realmente não entende o teor da culpa contida neles. Um desses exemplos é o deitar água fora quando alguém morre na casa. Aos olhos do inquisidor, isso é um costume judaico. Mas aos olhos do colono, realmente o seriam?71 Devido a esse caráter “vulgar” da religião torna-se difícil saber se realmente se trata de uma heresia, um retorno às práticas judaizantes, ou se a prática foi incorporada ao folclore colonial, tornando-se uma crença popular. Na verdade, muitas vezes por não saber definir de que heresia ou apostasia se trata, o inquisidor simplesmente qualifica o confessante como “judeu”. Há que se considerar ainda o caráter sincrético da religião colonial que a diferencia da reinol, não porque esta não seja sincrética, já que, segundo Gilberto Freyre, já havia absorvido alguns elementos das culturas judaica e mourisca, mas porque algumas tradições medievais européias, como essa intimidade com os santos, fundem-se com algumas práticas indígenas e africanas. Sônia Siqueira explica o fenômeno da ruptura da religiosidade colonial com a religiosidade ocidental a partir do fenômeno do sincretismo que confere à religião cristã reformada essa maior informalidade, apta a atender as necessidades do dia-a-dia: “O preto foi batizado. Defrontaram-se então o conglomerado fetichista negroafricano e o Catolicismo luso-brasileiro. A uma religião de estrutura relativamente simples, facilmente redutível a objetivações prontas e cômodas, Heitor Furtado de Mendonça – Confissões da Bahia – 1591-1592. Prefácio de Capistrano de Abreu, Rio, F. Briguiet, 1935, p. 121). 71 Anita Novinsky pergunta-se “quem era o cristão-novo baiano” e como este se inseria nos quadros da colônia. A Inquisição, enquanto um tribunal de Estado, também adaptado para servir de instrumento à acumulação de capital comercial, perseguia-nos pelo fato de estarem relacionados ao comércio colonial, mas também para expiarem as acusações: “Os cristãos novos presos entre 1619 e 1644 apresentam um baixo índice de religiosidade judaica, podendo contudo ser caracterizados como elementos dissidentes. (...) Sua vida não percorre um caminho coerente, encontrando-se no seu comportamento as mais contraditórias e paradoxais atitudes. Os processos baianos presos que examinamos mostram-nos que a Inquisição veio buscar na Bahia não o judaizante, mas o cristão-novo. (...) O Santo Ofício da Inquisição, no seu processo perseguidor abarca tanto os ricos mercadores, de cujos bens confiscados necessitava para sustentar seus funcionários e o rico aparato com que se revestia, como os pobres sapateiros de Arrayolos, para justificar perante a sociedade e perante si mesmos a sua existência e os seus valores. Precisava das longas filas de réus nos autos-de-fé como bode expiatório característico – para justificar o miserável estado do Reino português. A inquisição precisava de testemunhos”. (Anita Novinsky. Cristãos novos na Bahia 1624-1654. São Paulo, Perspectiva, Ed. Universidade de São Paulo, 1972, pp. 161/162). Para maiores detalhes, vide os Capítulos “A posição dos Cristãos novos na sociedade Baiana” e “A experiência Inquisitorial na Bahia”. (Novinsky, op. Cit, pp. 57-102 e pp. 103-140, respectivamente). 112 contrapôs-se uma complexa organização religiosa, com um rico aparato de conceitos sutis, difíceis, impossíveis de serem traduzidos em objetivações acessíveis e plásticas. Durante muitos anos, os escravos viam na divindade branca a encarnação de seus orixás e encontraram correspondências entre o hagiológico cristão e o pantheon africano. A transição das idéias e práticas herdadas dos ancestrais para ritos e crenças católicas ficou marcada por estágios intermediários em que coexistiam elementos de ambas as religiões. Finalmente procedeu-se ao ajustamento de ambas as culturas no campo religioso (...) Três culturas diferentes – a ameríndia, a negra e a lusa – passaram a coexistir no Brasil. Três estágios diferentes de crenças e espiritualidades roçavam-se no dia-a-dia dos homens na Colônia. Homens que tinham sua atenção voltada a problemas da subsistência, para os quais canalizavam o melhor de sua disponibilidade para a luta”. 72 Ainda dentro dessa mesma religiosidade, a intimidade entre os homens e os entes sobrenaturais é muito comum. Disse uma denunciante sobre Guiomar de Oliveira que “ela a ensinaria e lhe daria mais quando se fosse para Portugal um vidro que ela tinha em que estava uma coisa que falava e respondia quanto queriam saber e que em certos dias da semana havia de ter cuidado de pôr cebola e vinagre perto do dito vidro porque aquilo que nele estava era amigo deste comer”. 73 Intimidade essa largamente discutida por Gilberto Freyre. 74 O que fica claro nas denunciações da Bahia, é que na colônia, os homens se colocam muito próximos a essas 72 Sônia Aparecida de Siqueira. A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial. São Paulo, Ática, 1978, pp. 43/44. A feitiçaria colonial é um dos exemplos mais claros do sincretismo entre todas essas seitas. Diz Laura de Melo e Souza: “Por um lado, a feitiçaria colonial mostrava-se estreitamente ligada às necessidades iminentes do dia-a-dia, buscando a resolução de problemas concretos. Por outro, aproximava-se muito da religião vivida pela população, as receitas mágicas assumindo com freqüência a forma de orações dirigidas a Deus, a Jesus, aos santos à Virgem”. (Souza, op. Cit., p.16). Também Schwartz é de mesma opinião: “O catolicismo, com efeito acompanha a base espiritual, moral e social da vida no campo. Os conceitos universais da Igreja Católica expressos nos ensinamentos dos jesuítas, e o código de conduta estabelecido pela arquidiocese da Bahia era reconhecidos, mas fundiam-se com um variado conjunto de práticas e crenças populares. O culto dos santos era particularmente importante – são Gonçalo para encontrar um marido, Santa Bárbara para proteger das tempestades, santo Antônio para objetos perdidos – cada qual com poderes determinados. As pessoas temiam o mau-olhado e a feitiçaria, especialmente a praticada por escravo. Os costumes locais eram freqüentemente permitidos, mesmo quando as determinações da arquidiocese os proibiam”. (Schwartz, Segredos Internos..., op. Cit., p. 239). 73 Primeira Visitação, Confissões da Bahia, p. 61. 74 “Os interesses de procriação abafaram não só os preconceitos morais como os escrúpulos católicos de ortodoxia; e ao seu serviço vamos encontrar o cristianismo que, em Portugal, tantas vezes tomou característicos quase pagãos de culto fálico. Os grandes santos nacionais tornaram-se aqueles a quem a imaginação do povo achou de atribuir milagrosa intervenção em aproximar os sexos, em fecundar as mulheres, em proteger a maternidade: Santo Antônio, São João, São Gonçalo do Amarante, São Pedro, o Menino Deus, Nossa Senhora do Ó, da Boa Hora, da Conceição, do Bom Sucesso, do Bom Parto”. (Gilberto Freyre. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro, Record, 1996, p. 246). Um caso que comprova o que Gilberto Freyre diz é o de Fernão Pires: “(...) e que entrando o dito Fernão Pires tirara de um braço ou perna de uma das figuras de Nossa Senhora ou Cristo um pedaço de barro do qual fez uma figura de natura de homem, e que andara com ela pela casa”. (Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Denunciações da Bahia – 1591-1593. Prefácio de Capistrano de Abreu, São Paulo, Ed. Paulo Prado, 1925, p. 265) 113 entidades. Deus tem limites como um homem comum e alguns homens, por suas propriedades heróicas, podem se tornar deuses. O primeiro caso fica claro na delação de Jorge Fernandes, que “disse que Deus não lhe podia fazer tal coisa”75 ou como é muito comum também as pessoas dizerem que “Deus não é Deus”, com isso querendo mostrar os limites da ação divina. O segundo tipo, o dos homens-deuses, funde-se a outros elementos na formação de um imaginário tipicamente “luso-brasileiro”, na acepção de Sérgio Buarque de Holanda e aparece inclusive em Frei Vicente na narração dos feitos heróicos e miraculosos dos primeiros povoadores da terra. Pois não diz Bento Teixeira a respeito de Jerônimo de Albuquerque que “vereis vosso irmão e vós supremo no valor abater Quirino e Remo”?76 Durante a conquista e colonização, alguns dos feitos adquirem contornos mitológicos. Os homens comuns e suas funções seculares se colocam no mesmo pé dos homens de Deus e de suas funções sagradas. Procriar é tão santo quanto o consagrar da hóstia. Daí o fato de o adultério muitas vezes ficar justificado dentro do contexto da colônia. O adultério, que assim como o caso acima, tem uma faceta de crime e pecado, adquire uma dimensão que é exclusiva do Sistema Colonial. Cônjuges e filhos eram deixados do outro lado do Atlântico porque após o enriquecimento havia o objetivo de retornar a Portugal. Não traziam família porque não tinham a intenção de ficar, mas somente explorar. Esse seria o objetivo em uma colônia de exploração enquanto tipo ideal: explorar, enriquecer e voltar. Nas colônias de povoamento, aconteceria o inverso: a família viria unida porque o ideal de reconstrução é mais forte do que o ideal de exploração. Na prática, não é bem assim e o caso do adultério serve para provar essa dissolução dos dois tipos ideais. Nas colônias de exploração, povoa-se para explorar e nas colônias de povoamento, explora-se para povoar. É por esse motivo que a intenção exclusivamente exploratória do português se frustra. Afinal, como poderia uma Nova Lusitânia ser construída sem pessoas que optassem pela fixação na terra? Muitas das denúncias e confissões sobre o adultério dizem respeito a homens ou mulheres que deixaram seus parceiros no Reino e construíram uma nova família na colônia.77 A confusão entre casais no trecho seguinte mostra 75 Op. Cit., p. 252. Bento Teixeira. Prosopopéia. Com. Celso Cunha e Carlos Duval. São Paulo, Melhoramentos; Brasília, INL, 1977, Canto III. 77 “e no fim dos ditos seis meses por ela ter grande aborrecimento ao dito seu marido por ser ele costumado a embebedar-se e ser homem de ruins manhas e lhe dar mau trato lhe fugiu de casa e o deixou na dita cidade de Málaga e se veio fugida com um homem castelhano chamado Francisco de Burgos que a trouxe consigo a este Brasil(...)”. (Primeira Visitação-Confissões da Bahia, p. 63). 76 114 que o adultério não somente significa traição, mas também uma forma de se enfrentar a solidão e a dúvida em ambos os lados do Atlântico: “Os casos de bigamia eram comuns na época, em que os maridos deixavam as mulheres para ir ao Oriente ou ao Brasil a serviço do Império ou a negócio ou aventura, e não davam notícia de si por vários anos. Às vezes a paciente mulher recebia notícia da morte do marido; noutras ocasiões, cansada de esperar, esquecia o viajante e tornava a casar. Caso curioso ocorreu com Antônio da Costa de Almeida e Filipa Barbosa. Aquele casou com a viúva Maria Simões em Lisboa e vieram residir na Paraíba; um dia voltou a Portugal, e ali lhe constou que morrera a mulher, pelo que casou com Filipa Barbosa; esta, por sua vez, era mulher de um certo Manuel Tomás que fôra para a Índia e não dera mais notícias pelo que o consideraram morto. Acontece que nem Maria Simões nem Manoel Tomás eram mortos... Acresce também que Maria Simões descobriu depois que o seu primeiro marido, do qual se dizia viúva era vivo!”.78 Veja que não era intencional a traição, mas, a aquisição de um novo laço matrimonial se devia à dúvida em relação ao marido que fôra para a colônia ou à desistência deste em voltar e a necessidade em se constituir aqui uma nova família. A equiparação entre homens comuns e clérigos, entre homens e deuses tem uma razão de ser quando visto dentro dos acontecimentos da época: a perda de poder da instância sagrada para a secular. Isso acontece em três frentes: perda de poder para a instância política devido à formação dos estados nacionais; perda de poder para a instância econômica devido ao processo de acumulação de capital mercantil; perda do monopólio do conhecimento para uma elite laica devido ao Renascimento cultural. Muitas vezes, as relações com o sagrado aparecem nas confissões na forma de uma transação econômica. Isso se relaciona com a própria natureza da colônia: ter sido moldada a fim de servir de acumulação de capital primitivo na metrópole. Nada mais natural que o pecado aqui se relacionasse de alguma forma com a mercancia, com a negociação, com a base material. Até então, a única forma de pecado de natureza material que se conhecia era a usura. Nesse caso, o pecado era claramente definido como o “dinheiro que gerava dinheiro” por vias escusas ao trabalho. No caso da colônia, como as relações religiosas estão coladas às mercantis, e vice-versa, torna-se difícil definir o que seria um pecado de fundo 78 Gonsalves de Melo. Introdução à Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Confissões de Pernambuco – 1591-1592. J. A. Gonsalves de Melo (Ed.). Recife, Universidade Federal de Pernambuco, 1970. 115 mercantil. Tanto elementos da religião são mercantilizados como certos elementos materiais são sacralizados. Como exemplo desse segundo, a religião dentro da base material, serve-nos a confissão de Ambrósio Peixoto de Carvalho: “e estando fazendo umas contas com Antonio Nunez Reimão mercador, quis o dito mercador que se desse crédito a uns assinados de mestres e feitores de um engenho de açúcar (...) disse sem deliberação que inda que São João Evangelista lhe dissesse o contrário do que se continha no dito caderno lho não creria (...)”. 79 Como exemplo da primeira espécie, ou seja, alguns elementos religiosos são mercantilizados, temos a confissão de Antonio Gomez: “e vindo depois ter as ditas culpas à mão dele confessante as queimou e por isso lhe deram dez cruzados, e isto o negociou com ele o dito Bertolomeu de Vascogoncelos (...)”.80 Culpas e cartas de excomunhão se tornam objeto de venda.81 O capitalismo mercantil nascente ainda não está totalmente circunscrito à esfera econômica. Da mesma forma como acima vimos o imbricamento entre as esferas política e religiosa, aqui vemos a sobreposição entre as esferas econômica e religiosa em sua manifestação na colônia. Os serviços de feitiçaria também são objeto de comércio. 82 Em uma outra denúncia feita na Bahia, a mistura entre mercantilismo e religião no dia-adia colonial aparece claramente na forma como o colono enxerga o açúcar, o principal produto da terra: “Outrossim denunciando disse que Diogo de Monis Barreto lhe disse que Pero Nunes cristão novo rendeiro do engenho Del Rei (...) indo uma vez ao engenho da cidade e vendo-o o açúcar que estava apartado para o dízimo de Deus estar no chão mascavado e preto disse: pois este é o vosso Deus e assim o tratais, chamando Deus ao açúcar”.83 O açúcar é ao mesmo tempo o deus que purga as culpas dos homens e a riqueza que o desvia da virtude: “Os engenhos eram erguidos sob a invocação dos santos, e muitos possuíam capelas. (...) Contudo, a presença de igrejas não era necessariamente um indicador da influência da religião. (...) Os padres que viviam nas áreas açucareiras eram amiúde filhos mais novos de senhores de engenho ou, eles próprios, lavradores de cana e senhores de engenho, tão preocupados com a colheita da cana quanto com a 79 Primeira Visitação, Confissões da Bahia, p. 42. Op. Cit., p. 53. 81 “tirou uma carta de excomunhão sua mulher Antônio Fogaça por muitas peças de escravos do gentio desta terra e outros índios foros que desapareceram de sua casa (...) e depois de a dita excomunhão ser publicada nas freguesias e notória a todos, ele denunciante sabe e vê que Felipa Tavares e mais três sobrinhos seus dela (...) têm, logram e possuem ainda hoje muitos dos ditos escravos e índios”. (Primeira Visitação do Santo Ofício, Denunciações da Bahia, p. 281). 82 Vide confissão de Catharina Frois: “e para isto deu algum dinheiro à dita Maria Gonçalves e a dita Maria lhe dizia que já lhe fazia os tais feitiços pedindo-lhe mais dinheiro (...)”. (Primeira Visitação, Confissões da Bahia, p. 53) 83 Idem, p. 282. 80 116 salvação das almas”.84 E se nessa riqueza mercantil está o princípio de toda a corrupção moral, como atentará Frei Vicente do Salvador, muitas vezes é o diabo que se faz presente nas coisas e não Deus: “outrossim, ouviu dizer que uma mulher que mora no Monte Calvário d’alcunha a mineira também curava pela arte do diabo com ervas”.85 O divino e o demoníaco se alternam para aliviar a sensação vazia a que o desconhecimento das coisas conduz. Mais específica dos domínios da religião, a documentação jesuítica, nos mostra que a consciência da diferença parece se processar num sentido contrário: ou as diferenças são apontadas com o propósito de que sejam anuladas ou elas passam desapercebidas. Há uma consciência da diferença que é peculiar a essa esfera, mas há também um desejo de retorno ao primitivo, ignorando-se muitas vezes as condições impostas pela sociedade colonial, que criam uma diferença estrutural que impede a continuidade do projeto. Essa negação da diferença ou de sua anulação se relaciona com o projeto que a Companhia de Jesus tinha para a América. Uma das funções da Companhia de Jesus dentro do Antigo Sistema Colonial é fornecer uma ideologia da colonização. Como dissemos acima, há um projeto material, cujo objetivo é a exploração e há um projeto espiritual, a catequese dos gentios, que inclusive justifica o projeto anterior. Estes dois projetos, ora se cruzam, ora se afastam, criando ambigüidades decorrentes da indecisão entre explorar ou seguir os preceitos morais ditados pelo catolicismo. Um dos conflitos travados entre esses dois projetos é o referente à mãode-obra. A externalidade da acumulação de capital mercantil exige a compulsão do trabalho, o que na maior parte das vezes significa a escravização do negro ou do indígena. A ambigüidade reside no fato de que se o indígena for escravizado, ele morrerá e não poderá ser convertido. Por outro lado, muitos dos jesuítas pregam a sujeição pela força e até mesmo que o gentio passe por um período de servidão, para que seus ânimos exaltados sejam corrigidos. Esta é uma das tantas ambigüidades em que se incorre quando se tenta seguir os projetos tais como foram arquitetados na metrópole, mas impossíveis de serem seguidos à risca assim que são colocados em prática deste outro lado do Atlântico. O que se presumia era que esses projetos se fundissem, por meio do Estado Absolutista, em um mesmo eixo: o primeiro representando a prática; o segundo, a ideologia. Com o passar do tempo, o projeto da colonização passa a sobrepujar o processo de catequização. A ruptura desse 84 85 Schwartz, Segredos Internos..., op. Cit., p. 240. Primeira Visitação, Confissões da Bahia, p. 319. 117 projeto único é um indício do abalo à teia de equilíbrio em que se assentava o Estado absolutista. Vê-se que a expansão territorial não contém somente o germe do sucesso do Estado Absolutista, mas unida a outros elementos, dentre eles o fortalecimento da burguesia mercantil na metrópole, traz consigo o seu fracasso. Também o fortalecimento do poder local frente ao do Estado é um outro abalo às estruturas desse equilíbrio. E não somente frente ao Estado, como frente à Igreja: “(...) e se não se casavam antes era porque consentiam viver os homens em seus pecados livremente, e por isso nem se curavam tanto de casar, e alguns diziam que não pecavam porque o Arcebispo do Funchal lhes dava licença”.86 Na realidade, em todas as instâncias, processa-se de alguma forma uma independentização do poder local frente ao geral. Também se deve levar em consideração a extensão da colônia e a dificuldade em controla-la, mas a crise também se deve a fatores sociais, e não somente geográficos. 87 Estamos ainda nos domínios da passagem do século XVI para o XVII. A crise definitiva do Estado Absolutista só acontece, em definitivo, na passagem do XVIII para o XIX, embora fundamento seja o mesmo: o abalo do equilíbrio sobre o qual está assentado esse Estado. E como vimos acima, as cisões não se restringem ao plano político. No plano da religião, a religiosidade na colônia começa a cindir com a religiosidade ocidental, adquirindo um caráter popular. Todas essas mudanças que ocorrem tanto na metrópole como na colônia são partes de um mesmo processo: o avanço do capitalismo mercantil, que tem reflexos na política, na religião, na mentalidade. Dentro do sistema colonial, as funções diferenciadas entre metrópole e colônia provocam também diferenciações nestes planos que são percebidas de formas diferentes pelos diferentes estratos da sociedade. O caráter popular da religião colonial é a solução que a própria sociedade encontra para minorar os conflitos decorrentes da colonização. Em uma sociedade em que o próximo passo pode ser para o abismo, nada mais seguro do que ter uma religiosidade que o acompanhe no dia-a-dia. Como as esferas religiosa e econômica ainda se encontram fortemente imbricadas - como aliás acontece com todas as instâncias - acontece uma sacralização do econômico e uma mercantilização do sagrado. Essa “secularização do sagrado” que culmina em uma nova religiosidade na colônia adquire assim um 86 “Carta do Pe. Manoel da Nóbrega”. sd. RIHGB, ? , 1840, t2, 3a ed. Rio de Janeiro, Imp. Nacional, 1916, p. 288. Também a Inquisição encontra sérias dificuldades para atuar na colônia em razão de sua extensão. A esse respeito, vejamos o que disse Salvador da Maia: “e que se aqui viesse a Santa Inquisição que não haveria de durar muito”? (Primeira Visitação do Santo Ofício, Denunciações da Bahia, p. 464). A respeito do tamanho da terra, diz ainda o padre Vicente Rodrigues: “(...) vinde nos ajudar que somos poucos e a terra grande, e os demônios muitos, a caridade mui pouca. Vinde mui cheios dela e nela trazeis toda a livraria do colégio; mais acaba esta que todos os meios humanos”. (Cartas Avulsas: 1550-1568- Azpilcueta Navarro e outros. In Cartas Jesuíticas, vol. 2. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1998, p. 140). 87 118 traço fundamental: a forte analogia com algumas relações econômicas. Isso acontece em razão das condições peculiares em que a colônia surge: servir como instrumento de acumulação capitalista na metrópole. E isso se reflete sobre as pessoas: “Porque esta gente do Brasil não tem mais conta que com os seus engenhos e ter fazenda”.88 Até mesmo os castigos vão deixando de ser morais para se tornarem mercantis e os jesuítas têm de aderir a esta tendência porque a culpa parece começar a “pesar mais no bolso do que na consciência”: “E a confraria era desta maneira: que todo o que jurasse por Deus ou pelos evangelhos se ele mesmo se fosse acusar, pagasse dois réis: mas se não acusasse e o outro o acusasse, pagasse dobrado, os que jurassem outras juras, assim como pelos santos ou por outras criaturas de Deus, pagassem um real”.89 Um dos pontos de fissura com o projeto utópico90 se dá em razão da adesão do religioso a esse processo, tanto no que concerne aos dogmas, quanto a valores, quanto à sua hierarquia religiosa, o que se configura na diferenciação clara entre metrópole e colônia, segundo a óptica jesuítica: “Os clérigos d’esta terra têm mais ofício de demônios que de clérigos, porque além de seu mau exemplo e costumes, querem contrariar a doutrina de Cristo, e dizem publicamente aos homens que lhes é lícito estar em pecado com suas negras, pois que são suas escravas, e que podem ter os salteados, pois que são seus cães e outras coisas semelhantes, por escusar seus pecados e abominações. De maneira que nenhum demônio temos agora que nos persiga, senão estes. Querem-nos mal porque lhes somos contrários a seus maus costumes e não podem sofrer que digamos as missas de graça em detrimento de seus interesses.”91 88 Op. Cit., p. 212. Também a hierarquia religiosa é contaminada pelos vis interesses seculares: “(...) porque os clérigos e também os leigos ministros de Satanás que ao princípio a esta terra vieram, lhes pregavam e falavam por interesse de seus abomináveis resgates”. (Idem, p. 102) 89 Antônio Gonçalves, “Carta de Porto seguro (1566)”. In Cartas Avulsas..., p. 500. Cria-se até mesmo uma Confraria, forma encontrada pelos jesuítas para corrigir os desvios na colônia por meio de uma punição material. Se o valores mercantis também têm de ser levados em consideração pela ética, em razão daexpansão do capitalismo mercantil no mundo e na sociedade, nada melhor do que encontrar meios mercantis para corrigir as faltas morais: “Não é também pequena a emenda e correção em extirpar os outros vícios. Para evitar os juramentos foi instituída uma Confraria de Caridade: os que desejam entrar nela, se se acusam espontaneamente no caso de jurarem, pagam certa quantia para o casamento de alguma órfã; se porém são acusados por outro, pagam o dobro. Deste modo, só rarissimamente se pronuncia com irreverência o nome de Deus.” (José de Anchieta. Cartas-Correspondência Ativa e Passiva. 2a ed. Pesquisa, introdução e notas de Hélio Abranches Viotti. São Paulo, Edições Loyola, 1984, p.44) 90 Literalmente isolados, tanto espacialmente falando, quanto socialmente (a respeito disso, vide capítulo primeiro): “(...) e por isto digo que quanto mais longe estivermos dos velhos cristãos que aqui vivem, maior fruto se fará”. (Manoel da Nóbrega. Cartas do Brasil (1549-1560). Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1988, p. 108). 91 “Carta do Padre Manoel da Nóbrega, mandada da mesma capitania de Pernambuco, o ano de 1551”, In RIHGB, 1865, t 4, 2a ed, p. 106. 119 Sônia Siqueira diz o mesmo a respeito da Inquisição. A esse movimento mais geral de diferenciação que abrange tanto o tribunal da Santa Inquisição, como as hierarquias eclesiásticas, Sônia Siqueira chama tropicalização de consciências: “O Tribunal de Fé, pelo menos por duas vezes neste fim do século XVI e início do XVII, visitou o Brasil, alarmado talvez pela tropicalização das consciências. Os oficiais da Inquisição teoricamente pelo menos deviam estar descomprometidos com o meio, colocados acima das hierarquias civis e religiosas. Esperava-se, portanto, desses homens que aqui vinham inspecionar, procedimentos lúcidos. Não se demorariam o suficiente para serem também amoldados pela esfera social”.92 Também os métodos de catequização e propagação da doutrina se adaptam a esse processo de mercantilização. Se na documentação Inquisitorial, a doutrina ficava comprometida pela religiosidade popular que incluía feitiços, juramentos em vão, brincadeiras com o sagrado, aqui, embora a doutrina permaneça intacta, graças ao rigor com que a tratam os membros da Cia. de Jesus, seus instrumentos de propagação se alteram porque ela tem de ser traduzida para os índios de uma forma que estes possam entendê-la. O uso de um língua que intermedeie a confissão entre o padre, que na maior parte das vezes não fala o brasil, e o confesso, quebra com o segredo de confessionário: “Com esta mulher confesso algumas índias cristãs, e creio que é melhor confessora que eu porque é muito virtuosa”.93 O uso da mitologia indígena para se fazer entender também é, de certa forma, uma quebra com a religiosidade. Até mesmo o direito canônico é posto em evidência: “(...) há costumes nestas partes de se permitirem os gentios nas igrejas, à missa conjuntamente com os cristãos, e não cristãos, e não os deitam fora por os não escandalizar se se guardará o direito antigo ou se se permitirá estarem todos em mistura”.94 Os índios não são hereges como mouros e, portanto, podem receber a doutrina. O problema é que não a entendem. A mesma ruptura com relação à religiosidade ocidental que foi vista na documentação Inquisitorial, é aqui reforçada. A adaptação da instância religiosa frente às transformações econômicas se mostra também no problema da mão-de-obra. A necessidade de mão-de-obra para a lavoura nos primeiros séculos de ocupação da terra, fez com que os padres criassem o conceito de “guerra justa”, apropriado dos próprios índios que guerreavam uns contra os outros e justificavam a vingança por tal conceito. Cria-se uma zona de possibilidade de escravização do indígena, se este for 92 Siqueira, op. Cit., p. 55. Nóbrega, Cartas do Brasil..., p. 150. 94 Cartas Avulsas..., p. 142. 93 120 aprisionado em guerra justa. Mais uma tentativa de conciliação entre os dois projetos.95 Percebamos que ao mesmo tempo em que uma esfera se impõe sobre a outra, provocando rupturas, novas alternativas são criadas para a minoração de conflitos, retornando-se ao projeto original. Continuidade e complementaridade; ruptura e isolamento convivem num mesmo espaço Continuidade no que concerne aos espaços diferentes: entre metrópole e colônia. Complementaridade no que concerne aos diversos projetos convivendo em um mesmo espaço: entre catequização e colonização, por exemplo. Os diferentes embates entre os projetos na busca pela complementaridade, pelo isolamento, ou pela dominação em relação a outro projeto é précondição para a ruptura em relação à metrópole, e portanto, para a diferenciação. É natural que a imposição do poder secular sobre o religioso gere conflitos permanentes entre uma esfera e outra. A prova mais cabal disso é o testamento que Mem de Sá deixa para sua filha Felipa de Sá, com obrigação de que esta desse um quinhão para o colégio de jesuítas e outro para a Santa Casa de Misericórdia. Cria-se uma verdadeira batalha entre os jesuítas e a Santa Casa que acaba rebatendo sobre a disciplina jesuíta. A esse respeito comenta Wanderley Pinho: “Bem viam os padres da Cia quanto por isso se desprestigiariam, e sentiam por essa luta pública afrouxar-se-lhes a disciplina”.96 As contendas temporais em que se engendram é mais um motivo de diferenciação interna à própria Companhia de Jesus. No entanto, a despeito de uma clara sobreposição do secular sobre o religioso, surgem as contradições decorrentes do fato de não existir uma separação definida entre ambos. Muitas vezes inverte-se o movimento e nos vácuos onde o temporal não consegue atuar, entra a religião: “As outras ficam sob jurisdição do bispo. Este se mostra afeiçoado e zeloso da conversão dos índios e acode por eles muitas vezes onde falta a justiça secular por serem pessoas miseráveis e têm particular necessidade do braço eclesiástico”.97 Isso também se dá em decorrência da própria insuficiência da atuação das instituições jurídicas na colônia. Quanto aos fenômenos relacionados ao Renascimento Cultural e às suas manifestações no novo mundo, o primeiro ponto importante se refere ao emprego da razão na explicação de alguns 95 Na medida em que se consolida a produção voltada para o mercado externo, a visão paradisíaca do indígena vai cedendo lugar à visão deste enquanto mão-de-obra. Novamente, na tentativa de se conciliar os dois projetos, surge o conceito de guerra justa: “Na América portuguesa, a visão paradisíaca do indígena, característica dos primeiros contatos e cuja expressão mais provável é a carta famosa do escrivão da armada descobridora, Pero Vaz de Caminha, foi logo abandonada quando se iniciou a valorização econômica através da implantação da economia açucareira; ela cede lugar à ‘guerra justa’e outras formas de preação do braço ameríndio para o trabalho compulsório da instalação da grande lavoura”. (Novais, “O Brasil nos quadros...”, op. Cit., p. 60). 96 Wanderley Pinho. “Testamento de Mem de Sá”. RIHGB, 1941, v.3, p. 22. 121 fenômenos que antes tinham explicação estritamente sobrenatural. Nos Diálogos aparecem alguns indícios disso por meio da importância dada à experiência, que é o meio pelo qual se expressa a razão nesta época. Neste contexto, ciência é sinônimo de experiência. É somente no século XVIII, o Século das Luzes, que a experiência se torna um instrumento para se chegar à ciência e as explicações se desprendem de seu conteúdo religioso para se tornarem puramente racionais. Os fenômenos passam a ser contidos em si mesmos, explicáveis abstratamente por suas propriedades intrínsecas. Natureza se separa totalmente de sobrenatureza. No século XVI, no entanto, a despeito de algumas explicações começarem a ser fundamentadas na experiência, os fenômenos inexplicáveis continuam a pertencer ao âmbito do sagrado. O forte crédito dado aos milagres é um exemplo da força da explicação espiritual dentro da sociedade seiscentista. Na colônia não é diferente.98 Com as aventuras marítimas, a experiência passa a servir não somente para explicar as coisas, mas para enriquecer mitos. Alguns deles, como o do Paraíso Terreal, adquirem uma faceta ao mesmo tempo secular, ao mesmo tempo religiosa; ao mesmo tempo profana, ao mesmo tempo sagrada. Essa parte profana tanto advém de elementos resgatados da Antigüidade Clássica como das experiências dos aventureiros e conquistadores. Na América, o Paraíso não é somente uma dádiva, mas se torna também uma construção. O mito do Paraíso se torna um mito dinâmico. O movimento de sua modificação é o mesmo movimento da percepção da diferença: vai da natureza para a sociedade. Primeiro ele é projetado totalmente sobre a terra e sobre o gentio. Depois, conforme se avança o projeto colonizador, ele passa a se identificar com o projeto de reconstrução da metrópole. A toponímia expressa esse desejo de reprodução: Nova Inglaterra, França Antártica, Nova Lusitânia: “Quanto, Senhor, a esta Nova Lusitânia, posto que com muito trabalho e com assaz fadiga, tanta quanta o Senhor Deus sabe, a cousa está bem principiada”.99 É muito corrente na historiografia dizer-se que o ideal de reconstrução só existe nas colônias da América anglo-saxã em razão de que as famílias que para cá vêm são perseguidas religiosamente e todo o futuro que têm está nesta terra. Por isso povoam ao invés de explorar. Na verdade, colônia de povoamento e colônia de exploração são tipos ideais. Na prática, acontecem diversas 97 Manoel da Nóbrega. “Informação do Brasil e de suas capitanias”. RIHGB, 1865, t. VI, 2a ed., p. 420. Os milagres já residem na própria natureza paradisíaca da terra que produz tudo com abundância: “(...) e basta para o fazerem assentarem-se os índios, que vão nelas, no bordo que pretendem que se incline; e em outros tempos a arrumam contra a vazante da mesma maneira; e estando assim inclinadas por espaço de duas horas, sem mais outro beneficio, se enchem de peixe excelentíssimo, que por si salta nelas”. (Diálogos..., op. Cit., p. 23). 99 Cartas de Duarte Coelho..., p. 87. 98 122 combinações entre esses dois tipos. Nas colônias de povoamento, explora-se para povoar, nas de exploração, povoa-se para explorar. Mais do que as colônias da América Espanhola, que como sabemos, nasceram banhadas em ouro, são as colônias da América Portuguesa que se aproximam das colônias da América Anglo-Saxã, porque se o ouro não nasce das minas, ele brota nas raízes dos canaviais. Lá é a visão do deserto e da selva; aqui, o da natureza que oferece riqueza com o mínimo esforço.100 Nesse caso, o ideal de povoamento se relaciona com o próprio fato de a América Portuguesa ser uma colônia de plantação, cuja base material se relaciona com uma sociedade minimamente estabelecida. Nesse sentido, muitas vezes o trabalho também é valorizado, tanto quanto o ócio. As imposições do desbravamento da terra criam uma ética do trabalho muito própria da elite que se identifica com a figura do povoador. Falam muito em esforço e em suor, mesmo que este suor não seja saído de seus próprios poros, mas sim dos de seus negros. As referências ao trabalho na terra se encontram tanto na documentação secular como religiosa. Há momentos em que se tem a impressão de que o Paraíso deixou de estar na natureza, para estar na virtude e no trabalho dos homens. A estética não somente está relacionada à formosura da natureza, mas principalmente à construção material associada à colonização, que vence aquele caráter primitivo e inóspito da terra, para torná-la cada vez mais parecida com mundo do qual se vem: “(...) vai tudo povoado de formosas fazendas e tão alegres da vista do mar, que não cansam os olhos de olhar para elas”.101 Muitas vezes, o natural aparece ao lado do artificial, convivendo em perfeita sintonia: “(...) vai a terra fabricada com fazendas e canaviais (...) Toda [ela] por aqui é muito fresca, povoada de canaviais e árvores de espinho”.102 O que antes era somente potencial da terra em produzir aparece como produção efetivada e a abundância; o que era fertilidade, torna-se agora sinônimo de produtividade: “Das árvores, a principal é a parreira, a qual se dá de maneira nesta terra que nunca lhe cai folha (...) e quantas vezes a podem, tantas dá fruto (...) em todo o ano amadurecem e são muito doces e saborosas, e 100 “Assim, se os primeiros colonos da América Inglesa vinham movidos pelo afã de construir, vencendo o rigor do deserto e da selva, uma comunidade abençoada, isenta das opressões religiosas e civis por eles padecidas em sua terra de origem, e onde, enfim se realizaria o puro ideal evangélico, os da América Latina se deixavam atrair pela esperança de achar em suas conquistas um paraíso feito de riqueza mundanal e beatitude celeste, que a eles se ofereceria sem reclamar labor maior, mas sim como um dom gratuito”. (Holanda. Visão do Paraíso..., p. XIX. Grifos nossos). O que estamos tentando mostrar, a partir da documentação é que na América Portuguesa, mais do que na espanhola, se combinam a idéia edênica do deserto e da selva à idéia do paraíso mundano. 101 Gabriel Soares de Sousa. Gabriel Soares de Sousa. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. 4a edição. São Paulo, Ed. Nacional, 1971, p. 147. 102 Gabriel Soares de Sousa, op. Cit, p. 147-149. 123 não amadurecem todas juntas; há curiosos que têm nos seus jardins pé de parreira que têm uns braços com uvas maduras, outros com agraços, outros com frutos em flor, outros podados de novo”.103 Novos mitos também vão surgindo ao lado dos que vão sendo reciclados. O mito de São Tomé é um desses exemplos. Não é à toa que é identificado por Sérgio Buarque de Holanda, como um “mito luso-brasileiro”, denotando a indefinição entre o não mais ser luso, mas ainda não sendo brasileiro. Chegamos finalmente à última instância a ser analisada: a econômica. Assim como no caso dos jesuítas, que têm um projeto utópico de catequização, que depois é rompido pelas condições impostas pela terra e pelas regras ditadas pelo Sistema Colonial, também os tratadistas têm um projeto utópico para a colônia: primeiramente a construção de um Novo Império104 a partir da América Portuguesa; posteriormente, o projeto de construção de uma Nova Lusitânia. No entanto, assim como aconteceu com os jesuítas, o projeto é rompido e o resultado concreto é algo totalmente diferente. Os primeiros cronistas não poderiam enxergar que aqui não se poderia produzir uma sociedade idêntica à metropolitana, desde logo pela sua função: a de fornecer gêneros complementares à economia metropolitana e artigos de alta lucratividade que proporcionassem a acumulação de capital comercial autônomo na metrópole. Isso não é percebido em nenhum momento na documentação “arqueológica”, é percebido de forma parcial nos Diálogos das grandezas do Brasil, mas também não o é de todo, como demonstra o afã de Brandão em acabar com a negligência da terra produzindo gêneros de diversas castas. Não percebe que o caráter complementar da colônia à metrópole é o que a obriga a ser pouco diversificada para que exporte gêneros de interesse para o centro e importe produtos manufaturados. Somente com Frei Vicente do Salvador é que esse caráter complementar é percebido. A tomada de consciência da diferença acompanha pari passu o desenvolvimento material da sociedade colonial. De início, as percepções se restringem à natureza, exatamente porque ainda não existe uma sociedade constituída. O objetivo é justamente o de arregimentar pessoas para constituí-la. Daí o estilo exagerado no exaltar as qualidades, breve no diminuir os 103 Idem, idem, p. 166. “(...) estará bem empregado todo o aumento que Sua Majestade mandar ter deste Novo reino, pois esta capaz para se edificar nele um grande Império, o qual com pouca despesa destes reinos se fará tão soberano que seja um dos Estados do mundo”. (Idem, ibidem, p. 39) 104 124 impropérios, útil ao informar tudo isso. Havia de ser ainda atraente, daí a exaltação do maravilhoso, ora enchendo os olhos do leitor com pedras, safiras, moedas mil, ora atiçando a curiosidade daquele com a narração de mitos quer fossem americanos, como o das amazonas, ou de São Tomé, quer mitos apropriados da Antigüidade greco-romana, como o Eldorado, a Fonte da Juventa, ou ainda mitos bíblicos, que aqui encontram seu lugar mais do que apropriado, com a natureza abundante e com os rios que indicavam a presença próxima do Paraíso terrestre. À medida que o povoamento vai se fazendo, o conquistador se transforma em colonizador. O “colonizador” tanto significa aquele que desbrava para plantar, como aquele que edifica morada, como simplesmente aquele que explora. Os valores dos homens são os mesmos que se aplicam à natureza. A abundância, os excessos, o ócio estão todos eles relacionados à lassidão da terra.105 Ainda assim, em nenhum documento estudado aparece a oposição nos termos colonizador-colono. A oposição tão somente se refere ao lugar de moradia: o reino ou a colônia. Daí a diferença percebida por Brandão residir no par colono-reinol. Essa oposição foi formulada pela historiografia contemporânea: ao colonizador se associa o trabalho da exploração e ao colono o trabalho agrícola. Aqui já se tem uma sociedade minimamente consolidada, com uma organização material já definida e representada principalmente pelo engenho e por uma organização mercantil da produção. A percepção do diverso evolui para a consciência do diferente dentro da base material da seguinte forma: de um projeto utópico de prolongamento e continuidade em relação à metrópole para a percepção de sua posição complementar e subordinada àquela. Se a documentação jesuítica e a Inquisitorial mostram que dentro da esfera religiosa acontece uma mercantilização do sagrado, os Tratados mostram que também acontece o oposto: uma sacralização do econômico: “Costumam eles [principais da terra] a primeira vez que deitam a moer os engenhos benzê-los, e neste dia fazem grande festa convidando uns aos outros”.106 Isto guarda certa semelhança com a 105 “A terra em si é lassa e desleixada; acham-se nela os homens algum tanto fracos e minguados das forças que possuem cá neste Reino por respeito da quentura e dos mantimentos que nela usam, isto é, enquanto as pessoas são novas na terra, mas depois que por tempo se acostumam ficam tão rijos e bem dispostos, como se aquela terra fora sua mesma pátria”.(Pero de Magalhães Gândavo. Tratado da Terra do Brasil, 5a edição. História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil, (1576). 12a edição. Ed. De Leonardo Dantas. Recife, Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 1995, p. 19) A transferência dos valores da terra para os homens cria uma diferenciação entre os portugueses do Reino e os portugueses residentes na América Portuguesa. 106 Cardim, op. Cit., 198. A indignação do jesuíta ainda vai um pouco além. Também mostrando a relação íntima que se estabelece entre a esfera econômica e a sagrada dentro dos parâmetros tipicamente coloniais (além de as esferas estarem imbricadas, as relações que estabelecem umas com as outras adquirem uma nova dimensão, uma dimensão que decorre da especificidade colonial), veja o que Cardim ainda diz: “Os encargos de consciência são muitos, os pecados que se cometer neles não têm conta, quase todos andam amancebados por causa das muitas ocasiões; bem 125 não separação entre as esferas do público e do privado, conforme visto em frei Vicente do Salvador. Tanto a imbricação entre as esferas do religioso e do econômico, como a continuidade entre público e privado, denota um processo de especialização de espaços que ainda não está concluído. Fernando Antônio Novais explica tal fenômeno: “(...) a imbricação das esferas do público e do privado é uma das características marcantes da Época Moderna, do Renascimento às Luzes (...) Entre a Idade Média feudal, quando no Ocidente cristão se configura propriamente uma sociedade sagrada, e o mundo contemporâneo burguês e racionalista que se expressa na laicização do Estado, estende-se essa zona incerta e por isso mesmo fascinante, já não feudal, ainda não capitalista, não por acaso denominada de ‘transição’”.107 Dentro de uma ótica weberiana, a divisão perfeita entre os espaços, de acordo com suas funções somente se completará no século XIX e é fruto do mesmo processo que atinge a ética capitalista: o desencantamento do mundo, fruto do desenvolvimento da razão ocidental.108 Ainda seguindo a mesma lógica, esse é um momento de indefinição entre magia e razão no qual as relações entre os homens ainda são fortemente providas de um caráter pessoal. A impessoalidade surge somente no momento em que o mundo é racionalizado. Ao contrário deste momento em que tanto as relações internas ao Estado, como as que este estabelece com os homens e ainda as que os homens estabelecem entre si são relações pessoais. Por esse motivo, dentro desta sociedade, a honra ainda é um valor muito importante. Durante o processo de centralização de poder por parte do Estado, a honra, que antes estava vinculada às relações vassálicas, agora se vincula às relações entre o Estado e seus súditos. Na colônia, a relação pessoal entre o súdito e o Estado ainda é mantida, mas os meios de obtenção de honrarias tornamse diferentes. Ao modo de vida tipicamente colonial, associam-se as honras obtidas das vitórias cheio de pecado vai esse doce por que tanto fazem: grande é a paciência de Deus, que tanto sofre”. (Cardim, op. Cit, p. 193). 107 Fernando Antônio Novais, “Condições de Privacidade na Colônia”. Op. Cit., p. 15. 108 O desencantamento do mundo acontece pela retirada de todo e qualquer conteúdo místico que possa perpassar ainda uma sociedade capitalista. O processo de acumulação que possuía meios limitados por uma determinada ética, torna-se um fim em si mesmo. A base racional do processo vai se convertendo no irracionalismo da acumulação pela acumulação: “Somos tentados a pensar que estas qualidades morais pessoais não têm a mais superficial relação com quaisquer máximas éticas, para não falar de idéias religiosas, mas que a relação entre elas é negativa (...).Em geral, não há apenas uma ausência de qualquer relação entre as crenças religiosas e a conduta, mas também, onde existe alguma, pelo menos na Alemanha tende a ser do tipo negativo. Tais pessoas, dominadas pelo espírito do capitalismo tendem hoje a ser indiferentes, se não hostis para com a Igreja (....) os negócios com seu trabalho contínuo tornaramse uma parte necessária de suas vidas. É esta, de fato, a única motivação possível, mas ao mesmo tempo, expressa o que, do ponto de vista da felicidade pessoal, é tão irracional acerca deste tipo de vida, em que o homem existe em razão de seu negócio, ao invés de se dar o contrário”. (Max Weber. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 126 contra os índios e contra outras agruras da terra. Uma das formas encontradas para substituir a profissão das armas da nobreza tradicional foram as milícias locais. E tanto quanto a profissão das armas, a “a atividade política era considerada pelos senhores de engenho um dever e um privilégio. Como residentes permanentes (...) e homens bons – honrados e abastados – tinham o direito de ocupar cargos na câmara municipal, o principal órgão de governo local”. 109 Também o sucesso da empresa colonizadora e o enriquecimento do colono que a ela se dedicou, é um outro meio de obtenção de honras.110 Essa mudança na forma como se vê a honra também está relacionada a uma mudança no conceito de riqueza que surge com o capitalismo comercial. Brandão, por exemplo, não mais valoriza a riqueza metálica, como os primeiros tratadistas, mas valoriza a riqueza produzida pela terra e pelo trabalho. No entanto, esses atos heróicos e mesmo o enriquecimento a partir da produção e comércio do açúcar parecem não ser reconhecidos pelo nobre tradicional e mesmo o Estado tem certas reservas nas concessões de honrarias aos colonos.111 Tanto é verdadeiro, que na colônia, as concessões jamais são herdadas.112 No entanto, há que se ponderar a diferenciação entre colonos e reinóis no que diz respeito à postura perante a honra. Como sabemos, a política mercantilista e o surgimento do capitalismo mercantil a ela indissoluvelmente ligado, fez com que ressurgisse a escravidão no mundo moderno. Essa escravidão moderna associa-se não somente ao trabalho compulsório nas colônias americanas, mas também à alta lucratividade do tráfico negreiro. Ao contrário da escravidão antiga, o escravo pode ser vendido. Nas colônias em que o trabalho escravo se fez presente, a sociedade adquiriu um perfil mais rígido, com estamentos sociais rigorosamente definidos.113 Isso tinha implicações diretas a respeito da necessidade que os colonos, entenda-se a aristocracia colonial, tinham em se igualar aos reinóis, diferenciando-se ao máximo da escravaria. Os senhores de engenho tentam reproduzir aqui os meios tradicionais de obtenção de status: “Os São Paulo, Livraria Ed. Pioneira, 1967, pp. 45/46). É a este processo irracional que associamos o desencantamento do mundo. 109 Stuart Schwartz, Segredos Internos..., op. Cit., p. 232/233. 110 “Ao lado [das] opiniões negativas sobre os senhores de engenho havia o reconhecimento de sua riqueza”. (Schwartz, op. Cit., p. 229). 111 Ao contrário da Coroa espanhola, que cria uma nobreza de títulos, reconhecendo o status nobre da elite colonial “(...) a Coroa portuguesa era muito parcimoniosa nas concessões de foros de nobreza à classe dos senhores de engenho ou quaisquer outros indivíduos na colônia (...) no Brasil, eles [os títulos] nunca foram concedidos”. (Idem, ibidem, p. 230). 112 Idem, ibidem, p. 230. 113 “A sociedade se estamentiza em castas incomunicáveis com os privilégios da casta dominante juridicamente definidos, que de outra forma seria impossível manter a condição escrava dos produtores diretos”. (Novais, “O Brasil nos Quadros do Antigo Sistema Colonial.”, op. Cit., p. 62). 127 senhores de engenho ditaram os padrões sociais na colônia e foram os que mais se aproximaram dos modelos vigentes na metrópole (...) A posse de vastas extensões de terra, apoiada no controle de numerosos dependentes, caracterizara a nobreza em Portugal, e os colonizadores do Brasil que estabeleciam propriedades açucareiras consideravam-se a nobreza da colônia. Em certo sentido, eles eram uma classe social querendo passar por uma ordem ou estado medieval – novos ricos que almejavam formas tradicionais de legitimação social”. 114 A despeito disso, os ditames da sociedade colonial criavam a todo o momento diferenças entre os dois lados que não podiam ser negadas. E da parte da classe dominante metropolitana fazia-se questão de lembrar a essa nova classe as suas origens: “Não obstante, alguns dos primeiros senhores de engenho pudessem dizerse nobres em Portugal, a maioria, como vimos, provinha de origens menos ilustres. Cristãosnovos, comerciantes e imigrantes mais pobres foram atraídos para o Brasil porque a colônia parecia oferecer oportunidades sociais e econômicas não facilmente disponíveis em Portugal. A busca bem-sucedida da fortuna no contexto da colônia tropical subverteu as hierarquias portuguesas de status, raça e riqueza e criou uma série de imagens negativas, que negaram aos residentes do Brasil o reconhecimento social pelo qual tanto ansiavam”.115 Como dissemos, os vetores de diferenciação agem em todos os sentidos. Nesse caso, é a nobreza metropolitana tentando diferenciar-se da nova aristocracia que surge no âmbito da colônia. 3.3 Travando novos diálogos Na medida em que se avança no estudo da documentação, percebe-se que os projetos de catequização e colonização, que eram projetos díspares em princípio, passam a confluir. Tornamse complementares um ao outro. Com Padre Vieira no século XVII,116 há uma maior aproximação dos objetivos da religião em relação aos objetivos seculares. No século XVIII, estes 114 Schwartz, op. Cit., p. 224. Idem, ibidem, p. 229. 116 “No fim da carta que V. M. me fez mercê, me manda V. M. diga meu parecer sobre a conveniência de haver n’este Estado, ou dois capitães mores, ou um só governador (...) Digo que menos mal será um ladrão que dois, e que mais dificultosos serão de achar dois homens de bem que um (...) tais são os dois capitães mores em que se repartiu este governo: N. de N. não tem nada. N. de N. não lhe basta nada; e eu não sei qual é maior tentação, se a necessidade, se a cobiça. Tudo quanto já na capitania do Pará, tirando as terras, não vale dez mil cruzados, como é notório, e d’esta terra há de tirar N. de N., mais de cem mil cruzados em três anos (…) o que além da injustiça que faz aos índios, é ocasião de padecerem muitas necessidades os portugueses e de perecerem os pobres... Assim que, Senhor, consciência e mais consciência é o principal e único talento que se há de buscar nos que vierem governar este Estado”. (Padre Antônio Vieira. “Carta a el-rei de 4 de abril de 1654”. In Francisco da Silveira Bueno. Literatura luso-brasileira. 3a ed. Refundida e ampliada. São Paulo, Edição Saraiva, 1951, p. 393). 115 128 projetos se fundem sob uma mesma identidade de contestação ao regime colonial, na passagem da pré-história para a história do Brasil. No século XIX, ambos fazem parte de uma mesma nação e compartem de uma identidade: a brasileira. Entre o sentir-se diferente e o tornar-se brasileiro, há um espaço de três séculos. Espaço este entre uma consciência de diferenciação diluída e uma identidade que se restringe muitas vezes a saber-se não o que se é, mas o que se não é. O questionamento do que é ser “brasileiro” gerou uma série de reflexões que ficaram consagradas como Interpretações do Brasil, destacandose entre elas, as de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. Curiosamente, na América espanhola, esse primeiro estágio da consciência de diferença ficou marcado pelo fato de os colonos se auto-intitularem criollos desde o século XVII. Enquanto isso, a única forma de consciência de diferença aparece no termo reinol, para designar aquele que reside em Portugal. Não diria Alviano que era “reinol e novo na terra”? Entretanto, é preciso ponderar essa aparentemente precoce consciência da diferença na América espanhola, definindo os vetores de diferenciação aí presentes. Talvez isso também nos ajude a definir um pouco melhor a consciência da diferença que surge nos Diálogos e que encontra suas condições “arqueológicas” na documentação que a precede. Os vetores são os mesmos da América Portuguesa, afinal, como dissemos no capítulo inicial, a história dos descobrimentos é parte da história da Europa. Esse é o primeiro ponto comum entre América Portuguesa e Espanhola. O segundo é que ambas são colônias de exploração, ou seja, designadas para atender aos interesses de acumulação de capital primitivo na metrópole. Portanto, os movimentos de diferenciação entre as classes do sistema são compostos pelos mesmos vetores: entre as classes dominante colonial e metropolitana e entre a classe dominante colonial e as classes dominadas da mesma sociedade. Ao mesmo tempo em que as condições de vida da colônia criam uma diferenciação entre a camada superior colonial vis a vis classes dominantes na metrópole, tanto burguesia, como nobreza, também a classe dominante na colônia preocupa-se o tempo todo em diferenciar-se das classes subordinadas. Este segundo movimento de diferenciação é proposital, ao passo que o primeiro é imposto pelos determinantes do Sistema Colonial, passando desapercebido muitas vezes. Ao tentar diferenciar-se das camadas mais populares dentro dessa sociedade já nasce estamental, a classe dominante colonial procura adquirir os valores aristocráticos da nobreza metropolitana para reforçar seu distanciamento em relação às primeiras. Compra títulos, reclama a concessão de honrarias pelo Estado, importa finos 129 tecidos para se vestir em pé de igualdade com a nobreza metropolitana, que embora decadente, ainda reserva para si o monopólio da etiqueta, do bem vestir, da boa comida, enfim, do comportamento cortês.117 O Antigo Sistema Colonial serve-nos como parâmetro das relações de força entre essas classes que compõem o sistema: nobreza metropolitana, enquanto representante dos valores de raiz, burguesia metropolitana, que controla o comércio em nível mundial, aristocracia colonial, escravos e brancos livres pobres na colônia. Nesse sentido, o fato de os colonos da América espanhola se autodenominarem criollos não significa necessariamente que sejam mais conscientes de sua diferença em relação aos reinóis do que os portugueses, mas pelo contrário, igualam-se a eles na tentativa de distanciar-se ao máximo das outras classes na colônia. É sabido, que na América espanhola, diferentemente da portuguesa, o indígena tinha um forte peso, em primeiro lugar pelo nível cultural das tribos indígenas ali encontradas. Em segundo lugar, quando já da colonização e não tanto da conquista, o indígena era a mão-de-obra principal, assumindo o mesmo papel que o negro no Brasil. Os sistemas de servidão indígena na América espanhola, desde a encomienda e os repartimientos, que correspondem à exploração compulsória do trabalho indígena nos primeiros séculos de colonização, até a mita e o cuatequil, que correspondem ao recrudescimento da exploração do trabalho servil indígena na medida em que se expandia a colonização e o trabalho minerador, comprovam esse fato. Dessa forma, o peso cultural do indígena na América Espanhola representava um risco muito maior de aculturação do europeu, o que o deixava “mal-visto” aos olhos dos demais europeus. Há, portanto que se questionar se o termo criollo designava um distanciamento em relação ao reinol ou ao indígena. Entretanto, qualquer que seja a intenção do criollo, se de questionamento às imposições da Coroa espanhola,118 se de conivência com esta, o próprio fato de utilizar um termo específico 117 A respeito disso diz Cardim: “Vestem-se, e as mulheres e filhos de toda a sorte de veludos, damascos e outras sedas, e nisto têm grandes excessos. As mulheres são muito senhoras, e não muito devotas, nem freqüentam as missas, pregações, confissões, etc.; os homens são tão briosos que compram ginetes de 200 e 300 cruzados, e alguns têm três, quatro cavalos de preço. São mui dados a festas. Casando uma moça honrada com um vianez, que são os principais da terra, os parentes e amigos se vestiram uns de veludo carmesim, outros de verde, e outros de damasco e outras sedas de várias cores, e os guiões e selas dos cavalos eram das mesmas sedas que iam vestidos. Aquele dia correram touros, jogaram canas, pato, argolinha, e vieram dar vista ao colégio para os ver o padre visitador; e por esta festa se pode julgar o que farão nas mais, que são comuns e ordinárias. São sobretudo dados a banquetes, em que de ordinário andam comendo um dia dez ou doze senhores de engenho juntos, e revezando-se desta maneira gastam quanto têm, e de ordinário bebem cada ano 50 mil cruzados de vinho de Portugal; e alguns anos beberam oitenta mil cruzados dados em rol. Enfim, em Pernambuco se acha mais vaidade que em Lisboa. Os vianezes são senhores de Pernambuco, e quando se faz algum arruído contra algum vianez dizem em lugar de: ai que d’el rei, ai que de Viana, etc.”. (Cardim, op. Cit., p. 201/202). 118 “Like the settlements of the English in Ireland or America, or the Portuguese in Brazil, this new society was intended to be a faithful image of one that had been left behind. Unlike either the English or Portuguese (or indeed 130 para designar a elite da qual faz parte é um indício de que se sente diferente. No primeiro caso, o da diferenciação consciente em relação ao reinol, os hispano-americanos querem reforçar essa diferença designando um termo específico para sua classe: uma nobreza americana com valores próprios e diferentes, pelo menos em teoria, dos tradicionais. Essa é a posição de Nicholas Pagden.119 Essa também é a posição de Fernando Novais, que diz que “Nas Índias de Castela parece ter sido mais intensa essa tomada de consciência; lá, os colonos se nominavam criollos (...) Quer dizer: os colonos hispano-americanos identificavam-se positivamente pelo que eram ou acreditavam ser (“nós somos criollos”); os luso-brasileiros identificávamo-nos negativamente (“nós não somos reinóis”), pelo que sabíamos não ser”.120 No segundo caso, o da aproximação do colono em relação ao reinol, a criação do termo criollo ansiaria por anular o processo de marginalização da nobreza tradicional em relação a essa nova aristocracia, adotando antigos costumes dessa nobreza e discriminando as contribuições culturais do indígena dentro de um processo sincrético que se impunha incondicionalmente. O fato de as independências terem se sucedido antes na América Espanhola, que na Portuguesa, embora naquela tenha dado origem a uma série de estados fragmentados, não nos deve conduzir à conclusão de que ali a consciência da diferença positiva foi anterior também à portuguesa. A própria fragmentação da América Espanhola por ocasião das independências e formações dos Estados nacionais nos leva a colocar a possibilidade de convivência entre identidades extremamente heterogêneas sob o jugo espanhol. Stuart Schwartz ainda acrescenta que na América Portuguesa, as primeiras sensações de diferença não surgiram dentro da elite branca, mas ao contrário, dentro da comunidade mestiça: “(...) o exame dos escritos de um grupo limitado de intelectuais eram os menos aptos a desenvolver uma noção da diferença. Esses sentimentos provavelmente se alastraram mais rapidamente entre os mestiços, os mamelucos e os pardos, que se sentiam pouco ligados a Portugal e os quais, no final do período colonial, constituíam cerca de 40% da população da colônia Infelizmente, dado que esse segmento da população era, em grande parte, analfabeto, é the French), however, the Spanish settlers possessed a distinctive set of political aspirations. (…) the encomenderos constant demands for a perpetual encomienda became source of bitter conflict with a crown that had no wish to see the establishment in America of a social class it was doing its best to suppress at home”. (Anthony Pagden. “Identity Formation in Spanish America”. Ed. by Nychols Canny & Anthony Pagden. Colonial identity in the Atlantic world : 1500-1800. Princeton; N.J., Princeton University Press, 1989, p. 53). 119 “The native-born (criollos) elite in Mexico and Peru, with whom this essay will be primarily concerned, had already acquired by the middle of seventeenth century a clear sense of belonging to a culture than in many, if not yet all, respects was independent of the “mother country”. In most other areas, economically more dependent upon metropolis, such self-awareness came much later”. (Pagden, op. Cit., p. 51) 120 Fernando Antônio Novais, “Condições de Privacidade na Colônia”, op. Cit., p. 26. 131 difícil recapturar a percepção que tinham de si mesmos e do Brasil em que viviam”.121 Mazombos e cabras,122 não surgiram para designar uma elite, como o termo criollo serviria para designar a elite hispano-americana, mas ao contrário, camadas mais populares que se sentiam subjugadas tanto pela aristocracia colonial, como pela metrópole. O que há de comum é que tanto a América Espanhola quanto a portuguesa na medida em que se aproximam do século XVIII vão adquirindo contornos próprios de uma nação, embora nação de passado colonial, o que ficará eternamente gravado em seu destino. De mero instrumento para a acumulação primitiva de capital na metrópole, a colônia foi consolidando um mercado interno e realizando sua própria acumulação de capital.123 Poderíamos até mesmo fazer uma associação entre formação do mercado interno e nação, mercado e identidade, se pensarmos que a constituição do mercado interno, embora um fenômeno pertencente à esfera do econômico, envolve uma série de peregrinações e estas, segundo Benedict Anderson também são criadoras de identidade.124 Embora muitos associem o brasileiro ao herói sem nenhum caráter, o Macunaíma de Mário de Andrade, não podemos dizer que a nação não se criou. Talvez esse caráter fluido seja por si só a identidade. Esse debate, no entanto, está além de nossos propósitos. O que nos propusemos estudar foram as condições de possibilidade para o nascimento da consciência da 121 Stuart Schwartz, “’Gente da terra braziliense da nasção’. Pensando o Brasil: a construção de um povo”. Cap. 4 de Carlos Guilherme Mota. A viagem incompleta- a experiência brasileira (1500-2000). Vol II Formação-Histórias. São Paulo, Ed. Senac, 2000, p. 112. 122 Stuart Schwartz utiliza o termo cabra para designar um conjunto de sensações comuns que são indicadoras já da presença de uma identidade nacional: “(...) such a word might be used as a designation of his nationality signified a transformation in the perception and discourse of national sentiments in Brazil. The use of such a term (…) certainly did not portend the crumbling of color bar or the hierarchy of racial status, but the identification of nation with such formerly despised elements as mixed-bloods or more commonly with romanticized version of the Indian was an important sea change of self-perception”. (Stuart B. Schwartz. “The formation of a Colonial Identity in Brazil”. Ed. by Nychols Canny & Anthony Pagden. Colonial identity in the Atlantic world: 1500-1800. Princeton; N.J., Princeton University Press, 1989, p. 15). 123 A partir do século XVIII cria-se uma reprodução endógena por meio das minas e as relações de integração dos diversos mercados regionais, bem como destes com os mercados externos, gera uma solidariedade específica entre os mercados, ou seja, uma dada identidade. 124 Anderson compara os movimentos de peregrinação religiosos com os movimentos formadores do sentimento nacional na América. Ambos são criadores de identidade. No primeiro caso, identidade religiosa; no segundo, nacional: “Para nossos fins, a jornada modal é a peregrinação (...) Numa época pré-imprensa, a realidade da comunidade religiosa imaginada dependia profundamente de inúmeras e contínuas viagens”. (Benedict Anderson. Nação e consciência nacional. Trad. De Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo, Ed. Ática, 1989, p. 64). Pelo fato de a América estar subordinada à Europa em termos culturais, econômicos, políticos e sociais, a única forma de criação de uma proto-identidade seria pelas peregrinações envolvidas no sistema colonial. E a função da peregrinação dos funcionários peninsulares e dos magnatas criollos é o que explica a criação das comunidades imaginadas, mais do que o Iluminismo, o liberalismo ou a independência das treze colônias norte-americanas. Em suma, Anderson 132 diferença, todas as sensações, as percepções, as constatações que a precedem e que sejam importantes para o seu aparecimento. A consciência da diferença, por sua vez, é uma précondição do aparecimento da identidade e nesse sentido, ela integraria uma possível “arqueologia” da nação. Mas isso já está muito além das possibilidades deste trabalho. também busca uma explicação que seja endógena à própria colônia na criação de sua identidade. (Anderson, op. Cit., pp. 57-76). 133 Conclusão Disse Mário de Andrade, em Prefácio jamais publicado em livro, a respeito de suas intenções ao escrever Macunaíma: “O que me interessou por Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora depois de pelejar muito verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que alguém já tenha falado isso antes de mim, porém a minha conclusão é uma novidade para mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a palavra caráter não determino apenas uma realidade moral não, em vez entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na língua na História, na andadura, tanto no bem como no mal. O brasileiro não tem caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional. Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque civilização própria, perigo iminente, ou consciência de séculos tenham auxiliado, o certo é que esses uns têm caráter. Brasileiro não. Está que nem o rapaz de vinte anos: a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas ainda não é tempo de afirmar coisa nenhuma. (…) Pois quando matutava nessas coisas topei com Macunaíma no alemão de Koch-Grünberg. E Macunaíma é um herói surpreendentemente sem caráter.”.1 Aquilo a que Mário de Andrade se refere como caráter, é a identidade nacional que vimos discutindo até agora. Ao contrário dele, acreditamos sim na existência de um caráter do brasileiro, de uma entidade psíquica permanente - que é equivalente à comunidade imaginada de Anderson - que reúne certos sentimentos que somente os brasileiros, enquanto membros de uma mesma nação, conseguem ter. Se não acreditássemos nisso, esse trabalho não faria sentido. Não faria sentido estudar as pré-condições para a formação de algo que não existe ou nunca existiu. Portanto, o pressuposto desse trabalho é a própria existência da nação. Nos clássicos conhecidos como interpretações do Brasil, a questão-chave é a mesma de Macunaíma: existe um caráter brasileiro? Para responder a essa questão, todos eles resgatam o passado da nação a fim de buscar os antecedentes desse caráter. Também em todos eles, essa 1 Prefácio Mário de Andrade à Macunaíma, não publicado na edição de 1928. Está publicado integralmente em livro de Heloísa Buarque de Holanda, baseado em sua tese de mestrado, Heróis de nossa gente. Heloísa Buarque de Holanda. Macunaíma: da literatura ao cinema. Rio de Janeiro, José Olympio, 1978. 135 reconstrução é tanto teórica quanto histórica. No caso de Gilberto Freyre, a construção da nação é feita antes de um ponto de vista sociológico que histórico, embora este esteja permanentemente presente. Em Sérgio Buarque, a construção funde a história à teoria sociológica weberiana, principalmente enfocada nos tipos ideais. Por fim, a análise de Caio Prado Júnior está toda fundada no materialismo histórico, que por pressuposto já é fusão entre teoria e história. O trabalho “arqueológico” de construção da consciência da diferença também é ao mesmo tempo lógico e histórico. A lógica, no entanto, reside mais numa lógica intuitiva do que em uma lógica cinetífica. Esse ponto é a diferença em relação a Foucault. A identidade pressupõe uma ruptura. Antes de sabermos o que somos, temos de saber o que não somos. Antes de nos identificarmos com um grupo, temos de nos sentir diferentes em relação a outro que nos serve de parâmetro. Tentamos construir essa consciência da diferença ao longo da documentação, desde a carta de Caminha até a História de Frei Vicente do Salvador, entretecendo análise literária e histórica. Tentaremos agora encaminhar a conclusão do trabalho atravessando algumas das sendas abertas por esses intérpretes. Para isso, procuramos uma questão comum que fosse encontrada tanto nesses trabalhos, como no nosso também. Essa questão é a forma como aparece a ruptura entre os que passaram a morar aqui e os que continuaram morando em Portugal. Essa ruptura se expressa de diversas formas: entre o colonizador e o colono; entre o português e o natural da terra; entre o morador de Portugal e o morador da terra; entre reinol e colono. Antes da discussão do que vem a ser o brasileiro, os intérpretes procuram resgatar algumas tradições portuguesas que ainda se encontram presentes neste brasileiro. Discutem como alguns valores, ao serem para cá transplantados, sofrem uma transformação, seja induzida pelo contato com uma natureza diferente, seja pela miscigenação com o índio e com o negro, seja porque a própria condição de subordinação da colônia à metrópole provocam essa mudança de caráter. Dizia Gilberto Freyre em Prefácio de Casa-Grande & Senzala em 1933 que: “Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro: a nossa continuidade social”.2 Antes que se fizesse, no entanto, uma continuidade entre os que aqui se criaram, fezse uma descontinuidade em relação aos que de lá vieram. Foi negando-se português que o ibero-americano foi se fazendo brasileiro. Em Gilberto Freyre, essa negação vai se fazendo 2 Gilberto Freyre. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro, Record, 1996, p. LXV 136 com a influência da ama de leite sobre o filho da sinhá, do moleque que serve de montaria ao menino de casa-grande, da negra escrava que o principia nas artes do amor. A ruptura vai-se dando lentamente pelas próprias condições impostas pela monocultura canavieira escravista. Se de um lado, essa base material cria laços duros de sociabilidade, fundamentados principalmente na relação entre o senhor e o escravo, de outro, essa relação é amolecida pelo processo de miscigenação imposto tanto pelo sistema de produção, como pela escassez de mulheres brancas: “A escassez de mulheres brancas criou zonas de confraternização entre vencedores e vencidos, entre senhores e escravos (...) O que a monocultura latifundiária e escravocrata realizou no sentido da aristocratização, extremando a sociedade brasileira em senhores e escravos (...) foi em grande parte contrariado pelos efeitos sociais da miscigenação”.3 Dessa forma, tanto a continuidade em relação ao adventício, como sua descontinuidade é explicada pela família patriarcal. É a família patriarcal, que segundo Gilberto Freyre, se torna a unidade colonizadora, intermediando as relações entre o homem e o ambiente que o cerca, e daquele com outros homens, que, subjugados à experiência da monocultura da cana, relacionam-se de formas bem peculiares, embora a estrutura patriarcal originária seja conservada.4 A família patriarcal vai se moldando ao meio e à base material e isso se expressa nos próprios contornos que adquirem as casas grandes. Tanto em Nordeste, como em CasaGrande & Senzala e Sobrados & Mucambos, a arquitetura expressa as relações sociais. Abandonam-se os antigos solares portugueses e surgem habitações mais adequadas às condições de vida na América tropical: “A casa-grande de engenho que o colonizador começou, ainda no século XVI a levantar no Brasil (...) não foi nenhuma reprodução das casas portuguesas, mas uma expressão nova, correspondendo ao nosso ambiente físico e a uma fase surpreendente, inesperada, do imperialismo português: sua atividade agrária e sedentária nos trópicos, seu patriarcalismo rural e escravocrata. Desde esse momento que o português (...) tornou-se o luso-brasileiro; o fundador de uma nova ordem econômica e social; o criador de um novo tipo de habitação (...) Distanciado o brasileiro do reinol por um século apenas de 3 Freyre, op. Cit., p. XLVIII. “A formação patriarcal do Brasil explica-se tanto nas suas virtudes, como nos seus defeitos, menos em termos de ‘raça’e ‘religião’do que em termos econômicos de experiência de cultura e de organização da família, que foi aqui a unidade colonizadora”. (Idem, ibidem, p. LI). 4 137 vida patriarcal e de atividade agrária nos trópicos já é quase outra raça, exprimindo-se noutro tipo de casa”.5 Algo semelhante ao patriarcalismo de família aparece em Sérgio Buarque de Holanda na forma do homem cordial.6 Na colônia, uma das manifestações disso é a visão do espaço público como um prolongamento do privado; o civil como uma extensão da família. Isso já havia sido expresso na célebre frase de Frei Vicente do Salvador de que toda a casa é uma república7. Essa cultura da personalidade,8 como Sérgio Buarque a denomina, é caracterizada pela importância dos laços afetivos na coesão social. O personalismo é parte da tradição ibérica, comum tanto a portugueses como espanhóis. Na verdade é partindo dos traços do caráter ibérico, que Sérgio Buarque vai compondo a ruptura do colono, luso-brasileiro ou o hispano-americano, em relação ao reinol. A rotina imposta pela colonização inaugura um novo tipo de aventura que é caracterizada pelo modo de vida rural. Embora não tivesse tradição agrária forte, o português aqui se tornou um homem mais ligado ao campo do que à vida urbana. As cidades, instrumentos de dominação, segundo Sérgio Buarque, denotam, na América Portuguesa, uma imposição do meio rural ao urbano. Expressam ainda o desleixo do português no que se refere à organização dos espaços. O semeador, em oposição ao ladrilhador, o conquistador espanhol, 5 Idem, ibidem, p. LIII. Grifos nossos. “Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de fundo emotivo extremamente rico e transbordante. (...) A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado”. (Sérgio Buarque de Holanda. Raízes do Brasil. 26a ed. São Paulo, Cia. das Letras, 1995, p. 107) Em Gilberto Freyre, esse comportamento bipolar do homem cordial se deve ao fato de este ser mais movido pelos afetos do que pelos sentimentos. 7 “O quadro familiar torna-se assim tão poderoso e exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas essas atividades. Representando, como há se notou acima, o único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a idéia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentidos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família”. (Holanda, op. Cit., p. 50) 8 Atentemos para o fato de que a personalidade é diferente do individualismo. Embora tenha um forte apelo individual, o individualismo no sentido de qualquer ordenação impessoal da existência, é totalmente oposto a uma cultura da personalidade. Tanto que o Estado Moderno brasileiro no século XIX, não se ordena por princípios abstratos, mas continua a ser regido pelos laços de afeto e de sangue, tal qual a organização de uma família. Essa cultura da personalidade também explica o caráter popular da religiosidade colonial, visto na documentação Inquisitorial: “No Brasil, ao contrário [do Japão], foi justamente o nosso culto sem obrigações e sem rigor, intimista e familiar a que se poderia chamar com alguma impropriedade ‘democrático’, culto que dispensava no fiel todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre si mesmo (...)”. (Idem, ibidem, p. 111). 6 138 é a incorporação dessa assimetria na organização espacial: “Essa primazia acentuada da vida rural concorda bem com o espírito da dominação portuguesa, que renunciou a trazer normas imperativas e absolutas, que cedeu todas as vezes em que as conveniências imediatas aconselharam a ceder, que cuidou menos em construir, planejar ou plantar alicerces do que em feitorizar uma riqueza fácil e quase ao alcance da mão”.9 A ruptura entre o colono e o reinol reside no aparecimento de um tipo eminentemente rural, a despeito de não provir de uma cultura agrária. Esse tema do modo de vida rural, também aparece no nosso último intérprete do Brasil como uma forma de ruptura em relação à metrópole. Para tratarmos de como ocorre a ruptura do colono em relação a algumas tradições metropolitanas, principalmente em razão do modo de vida agrícola que aqui se criou e que acabou por moldar um novo português, é preciso tratar antes de uma outra ruptura também apontada por Caio Prado que é quanto ao que até então se entendia como colonização. Antes que terras americanas fossem colonizadas pelos portugueses, a colonização como até então se entendia, era sinônimo de feitorização. Ainda nos primeiros séculos após o descobrimento, é esta que rege a ocupação da terra. A figura do traficante é mais presente que a do povoador. A ausência de riqueza metálica levou a uma nova forma de ocupação da terra que tinha como objetivo não somente a comercialização de produtos, como sua produção. Esta ruptura com a antiga forma de colonização conduz à necessidade de se povoar, desligando-se do objetivo da pura exploração. O povoamento se torna condição sine qua non para que esta seja feita.10 Esse povoamento, no entanto, restringe-se ao litoral porque é aqui que se encontram as melhores terras. O interesse central é produzir para o mercado externo. É esse que anuncia as melhores oportunidades do momento e neste momento, a melhor oportunidade é o açúcar. A produção para o mercado externo cria em torno de si um modo de vida baseado na grande propriedade 9 Idem, ibidem., p. 61. “Para os fins mercantis que se tinham em vista, a ocupação não se podia fazer como nas simples feitorias, com um reduzido pessoal incumbido apenas do negócio, sua administração e defesa armada; era preciso ampliar estas bases, criar um povoamento capaz de abastecer e manter as feitorias que se fundassem e organizar a produção dos gêneros que interessassem ao seu comércio. A idéia de povoar surge daí, e só daí”. (Caio Prado Júnior. Formação do Brasil Contemporâneo. 22a edição. São Paulo, ed. Brasiliense, 1992, p. 24) 10 139 agrícola11 e na mão-de-obra escrava. Esse complexo caracterizado pela monocultura escravista voltada à exportação resume-se na unidade do engenho.12 Esse novo modo de vida, cuja função econômica é ser complementar à economia metropolitana, começa a transformar o caráter português, criando um tipo humano novo, embora a identidade se conserve portuguesa. Por exemplo, um traço de caráter que se adquire é a extravagância. Isso se associa menos a um defeito de caráter do que ao sistema em que está inserido: “(...) não se devem atribuir unicamente à incapacidade do colono (...) o mal era mais profundo. Estava no próprio sistema, um sistema de agricultura extensiva que desbaratava com mãos próprias uma riqueza que não podia repor”.13 Isso se casa perfeitamente com a questão da negligência levantada por Brandônio. Nascida do interesse mercantil metropolitano, essa sociedade carregará consigo este estigma: “Nos trópicos surgirá um tipo de sociedade inteiramente original (...) Há um ajustamento entre os tradicionais objetivos mercantis que assinalam o início da expansão ultramarina da Europa, e que são conservados, e as novas condições em que se realizará a empresa daqueles objetivos (...) se manterão aqui e marcarão profundamente a feição das colônias do nosso tipo, deitando-lhes o destino no seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a colonização nos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos fundamentais, tanto no econômico, como no social da formação e evolução históricas dos trópicos americanos”.14 Já não se admirava Frei Vicente de que o nome cristão de terra de Santa Cruz fôra trocado pelo de Brasil, atendendo aos ditames de uma madeira de mercancia? Ou ainda não 11 “(...) é propriamente na agricultura que assentou a ocupação e exploração da maior e melhor parte do território brasileiro”. (Prado Jr., op. Cit. p. 130). 12 “A grande exploração agrária – o engenho, a fazenda – é conseqüência natural e necessária de tal conjunto; resulta de todas aquelas circunstâncias que concorrem para a ocupação e aproveitamento deste território que havia de ser o Brasil: o caráter tropical da terra, os objetivos que animam os colonizadores, as condições gerais desta nova ordem econômica do mundo que se inaugura com os grandes descobrimentos ultramarinos, e na qual a Europa temperada figurará como centro de um vasto sistema que se estende para os trópicos a fim de ir buscar neles os gêneros que aquele centro reclama e que só eles podem fornecer (...) Os três caracteres apontados: a grande propriedade, monocultura, trabalho escravo, são formas que se combinam e se completam e derivam diretamente e como conseqüência necessária daqueles fatores”. (Idem, ibidem, p. 120) 13 Idem, ibidem, p. 142. 140 corria pelos livros da Inquisição os falsos juramentos, a venda das culpas, a mercantilização do que antes era puramente sagrado? E os jesuítas, que para corrigir tal sociedade, tiveram de fundar uma confraria em que pecados e culpas também tinham o seu preço? A mesma sociedade vista pelos olhares curiosos e interrogativos da época é aqui registrada por Caio Prado na forma do sentido da colonização: “Aquele sentido é o de uma colônia destinada a fornecer ao comércio europeu alguns gêneros tropicais ou minerais de grande importância: o açúcar, o algodão, o ouro. (...) A nossa economia se subordina inteiramente a este fim, isto é, se organizará e funcionará para produzir e exportar aqueles gêneros. Tudo mais que nela existe (...) será subsidiário e destinado unicamente a amparar e tornar possível a realização daquele fim essencial”.15 A distribuição dos núcleos de povoamento restritamente ao litoral que levou à comparação de Frei Vicente de Salvador entre os colonos e os caranguejos que ficam pegados à costa obedece a este mesmo fim, o fim mercantil, expresso no caráter de uma agricultura de exportação: “Este desequilíbrio entre o litoral e o interior exprime muito bem o caráter predominante da colonização agrícola – donde a preferência pelas terras férteis, úmidas e quentes baixadas da marinha, e comercialmente voltada para o exterior, onde estão os mercados para seus produtos”.16 A essa dispersão do povoamento se associa a ausência de coesão social que não somente está presente na colônia, mas se transmite para a nação. Seja por meio da unidade patriarcal, da cordialidade ou do ruralismo, esses três autores procuraram no caráter do português algum traço que pudesse explicar o brasileiro. Estes três alicerces representam tanto a continuidade como a descontinuidade em relação ao português. A diferença vai sendo construída a partir do interior de uma mesma identidade, a portuguesa. “Arqueologicamente” falando, a precessão da identidade é dada pelo sentimento da diferença em relação ao outro. O “arqueológico” representa não somente a construção histórica, como também lógica, do ponto de vista da sensação que precede a identidade. Antes de ser brasileiros, fomos já portugueses e entre essas duas identidades existem uma série de outras que foram se criando, principalmente as identidades regionais. Na sedição da Bahia em 1850 a extensão do conceito de povo abarcava o povo baihense.17 Não se falava em brasileiro no 14 Idem, ibidem, p. 31. Prado Jr., op. Cit., p. 131. 16 Idem, ibidem, p. 39. 17 István Jancsó. “A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII”. Cap. 9 de “Condições de Privacidade na Colônia”. Introdução à Cotidiano e vida privada na América portuguesa. Vol. 15 141 século XVIII, como também não se falava em colono no século XVI. Usamos o termo colono para designar um processo mais geral de diferenciação que vinha acontecendo, mas em paralelo a ele, também vinham à tona as primeiras formas de identificação regional. Enfocamos o caráter geral da identidade, mas não podemos nos esquecer de que as identidades regionais surgem antes das identidades nacionais e ainda persistem depois do surgimento destas. No processo de formação da identidade argentina, por exemplo, é somente no século XIX que a identidade rioplatense, que desembocaria na identidade nacional argentina, começa a ser vista com maior freqüência nos documentos oficiais. Antes disso, as formas de identidade são mais comumente a provincial, ou local, e a hispano-americana, que incorpora a identificação fluida entre a Espanha e a América. Antes da crise do Antigo Regime, as mais presentes eram a identidade local e a americana. Com a crise e a série de declarações de independência e formação de Estados nacionais americanos, o que começa a ser revogada é uma identidade nacional. Principalmente como forma de justificar o nascimento desse Estado.18 José Carlos Chiaramonte propõe portanto uma forma nova de se evitar o anacronismo peculiar ao estudo da identidade nacional de nações de passado colonial a partir da convivência dessas três identidades no momento em que a nação começa a dar seus primeiros passos indecisa entre o passado subordinado a uma outra nação e sua própria história.19 Devido aos limites Organizado por Laura de Melo e Souza. In História da Vida Privada no Brasil, Coleção organizada por Fernando Antônio Novais. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pp. 387-436. 18 “De manera que asistimos a un proceso en el que el sentimiento de español americano, que llevaba consigo un comienzo de proyección política, pues extendía artificialmente el sentimiento de patria a toda América, por necesidad de afirmación de derechos frente a una práctica discriminatoria de la nación española (...) declina sin remisión (...) Al mismo tiempo, observamos que se va extendiendo, si bien lentamente y con altibajos, una identidad rioplatense o argentina. Que esta variante haya sido la forma de identidad nacional que habría de imponerse, no debe impedirnos advertir que tanto la tendencia hispanoamericana, como la provincial, constituyeron otros tantos conatos de identidad nacional, como lo señalamos al comienzo, frustrados en su desarrollo por motivos de diversa naturaleza. Y que esto es así nos los muestra también la dificultad con que la identidad rioplatense o argentina logró expresarse como identidad nacional, tal como observamos en el lenguaje de los primeros documentos político constitucionales”. (José Carlos Chiaramonte. “Formas de Identidad en el Río de La Plata luego de 1810”. In Boletín del Instituto de Historia Argentina y Americana “Dr. E. Ravignani”. Tercera Serie, num. 1, 1er semestre de 1989. Buenos Aires, p. 90) 19 “No es nuestro propósito explicar los procesos de formación de sentimientos colectivos expresados en la afirmación de alguna forma de identidad, sino solo verificar y explicar la coexistencia, luego de la Independencia de tres formas de identidad política – hispanoamericana, rioplatense o argentina, provincial (...) poco se ha atendido a que el hecho mismo de su coexistencia, a la vez que reflejaba la ambigüedad en que se encontraba el sentimiento colectivo inmediatamente después de producida la Independencia, traducía también, en el curso de las variaciones de su importancia relativa, la dirección en que se movía el proceso de formación de una identidad política dentro del crítico proceso de formación de nuevos países independientes”. (Chiaramonte, op. Cit., p. 7172). 142 institucionais impostos a esse trabalho, preferimos enfocar o âmbito mais geral ao invés do particular, mas aqui atentamos para a convivência de múltiplas formas de identidade. 143 ANEXO Alguns dos verbetes usados neste trabalho: 1 REINOL: reinol de reino; parece que no século XVI era vocábulo usado principalmente na Índia: “Foram embarcados todos os Fidalgos reinóis (que assim chamam na Índia aos que aquele ano vêm do Reino)”.2 Diogo do Couto. Décadas,3 V, III, 9; também se usava já pela mesma época no Brasil: “não faltam baratas, traças, vésperas, moscas e mosquitos de tantas castas, e tão cruéis, e peçonhentos que mordendo em uma pessoa fica a mão inchada por três ou quatro dias, maximé aos Reinóis, que trazem o sangue fresco”. Fernão Cardim, Tratados da Terra e gente do Brasil, pp. 108-109, ed. 1925.4 REINÍCOLA: rei + col (-cola-: elemento de composição culta que traduz a idéia de habitante. Do latim colere “cultivar, tratar, cuidar de, habitar, praticar, honrar, adorar, praticar com 1 Fontes: Dicionário Etimológico J. P. Machado. 1a edição 1952-1959. A. G. Cunha. Dicionário Etimológico. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1982. 2 O reinol, tanto na empresa puramente mercantil, como na empresa colonizadora, que une produção à comercialização, significa aquele que “vem de fora”. No entanto, na empresa puramente mercantil, devido ao seu caráter, a categoria reinol não implica em uma cisão tão profunda entre os que vêm de fora e os que ali residem. Ela somente se contrapõe àqueles que habitam ali, juntamente com os nativos. Na empresa colonizadora, isso se remete aos portugueses que vêm do Reino em contraposição aos portugueses que aqui residem, gerando uma cisão dentro do que é ser português. Devido à complexidade da empresa colonizadora, que exige a instalação de todo um complexo e com ele, de uma nova socieade, o termo reinol adquire também uma nova complexidade ao se contrapor ao colono enquanto povoador, morador efetivo da terra: “Efetivamente, a empresa colonial é mais complexa, envolvendo povoamento europeu, organização de uma economia complementar voltada para o mercado metropolitano. Em outras palavras, pode-se dizer que nos entrepostos africanos e asiáticos, a atividade econômica dos europeus (pelo menos nesta primeira fase) se circunscreve no limite da circulação de mercadorias: a colonização promoverá a intervenção direta dos empresários europeus no âmbito da produção”. (Fernando Antônio Novais. “O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial”. In Carlos Guilherme Mota (org.). Brasil em perspectiva. Pref. De João Cruz Costa; org. e introdução de Carlos Guilherme Mota. 20 ª ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995, p. 48) 3 Diogo do Couto (1542-1661). Décadas. Seleção, prefácio e notas de Antônio Baião. Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1947. 4 A qualidade que Cardim aponta nos reinóis é uma qualidade tipicamente natural: “Sobretudo tem este Brasil uma grande comodidade para os homens viverem que não se dão nela percevejos, nem piolhos e pulgas he poucas, porém, entre os índios, e negros da Guiné acham piolhos; porém não faltam barats, traças, vésperas, moscas e mosquitos de tantas castas, e tão cruéis, e peçonhentos, que mordendo em uma pessoa fica a mão tão inchada por três ou quatro dias, máxime aos reinóis, que trazem o sangue freso, e mimoso do pão e vinho, e mantimentos de Portugal”. (Fernão Cardim. Tratados da terra e gente do Brasil. Introduções e notas de Batista Caetano, Capistrano de Abreu e Rodolpho Garcia. Rio de Janeiro, Editores J. Leite & Cia., 1925, pp. 108-109). Já nos Diálogos, a qualidade que Alviano aponta no reinol é uma qualidade já é uma qualidade estrutural, que não abrange somente o estar, mas o ser: “O ser ainda reinol e vindo de pouco a esta terra me faz ignorar em muitas coisas que aos antigos nela são patentes (...)”. (Diálogos das Grandezas do Brasil. Ed. Ampliada e revista por Capistrano de Abreu. Salvador, Progresso, 1956, p.56). 145 respeito”). Reinícola é adapatação do latim regnicola (mais vulgar no plural), usado especialmente no latim tardio na acepção de habitante do reino dos céus. NATURAL: nascer do latim nascere: nascer de, tomar sua origem; nação: do latim natione: nascimento, raça, espécie, tipo, tribo, nação, povo; no pl. nationes: os gentios, os pagãos nos autores cristãos; nado: formada por nascimento, constituído pela natureza, destinado pelo nascimento a, nascido para, que tem a idade de; nadio: do latim nativu “que nasce, que teve nascimento, que tem um começo; inato; natural; não artificial”; natura do latim natura “o fato de nascer, natureza; natural, estado natural e constitutivo de qualquer coisa; no homem, natureza, natural, temperamento, caráter; a voz da natureza, a força da natureza, sentimento natural; os dons naturais (do homem tanto físicos como intelectuais). 5 COLONO: de colonu por via erudita; cultivador, camponês, caseiro, rendeito, colono, habitante da colônia no século XVI: “Distrito capaz para os nossos colonos”. (Monarquia Lusitana, V, p. 1000, col. 2 (cit. De DV). 5 Não encontramos qualquer referência ao natural enquanto habitante da colônia. 146 Fontes 1. Fontes Editadas “Carta de Jeronymo de Albuquerque a el-rei de Portugal D. João III-08/1555”. In “Documentos Históricos”. RIHGB, 1886, vol. 1, tomo XLIX, pp. 584-586. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert. “Carta de Jorge Fernandes a el-rei D. João III-07/1555”. In “Documentos Históricos”. RIHGB, 1886, vol. 1, tomo XLIX, pp. 579-581. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert. “Carta do bispo do Salvador a el-rei D. João III-04/1554”. In “Documentos Históricos”. RIHGB, 1886, vol. 1, tomo XLIX, pp. 557-559. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert. “Carta do bispo do Salvador a el-rei D. João III-07/1552”. In “Documentos Históricos”. RIHGB, 1886, vol. 1, tomo XLIX, pp. 582-583. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert. “Carta do Bispo do Salvador para a rainha D. Catarina-09/1560”. In “Documentos Históricos”. RIHGB, 1886, vol. 1, tomo XLIX, pp. 588-589. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert. “Carta do Padre Manoel da Nóbrega, mandada da mesma capitania de Pernambuco, o ano de 1551”. In RIHGB, 1865, t 4, 2a ed, pp. 285-289. “Carta do Padre Nóbrega para o padre Mestre Simão, do ano de 1549”. In RIHGB, 1886. t. V, 3a ed., pp. 461-462. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert. “Carta que o padre Manoel da Nóbrega, Prepósito provincialda Cia. De Jesus, em o Brasil, escreveu ao padre Mestre Simão o anno de 1549. MS. Copiado da Livraria Pública. In RIHGB, 1886. t. V, 3a ed., pp.457-460. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert. “Carta que o Pe. Manoel da Nóbrega, Companhia de Jesus em as terras do Brasil, escreveu ao Padre Simão, prepósito provincial da dita Companhia em Portugal no ano de 1549”. In RIHGB, 1886. t. V, 3a ed., pp. 463-470. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert. “Carta que Vasco Fernandes Coutinho escreveu da Villa dos Ilhéus ao governador do Brasil sobre cousas relativas ao mesmo Brazil durante o reinado de D. Sebastião-05/1558”. In “Documentos Históricos”. RIHGB, 1886, vol. 1, tomo XLIX, pp. 586-588. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert. 147 “Cartas de Duarte da Costa a el-rei D. João III- 04/1555”. In “Documentos Históricos”. RIHGB, 1886, vol. 1, tomo XLIX, pp. 559-579. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert. “Cópia de uma carta do Brasil do Espírito Santo para o Padre Dr. Torres por comissão do Padre Brás Lourenço de 10 de junho de 1562. Registrada a 20 de setembro do mesmo ano”. Fielmente copiada do manuscrito que serviu de Registro das cartas dos Jesuítas do Brasil, desde o ano de 1549 até 1568. In RIHGB, 1840, t. II, 3a ed., Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1916, pp. 432437. “Cópia de uma carta do padre Manoel da Nóbrega, que escreveu ao Ilm. Cardeal; de S. Vicente, o 1o junho de 1560”- Copiada da coleção de Cartas Jesuíticas. MS. Da livraria Pública do rio de Janeiro. In RIHGB, 1886. t. V, 3a ed., pp. 352-358. Rio de janeiro, Tipografia Universal de Laemmert. “Correspondência de Diogo Botelho, governador do Estado do Brasil, 1602-1608”, RIHGB, 1910, t. LXXIII, pp. 1-258. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. “Foraes, doações, regimentos e mandados” (1534-1551). In Documentos Históricos, vol. XIII. Rio de Janeiro, Augusto Porto, 1929. “Primeiro Regimento que levou Tomé de Sousa governador do Brasil”. RIHGB, 1898, T. LXI, parte I, pp.39-57. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. “Primeiro Regimento que levou Tomé de Sousa governador do Brasil”. RIHGB, 1898, T. LXI, pp. 39-57. “Provimentos seculares e eclesiásticos” (1549-1559). In Documentos Históricos, vol. XXXV. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde; Biblioteca Nacional, 1937. “Provimentos seculares e eclesiásticos” (1559-1577). In Documentos Históricos, vol. XXXVI. Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Saúde; Biblioteca Nacional, 1937. “Regimento dado a Antônio Cardozo de Barros” (1548). Copiado da Biblioteca de Évora. Códice CXV, MS. 2-3, f. 182. In RIHGB, 1896, t. XVIII, pp. 172-182. Rio de Janeiro, Imprensa Nacional. “Regimento que há de seguir o capitão-mór Pero Coelho de Souza nesta jornada”. In RIHGB, 1910, t. 73, parte. 1 ANCHIETA, José de. Cartas – Correspondência ativa e passiva. 2a edição. Introd. e notas de Hélio Abranches Viotti. São Paulo, Edições Loyola, 1984. 148 BRANDENBURGER, Clemente. A Nova Gazeta da Terra do Brasil (1514). São Paulo, Livraria Edanee, 1922. CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas. Comentário de Francisco Silveira Bueno. São Paulo, Saraiva, 1960. CARDIM, Fernão. Tratados da Terra e Gente do Brasil (1583). Introd. e notas de Batista Caetano, Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. 3a edição. São Paulo, Cia. Ed. Nacional; Brasília, Instituto nacional do Livro, 1978. CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil. Introduções e notas de Batista Caetano, Capistrano de Abreu e Rodolpho Garcia. Rio de Janeiro, Editores J. Leite & Cia., 1925. Cartas Avulsas: 1550-1568- Azpilcueta Navarro e outros. In Cartas Jesuíticas, vol. 2. Belo Horizonte, Ed. Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1998. Cartas de Duarte Coelho a el-rei D. Manuel . Ed. José Antônio Gonsalves de Melo e Cleonir Xavier de Albuquerque. Recife, Imprensa Universitária, 1967. Cartas do Brasil e demais escritos. Edição organizada por Serafim Leite. Coimbra, Opera Omnia, 1955. Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil. Edição organizada por Serafim Leite. São Paulo, Comissão do IV Centenário da Cidade de São Paulo, 1956. Cartas, fragmentos históricos e sermões do Padre Joseph de Anchieta, S.J. (1554-1594). Academia Brasileira de Letras, 1933. Diálogos das Grandezas do Brasil (1618). 2a edição integral, segundo o apógrafo de Leiden, aumentada por Jose Antonio Gonsalves de Melo. Recife, Imprensa Universitária, 1966. Diálogos das Grandezas do Brasil (1618). Introdução de Capistrano de Abreu e notas de Rodolfo Garcia. Rio de janeiro, Academia Brasileira de Letras, 1930. Documentos para a História do Brasil e principalmente do Ceará (1608-1625). Vol. 1. Fortaleza, Tip. Studart, 1604. GANDAVO, Pero de Magalhães. História da Província de Santa Cruz (1576). Advertência de Afrânio Peixoto. Nota bibliográfica de Rodolfo Garcia. Introdução de Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro, Anuário do Brasil, 1924. GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil (1576). Advertência de Afrânio Peixoto. Nota bibliográfica de Rodolfo Garcia. Introdução de Capistrano de Abreu. Rio de Janeiro, Anuário do Brasil, 1924. 149 GÂNDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil, 5a edição. História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil, (1576). 12a edição. Ed. De Leonardo Dantas. Recife, Fundação Joaquim Nabuco; Editora Massangana, 1995. KNIVET, Anthony. “Narração da Viagem que nos anos de 1591 e seguintes fez Antônio Knivet da Inglaterra ao mar do Sul em companhia de Thomaz Cavendish”. In RIHGB, (?), pp.? KNIVET, Anthony. Narração da Viagem que nos anos de 1591 e seguintes fez Antônio Knivet da Inglaterra ao mar do Sul em companhia de Thomaz Cavendish. In RIHGB, (?), p. 108 KNIVET, Anthony. Vária fortuna e estranhos fados. (trad.) São Paulo, ed. Brasiliense, 1947. LÉRY, Jean de. Viagem à Terra do Brasil (1563). Trad. E notas de Sérgio Milliet. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1933. MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão ao estado do Brasil. (1612). Ed. Crítica com introdução e notas de Hélio Vianna. Recife, Arquivo Público Estadual, 1955. MORENO, Martins Soares. “Relação do Ceará” (1618). In STUDART, Barão de (ed.). Documentos para a História do Brasil e especialmente do Ceará, 1608-1625, Fortaleza, 1904, 133-140. NÓBREGA, Manoel da. Cartas do Brasil (1549-1560). Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, 1988. NÓBREGA, Manoel. “Informação das terras do Brasil mandada pelo padre Nóbrega”. In RIHGB. 1865, t. VI, 2a edição. Rio de Janeiro, Tipografia de João Inácio da Silva. NÓBREGA, Pe. Manoel da. Cartas do Brasil do Padre Manoel da Nóbrega, 1549-1560. Rio de Janeiro, Imprensa nacional, 1886. Novas Cartas Jesuíticas. Editadas por Serafim Leite. São Paulo, Cia. Editora nacional, 1940. Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil: Carta de Pero Vaz de Caminha, Carta de Mestre João Faras, Relação do Piloto Anônimo. Organização, introdução., comentários, notas e bibliografia de Paulo Roberto Pereira. Rio de Janeiro, Ed. Lacerda, 1999. Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Confissões de Pernambuco – 1591-1592. J. A. Gonsalves de Melo (Ed.). Recife, Universidade Federal de Pernambuco, 1970. Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Confissões da Bahia – 1591-1592. Prefácio de Capistrano de Abreu, Rio, F. Briguiet, 1935. 150 Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Denunciações da Bahia – 1591-1593. Prefácio de Capistrano de Abreu, São Paulo, Ed. Paulo Prado, 1925. Primeira Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendonça – Denunciações de Pernambuco – 1593-1595. Introdução de Rodolfo Garcia. São Paulo, Ed. Paulo Prado, 1925. SALVADOR, Fr. Vicente do. História do Brasil (1627). 5a edição, São Paulo, Melhoramentos, 1965. Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil – Denunciações da Bahia (1618-Marcos Teixeira). Introdução de Rodolfo Garcia. Anais da Biblioteca Nacional do Rio De Janeiro, vol. 49, 1927. Segunda Visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador o licenciado Marcos Teixeira. Livro das Confissões e Ratificações da Bahia (1618-1620). Introdução de Eduardo de Oliveira França e Sonia Siqueira. Anais do Museu Paulista, tomo XVII. SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587.4a edição. São Paulo, Ed. Nacional, 1971, Brasiliana, vol. 117. SOUSA. Pero Lopes de. Diário de Navegação (1530-1532). Lisboa, Ultramar, 1968. STADEN, Hans. “Duas viagens ao Brasil”. In Hans Staden: primeiros registros e escritos ilustrados sobre o Brasil e seus habitantes(1587). Trad. De Angel Bojadsen. São Paulo, Ed. Terceiro Nome, 1999. TEIXEIRA, Bento. Prosopopéia (circa 1583-1587). Comentários de Celso Cunha e Carlos Duval. São Paulo, Melhoramentos; Brasília, INL, 1977. THÉVET, André. Singularidades da França Antártica (1558), São Paulo, Cia. Ed. Nacional, 1944. 151 2. Bibliografia ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial. 6. ed., revista, anotada e prefaciada por José Honório Rodrigues. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1976. ANDERSON, Benedict Richard O'Gorman. Imagined communities. Título em Português: Nação e consciencia nacional.Trad. de Lolio Louren de Oliveira. São Paulo, Atica, 1989. ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. Trad. De Lólio Lourenço de Oliveira. São Paulo, Ed. Ática, 1989. BAIÃO, Antonio. A Inquisição em Portugal e no Brasil. Lisboa, Calçada do Cabra, 1906. BOXER, Charles. Os holandeses no Brasil-1624-1654. Trad. Olivário M. de Oliveira Pinto. São Paulo, Nacional, 1961. BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itália: um ensaio. Trad. Sérgio Tellarioli. São Paulo, Cia. Das Letras, 1991. CALMON, Pedro. História do Brasil. São Paulo, Rio de Janeiro, Ed. Nacional, 1939-1956. CHIARAMONTE, Jose Carlos. “Formas de Identidad en el Río de La Plata luego de 1810”. In Boletín del Instituto de Historia Argentina y Americana “Dr. E. Ravignani”. Tercera Serie, num. 1, 1er semestre de 1989. Buenos Aires, pp. 71-92. DOBB, Maurice, A evolução do capitalismo. 7a ed. Rio de Janeiro, Zahar, 1980. ELIAS, Norbert. O processo civilizador - Formação do Estado e Civilização. Trad. Da versão inglesa Ruy Jungman. Revisão, apresentação e notas Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1993, 2 vols. FONTANA, Josep, História: Análise do Passado e Projeto Social. Trad. Luiz Roncari. Bauru, Edusc, 1998. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Trad. Luís Felipe Baeta Neves. Petrópolis, Vozes. Lisboa, Centro do Livro Brasileiro, 1972. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad. Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis, Vozes, 1987. FRAGOSO, João, BICALHO Fernanda & GOUVEIA Maria de Fátima (orgs.) O Antigo Regime nos Trópicos- A dinâmica imperial portuguesa (sécs. XVI- XVII). Rio de janeiro, Civilização Brasileira, 2001. 153 FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala : formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 28a ed. Rio de Janeiro, Record, 1996. FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos: decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 9a ed. Rio de Janeiro, Record, 1996. GODINHO, Vitorino Magalhães. “A economia política dos descobrimentos”. GODINHO, Vitorino Magalhães. Os descobrimentos e a economia mundial. Lisboa, Presença, 1984, 4 vols. HOLANDA, Sérgio Buarque (org.). História geral da civilização Brasileira. São Paulo, Difel, 1982, 14 vols. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. São Paulo, Cia. das Letras, 1994. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26a ed. 13a reimpressão. Rio de Janeiro, Cia. das Letras, 1995. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. São Paulo, Brasiliense, 1994. HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Macunaíma: da literatura ao cinema. Rio de Janeiro, José Olympio, 1978. JANCSÓ, István. “A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final do século XVIII”. Cap. 9 de “Condições de Privacidade na Colônia”. Introdução à Cotidiano e vida privada na América portuguesa. Vol. Organizado por Laura de Melo e Souza. In História da Vida Privada no Brasil, Coleção organizada por Fernando Antônio Novais. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, pp. 387-436. LACOMBE, Américo Jacobina. Introdução ao Estudo da História do Brasil. São Paulo, Companhia Ed. Nacional/Ed. Universidade de S. Paulo, 1974 LEITE, Pe. Serafim. “Fernão Cardim autor da informação da Província do Brasil para o Nosso Padre”, de 31 de dezembro de 1583. In Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 30 de dezembro de 1945. MARIUTTI, Eduardo Barros A Transição do Feudalismo ao Capitalismo: um balanço do debate. Campinas, SP, 2000 - Dissertação de Mestrado em História Econômica - Instituto de Economia, Unicamp. 154 MELLO, Evaldo Cabral. “A Nova Lusitana”. Capítulo terceiro de MOTA, Carlos Guilherme (org.). A viagem incompleta : a experiência brasileira (1500-2000). Vol. I. Formação: Histórias. São Paulo, ed. Senac São Paulo, 2000, 2vols. MENDONÇA, Renato de. “América Espanhola e Portuguesa”. In Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 207. Rio de Janeiro, Depto. De Imprensa Nacional, 1952. NOVAIS, Fernando A., “O Brasil de Hans Staden”. Capítulo de Hans Staden: primeiros registros e escritos ilustrados sobre o Brasil e seus habitantes (1587). Trad. De Angel Bojadsen. Mary Lou Paris e Ricardo Ohtake (editores.). São Paulo, Ed. Terceiro Nome, 1999. NOVAIS, Fernando Antônio. “Colonização e sistema colonial: discussão de conceitos e perspectiva histórica”. In Anais no IV Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História. São Paulo, 1969, p. 243-268. NOVAIS, Fernando Antônio. “Condições de Privacidade na Colônia”. Introdução à Cotidiano e vida privada na América portuguesa. Vol. Organizado por Laura de Melo e Souza. In História da Vida Privada no Brasil, Coleção organizada por Fernando Antônio Novais. São Paulo, Companhia das Letras, 1997, p. 15. NOVAIS, Fernando Antônio. “Etnocentrismo e Anacronismo no descobrimento do Brasil”. Entrevista concedida à folha de São Paulo por ocasião dos 500 anos do descobrimento. (abr./2000) NOVAIS, Fernando Antônio. “O Brasil nos quadros do Antigo Sistema Colonial”. In MOTA, Carlos Guilherme (org.). Brasil em perspectiva. Pref. De João Cruz Costa; org. e introdução de Carlos Guilherme Mota. 20 ª ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1995, pp. 47-64. NOVAIS, Fernando Antônio. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). 6a edição. São Paulo, HUCITEC, 1995. NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia 1624-1654. São Paulo, Perspectiva, Ed. Universidade de São Paulo, 1972. O’GORMAN, Edmundo. A invenção da América: reflexão a respeito da estrutura histórica do Novo Mundo e da consciência histórica do seu devir. São Paulo, Unesp, 1992. PAGDEN, Anthony. “Identity Formation in Spanish America”. Ed. by Nychols Canny & Anthony Pagden. Colonial identity in the Atlantic world : 1500-1800. Princeton; N.J., Princeton University Press, 1989 155 PRADO Jr, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. 22a edição. São Paulo, ed. Brasiliense, 1992. PRADO, Paulo. Retrato do Brasil : ensaio sobre a tristeza brasileira. 9a edição. São Paulo, Cia. Das Letras, 1998. RODRIGUES, José Honório. História da História do Brasil. São Paulo, Cia Ed. Nacional; MEC, 1979. SARAIVA, Antônio José. Inquisição e Cristãos Novos. 6a edição. Lisboa, Editorial Estampa, 1994. SCHWARTZ, Stuart B., “’Gente da terra braziliense da nasção’. Pensando o Brasil: a construção de um povo”. Cap. 4 de MOTA, Carlos Guilherme. A viagem incompleta- a experiência brasileira (1500-2000). Vol II Formação-Histórias. São Paulo, Ed. Senac, 2000. SCHWARTZ, Stuart B.. “The formation of a Colonial Identity in Brazil”. Ed. by Nychols Canny & Anthony Pagden. Colonial identity in the Atlantic world: 1500-1800. Princeton; N.J., Princeton University Press, 1989 SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos : engenhos e escravos na sociedade colonial 1550-1835. Tradução Laura Teixeira Motta. São Paulo, Companhia das Letras, 1988. SCHWARZ, Roberto. “As idéias fora do lugar”. Introdução de Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 3a ed. São Paulo, Livraria Duas Cidades, 1988. SILVA, Rogério Forastieri da. Colônia e nativismo: a História como “biografia da nação”. São Paulo, Hucitec, 2001. SIQUEIRA, Sônia A. A Inquisição Portuguesa e a Sociedade Colonial. São Paulo, Ática, 1978. SOUZA, Laura de Mello e. Inferno atlântico : demonologia e colonização seculos XVI-XVIII. São Paulo, Cia de Letras, 1993. SOUZA, Laura de Melo e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e Religiosidade Popular no Brasil Colônia. 4a Reimpressão. São Paulo, Cia. Das Letras, 1994. SWEEZY, Paul, A transição do feudalismo para o capitalismo, tradução de Isabel Didonnet, 3a ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983. TAUNAY, Affonso de E. Visitantes do Brasil Colonial (secs. XVI-XVIII). São Paulo, Ed. Nacional, 1938. 156 TAUNAY, Afonso de E’. “Viagens e Viajantes do Brasil Colonial”. In RIHGB, 1922, v. 146, t. 92, p. 328 TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone Moisés. São Paulo, Martins Fontes, 1993. VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo, Companhia das Letras, 1995. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo, Livraria Ed. Pioneira, 1967. WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Trad. de Régis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa. Revisão técnica de Gabriel Cohn. 3a edição. Brasília, Ed. Universidade de Brasília, 1994. WILLEKE, Frei Venâncio. Livro dos guardiães do convento de São Francisco na Bahia (15871862). Rio de Janeiro, Instituto Pastrim de História Nacional, 1978. SITES PESQUISADOS: História do açúcar: http://www.ceha-madeira.net/sugar/introd.htm Ambrósio Fernandes Brandão: http://www.pbnet.com.br/openline/mfarias/ambrosio.htm 157