Encontros Teológicos adere a uma Licença Creative Commons –
Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.
A Doutrina Social no magistério
de Francisco
Social Doctrine in the magisterium of Francis
Elias Wolff*
PUC-PR
Tiago Trevisan**
PUC-PR
Recebido em: 01/03/2021. Aceito em: 26/03/2021.
Resumo: A Doutrina Social da Igreja apresenta orientações de como viver o
Evangelho nas relações sociais e com todas as criaturas, propondo ações concretas para a construção da paz e da justiça nas relações entre pessoas, povos
e nações. Francisco com o seu magistério social contribui de modo significativo
para superar as dificuldades que o mundo enfrenta para afirmar a dignidade
da vida humana e de toda a criação. O presente artigo aborda alguns temas
sociais no magistério de Francisco, que compõem a doutrina social da Igreja
num modo bem próprio do seu pontificado. A metodologia adotada neste artigo
consiste em uma pesquisa qualitativa. As fontes primordiais são os documentos
emanados pelo Papa Francisco e comentários a respeito em livros e artigos
científicos. A perspectiva da análise é a teologia conciliar e latino-americana. A
conclusão é que Francisco, inserido na história atual da humanidade e atento
às suas múltiplas questões, desenvolve processos que, fundamentados na fé
cristã, incidem na vida das pessoas e dos povos, convocando ao encontro e
diálogo que possibilita cooperação para transformar o que não condiz com a
vida na dignidade, na justiça e na paz, condições para a fraternidade universal.
*
Doutor em Teologia (Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, 2000). Mestre em
Filosofia (Pontifícia Universidade Santa Cruz, Roma, 1999). Mestre em Teologia
(Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma, 1998). Graduado em Teologia (Faculdade
Jesuíta de Filosofia e Teologia, FAJE, Belo Horizonte, 1993).
E-mail: elias.wolff@pucpr.br
** Mestrando em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba). Graduado em Teologia (Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2020). Graduado
em Pedagogia (Faculdade de Campina Grande do Sul – FACSUL, Campina Grande,
2016).
E-mail: trevisaan@gmail.com
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021 | p. 107-128
A Doutrina Social no magistério de Francisco
Palavras-chave: Doutrina social. Cultura do encontro e do diálogo. Fraternidade
universal.
Abstract: The Church’s Social Doctrine presents guidelines on how to live the
Gospel in social relations and with all creatures, proposing concrete actions for
the construction of peace and justice in relations between individuals, peoples and
nations. Francis, with his social teaching, contributes significantly to overcome
the difficulties that the world faces in affirming the dignity of human life and of all
creation. This article deals with some social themes in Francis’ magisterium, which
make up the Church’s social doctrine in a very specific way of his pontificate. The
methodology adopted in this article consists of a qualitative research. The primary
sources are the documents issued by Pope Francis and comments on them in
books and scientific articles. The perspective of the analysis is conciliar and
Latin American theology. The conclusion is that Francis, inserted in the current
history of humanity and attentive to its multiple questions, develops processes
that, based on the Christian faith, affect the lives of individual and peoples,
calling for meetings and dialogue that enables cooperation to transform what it
matches life in dignity, justice and peace, conditions for universal brotherhood.
Keywords: Social doctrine. Culture of encounter and dialogue. Universal brotherhood.
Introdução
A Doutrina Social apresenta-se hoje como um campo que aos
poucos vai sendo descoberto, tanto pelos cristãos quanto pelo mundo. Resultado do magistério pontifício católico desde Leão XIII, com a encíclica
Rerum Novarum (15/05/1891), assumido pelas Conferências Episcopais
em diferentes regiões e espaços eclesiásticos, esse ensino fortalece as
iniciativas que promovem vida humana e seus direitos, estabelecendo
parcerias com a sociedade e pessoas “de boa vontade”, crentes ou não. O
papa Francisco colabora nesse processo, abrindo-se às questões ambientais com a encíclica Laudato Si´ (24/05/2015), estreitando promovendo
o diálogo e a cooperação conjunta a favor da “Casa Comum”.
Ao longo da história humana, muitos e enormes são os desafios
que surgem constantemente para a construção da fraternidade universal,
que o papa Francisco identifica na encíclica Fratelli Tutti (03/10/2020)
como “sombras de um mundo fechado” (FT 9-56) como o nacionalismo
fechado e agressivo, as expressões de racismo, o trabalho escravo, as
relações marcadas pelo ódio e destruição, as ilusões da comunicação,
as questões ambientais, entre outras. O Papa Francisco, atento a essa
realidade, contribui por meio de seu magistério e essas abordagens
justificam a relevância deste artigo que almeja somar-se aos esforços, a
108
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
Elias Wolff e Tiago Trevisan
fim de elucidar que há um caminho de esperança que, marcado pelo bem
comum e pela fraternidade, pode inaugurar um tempo novo.
O presente artigo objetiva explicitar alguns dos temas que
constituem a Doutrina Social da Igreja enfatizados no magistério do
Papa Francisco. Para tanto, percorre-se o mesmo, tendo por base a
exortação apostólica Evangelii Gaudium e as encíclicas Laudato Si1 e
Fratelli Tutti2. Retoma-se brevemente a doutrina social da Igreja e nela
contextualiza-se o pontificado de Francisco, dando particular atenção à
sua proposta de uma “cultura do diálogo”, que apresenta interpelações
à igreja e ao mundo. Com essa base, o artigo foca na análise de algumas
temáticas abordadas no magistério de Francisco, como: o princípio do
bem comum, a paz social e justiça intergeracional; a opção preferencial
pelos pobres; a ecologia integral, a fraternidade e a amizade social.
Naturalmente, não se propõe esgotar a abordagem desses temas, mas
espera-se favorecer a sua compreensão e recepção no modus essendi
et operandi da igreja.
Para tanto, na primeira seção é brevemente abordada a doutrina
social e as marcas do magistério de Francisco, sobretudo as suas interpelações. Na segunda seção, serão elucidados alguns dos temas sociais
tratados pelo papa, a saber: o princípio do bem comum, a paz social
e justiça intergeracional, a opção preferencial pelos pobres, ecologia
integral, a fraternidade e amizade social.
1
A Doutrina Social da Igreja: um tesouro
da humanidade
A Doutrina Social da Igreja3, no sentido que a tradição católica
a entende hoje, inicia em 1891, com a encíclica Rerum Novarum, do
papa Leão XIII4. Desde então, todos os papas publicaram documentos,
refletindo sobre questões sociais e buscando respostas aos desafios
1
FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si. São Paulo: Paulus: Loyola, 2015.
Daqui em diante: LS.
2
FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Fratelli Tutti. São Paulo: Paulinas, 2020. Daqui
em diante: FT.
3
Daqui em diante = DSI.
4
LEÃO XIII, Papa. Carta Encíclica Rerum Novarum: Sobre a condição dos operários.
Disponível em: http://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html. Acesso em: 15 fev. 2021.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
109
A Doutrina Social no magistério de Francisco
socioculturais de cada época5. Há mais de 100 anos, os Papas e as
Conferências Episcopais têm ecoado palavras firmes e claras a respeito
da pessoa humana e dos seus direitos.6 Diante disso, “a Igreja, perita
em humanidade, em uma espera confiante e ao mesmo tempo operosa,
continua a olhar para os ‘novos céus’ e para a ‘terra nova’ (2Pd 3, 13) e
a indicá-los a cada homem, para ajudá-lo a viver a sua vida na dimensão
do sentido autêntico”.7
Assumindo a missão de anunciar o Evangelho do Reino ao mundo,
a Igreja, por meio da DSI, segue atualizando a sua mensagem de libertação e de redenção. Assim, evangelizar o social é soprar no coração
do ser humano a carga de sentido e de libertação do Evangelho, a fim
de se construir uma sociedade, mais humana, no horizonte do Reino de
Deus. A DSI compõe o ministério da igreja, o seu discipulado e a sua
fidelidade à missão, de modo que tido o que diz respeito à comunidade
humana não lhe é alheio.8
Assim, a DSI possui uma natureza teológica, mais especificamente teológico moral, visando orientar comportamento social dos fiéis
católicos, mas com propostas que implicam na vida de todo ser humano.
A DSI “situa-se no cruzamento da vida e da consciência cristã com as
situações do mundo e exprime-se nos esforços que indivíduos, famílias,
agentes culturais e sociais, políticos e homens de Estado realizam para
lhe dar forma e aplicação na história”.9
Mesmo que os documentos católicos destinem-se primeiramente
a um segmento específico do cristianismo, seu ensino tem características
universais, convidando todas as pessoas, indistintamente, a percorrer caminhos de justiça e de paz. Assim, a DSI apresenta princípios que podem
guiar ações em todo o mundo, a fim de construir a justiça e a paz10. Para
110
5
MARTINS, Alexandre Andrade. Doutrina Social da Igreja e Teologia da Libertação:
diferentes abordagens. In: ZACHARIAS, Ronaldo; MANZINI, Rosane (org.). Magistério
e doutrina social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2016. p. 53.
6
STRINGHINI, Pedro Luiz. Apresentação. In: ZACHARIAS, Ronaldo; MANZINI, Rosane
(org.). Magistério e doutrina social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2016. p. 5.
7
PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina Social da Igreja.
Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_doc_20060526_compendio-dott-soc_po.html. Acesso em: 8
jan. 2021. Apresentação. Daqui em diante = PCJP.
8
PCJP, 2004, n. 67-68.
9
PCJP, 2004, n. 67.
10
MARTINS, 2016, p. 55-56.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
Elias Wolff e Tiago Trevisan
isso, a Igreja entende que tem “a competência que lhe vem do Evangelho:
da mensagem de libertação do homem anunciada e testemunhada pelo
Filho de Deus humanado”.11
Ademais, atenta à história e interpelada pelos eventos que nela
acontecem, a DSI apresenta sua capacidade de renovar-se constantemente. Orientada pela luz do Evangelho se caracteriza pela continuidade e
renovação e se “apresenta assim como um ‘canteiro’ sempre aberto, em
que a verdade perene penetra e permeia a novidade contingente, traçando
caminhos inéditos de justiça e de paz”. 12
2
O pontificado de Francisco: luz e esperança
O pontificado do Papa Francisco é marcado pelo esforço incansável para promover comportamentos e atitudes que se caracterizem
pela proximidade entre as pessoas, a escuta mútua, o ato de olhar nos
olhos e olhar na mesma direção, o que possibilita conhecimento mútuo,
cooperação e comunhão.13 Esse esforço coloca Francisco num horizonte fraternal, com relações frutuosas dentro da Igreja – não obstante as
resistências que enfrenta – bem como no mundo. Os Critérios para essa
relação é o “Evangelho da alegria” 14, anunciado, testemunhado e vivido
concretamente na busca do bem comum.
2.1 Francisco, o Papa do diálogo
Ao ser eleito Francisco deparou-se com a necessidade de assumir
uma reforma da Igreja e de chamar o povo cristão a voltar-se ao Evangelho acolhido, vivido e proclamado.15 Deste modo, Francisco contra
no diálogo um caminho de transformação. Não como mera pronúncia
de palavras, mas como convicção: somos diálogo. O papa vive e propõe um “diálogo aberto”16, amplo e profundo, do qual ninguém está
excluído. Estabelece relações com as pessoas, a sociedade, as diversas
11
PCJP, 2004, n. 68.
12
PCJP, 2004, n. 76-86.
13
Fratell Tutti, 198. Daqui em diante = FT.
14
FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelli Gaudium. São Paulo: Paulus:
Loyola, 2014. n. 1, 21, 23. Daqui em diante = EG.
15
GABRIELE CIPRIANI. Da fraternidade à comunhão: o ecumenismo do papa Francisco.
Caminhos de Diálogo. Curitiba, ano 6, n. 8, p. 8-18, jan./jun. 2018.
16
FT 6-7.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
111
A Doutrina Social no magistério de Francisco
igrejas, religiões e culturas. O papa argentino busca, assim, construir
pontes com o objetivo de aproximar diferentes instâncias, tanto nas
relações internas da igreja (ad intra), quanto nas relações externas a
ela (ad extra).17
Essa postura coloca o Papa Francisco na direção do Concílio
Vaticano II, que orienta a comunidade dos que creem para “a relação da
Igreja com o mundo, colhendo os ‘sinais dos tempos’, as solicitudes para
missão, exercendo a solidariedade e o companheirismo”18. Enfatizando
o ensino conciliar, Francisco vai ao encontro das diferenças e colhe delas contribuições para a compreensão e pregação do Evangelho. Desse
modo, o fundamento do diálogo está na fé em Cristo, contemplando sua
proximidade, atenção e cuidado para com as pessoas tal como ensina,
por exemplo, a parábola do Bom Samaritano19.
Disso depreende-se a compreensão de discipulado e de missão
da igreja. Não é uma igreja julgadora de quem é diferente, mas uma
igreja que se coloca em postura de escuta e busca de compreensão da
verdade que o outro expõe, ou seja, uma “Igreja em saída”20, que se
faz próxima e companheira. Nas situações difíceis em que o mundo
vive, a Igreja se faz companheira e parceira na busca de superação
dos problemas, como as contradições e ambiguidades da globalização
na lógica do mercado, as fragilidades sociais que se intensificam pela
atual pandemia do novo coronavírus e da Covid 19, entre outras. O
discipulado e seguimento de Cristo coloca a igreja numa atitude de
serva e humildade na busca conjunta do bem comum, da verdade, do
que possibilita a realização da humanidade em conformidade com o
Evangelho da “vida em abundância” (Jo 10,10). Atento ao que o Concílio Vaticano II propôs, Francisco dialoga, concretamente, sobre os
elementos socioculturais e religiosos que hoje interpelam a fé cristã
e a missão da igreja, como orientam, por exemplo, os documentos
conciliares Gaudium et spes21, Unitatis redintegratio, Nostra aetate,
Dignitatis humanae, entre outros.22
112
17
ELIAS WOLFF. Igreja em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2018. p.7.
18
WOLFF, 2018, p. 8.
19
BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Nova edição renovada e ampliada. São Paulo:
Paulus, 2015. Lc 10,25-37.
20
EG 20-23.
21
Daqui em diante = GS.
22
WOLFF, 2018, p. 15.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
Elias Wolff e Tiago Trevisan
2.2 O magistério social de Francisco e suas interpelações
Na esteira desses documentos conciliares, e em comunhão com seus
antecessores, Francisco dá continuidade ao ensino social da igreja através
das encíclicas Laudato Sí e Fratelli Tutti, embora não sejam os únicos textos
que tratam de questões socioambientais, como se verifica, por exemplo, na
Evangelii Gaudium. Tais documentos possuem duas principais particularidades. A primeira é que integram vozes da Igreja Católica, oriundas de várias
partes do mundo, de modo que ele cita não somente os papas que lhe antecederam, mas apresenta como fonte também documentos das conferências
episcopais de várias partes do mundo. Uma segunda particularidade é que
Francisco valoriza, de modo positivo e prático, o diálogo com as ciências,
com as outras tradições religiosas e com o mundo secular.23
Diante da primeira particularidade, Francisco dá voz de modo
especial às Conferências Episcopais do Sul, entre elas a África do Sul,
Filipinas, Bolívia, Brasil, Nova Zelândia, Austrália e Federação das Conferências Episcopais da Ásia24. Na exortação apostólica Evangelii Gaudium, o Francisco apresenta as linhas-mestras do seu pontificado, tendo
como foco os sujeitos, as instâncias e os processos de uma nova agenda
evangelizadora da Igreja, tendo por prioridade os “mais indigentes”.25
A Laudato Si insere-se no magistério social da igreja, como
Francisco explicita logo no início desse documento, convidando a todos
para o cuidado da Casa Comum, o que exige “reconhecer a grandeza, a
urgência e a beleza do desafio que temos pela frente”26. Nessa encíclica,
Francisco percorre o seguinte caminho: apresenta os aspectos da crise
ecológica, e partindo dela, então, apresenta uma base concreta para o
percurso ético e espiritual27. Dando sequência, o papa retoma os argumentos da tradição judaico-cristã.28
Posteriormente, ele apresenta as raízes da situação da atual crise
ecológica, identificando as suas causas29. A partir disso, o pontífice,
23
MARTINS, 2016, p. 56-57.
24
MARCIAL MAÇANEIRO. Vozes do sul na encíclica Laudato si’: Fontes e temas. Pistis
& Praxis – Teologia e Pastoral. Curitiba, v. 8, n. 3, p. 715-760, set./dez. 2016. p. 757.
25
EG 65.
26
LS 15.
27
LS Cap. I.
28
LS Cap. II.
29
LS Cap. III.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
113
A Doutrina Social no magistério de Francisco
propõe uma “ecologia integral”30. Na sequência, o papa aponta grandes
linhas de ação31. Por fim, afirmando que toda a mudança passa por um
caminho educativo, apresenta as linhas de maturação humana, inspiradas
na experiência espiritual cristã.32
A encíclica Fratelli Tutti, insere-se também no magistério social
da igreja, conforme afirma Francisco, no parágrafo 6. Nela Francisco
dedica-se a tratar do amor fraterno, na amizade entre os povos, em sua
dimensão local e universal. Com isso, o pontífice visa buscar caminhos
para superar as várias formas de eliminar atitudes de intolerância e de
indiferença entre pessoas e povos, com suas culturas e credos, a fim de
que todas as pessoas possam trabalhar na construção de “um novo sonho
de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras” 33.
A Fratelli Tutti percorre o seguinte itinerário: apresenta tendências do mundo atual, que dificultam o desenvolvimento da fraternidade
universal, identificando “sombras de um mundo fechado” 34; aponta luz
para dissipar essas sombras, tendo como raio da parábola do “bom samaritano” (Lc 10, 25-37) 35. Na sequência, recorda-se que o ser humano
realiza-se e desenvolve-se por meio do encontro36. Desse modo, afirmar
que os seres humanos são todos irmãos e irmãs não é uma abstração, mas
um modo concreto de viver que provoca todas as pessoas a se moverem
na direção de um encontro mútuo37.
Com efeito, essa é a base para o desenvolvimento da amizade
entre os povos, a formação de uma comunidade mundial capaz de viver
a fraternidade de modo concreto38. Por isso, urge o exercício do diálogo,
condição para verdadeira aproximação, entendimento mútuo e convivência pacífica, tornando o mundo melhor para toda a humanidade39. Desse
modo, cuida-se do mundo, tecendo a paz por meio de pontos que geram
114
30
LS Cap. IV.
31
LS Cap. V.
32
LS Cap. VI.
33
FT 6.
34
FT, Cap. I.
35
FT 56.
36
FT 87.
37
FT 128.
38
FT 154.
39
FT 198.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
Elias Wolff e Tiago Trevisan
processos de relações renovadas no horizonte da fraternidade40. Por fim,
recorda-se o importante papel que as várias religiões têm nesse trabalho,
sendo elas as primeiras promotoras da justiça, da fraternidade e da paz41.
3
O princípio do bem comum, a paz social
e a justiça intergeracional
O princípio do bem comum é referenciado na Evangelii Gaudium associado à paz social, entendida não como uma mera ausência de
violência conquistada por meio da imposição de uma das partes, muito
menos resultado de um consenso de escritório ou a paz de uma efêmera
minoria. Mas, assumindo o ensino do Papa Paulo VI, Francisco aponta
para uma paz que é construída no dia a dia, que busca a ordem querida
por Deus e que traz em si a justiça entre os seres humanos42.
Na Evangelii Gaudium, Francisco recorda que para a construção
da paz, da justiça e da fraternidade são necessários quatro princípios:
a – O tempo é superior ao espaço: “o tempo ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os em elos duma cadeia em constante
crescimento”43. Em sentido amplo, tempo aqui é entendido como “tempo
de processos”;44
b – A unidade prevalece sobre o conflito: o conflito não deve ser
ignorado ou potencializado, mas deve ser resolvido e transformado em
elo de um novo processo. A paz exige solidariedade, na qual é possível
desenvolver-se comunhão em meio às diferenças, relacionadas e harmonizadas pela ação do Espírito Santo;45
c – A realidade é mais importante que a ideia: essa é a dimensão
real da vida. As elaborações conceituais precisam estar a serviço da
realidade, de modo que ideia e realidade estejam juntas;46
40
FT 225.
41
FT 271.
42
EG 218.
43
EG 223.
44
WOLFF, 2018, p. 47.
45
EG 226-230.
46
EG 231-233.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
115
A Doutrina Social no magistério de Francisco
d – O todo é superior à parte: tal perspectiva exige uma unidade
entre o global e o local. É preciso estar atento à realidade global, para
não viver de modo mesquinho, mas também é preciso saber que é no
local em que se caminha com os pés no chão. O todo é mais que a soma
das partes e, portanto, em qualquer lugar e ambiente é preciso alargar o
olhar para perceber o bem maior que trará benefícios a todas as pessoas.47
Nesse sentido, vê-se que o primado do bem comum percorre as
encíclicas do Papa Francisco, e na Laudato Si afirma que “tudo está
interligado”.48 Deste modo, para uma ecologia humana, o princípio do
bem comum tem um papel central e unificador na ética social49. Esse
princípio implica no respeito e na promoção dos direitos fundamentais
inalienáveis de toda pessoa, garantias do seu desenvolvimento integral.50
No atual cenário sociocultural, em que cada vez mais aumenta o
número de pessoas descartadas, privadas dos direitos humanos básicos,
o princípio do bem comum apresenta-se como “um apelo à solidariedade
e uma opção preferencial pelos mais pobres. Esta opção implica tirar
as consequências do destino comum dos bens da terra”. 51 A política é
um dos meios pelos quais se constroem os projetos a longo prazo para
o desenvolvimento de todos e do bem comum. Isso urge a soma dos
esforços, superando toda polarização.52 Constrói-se, assim, sociedades
abertas, que integrem a todos e a todas, sem tratar alguém como estranho
apenas por sua cor, etnia, ideologia ou credo. Num mundo de relações
fraternas, não há corpos estranhos, todos convivem na fraternidade e
partilham do bem comum.53
O maior desafio aqui é a superação dos individualismos. A cultura
pós-moderna incentiva posturas subjetivistas que tendem ao isolamento
entre pessoas e povos. Muitos dos atuais problemas sociais se enraízam
numa busca egoísta de satisfação imediata dos próprios interesses,
isolando-se no indiferentismo em relação ao outro. E mesmo a soma
dos interesses individuais é incapaz de construir um mundo melhor
116
47
EG 234-235.
48
LS 91.
49
LS 156.
50
LS 157.
51
LS 158.
52
FT 15.
53
FT 97.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
Elias Wolff e Tiago Trevisan
para toda a humanidade54. A vida social precisa estar estruturada numa
política justa para garantir comunidade, com relações justas e pacíficas
entre pessoas, povos e nações, numa verdadeira “amizade social”55. Tal
política exige líderes populares capazes de unir as pessoas com base a
projetos transformação e crescimento humano global56. Tem-se, assim,
caminho seguro para as gerações futuras57. Urge refletir sobre o que elas
irão herdar da geração atual. Urge planejar para as gerações futuras um
planeta habitável58 e não apenas ruínas, desertos e lixo59. Para isso, faz-se
necessário ampliação de horizontes de interesses, pessoal e coletivamente, para perceber quem hoje está à margem do desenvolvimento e quem
poderá estar também no futuro.60
Portanto, o percurso para a paz é uma responsabilidade coletiva,
por meio da qual cada pessoa pode, por meios distintos, trabalhar em
prol do bem comum61. Particular responsabilidade nisso tem as pessoas
religiosas. A partir de sua fé, precisam encontrar espaços de diálogo e
cooperação na construção do bem comum, de modo que cada tradição
religiosa poderá enriquecer a vivência humana com suas contribuições
sobre o sentido da vida que colhem do Mistério 62.
4
A opção preferencial pelos pobres
O pontificado de Francisco apresenta-se como importante força
para a opção que a igreja católica na América Latina, na Conferência
de Puebla (1979) fez pela opção preferencial pelos pobres. Nesse sentido, Francisco ao propor uma igreja na perspectiva do Vaticano II, faz
também sintonia com a eclesiologia latino-americana, que denuncia
profeticamente o que contradiz o projeto evangélico de vida na paz
e na justiça63. Isso faz com que o kerigma tenha repercussões sociais
54
FT 105.
55
FT 154.
56
FT 159.
57
LS 159.
58
LS 160.
59
LS 161.
60
LS 162.
61
FT 228.
62
FT 282.
63
WOLFF, 2018, p. 14-15.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
117
A Doutrina Social no magistério de Francisco
concretas nas comunidades religiosas e na sociedade como um todo64.
A eclesiologia conciliar e latino-americana orientam o olhar de fiéis em
Cristo para reconhecê-lo nas pessoas que vivem em situações de pobreza
extrema65. Para o pontífice, a preocupação pelo desenvolvimento integral
dos pobres e dos marginalizados deriva da fé em Cristo66. Isso não é mera
opção teórica, mas um estilo de vida. O Papa Francisco “optou por um
estilo de vida pobre, simples, abnegado como coerência da continuidade
da opção pelos pobres”67.
Os pobres são os que mais sofrem com a deterioração do planeta. Eles são vítimas das doenças causadas pela poluição68, afetados
diretamente pelas mudanças climáticas69, o aquecimento global70, privados de água limpa e potável71, carentes de saneamento básico72. São,
consequências do fato de serem vítimas do sistema econômico, que os
têm à margem do mercado e por isso também não lhes permite sequer
acesso aos recursos básicos73. Pela dificuldade na habitação, os pobres
são jogados nas periferias das grandes cidades, numa vida marcada pela
violência74. Assim, fica claro que boa parte da humanidade é sacrificada
em benefício de alguns setores da sociedade.75
A vida social em situação indigna para o ser humano é vinculada
com a degradação ambiental. Para Francisco, não se resolve os problemas sociais de forma isolada dos problemas ambientais, de modo que
humanidade integral se vincula com uma “ecologia integral”, que exige
ouvir “tanto o clamor da terra como o clamor dos pobres”76. Nesse sentido, o direito dos povos, a dignidade dos pobres e o respeito ao meio
118
64
EG 177.
65
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição pastoral “Gaudium et spes”. In: COMPÊNDIO
DO CONCÍLIO VATICANO II. Constituições, Decretos, Declarações. 31. ed. Petrópolis:
Vozes, 2018. n. 88.
66
EG 186.
67
WOLFF, 2018, p. 45.
68
LS 20.
69
LS 25.
70
LS 51.
71
LS 29.
72
LS 30.
73
LS 109.
74
LS 152.
75
FT 18.
76
LS 49.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
Elias Wolff e Tiago Trevisan
ambiente devem estar acima da liberdade de empresa ou de mercado77.
A prioridade deve ser a erradicação da miséria e o desenvolvimento
humano integral78. Isso é o que garante o sentido da vida no presente e
dá confiança no futuro. Assim, a prática da caridade assistencial deve ser
sempre algo provisório, enfrentando situações emergenciais. A caridade
verdadeira dá à pessoa condições para garantir a própria existência, pelo
trabalho digno79 , o que exige uma política que assegure direitos humanos
e ambientais para todas as pessoas e todos os povos.80
Entre os meios necessários para garantir a justiça socioambiental,
destaca-se o urgente desenvolvimento de políticas públicas e legislações
internacionais, nacionais e locais, sob o princípio do bem comum, a médio
e longo prazo, superando o consumismo, desenvolvendo cooperativas,
a agricultura e a infraestrutura, reduzindo o consumo energético e a
poluição, fazendo boa gestão dos transportes e protegendo a vida81. Faz
diferença nisso o enfrentamento da degradação do meio ambiente, com
reações globais efetivas para a redução da poluição e o desenvolvimento
dos países e regiões pobres.82
É preciso reconhecer a dignidade do pobre, respeitando-o no seu
estilo próprio e na cultura e integrá-los de fato na sociedade, por meio
de estratégias de expressão e participação social. Basta de contensão e
de obras altruístas que os reduzem à passividade83. Para tanto, é necessária uma boa política, que priorize o amor que se expressa próximo e
concreto84, fundamentada em princípios e no bem comum85.
A promoção da amizade social implica em aproximar os grupos
sociais distantes, bem como renovar o encontro com os mais pobres e
vulneráveis, de modo a reconhecer e afirmar a dignidade de cada pessoa,
a fim de que elas assumam o protagonismo da sua nação86. Convém ressaltar que se, por vezes, os pobres e os descartados da sociedade reagem
77
FT 122.
78
LS 172.
79
LS 128.
80
FT 169.
81
LS 176-181.
82
LS 175.
83
FT 187.
84
FT 194.
85
FT 178.
86
FT 233.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
119
A Doutrina Social no magistério de Francisco
com atitudes que parecem antissociais, é porque, por muitas vezes, foram
marcados pelo desprezo e pela falta de inclusão social87. Diante disso,
recordam os bispos da América Latina “só a proximidade que nos faz
amigos nos permite apreciar profundamente os valores dos pobres de
hoje, seus legítimos desejos e seu modo próprio de viver a fé. A opção
pelos pobres deve conduzir-nos à amizade com os pobres”. 88
Francisco afirma que cada pessoa é chamada a cuidar do mundo e da
qualidade de vida da humanidade e do planeta, com relações solidárias89.
A maior parte da humanidade se declara crente, e isso é algo positivo para
incentivar as religiões a assumirem o diálogo como caminho para a realização de projetos comuns a favor das populações carentes em todo o mundo90.
Para os cristãos, convém acentuar que Jesus, retomando a fé bíblica no Deus
criador, destaca que Deus é Pai91 e estabelece com todas as criaturas relações
de ternura e de fraternidade. Jesus afirma, ainda, que benditas são as pessoas
que dão de comer aos que têm fome, de beber a quem tem sede, acolhem os
forasteiros, vestem os nus, visitam os doentes e os presos. 92
5
Por uma ecologia integral
A Laudato Si é reconhecida como a carta magna do magistério
pontifico no que diz respeito a questão ecológica, de modo que essa
encíclica coroa os documentos anteriores, com a sua proposta: a ecologia integral93. Por meio dessa encíclica, o papa apresenta uma ecologia
integral, que articula as dimensões ambiental, econômica, política,
social, cultural e da vida cotidiana, relacionando-as com o princípio do
bem comum94. Uma ecologia integral precisa ser vivida com alegria e
120
87
FT 234.
88
CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Documento de Aparecida. Texto
conclusivo da V Conferência Geral do episcopal Latino-Americano e do Caribe. Brasília: Edições CNBB; São Paulo: Paulus: Paulinas, 2007. n. 389.
89
LS 232.
90
LS 201.
91
Mt 11,25.
92
Mt 11,34-36.
93
MAÇANEIRO, 2016, p. 268.
94
MURAD, Afonso. Laudato Si e a Ecologia Integral. Um novo capítulo da Doutrina
Social da Igreja. Medellín, Bogotá. v. 43, n. 168, p. 469-494. maio/ago. 2017. p. 469.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
Elias Wolff e Tiago Trevisan
autenticidade95, aberta a várias categorias que se colocam em contato
com a essência do ser humano.96
Compreendendo que na realidade tudo está intimamente relacionado, bem como os problemas atuais que exigem um olhar e compromissos
globais, a encíclica Laudato Si´ indica diferentes elementos, considerando
as dimensões ambientais, humanas e sociais97, observando as relações
entre os organismos vivos e o meio ambiente onde se desenvolvem98.
Assim, Francisco apresenta as várias faces de uma ecologia integral:
a – Ecologia ambiental: ao se referir ao “meio ambiente”, o pontífice acentua a particular relação entre a natureza e a sociedade. Desse
modo, há uma única e complexa crise socioambiental, que só poderá
ser superada a partir de uma abordagem integral, que vise combater a
pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, concomitante, cuidar da
natureza.99
b – Ecologia Econômica: o crescimento econômico possui a tendência de produzir automatismos e a homogeneizar, visando simplificar
os processos e reduzir os custos. Assim, é necessária uma ecologia econômica, que seja capaz de considerar a realidade, na sua ampla dimensão,
e que esteja a serviço da proteção do meio ambiente. Na perspectiva
integral e integradora, é inseparável a análise dos contextos humanos,
familiares, laborais, urbanos e da relação de cada pessoa consigo mesma,
que produz uma maneira específica de se relacionar com os outros e com
o meio ambiente.100
c – Ecologia Social: se tudo se inter-relaciona, então, a saúde das
instituições sociais atinge o ambiente e a qualidade de vida humana.
Diante disso, é necessária uma ecologia social, que seja institucional
e, de maneira progressiva, atinja as diferentes dimensões, percorrendo
desde a família, como grupo social primário, até a vida internacional,
perpassando a comunidade local e a nação.101
95
LS 10.
96
LS 11.
97
LS 137.
98
LS 138.
99
LS 137-139.
100
LS 141.
101
LS 142.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
121
A Doutrina Social no magistério de Francisco
d – Ecologia cultural: junto ao patrimônio natural, encontra-se
ameaçado o patrimônio histórico, artístico e cultural, que constituem
a identidade comum de um espaço. É necessário integrar a história, a
cultura e a arquitetura de um determinado lugar, guardando a sua identidade original. Portanto, a ecologia contempla também o cuidado com
as riquezas culturais da humanidade102. Diferentes formas de exploração
intensa e de degradação podem consumir também os recursos sociais,
a identidade cultural e o sentido da convivência social e da existência,
que constituíram um modo de vida, durante um longo tempo. Assim, o
desaparecer de uma cultura é também uma situação grave.103
e – Ecologia da vida cotidiana: o ambiente em que cada ser humano vive tem influência na sua maneira de viver, sentir e agir, a começar
pelo quarto, a casa, o local em que se trabalha e o bairro, que expressam
a identidade de cada sujeito104. Em virtude da relação que existe entre os
espaços urbanizados e o comportamento humano, é preciso que, ao se
projetar e construir edifícios, bairros, espaços públicos e cidades, sejam
valorizados os vários saberes105. É necessário reconhecer também que
é o corpo que permite ao ser humano relacionar-se, assim, a “aceitação
do próprio corpo como dom de Deus é necessária para acolher e aceitar
o mundo inteiro como dom do Pai e casa comum”106 , condição de uma
verdadeira ecologia humana107.
6 A fraternidade e a amizade social: um sonho
possível
Francisco de Roma faz referência a Francisco de Assis ao acolher os seus conselhos e destacar o convite a um amor que ultrapasse as
barreiras geográficas para que, de modo fraterno, reconheça, valorize
e ame as pessoas, independentemente de sua proximidade física e do
local do planeta em que nasceu ou habita108. Ainda sobre Francisco de
Assis, o papa indica que ele não fazia dialética, impondo doutrinas, mas
122
102
LS 143.
103
LS 145-146.
104
LS 147.
105
LS 150.
106
LS 155.
107
LS 155.
108
FT 1.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
Elias Wolff e Tiago Trevisan
comunicava o amor Deus, pois compreendia que “Deus é amor: quem
permanece no amor, permanece em Deus”109. Assim, Deus, o Pai, suscita
uma sociedade fraterna.110
Deus criou os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e
na dignidade e os chamou à convivência fraterna111. Nessa convivência,
cada pessoa fortalece o anseio mundial para que a vida seja “uma bela
aventura”. A vida não acontece isoladamente, mas em comunidade, na
qual as pessoas se ajudam e se apoiam mutuamente. “Como é importante sonhar juntos [...]. Sonhemos como uma única humanidade, como
caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra
que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou das suas
convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos”.112
Há muitas situações no mundo atual que dificultam a fraternidade
universal113: conflitos anacrônicos; nacionalismos fechados e agressivos114; uma economia global, com o seu modelo cultural único115; as
diversas expressões de racismo116; as regras econômicas que focam apenas
a riqueza e não a equidade117; os direitos humanos que não são iguais
para todos118; o trabalho escravo119; a questão das migrações, que ainda
causam alarmes e temores, fomentada pela mensalidade xenófoba120; os
movimentos digitais que têm sido marcados pelo ódio e destruição121; a
perda da capacidade de escuta e de diálogo122.
É preciso enfrentar essas situações com a parresia da fé. Em meio
às sombras, é preciso lançar a luz do Evangelho, apontando para Cristo
109
1Jo 4,16.
110
FT 4.
111
FT 5.
112
FT 8.
113
FT 9.
114
FT 11.
115
FT 12.
116
FT 20.
117
FT 21.
118
FT 22.
119
FT 24.
120
FT 37-41.
121
FT 42-46.
122
FT 47-50.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
123
A Doutrina Social no magistério de Francisco
como a “luz que ilumina toda pessoa”123. Então, frente às dificuldades,
caminha-se na esperança124, pois “a esperança é ousada, sabe olhar para
além das comodidades pessoais, das pequenas seguranças e compensações que reduzem o horizonte, para se abrir aos grandes ideais que
tornam a vida mais bela e digna. Caminhemos na esperança!”125. Para
tanto, é necessário que a sociedade se oriente para o bem comum e, a
partir desse objetivo, “reconstrua incessantemente a sua ordem política
e social, o tecido das suas relações, o seu projeto humano”126. Os seres
humanos podem refazer a comunidade humana, assumindo a própria
fragilidade e a dos outros, não permitindo que se construa uma sociedade
de exclusão, mas fazendo-se próximos e solidários para com quem está
caído, e possibilitando-lhe partilhar127. Não se pode viver sendo indiferente à dor; não se pode deixar ninguém caído “nas margens da vida”.
Essa consciência deve transformar o jeito de ser de cada pessoa.128
O ser humano compreende a si mesmo, mediante uma teia de relações, de modo que uma relação sadia consigo mesmo permita abrir-se
aos outros, podendo crescer e enriquecer-se mutuamente129. A comunhão
universal é vivida no amor, que, em sua própria dinâmica, exige uma
abertura, capacidade de acolhida dos outros, numa aventura sem fim,
que faz com que se dirija para o sentido de uma mútua pertença130. Disse
Jesus: “Todos vós sois irmãos”131. Desse modo, o amor rompe com as
fronteiras entre os povos, possibilitando a abertura universal132 que gera
uma “amizade social” genuína. O futuro não é monocromático, mas diverso devido à contribuição que cada um e cada uma pode dar. De fato,
a família humana precisa “aprender a viver conjuntamente em harmonia
e paz, sem necessidade de sermos todos iguais!”133.
124
123
Jo 1,9.
124
FT 54.
125
FT 55.
126
FT 66.
127
FT 67.
128
FT 68.
129
FT 89.
130
FT 67.
131
Mt 23,8.
132
FT 99.
133
FT 100.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
Elias Wolff e Tiago Trevisan
Por isso o direito que todo ser humano tem para desenvolver-se
integralmente134. E o que é individual não pode ser individualista, o pessoal é também coletivo: “voltemos a promover o bem, para nós mesmos
e para toda a humanidade, e assim caminharemos juntos para um crescimento genuíno e integral”135, manifestando a solidariedade de modo
concreto no serviço, cuidando dos mais frágeis presentes na família, na
sociedade e no povo136. A construção da fraternidade universal exige uma
política a serviço do bom comum137, garantindo direitos como: trabalho
digno para todos e todas138; educação para que o ser humano seja artífice
do seu trabalho139; hábitos solidários, com capacidade de refletir a vida
de maneira integral. Assim, a sociedade como um todo reage “face às
próprias injustiças, às aberrações, aos abusos dos poderes econômicos,
tecnológicos, políticos e midiáticos”140.
Vale ressaltar que a civilização do amor é construída como amor
social141, que é a força capaz de “suscitar novas vias para enfrentar os
problemas do mundo de hoje e para e renovar profundamente desde o
interior das estruturas, organizações sociais, ordenamentos jurídicos”142.
A construção da paz exige esforços diários e o compromisso de todos143.
A caridade apresenta-se, nesse sentido, o centro da vida social144, que,
aberta à verdade145, é capaz de acompanhar quem sofre e modificar as
condições sociais que geram sofrimento146. Caridade é encontro, que
possibilita compromissos comuns e diálogo na verdade147. Cada pessoa
pode expressar-se em sua identidade e sentir-se acolhida, reconhecida,
promovida. Por isso, o magistério de Francisco tem o encontro e o diálogo
como “cultura” a ser criada com urgência no mundo atual, construindo
134
FT 107.
135
FT 113.
136
FT 115.
137
FT 154.
138
FT 162.
139
FT 187.
140
FT 167.
141
FT 183.
142
PCJP, 2004, n. 207.
143
FT 232.
144
FT 184.
145
FT 184.
146
FT 186.
147
FT 198.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
125
A Doutrina Social no magistério de Francisco
pontes para unir o que está dividido. E “isto se tornou uma aspiração
e um estilo de vida. O sujeito desta cultura é o povo, não um setor da
sociedade que tenta manter tranquilo o resto com recursos profissionais
e mediáticos148.
Por fim, como caminho para curar as feridas, é preciso sermos
artesãos da paz, que iniciem processos de cura149. É preciso trabalharmos
juntos150, no serviço aos demais, e não na ambição de dominá-los151.
Esse caminho requer reconciliação e perdão. Não se trata de renunciar
os próprios direitos, mas de amar o opressor, que não significa consentir
que ele continue agindo, nem o levar a pensar que aceitável o que faz.
O importante é não alimentar o ódio que faz mal à pessoa e ao povo,
desencadeando a vingança. Pois, desse modo nada se ganha nas relações,
e perde-se tudo o que foi construído no caminho da fraternidade. 152
7
Considerações finais
A DSI tem sido desvelada a cada dia, acentuada pela atuação social
que o papa tem realizado. Francisco, conduzindo a Igreja na sua missão
de anunciar o Evangelho do Reino, tem no seu coração a plenitude do
Reino. Movido pela fé no Ressuscitado, o papa jamais esquece que o
caminho para ele e dá-se no chão da história, de modo que, atento às
múltiplas questões do tempo presente, inicia processos que objetivam
responder os seus desafios.
O pontificado de Francisco é marcado pelo diálogo, como estilo
de vida e proposta eclesial. Caracteriza-se pela proximidade, escuta, esforço para entender o outro, construir pontes. Isso incide positivamente
tanto no interior da igreja quanto no mundo. Caracteriza a “igreja em
saída missionária”, companheira e serva, disposta a ajudar o mundo nas
suas necessidades, a curar suas feridas, planejar e iniciar processos de
transformação.
126
148
FT 217.
149
FT 225.
150
FT 228.
151
FT 229.
152
FT 236-242.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
Elias Wolff e Tiago Trevisan
O fundamento é a fé no Deus que assim agiu com quem sofria na
escravidão do Egito153. Esse Deus se humanizou e se solidarizou para
com a humanidade154. Desse modo, a fé cristã impele à caridade social.
A doutrina social da Igreja é uma privilegiada expressão do Evangelho
do amor que visa transformar o mundo na perspectiva do Reino. Ali se
realiza o desejo de Cristo: que todos tenham vida em abundância155. Aqui
a razão dos esforços de Francisco para o desenvolvimento de um humanismo integral, uma ecologia integral, a fraternidade e amizade social.
Referências
BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. Nova edição renovada e ampliada. São Paulo: Paulus, 2015.
CIPRIANI, Gabriele. Da fraternidade à comunhão: o ecumenismo do
papa Francisco. Caminhos de Diálogo, Curitiba, ano 6, n. 8, p. 8-18,
jan./jun. 2018.
CONCÍLIO VATICANO II. Constituição pastoral “Gaudium et spes”. In:
COMPÊNDIO DO CONCÍLIO VATICANO II. Constituições, Decretos,
Declarações. 31. ed. Petrópolis: Vozes, 2018. p. 143-256.
CONSELHO EPISCOPAL LATINO-AMERICANO. Documento de
Aparecida. Texto conclusivo da V Conferência Geral do episcopal
Latino-Americano e do Caribe. Brasília: Edições CNBB; São Paulo:
Paulus: Paulinas, 2007.
FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Fratelli Tutti. São Paulo: Paulinas,
2020. p. 209.
FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si. São Paulo: Paulus:
Loyola, 2015. p. 142.
FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelli Gaudium. São
Paulo: Paulus: Loyola, 2014. p. 165.
LEÃO XIII, Papa. Carta Encíclica Rerum Novarum: sobre a condição
dos operários. Disponível em: http://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/
153
Ex 3.
154
Jo 1,14.
155
Jo 10,10.
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021
127
A Doutrina Social no magistério de Francisco
encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html.
Acesso em: 15 fev. 2021.
MAÇANEIRO, Marcial. A ecologia e o ensino social da Igreja: inscrição
e alcances de um paradigma. In: ZACHARIAS, Ronaldo; MANZINI,
Rosane (org.). Magistério e doutrina social da Igreja. São Paulo: Paulinas, 2016. p. 230-283.
MAÇANEIRO, Marcial. Ecologia, fé e justiça social: Para uma recepção
da encíclica ‘Laudato si’ de Papa Francisco. Medellín, Bogotá. v. 41. n.
163, p. 435-460. set./dez. 2015.
MAÇANEIRO, Marcial. Vozes do sul na encíclica Laudato si’: Fontes
e temas. Pistis & Praxis – Teologia e Pastoral. Curitiba, v. 8 . n. 3, p.
715-760. set./dez. 2016.
MARTINS, Alexandre Andrade. Doutrina Social da Igreja e Teologia da
Libertação: diferentes abordagens. In: ZACHARIAS, Ronaldo; MANZINI, Rosane (org.). Magistério e doutrina social da Igreja. São Paulo:
Paulinas, 2016. p. 50-82.
MURAD, Afonso. Laudato Si e a Ecologia Integral. Um novo capítulo
da Doutrina Social da Igreja. Medellín, Bogotá. v. 43. n. 168, p. 469-494.
maio/ago. 2017.
PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ. Compêndio da Doutrina
Social da Igreja. Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_pc_justpeace_doc_20060526_
compendio-dott-soc_po.html. Acesso em: 8 jan. 2021.
STRINGHINI, Pedro Luiz. Apresentação. In: ZACHARIAS, Ronaldo;
MANZINI, Rosane (org.). Magistério e doutrina social da Igreja. São
Paulo: Paulinas, 2016. p. 5-7.
WOLFF, Elias. Igreja em diálogo. São Paulo: Paulinas, 2018.
128
Encontros Teológicos | Florianópolis | V.36 | N.1 | Jan.-Abr. 2021